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EXPECTATIVAS PARA O IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: A MEMÓRIA
HISTÓRICA E FILOSÓFICA SOBRE O BRASIL DE JOAQUIM JOSÉ DA
SILVA MAIA (1820-1824)
WALQUIRIA DE REZENDE TOFANELLI ALVES*
Introdução:
Desde o século XIX, inúmeras produções historiográficas abordaram o tema da
Independência do Brasil. No decorrer dos últimos anos, a historiografia tem se
interessado e investigado, cada vez mais, a complexidade constitutiva do processo de
Independência, em destaque a consolidação do Estado e a formação das identidades
nacionais, sobretudo para demonstrar a diversidade de projetos possíveis para a o futuro
político do Império fundado na América portuguesa1. Nossa proposta é abordar aspectos
dessa complexidade a partir de escritos de Joaquim José da Silva Maia, personagem
favorável à preservação do Império luso-brasileiro.
Joaquim Maia, natural da cidade do Porto, em Portugal, nasceu em 1776 e
faleceu em 1831, no Rio de Janeiro. Há referências de que teve formação intelectual
mediana e praticou desde cedo a profissão de negociante, apesar de não sabermos de
que modo e onde teria iniciado tais atividades antes de se fixar na Bahia. Segundo seu
relato, transferiu-se à capitania em 1795, estabelecendo-se na cidade de Cachoeira e
depois na capital Salvador, onde se matriculou na Real Junta do Comércio. (SILVA,
1860: 112).
Em 1° de março de 1821 iniciou uma atuação na imprensa com a publicação do
Semanário Cívico, que saia às quintas-feiras, e era impresso na Tipografia Viúva Serva
e Carvalho. Neste periódico abordou diversos assuntos, entre eles, a adesão da Bahia às
Cortes de Lisboa, instruções para as eleições dos deputados de província, comentários
sobre a América hispânica, relatos sobre a economia política da região, opiniões
contrárias à presença inglesa no comércio luso-brasileiro e à pressão desta para abolir o
tráfico de escravos.
* Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), mestranda no programa de pós-graduação em
História. Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq). 1 Mais informações sobre os debates da historiografia sobre a Independência podem ser encontradas na
obra “A independência na historiografia brasileira” de Wilma Peres da Costa.
2
O objetivo desta comunicação é expor os principais argumentos do projeto
político deste negociante a partir de suas “Memórias históricas e filosóficas sobre o
Brasil” escritas em 1824 para problematizar interpretações que, pejorativamente,
qualificaram Silva Maia como “áulico” e “recolonizador” por ser “português”, portanto,
adversário dos “brasileiros” nas circunstâncias da luta pela independência na Bahia,
vivenciada como uma verdadeira guerra civil.
1. Avaliação sobre o posicionamento de Silva Maia: problematização
Vários autores que estudaram a guerra civil ocorrida na Bahia (1822-1823) no
contexto da luta contra as Cortes portuguesas, a compreenderam como resultado de
disputas entre “identidades nacionais” já constituídas, ou seja, “portugueses” versus
“brasileiros” 2, leitura que interpreta, sem rigor histórico, comentários de personagens
envolvidos no embate político contemporâneo aos acontecimentos. Em uma das
primeiras obras sobre o processo de Independência do Brasil publicada, em 1836, João
Armitage analisou o decreto emitido pelas Cortes,em 24 de abril de 1821, que liberava
os Governos Provinciais da submissão ao Rio de Janeiro, e transferia a obediência
exclusivamente ao centro de poder sediado em Lisboa. Para Armitage, esta resolução
teria sido uma “excentricidade” das Cortes, justificada pela desconfiança que tinham em
relação aos planos do Príncipe Regente que permanecera no Rio de Janeiro. Comentou o
apoio dado ao decreto pelas classes comerciais compostas por “portugueses natos”,
adeptos do constitucionalismo de Lisboa, esperançosos da restauração de antigos
privilégios praticados no comércio luso-brasileiro. A adesão destes mercadores ao
decreto das Cortes devia-se à expectativa de que somente as leis seriam capazes de
revogar os benefícios comerciais concedidos aos britânicos pelo tratado de 1810.
(ARMITAGE, 1837: 48).
Armitage registrou o apoio da Bahia ao decreto, explicando que o partido
político ali dominante era composto preponderantemente por negociantes
“portugueses”:
2István Jancsó em “Brasil e brasileiros – Notas sobre modelagem de significados políticos na crise do
Antigo Regime português na América” realizou interessante estudo sobre a complexidade das identidades
políticas no Brasil naquele momento e da emergência dos Estados Nacionais nas Cortes, exemplificando
o caso baiano.
3
Pela preponderância deste partido na Cidade da Bahia, negou-se
explicitamente à respectiva Junta Provisória, que governava desde o
estabelecimento da Constituição, a reconhecer a autoridade de D. Pedro
como Regente, a pretexto de ter sido nomeado por El-Rei, e não pelas
Cortes; deduzindo deste princípio de nulidade do decreto de 22 de abril; e
como maior prova de obediência para com o Governo de Portugal, pediu-lhe
reforço de tropas, a fim de melhor se manterem as relações existentes entre
os dois países. (ARMITAGE, 1836: 48).
