Exortação aos Gregos
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Exortao aos gregos
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Impresso no Brasil, maro de 2013Ttulo original: - Copyright Realizaes Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.
Os direitos desta edio pertencem a Realizaes Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.
Caixa Postal 45321 - 04010-970 - So Paulo SPTelefax (5511) 5572- 5363
[email protected] / www.erealizacoes.com.br
EditorEdson Manoel de Oliveira Filho
Coordenador da Coleo MedievaliaSidney Silveira
Gerente editorialJuliana Rodrigues de Queiroz
Produo editorialLiliana Cruz | Sandra Silva | William C. Cruz
RevisoGeisa Mathias de Oliveira
Capa e projeto grficoMauricio Nisi Gonalves / Estdio
DiagramaoAndr Cavalcante Gimenez / Estdio
ImpressoCromosete Grfica e Editora
Reservados todos os direitos desta obra.Proibida toda e qualquer reproduo desta edio
por qualquer meio ou forma, seja ela eletrnica ou mecnica, fotocpia, gravao ou qualquer outro meio de reproduo,
sem permisso expressa do editor.
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Exortao aos gregos
W
Clemente de Alexandria
Traduo de Rita de Cssia Cod dos Santos
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S u m r i o
Apresentao - A pedagogia do Logos divino ......................................................7
Nota prvia da tradutora ..................................................................................15
Nota do editor ..................................................................................................19
E X O R T A O A O S G R E G O S
| CAPTULO I
Apresentao do Logos divino e seu cntico novo .................................22 | 23
| CAPTULO II
A demolio dos mistrios e dos mitos gregos .......................................38 | 39
| CAPTULO III
Os sacrifcios humanos e os templos dos deuses ....................................82 | 83
| CAPTULO IV
A natureza dos deuses gregos ................................................................90 | 91
| CAPTULO V
As ideias sobre deus segundo a filosofia grega ...................................120 | 121
| CAPTULO VI
Alguns filsofos sentiram-se inspirados pela verdade .........................126 | 127
| CAPTULO VII
Os poetas tambm testemunharam a verdade ....................................136 | 137
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| CAPTULO VIII
Os profetas dos hebreus so os guardies da verdade divina .............146 | 147
| CAPTULO IX
Deus nos exorta por meio de seu Logos ............................................154 | 155
| CAPTULO X
Todos os homens devem ouvir e acatar a voz da verdade ..................164 | 165
| CAPTULO XI
A parousa do Logos divino e sua beneficncia ..................................194 | 195
| CAPTULO XII
preciso aceitar o Logos de Deus .....................................................206 | 207
Notas ............................................................................................................. 217
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A p r e S e n t A o
Sidney Silveira1
A p e d a g o g i a d o L o g o s d i v i n o
Tito Flvio Clemente (145-215), ou Clemente de Alexandria, como ficou co-
nhecido pelos psteros, foi o primeiro grande telogo cristo a valer-se explicita-
mente da filosofia grega2 para defender ou ilustrar a f.3 Isto porque, de acordo
com uma de suas mais conhecidas teses, apesar de a f ser absolutamente superior
filosofia e o divino Logos () ser o mestre e educador por antonomsia ,
tal no significa que no se devam conhecer e aproveitar as verdades parciais en-
contradas nas doutrinas filosficas, e coloc-las a servio da f.
Os principais especialistas na obra de Clemente so concordes em afirmar
que, para o autor Alexandrino, a ordem do saber obedece a cinco graus (provavel-
mente, tratava-se do programa de estudos da Escola de Alexandria):4
1 Sidney Silveira integrante da Societ Internazionale Tommaso dAquino (Seo Brasil) e do Angelicum
Instituto Brasileiro de Filosofia e de Estudos Tomistas.2 Para supor que a filosofia intil, seria til estabelecer [filosoficamente] a afirmao de sua inutilidade
(Clemente de Alexandria, Strmata, I, 2, 19.1).3 Clemente foi pioneiro na defesa da tese de que a filosofia uma espcie de prembulo racional da f: Antes
da vinda do Senhor, a filosofia era necessria para a justificao dos gregos; agora, no entanto, proveitosa
para a religio e constitui uma propedutica para quem pretende aderir f mediante demonstrao
racional (Strmata, I, V, 28.1). Vale aqui apenas fazer uma preciso teolgica que escapa ao texto de
Clemente: evidente que as verdades de f no podem ser demonstradas, mas to somente cridas num
ato de anuncia do fiel catlico autoridade da Sagrada Escritura. Assim, por exemplo, no se pode provar
metafisicamente a Virgindade Perptua de Maria, nem o pecado de Ado, etc. A filosofia pode, no entanto,
oferecer os prembulos racionais que assentaro os chamados motivos de credibilidade da f.4 Em Alexandria que foi durante muito tempo o principal polo cultural do Imprio Romano floresceu
no comeo do sculo II uma comunidade de estudos do cristianismo cuja remota fundao se atribua, de
acordo com a tradio oral, a So Marcos, o Evangelista. Tratava-se de uma escola catequtica destinada
educao dos gentios conversos, e que recebeu o nome de Didaskaleion. Segundo Eusebio de Cesareia
(Histria Eclesistica, V, 10), essa escola ganhou em importncia no ano de 180, quando So Panteno,
mestre de Clemente de Alexandria, assumiu a sua direo. Cf. Eusebio de Cesareia, Historia Eclesistica, I,
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1. A propedutica dos parvos, que consistia na leitura, na escrita
e tambm no aprendizado matemtico da adio e subtrao,
por parte das crianas.
2. As sete disciplinas encclicas, que posteriormente sero conhe-
cidas pelos medievais como trivium (gramtica, retrica e dial-
tica) e quadrivium (aritmtica, geometria, astronomia e msica).
