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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Maria de Nazareth Agra Hassen Eventos de Letramento em Itapuã/RS Porto Alegre 2005

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Maria de Nazareth Agra Hassen

Eventos de Letramento em Itapuã/RS

Porto Alegre

2005

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Maria de Nazareth Agra Hassen

Eventos de Letramento em Itapuã/RS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação. Orientadora: Prof ª. Drª Carmem Maria Craidy

Porto Alegre

2005

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AGRADECIMENTOS Sou muito grata a todas as pessoas que contribuíram de diferentes maneiras para a conclusão dessa tese

Carmem Maria Craidy Celia Caregnato

Clovis Rossi Dona Baixinha Eliara Levinski

Fabrícia Fernanda Muller

Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã Iole Trindade

Jandira Santos João Manoel Maldaner Carneiro

Julio Machado Leda Tfouni

Lucia Lovato Leiria Luiz Eduardo Robinson Achutti

Marga Comassetto Miriam Lemos

Mônica de Pellegrim Aigner Noeli Reck Maggi

Noia Kern Ondina Fachel Leal

Rafael José dos Santos Roberto Cataldo

Rosângela Barbiani

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RESUMO Na pequena Vila de Itapuã (Viamão/ RS), cuja história é marcada pelo isolamento e exclusão, um grupo de mulheres se associa para criar uma triagem de resíduos sólidos e a seguir institui um curso de alfabetização de adultos. A gênese do Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã (GAMI) e suas iniciativas são analisadas aqui na associação com fatos recentes que mudaram a imagem de Itapuã: a abertura do Parque de Conservação Ambiental e a chegada do asfalto. Tais fatos, captados pela pesquisa etnográfica e lidos na perspectiva do letramento na sua dimensão sócio-histórica, são classificados como eventos de letramento. A percepção de alunos do curso revela uma relação entre oralidade e escrita, pela qual manifestam seu desejo de inserir-se em um momento diferenciado da história da região. Palavras-chave: alfabetização – letramento – etnografia – eventos de letramento ABSTRACT At the small village known as Vila de Itapuã (in Viamão, in the southern Brazilian state of Rio Grande do Sul), which has a history of isolation and exclusion, a group of women gathers to create a process to screen solid waste. Afterwards, they establish a course to teach illiterate adults how to read and write. The genesis of GAMI (Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã or The Itapuã Women’s Action Group) and its efforts are examined here in association with recent facts that have changed Itapuã’s image: the Environmental Preservation Park was opened and the first streets were paved with asphalt. Such facts – captured by ethnographic research and read from perspective of literacy in its socio-historical dimension – are called literacy events. Students’ perception reveals a relationship between orality and writing, through which they articulate their desire to be part of a distinct moment in the region’s history. Keywords: literacy – ethnography – literacy events

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.....................................................................................................................6 1. OS COMEÇOS.....................................................................................................................11 2. ITAPUÃ: DE BELA E ISOLADA A BELA E ATRATIVA ..............................................20

2.1 Práticas de Pesquisa..................................................................................................20 2.1.1 Educação e Antropologia .................................................................................20 2.1.2 A etnografia ......................................................................................................25

2.2 A Chegada à Vila: passar a vida em.........................................................................33 2.2.1 Em busca do contexto, a Vila de Itapuã ...........................................................36 2.2.2 A parte urbana ..................................................................................................51

2.3 Itapuã, paraíso ecológico ou a construção do Olhar................................................60 3. POR UMA COMPREENSÃO DE LETRAMENTO...........................................................66

3.1. Introdução................................................................................................................66 3.2 Cultura oral, cultura escrita ......................................................................................72 3.3. Alfabetização, alfabetizações... letramento ..............................................................84 3.4. Letramento, letramentos ...........................................................................................90

3.4.1. O mito, a "divide", os modelos.........................................................................94 3.5 Analfabetismo, Iletrismo ........................................................................................111 3.6. Conclusão ...............................................................................................................116

4 A EDUCAÇÃO NA VILA DE ITAPUÃ E O GRUPO ATUANTE DE MULHERES DE ITAPUÃ / GAMI....................................................................................................................119