Segundo Armitage, o poder local baiano se negava a reconhecer o decreto
anterior, datado de 22 de abril de 1821, porque expedido pelo rei D. João VI e não pelas
Cortes Constituintes. O decreto do rei foi promulgado após discussão na Praça do
Comércio do Rio de Janeiro, que atravessou a madrugada de 21 a 22 de abril de 1821,
decorrente da oposição entre liberais fluminenses e emigrados portugueses quando da
escolha dos deputados das províncias brasileiras para as Cortes. Houve tumulto e as
tropas de D. Pedro foram chamadas com a finalidade de dissolver o confronto3. Após a
repressão e abertura de devassa, D. João VI decidiu, apoiado no referido decreto, que
retornaria a Lisboa deixando a Regência a cargo de seu filho, D. Pedro. A análise deste
episódio revela o poder dos liberais fluminenses ao se oporem publicamente à que
nobres emigrados e homens de famílias tradicionais ligadas ao poder central
continuassem a ocupar os cargos mais altos na Corte, prorrogando assim políticas de
privilégios. (OLIVEIRA, 2013: 98).
Estas descrições de Armitage são importantes porque fundamentam a visão de
um britânico interessado nos negócios, na política e na história do Brasil, notadamente,
porque desde há muito os ingleses investiam na continuidade de rentáveis acordos
comerciais com Portugal. Naquele momento preocupavam-se com a manutenção dessas
relações agora mediadas pelo Rio de Janeiro, mais do que por Lisboa, que se orientavam
por princípios do capitalismo industrial, os quais aconselhavam a ampliação dos
mercados consumidores dos produtos ingleses e fornecedores de matérias primas para
as manufaturas. (CAVALCANTI, 1972: 233-234).
3A opção pela Independência foi resultado de intensa articulação política de liberais ligados à economia
do Centro-Sul da América portuguesa. Desde o final do século XVIII, este grupo de liberais da região
fluminense reuniu capitais e poderes políticos suficientes para pressionar o monarca a representar suas
demandas. Fizeram parte deste grupo homens ilustres por seu desempenho político no Rio de Janeiro,
como Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, José Clemente Pereira, Luís Pereira da
Nóbrega de Souza Coutinho e Manuel dos Santos Portugal. (OLIVEIRA, 1999: 107).
4
A obra de Armitage destaca a oposição entre “brasileiros” e “portugueses” para
explicar a situação baiana na Independência, explicação bem avaliada historicamente
por Guilherme Paula dos Santos, quando analisou esta obra para compreender a
diplomacia do reconhecimento da Independência:
A despeito da descrição de um e outro pormenor, Armitage reuniu em um
ponto as tratativas: as negociações foram compreendidas como uma
manifestação de oposição entre brasileiros e portugueses. Compreendendo,
particularmente os episódios desencadeados ao longo da década de 1820,
marcados por ações que visavam, além da separação com Portugal, a
remoção de práticas consideradas ‘atrasadas’. O Autor enfatizou uma
aparente ‘identidade brasileira’ em contraposição a uma ‘portuguesa’.
Assim, delineou conotação mais nítida para o conflito: a luta diplomática
espelhava a luta dos brasileiros que pleiteavam um regime constitucional, de
liberdade e segurança individual, enquanto os portugueses representavam o
absolutismo, ‘pretendiam impor a soberania’. (SANTOS, 2015: 28).
Interpretações como as de Armitage, feitas após os acontecimentos e criadas
pelas solicitações políticas do momento em que foram preparadas (a disputa que ocorreu
nos primeiros anos do período regencial) projetam para o início dos anos de 1820 uma
concepção de nacionalidade “brasileira” vivenciada posteriormente, nos anos 1830,
porém diversa da que se teria posteriormente, no século XX. Muitos contemporâneos
reproduziram a mesma análise em periódicos e manuscritos acusando os “portugueses”
de comporem um partido “recolonizador” no Brasil, acusação acentuadamente política
cujo sentido se remetia, hipoteticamente, ao período anterior à vinda da Corte.
Por sua vez, (re)inventando esta leitura, a historiografia do século XX transferiu
as noções de “Estado” e de “Nação” para tempo e espaço (a década de 1820) em que
não estavam estabelecidas claramente4. Podemos encontrar essa interpretação nos
escritos de Braz Hermenegildo do Amaral (1926), Nelson Werneck Sodré (1966),
Consuelo Pondé de Sena (1983) e Christiane Peres Pereira (2013), que entenderam o
processo independentista na Bahia a partir da oposição entre “identidades nacionais”
plenamente configuradas. Alguns imputaram a Joaquim Maia o título de “áulico” e
4Muitos autores ao referenciarem acontecimentos de 1821 e 1822 na Bahia, usaram os termos
“portugueses” e “brasileiros” de forma genérica opondo, na verdade, políticos e comerciantes que
apoiavam o poder das Cortes em Lisboa, àqueles que aderiram ao centro de poder do Rio de Janeiro.
