EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO … - lei fluminense.pdf · Janeiro, que foi pioneiro...
Transcript of EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO … - lei fluminense.pdf · Janeiro, que foi pioneiro...
EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, com
fundamento no disposto no art. 102, § 1º, da Constituição Federal e nos
dispositivos da Lei nº 9.882/99, vem propor a presente
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL
com o objetivo de
(a) declarar a constitucionalidade dos dispositivos da Lei
5.346/08, do Estado do Rio de Janeiro; ou
(b) subsidiariamente, caso a Corte entenda incabível ou
improcedente o pedido acima, invalidar a decisão do Egrégio Órgão
Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, proferida na
Representação por Inconstitucionalidade 09/2009 (Processo nº
2009.007.00009), que suspendeu a eficácia do citado ato normativo.
DOS FATOS
Em 11 de dezembro de 2008, o Estado do Rio de Janeiro
editou a Lei nº 5.346, que “dispõe sobre o novo sistema de cotas para
ingresso nas universidades estaduais e dá outras providências”. O referido
ato normativo tem a seguinte redação (doc. 1):
“Art. 1º. Fica instituído, por dez anos, o sistema de cotas para ingresso nas universidades estaduais, adotado com a finalidade de assegurar seleção e classificação final nos exames vestibulares aos seguintes estudantes, desde que carentes:
I- negros;
II- indígenas;
III- alunos da rede pública de ensino;
IV – pessoas portadoras de deficiência, nos termos da legislação em vigor;
V- filhos de policiais civis e militares, bombeiros e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço.
§ 1º. Por estudante carente entende-se como sendo aquele assim definido pela universidade pública estadual, que deverá levar em consideração o nível sócio-econômico do candidato e disciplinar como se fará a prova desta condição, valendo-se, para tanto,
2
dos indicadores sócio-econômicos utilizados por órgão públicos estaduais.
§ 2º. Por aluno da rede pública de ensino entende-se aquele que tenha cursado integralmente todas as séries do 2º ciclo do ensino fundamental e do ensino médio em escolas públicas do território nacional.
§ 3º. O edital do processo de seleção, atendido ao princípio da igualdade, estabelecerá as minorias étnicas e as pessoas portadoras de deficiência beneficiadas pelo sistema de cotas, admitida a adoção do sistema de auto-declaração para negros e pessoas integrantes de minorias étnicas, e da certidão de óbito, juntamente com a decisão administrativa que reconheceu a more em razão do serviço, para filhos dos policiais civis, militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, cabendo à universidade criar mecanismos de combate à fraude.
§ 4º. O candidato, no ato da inscrição, deverá optar por qual reserva de vagas estabelecidas no caput e nos incisos I ao V do presente artigo irá concorrer.
§ 5º. As universidades estaduais, no exercício de sua autonomia, adotarão os atos e procedimentos necessários para a gestão do sistema, observados os princípios e regras estabelecidos na legislação estadual, em especial:
I- universalidade do sistema de cotas quanto a todos os cursos e turnos oferecidos;
II- unidade do processo seletivo;
III- em caso de não preenchimento de vagas reservadas a determinado grupo, estas serão, prioritariamente, ocupadas por candidatos classificados dos demais grupos (art. 1º, I ao V), seguindo a ordem de classificação IV- caso persistam as vagas ociosas depois de esgotados os critérios do inciso anterior, as vagas remanescentes deverão, obrigatoriamente, ser completadas pelos candidatos não optantes pelo sistema de cotas.
3
§ 6º. No prazo de um ano anterior ao fim do prazo de prorrogação estabelecido no caput deste artigo, o Poder Executivo instituirá comissão para avaliar os resultados do programa de ação afirmativa, presidida pelo Procurador-Geral do Estado, com representantes dos órgãos participantes do referido programa, além de representantes das instituições da sociedade civil, em cada etnia ou segmento social objeto desta Lei.
§ 7º. O Relatório da avaliação do programa será publicado e encaminhado à Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ, para fins de acompanhamento.
Art. 2º. As cotas de vagas para ingresso nas universidades estaduais serão as seguintes, respectivamente:
I- 20% (vinte por cento) para os estudantes negros e indígenas;
II- 20% (vinte por cento) para os estudantes oriundos da rede pública de ensino;
III- 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e filhos de policiais civis, militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço.
Art. 3º. É dever do Estado do Rio de Janeiro proporcionar a inclusão social dos estudantes carentes destinatários da ação afirmativa objeto desta Lei, promovendo a sua manutenção básica e preparando o seu ingresso no mercado de trabalho, inclusive mediante as seguintes ações:
I- pagamento de bolsa-auxílio durante o período de curso universitário; II- reserva proporcional de vagas em estágios na administração direta e indireta estadual;
III- instituição de programas específicos de crédito pessoal para instalação de estabelecimentos profissionais ou empresariais de pequeno porte e núcleos de prestação de serviços.
4
Art. 4º. É mantido o procedimento de declaração pessoal para fins de afirmação de pertencimento à raça negra, devendo a administração universitária adotar as medidas disciplinares adequadas nos casos de falsidade.
Art. 5º. O Estado do Rio de Janeiro promoverá, noventa dias antes das inscrições para os exames vestibulares das universidades estaduais, campanha publicitária de orientação social para informar os estudantes destinatários desta Lei.
Art. 6º. As disposições desta Lei aplicam-se, no que for cabível, a todas as instituições públicas de ensino superior, mantidas e administradas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Art. 7º. Esta Lei será objeto de revisão a ser iniciada seis meses antes do termo final do prazo a que se refere o art. 1º, revogadas as disposições em contrário, em especial a Lei nº 4.151, de 4 de setembro de 2003 e a Lei 5.074, de 17 de julho de 2007.”
O ato normativo em questão, que é resultante de projeto
de lei de iniciativa do Governador do Estado do Rio de Janeiro, substituiu o
anterior sistema de cotas das universidades estaduais, que era regulado pela
Lei 4.151/03. As universidades mantidas pelo Estado do Rio de Janeiro são
a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e a Universidade
Estadual do Norte Fluminense - UENF.
As políticas de ação afirmativa no ensino público
superior vêm sendo implementadas há vários anos no Estado do Rio de
Janeiro, que foi pioneiro no país nessa questão1. Elas têm gerado resultados
extremamente positivos, ampliando o acesso à universidade pública de
1 Em 2000, o Estado do Rio de Janeiro editou a Lei 3.534/2000, instituindo reserva de vagas nas universidades públicas estaduais para candidatos egressos de escolas públicas, e, em 2001, foi promulgada a Lei 3.708/01, prevendo cota nas mesmas instituições de ensino para negros e pardos. Tais atos normativos foram revogados pela Lei 4.151/2003, que tratava do sistema de cotas nas universidades estaduais fluminenses , que vigorou até o advento da Lei 5.346/2008.
5
estudantes de camadas excluídas da população, e pluralizando, com isso, o
corpo discente dessas instituições, sem qualquer prejuízo para a qualidade
do ensino ou para o rendimento dos alunos. Neste período, por outro lado,
não se percebeu no Estado do Rio de Janeiro qualquer agravamento de
tensão ou animosidade social ou racial que possa ser correlacionado, direta
ou indiretamente, com tais medidas de democratização do ensino público
superior.
Contudo, o ato normativo em questão foi impugnado no
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através da Representação
de Inconstitucionalidade nº 09/2009, proposta pelo Deputado Estadual
Flávio Nantes Bolsonaro, do Partido Progressista (PP/RJ).
Na referida representação (autos em anexo – doc. 2),
postulou-se a declaração de inconstitucionalidade, em face da Constituição
do Estado do Rio de Janeiro, de toda a Lei Estadual nº 5.346/08. Contudo,
na petição inicial (fls. 02/22), foram questionadas apenas as cotas étnicas,
que criaram reserva de vagas em favor de negros e indígenas, o que, salvo
melhor juízo, configura hipótese de inépcia.