3. A filosofia, que para Clemente no m, por ser obra da
Providncia Divina,5 embora no represente o grau supremo do
saber, mas to somente uma espcie de prvia da verdade al-
canvel pela f. Na prtica, trata-se de uma preparao para
a sabedoria e para a virtude, assim como de um procedimento
que permite ao homem passar do conhecimento das coisas sen-
sveis s realidades inteligveis. Acima da filosofia, no entanto,
est a sabedoria, que um conhecimento inspirado pela f. Para
Clemente, o Logos eterno foi iluminando pouco a pouco os ho-
mens: primeiramente os judeus, por meio dos profetas; depois os
gregos, por meio dos filsofos; e, por fim, os cristos, de forma
plena, por meio do Evangelho.6
4. A f, superior filosofia, porque subministra a verdade em
sua plenitude, pois procede da Revelao feita pelo Logos, fun-
damento sobre o qual se edifica a cincia com ouro, prata e
pedras preciosas. A f fornece ao homem os meios para chegar
ao verdadeiro conhecimento de Deus.7
Textos, verso espanhola, introduo e notas de Argimiro Velasco Delgado, O.P. [Texto bilngue: grego/
espanhol], 2. rev. Madri, Biblioteca de Autores Cristianos - BAC, 1997, p. 89-90, 301-03.5 Cf. Clemente de Alexandria, Strmata, I, 1, 708. importante advertir que, apesar de valer-se da filosofia,
o Alexandrino deixa claro que alguns homens tidos por filsofos no o so, na verdade. A este respeito, so
conhecidas as suas diatribes contra os sofistas e, tambm, contra Epicuro, que, como veremos na presente
edio do Protrptico, considerado um grande mpio. Numa passagem muito conhecida dos estudiosos de
sua obra, adverte Clemente: A arte da sofstica, que os gregos praticaram com afinco, constitui uma [espcie]
de habilidade da imaginao, posto que mediante discursos pomposos [ela] persuade como verdadeiro o que
falso. Com efeito, a sofstica d origem retrica para convencer, e erstica para vencer as discusses. Pois
muito bem: essas artes, se so praticadas aps [o estudo da] filosofia, so mais prejudiciais que quaisquer
outras (Clemente de Alexandria, Strmata, I, 8, 39.1).6 Clemente de Alexandria, Strmata, I, 13, 756; VI, 5, 261.7 Clemente de Alexandria, Strmata, VII, 10, 480.
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5. A gnose, que seria o pice do conhecimento, a culminncia
dos graus anteriores do saber. Para Clemente, a gnose seria um
estado habitual de contemplao, um conhecimento ao mesmo
tempo afetivo e intuitivo de Deus, para o qual, no entanto, seria
necessria, como precondio, a ascese moral (a purificao da
alma pela virtude).8
Com relao a este ltimo ponto, importante abrir um pequeno parntese
para fazer alguns esclarecimentos em razo dos mal-entendidos histricos e dou-
trinais devidos ao fato de Clemente propor uma gnose crist, em contraposio
quilo que ele chamava de gnose hertica. Antes de tudo, convm reportarmo-
-nos ao Magistrio da Igreja, particularmente ao papa Bento XIV, que, em 1748,
por intermdio da bula Postquam intelleximus, retirou Clemente do Cnon. Desde
ento, o Alexandrino passou a no mais ser considerado santo entre outros moti-
vos, porque no havia documentos anteriores ao sculo XI que confirmassem o seu
culto imemorial.9 Neste contexto, importante notar que, embora o papa afirmas-
se no ter o intuito de desmerecer os louvores a Clemente feitos no Martirolgio
Romano (que, nessa poca, marcava a celebrao de sua santidade para o dia 4 de
dezembro), frisava por outro lado ser patente o fato de haver graves dificuldades
em sua obra (non ut Clementis Alexandrini laudibus quidquam detrahamus, sed ut
pateant graviores dificultates), razo pela qual pairava sobre ela uma suspeita de
heterodoxia (opera sin minus erronea, saltem suspecta). E foi justamente por ser
suspeito de erros quanto f que Clemente foi excludo do Martirolgio (Clemens
de erroribus suspectus, a martyrologium excludendus).10
Mas quais teriam sido as razes doutrinrias para que a sombra de hetero-
doxia se projetasse sobre a obra do Alexandrino, tantos sculos aps sua morte?
Para tentar responder a esta questo, necessrio antes de tudo considerar o que
teria sido o chamado gnosticismo cristo, que, em algumas modernas histrias
8 Cf. Pierre-Thomas Camelot, O.P., Introduction ltude de la Conaissance Mystique chez Clment
dAlexandrie. Paris, ditions du Cerf, 1945, p. 28-30.9 Cf. Guillermo Fraile, Historia de la Filosofa, Tomo II El Judasmo y la Filosofa. El Cristianismo y la
Filosofa. El Islam y la Filosofia. Madri, Biblioteca de Autores Cristianos - BAC, 1969, p. 121. 10 Cf. Sanctissimi Domini Nostri Benedicti Pap XIV. Bullarum, Tomus Secundus. Volumen VI, cum
apendice, editio nova, summo Studio castigata. Melchlini, 1827, p. 128-33.
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da Patrologia, identificado simplesmente como algo contraposto ao gnosticis-
mo pr-cristo pelo fato de este ltimo no fazer referncia Pessoa de Cristo,
enquanto a gnose crist, esta sim, o fazia. Ora, esta concepo altamente defi-
ciente, pois parece ignorar o fato de que a maior parte da literatura gnstica crist
(annima, em muitos casos) perfazia um conjunto de heresias de tal sorte, que s
muito impropriamente se poderia denomin-la crist. Evangelhos apcrifos e
tratados de teologia heterodoxos constituem alguns desses textos. Houve at casos
de gnsticos cristos que, aps ser excomungados, fundaram pequenas seitas
como, por exemplo, Marcio de Sinope (85?-160), que rejeitava em conjunto todo
o Antigo Testamento e defendia heresias cristolgicas e eclesiolgicas, alm de
aceitar to somente as Epstolas de So Paulo e o Evangelho de Lucas, no Novo
Testamento.11 Esse gnstico criou uma seita crist com bispos, presbteros e dico-
nos, e uma liturgia semelhante, em alguns aspectos, da Igreja Romana, o que lhe
fez arrebanhar muitos proslitos.12
necessrio, portanto, ter em vista que a expresso gnose crist, encon-
trada em vrios textos do Alexandrino, no mnimo equvoca,13 pois a literatura
gnstica, em seu vasto e heterogneo conjunto, apropriou-se de aspectos isola-
dos da doutrina da Igreja, acrescentando-lhes ideias contrapostas f no raro
perpetrando sacrilgios e blasfmias intolerveis para o Magistrio eclesistico.14
11 Cf. Claudio Moreschini e Enrico Norelli, Histoire de la Littrature Chrtienne Ancienne Grecque et
Latine. Genebra, Labor et Fides, 2000, p. 204-08. Ver tambm: Johannes Quasten, Patrologa. Tomo I.