Destarte, também há autores que carregam esta oposição como se as identidades nacionais já estivessem
consolidadas, sugerindo que na Bahia, o anúncio da Independência era mais premente porque esta
oposição nacionalista aos “portugueses” resultou em uma guerra civil (1822-1823).
5
“reacionário” ao reconhecer sua atividade jornalística como expressão de uma
“imprensa lusitana” no Brasil.
Inspirada pelo trabalho de Antonio Penalves da Rocha5, ao analisar os debates
nas Cortes de Lisboa Márcia Regina Berbel mostrou que o termo “recolonização” foi
utilizado retoricamente por deputados americanos para atacar opiniões de europeus que
limitavam o poder político do Reino do Brasil. O uso do termo foi mais freqüente após
desobediência do Príncipe às ordens das Cortes, mais precisamente quando decidiu, em
09 de janeiro de 1822, permanecer na América. A decisão demonstrou a existência de
dois centros de poder no Império, o Rio de Janeiro e Lisboa, fato que acirrou ainda mais
os debates nas Cortes. (BERBEL, 2005: 792-793).
Abordando o conceito de “identidades” durante as transformações do XVIII para
o XIX, João Paulo Pimenta e István Jancsó reforçaram o caráter provisório e movediço
das noções de “pátria”, “país” e “nação” naquelas circunstâncias. Destacaram a
multiplicidade de projetos construídos por grupos cujas “identidades” além de serem
forjadas coletivamente, também se referiam a interesses políticos e de negócios. Isto
significa que o termo “nação” não estava simplesmente associado ao sentido que
atualmente atribuímos a ele: lugar de nascimento ou de origem. Na verdade, a “nação”
congregava todos os súditos do Império, com a diferença de nomearem-se portugueses
da América e portugueses da Europa. O objetivo desses grupos variava de acordo com
as percepções coletivas que desenvolviam no interior da crise do Antigo Regime.
(JANCSÓ; PIMENTA, 2000: 135-136).
Dessa forma, a coesão desses grupos, opostos como “portugueses e brasileiros”,
na verdade, dependia de interesses coletivos políticos e econômicos relacionados a um
ou outro centro de poder: Lisboa ou o Rio de Janeiro. Seria, então, mais adequado falar
em diversidades de propostas políticas, e não de supostos antagonismos nacionais no
sentido atual destes termos. As relações com esses centros dependiam da produção e
comércio de cada região e das proximidades e diálogos das províncias com esses pólos
de poder político e econômico. (WISIAK, 2005: 448).
5 Márcia Berbel observou que: “Antonio Penalves Rocha recuperou as origens do vocábulo recolonização
como “um neologismo cunhado durante o movimento de Independência para denunciar o caráter das
disposições legais impostas ao Brasil pelas Cortes”. (ROCHA, 2001: mimeo; apud, BERBEL, 2005:
792).
6
A cidade do Rio de Janeiro era “um dos centros comerciais mais ativos dos
domínios portugueses” (OLIVEIRA, 1999: 62). Desde o final do XVIII vivenciou um
processo de mercantilização da terra e da força de trabalho, demonstrando a crescente
liberalização nas relações sócio-econômicas que afetava não só a Europa, mas
igualmente as possessões na América. O que se percebe são contradições entre formas
de governo tradicionais e o liberalismo crescente que transformava atividades e relações
de trabalho em uma escala americana e europeia. Com a transferência da Corte para o
Rio de Janeiro, em 1808, a cidade foi muito valorizada, como capital e centro de poder
do Império português. (OLIVEIRA, 1999: 63).
Trata-se de considerar, neste caso, que dentre os diversos setores sociais que
enfrentavam a crise do Império luso-brasileiro, havia os que desfrutavam de maiores
lucros nas relações com o Rio de Janeiro e aqueles cujas relações mais rentáveis vinham
das ligações com Lisboa. Thomas Wisiak apresentou o quadro da crise política do
Antigo Regime com o intuito de mostrar que diversos grupos orientavam suas forças
políticas no sentido de buscar alternativas para a crise. (WISIAK, 2001: 35-36). Richard
Graham também acredita que as províncias do Norte apoiaram o centro de poder
sediado em Lisboa porque o predomínio do Rio de Janeiro, desde 1808, nunca teria sido
bem aceito por eles:
A maioria dos políticos portugueses não via razão para tratar as províncias
brasileiras de maneira distinta das de Portugal, onde supunham que a
autoridade central fosse indiscutível num novo governo liberal unitário. Até
mesmo alguns delegados brasileiros queriam ver a província do Rio de
Janeiro despojada de sua posição especial, pois seu predomínio a partir de
1808 nunca fora bem-aceito nas províncias do Norte. As Cortes votaram pela
abolição total do reino do Brasil como entidade separada, e pela submissão
de todas as províncias ao governo de Lisboa, sem ao menos um vice-rei no
Brasil. Em outubro, as Cortes instruíram d. João VI a ordenar a d. Pedro
que deixasse o Brasil e retornasse para a Europa – ordem que chegou ao
Brasil em dezembro de 1821. (GRAHAM, 2013: 214).