Como se percebe da leitura da citada petição inicial,
toda a argumentação do representante é relacionada a normas e valores
hospedados na Constituição Federal, notadamente o princípio da isonomia,
a vedação de discriminações raciais, o acesso igualitário ao ensino e a
proteção à segurança jurídica. É verdade que o representante fez referência
também a preceitos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que
reproduzem os comandos pertinentes da Constituição Federal – são normas
de reprodução obrigatória - algumas vezes com pequenas variações de
redação. Porém, verifica-se claramente que inexiste na sua impugnação
6
qualquer questão que não se reconduza diretamente à Constituição da
República.
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, em decisão proferida por 12 votos a 7, em 25/05/2009, concedeu
a medida cautelar pleiteada na referida Representação, por decisão da lavra
do Desembargador Joaquim Carlos S. Murta Ribeiro, que tem a seguinte
ementa:“REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONA-LIDADE DA LEI 5346/2008 – APRECIAÇÃO DE LIMINAR NO SENTIDO DE SUSPENDER A EFICÁCIA DESTE DIPLOMA LEGAL QUE ESTABELECE NOVO SISTEMA DE COTAS PARA INGRESSO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS – PRESENÇA DO FUMUS BONI IURIS ANTE A PROXIMIDADE DO VESTIBULAR E ANTERIORES REVOGAÇÕES DAS LEIS ESTADUAIS Nº 3.534/2000 E Nº 3.708/2001 – PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL NESTE TRIBUNAL ESTADUAL E NO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL – LIMINAR QUE SE CONCEDE PARA SUSPENDER ATÉ A DECISÃO FINAL DE MÉRITO A EFICÁCIA DA LEI ESTADUAL Nº 5.346/2008 ORA IMPUGNADA. Presentes na hipótese os pressupostos legais das medidas cautelares se, como demonstrado nos autos, ocorre plausibilidade da tese exposta, irreparabilidade e insuportabilidade dos danos emergentes do próprio ato impugnado com a realização do certame vestibular 2009. As ações afirmativas, assim denominadas para a inclusão dos menos desfavorecidos, data vênia, não podem ser discriminatórias ao reverso, contrariando expressa disposição da Constituição Estadual em seu artigo 9º, § 1º, que estatui, verbis: “Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, raça, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental, por ter cumprido pena nem por qualquer particularidade ou condição”. Esta a justa posição da hipótese sub examinem. Por igual, testilha a lei estadual impugnada com a Constituição Federal no seu artigo fundamental das garantias individuais: art. 5º, caput, da Constituição Cidadã de 1988,
7
verbis: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, e à propriedade, nos termos seguintes: ... omissis”. A contradição é manifesta quando se tem Lei Ordinária discriminatória por Etnia – Negros e Indígenas –, pela cor - pardos -; convicções filosóficas; e, bem assim, quando ocorre qualquer particularidade ou condição – alunos da rede pública de ensino, pessoas portadoras de deficiência, nos termos da legislação em vigor, filhos de policiais civis e militares; bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço -, o que também é expressamente vedado pela Carta Magna, também no seu artigo 3º, inciso IV: “promover o bem de todos, sem quaisquer preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Certo, outrossim, que não é o regime de cotas a única ação positiva includente nem a melhor. In casu, vulnera-se de rijo o princípio da igualdade de todos perante a lei e, data venia de doutas opiniões em contrário porventura existentes, pretende-se prática afirmativa includente nas Universidades Estaduais, que, como é do conhecimento de todos é o ponto culminante da pirâmide da Educação no Brasil. Em realidade, tais políticas afirmativas deveriam ter lugar no ensino fundamental e médio, reservando-se às Universidades o critério de mérito. Porque então não aplicar na espécie outras práticas includentes, como o sistema de Bolsas de Estudos? A Lei impugnada, como posta, cria, na verdade, numa proporção de 45% das vagas, privilégios não só para os Afrodescendentes e Índios – aqui numa direta relação com a Etnia, criando-se um “apartheid” até então inexistente em nosso País -, mas, também, para alunos provenientes da rede pública de ensino; pessoas portadoras de deficiência; e filhos de policiais civis e militares e inspetores de segurança da Administração Penitenciária, nesta parte, contrariando de forma cabal e inafastável a parte final do § 1º do Artigo 9º da Constituição Estadual e o inciso IV do art. 3º da Constituição Federal. Em sede do exame liminar só estes argumentos são suficientes para tornarem presentes os pressupostos legais das medidas de urgência: a plausibilidade da tese exposta, o fumus boni iuris, bem como a irreparabilidade dos danos
8
emergentes, o periculum in mora, isto, face a proximidade do certame vestibular. Precedentes jurisprudenciais na Argüição de Inconstitucionalidade Incidenter Tantun nº 15/2009 e no Exame da Liminar do Agravo 2008.02.012162-1 no Mandado de Segurança nº 2008.50.01.007305-5. Liminar, pos, que se defere.”( fls. 97/100 dos autos em anexo)
Posteriormente, apreciando questão de ordem suscitada
pelo Estado do Rio de Janeiro, o Órgão Especial atribuiu eficácia ex nunc à
referida medida cautelar, para excluir da sua incidência o vestibular em
curso das universidades mantidas pelo Estado do Rio de Janeiro (fls.
545/548 dos autos anexo).
Diante dessa decisão, diversas entidades da sociedade
civil e do movimento negro, encabeçadas pela Educafro, encaminharam à
Procuradoria-Geral da República a anexa representação (doc. 3),
postulando a propositura de ADPF no STF, “a fim de garantir a
manutenção e permanência das políticas de ações afirmativas já adotadas
e bem sucedidas pela UERJ e demais instituições de Ensino Público do
Brasil”.
No momento, a instrução processual da Representação
de Inconstucionalidade nº 009/2009 já foi concluída no TJ/RJ, e o seu
julgamento definitivo pode ocorrer a qualquer momento.
Sem embargo, a medida cautelar proferida pelo Órgão
Especial do TJ/RJ já instaurou grave insegurança jurídica em relação à
política de ação afirmativa em discussão. Isto porque, além da importância
real e simbólica do instrumento – a ação direta de inconstitucionalidade – o
Pleno adentrou na discussão do mérito da medida, para desqualificá-la
juridicamente.
Como o primeiro vestibular a que se aplica a Lei
5346/2008 ainda está em curso, não há precedentes de controle incidental
9
de constitucionalidade envolvendo a referida lei. Contudo, a decisão do
TJ/RJ, apesar de inaplicável a este vestibular, é um verdadeiro convite à
judicialização para os candidatos que se sentirem prejudicados com a
política de ação afirmativa em discussão, pois sinaliza que, no âmbito
daquela Corte, será praticamente certo o êxito, em eventuais impugnações
aos resultados do certame. Por outro lado, gera grave insegurança para todo
o universo de beneficiários das cotas instituídas pelo legislador
fluminense.
De resto, o Supremo Tribunal Federal discute no
momento a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa no campo
da educação superior. Tramitam na Corte, dentre outras ações, a ADI
3.330-1, em que se analisa a constitucionalidade de medidas de
discriminação positiva previstas no PROUNI; a ADPF 186, em que se
discute a validade das cotas étnicas instituídas pela UnB; assim como o
Recurso Extraordinário 597.285/RS, que trata de políticas de ação
afirmativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Houve,
inclusive, a convocação de Audiência Pública no STF, a ser realizada nos
dias 3 a 5 de março de 2010, para discussão do tema, em louvável
iniciativa do Ministro Ricardo Lewandowski, Relator dos dois últimos
feitos.