4.1 A educação na Vila de Itapuã e os antecedentes do GAMI....................................119 4.2 GAMI, Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã .......................................................124 4.3 Os alfabetizandos do GAMI...................................................................................127 4.4 Vidas modestas, pequenas histórias .......................................................................136

4.4.1 Alfabetizar-se para falar melhor .....................................................................162 4.5. Eventos de Letramento ...........................................................................................164 4.6 Conclusão ...............................................................................................................174

CONCLUSÃO........................................................................................................................177 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................183 ANEXOS................................................................................................................................189

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APRESENTAÇÃO

Esta tese procura reunir dois campos do conhecimento em sentido amplo:

educação e antropologia. Talvez dessa confluência resultem algumas dívidas, assim

como talvez resulte uma aposta na continuidade de tal interlocução, que por sua vez

venha a saldá-las.

Fiz a opção pelo “eu” narrador e imaginei que os leitores da tese pudessem

viver os fatos nela contidos, na medida do possível, acompanhando o percurso que fiz

até concluí-la. Ainda que tenha feito um estudo conceitual, tomando por referência a

noção de letramento, quis garantir a idéia de que é um estudo sobre pessoas.

Ambientada num local com passado, com história, onde há tristeza, pobreza,

equívocos, mas também dignidade, alegria, prazer e amor à vida, a tese pretende

traduzir um pouco disso tudo e também o encontro intersubjetivo, com as marcas que

deixou nos envolvidos. Itapuã, a pequena comunidade mais ao sul de Porto Alegre,

lócus deste estudo, ainda produz em mim sentimentos contraditórios, ora de

indignação, ora de respeito e na maior parte das vezes o sentido do aprender.

Um pouco disso tudo é inerente à antropologia, porque este é o sentido de

estarmos em campo. E um pouco disso é inerente à educação, a partir de quando

reconhecemos que a aprendizagem não tem direção, nem hierarquia: desde que

estamos, estamos aprendendo.

A tese apresenta uma etnografia de Itapuã e um caso etnográfico sobre um

grupo de mulheres que se associou para formar o Grupo Atuante de Mulheres de

Itapuã / GAMI. O interesse recaiu sobre esse grupo em razão de ter partido dele a

primeira experiência de alfabetização de adultos da região.

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Algumas observações presentes na etnografia provêm de tempos em que

ainda não pensava em fazer naquele lugar uma pesquisa, mas apenas passava os fins

de semana e férias no sítio adquirido para lazer. Mas nestes tempos, e já se vão quase

dez anos, Itapuã já se me apresentava como um lugar no mínimo curioso. As razões

deste sentimento estão presentes ao longo da tese, mas principalmente no capítulo

“Itapuã: de bela e isolada a bela e atrativa”, em que apresento algumas reflexões sobre

etnografia, para a seguir mostrar um pouco da história de Itapuã, sua descrição

etnográfica e o contexto da pesquisa. Itapuã é o sistema mais amplo dentro do qual o

caso do GAMI e sua alfabetização se constitui uma unidade.

Tanto no referido capítulo, quanto no que o antecede, chamado “Os

começos”, aparece um pouco da inserção em campo e das reflexões, nele e depois

dele, produzidas. O capítulo toma como ponto de partida o momento da defesa do

projeto de tese, retomando parágrafos do projeto e os re-situando na fase da escrita

final. Também ali aparecem os comentários de membros da banca de qualificação

desta tese, cujos pareceres estão contidos nos anexos. A razão para isso é valorizar a

fase da qualificação e considerar e responder as críticas e sugestões.

Uma tese tem um autor, mas ela é feita a muitas mãos. Colegas de

orientação, colegas de pesquisa dos grupos de pesquisa institucionais, e a orientadora

não escrevem diretamente, mas influenciam de maneira decisiva no que se vai

escrever. É bem verdade que a ressalva obrigatória garante que a responsabilidade

pelos erros é sempre do dono da caneta, hoje, dono do teclado. De qualquer forma,

nesta parte, tentei contemplar outros olhares, dentre os quais o da estudante de

pedagogia, itapuense e minha bolsista de iniciação científica, que contribuiu com

relatos e análises.