Para notabilizar a atuação dos baianos neste processo, Braz Hermenegildo do
Amaral elencou, em 1923, problemas na vinculação da memória histórica da
Independência às províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro. Fosse pelo “dia do Fico”,
em 9 de janeiro, fosse pelo anúncio do Príncipe às margens do Ipiranga, em 07 de
7
setembro de 1822, a valorização destes eventos teria encoberto a luta dos “verdadeiros”
protagonistas da história nacional6:
O vivo desejo de fazer da independência uma propriedade patriótica do Rio
de Janeiro e de S. Paulo, levou os interessados a dar aquela festividade um
cunho demasiado particularista, apagando o trabalho e o sacrifício de
outros que também contribuíram para levar a cabo a grande obra da
libertação em diversos ponto do território brasileiro. (...) A Independência
foi realizada pela ação decisiva e enérgica dos brasileiros e todos os
artifícios empregados para fantasiar uma falta da história convencional,
destinada a pôr em relevo aqueles dois pontos do país, não se podem manter,
diante de uma ligeira análise dos fatos precursores e preparatórios dela, os
quais se passaram em Minas Gerais, em Pernambuco e principalmente na
Bahia, onde ela foi, na realidade, feita e onde teve a sua terminação.
(AMARAL, 2005:09- negrito nosso).
É nesta linha argumentativa que Consuelo Pondé de Sena também avaliou o
processo baiano, ao abordar a participação de Maia no Sentinela Bahiense (1822),
periódico que durou apenas alguns meses, sendo impresso pela mesma Tipografia,
Viúva Serva e Carvalho concomitantemente ao Semanário Cívico. Ambos noticiavam
assuntos semelhantes e eram redigidos pelo mesmo redator (SILVA, 2008: 20). Para
Consuelo Ponde de Sena, o jornal foi um difusor da propaganda “antinacionalista”:
É nosso intento, pois, comentar a propaganda antinacionalista promovida
pelo referido Jornal, contribuindo, assim, para a divulgação de um assunto
alusivo ao memorável processo libertário baiano. (SENA, 1986: 04 – negrito
nosso).
Mais adiante, ratificou que a folha defendia “a causa lusitana” em oposição aos
“patriotas brasileiros”:
Tantas são as notícias tendenciosas, que o Sentinella transmite, que nos seria
impossível comentá-las na sua totalidade. Afinal, a gazeta tinha por objetivo
denegrir a ação dos patriotas brasileiros, os quais eram denominados
“facciosos” e exaltar as benemerências das forças portuguesas, aqui
sediadas, contra a vontade do povo baiano. Aliás, não se poderia pretender
daquele jornal uma atitude de imparcialidade diante dos fatos, quando seu
objetivo era exatamente o de defender a causa lusitana. (SENA, 1986: 21-22
– negrito nosso).
6 Amaral propõe o deslocamento da ênfase da memória nacional sobre a Independência deslocar-se do
Centro-Sul para a Bahia, sugerindo que o 2 de julho de 1823 fosse a data de real comemoração, já que
apenas quando aquela província, depois de confronto armado, aderiu à causa independentista expulsando
as tropas lisboetas, que a separação efetivamente se consolidou (AMARAL, 2005: 18).
8
De maneira parecida, Nelson Werneck Sodré remeteu-se à Silva Maia e ao
Semanário Cívico, classificando-os como participantes da imprensa “áulica e lusitana”
contra a qual lutavam os baianos7:
A censura era implacável. Sob a sua férula, apareceram, em 1821, antes que
o movimento portuense dispusesse sobre a liberdade de imprensa e, portanto,
integrando a imprensa áulica, o Semanário Cívico, que começou a circular,
na Bahia a 1° de março daquele ano, fundado e dirigido pelo comerciante
luso José da Silva Maia, fazendo coro com a Idade do Ouro do Brasil e
merecendo o apelido de “semanário cínico” que lhe puseram os baianos
(SODRÉ, 1999: 49).
Christiane Peres Pereira, em estudo sobre a trajetória do negociante nas
atividades de imprensa, apesar de comentar todas as produções do autor, atribuiu a ele a
característica de “áulico” baseando-se no texto de O Brasileiro Imparcial, periódico
redigido enquanto Silva Maia esteve no Rio de Janeiro, publicado de janeiro a dezembro
de 1830 e impresso pela Tipografia do Diário. Polemizando com o personagem
estudado, a autora considerou que: “O Imparcial está apenas no nome se nos detivermos
à característica principal dos áulicos...” (PEREIRA, 2013: 106). Justifica a importância
de seu estudo justamente porque pretende analisar as trajetórias de um “áulico” na
imprensa do Primeiro Reinado:
o que pretendemos demonstrar aqui é que a Bahia não se resume à
resistência armada contra a Independência, que tem também sua
importância enquanto foco de debates. Que o Rio de Janeiro não enfrenta
uma “onda” de descontentamento e movimentos de rua sem a contrapartida
dos “cortesãos”, daqueles que se empenharam tanto na imprensa como no
parlamento defendendo o governo. E que a trajetória de um áulico pode
contribuir para a compreensão do Primeiro Reinado nesses dois espaços.