Hasta el Concilio de Nicea. Madri, Biblioteca de Autores Cristianos - BAC, p. 264-68.12 Uma aproximada ideia da influncia do marcionismo nos primeiros sculos cristos pode ser inferida do
nmero de padres, de apologetas e de pensadores que escreveram contra Marcio e seus seguidores: Justino,
Mrtir (110-162?) que o ataca em sua primeira Apologia; Irineu de Lio (130-202), em Contra Herticos;
Tertuliano (160-220?), em Contra Marcio; Hiplito de Roma (170?-235), em Refutaes de Todas as
Heresias; Epifnio de Salamina (315-403?), que em alguns escritos reconstitui toda a Bblia marcionista;
etc. Sobre o marcionismo, ver: Dizionario DellEresie, Degli Errori e Degli Scismi, Tomo Terzo. Venezia,
Presso G.F. Garbo, 1771, p. 277-91.13 Para uma compreenso dos conceitos de equivocidade, univocidade e analogia, ver Paulo Faitanin, O
Mal Como Perda do Bem. In: Toms de Aquino, Sobre o Mal. Rio de Janeiro, Stimo Selo, 2006, p. XXIV.14 Em sentido estrito, o Magistrio da Igreja o carisma participado por Cristo ao papa e aos bispos para
que preservem intacta, at o fim dos tempos, a doutrina do Evangelho. Ide e ensinai a todas as naes
(euntes ergo docete omnes gentes, Mateus XVIII,19). A indefectibilidade da Igreja est intrinsecamente
ligada solidez doutrinal do ensinamento do Magistrio eclesistico, que possui a seguinte subdiviso:
1 - rgos autnticos: a) o papa sozinho, em quem reside a suprema autoridade apostlica; b) o papa e
os bispos reunidos em Conclio; c) os bispos (mestres ex officio) dispersos pelo mundo quando fazem uma
declarao comum acerca de algum aspecto da doutrina revelada; d) os bispos sozinhos, quando legislam no
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Obviamente, no caso de Clemente no se chegou a tanto, mas ao fim e ao cabo se
tratava de teses que davam margem a interpretaes difusas, as quais, levadas s
ltimas consequncias, poderiam ser derrogatrias da f, razo por que a Igreja
tomou a deciso prudencial de exclu-lo do Martirolgio. Um exemplo o seu
assentimento tese de que os gnsticos cristos deveriam ser iniciados secretamen-
te, prtica de cariz esotrico contrria ao ensinamento da Igreja, a qual, ao longo
de sculos, levou risca o conselho de Cristo expresso na Sagrada Escritura: O
que dito ao ouvido, proclamai-o nos telhados (et quod in aure auditis prdi-
cate super tecta. Mateus 10,27). Assim, desde o primeiro catecismo, o Didaqu,
que remonta ao sculo I, o ensinamento eclesistico sempre se pautou por no ser
esotrico, mas aberto a todos, dado o seu objetivo salvfico.
Esclarecido este aspecto histrico-doutrinal, passemos adiante frisando que,
de acordo com o mestre paleocristo de Alexandria, o Logos tem a funo de
expor e revelar as verdades,15 e, sendo amigo dos homens e empenhado, pois, em
lev-los salvao, realiza o seguinte programa: primeiro exorta, depois educa e,
por fim, ensina.16 O Protrptico de Clemente se insere no ponto inicial desta trpli-
ce perspectiva pedaggica do Logos divino, dado o seu carter exortativo. Neste
contexto, no ocioso lembrar que os Protrpticos clssicos da filosofia grega
eram meros discursos de propaganda acadmica, e somente a partir do Protrptico
de Aristteles passam a significar uma exortao de carter geral vida do esp-
rito, filosofia; citemos, a ttulo de exemplo, os que foram escritos por Epicuro e
Jmblico, assim como o de Galeno (referido medicina) e o Hortncio de Ccero.
No caso de Clemente, a exortao ganha tons propriamente religiosos,
pois se trata ao mesmo tempo de um chamado converso f catlica e de
uma veemente recusa s mitologias contrrias ao senso comum, como as que o
mbito de suas dioceses. 2 - rgos subsidirios: a) Papais: Congregaes Romanas, Comisses Pontifcias,
delegados apostlicos; b) Episcopais: Conselhos de Presbteros, Comisses Diocesanas, curas, procos, etc.
Para que situemos bem a ao do Magistrio com relao suspeita de heterodoxia de Clemente, basta
frisar que uma de suas funes multisseculares sempre foi a de preservar o Corpo Mstico de quaisquer
doutrinas que, prxima ou distantemente, pudessem representar um perigo para a f. Como dizia o famoso
adgio, Roma locuta, causa finita: se o Magistrio se pronunciou solenemente, dando a sua palavra final,
assunto encerrado. No caso de Clemente, como se frisou, apesar de preservar-se o valor filosfico intrnseco
de suas obras e os piedosos elogios constantes do Martirolgio, o Magistrio retirou-o dos cnones por meio
da bula Postquam intelleximus, no obstante continue ele sendo um padre da Igreja.15 Clemente de Alexandria, Pedagogo, I, 1, 3-2, 1.16 Clemente de Alexandria, Pedagogo, I, 3, 3.
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Alexandrino acusa na presente obra com uma retrica sofisticada e, ao mesmo
tempo, implacvel, tpica de um entusiasmado recm-convertido.17 No Protrp-
tico, os deuses e mitos gregos so contrapostos verdade evanglica, e, neste
contexto, cumpre dizer que Clemente os reduz ao nvel de quimeras sem sentido,
crendices nefastas, supersties malvolas que desgovernam a imaginao dos
homens e os induzem concupiscncia, perdio. No discurso clementino, o
elevado mistrio cristo vem substituir o mosaico de crenas e prticas que da-
vam molde cultura e religio gregas. Por este motivo, parece-nos forada a
tentativa de qualificar a sua obra como sincretismo, ou seja, como uma mescla
quase indiscernvel entre ideias novas e antigas.18 Na verdade, Clemente pode ser
considerado um ecltico, pois utiliza elementos da filosofia grega e de algumas
mitologias, mas no propriamente como se fora adepto do sincretismo religioso,
pois em seus textos patente o esforo por expurgar (e condenar) as ideias dos
pensadores gregos expressamente tidas por ele como falsas, por ser frontalmente
contrrias letra e ao esprito do Evangelho. Estas loucuras so, em verdade,
sutilezas capciosas de homens incrdulos.19
17 Esses so os arqutipos de vossa sensualidade; essa a teologia da arrogncia; essas so as lies dos
vossos deuses, que praticam convosco a concupiscncia. Aquilo que se deseja, nisso se cr, diz o orador
ateniense [Demstenes]. Vs tendes ainda outras imagens semelhantes: pequenos deuses Ps, jovens nuas,
stiros embriagados, falos em ereo, que vossas pinturas exibem abertamente, mesmo condenados pela
intemperana. Hoje, no vos envergonhais de contemplar, com a populao inteira, as pinturas que
representam as posturas mais indecorosas; ainda bem que as guardais como ex-voto, como naturalmente
o fazeis com as imagens de vossos deuses (...). Ns denunciamos vossa indulgncia a todas essas coisas
indecentes, condenando no apenas a prtica, mas tambm o ato de v-las e ouvi-las. Vossos ouvidos se
prostituram, vossos olhos cometeram adultrio, e o mais estranho ainda: vosso olhar cometeu adultrio
antes mesmo dos amplexos libidinosos (Clemente de Alexandria, Protrptico, VI, 61, 1-3).18 O sincretismo uma espcie forada de amlgama que gera aparente compatibilidade entre os conceitos e
crenas dspares que lhe servem de matria. Neste sentido, o sincretismo pura e simplesmente uma mescla
deturpadora. Assim, por exemplo, algumas religies afro-brasileiras transformaram santos catlicos em
entidades de suas crenas como se fossem a mesma coisa. Vemos o eco distante da aplicao da ideia de
sincretismo obra de Clemente de Alexandria no clssico Manuel de Philosophie Ancienne, de Charles
Renouvier (1815-1905); para este pensador francs, os alexandrinos deveriam ser considerados os ltimos
dos antigos e os primeiros dos antiqurios na Antiguidade, e neles haveria uma espcie de sincretismo. Cf.