O capítulo terceiro traz um estudo sobre o conceito de letramento, de certa

forma, acompanhando o percurso das leituras que fiz ao tentar clareá-lo para mim

mesma. Um percurso que começou com a questão da escrita, passando pela

alfabetização e suas matizes, para chegar ao conceito de letramento, atualmente tão

citado quanto provocador de controvérsias, ou pior ainda: utilizado com poucos

critérios ou apenas como um termo para a extensão da alfabetização. A opção por um

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determinado enfoque conceitual de letramento não por acaso se vincula com as

possibilidades de análise que a antropologia oferece, isto é, o enfoque privilegiado

pretende driblar o etnocentrismo, que associaria as sociedades ou grupos sem escrita

com atraso ou inferioridade. O fato de a tese apresentar um capítulo todo praticamente

teórico, o que há muito deixou de ser recomendável, só se justificou por esta razão:

porque havia um conceito a ser identificado para que o capítulo seguinte fizesse

sentido.

O letramento de que falarei ao utilizar a categoria eventos de letramento se

prende a sua dimensão sócio-histórica, talvez melhor dizendo sócio-histórico-cultural,

razão pela qual não pode ser pensado como atributo do indivíduo. Sua relação com a

alfabetização vai ser pensada inicialmente no plano teórico e neste caso, alfabetização

e letramento pensados como distintos ainda que interligados.

Tal relação se apresenta concretamente no capítulo seguinte, “A educação

em Itapuã e o Grupo Atuante de Mulheres”. Tento mostrar então que a alfabetização

instituída pelo GAMI tem suas raízes numa certa atmosfera de letramento que toma

forma em Itapuã, a qual defendo que seja resultante da relação mais recente com a

abertura do Parque Estadual de Itapuã, uma área de conservação ambiental, e com a

melhor ligação com Porto Alegre por conta do asfaltamento da estrada RS 118.

São trazidos à cena então os alfabetizandos, um pouco de suas histórias

pessoais e um pouco dos acontecimentos de sala de aula. A pesquisa de campo não foi

tão linear, e as idas a campo variavam de objetivos. Se era dia de aula, observava a

classe, se uma das entrevistadas estava na loja da filha, passava algumas horas com

ela, se havia festa no CTG ou no Hospital Colônia, se era dia de casamento ou festa

religiosa: esses momentos foram parar no caderno de campo, e seus impactos de

alguma forma aparecerão na tese. Às vezes, a pesquisa ficava mais agradável: um

chimarrão na varanda de uma casa em dia de chuva; uma carona no passeio de barco

em dia quente, assistir à aula de educação física dos idosos ou das crianças soltas na

areia da praia. Uma conversa trivial acontece nas tardes depois do almoço. De noite, as

conversas se espicham e se adensam. Enfim, viver com os itapuenses a experiência de

uma vida que transcorre sem pressa.

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Como técnica de coleta de dados, utilizei a observação participante, as

entrevistas e a pesquisa documental. Procuro não classificar as entrevistas naquelas

tipologias escolares, mas entendê-las como o que elas realmente são: conversas, em

que mais pergunto do que respondo. Mas também respondo muito, porque eu e a

pesquisa que faço somos tão investigadas quanto eles. Nos primeiros encontros, de

apresentações, falo mais: me apresento, falo onde moro, estudo e onde fica o meu sítio,

depois apresento a pesquisa, peço consentimento, pergunto se tudo ficou claro (ouvirei

que ficou, mas continuarei tirando dúvidas dia após dia), e faço uma ou duas

perguntas. Nos dias seguintes, costuma ficar mais equilibrado: falo, mas tento mais

escutar. A partir daí não há regularidade, uns entrevistados falam de si, expõem-se

mais, entram em detalhes; outros contam histórias de terceiros, falam do lugar,

teorizam sobre a vida. E há dias e pessoas a quem eu conto coisas que vi e vivi, e elas

querem que eu conte mais. Eu conto. E há pessoas, a maioria, que depois de alguns

encontros e depois de toparmos em eventos locais, falam sem parar. Tudo tem proveito

ou porque se aprende com eles (e não há aqui qualquer demagogia) ou porque se

aprende a partir deles. Somente a observação participante dá ocasião a tais

possibilidades, porque ela garante afinidades (nem que seja a de ter assistido ao

mesmo desfile, estado no mesmo baile, ter sentado junto no banquinho do cartório,

esperado na fila do salão paroquial, assistido à mateada da praça, esperado o pôr-do-

sol na praia), e as afinidades é que dão assunto, conferem sentido a um trabalho que é

feito com. Tedlock (1988) dirá que “o domínio das Ciências Sociais se caracteriza

como um repertório de conhecimento e expectativas ou cultura comum, que foi

compartilhado com os participantes e foi criado a partir da interação dos mesmos."