Nesse quadro, nada justifica que o Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro, em sede de fiscalização abstrata de
constitucionalidade, se antecipe à iminente decisão do STF sobre o tema
das cotas no ensino público superior, sobretudo quando se percebe a
inclinação da Corte Estadual no sentido de invalidar a decisão do legislador
fluminense, que vem se esforçando por concretizar, no campo da educação
superior, os mandamentos constitucionais de promoção da igualdade
material e do pluralismo.
10
DO DIREITO
O Cabimento da ADPF
A arguição de descumprimento de preceito fundamental
ou ADPF, prevista no art. 102, § 1º, da Constituição Federal, e
regulamentada pela Lei 9.882/99, é cabível quando um ato do Poder
Público causar lesão ou ameaça a preceito fundamental da Constituição, e
não houver qualquer outro meio processual apto a saná-las. Tais
pressupostos estão plenamente configurados na hipótese.
O ato do Poder Público, no caso, é a decisão adotada pelo
Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que, no
julgamento da medida cautelar na Representação de Inconstitucionalidade
nº 009/2009, suspendeu, por suposta incompatibilidade com os princípios
da isonomia e de proibição de discriminação, a aplicação da Lei nº
5.346/08, que instituíra política de ação afirmativa para acesso às
universidades públicas estaduais fluminenses.
A lesão a preceito fundamental resulta do fato de que a
orientação jurisprudencial seguida pelo TJ/RJ afrontou, por interpretá-los
incorretamente, os princípios constitucionais da igualdade substantiva (art.
3º, III e 5º, caput, CF) e da proibição de discriminações arbitrárias (art. 3º,
IV, CF). De mais a mais, ao gerar quadro de grave incerteza jurídica, a
decisão também violou o princípio de proteção à segurança jurídica, que
tem fundamento na cláusula do Estado Democrático de Direito (art. 1º,
caput, CF). Todos estes princípios, pelo papel destacado que possuem no
ordenamento constitucional brasileiro, ostentam indiscutivelmente a
qualidade de preceitos fundamentais.
Já a inexistência de outro meio para sanar a lesão a
preceito fundamental (princípio da subsidiariedade da ADPF, art. 4º, § 1º,
11
da Lei 9.882/99) decorre de duas circunstâncias. Em primeiro lugar, não
cabe Ação Declaratória de Constitucionalidade - nem existe qualquer outro
instrumento na nossa jurisdição constitucional – para reconhecer a
constitucionalidade de ato normativo estadual, uma vez que a Carta de 88
autorizou apenas a propositura da ADC que vise à declaração de
constitucionalidade de norma federal (art. 102, I, “a”, in fine, CF).
Tampouco existe qualquer outro meio hábil para impugnar
a citada decisão judicial. É verdade que cabe recurso extraordinário das
decisões definitivas proferidas pelos Tribunais de Justiça na fiscalização
abstrata de constitucionalidade dos atos normativos estaduais e municipais,
em face das constituições estaduais. Porém, esse recurso é incabível em
relação às decisões que apreciam os pedidos de medida cautelar, na linha
da jurisprudência do STF2, que se encontra sedimentada em sua Súmula
735.
Por outro lado, a posição majoritária do STF também não
admite o manejo do incidente de suspensão de liminar, previsto no art. 4º
da Lei nº 8.437/92, para sustar os efeitos de decisão de Tribunal de Justiça
proferida em sede de controle abstrato de lei municipal ou estadual3.
Daí por que o pressuposto da subsidiariedade da ADPF se
encontra plenamente configurado no caso.
O arguente não ignora a orientação do STF, que demanda a
existência de ampla controvérsia jurisprudencial a propósito da validade de
um ato normativo, para a admissibilidade da ação declaratória de
constitucionalidade.4 Tal exigência justifica-se tendo em vista o princípio
de presunção de constitucionalidade das leis. Como o exercício da
jurisdição constitucional não pode se confundir com mera consulta 2 RE 570610/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ 23/05/2008; AI 638462 ED/DF, Rel. Min. Menezes Direito, Primeira Turma, DJ 07/05/2009 3 Susp. Lim. 10 AgR/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ 16/04/2004; Pet 1534 AgR/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 09/11/2001.4 Questão de Ordem na ADC nº 1, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 157/1.
12
formulada à Corte Suprema, só se justifica a propositura da ADC diante da
configuração de um estado de incerteza sobre a validade da norma
discutida, que abale aquela presunção, o qual se evidencia pela existência
do dissídio pretoriano.
Contudo, cabem aqui algumas rápidas considerações.
Em primeiro lugar, a presente ação, embora almeje a declaração de
constitucionalidade de um ato normativo, não é uma ADC, mas uma
ADPF, e há diferenças entre os pressupostos dessas duas medidas. Por
outro lado, não há dúvida de que, pela sua própria natureza, uma decisão
proferida no âmbito do controle abstrato de normas, dotada de eficácia
erga omnes, que suspende a aplicação de um ato normativo, apontando-lhe
diversas supostas inconstitucionalidades, já é mais que suficiente para
instaurar um estado de incerteza a propósito da validade da lei em questão,
justificando a postulação de reconhecimento da sua constitucionalidade.
Além disso, é certo que a Lei 5346/08 apenas introduziu
mudanças pontuais no sistema de cotas adotado nas universidades estaduais
fluminenses, e, antes do seu advento, já existia ampla controvérsia judicial
a propósito da constitucionalidade das normas estaduais que disciplinavam
a questão5.
Finalmente, seria excessivo formalismo deixar de
admitir a presente ADPF, considerando que uma das mais importantes
controvérsias constitucionais no país, travada não apenas nos tribunais
judiciais, mas também na opinião pública e na sociedade civil, é
exatamente a propósito do tema de fundo da presente ação: a legitimidade
das políticas de ação afirmativa no ensino público superior. Aliás, não foi
por outra razão que o Ministro Ricardo Lewandowski decidiu convocar
uma audiência pública no STF, para discussão da questão. 5 A favor da constitucionalidade, os seguintes acórdãos doTJ/RJ: Ap. Civ. 32610/2003, 12910/2004, 26268/2004, e 42897/2005. Em sentido contrário: Ap. Civ. 3512/2004, 4268/2004, e 23440/2005.
13
Porém, caso esta Corte entenda inadmissível o pedido de
declaração de constitucionalidade da Lei 5.346/08 do Estado do Rio de
Janeiro, pela ausência de demonstração de dissídio pretoriano sobre a sua
validade, ou por qualquer outra razão – hipótese que se levanta apenas para
argumentar - caberá ainda apreciar a postulação subsidiária, de invalidação
da decisão do Órgão Especial do TJ/RJ, que concedeu a medida cautelar na
Representação de Inconstitucionalidade nº 09/2009, suspendendo a eficácia
do referido ato normativo.
Igualdade e Ação Afirmativa no Sistema Constitucional Brasileiro
O princípio da igualdade, tal como concebido no sistema
constitucional brasileiro, não só é compatível, como, em determinadas
situações, até reclama a promoção de políticas de ação afirmativa, para
superação de desigualdades profundamente entrincheiradas nas nossas
práticas sociais e instituições.
A Constituição de 1988 insere-se no modelo do
constitucionalismo social, no qual não basta, para observância da
igualdade, que o Estado se abstenha de instituir privilégios ou
discriminações arbitrárias. Pelo contrário, “parte-se da premissa de que a
igualdade é um objetivo a ser perseguido através de ações ou políticas
públicas, que, portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveito dos
grupos desfavorecidos”.6
Em outras palavras, o constituinte não ignorou a
profunda desigualdade que viceja na sociedade brasileira. Antes, propôs-se
6Daniel Sarmento. “Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial”. In: Flávia Piovesan e Douglas Martins (Coord.). Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 66.