Charles Renouvier, Manuel de Philosophie Ancienne, Tome I. Paris, Elibron Classics, 2003, p. 40-50. Depois
de Renouvier, alguns estudiosos aplicaram esta ideia indiscriminadamente a todos os representantes da
Escola de Alexandria, inclusive ao nosso autor.19 Clemente de Alexandria, Protrptico, XI, 2. verdade que a exortao de Clemente no implica a
destruio completa da cultura precedente, mas a sua cristianizao. Mas, por silenciar com relao
a certos costumes sociais ento em voga, alguns autores acabaram por ver no Alexandrino um esforo de
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O Protrptico de Clemente divide-se em doze livros (ou captulos), e tido
por fillogos e estudiosos de sua obra como o seu texto mais bem acabado, do
ponto de vista formal, pois nele se destacam a simplicidade na exposio da
doutrina, o estilo literrio apurado e a profundidade dos conceitos.20 Como
bem observa a professora Rita Cod na Nota Prvia da Tradutora, algumas
pginas adiante, Clemente de Alexandria um ldimo representante da Segun-
da Sofstica, um cultor do grego tico, verdadeiro arteso da palavra o que
pode ser vislumbrado no apenas no Protrptico, mas tambm nas duas outras
grandes obras filosfico-teolgicas do Alexandrino: o Pedagogo e os Strmata,
que completaro a trilogia indita em lngua portuguesa a ser apresentada
no Brasil pela Editora .
Neste ponto, convm destacar o seguinte: no momento histrico em que o
Protrptico escrito, possivelmente entre 193 e 195 logo aps o governo de
Cmodo , a Igreja goza de relativa paz, pois o Imprio Romano tem incontveis
outros problemas com que lidar, dada a luta intestina pelo poder poltico que nele
fervilha (para se ter ideia disto, ressalte-se que, somente entre 192 e 193, houve
cinco imperadores, alguns deles assassinados de forma cruel, em meio a intrigas
palacianas que envolviam o Senado e a Guarda Pretoriana). O cristianismo come-
a, em meio ao caos dessa poca, a difundir-se no apenas entre as classes mais
humildes, mas tambm nos ambientes mais refinados e economicamente fortes.21
neste contexto de relativa paz ou silncio em relao aos cristos, da parte das
autoridades de uma Roma ainda pag, que Clemente escreve a sua veemente exor-
tao converso, sendo a primeira parte da obra propriamente dita (dos cap-
tulos I ao VII) uma minuciosa e erudita crtica aos cultos e mistrios pagos, com
citaes abundantes de filsofos e poetas.
Na segunda parte (dos captulos VIII ao XI), o Alexandrino assume tom apo-
logtico ao falar do chamado de Deus a todos os homens, alm de referir-se ao
processo de converso dos fiis, fazendo o panegrico da religio num estilo retri-
co de grande beleza e efeito, digno do mais inflamado Tertuliano:
harmonizao (ou conciliao) entre a f crist e o saber pago, o que tambm nos parece excessivo, pelos
motivos anteriormente expostos. 20 Cf. Marcelo Merino Rodrguez, El Protrptico (Introduccin). Madri, Editorial Ciudad Nueva, 2008, p. 18.21 Paolo Siniscalco, Il Cammino di Cristo nellImpero Romano. Bari (Itlia), 1987, p. 108-31.
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Esse , em verdade, o mais belo dos empreendimentos: mostrar-vos
como a piedade inimiga da loucura e desse costume trs vezes
maldito; jamais, com efeito, o dio nem as interdies teriam rece-
bido um bem to grande, tal qual recebeu a raa humana ddiva
mais considervel oriunda de Deus, se no fsseis prisioneiros do
hbito. Mais ainda: vossos ouvidos esto obstrudos, quais cavalos
indceis, de cerviz entesada; mordendo os freios, fugis dos nossos
discursos, desejosos de nos lanar ao cho, ns, os ginetes de vos-
sa vida; levados por vossa loucura, em direo aos precipcios da
perdio, concebeis como algo maldito a santa palavra de Deus.22
Clemente encerra o livro no captulo XII exortando os leitores a abandonar a
tradio que leva morte e a aceitar o Logos de Deus. Diz o Alexandrino: Fuja-
mos dessas ondas, elas expelem fogo; h uma ilha maligna, com ossos amontoados
e cadveres, a canta uma bela cortes; a volpia se divertindo com uma msica
vulgar (...). Navega para alm desse recanto, arteso da morte; basta que tu queiras
e ters vencido a perdio (...) Preso ao madeiro, tu te livrars da corrupo. O Lo-
gos de Deus ser teu piloto, e o Esprito Santo te far ancorar nos portos celestes.23
Este o estilo de Clemente.24 Vivaz, colorido, firme, sem medo de ferir pru-
ridos. Um estilo forjado no pleno domnio da retrica ensinada na Escola de Ale-
xandria, ao longo dos anos de estudo das sete disciplinas encclicas, e que na
presente edio da editora recebe uma apuradssima traduo literria de Rita
Cod, professora de grego clssico do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro.
Fazemos votos de que o leitor brasileiro aprecie esta pequena obra-prima
escrita por um telogo que, no obstante as medidas prudenciais do Magistrio
mencionadas nesta breve Apresentao, um inspiradssimo Padre da Igreja.
Um autor fundamental para a histria da filosofia e da teologia no Ocidente.
22 Clemente de Alexandria, Protrptico, X, 3.23 Clemente de Alexandria, Protrptico, XII.24 O estilo de um autor cristo dos primeiros sculos possui dois componentes principais, de acordo com
Fontaine: a) a tradio literria que recebe por sua educao e leituras; b) o seu engenho. Cf. Jacques
Fontaine, Aspects et Problmes de la Prose dArt Latine au IIIe Sicle. Turin, 1968, p. 19. A valorao do
estilo de Clemente de Alexandria h de levar em conta estes dois fatores, dado ser uma perfeita mescla deles.
