EXMO. JUÍZO DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA …
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EXMO. JUÍZO DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA
JUVENTUDE DA COMARCA DA CAPITAL
Processo nº:
_______________________________________, já qualificado
nos autos em epígrafe, irresignado com a r. sentença, vem, tempestivamente, por
intermédio da Defensoria Pública, interpor
APELAÇÃO
de acordo com as razões aduzidas em anexo, requerendo seja o recurso recebido
também em seu EFEITO SUSPENSIVO, uma vez que não foi excepcionado o
cumprimento da medida socioeducativa aplicada em virtude da não ocorrência do
trânsito em julgado, de modo que seja apreciado nos termos do artigo 198 do ECA e do
artigo 1.012 do CPC/2015, sendo encaminhados os autos à instância superior em caso de
manutenção do r. decisum guerreado.
E. deferimento.
Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2018.
_____________________________________
DEFENSOR PÚBLICO
mat. ________
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EXCELENTÍSSIMOS SENHORES DESEMBARGADORES DA CÂMARA
CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Processo nº:
Apelante:
Apelado: Ministério Público
Origem: Vara da Infância e da Juventude da Comarca da Capital
RAZÕES DE APELAÇÃO
EGRÉGIO TRIBUNAL,
COLENDA CÂMARA,
DA TEMPESTIVIDADE
Inicialmente há que se registrar a tempestividade do presente recurso,
haja vista que a r. sentença foi prolatada em audiência realizada no dia 08/11/2018 e
considerando o disposto no artigo 128, I, da LC 80/941 e no art. 186 do CPC/15, que
conferem à Defensoria Pública a prerrogativa funcional de prazo em dobro – 20 (vinte
dias), em se tratando de apelação de sentença proferida pelo Juízo da Infância e da
Juventude –, em harmonia ao princípio da isonomia previsto constitucionalmente.
1 Art. 128. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, dentre outras que a lei
local estabelecer:
I – receber, inclusive quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal em
qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa, contando-se-lhes em dobro todos os
prazos; (grifo acrescido) (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
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SÍNTESE DOS FATOS
Trata-se de procedimento para apuração da prática de ato infracional
análogo a crime previsto no artigo 121, §2°, VII, c/c art. 14, II, todos do Código Penal.
A representação foi julgada procedente, aplicando-se ao adolescente a
medida socioeducativa de internação.
Ocorre que a r. sentença merece ser anulada ou, ao menos, reforma,
conforme será demonstrado.
DA PRECARIEDADE DO LASTRO PROBATÓRIO
O CONTEXTO PROBATÓRIO APRESENTADO NOS AUTOS É
FRÁGIL, não sendo suficiente para o douto magistrado aplicar qualquer medida
socioeducativa ao recorrente.
Primeiramente, cumpre destacar que o recorrente, na audiência de
apresentação (fls. 33/37), negou os fatos imputados:
“que não são verdadeiros os fatos narrados na representação; que
não estava em posse de um fuzil e não atirou contra os policiais; que
trabalhava com seu tio em uma obra e estava retornando para a casa de
sua avó; que a comunidade em que reside estava em guerra e havia troca
de tiros; que resolveu voltar para quando foi alvejado por tiros; que
não viu quem atirou contra ele; que apenas estava de posse de sua
identidade e do valor de R$60,00, referente a diária que ganhou na obra;
que nunca viu policial Gilbert; que o reconheceu; que depois de atingido
ficou no chão por 15 minutos; que foi ameaçado de morte por um
policial, mas que o comandante da operação impediu que o mesmo
atirasse contra ele; que o policial que queria agredi-lo era chamado de
´papel´ pelos outros; que não viu o fuzil que foi encontrado; que tem 17
4
anos; que estuda e está cursando o 8º ano do ensino fundamental; que
trabalha como camelô e como ajudante de pedreiro com seu tio; que
mora com sua avó; que mora com sua avó porque seus pais são
separados e mora com sua avó porque acha melhor; que não tem filhos;
que não faz uso de drogas; que é sua terceira passagem pela VIJ, sendo
as anteriores por roubo forjado e que foi apreendido em razão de
sarqueamento; que cumpriu internação por 4 meses, sendo progredido e
encontra-se com MSE de semiliberdade, a qual está descumprindo. Dada
a palavra ao MP, nada foi perguntado. Dada a palavra à Defesa, foi
perguntado e respondido que: foi abordado por muitos policiais militares
e não sabe identificar a quantidade; que foi encontrado pelo dono do bar,
o Sr. Lourival, além de outros moradores; que os policiais chegaram
depois e o socorreram, levando-o ao Hospital; que foi puxado pela perna
pelos policiais e eles chutaram o seu rosto, agredindo com o fuzil; que
colocaram uma faca no seu rosto e foi ameaçado de morte pelos policiais
militares; que sofreu fratura exposta na perna em razão do tiro que o
alvejou.”