14
a combatê-la energicamente, o que se evidencia pela própria linguagem
empregada no texto constitucional, em que muitos dos preceitos
relacionados com a igualdade foram redigidos de forma a denotar a
necessidade de ação7. Como salientou Carmem Lucia Antunes Rocha,
“(...) a Constituição brasileira tem, no seu preâmbulo, uma declaração que apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a idéia de que não se tem a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi ali elaborado para que se chegue a tê-los (...)Verifica-se que os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. (...) Somente a ação afirmativa, vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito possibilita a verdade do princípio da igualdade que a Constituição assegura como direito fundamental de todos.”8 .
A própria Constituição, aliás, consagrou expressamente
políticas de ação afirmativa em favor de segmentos sociais em situação de
maior vulnerabilidade. Para citar os dois exemplos mais evidentes, o art. 7º,
XX, da Carta, que prevê “a proteção do mercado de trabalho da mulher,
mediante incentivos específicos, nos termos da lei”, bem como o seu art.
37, VIII, segundo o qual “a lei reservará percentual dos cargos e
empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá
critérios para a sua admissão”.
Por outro lado, a Constituição de 1988 não encampou
uma visão puramente econômica da desigualdade. O constituinte sabia que
a opressão e a injustiça também são produzidas e reproduzidas no âmbito
7Cf. Marco Aurélio Mendes de Faria Mello. “Óptica Constitucional: A Igualdade e as Ações Afirmativas”. In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 11/20. 8“Ação Afirmativa: O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica. In: Revista Trimestral de Direito Público nº 15, 1996, p. 93/94
15
cultural, e que, portanto, para perseguir a igualdade, é necessário atuar não
apenas no campo da distribuição de bens escassos, como também na esfera
do reconhecimento e valorização das identidades dos grupos não
hegemônicos no processo social.9 Esta concepção se revela com nitidez
nos arts. 215 e 216 da Lei Maior, que determinam a valorização das
contribuições indígenas e afrobrasileiras à cultura nacional.
Nesse contexto normativo, o art. 3º, inciso IV, da Carta,
ao vedar os preconceitos de “raça, sexo, cor, idade, e outras formas de
discriminação”, não pode ser visto como um empecilho para a instituição
de medidas que favoreçam os grupos e segmentos que são costumeiramente
discriminados, ainda que tais medidas adotem como fator de desigualação
qualquer destes critérios.
Portanto, entre as duas interpretações que disputam
espaço no direito antidiscriminação – a perspectiva antidiferenciação10 e a
perspectiva antisubordinação11 - não há dúvida de que é a segunda a mais
harmônica com o sistema de valores em que se assenta a Constituição
brasileira, bem como a mais consentânea com a realidade de um país
fortemente marcado pela desigualdade, em todas as suas dimensões.
9Sobre a relação entre justiça e reconhecimento veja-se Nancy Fraser. “Redistribuição, Reconhecimento e Participação: Por uma Concepção Integrada da Justiça”. In: Daniel Sarmento, Daniela Ikawa e Flávia Piovesan (Coords.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 167-190. 10Nas palavras de Roger Raupp Rios, “a perspectiva da antidiferenciação, como indica o próprio nome, reprova tratamentos diferenciados (prejudiciais ou benéficos) em favor de quem quer que seja, considerados os critérios proibidos de discriminação. Ela se preocupa com a neutralidade das medidas tomadas por indivíduos e instituições”, sendo portanto “hostil à idéia de ações afirmativas em favor de certos grupos, considerando-as discriminatórias em relação aos grupos não-beneficiados” (Direito da Antidiscriminação: Discriminação direta, indireta e ação afirmativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 33). 11Ainda de acordo com Roger Raupp Rios, a perspectiva antisubordinação “reprova tratamentos que criem ou perpetuem situações de subordinação. Ela admite tratamentos diferenciados, desde que estes objetivem superar situações de discriminação, assim como considera discriminatórios tratamentos neutros que reforcem a subordinação de quem quer que seja (...) Primordialmente, ela se preocupa com os efeitos sofridos por grupos subordinados em virtude das práticas recorrentes , ainda que não intencionais. A perspectiva da antisubordinação, por conseguinte, admite ações afirmativas, sempre que estas se revelarem necessárias e eficazes no combate à situação de subordinação, não as considerando discriminatórias em face de grupos privilegiados”. (Op. cit., p. 36/37).
16
Em resumo, tem perfeita aplicação ao ordenamento
brasileiro a magistral definição de Ronald Dworkin, de que o respeito à
igualdade não consiste em tratar as pessoas de modo igual, mas sim em
tratá-las como iguais, merecedoras do mesmo respeito e consideração. Mas
tratar as pessoas como iguais pressupõe muitas vezes favorecer, através de
políticas públicas, àquelas em situação de maior vulnerabilidade social.
● É neste sentido que o legislador brasileiro, nas diversas
esferas da federação, vem promovendo inúmeras políticas de ação
afirmativa em favor de grupos mais vulneráveis ou estigmatizados, como as
pessoas com deficiência, mulheres, idosos, negros e indígenas etc, em áreas
variadas como acesso ao mercado de trabalho, à educação superior e às
candidaturas nas eleições proporcionais. O próprio Supremo Tribunal
Federal, quando presidido pelo Ministro Marco Aurélio, instituiu política
de ação afirmativa na seleção de empresa para prestação de serviços de
comunicação social à Corte, exigindo que pelo menos 20% do seu quadro
de jornalistas fosse composto por afrodescendentes12.
No campo da educação superior, nada menos do que 82
instituições públicas de ensino adotam, atualmente, políticas de ação
afirmativa para favorecer o acesso, às suas vagas, a integrantes de grupos
desfavorecidos. Essa orientação, de resto, foi estabelecida no Plano
Nacional de Educação, instituído pela Lei nº 10.172/01, que previu a
necessidade de criação de “políticas que facilitem às minorias, vítimas de
discriminação, o acesso à educação superior, através de programas de
compensação de deficiências de sua formação escolar anterior,
permitindo-lhes, desta forma, competir em igualdade de condições nos
processos de seleção e admissão a esse nível de ensino” (item 19).
12 Edital de Licitação para a Concorrência nº 03, de 2001.
17
E a jurisprudência do STF tem orientação francamente
favorável às políticas de ação afirmativa. No julgamento da ADI 1.276-
2/SP, a Corte, por unanimidade, considerou válida a concessão de benefício
fiscal, no que concerne ao IPVA, a empresas que tivessem pelo menos 30%
dos seus empregados com idade superior a 40 anos. No voto do Relator,
Ministro Octavio Gallotti, consignou-se: “Os homens são desiguais na
sociedade e na natureza, tanto quanto as coisas, os lugares, os fatos, as
circunstâncias. O princípio da igualdade jurídica não traduz, no campo do
direito, como uma opinião atrasada ou tendenciosa quer fazer crer, o
desconhecimento desta igualdade natural. É antes um esforço para
balanceá-la, compensando o jogo das inferioridades e superioridades, de
modo que elas não favoreçam também uma igual proteção jurídica.”13
Na mesma linha, a 1ª Turma do STF, no julgamento do
Recurso. Ordinário em Mandado de Segurança 26.071-1, Relator Ministro
Carlos Britto, afirmou, por unanimidade: “A reparação ou compensação
dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica
constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da
sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de
1988.”14
E o voto do Ministro Carlos Britto, proferido no
julgamento, ainda inconcluso, da ADI nº 3.330-1/DF, em que houve a
impugnação de normas do chamado PROUNI, que instituíram medida de
ação afirmativa, inclusive com corte étnico/racial, também enveredou pelo
mesmo caminho:
“Esta possibilidade de o Direito legislado usar a concessão de vantagens a alguém como uma técnica de compensação de anteriores e persistentes
13 DJ de 15.12.1995. A citação é do julgamento da Medida Cautelar na ADI, que foi corroborada no julgamento definitivo, realizado em 29 de agosto de 2002. 14 Julgamento em 13.11.2007.