(Tedlock, 1988, p. 184).

Uma compreensão mais ampla de Itapuã ainda se ficará devendo, e um

estudo restrito de etnografia do lugar resta ser completado. Isso incluiria um estudo

mais detalhado de levantamentos sobre as grandes temáticas - trabalho, família,

política e religião. O estudo de Itapuã que a seguir virá é perspectivista, pois pretendi

compreender o ethos itapuese a partir da ótica da alfabetização e seus processos.

O que me pareceu mais interessante neste estudo foi o fato de a realidade

ter-se ido descortinando aos poucos, e a condição de fazer descobertas e propor

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relações entre fatos macrossociais e atitudes coletivas ter sido alcançada a partir de

longos momentos de diálogos com interlocutores ou de reflexões, e suas idas e vindas,

para tentar entender essa realidade.

Enfim, o estudo que segue tentou compreender uma realidade a partir de um

recorte e tem como pretensão a proposta de uma pesquisa que relacione educação e

antropologia, como saberes complementares, servindo de elo o conceito de letramento.

Ao fim de cada capítulo, algumas fotografias ilustram o texto, e por

entender que estão associadas a informações já dadas, as legendas são citações de

partes da própria tese.

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1. OS COMEÇOS

Do projeto de tese à tese; da pesquisa como processo não linear

Quando redigi o projeto que deu origem a esta tese, tentei localizar na memória

em que momento essa investigação começou a se constituir como experiência. Na ocasião,

narrei um fato que presenciei, cuja síntese é a que segue:

“O homem vestia um terno que os mais antigos ainda chamam de fatiota. A ocasião não

permitia menos: era casamento, e o homem era testemunha da parte civil. Neste dia, eu estava no

cartório de Itapuã, zona rural de Viamão, onde faria uma consulta ao tabelião e aguardava a vez na

sala de espera, que fica nos fundos da casa do cartório, no momento em que o homem entrou.

Estava sozinho, surgiu rápido e quase furtivo. Dirigiu-se à funcionária, sacou do bolso interno do

casaco alguma coisa que não distingui bem, mas que parecia uma caderneta. Mostrou à moça e

perguntou: para ser testemunha, pode ser uma assinatura assim? e mostrou, pelo pouco que pude

discernir, uma carteira do trabalho. A moça olhou e respondeu que podia. Não convencido, pediu

confirmação: Mesmo desse jeito assim... pode ser? Ela confirmou mais enfática: Pode! Então, ele

guardou o documento no bolso e saiu com a mesma rapidez com que entrara. Toda a cena não

durou mais do que trinta segundos, mas aquilo que tanto o constrangeria no seu grupo de amigos e

principalmente no ápice da cerimônia de casamento - sua dificuldade com o alfabeto - ficou claro

para nós, que, pelo menos, éramos desconhecidos com quem ele talvez nunca mais viesse a

cruzar.”

Depois o texto do projeto seguia com um comentário sobre o acontecido ao qual

se justapunham outros fatos vividos ou de que fui tomando conhecimento por meio de

depoimentos:

“Ninguém tem dúvidas de que, numa sociedade letrada, o analfabetismo ou o semi-

analfabetismo são marcas do indivíduo que estigmatizam, que o expõem à reprovação geral. Essa

reprovação, ou a sua sensação, evidencia-se sobretudo quando ele é sujeitado a situações em que se