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n o t A p r v i A d A t r A d u t o r A
Rita Cod
O arqutipo da Exortao aos Gregos (Protreptiks prs Hllenas) de Cle-
mente de Alexandria o clebre corpus apologeticum de Aretas (sc. X), arcebispo
de Cesareia, que, a posteriori, legou s grandes bibliotecas da Europa, princi-
palmente depois da Tomada de Constantinopla pelos Turcos (1453), os melho-
res cdices possveis, graas a seu escriba Baanas, famoso pela excelncia de seu
trabalho. Este cdice, denominado posteriormente pelos estudiosos de Parisinus
graecus 451, tornou-se, desde o sculo XVI, patrimnio da Biblioteca do Rei (hoje
Biblioteca Nacional da Frana), para a levado por Catarina de Mdici, esposa de
Henrique II (da Frana).
Seis sculos depois do trabalho de Baanas para Aretas, aparece, em Florena,
a editio princeps das obras de Clemente, em 9 de setembro de 1550, editada por
Petrus Victorius (1499-1585) e dedicada ao cardeal Marcello Cervini, futuro papa
Marcelo II (1501-1555). O editor florentino declara que, para os Strmata, usou
apenas um exemplar conservado na Biblioteca dos Mdicis, o atual cdice Lauren-
tianus V3 e, para o Protrptico e o Pedagogo, usou uma cpia de um manuscrito
mais antigo, porm semelhante, no aspecto formal, ao Laurentianus V3, o Muti-
nensis III D7, que simplesmente uma cpia do Parisinus graecus 451, o corpus
apologeticum de Aretas.
O primeiro scholar a usar o manuscrito de Aretas foi Nicolas Le Noury (in-
cio do sculo XVIII); em seguida, o cdice foi descrito por vrios especialistas:
Montfaucon, Otto Harnack, von Gebhardt, Maass, Schwartz, Barnard, Dindorf e,
finalmente, Otto Sthlin que, no outono de 1895, assim o descreveu:
O comprimento do pergaminho de 24 cm e a largura 19,3 cm;
a altura do espao reservado escrita de 14,7 cm e a largura
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exortao aos gregos
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aN o t a p r v i a d a t r a d u t o r aA
de 11,1 cm. As linhas so gravadas do mesmo modo que
marcado o espao da escritura em ambos os lados da folha. As
letras maisculas ficam em cima das linhas; o nmero de linhas
26. A cor da tinta est agora mais para marrom. O manuscrito
proveniente da Biblioteca de Fontainebleau, e a encadernao
que apresenta do tempo de Henrique II.
O manuscrito tem agora 393 folhas, mas so contadas 403 por-
que os nmeros que vo de 370 a 379 so omitidos.
O Protrptico de Clemente de Alexandria vai da folha 1 a 56 (...)
(Sthlin, 1936, p. XVI).
A extraordinria contribuio de Otto Sthlin ao Parisinus graecus 451 foi
reconhecida por todos os escoliastas de seu tempo, principalmente no que diz res-
peito s citaes sagradas e profanas e aos numerosos esclios a existentes.
Depois da editio princeps, as obras de Clemente de Alexandria ganham edi-
es vrias e sucessivas: 1592 Sylburg; 1612 D. Heinsius; 1629 Carolum
Morelum; 1641 edio especial de Paris; 1688 edio de Colnia (Alemanha);
1715-1747 John Potter; 1869 William Dindorf; 1857-1891 Migne; 1905-
1936 Otto Sthlin.
Para esta traduo do Protrptico de Clemente de Alexandria usei o texto
de Les ditions du Cerf, Paris, 2004, estabelecido por Claude Mondsert, com a
colaborao de Andr Plassart (edio revista e aumentada). Entretanto o texto
de apoio, por questes notrias, foi o estabelecido por Otto Sthlin (Leipzig: J.
C. Hinrichs Buchhandlung, 1936). Tambm cotejei o texto de G. W. Butterworth
(Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1982) e o estabelecido por
J.-P. Migne, in Patrologia (cursus completus) series graecae, tomus VIII, J.-P.
Migne Editorem, 1891. O texto grego desta edio bilngue o clssico de Otto
Sthlin, em relao ao qual no h nenhuma mudana significativa em relao ao
que foi posteriormente estabelecido por Claude Mondsert.
Quanto ao escritor Clemente de Alexandria, temos um ldimo representante
da Segunda Sofstica: um erudito, um pepaideumnos, um cultor do grego tico. No
Protreptiks prs Hllenas, seu texto denso, com alguns anacolutos que exigem
muita pacincia do tradutor e uma prvia compreenso das linhas-mestras do pensa-
mento do autor, porm de uma beleza potica e de uma riqueza semntica e estilstica
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exortao aos gregos
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aN o t a p r v i a d a t r a d u t o r aA
incomparveis; rico em citaes bblicas e de autores clssicos, assim como de infor-
maes sobre os costumes da sociedade de seu tempo e da tradio ancestral grega.
Se tomarmos como paradigma o to decantado Protrptico de Aristteles,
modelo exemplar do gnero, veremos de imediato quo distante est o de Clemen-
te da estrutura habitual dos discursos exortativos, fato que outorga Exortao
aos Gregos (Protreptiks prs Hllenas) o carter de uma indita apologia.
Optei pela permanncia da palavra Logos, ao longo da minha traduo, e
no por sua equivalente verncula Verbo, por considerar aquela mais adequada
ao contexto clementino, o que no significa uma completa excluso desta, pois, em
alguns passos, faz-se mister o emprego do vernculo. Tambm so de minha au-
toria os ttulos de cada captulo desta traduo. No que concerne s notas, foram
mantidas, em grande parte, as que constam no texto de Claude Mondsert, e que
seguem exatamente, por sua vez, as de Otto Sthlin. Quanto s de minha autoria,
encontram-se indicadas pela abreviatura (N. T.).
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exortao aos gregos
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n o t A d o e d i t o r
Desde a edio de J. Potter (Oxford, 1715), o Protrptico de Clemente de
Alexandria obra tradicionalmente dividida em doze captulos, estrutura adota-
da pela quase totalidade de suas posteriores reprodues, inclusive a Patrologia
Migne. Neste presente volume, naturalmente, acompanhamos esta diviso.
Quanto numerao interna, dela carecem no poucas publicaes deste
escrito (inclusive algumas de indiscutvel qualidade), as quais limitam pgina
a preciso de referncia do leitor. Aqui adotamos a diviso interna de R. Klotz
(Leipzig, 1831), a mais utilizada atualmente e encontrada em renomadas edies,
como a francesa do padre Claude Mondsert, S.J. (Paris, Cerf, 2004) e a espanhola
do padre Merino Rodrguez (Madrid, Ciudad Nueva, 2008). Cremos que ela supe-
ra, em facilidade de leitura e de citao, a que se encontra na tradicional Patrologia
Migne (vol. 8, cols. 49-246).