(PEREIRA, 2013: 12).
O termo era fartamente utilizado no debate político da imprensa desde meados
da década de 1820. O Astréa (1826-1832) e o Aurora Fluminense (1827-1838)
contemporâneos do Brasileiro Imparcial, acusaram seu redator de “áulico”8 e
“recolonizador” porque acreditavam que o apoio a D. Pedro era parte de uma política de
7 O próprio autor define imprensa áulica pela referência ao Idade do Ouro do Brasil e o apoio que teria
dado à propaganda absolutista, mais precisamente, a D. João VI: “O absolutismo luso precisava, agora,
defender-se. E realizou a sua defesa em tentativas sucessivas de periódicos, senão numerosas pelos menos
variadas. Depois da Gazeta do Rio de Janeiro, de 1808, surgiu na antiga capital colonial, a Bahia, a
segunda cidade brasileira, a Idade de Ouro do Brasil...” (SODRÉ, 1999: 29-30). 8 No dicionário de Antônio de Morais e Silva o verbete “áulico” refere-se à qualidade daquele que é
palaciano ou cortesão. (SILVA, 1813: 232).
9
“estrangeiros” para “recolonizar” o Brasil. A denominação de “áulico” era usada de
forma pejorativa por estes redatores fluminenses, para atacar os “satélites” do Imperador
que, em seus argumentos, “contrariavam” a Independência. Desde 1815, o Brasil havia
sido elevado à condição de Reino Unido a Portugal e a Algarves e, em 1830, desfrutava
de estatuto mais sólido em relação à Independência. A possibilidade de retorno à
política de Antigo Regime no Brasil era quase nula, mas o receio dos liberais
brasileiros, moderados e exaltados, em 1830, permanecia. Este sentimento não era
propriamente em relação ao absolutismo e colonização, mas às medidas arbitrárias que,
porventura, o Imperador pudesse adotar. (Cf. SOUZA, 1999: 335).
Após a independência, muitos fluminenses e políticos de outras províncias
desconfiavam do caráter “constitucional” e “emancipador” de D. Pedro desde que
determinou o encerramento da Assembleia Constituinte, em 1823 e incluiu o poder
Moderador na Constituição de 1824. Para esses liberais, o monarca incentivou a
emigração dos portugueses para que cumprissem o papel de “áulicos”, ou seja, adulando
o governo de D. Pedro. Esses termos forjados no interior da linguagem política, sob a
observância de ataques e debates públicos, não foram problematizados por Christiane
Peres Pereira, dando-nos a impressão de que corroborou algumas das ideias destes
redatores moderados da década de 1830, ao classificar Silva Maia como um “áulico”.
Após a morte de D. João VI, em 1826, as questões ficaram ainda mais sensíveis
porque D. Pedro I do Brasil, o filho mais velho do rei, foi designado pelo pai herdeiro
dos dois Impérios. Em nossa hipótese, o receio de muitos destes moderados brasileiros,
a partir deste episódio, pode ser compreendido pelo fato de que, defensores de projetos
para a recomposição do Império luso-brasileiro, semelhantes aos de D. Rodrigo de
Souza Coutinho ou de Hipólito José da Costa, poderiam ganhar força política, apesar de
Pedro I ter transferido o trono de Portugal para sua filha Maria da Glória:
As relações deveriam pautar-se, não mais no sistema usual de dominação de
metrópole sobre colônia, mas numa relação de parceria de Estados iguais.
Dessa maneira, a preservação da unidade do mundo português consistia o
objetivo precípuo do projeto político embutido no programa de reformas,
cuja mira era a formação de um grande Estado atlântico – um novo e
promissor império lusitano ou, como a historiografia vem nomeando, um
império luso-brasileiro. E esse novo império aparecia como o elemento
unificador das partes distintas do mundo português, enquanto o sentimento
de pertencimento à nação lusa – então explícita e objetivamente evocada –
aparecia com a função de fortalecer essa unidade e, sobretudo, assegurar a
10
criação de um sentimento de identidade entre os habitantes do que era até
então “genericamente” chamado Brasil. (LYRA, 1994: 20).
Essa expectativa, embora muito enfraquecida no decorrer dos anos, não foi
totalmente descartada, pelo menos até a abdicação de D. Pedro, em 1831, e, sobretudo,
seu falecimento em 1834. É neste amplo contexto de definição do estatuto político do
Brasil (1821-1834) que o projeto de Joaquim da Silva Maia se modelou, defendendo
uma proposta conciliatória: um centro de poder constitucional em Lisboa, porém com
garantia de autonomia dos Reinos, que compunham o “vasto Império” português.