Não obstante os policiais afirmem terem visto o apelante portando o fuzil
AK-47 e atirando contra os agentes da lei, tais relatos devem ser sopesados com a devida
cautela. Não obstante a jurisprudência admitir a validade do depoimento testemunhal dos
policiais que efetuaram a captura do imputado, tais depoimentos devem ser
necessariamente corroborados por outras provas, tendo em vista o evidente interesse dos
policiais em demonstrar a legalidade da operação (mormente em razão do fato de o
apelante ter sido baleado pelas forças policiais), bem como em obter o reconhecimento
pelo trabalho realizado, conforme destaca FERNANDO CAPEZ2:
Os policiais não estão impedidos de depor, pois não podem ser considerados
testemunhas inidôneas ou suspeitas, pela mera condição funcional. Contudo,
embora não suspeitos, têm eles todo o interesse em demonstrar a legitimidade
do trabalho realizado, o que torna bem relativo o valor de suas palavras.
Por mais honesto e correto que seja o policial, se participou da diligência,
servindo de testemunha, no fundo estará sempre procurando legitimar a sua
própria conduta, o que juridicamente não é admissível. Necessário, portanto,
que seus depoimentos sejam corroborados por testemunhas estranhas
aos quadros policiais. (grifos nossos)
2 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 444.
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No mesmo sentido, esclarecedoras as palavras de AURY LOPES JR.3:
(...) deverá o juiz ter muita cautela na valoração desses depoimentos, na
medida em que os policiais estão naturalmente contaminados pela
atuação que tiveram na repressão e apuração do fato. Além dos
prejulgamentos e da imensa carga de fatores psicológicos associados à
atividade desenvolvida, é evidente que o envolvimento do policial com a
investigação (e prisões) gera a necessidade de justificar e legitimar os
atos (e eventuais abusos) praticados. (...)
No fundo, é um golpe de cena, um engodo, pois a condenação se deu,
exclusivamente, com base nos atos da fase pré-processual e no
depoimento contaminado de seus agentes, natural e profissionalmente
comprometidos com o resultado por eles apontado, violando o disposto
no art. 155 do CPP. Portanto, se não há impedimento para que os
policiais deponham, é elementar que não se pode condenar só com
base nos seus atos de investigação e na justificação que fazem em
audiência.
Não há provas nos autos corroborando o depoimento dos policiais. Note
que não há perícia do suposto fuzil AK-47 portado pelo apelante.
Sendo assim, verifica-se a fragilidade do conjunto probatório no curso do
processo em questão, que são suficientes para apontar a ausência de autoria do ato
infracional que ao representado foi imputado.
DA DESCLASSIFICAÇÃO PARA RESISTÊNCIA
Subsidiariamente, em caso de manutenção da condenação, deve o ato
infracional análogo a tentativa de homicídio qualificado ser desclassificado para ato
infracional análogo a resistência, pelos motivos a seguir descritos.
3 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo, Saraiva, 2014. p. 676.
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Segundo a prova oral colhida nos presentes autos, policiais militares
estavam em uma diligência na comunidade, momento no qual foram cercados e houve
troca de tiros.
A conduta da pessoa que atirou não foi dirigida para levar a óbito
algum policial específico, mas sim evitar a abordagem pela guarnição, evitando a prisão
ou apreensão em flagrante, de modo que resta afastado o dolo de matar (animus necandi).
Dessa forma, a conduta encontra adequação típica no art. 329 do Código Penal
(resistência), uma vez que voltada a assegurar a execução e impunidade, e não matar
alguém (como, aliás, era a imputação originária, antes do indevido aditamento da
representação na audiência em continuação).
Assim já teve oportunidade de decidir o Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro em hipótese semelhante:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JURI.