18
desvantagens factuais não é mesmo de se estranhar, porque o típico da lei é fazer distinções. Diferenciações. Desigualações. E fazer desigualações para contrabater renitentes desigualações. É como dizer: a lei existe para, diante dessa ou daquela desigualação que se revele densamente perturbadora da harmonia ou do equilíbrio social, impor outra desigualação compensatória.”
A Normativa Internacional e as Políticas de Ação Afirmativa
O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais,
devidamente incorporados ao nosso ordenamento, que são expressos no
reconhecimento da validade da promoção de políticas de ação afirmativa
com o objetivo de promoção da igualdade. É o caso da Convenção sobre
Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (art. 1º, item 4), da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher (art. 4º), e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência (art. 5º. Item 4).
Destaque-se aqui, por pertinente, a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, devidamente incorporada ao ordenamento interno brasileiro com
hierarquia supralegal. Tal Convenção é expressa ao autorizar, no seu art.
1º, item 4, as políticas de ação afirmativa baseadas em critério racial para
favorecimento de indivíduos e grupos em situação de desvantagem:
“4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos de indivíduos que necessitem de proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de
19
direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.”
Vale também ressaltar a Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência – a primeira incorporada pelo Brasil seguindo
o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Lei Maior, e que, por isto, se
reveste de hierarquia constitucional. Dita Convenção é também
peremptória ao avalizar as políticas de ação afirmativa:
“ Artigo 5 Igualdade e não-discriminação
1. Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei................omissis
4. Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não deverão ser consideradas discriminatórias.”
Este quadro reforça o argumento no sentido da
constitucionalidade da Lei 5.346/2008.
Alguns Argumentos Adicionais em Favor da Ação Afirmativa no
Acesso ao Ensino Público Superior
Um argumento fundamental em favor da
constitucionalidade das políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino
superior é o de que se trata de promoção da igualdade substantiva, objetivo
20
fundamental no contexto de um Estado Social, e de uma sociedade que se
pretende justa e solidária.
Sabe-se que os processos seletivos das universidades
públicas tenderam, historicamente, a privilegiar a elite econômica,
composta quase exclusivamente de pessoas brancas. As provas de
vestibular favorecem aqueles que estudaram nas melhores escolas – no
Brasil, quase invariavelmente privadas - que são caras, e portanto,
inacessíveis aos membros dos grupos desprivilegiados, compostos
majoritariamente pelos afrodescendentes.
Nesse contexto, cotas para os integrantes destes grupos
desfavorecidos são medidas importantes para viabilização do acesso mais
igualitário à universidade pública.
Outra justificativa relevante para a ação afirmativa no
ensino superior é a promoção do pluralismo. Esse argumento, que teve
grande peso no debate judicial15 e filosófico16 norte-americano , é
inteiramente pertinente à realidade brasileira. Afinal, vivemos em um país
que tem como uma das suas maiores riquezas a diversidade étnica e
cultural. Porém, para que todos se beneficiem dessa valiosa riqueza, é
preciso que haja um contato real e paritário entre pessoas de diferentes
etnias e egressas de variadas realidades sociais. É necessário romper com o
modelo informal de segregação, que exclui o pobre, o negro e a pessoa com
deficiência da universidade, confinando-os a posições subalternas na
sociedade. Especialmente no ensino, o convívio com a diferença torna a
formação e o aprendizado do estudante uma experiência mais rica e
frutífera para todos, e não apenas para os beneficiários da política de ação
afirmativa.
15 No primeiro precedente importante em matéria de ação afirmativa nos Estados Unidos – caso Bakke v. Regents of the University of Califórnia, julgado em 1978, o argumento do pluralismo desempatou o julgamento, para justificar políticas racialmente sensitivas para acesso ao ensino superior. 16 Cf. Michael J. Sandel. “Arguing Affirmative Action”. In: Public Philosophy: Essays on Morality in Politics. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 101-104.
21
As políticas de ação afirmativa para acesso ao ensino
superior também são positivas na medida em que quebram estereótipos
negativos, como os que veem os negros como indivíduos predestinados a
exercerem papéis subalternos na sociedade, ou as pessoas com deficiência
como “fardos sociais” ou como “coitadinhos”, incapazes de uma vida
produtiva. A aplicação dessas políticas aumenta a chance de sucesso dos
seus beneficiários, fazendo com que as crianças e jovens negras ou
portadoras de deficiência passem a ter cada vez mais exemplos de
indivíduos semelhantes desempenhando papéis de destaque social, em que
possam se inspirar. Isso contribui para o fortalecimento da sua auto-estima
e para que se desfaçam preconceitos ainda muito incrustados na sociedade
brasileira.
Outro argumento relevante é o da justiça compensatória,
sobretudo em relação aos candidatos negros e com deficiência. Quanto aos
primeiros, não há dúvida de que os vários séculos de escravidão, e as
fundas cicatrizes que deixaram na estrutura sócio-econômica e cultural do
país, contribuíram decisivamente para o quadro de desigualdade material
que penaliza os afrodescendentes no Brasil, inclusive no que tange ao
acesso ao ensino superior. Nesse contexto histórico, justifica-se ainda mais
o esforço estatal, no sentido da promoção da igualdade étnico/racial.
No que tange às pessoas com deficiência, não há dúvida
de que os sofrimentos que padecem não decorrem apenas dos
impedimentos resultantes da sua condição, como também das barreiras
atitudinais e ambientais existentes numa sociedade ainda profundamente
excludente17. Essas barreiras, impostas pela ação ou pela omissão do Estado
e da sociedade, comprometem gravemente a possibilidade de que pessoas
17 Neste sentido, é preciso o item “e” do Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ao reconhecer que “a deficiência resulta da interação entre as pessoas com deficiência e barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena e eftiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.
22
com deficiência concorram, em igualdade de condições, a uma vaga no
ensino público superior. Trata-se de uma razão adicional para a
admissibilidade das cotas em favor das pessoas com deficiência no acesso
às universidades públicas, que podem ser vistas também como uma
compensação às barreiras que a sociedade e o Estado impõem à inclusão
educacional desses indivíduos.
Finalmente, outro argumento de peso é o da
razoabilidade na alocação dos recursos públicos. Sabe-se que o custeio do
ensino superior impõe um elevado ônus econômico ao Estado. Será que,
numa ordem jurídica que se propõe a instaurar uma sociedade livre, justa e
solidária, é razoável que esses recursos revertam para as elites de sempre,
perpetuando o quadro de injustiça social que caracteriza o país? Parece
óbvio que a alocação dos recursos públicos, também na área do ensino
superior, não pode prescindir de considerações sobre os destinatários finais
dos gastos estatais, o que justifica a busca de critérios que visem a
favorecer os grupos tradicionalmente excluídos do acesso às universidades
públicas.
Ação Afirmativa e Meritocracia
Um argumento frequentemente invocado contra as
políticas de ação afirmativa no acesso às universidades públicas é o de que
tais medidas seriam incompatíveis com o sistema meritocrático, acolhido
na Lei Maior, que prevê que “o acesso aos níveis mais elevados de ensino”
devem se dar de acordo com a “capacidade de cada um”.
O raciocínio apenas teria procedência se as formas de
ingresso nas universidades brasileiras de hoje efetivamente medissem
apenas as capacidades de cada candidato. Ele só seria válido se elementos
como a pobreza, a péssima qualidade do ensino público fundamental e
23
médio, o preconceito e desigualdade racial e as barreiras existentes para as
pessoas com deficiência não contaminassem profundamente os
procedimentos ditos meritocráticos, como os concursos de vestibular,
desigualando as oportunidades dos concorrentes.