Sublinhamos com especial atenção seu contato com Hipólito José da Costa, outro
defensor daquele Império, que por referências de Maia teria sido um amigo com quem
se correspondeu nos anos em que viveu na Bahia:
Quando residíamos na Bahia o nosso falecido amigo H. J. da Costa, nos
pediu de Londres [que] lhe mandássemos uma estatística circunstanciada da
população do Brasil; porque pretendia escrever a história deste país, e
encontrava um vácuo imenso desde 1750 até os nossos dias; porque antes
daquela época os Jesuítas escreveram sobre este país, e depois de sua
extinção nada mais se publicou; e ainda hoje o que anda escrito é inexato;
mas nós encontramos dificuldades insuperáveis para satisfazer aquele
amigo: contudo lhe enviamos algumas memórias. (O Brasileiro Imparcial,
1830, n°29, folha 02)
Em depoimento de 1830, Silva Maia explicou que se retirou da Bahia e se
transferiu com a família para o Maranhão em 10 de julho de 1823“... tempo em que
ainda ali se não havia aclamado a independência do Império”. (O Brasileiro Imparcial,
n°02, 1830: 03). Após a adesão daquela província à Independência, que ocorreu no dia
28 do mesmo mês, o redator disse que a teria aceitado solenemente em 07 de Agosto, na
Câmara. Em suas palavras por demonstrar adesão pública à causa da independentista: “a
Junta do Maranhão nos deu legal Passaporte para a Europa (...) regressamos a Portugal
para colocar nosso filho na Universidade de Coimbra” (O Brasileiro Imparcial, 1830:
03). O filho em questão era Emílio Joaquim da Silva Maia, futuro sócio-fundador do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, e editor das obras do pai
divulgadas após sua morte, na década de 1840, dentre elas as Memórias históricas e
filosóficas sobre o Brasil, escrita em 1824 mas só publicada na Revista Minerva
Brasiliense, em 1844.
11
2. “As memórias históricas e filosóficas sobre o Brasil”: a crítica ao absolutismo e
defesa do Império luso-brasileiro como monarquia constitucional:
Na quarta edição do Dicionário de Antônio de Morais Silva, reeditada por
Theotônio José de Oliveira Velho e publicada, em 1831, há definições detalhadas sobre
o verbete “memória” enquanto gênero literário. A partir destas definições e da análise
da estrutura e dos argumentos das memórias de Silva Maia, optamos por elencar alguns
pontos significativos para a compreensão das memórias como escrita no início do XIX.
Memórias enquanto formas narrativas: 1) podem ser “escritos de narração
política” 2) Ou descrição de “fatos literários e científicos” servindo ou não às
Academias. 3) Geralmente depositam-se como matérias para a História [Geral]9. 4) As
memórias escritas “desenvolvem miudamente os fatos e suas causas, discutem o que são
duvidosos, determinam e verificam datas e copiam documentos”. 5) “Seu estilo deve ser
simples, livre, corrente” e não admite a ordenação que tem a História [Geral]. 6) O
próprio nome, “memória”, revela o caráter de fornecer testemunho ou relato de
proximidade com o fato a ser descrito, quando isto não acontece, a análise parte de
documentos anexos complementando o que não foi possível presenciar. 7) Por este
motivo, as memórias históricas fornecem análise de acontecimentos relativamente
recentes, observando certas diretrizes científicas do início do XIX. 8) Escrevem
memórias “quem quer conservar ou deixar em memória os sucessos públicos do seu
tempo” relatando desde grandes até pequenos fatos, como também, suas causas e
consequências para servir à posteridade. (SILVA, 1831: 300-301).
Por estas definições é possível perceber o pragmatismo deste tipo de narrativa,
bastante próximo ao das gazetas, pelo menos, quanto ao intuito de tornar público um
acontecimento recente. Observamos que na Memória Histórica em pauta existem
organização de fatos, sentidos políticos, argumentos e enredos orientados por começo,
meio e fim, que delimitam o tema e sua periodização. Silva Maia como político e
negociante, relatou acontecimentos considerados por ele de utilidade pública. Justificou
seu projeto, engajado na defesa de uma monarquia constitucional estendida a um grande
9 Este gênero, certamente, desfrutava de maior importância na historiografia do que as memórias porque
versavam sobre muitos assuntos, da história eclesiástica à história profana. (ARAÚJO; PIMENTA,
2009:124).
12
Império que reunia reinos dos dois lados do Atlântico, respeitando concepção
progressiva do tempo histórico moderno, pelo que, em alguns momentos, considera os
“erros de um passado colonial” como ensinamentos úteis para o presente e a posteridade
da monarquia constitucional 10.
Nas Memórias históricas e filosóficas sobre o Brasil, Silva Maia estabeleceu a
seguinte lógica-temporal: no início da narrativa tratou da história do descobrimento do
Brasil para elucidar as desvantagens do país decorrentes da colonização portuguesa. No
desenvolvimento, abordou a história político-administrativa da colônia no século XVIII,
ressaltando os malefícios daqueles povos que não dispunham de uma Constituição, ou
seja, estavam submetidos à dominação absoluta de um governo metropolitano que,
mesmo quando da elevação do país a Reino Unido, em 1815, não teria experimentado
profundas transformações. Na finalização fez um comentário breve sobre a Revolução
do Porto de 1820, ao que tudo indica, para valorizar que só a Constituição e as Cortes
em Lisboa poderiam limitar o poder absoluto.