DECISÃO QUE JULGOU ADMISSÍVEL A ACUSAÇÃO E
PRONUNCIOU O ACUSADO COMO INCURSO NAS SANÇÕES DO
ARTIGO 121, § 2º, INCISO V, C/C ART. 14, INCISO II, POR SEIS
VEZES N/F DO ART. 70, CAPUT TODOS DO CÓDIGO PENAL,
SOMADAS EM CONCURSO MATERIAL ÀS DO ART. 35, C/C ART.
40, INCISOS IV E VI DA LEI Nº 11.343/06 E ART. 16, PARÁGRAFO
ÚNICO, INCISO III DA LEI Nº 10.826/03, PARA QUE SEJA
SUBMETIDO A JULGAMENTO PELO E. TRIBUNAL DO JÚRI.
INCONFORMADA A DEFESA INTERPÔS RECURSO EM SENTIDO
ESTRITO, SUSTENTANDO QUE NÃO RESTOU DEMONSTRADO
O "ANIMUS NECANDI" EM RELAÇÃO AO ACUSADO, AUSENTE,
POIS, NA CONDUTA O ELEMENTO SUBJETIVO, CONSISTENTE
NO DOLO DE MATAR, AFIRMANDO QUE A NARRATIVA DOS
FATOS SE AMOLDA AO CRIME DE RESISTÊNCIA, POIS A
CONDUTA DO ATIRADOR CONSISTIRIA EM EMPREENDER
FUGA E EFETUAR DISPARO EM OPOSIÇÃO AOS POLICIAIS
MILITARES, OS QUAIS FORAM QUALIFICADOS COMO
SUPOSTAS VITIMAS, APÓS INICIO DE ABORDAGEM, EM
CLARA TENTATIVA DE DEMOVER OS MESMOS DA INTENÇÃO
DE PERSEGUI-LO, E, PORTANTO, NÃO ENCONTRA
ADEQUAÇÃO NA FIGURA TÍPICA DO ART. 121 DO CP, EIS QUE
NÃO HÁ INICIO DE EXECUÇÃO DE CRIME DOLOSO CONTRA A
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VIDA, REQUERENDO, POIS, A REFORMA DA DECISÃO,
OBJETIVANDO A DESCLASSIFICAÇÃO, AFASTANDO-SE A
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI, E SUBSIDIARIAMENTE
A EXCLUSÃO DA IMPUTAÇÃO DO CRIME PREVISTO NO ART.
16, PARÁGRAFO ÚNICO, III DA LEI 10.826/03, DEVENDO SER
ABSORVIDA PELO CRIME DE HOMICÍDIO. RECURSO QUE
MERECE SER PROVIDO. COMPULSANDO OS AUTOS,
VERIFICA-SE QUE TRATA-SE DE IMPUTAÇÃO DE SEIS
TENTATIVAS DE HOMICÍDIO QUALIFICADO SUPOSTAMENTE
PRATICADAS PELO ACUSADO EM COMUNHÃO DE AÇÕES E
DESÍGNIOS COM ADOLESCENTE INFRATOR, E OUTROS TRÊS
INDIVÍDUOS, UM DELES IDENTIFICADO APENAS PELA
ALCUNHA, OS QUAIS EM RAZÃO DE INCURSÃO DE POLICIAIS
MILITARES NO LOCAL DESCRITO NA DENÚNCIA,
EFETUARAM DISPAROS DE ARMA DE FOGO COMO FORMA DE
ASSEGURAR A EXECUÇÃO E IMPUNIDADE DO CRIME DE
TRAFICO DE DROGAS, QUANDO OS POLICIAIS REPELIRAM
INJUSTA AGRESSÃO TAMBÉM EFETUANDO DISPAROS,
MOMENTO EM QUE O ACUSADO E OS OUTROS INDIVÍDUOS
EMPREENDERAM FUGA PELA MATA, ABANDONANDO NO
LOCAL UM ARTEFATO EXPLOSIVO, O QUAL FOI
ARRECADADO JUNTAMENTE COM 03 (TRÊS) ESTOJOS DE
MUNIÇÃO CALIBRE 9MM. NO CASO CONCRETO, EM QUE PESE
A PROVA DE EXISTÊNCIA DOS CRIMES E INDÍCIOS DE
AUTORIA, RESTOU INEQUÍVOCA, NO CONTEXTO
PROBATÓRIO DOS AUTOS, A AUSÊNCIA DE "ANIMUS
NECANDI" NA CONDUTA DO AGENTE, INEXISTINDO,
QUALQUER ELEMENTO QUE INDIQUE, AO MENOS
MINIMAMENTE, O ANIMO HOMICIDA DO ACUSADO. NÃO SE
TRATA, DE USURPAR A COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO
JÚRI, MAS APENAS DE ESTABELECER UM FILTRO INERENTE
À DECISÃO DE ADMISSIBILIDADE DA DENÚNCIA, EIS QUE
PARA QUE SEJA SUBMETIDO O RÉU A JULGAMENTO PELO
JÚRI É PRECISO A COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DO
FATO E A DEMONSTRAÇÃO DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE
AUTORIA E DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO PENAL, O
DOLO, POIS A COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI É
EXCLUSIVA PARA JULGAMENTO DE DELITOS DOLOSOS
CONTRA A VIDA E DOS DEMAIS CONEXOS A ELE. IN CASU, O
CENÁRIO FÁTICO DESENHADO PELOS POLICIAIS
MILITARES, DEIXA CLARO TER O RÉU, O
CORREPRESENTADO E DEMAIS COAUTORES AGIDO COM
O INTUITO DE EVITAR A ABORDAGEM DA GUARNIÇÃO
POLICIAL E, COM ISSO, IMPEDIR A SUA PRISÃO EM
FLAGRANTE, MORMENTE AO SE CONSIDERAR AS DEMAIS
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IMPUTAÇÕES DOS CRIMES CONEXOS, A SABER, ASSOCIAÇÃO
PARA O TRAFICO E PORTE DE ARTEFATO EXPLOSIVO. ASSIM,
ORIENTADA A AÇÃO DO SUJEITO A IMPEDIR A AÇÃO
POLICIAL E EVITAR O FLAGRANTE, E NÃO A MATAR UMA
PESSOA DETERMINADA, NÃO ESTÁ CARACTERIZADO O
"ANIMUS NECANDI". COM EFEITO, SÃO DIFERENTES OS
INTUITOS DE MATAR E DE EVITAR A APROXIMAÇÃO DOS
POLICIAIS. NESSE ÚLTIMO CASO, POSSÍVEL SERIA
TRABALHAR COM A HIPÓTESE DO DOLO EVENTUAL, MAS O
CONTEXTO PROBATÓRIO DOS AUTOS NÃO APRESENTA
INDÍCIOS SUFICIENTES NESSE SENTIDO E, ADEMAIS, A
DENÚNCIA NÃO IMPUTA AO ACUSADO O DOLO
EVENTUAL, MAS APENAS O DOLO DIRETO, A IMPEDIR
UMA PRONÚNCIA NESSE FORMATO. POR OPORTUNO,
REGISTRE-SE QUE OS DISPAROS SUPOSTAMENTE
DESFERIDOS CONTRA OS POLICIAIS NÃO ACERTARAM
NENHUM DELES, NÃO HAVENDO REGISTRO OU MENÇÃO DE
QUE ALGUMA VIATURA FOI ATINGIDA, INEXISTINDO EXAME
PERICIAL DE LOCAL. ASSIM, HÁ ELEMENTOS QUE
PODERIAM, EVENTUALMENTE, DEMONSTRAR AS
ELEMENTARES TÍPICAS DO DELITO DO ARTIGO 329 DO CP, E
AUSENTES INDÍCIOS SUFICIENTES DO ELEMENTO SUBJETIVO
DO TIPO PENAL - O DOLO DE MATAR - A SOLUÇÃO É A
DESCLASSIFICAÇÃO DOS FATOS DENUNCIADOS PARA
OUTRO TIPO PENAL NÃO DOLOSO CONTRA A VIDA.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO, PARA
DESCLASSIFICAR OS DELITOS DE HOMICÍDIO
QUALIFICADO TENTADO (POR SEIS VEZES) IMPUTADOS
AO ACUSADO, POR ENTENDER NÃO SE TRATAR DE CRIME
DOLOSO CONTRA A VIDA, NOS TERMOS DO CAPUT DO
ART. 419 DO CPP, DEVENDO O FEITO SER REDISTRIBUÍDO
AO JUÍZO SINGULAR COMPETENTE.” (TJ/RJ, Recurso em
sentido estrito nº 0482105-39.2015.8.19.0001, Rel. Des. Siro Darlan de
Oliveira, 7ª Câmara Criminal, j. 06/06/2017)
Diante do exposto, em caso de condenação, deve a conduta ser
desclassificada de tentativa de homicídio para resistência, uma vez que não comprovado o
animus necandi.