Mas não é isso o que ocorre. Aqui, pode-se parafrasear o
Presidente norte-americano Lyndon Johnson, que, em célebre discurso
proferido em 1965, no qual cunhou a expressão “ação afirmativa”
(affirmative action), destacou: “Você não pega uma pessoa que durante
anos foi tolhida por correntes, e a liberta, a põe na linha de partida de
uma corrida e então diz – ‘você está livre para competir com os outros’ – e
ainda acredita que está sendo totalmente imparcial. Não é justo o
bastante, neste caso, abrir as portas ou oportunidades.”18.
E, ainda que assim não fosse, o “princípio
meritocrático” não se reveste de natureza absoluta, podendo ceder numa
ponderação diante de outros princípios e interesses constitucionais, como
os que buscam a concretização da igualdade material, a compensação de
injustiças históricas, a promoção do pluralismo no ensino superior e a
quebra de estereótipos negativos sobre minorias estigmatizadas.
Ação Afirmativa no Ensino Superior ou Melhoria no Ensino
Fundamental?: Um Falso Dilema
Outro argumento comumente empregado contra as
políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior, e utilizado na
decisão do Órgão Especial TJ/RJ, é no sentido de que não caberia a adoção
dessas medidas, uma vez que a solução para a inclusão no ensino estaria na
melhoria dos seus níveis inferiores.
18 Cf. Daniel Sarmento. Livres e Iguais. Op. cit., p. 158.
24
Contudo, o argumento padece de um vício lógico, já que
as propostas não são incompatíveis, mas antes se reforçam mutuamente.
Sem dúvida, é um dever do Estado melhorar a qualidade do ensino básico.
Isso, contudo, não excluiu a necessidade de também atuar no âmbito do
ensino superior, sobretudo no afã de democratizá-lo, em favor dos grupos
vulneráveis e historicamente excluídos.
A seguir, alguns argumentos adicionais serão
explorados, focados nas ações afirmativas de corte étnico-racial, seja
porque são elas as mais polêmicas no cenário jurídico-político brasileiro,
seja porque foram o objeto central da impugnação na Representação de
Inconstitucionalidade nº 09/2009.
A Desigualdade Racial no Brasil: Que Democracia Racial?
As relações sociais e a economia nacional se assentaram
durante mais de três séculos sobre a escravidão negra. Após a abolição, em
1888, não se instituiu no Brasil um sistema de segregação oficial, como o
que existia em alguns estados norte-americanos e na África do Sul dos
tempos do apartheid, mas, até alguns anos atrás, nunca tinha sido realizado
no país qualquer esforço de inclusão dos afrodescendentes.
Esse passado deixou cicatrizes profundas na sociedade
brasileira. Atualmente, os negros – aqui incluídos os pretos e pardos –
figuram em situação inferior aos brancos em todos os indicadores sociais
relevantes: renda, expectativa de vida, mortalidade infantil, acesso a
saneamento, taxa de analfabetismo, nível de instrução, etc.19 A proporção
de negros exercendo as funções mais valorizadas na sociedade, nos cargos
de direção e gerência de empresas, nos parlamentos, na magistratura, em
19 Cf. Marcelo Paixão. Novos Marcos para as Relações Raciais. Rio de Janeiro: FASE, 2000.
25
profissões com a Medicina e o Direito, dentre outras, é muito inferior à sua
representatividade no total da população brasileira. Dá-se o oposto na sua
super-representação nos presídios e na sua participação nos índices das
vítimas de homicídio e de violência policial, por exemplo. São precisas,
nesse ponto, as palavras de Joaquim Barbosa:
“Brancos monopolizam inteiramente o aparelho do Estado e nem sequer se dão conta da anomalia que isso representa à luz dos princípios da Democracia. Por diversos mecanismos institucionais raramente abordados com a devida seriedade e honestidade, a educação de boa qualidade é reservada às pessoas portadoras de certas características identificadoras de (suposta ou real) ascendência européia, materializando um tendência social perversa, tendente a agravar ainda mais o tenebroso quadro de desigualdade social pelo qual o país é universalmente conhecido. No domínio do acesso ao emprego impera não somente a discriminação desabrida mas também uma outra de suas facetas mais ignominosas – a hierarquização -, que faz com que as ocupações de prestígio, poder e fama sejam vistas como apanágio os brancos , reservando-se aos negros e mestiços aquelas atividades suscetíveis de realçar-lhes a condição de inferioridade”20
Apesar de condenado socialmente, o racismo continua
marcante nas relações sociais travadas no Brasil. Um racismo muitas vezes
velado, “cordial”, que raramente se exterioriza de forma violenta, mas nem
por isso menos insidioso21, e que se revela com nitidez em alguns
contextos, como na seletividade racial das blitzes policiais.
20 Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 12. 21Nas palavras de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães: “Assim é o racismo brasileiro: sem cara. Travestido em roupas ilustradas, universalistas, tratando-se a si mesmo como anti-racismo, e negando, como anti-nacional, a presença integral do afro-brasileiro ou do índio-brasileiro. Para este racismo, o racismo é aquele que separa, não o que nega a humanidade de outrem; desse modo, racismo para ele, é o racismo do vizinho (o racismo americano)” (Racismo e Anti-Racismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 57).
26
No Brasil, mesmo após a abolição da escravidão,
tiveram grande penetração as idéias racistas, que viam o negro como ser
inferior e acusavam a miscigenação de responsável pelo atraso nacional. A
idéia do “embranquecimento” da população nacional como solução das
mazelas do país foi sustentada por intelectuais do porte de Silvio Romero,
Euclides da Cunha, Paulo Prado, Oliveira Vianna e Nina Rodrigues22.
No início dos anos 30 do século passado, a idéia da
democracia racial, empregada e defendida na petição inicial, surge na obra
clássica de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala23. A tese do pensador
pernambucano era de que as relações raciais no Brasil não seriam tão
opressivas como aquelas existentes em outros países em que também houve
escravidão, porque os contatos sexuais, o grau elevado de miscigenação e
a aproximação cultural teriam levado à inexistência de um fosso tão
marcante entre brancos e negros. No contexto da época, Gilberto Freyre se
opunha aos pensadores racistas, que criticavam a mistura entre as raças no
Brasil, que ele celebrava e via como fator positivo da nossa civilização.
Com o tempo, o mito da democracia racial transformou-
se em retórica oficial, passando a servir como um álibi para que o Estado e
a sociedade brasileira nada fizessem no sentido do combate ao preconceito
e da luta pela inclusão social do afrodescendente. Durante muitas décadas,
a democracia racial constituiu um discurso legitimador da inércia estatal,
que, no seu ufanismo, prestou-se ao papel de proteger o status quo de
injustiça racial, levando a que o problema da brutal desigualdade entre as
raças fosse completamente ignorado no país.
Em boa hora, o Estado brasileiro abandonou esse mito,
reconhecendo a profunda injustiça que permeia a relação entre as raças no
22 Cf. Sergio Abreu. Os Descaminhos da Tolerência: O afro-brasleiro e o princípio da igualdade e da isonomia no Direito Constitucional. Rio de Janeito: Lumen Juris, 1999, p. 5/36.23Casa Grande e Senzala. 46ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2002.
27
Brasil. Nos últimos anos, multiplicaram-se no país as iniciativas voltadas à
inclusão social dos negros, com destaque para a promoção de políticas de
ação afirmativa, sobretudo no acesso ao ensino superior. Tais medidas não
são uma afronta à igualdade, mas resultam do reconhecimento de que a sua
promoção pode e deve envolver uma postura ativa do Estado, em favor de
grupos tradicionalmente excluídos.
A Falácia do Argumento da Inexistência das Raças
Não é preciso ir longe para concordar com a assertiva de
que o critério raça, numa abordagem biológica, carece de cientificidade.
Desde o preâmbulo da Constituição da Unesco de 1945
chegando a inúmeros outros documentos internacionais, com vistas à
eliminação de quaisquer formas de discriminação racial, todos
reconheceram que os seres humanos pertencem a uma mesma espécie e têm
uma mesma origem.