A mencionada diviso interna que adotamos reparte a obra em 123 sees,
numeradas em sequncia ininterrupta, e subdivididas em pargrafos cuja nume-
rao se faz, por sua vez, sempre em referncia seo da qual fazem parte. As
123 sees esto distribudas, como ver o leitor no sumrio, ao longo dos doze
captulos. Por fim, os ttulos dos referidos captulos, ausentes no original grego,
so de autoria da tradutora e encontram inspirao na referida edio do padre
Claude Mondsert.
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C A P T U L O I
a Apresentao do Logos divino e seu cntico novo A
[1]
1. Anfio de Tebas e Ario de Metimne, ambos eram cantores e ambos eram
mitos (isso uma cano dos gregos, que se canta em coro): pela arte musical, este
encantou um delfim; o outro erigiu as muralhas de Tebas. H ainda outro sofista,
um trcio (este tambm outro mito grego) que amansava animais selvagens apenas
por seu canto e at transplantava, atravs de sua msica, rvores, pinheiros.
2. Eu ainda teria outro mito para contar-te, idntico a estes dois, tambm de
um cantor, unomo da Lcrida, e a cigarra ptica: Uma assembleia pan-helnica
se realizava [em Delfos] para celebrar a morte do drago Pton; unomo, ento,
cantava o epitfio do rptil: hino ou treno da serpente era o canto? Eu no tenho
como dizer. Mas era um concurso, e unomo tocava sua ctara, numa hora de in-
tenso calor, ao mesmo tempo em que as cigarras, por baixo das folhas, cantavam
em cima dos montes, aquecidas pelo sol de vero. Elas no cantavam, evidente-
mente, pelo drago morto, Pton, mas pelo Deus sapientssimo, um canto autno-
mo, superior arte de unomo. Rompe-se uma corda do locridense. A cigarra voa
at ao cepo da ctara e, pousada no instrumento, como sobre um galho de rvore,
cantava; o cantor, ento, harmonizando-se ao canto da cigarra, deixa de lado a
corda quebrada.
3. Portanto, no foi pelo cantar de unomo que a cigarra se conduziu,
como quer a lenda, que erigiu, em Delfos, uma esttua de bronze de unomo,
com sua ctara, e sua companheira de concurso. Esta, por sua vez, voou espon-
taneamente e cantou espontaneamente. Perante os gregos, a cigarra tornou-se
executante musical.
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aC a p t u l o IA
[2]
1. Como pudestes crer em mitos vazios e supor que a msica encanta animais
selvagens? Por outro lado, a face nica e resplandecente da verdade, como me pa-
rece, apresenta-se, diante de vossos olhos, carregada de desconfiana. Com efeito,
o Citron, o Hlicon, os montes de Odrissa e da Trcia, telestrios1 e mistrios da
errncia, foram sacralizados pelos mistrios e cantados em hinos.
2. Eu mesmo, apesar de serem mitos, mal suporto ver tantas desgraas toma-
das como assunto de tragdias; mas, para vs, os registros de desgraas tornaram-
-se peas de teatro, e os atores, espetculo de satisfao. Mas, em verdade, os
espetculos teatrais e os poetas dos concursos das Lineias, j completamente em-
briagados, quando coroados de hera e estranhamente enlouquecidos pela iniciao
bquica, encerremo-los, juntamente com os stiros, o taso das Mnades2 e o resto
do coro dos demnios, no Hlicon e no Citron do passado; faamos descer do
alto dos cus, sobre a santa montanha de Deus, a verdade com a luminosssima
sabedoria e o santo coro dos profetas.
3. Que esta verdade faa resplandecer ao mais longe possvel sua luz brilhan-
te, ilumine de todas as partes aqueles que esto mergulhados nas trevas, que liberte
os homens do erro, estendendo sua mo direita toda poderosa o entendimento
para a salvao deles; os que se iro livrar e levantar a cabea abandonaro o Hli-
con e o Citron para habitar Sio: Pois de Sio sair a Lei, e de Jerusalm o Logos
do Senhor,3 Logos celeste, o verdadeiro vencedor coroado no teatro do mundo.
4. Mas o meu Eunmio canta no no modo de Terpandro, nem no de Cpion,
nem no modo frgio, nem no ldio, nem no drio; ele canta segundo o modo eterno
da nova harmonia, a que traz o nome de Deus, o cntico novo, o cntico dos Le-
vitas, que dissipa a angstia, suaviza a clera e faz esquecer todos os males:4 um
remdio doce, verdadeiro e persuasivo, temperado pelo canto.
[3]
1. Aquele trcio Orfeu, mais o tebano e o metimnense parecem-me homens
que no so homens, por serem enganadores, sob o pretexto da msica ultrajaram
a vida e, possessos por uma artstica magia que conduz perda celebrando os mis-
trios da violncia e divinizando o luto , foram os primeiros a conduzir os homens
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idolatria. Sim, com pedras e madeira, isto , com esttuas e pinturas, foram eles os
primeiros a instituir o mais torpe dos costumes, constrangendo esta bela liberdade
dos cidados da terra mais nfima servido, atravs de cnticos e encantamentos.
2. De tal natureza no absolutamente o meu cantor, pois ele vem para abolir
a grande e amarga escravido dos demnios tirnicos e, transportando-nos sob o
jugo doce e humano da piedade, exorta aos cus aqueles que se haviam precipitado
sobre a terra.
[4]
1. Apenas pela verdade ele abrandou os mais difceis animais como nunca
existiram os homens: aves como os frvolos, serpentes como os embusteiros,
lees como os violentos, porcos como os voluptuosos, lobos como os ladres.
Pedras e madeira, os insensatos; mais insensvel que as pedras o homem mergu-
lhado na ignorncia.
2. Que a voz dos profetas venha testemunhar por ns, em harmonia com a
verdade, piedosa para com aqueles que foram consumidos pela ignorncia e pela
insensatez. Deus capaz de suscitar destas pedras filhos a Abrao.5 Ele, tendo
misericrdia da grande ignorncia e do endurecimento da alma daqueles que se
tornaram pedras em relao verdade, fez germinar uma semente de piedade, sen-
svel virtude, entre as naes oriundas das pedras e que puseram sua f em pedras.