A “descoberta”, na opinião de Maia, foi vista com “indiferença” pelos
portugueses, pois na época estariam mais ocupados em tirar riquezas da exploração da
Ásia. Explicou que a situação “primitiva” daquela colônia vinha do fato de que os
“selvagens” não contavam com qualquer riqueza ou indústria. Além disso, os primeiros
a povoarem o lugar foram miseráveis degradados e missionários jesuítas que, apesar de
terem sido os mestres na educação da mocidade e de gentios por muito tempo,
empreenderam um ensino demorado por lecionarem muitas aulas de latim e teologia,
em detrimento, de outras disciplinas consideradas por ele de maior importância.
(MAIA, 1844: 384).
Apenas durante o reinado de D. João IV (1640-1656), quando Portugal já havia
perdido a maior parte de suas possessões asiáticas, o Brasil tornou-se a única colônia
10Na virada do XVIII para o XIX houve aceleração do tempo que modificou as relações entre espaço de
experiência e horizonte de expectativa, trazendo novos paradigmas para a historiografia moderna, a qual
tornou-se capaz de projetar futuros sobre a perspectiva de um tempo progressivo. Reinhart Koselleck
comentou essas transformações a partir da dissolução do antigo topos História Magistra Vitae, em que
reconhece premente aceleração temporal causada por revoluções políticas e sociais. A historiografia até
este período orientava a vida dos homens a partir de relatos exemplares capazes de se “repetirem” devido
à lenta transformação das sociedades antigas e medievais (Historie). Com a dissolução deste topos na
modernidade, outra concepção para história submergiu (Geschichte) adquirindo natureza de referenciais
próprios para o tempo histórico e abrindo-se à experiência do passado composta por diferentes tempos e
novas expectativas para o futuro. (KOSELLECK, 2006: 48-49)
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considerável. Antes deste período, o reino também experimentara circunstâncias difíceis
como a guerra com os holandeses e com os espanhóis, motivo pelo qual esteve carente
de população para enviar à sua colônia. Nesta situação, o autor explica que Portugal não
podia fornecer homens para administrar, explorar e cultivar terras do Brasil:
...pela dilatada guerra que foi obrigado a sustentar com a Holanda, e depois
com a Espanha, estava exaurido de população que enviasse ao Brasil, e os
grandes proprietários daquele país não tinham forças com que pudessem
explorar e cultivar as terras e recorreram a violentar os indígenas (...) Em
breve tempo viu-se o Brasil coberto de negros, e os colonos entregaram os
cuidados dos seus negócios domésticos, e da lavoura, aos escravos,
vegetando em ociosidade, que os devia necessariamente fazer viciosos em um
país adusto onde as paixões são prontas, e impetuosas.(MAIA, 1844: 383).
José Roberto do Amaral Lapa demonstrou em seus estudos a importância
adquirida pela Bahia no comércio transatlântico. Documentos seiscentistas chegaram a
nomeá-la como “o porto do Brasil”, atribuindo-lhe representatividade para todo o
território colonial. Seu destaque remonta à metade do XVI quando se tornou escala
marítima para o comércio com a Ásia. Com a gradativa decadência dos negócios
portugueses no Oriente e a invasão dos territórios coloniais por barcos de outras nações,
o porto da Bahia foi sendo destacado dentre os demais da América portuguesa. Na
emergência de crise econômica e restauração de Portugal, em 1640, a Bahia adquiriu a
importância de “pulmão por onde respira a colônia” notadamente pela experiência
herdada na Carreira das Índias (LAPA, 2000: 01).
Esta relação com os mercadores para o Oriente legou abertura comercial para as
transações entre gêneros coloniais e de tráfico de escravos nos períodos subsequentes. A
Bahia desde muito tempo foi o centro político e administrativo principal de portugueses
em território colonial. Sua importância se dava pelos produtos que produzia como o
tabaco, o açúcar, a madeira, as especiarias, as fibras tropicais e as matérias-primas, além
disso, havia facilidade de contato com a África ocidental portuguesa por sua localização
geográfica. Ademais, era mais próxima também do centro metropolitano se comparada
com os portos do Sul. (LAPA, 2000: 01-02).
Silva Maia chamou de “mau sistema”, ao sistema colonial que dividiu o Brasil
em quatorze capitanias, governadas pelos capitães-gerais “absolutos (...) sem entre si ter
contato e relação, e somente sujeitos a Portugal” (MAIA, 1844: 383). Criticou a
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ambição destes homens, especialmente, em Minas Gerais, capitania sobre a qual recaía
fiscalização pesada, por conta da extração do ouro e de pedras preciosas e a corrupção
dos poderosos locais que, para ele, agiam como “cônsules, com mais autoridade do que
tinham os dos antigos Romanos”:
Um código ditado pela ambição, foi o que por muitos anos regeu aquela
capitania (...) [os capitães] desenvolviam sucessivamente uma ambição
desmedida, autorizada pela lei. Eles decidiam, sem apelação da vida, honra
e fazenda de todos aqueles que tinham a desgraça de lhes serem sujeitos (...)
ninguém podia vender coisa alguma sem sua licença (...); o parente não
podia comunicar-se com o parente, o amigo com o amigo. Se as outras
capitanias não tinham governos tão anômalos, a sua sorte em pouco
melhorava. (MAIA, 1844: 383 – negrito nosso).