A Convenção para a eliminação de todas as formas de
discriminação raial, adotada pela Resolução 2016 A (XX), da Assembleia
Geral das Nações Unidas, em 21 de dezembro de 1965, e ratificada pelo
Brasil em 27 de março de 1968, assinala em seu preâmbulo:
Doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa,
28
inexistindo justificativa para a discriminação racial, em teoria ou prática, em lugar algum24.
Contudo, da inexistência biológica das raças não decorre
a impossibilidade de que o termo seja usado como resultado de uma
construção histórico-social, voltada para justificar a desigualdade.25
Observa Trina Jones:
Raça é o significado social atribuído a uma categoria. É um conjunto de crenças e convicções sobre indivíduos de um grupo racial em particular. Essas crenças são abrangentes, compreendendo convicções sobre a parte intelectual, sobre a parte física, sobre classe e moral, dentre outras coisas (Shades of Brown: the Law of Skin Color. In: Duke Law Journal, v. 49:1487,200, p.1497)26
O Supremo Tribunal Federal empregou argumentação
muito similar a esta no julgamento do Habeas Corpus nº 82.424/RS, em
que se discutia a possibilidade de punição de editor de livros anti-semitas
pelo crime de racismo. Uma das teses de defesa era a de que os judeus não
constituem raça, o que ensejaria a desqualificação do delito para outro tipo
penal, com o consequente reconhecimento da prescrição. O STF refutou o
argumento, não porque os judeus constituam raça no sentido biológico, mas
porque existe uma construção cultural difundida que assim os identifica,
24No caso Siegfried Ellwanger, o Ministro Gilmar Mendes invocou Kevin Boyle, segundo o qual; reconhecemos hoje que a classificação biológica dos seres humanos em raça e hierarquia racial – no topo da qual encontrava-se certamente a raça branca – era produto pseudo-científico do século XIX. Num tempo em que nós mapeamos o genoma humano, prodigiosa pesquisa que envolveu o uso de material genético de todos os grupos étnicos, sabemos que existe somente uma raça – a raça humana. Diferenças humanas em aspectos físicos, cor da pele, etnias e identidades culturais, não são baseadas em atributos biológicos. Na verdade, a nova linguagem dos mais sofisticados racistas abandona qualquer base biológica em seus discursos. Eles agora enfatizam diferenças culturais e irreconciliáveis como justificativas de seus pontos de vista extremistas (Boyle, Kevin. Hate Speech – The United States versus the rest os fe world? In: Maine Law Review, v. 53:2, 2001, p. 490).25cf. parecer produzido pelo professor Celso Lafer, nos autos do HC 82.424-2 (caso Siegfried Ellwanger). Vale, também, mais uma vez, a observação do Ministro Gilmar Mendes, por ocasião do julgamento, de que historicamente, o racismo prescindiu até mesmo daquele conceito pseudo-científico para estabelecer suas bases, desenvolvendo uma ideologia lastreada em critérios outros.26Extraído do voto do Ministro Gilmar Mendes, acima referido.
29
para tomá-los como vítimas de discriminação e preconceito. No voto do
Ministro Maurício Corrêa, relator daquele memorável julgado, consignou-
se:
“39. Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma científico, qualquer subdivisão da raça humana, o racismo persiste enquanto fenômeno social, o que quer dizer que a existência de diversas raças decorre de mera concepção histórica, política e social, e é ela que deve ser considerada na aplicação do direito. É essa circunstância de natureza estrita e eminentemente social e não biológica que inspira a imprescritibilidade do delito previsto no inciso XLII do artigo 5º da Carta Política.”27
Ação Afirmativa e Harmonia Social
Outro temor infundado é o de que políticas de cotas para
negros poderiam criar no Brasil tensão racial até então inexistente.
O argumento não procede e não possui qualquer lastro
empírico. Já tem mais de uma década a introdução das primeiras políticas
de ação afirmativa focadas em critério racial, e não houve, até o momento,
qualquer episódio sério de tensão ou conflito racial violento no Brasil que
possa ser associado a tais medidas.
Na verdade, os efeitos são inversos. As quotas no ensino
superior aumentam o convívio entre pessoas de raças diferentes, que
viviam em mundos quase segregados, ampliando os espaços para diálogo,
interação e aprendizado recíproco. Ademais, elas atenuam um quadro
crítico de desigualdade, que, este sim, é um solo fértil para a desarmonia e
o ódio racial.
27 Julgamento concluído em 19 de setembro de 2003.
30
A Auto-Declaração como Critério de Seleção dos Beneficiários
das Cotas Étnicas
Num país que tem elevada taxa de miscigenação racial, e
no qual os códigos culturais de tratamento da raça são mais gradualistas do
que binários, a forma de identificação dos beneficiários das cotas raciais
levanta, de fato, um problema complexo.
Porém, a fórmula adotada no ato normativo em discussão,
baseada na auto-declaração, com controle de fraudes, parece bastante
razoável, diante das alternativas existentes.
● Com efeito, critérios genéticos seriam inviáveis, seja
porque a raça, como antes salientado, é um fenômeno cultural e não
biológico, seja pelo elevado nível de miscigenação da população brasileira.
Ademais, como a discriminação racial no Brasil não está associada
exclusivamente à ascendência, mas envolve e amalgama aspectos
fenotípicos, culturais e econômicos28, esses critérios seriam plenamente
arbitrários na promoção da igualdade material.
Parece inequívoco que as classificações raciais devem
incorporar a idéia de auto-declaração, seja porque ignorar a percepção que
cada um tem da própria identidade seria uma violência, atentatória à
própria dignidade da pessoa humana, seja porque o critério encontra-se
previsto no art. 1º, item 1, alínea “a” Convenção 169 da OIT, em vigor no
ordenamento brasileiro.
Por outro lado, a Lei 5.346/08 é expressa ao prever, no
seu artigo 4º, a necessidade de as universidades mantidas pelo Estado do
28 É clássica, no pensamento social brasileiro, a distinção feita por Oracy Nogueira entre o “preconceito de marca” existente no Brasil, em que predomina a discriminação fundada na aparência física, do “preconceito de raça” predominante nos Estados Unidos, focalizado precipuamente na origem biológica Veja-se Oracy Nogueira. Tanto preto quanto branco: Estudos das relações raciais. São Paulo: T.A Queiroz, 1954.
31
Rio de Janeiro adotarem mecanismos para coibição de fraudes na auto-
declaração.
O Respeito ao Princípio da Proporcionalidade e Autocontenção
Judicial
Um dos papéis mais importantes da jurisdição
constitucional é a proteção das minorias estigmatizadas, diante do arbítrio
das maiorias instaladas nos poderes políticos. Nessas situações, os
instrumentos da democracia majoritária tendem a falhar, o que justifica um
maior ativismo judicial, em proteção dos grupos mais vulneráveis.
Porém, quando o Judiciário se depara com normas e
medidas que visam a favorecer grupos minoritários e hipossuficientes, a
sua postura deve ser diferente. Se outros órgãos estatais empenham-se em
promover um objetivo constitucional de magna importância, que é a
inclusão efetiva de minorias étnicas no ensino superior, não deve o Poder
Judiciário frear-lhes as iniciativas, convertendo-se no guardião de um
status quo de assimetria e opressão, a não ser quando haja patente afronta a
normas ou valores constitucionais.
Assentada essa coordenada, chega-se à conclusão de que
as quotas instituídas pela Lei 5.346/08 não ofendem a nenhum dos
subprincípios em que se desdobra o princípio da proporcionalidade.
Quanto à adequação, é evidente que se o objetivo é
promover a inclusão de grupos desprivilegiados no ensino público
superior, a medida encetada é idônea, na medida em que contribui para o
atingimento deste fim.