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somam ao seu grupo de pertencimento os representantes do mundo letrado, pois serão esses que

criarão a ocasião de desvelamento da sua condição e que se mostrarão mais surpresos com a

resposta negativa. É quando a professora pergunta diante de todos, e o aluno não sabe, que a

vergonha fica mais dolorosa. Mesmo que nenhum outro saiba. Mesmo que a questão seja

complexa. A vergonha se apresenta e se coloca no lugar do pensamento: desmoralizando,

embotando, e, por fim, aniquilando. “A mente se fecha e não vem mais nenhuma idéia”, disse uma

senhora de meia idade, doméstica, aluna aplicada, ao analisar seu próprio constrangimento sempre

que lhe dirigem uma pergunta que envolve a leitura. É quando, no guichê, o funcionário da

repartição pública fala ao primeiro homem, diante da fila de iguais, que não consegue entender sua

letra e pergunta sem dó se ele não sabe assinar, que o rubor toma conta da face, e toda a confiança

que ele tem diante de seu ofício, de seus saberes práticos, de suas certezas ao aconselhar os filhos,

de sua força e valentia, se esvai, desaparece no ar. O que essas pessoas não sabem é que tal forma

de compreender o analfabetismo deve ser a vergonha dos alfabetizados e não a dos analfabetos.”

Mas havia, mais fresco ainda na minha memória de então, um episódio vivido por

um senhor, aqui chamado Egídio, apresentado num depoimento que viera um dia ao acaso

carregado de indignação. O patrão a quem ele se referia era o meu marido, embora nossa

relação fosse mais de vizinhança e de eventual prestação de serviços1:

“O senhor Egídio, no dia 6 de outubro de 2002, acordou às cinco horas da manhã para

garantir o seu lugar na fila de votação para eleição do Presidente da República, Governador,

Senador e Deputados. O lugar onde mora em Itapuã dista mais ou menos vinte quilômetros de

Belém Novo, bairro da zona sul de Porto Alegre, local de sua sessão eleitoral. Ele conhecia o

horário da passagem do caminhão que busca leite no tambo, que o levaria de carona até a estrada,

e, nela, esperaria o ônibus de linha. Conseguiu chegar tão cedo ao local de votação que foi o

primeiro da fila. Estava ansioso, mas feliz porque iria votar para o cargo mais alto da nação e tinha

certeza de que o candidato, com cuja origem se identificava, seria eleito presidente da República.

Na véspera havia ensaiado os números que teclaria na urna e não cansava de elogiar o novo sistema

eletrônico que já lhe facilitara tanto o voto em eleições passadas. Quando, pontualmente, o

presidente da mesa iniciou os procedimentos e mandou que entrasse o primeiro da fila, seu Egídio

penetrou humildemente na sala, mas foi surpreendido pelo comentário do mesário quando este

pegou a sua identidade: começar justo com um analfabeto! A observação foi tão grosseira que

suscitou a indignação dos demais mesários, o que garantiu que o próprio seu Egídio reagisse: meu

patrão que é um homem importante nunca me tratou de analfabeto! “

1 Dia desses, reassistindo ao filme Ilha das Flores, de Jorge Furtado, seu Egídio me apareceu na forma de uma frase dita pelo narrador para apontar a última escala social possível: “e há os que não têm nem patrão, nem dono”. Ali estava a chave para entender porque “ter patrão” poderia ser motivo de orgulho, quando meu passado marxista me fazia crer ingenuamente na oposição patrão/trabalhador.

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Seguia o texto do projeto reconhecendo no ocorrido com o senhor Egídio o

preconceito e adiantando uma análise que voltará ao longo da tese, sob outras formas.

“A ironia era justamente o fato de o candidato a Presidente, que afinal veio a se eleger

no segundo turno, Luis Inacio Lula da Silva, ser chamado pelos seus opositores menos qualificados

de analfabeto. Aqui caberia introduzir a noção de analfabetismo, tal como se apresenta no senso

comum. A categoria de acusação, analfabeto, é utilizada para classificar todo aquele que não se

pauta pela erudição ou pela diplomação. Quando mote para acusar, o conceito se torna tão alargado

que cabem nele pessoas alfabetizadas, e mesmo as notadamente alfabetizadas. Daí que, neste

sentido, o senso comum acaba dando o nome de analfabetismo ao que alguns autores chamariam de

baixo grau de letramento.”