3. Alis, a certos homens peonhentos e inconstantes, hipcritas e embarga-
dores da justia, Ele os chamou de raa de vboras; mas se alguma dentre essas
vboras vier a arrepender-se, acolhendo o Logos, torna-se um homem de Deus.6
Ele chama os outros de lobos recobertos com pele de ovelhas, referindo-se, meta-
foricamente, queles que, sob a forma de homens, no so seno impostores. Pois a
todos esses [animais] violentssimos e a essas espcies de pedras, este cntico novo
pde transform-los em homens civilizados.
4. Pois, de fato, ramos outrora insensatos, indceis, errantes, escravizados
pelos prazeres e pelas paixes, vivendo no mal e na inveja, execrados, odiando uns
aos outros, como diz a carta do Apstolo: (...) mas quando a bondade e o amor
de Deus, Nosso Senhor, aparecer, Ele nos salvar, no por nossas obras de justia,
mas segundo sua misericrdia.7 Vede quo poderoso o cntico novo: de pedras
ele fez homens; de animais selvagens tambm fez homens. Aqueles que, de certa
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forma, estavam mortos, que no faziam parte da essncia da vida, to somente
escutaram este cntico e tornaram-se redivivos.
[5]
1. Alm disso, Ele ordenou todo o universo harmoniosamente, submeteu a dis-
sonncia dos elementos a uma ordenao harmoniosa, para que o universo inteiro
se tornasse uma sinfonia. Se Ele deixou o mar desencadeado, proibiu-o de invadir a
terra; e a terra, por sua vez, Ele a privou de movimento e fez dela limite em face do
mar. Tambm abrandou o mpeto do fogo com o ar, como quem mistura a harmonia
ldia com a drica; Ele domesticou a frigidssima rudeza do ar com a intercesso do
fogo; misturou, por fim, de maneira no dissonante, os sons mais novos do universo.
2. E este cntico puro, que se difunde do centro at s extremidades e das
extremidades ao centro, sustenta a harmonia do universo e ajustou esse conjunto
no de acordo com a melodia trcia, semelhante quela de Jubal, mas segundo a
vontade paternal de Deus, aquela que David procurar com ardor.
3. Entretanto, esse descendente de David j existia antes de David, o Logos de
Deus, que, desprezando a lira e a ctara, instrumentos sem alma, harmonizou, pelo
Esprito Santo, o cosmo e esse microcosmo o homem, alma e corpo do Logos; e
o Logos salmodia a Deus atravs desse instrumento polifnico e canta em sintonia
com esse mesmo instrumento: o homem. Tu s, pois, para mim, uma ctara, uma
flauta e um templo:8 ctara pela harmonia, flauta por teu sopro, templo por tua
razo; de modo que uma vibra, a outra respira e o ltimo abriga o Senhor.
4. Sim, o rei Davi, o citarista, de quem falamos um pouco acima, exortou-
-nos verdade, desviando-nos dos dolos; muito longe de louvar os demnios, ele
os afugentava de si com sua msica de verdade: Quando Saul esteve possesso,
ele apenas cantou e o curou. O Senhor soprou nesse belo instrumento que o ho-
mem, plasmou-o segundo sua prpria imagem; ele tambm um instrumento har-
moniosssimo de Deus, afinado e santo, sabedoria suprauniversal, Logos celeste.
[6]
1. O que quer, ento, esse instrumento, o Logos de Deus, o Senhor, e seu cnti-
co novo? Abrir os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos, conduzir os paralticos
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ou os errantes justia, mostrar Deus aos homens insensatos, fazer cessar a cor-
rupo, vencer a morte, reconciliar com o Pai os filhos desobedientes.
2. Esse instrumento de Deus ama os homens: o Senhor apieda-se, instrui,
exorta, adverte, salva, protege, promete-nos uma recompensa por nosso apren-
dizado da esperana de salvao: o reino dos cus. Tudo isso com a nica in-
teno de nos salvar. O mal se nutre da perda dos homens; a verdade, por seu
turno, como a abelha, no prejudica nada do que existe, apenas se alegra por
sua salvao.
3. Tendes, pois, a promessa, tendes a filantropia. Tomai parte desta graa.
E quanto ao meu cntico salvfico, no o concebais como novo, como mveis ou
como uma casa, pois ele j existia antes da aurora, e no incio havia o Logos,
e o Logos estava em Deus, e Deus era o Logos.9 A errncia, porm, antiga, en-
quanto a verdade parece algo novo.
4. Se, pois, cabras lendrias ensinaram os antigos frgios, se poetas escreve-
ram sobre os arcdios antelunares ou se a terra dos egpcios, como querem os
sonhadores, foi a primeira a produzir deuses e homens, no houve, entretanto,
nenhum deles sequer que houvera existido antes do mundo; mas antes da criao
do mundo, ns, que devamos existir nele, fomos anteriormente gerados por Deus,
ns, criaturas racionais do Logos-Deus, por meio do qual existimos desde o incio,
porque no incio havia o Logos.
5. Como o Logos existe desde o incio, ele era e o princpio divino de todas
as coisas; mas como agora recebe o nome outrora consagrado e que digno de sua
fora Cristo , eu o chamo de Cntico Novo.
[7]
1. Com efeito, o Logos, o Cristo, a causa de ns existirmos por todo o
sempre (pois ele estava em Deus) e da nossa boa existncia (porque agora ele
aparece aos homens); este prprio Logos, dualidade una, Deus e homem, causa
de todos os nossos bens: com ele aprendemos a bem viver para sermos conduzi-
dos vida eterna.
2. Segundo o maravilhoso apstolo do Senhor, a graa de Deus, a salva-
o, apareceu a todos os homens e ensina-nos a renunciar impiedade e s pai-
xes do mundo, a vivermos no sculo presente com temperana, justia e piedade,
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esperando a bem-aventurada promessa e apario da glria do Grande Deus e
Nosso Salvador, Jesus Cristo.10
3. Este o Cntico Novo, que agora vem brilhar em ns, apario do Logos
que estava no incio e que pr-existia, pois apareceu agora aquele que pr-existia
como Salvador; ele apareceu, aquele que, no Ser, era mestre, pois o Logos estava
em Deus; e ele apareceu, aquele por quem tudo foi criado. Como demiurgo, ele
deu a vida no incio, ao mesmo tempo em que criava; depois, como mestre, ele en-
sinou a bem viver, para que procurssemos, mais tarde, como Deus, a vida eterna.
4. Mas no , pois, agora, a primeira vez que ele se apieda de nossos erros, mas
desde o princpio, desde o comeo; porm, hoje, j perdidos, ele apareceu para nos
salvar. Pois o rptil perverso, por charlatanismo, parece-me, ainda escraviza e mal-
trata os homens, torturando-os como aqueles brbaros que atavam dizem seus
prisioneiros a cadveres, para que, amarrados, ambos tombassem em decomposio.