No que tange à necessidade, não se vislumbra, a priori,
qualquer outra medida que promova com a mesma intensidade a finalidade
perseguida. Políticas públicas de caráter universalista, cegas à cor dos seus
32
beneficários, ou a outras das suas particularidades, por exemplo, são
essenciais para o país, mas não tendem a diminuir as gritantes diferenças
hoje existentes no acesso ao ensino público superior, entre integrantes dos
grupos hegemônicos e as minorias vulneráveis.
Finalmente, no que tange à proporcionalidade em
sentido estrito, cumpre atentar para o valor que tem o ingresso no ensino
superior na emancipação real dos excluídos no Brasil. A admissão em boas
universidades talvez seja a mais importante porta de acesso a funções
socialmente relevantes, que propiciam o empoderamento das minorias
estigmatizadas e a promoção da justiça material.
Em um quadro social de brutal exclusão do negro, do
pobre e da pessoa com deficiência, e no marco de uma Constituição que
tem como obsessão a conquista da igualdade material e o combate ao
preconceito e ao racismo, deve-se reconhecer a extraordinária importância
da promoção dos interesses subjacentes à medida em discussão, na escala
dos valores constitucionais.
Por outro lado, as restrições a outros bens jurídicos
acarretadas pela medida não são tão intensas. Mais da metade (55%) das
vagas das universidades públicas estaduais fluminenses permanece aberta à
disputa em igualdade formal de condições. E os percentuais das cotas não
são tão elevados, considerando-se o quadro empírico subjacente.
● Com efeito, quanto aos negros – aí compreendidos os
pretos e pardos – estes, no Censo de 2000, correspondiam a cerca de 44%
da população do Estado do Rio de Janeiro, de acordo com os dados do
IPEA29. E a cota dos afrodescendentes e indígenas30 é de 20%.
29 Dados obtidos em http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/GeoShowN.30 O número de indígenas no Estado do Rio de Janeiro não é significativo do ponto de vista estatístico, pois existem apenas algumas centenas de indivíduos.
33
Em relação às pessoas com deficiência, elas equivalem a
quase 15% da população do Estado do Rio de Janeiro, de acordo com
dados do Censo de 2000.31 Contudo a cota das pessoas com deficiência que
é compartilhada com os filhos de policiais civis e militares, bombeiros e
inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou
incapacitados em razão do serviço, é de apenas 5%
● O mesmo pode-se dizer em relação aos alunos egressos
de escolas públicas. Embora cerca de 78% dos estudantes no Estado do Rio
de Janeiro estejam matriculados em escolas públicas, percentual que sobe
para mais de 83% se considerarmos apenas o ensino médio32, a cota
destinada aos alunos egressos da rede pública foi fixada pelo legislador em
20%.
Ressalte-se, por outro lado, que a carência econômica é
condição necessária para a fruição da política de ação afirmativa prevista
na Lei 5.346/08, o que visa a evitar que os estudantes da elite, mas
integrantes das categorias beneficiadas, tenham como “pegar uma carona”
na referida medida de inclusão social, o que configuraria evidente desvio
de finalidade.
Finalmente, o legislador estadual teve o cuidado de
prever medidas visando a propiciar a efetiva possibilidade de os estudantes
favorecidos pelas cotas permanecerem na universidade e se aproveitarem
dessa oportunidade de inclusão social. Pouco adiantaria assegurar vagas
reservadas, sem proporcionar os meios necessários a que o aluno carente
pudesse estudar e desfrutar do ambiente universitário. Por isso, a Lei
5.436/08 previu medidas importantes, como o pagamento de bolsas de
estudo para os alunos cotistas (art. 3º, inciso I).
31 Dados obtidos em http://www.ibge.gob.br/home. 32 Dados obtidos em http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?sigla=rj&tema=educacao2008
34
Assim, não há qualquer afronta ao princípio da
proporcionalidade, revelando-se razoável e perfeitamente sintonizada com
os valores e o espírito da Constituição de 1988 a política de ação afirmativa
instituída pela Lei 5.346/08 do Estado do Rio de Janeiro.
Da Suspensão da Representação de Inconstitucionalidade nº 009/2009
●
● É firme a jurisprudência do STF, no sentido de que
quando existir impugnação simultânea à constitucionalidade de um ato
normativo estadual no âmbito do Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal, ambas alicerçadas nos mesmos fundamentos, deve a
primeira ser suspensa, até que a segunda seja apreciada pela Corte
Superior33.
Como se sabe, a ADPF, como as demais ações do
controle abstrato de normas, possui efeito dúplice ou ambivalente. Isto
significa dizer que se o pedido em uma ADPF é a declaração da
constitucionalidade de um ato normativo, como ocorre in casu, a sua
improcedência pode resultar na invalidação desse mesmo ato normativo.
Daí por que estão presentes aqui as mesmas razões que
justificam a suspensão do processo na Corte Estadual: a instauração
duplicada de controle abstrato, nas esferas estadual e federal. A não-
suspensão gera o risco de divergência de entendimentos entre os Tribunais,
com a possibilidade de que prevaleça a posição do TJ/RJ sobre a
interpretação do princípio da igualdade, o que contraria toda a lógica do
33 Cf. Ag.Reg. Rcl 425/RJ, Rel. Min. Néri da Silveira: “Em se tratando, no caso, de lei estadual, esta poderá, também, ser, simultaneamente, imugnada no STF, em ação direta de inconstitucionalidade, com base no art. 102, I, letra ‘a’, da Lei Magna Federal. Se isso ocorrer, dar-se-á a suspensão do processo de representação no Tribunal de Justiça, até decisão final do STF.”
35
sistema judicial, que tem o STF em sua cúpula, na função de guardião da
Constituição.
Por isso, o arguente requer que seja determinada a
suspensão da Representação de Inconstitucionalidade nº 09/2009, em
trâmite no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, comunicando-
se imediatamente o fato ao Relator daquele feito, Desembargador Sérgio
Cavalieri.
Da Medida Cautelar
Estão presentes os pressupostos legais para a concessão
da tutela cautelar. Quanto ao fumus boni iuris, ele se consubstancia na
plausibilidade jurídica das teses sustentadas nessa peça, atinentes à
constitucionalidade da Lei 5.346/08 do Estado do Rio de Janeiro.
O periculum in mora, por seu turno, se evidencia diante
da constatação de que, após a decisão proferida pelo órgão Especial do
TJ/RJ, que suspendeu cautelarmente a eficácia do ato normativo em
questão, gerou-se grave insegurança jurídica quanto à política de ação
afirmativa prevista naquela lei. A citada decisão, embora só produza efeitos
a partir do vestibular de 2010, tenderá a provocar a multiplicação de litígios
judiciais envolvendo a aplicação da política pública instituída na Lei
5.346/08, e os efeitos deletérios deste quadro de incerteza não terão como
ser solucionados por ocasião do julgamento definitivo da presente ADPF.
Assim, o arguente postula a concessão de medida
cautelar, para, até o julgamento definitivo dessa ação, sustar os efeitos da
decisão do órgão Especial do TJ/RJ, que suspendeu os efeitos da Lei
5.346/08 do Estado do Rio de Janeiro.
36
DO PEDIDO
Pelo exposto, o arguente espera que a presente ação seja
julgada procedente, a fim de que:
a) seja declarada a constitucionalidade da Lei 5.346/08
do Estado do Rio de Janeiro; ou
b) subsidiariamente, caso a Corte entenda incabível ou
improcedente o pedido acima, seja invalidada a decisão proferida pelo
órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na
Representação de Inconstitucionalidade nº 009/2009, que suspendeu a
eficácia do referido ato normativo.
Brasília, de novembro de 2009.
DEBORAH MACEDO DUPRAT DE BRITTO PEREIRAVICE-PROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA
APROVO:
ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOSPROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
37