Essas e muitas outras experiências que soariam redundantes se fossem todas

apresentadas foram se acumulando ao longo dos tempos. No projeto eu localizara nesses fatos

o início da pesquisa. Hoje entendo que o começo fica mais atrás. Nunca alfabetizei, nem

crianças e nem adultos. Minha única experiência de ensino - e lá se vão dez anos nela - é de

ser professora de um curso de Pedagogia (eventualmente de Letras, de Administração) em que

leciono disciplinas de Filosofia - minha graduação - ou de Antropologia e Metodologia de

Pesquisa em Antropologia - minha formação de mestrado. Minha mãe foi alfabetizadora, nos

moldes tradicionais, nas décadas de 50 e 60, e meu marido, formado em filosofia como eu,

participou quando estudante de várias experiências de alfabetização de adultos utilizando os

princípios freireanos. Dos alunos de pedagogia e dos familiares, procurei ser ouvinte dos

comentários, das queixas e das questões. Para a maior parte delas, ou se tinha posição muito

definida (com exagerada segurança) ou grandes dúvidas (sem um confiável ponto de apoio).

Por que alguns alunos aprendem rapidamente e outros parecem nunca aprender? Por que os

metodólogos asseguram resultados que não logramos alcançar? De quem é a culpa quando um

aluno não consegue ler e escrever?

Teoricamente, fui conhecendo por força da necessidade os métodos de

alfabetização, seus pressupostos e as técnicas preconizadas. Ministrei disciplinas cujo

conteúdo era a filosofia de Paulo Freire, sempre com o cuidado de advertir que não se podia

reduzir o pensamento de Paulo Freire ao que ficou conhecido como Método de Alfabetização

Paulo Freire ou simplesmente Método Paulo Freire. E para isso, li seus principais livros e

muitos comentaristas. Em curso de especialização, trabalhei disciplinas de Antropologia e

Cultura Escrita e Cultura Escrita e Letramento. O fato de trabalhar teoricamente estes temas

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me fez mais atenta e questionadora das experiências alheias, mas eu seguia sem minha própria

experiência ou sem pesquisa.

Apesar dessa minha falta de experiência, ou tentando apostar nela como uma

forma de “isenção” ou menos passionalidade, iniciei em 2000 uma pesquisa que tinha como

seu universo adultos de uma vila de Porto Alegre e sua relação com a leitura/escrita e com a

escola. Esta pesquisa que teve quase dois anos de campo me proporcionou o contato direto

com alfabetizandos. Seus depoimentos não diferiam muito dos testemunhos que já havia

ouvido das bocas de professores ou lido em livros. Mas também houve algumas queixas,

inclusive algumas que me surpreenderam na época. Detenho-me a pensar mais centradamente

em uma senhora que comentava duas coisas de certa forma desabonatórias de sua professora

do Mova: primeiro que era uma “pirralhinha” que ela tinha visto crescer - e com isso a

destituía de uma certa idealização que ainda acompanha em alguns casos a imagem do

professor como autoridade, com alguém que se distingue. Segundo, que, entre as professoras

da escola, havia algumas que “nem carro tinham”. Me centrei neste depoimento, mas estou

segura de que como ele havia outros vagamente semelhantes. Naquela época, tratei-os como

residuais, porque estava muito imersa na concepção de que, quanto menos distanciamento

social e cultural houvesse entre educando e educador, tanto mais proveitosa a relação

professor-aluno ali estabelecida. Não passei a desacreditar desse pressuposto, até porque

também ouvi muitos depoimentos neste sentido, mas passei a acrescentar a ele um outro,

aparentemente contraditório. Há casos em que os alunos identificam na figura do professor

alguém que deles se diferencie pelo menos em alguns aspectos simbólicos. Ainda que em

outros deva haver também identificação. Essa possibilidade ajuda a explicar o caso (bem

sucedido?) da professora Serli que tanta importância terá mais adiante no relato dessa

pesquisa.

Para este começo de tese, quis explicar como fui me aproximando do tema da

pesquisa. Também não preciso negar que houve um tempo em que vivi a dramática situação

de não saber exatamente o que pesquisar. O campo da educação oferece possibilidades

ilimitadas, atraentes, desafiadoras, o que só dificulta a decisão quando não se tem um caminho

definido de atuação.