5. Esse drago, tirano perverso, fez-se mestre daqueles a quem, desde o nascimen-
to, amarrou com o liame miservel da superstio; a pedras, a carcaas de madeira; a
imagens ou dolos do mesmo gnero fez, como dizem, oferendas vivas em honra dos
mortos e os encerrou, destarte, em tumbas, at que eles apodrecessem com os j mortos.
6. De modo semelhante, tambm nica a charlat que desencadeou a morte
desde as origens Eva e ainda continua arruinando muitos homens. Ns no te-
mos, para isso, seno um nico protetor, um s auxlio, o Senhor, que, primitivamen-
te, nos advertiu de maneira proftica e que, agora, nos exorta claramente salvao.
[8]
1. Fujamos, pois, obedientes instruo do Apstolo, do chefe da potncia
do ar, do esprito que agora se apodera dos filhos da desobedincia;11 corramos
ao Salvador, ao Senhor, que agora e sempre nos exorta salvao: no Egito, por
meio de sinais e prodgios; no deserto, atravs da sara ardente e da nuvem, onde
sua misericrdia acompanhou os hebreus como a lealdade de uma serva.
2. Ele estimulava seus coraes endurecidos atravs do medo; antes, tambm,
j o havia feito por meio do sapientssimo Moiss e de Isaas, o amigo da verdade, e
por todo o coro dos profetas; Ele convertera ao Logos, de maneira muito racional,
aqueles que possuam ouvidos: ora Ele injuria, ora ameaa; por outro lado, lamen-
ta por alguns; canta para outros, assim como um excelente mdico que, dentre os
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corpos doentes, cobre uns com cataplasmas, limpa e banha outros, intervm com o
ferro, cauteriza aqui e ali, noutro lugar amputa alguns pela serra, quando ainda
possvel curar o homem como um todo ou apenas um de seus membros.
3. O Salvador polifnico e engenhoso a respeito da salvao dos homens:
ameaando, adverte; injuriando, converte; lamentando, apieda-se; salmodiando,
exorta; fala atravs da sara ardente (os hebreus tinham necessidade de sinais e
prodgios) e intimida os homens com o fogo, fazendo sair chamas da coluna, sinal
de graa e de medo, a um s tempo: caso se obedea, tem-se a luz; caso se desobe-
dea, tem-se o fogo. E como a carne [do homem] mais valiosa que uma coluna e
uma sara, so os profetas que, depois disso, se fazem ouvir; Ele, o Senhor, que
fala pela boca de Isaas, de Elias e dos profetas.
4. Mas se tu no crs nos profetas e aceitas, ao contrrio, mitos, charlates
e o fogo, Ele, o Senhor, a ti te falar como aquele que semelhante a Deus, mas
que no usufrui deste privilgio, fazendo-se intil a si prprio.12 Esse Deus com-
passivo deseja ardentemente salvar os homens; Ele, agora, o Logos, que te fala
claramente, desmascarando a tua incredulidade; sim, eu digo, o Logos de Deus
tornado homem, a fim de que tu ainda aprendas, por meio de outro homem, como
um homem pode vir a ser Deus.
[9]
1. No estranho, amigos, Deus sempre nos exortar virtude, e ns nos
esquivarmos de seu auxlio, desprezando a salvao? No era verdade, tambm,
que Joo nos exortava salvao e se tornou, por inteiro, a voz que exorta? Per-
guntemos, pois, a ele: Quem s tu dentre os homens? Ele no dir ser Elias e negar
ser o Cristo; mas confirmar que a voz que clama no deserto. Mas quem Joo?
guisa de exemplo, permito-me dizer que a voz do Logos exortativo que clama
no deserto. O que clamas, voz? Di-lo tambm a ns! Tornai retos os caminhos
do Senhor.13
2. Joo o precursor, e sua voz a precursora do Logos, voz que encoraja, voz
preparadora da salvao, voz que exorta herana dos cus. Por meio desta voz, a
estril e solitria no mais ficaro sem descendentes. A voz do anjo me profetizou
essa gravidez; essa voz tambm era precursora do Senhor, mensageira da boa-nova
estril, assim como Joo o fora solido do deserto.
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3. Com efeito, atravs dessa voz do Logos, a estril, feliz, concebe, e o deser-
to produz frutos. Essas duas vozes precursoras do Senhor, a do anjo e a de Joo,
dizem-nos enigmaticamente que a salvao est oculta nelas, como se, aps a epi-
fania do Logos, colhssemos o fruto da salvao: a vida eterna.
4. Ambas as vozes, por certo, convergem para uma s, e as Escrituras expli-
cam claramente todo o pensamento: Que escute aquela que estril; que ela faa
retumbar a sua voz, sem sentir as dores do parto, porque a prole da solitria ser
maior do que a da que tem marido.14 O anjo nos anunciou a boa-nova; Joo nos
exorta a pensar no lavrador, isto , a procurar o marido.
5. O marido da mulher estril e o lavrador do deserto so um nico e um
mesmo ser: aquele que saciou a fora divina a estril e o deserto. De fato, muitos
so os filhos da mulher de boa raa; por outro lado, a mulher hebreia, que desde
o incio tivera muitos filhos, agora se encontra sem nenhum, por causa de sua
incredulidade; a estril, por sua vez, recebe um marido, e o deserto um lavrador;
em seguida, o deserto d frutos; a estril, fiis; ambos fecundados pelo Logos. No
obstante, ainda hoje sobrevivem a estril e o deserto: so os infiis.
[10]
1. Quanto a Joo, o arauto do Logos, este exortava [os homens] a manterem-se
preparados para a vinda de Deus, de Cristo, e isto era o que dizia metaforicamente o si-
lncio de Zacarias, esperando o fruto precursor de Cristo, a fim de que a luz da verdade, o
Logos, pusesse fim ao silncio mstico dos enigmas profticos, uma vez tornado boa-nova.
2. Mas se tu desejas verdadeiramente ver Deus, toma parte nas cerimnias
purificadoras dignas de Deus, no com folhas de loureiro e cintas bordadas de
l e de prpura,15 mas coroado de justia e com a tua fronte cingida de folhas
de temperana, ocupando-te piedosamente de Cristo; pois eu sou a porta,16 disse
ele em alguma passagem; portanto, aqueles que desejam conhecer a Deus precisam
aprender a maneira como ele abrir, diante de ns, todas as outras portas dos cus.
3. As portas do Logos so razoveis, abrem-se com a chave da f: Ningum
conhece Deus, seno o Filho e aquele a quem o Filho revelou.17 Eu bem sei que
essa porta, que se manteve fechada at agora, aquele que a abre revela, em seguida,
o que h no interior e mostra o que no se podia conhecer antes, seno quando se
houvesse passado pelo Cristo, o nico, por meio do qual Deus se revela.
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