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DA NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DA MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA
Oportuno salientar, inicialmente, a previsão legal contida no § 2º do art.
122 da Lei 8.069/90, que consagra o princípio da excepcionalidade, in verbis: “Em
nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.”.
É preciso observar, ainda, que a gravidade abstrata do ato infracional
não pode fundamentar, por si só, a aplicação da MSE de internação, uma vez que só pode
ser aplicada às hipóteses taxativamente previstas nos incisos do art. 122 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, bem como é imprescindível que se mostre como única
medida adequada para propiciar a ressocialização do adolescente.
Ademais, todas as medidas impostas devem priorizar o fortalecimento
dos vínculos familiares, de acordo com o disposto no art. 35, IX da Lei 12.594/12 e no art.
100 do ECA, sendo a medida de internação a que implica o maior afastamento do
adolescente do seio de sua família.
O Estatuto da Criança e do Adolescente reservou a aplicação da medida
extrema para as situações excepcionais, ditadas não exclusivamente pela gravidade do ato
cometido, devendo haver criteriosa análise quanto ao contexto social e familiar em que o
adolescente vive, observando-se a sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento.
Nesse viés, deve-se primar pela adoção de medidas que sejam capazes de
fortalecer os laços do adolescente com o seio social e com sua família. Seguindo esse
direcionamento, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu no § 1° do art. 112, in
verbis:
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Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá
aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
(...)
§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de
cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração. (grifo nosso)
Nesse sentido, a aplicação de uma medida socioeducativa deve levar em
consideração todo o contexto referente ao adolescente em conflito com a lei, inclusive no
que diz respeito à existência de laços familiares capazes de auxiliar em seu processo de
socioeducação. Cumpre, sobre o tema, trazer à colação algumas decisões retiradas do livro
AÇÃO SÓCIO-EDUCATIVA PÚBLICA, ob. citada, págs. 93 e 94, in verbis:
“Adolescente. Prática de ato infracional grave. Advertência. Insuficiência da
medida. Confessada pela adolescente sua reiterada participação em atos
infracionais de extrema gravidade, análogos aos descritos no art. 157 § 2º, I e II
do CP, estando, portanto, em franco processo de marginalização, com assistência
familiar precária e deficiente, mais do que uma simples admoestação verbal, faz-
se necessária a imposição de vigilância preventiva. Provimento do recurso para
aplicar-se à adolescente a medida de liberdade vigiada (CM/RJ, Processo nº
396/93, Rel. Des. Adolphino A. Ribeiro) Grifo nosso.
“Menor infrator. Medida sócio-educativa aplicável. Praticado pelo adolescente
fato grave, análogo ao crime de roubo armado, em concurso de agentes, não se
justifica a aplicação de mera advertência, ainda quando primário o investigado.
Provimento da apelação para imposição da liberdade assistida postulada pelo
Ministério Público”. (CM/RJ, Processo nº 892/93, Rel. Des. Adolphino A.
Ribeiro) Grifo nosso.
Ora, como saber que a medida extrema era a mais adequada? Na verdade,
nenhuma análise foi realizada, tendo sido a medida fixada com base na
gravidade abstrata do ato infracional, o que é vedado pelos Tribunais Superiores,
ferindo ainda os princípios constitucionais da excepcionalidade e
peculiar condição de pessoa em desenvolvimento.
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Importante destacar que o recorrente estuda no 8º ano do ensino médio,
trabalha como camelô e ajudante de pedreiro e possui suporte familiar.
Aliás, tal situação corrobora a afirmação de que a medida aplicada teve por
base tão somente a gravidade abstrata, fato que macula a r. sentença de nulidade,
configurando a ausência de fundamentação idônea (ofensa ao art. 93, IX
da CR).
O certo é que deve ser preferida a medida que propicie o fortalecimento
dos vínculos familiares. Assim dispõem os artigos 113 c/c art. 100 ambos do ECA, sendo
a medida imposta, uma medida privativa de liberdade que, por conseguinte, implica severo
afastamento do adolescente do seio de sua família.