Há mais confissões a fazer nesse início. Uma primeira é que essa tese muito pouco

se identifica com a dissertação de mestrado, não sendo como tanto se recomenda um seu

aprofundamento ou o fruto de uma longa trajetória de afinidades e de aproximações com a

pesquisa. A dissertação tratou do trabalho prisional a partir da ótica de presos em regime

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fechado, que conseguiam trabalhar na cadeia.2 De semelhanças, apenas características mais ou

menos externas, como a abordagem antropológica, a etnografia. Houve um tempo em que

quis me convencer - e a outros - que o motivo da redenção seria o fio condutor que uniria

temáticas tão distantes. Acho que isso consta no memorial descritivo que apresentei para fins

de seleção do doutorado. Para os presos, o trabalho funcionaria como redenção, assim como a

alfabetização o seria para os analfabetos. Não se trata disso. Tanto no primeiro caso, a

redenção estaria mais no nível discursivo e em uma que outra prática isolada e, no caso

presente, é tudo o que se tenta desconstituir, pois tomar a alfabetização como redenção

(mesmo reconhecendo nisso uma categoria “nativa”) seria sucumbir à idéia da great divide

(adiante explicada) e tomar os analfabetos pela negatividade.

O caso é que havia poucas decisões tomadas: seguiria pesquisando adultos pouco

ou não escolarizados, abandonaria a idéia de fazer o levantamento de suas trajetórias

educativas por achar pouco estofo para uma tese de doutorado, e a abordagem de pesquisa

teria um viés antropológico.

Das leituras sobre cultura escrita, oralidade e alfabetização, resultou que um

conceito ia se impondo sobre outros, e esse conceito era o de letramento. Tinha dele vaga

idéia quando li pela primeira vez Magda Soares, no livro sempre citado, "Letramento, um

tema em três gêneros". Quanto mais o lia, porém, mais dúvidas tinha, e o conceito não me

surgia coerente e claro. Apenas deduzia que ele seria a chave para compreender muitas

questões sobre a alfabetização dos adultos que eu acompanhava na pesquisa na vila. Tinha

lido também "O Mito do Alfabetismo" de Graff (1990). Fiz muitas leituras do tema em

autores franceses, de língua espanhola e de língua inglesa, o que só complicava mais, pois os

primeiros utilizam alphabétisation (ou tomam o conceito de illetrism para estudos sobre

ausências) e também litteratie; os segundos, alfabetización e os terceiros literacy.

Antes de seguir apresentando a seqüência de leituras, é preciso contar que um

outro percalço marca a história desses começos que foi a troca de orientador e de linha de

pesquisa. Por sorte, pude seguir com a mesma intenção de pesquisa, e a uns dois embates

inicialmente complicados com a minha nova orientadora, devo um olhar que se transformou

consideravelmente em relação ao anterior. Não é nada fácil mudar de perspectiva quando se

vem agarrado a uma que parece única e principalmente porque eu não conseguia sequer

2 A pesquisa referida foi realizada nos anos de 1994 a 1996 e resultou na minha dissertação de mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, UFRGS, publicada em 1999, com o título de “O trabalho e os dias” (Porto Alegre, Tomo Editorial).

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compreender como era esse outro ponto de vista, que tomava o conceito de letramento de

diferente modo. Carmem Craidy, minha orientadora, a quem nunca vou deixar de ser grata por

um sem número de razões (e se fosse só agradecimento protocolar já estaria nas páginas

específicas para tal), me falava em Hébrard, Foucambert, Besse, Lahire, Chartier e não se

conformava com um conceito de letramento que se mantinha no viés individual. Passei a ler o

que pude destes autores e nas suas referências bibliográficas, outros nomes foram aparecendo,

como os antropólogos Street e Heath, e portanto as afinidades foram maiores. Mas não só

isso, foi com eles que encontrei uma explicação para a existência do grupo que acabei

pesquisando, como contarei a seguir.

A essa altura, tinha decidido que o meu campo de pesquisa não seria mais a vila

Cruzeiro, onde já tinha estado investigando outros temas junto ao meu grupo de pesquisa da

Uniritter, o GIPECS (Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura e Sociedade). Por vezes,

quando se pesquisa, parece que temos que nos desafiar em múltiplos sentidos e sobretudo

parece que temos que ir cada vez mais em busca do novo ou dos penhascos mais altos. Muito

próxima de mim estava a vila de Itapuã, uma vila rural, que vinha freqüentando há muito

tempo, um campo infinito de possibilidades de investigações e parecia ser proibido fazer uma

pesquisa num lugar com certa familiaridade, um lugar que admirava e criticava, que

fascinava, que provocava curiosidade e que, bem diferentemente da sensação sufocante que

me provocava a Vila Cruzeiro, era sempre bom de ir, de estar e de conhecer. Sempre que

descrevia a Vila nas suas contradições e encantos, provocava nos amigos a fala que eu queria

escutar: é um lugar que precisa ser pesquisado.