Para o negociante, talvez fosse planos da Metrópole:
no tempo do sistema colonial conservar os Brasileiros na ignorância para os
fazer sujeitos e dependentes, e eles não conhecerem o estado ignóbil a que se
achava reduzidos, ou fosse porque Portugal, faltou dessas luzes pelos
obstáculos da inquisição, não podia comunicar o que não possuía; o certo é
que os habitantes do Brasil em geral viviam entregues a uma crassa
ignorância... (MAIA, 1844: 384).
A saída apresentada para “estancar a corrupção” e os problemas causados pelo
sistema colonial foi a “instrução pública” a partir da expansão das luzes. Possibilitadas
pela emancipação dos Estados Unidos, em 1776 e pelo início da Revolução Francesa,
em 1789, os obstáculos da censura no Brasil não conseguiram barrar “escritos de
Thomas Paine, o governo civil de Locke, o contrato social de Rousseau, e a revolução
d’América de Raynal, e outras obras desta natureza, principiaram-se então a ler no
Brasil” (MAIA, 1844: 384). Entretanto, “a imaginação ardente dos brasileiros se
inflamou”, vulgarizando termos como os “direitos do homem” e “do estado opressivo
de colônia”, o que evidenciava para ele, que estes não estavam preparados para o
sistema republicano, tampouco, para a abolição da escravidão, este último fato que
também ocorreu nos Estados Unidos. (MAIA, 1844: 385).
Fez inúmeras críticas à Corte instalada no Rio de Janeiro, em 1808, pelos
dispêndios que os “luxos verdadeiramente [semelhantes aos dos] asiáticos” causavam
“às rendas nacionais”. Além disso, disse que no Brasil causaram “males de maiores
transcendências” quando beneficiaram “muitos cidadãos” pertencentes à nobreza,
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pesando para isso impostos “sobre as classes industriosas” e “tirando braços [da]
lavoura, e [do] comércio”. (MAIA, 1844: 385).
Em sua análise a “importante lei que elevou o Brasil à categoria de reino,
publicada com tanto aparato, não produziu os resultados que eram de esperar” porque,
ainda se conservou nas capitanias, “o antigo regime militar dos capitães generais com
todos os seus defeitos e despotismos”. (MAIA, 1844: 386). Terminou a Memória
dando-nos a ideia de que teria continuidade em outra ocasião, pois ao escrever “Fim do
primeiro Livro” anunciou que no volume seguinte abordaria os acontecimentos da
Revolução do Porto de 1820 e “o efeito, que causou no espírito dos povos”, intenção
que não se concretizou. (MAIA, 1844: 389). Para o autor só a Constituição das Cortes
reunidas em Lisboa poderia regular os abusos e privilégios da Corte do Rio de Janeiro e
da “classe de déspotas” ligados a este centro administrativo.
Entendemos que, assim como outros escritos, as Memórias registram um dos
projetos em debate no complexo contexto da Independência, denotativo das dissensões
de grupos e ideias então existentes na província da Bahia, que se dividiam entre dois
centros de poder distintos na expectativa de melhor contemplar seus próprios interesses.
Estes homens comunicaram-se entre si através de cartas, memórias e periódicos, como
também o fez Silva Maia, e construíram opiniões sobre um futuro ainda incerto pensado
naquele momento, dentre outras propostas, como um Império apoiado no
constitucionalismo das Cortes com “a moldura da Monarquia para o mosaico luso-
brasileiro” (JANCSÓ, 2008: 267).
Acreditamos que os escritos de Silva Maia não receberam destaque na
historiografia, marcada por posturas nacionalistas, porque suas propostas políticas
foram derrotadas e ficaram cada vez mais encobertas, juntamente com o personagem,
debaixo da problemática acusação de ser um “reacionário”, “áulico” e “recolonizador”,
em outras palavras, um inimigo da Independência do Brasil (1822-1831) 11.
11 Izabel Lustosa no prefácio do livro “Semanário Cívico: Bahia 1821-1822” de Maria Beatriz Nizza da
Silva comentou que: “os dois principais impressos ligados ao grupo derrotado na pouca estudada guerra
de independência na Bahia até hoje não tinham sido lidos com a devida atenção. Vinculados à história
como jornais da reação portuguesa ao nosso movimento de independência, ficaram à margem,
conformando-se os historiadores com o que dele se disse nos jornais do Rio de Janeiro. Naqueles, como
bem o mostra o livro de Maria Beatriz, tanto o Idade do Ouro (em sua última fase) quanto o Semanário
Cívico – e este especialmente – foram duramente atacados”. (LUSTOSA, apud, SILVA, 2006, p. s/n).
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