Cumpre trazer à colação a opinião do culto Promotor de Justiça do
Ministério Público do Paraná, Murillo José Digiácomo, defendida em artigo intitulado
“Internação não é a solução:
“Na correta compreensão que a consecução dos objetivos sócio-educativos
não se dará através da reprodução do sistema penal, procurou o Estatuto da
Criança e do Adolescente, com respaldo na Constituição Federal, reservar a
aplicação de medidas sócio-educativas privativas de liberdade para situações
extremas e excepcionais, ditadas não pela gravidade do ato infracional em tese
praticado, mas sim em razão das necessidades pedagógicas da pessoa do
adolescente apuradas através da criteriosa análise, por equipe
interprofissional habilitada de todo o contexto pessoal, familiar e social em
que o mesmo vive, tendo sempre por objetivo a solução que seja a ele menos
gravosa, com a sistemática aplicação de medidas de proteção e sócio-
educativas em meio aberto, somadas a medidas de orientação e promoção
sócio-familiar, que permitam estabelecer os tão necessários limites e
responsabilidades ao jovem, sem ter de privá-lo de sua liberdade.” (Grifo
nosso).
A Constituição Federal, em relação aos adolescentes, estabeleceu em seu
artigo 227, caput, o princípio da prioridade absoluta, devendo ser prestado ao adolescente
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tratamento diferenciado, impondo-se, quando da aplicação de medida socioeducativa, a
observância das necessidades pedagógicas do mesmo, devendo ser considerada a sua
individualidade e os princípios da brevidade, excepcionalidade e condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento, sendo que em especial os dois
últimos foram diretamente inobservados pela I. Magistrada, ao fixar
medida extrema de internação, inadequada ao contexto social e familiar
do apelante.
Art. 227, par. 3º. V da CR - obediência aos princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da
liberdade;
Note que eventual medida de internação necessita de indicação nesse
sentido, seja por afirmação expressa em estudo interdisciplinar ou por análise do
contexto social e demais dados trazido pelo estudo, o que não ocorreu no caso em
tela.
Com a devida vênia, resta totalmente desnecessário retirar o jovem do
convívio familiar, com o objetivo utópico de ressocializá-lo, para mantê-lo em instituição,
onde conviverá com outros adolescentes que poderão inclusive corromper sua
personalidade, o que obviamente não irá auxiliá-lo, podendo, até mesmo, prejudicá-lo.
A medida privativa de liberdade causaria mais malefícios ao
apelante do que propriamente uma reintegração deste à sociedade, mantendo-o onde não
se vislumbra meio efetivo de recuperação, além de contrariar vários princípios do Estatuto
da Criança e do Adolescente, mostrando-se, portanto, INADEQUADA ao caso em tela.
Por tal razão, requer a reforma da sentença para a aplicação de medida
de LIBERDADE ASSISTIDA, mais adequada às peculiaridades do caso em tela.
Subsidiariamente, requer a aplicação da medida de SEMILIBERDADE.
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DA PRECARIEDADE E DA SUPERLOTAÇÃO DAS UNIDADES DO
DEGASE
Também deve ser levado em consideração o estado absolutamente
precário em que as Unidades do DEGASE se encontram, bem como a superlotação,
fatores que prejudicam e comprometem o êxito da ressocialização dos socioeducandos,
além de colocar em risco a integridade física e a vida dos adolescentes.
Trata-se de um problema generalizado, enfrentado por todas as Unidades
de Internação do Estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, vale transcrever o trecho
extraído da matéria jornalística recentemente publicada no site G14:
“No Centro de Socioeducação Dom Bosco, na Ilha do Governador, os
internos convivem com paredes descascadas, sujeira e corredores e
dormitórios alagados. No Centro de Atendimento Intensivo Belford
Roxo, na Baixada Fluminense, há paredes com mofo e muitos
adolescentes que cumprem medida socioeducativa caminham por um
corredor de esgoto.
O sistema socioeducativo no Rio de Janeiro vive um colapso por causa
da superlotação. O Educandário Santo Expedito conta com cerca de 470
internos, quando a legislação preconiza o máximo de 90. Temos
unidades como em Campos e o Centro de Triagem, na Ilha do
Governador, operando com cerca de 300% de superlotação. Realmente é
um absurdo”, explicou João Luiz Pereira, presidente do sindicato dos
funcionários do Degase.”
Reportagem do Jornal O Globo, intitulada Unidades de ressocialização
de menores infratores são precárias e superlotadas no Rio5, confirma a precariedade e
superlotação de todas as unidades do DEGASE:
4 Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/09/unidades-do-degase-no-rj-tem-
superlotacao-doencas-e-mofo.html>. Acesso em 05 out. 2016.
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“RIO – Em vez de meninos, é um rato que nada na piscina do Centro de
Socioeducação Dom Bosco (antigo Instituto Padre Severino), na Ilha do
Governador, uma das 24 unidades do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (Degase), para onde são levados jovens infratores. A
imagem foi feita há dois meses por um agente do Degase e repassada ao
sindicato da categoria (Sind-Degase). Funcionários do departamento
filmaram ainda as condições precárias das galerias onde adolescentes
deveriam ser ressocializados, como o Educandário Santo Expedito
(ESE), em Bangu, e o Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo
(CAI-Baixada).
Ao quadro insalubre se soma a superlotação das oito unidades de
internação e de internação provisória do Degase, vinculado à Secretaria
de Educação, onde estão 1.913 mil jovens infratores, de 12 a 21 anos
incompletos. A capacidade total dessas unidades, no entanto, é 986
vagas. Com isso, diz o Sindicato dos Servidores do Degase, João Luiz
Pereira Rodrigues, são dois meninos dividindo a mesma cama e até
alguns dormindo no chão.
[...]
João Luiz lembra que um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC),
firmado com o Ministério Público em 2006, estabelecia que seriam
construídas quatro novas unidades. Apenas duas foram implantadas: em
Campos e Volta Redonda.”
As mortes de adolescentes dentro das Unidades de Internação têm sido
recorrentes, estando a situação totalmente fora de controle. Verifica-se que as Unidades de
Internação mais se parecem com calabouços medievais, sendo uma falácia a
ressocialização nestas condições absolutamente degradantes.
Deve-se atentar, ademais, ao estabelecido no artigo 5º, inciso XLVII,
alínea “e” e no art. 5º, XLIX, da CRFB/1988, segundo os quais não haverá penas cruéis,
devendo ser assegurado às pessoas privadas de liberdade o respeito à integridade física e
moral, o que se coaduna com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III,
CRFB/88).
5 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/unidades-de-ressocializacao-de-menores-infratores-sao-
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Saliente-se, ainda, que a situação descrita é corroborada por ofício
expedido pelo ESE (vide anexo), uma vez que os dados numéricos apresentados
demonstram nitidamente um contexto de superlotação e quantitativo profissional
desproporcional. Configura-se, portanto, um risco real e iminente de colapso de todos os
serviços que envolvem as atividades da instituição, o que distancia, claramente, os
internos das chances da socioeducação e transforma a medida de internação aplicada em
puro encarceramento.
Logo, inadmissível que se confira tratamento degradante e hostil aos
adolescentes, sendo imprescindível priorizar a aplicação de medidas socioeducativas em
meio aberto, sempre que possível, de modo a viabilizar a efetividade do processo
socioeducativo, evitando-se o afastamento dos adolescentes de seus núcleos familiares.
DOS PEDIDOS
Ante o exposto, requer o conhecimento e provimento do presente
recurso de apelação para que seja julgado IMPROCEDENTE o pedido formulado na
representação do Ministério Público, absolvendo-se o adolescente na forma do art. 114 do
ECA.
Contudo, caso essa E. Câmara entenda não ser caso de improcedência,
pugna pela desclassificação da conduta para ato análogo ao delito descrito no art. 329
do CP (resistência), bem como pela aplicação de medida socioeducativa de
LIBERDADE ASSISITIDA ou, subsidiariamente, de SEMILIBERDADE, a fim de
melhor atender às necessidades do adolescente e não o afastar do convívio familiar.
precarias-superlotadas-no-rio-21430866. Acesso em: 16/11/2017.
16
Caso sejam superados os pedidos anteriores, pugna pela colocação
do adolescente em medida socioeducativa em meio aberto, até que seja solucionado o
problema da superlotação.
Nestes termos,
Pede deferimento.
Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2018.
_____________________________________
DEFENSOR PÚBLICO
mat. __________