Não bastasse ter tomado essas decisões, ter presenciado os fatos já descritos (no

cartório e o depoimento da eleição), tomei conhecimento de um curso de alfabetização de

adultos promovido pelo Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã num desfile cívico a que

assistia como visitante em Itapuã, no ano de 2002. Parecia resolvido o fato de que enfim podia

pesquisar adultos alfabetizando-se e assim já tinha a que me agarrar. Não sabia muito mais o

que fazer com esses elementos todos, se haveria como reuni-los ou como tirar deles algo que

pudesse soar como uma tese. Em não havendo uma tal possibilidade, poderia voltar às

trajetórias educacionais que era a idéia de que, mesmo as pessoas que buscavam curso de

alfabetização quando adultos ou velhos, tinham um passado de passagens pela educação

formal e também, naturalmente, haveria de tentar estabelecer suas outras trajetórias pela

educação não formal e suas influências na informalidade, que o constituíram como um sujeito

educado ainda que não no mundo das letras.

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Foi então que me aproximando do grupo de alfabetização e das “mulheres

atuantes” e de sua origem, assim como da história da vila de Itapuã, eis que fatos inicialmente

desconexos, uma vez reunidos e sob a inspiração teórica dos antropólogos citados, e dos

autores sugeridos pela minha orientadora, pareceram se encaixar numa espécie de situação

encadeada. Não de forma espontânea ou evidente, mas a partir de uma construção abstrata,

bem aos moldes do que Bourdieu preconiza quando sustenta que a construção do objeto:

(...) não é uma coisa que se produza de uma assentada (...): é um trabalho (...) que se

realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas,

sugeridos pelo que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam as

opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas." (Bourdieu, 1989, pp. 26-27).

Inspirado em Bachelard (1984) que dizia que o vetor epistemológico vai do

racional ao real, Bourdieu sustentará que o real só responde se é interrogado, o que só

acontece a partir de uma perspectiva teórica com a qual o investigador procederá a uma

construção do real. Na verdade, uma seleção de partes do real e uma seleção de parte de uma

teoria e de conceitos que conformam o modelo teórico que orienta o pesquisador. E assim a

construção do objeto de investigação se diferencia do objeto real ou do fragmento de

realidade considerado.

A seleção das partes do real, por sua vez, se deve à seleção do ângulo de

observação e nesse percurso de construção de objeto, minha relação com uma bolsista de

iniciação científica, minha aluna e moradora de Itapuã, também teve influência na construção

do olhar sobre o campo. Essa relação recebeu um item próprio na tese, uma vez que boa parte

do resultado deste trabalho se deveu ao diálogo e aos novos ângulos que este diálogo

produziu. Colaboradora de pesquisa e informante nativa ao mesmo tempo, Mônica Pellegrim

de Aigner ajudou na construção do objeto e do olhar.

Por fim, retomando a seqüência de leituras, que aqui volta a ser necessário

explicar, no projeto tive bem clara a necessidade de enfrentar o conceito de letramento (ou

alfabetismo como querem alguns), porque algum fenômeno relacionado a ele parecia estar em

curso, desde que os fatos fossem analisados por um viés teórico que proporcionasse entender

a mudança ali se operando. Assim, escrevi que o tema do letramento/alfabetismo estaria

presente na pesquisa:

“que trata de um vilarejo de colonização açoriana, chamado Vila de Itapuã, localizado no

município de Viamão, Grande Porto Alegre. O objetivo é identificar eventos de letramento,

entendido como processo sócio-histórico, no momento mais recente da Vila e sua ‘modernização’,

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impulsionada por determinados fatores, tais como a chegada do asfalto que a ligou à capital do

Estado, e a criação, seguida de abertura à visitação pública de um Parque Estadual de conservação

ambiental.”

Ainda no projeto, a seguir eu mostrava a intenção de levantar os itinerários

educacionais, assim como entender o contexto em que se dava o interesse pelo estudo dos

moradores adultos que freqüentavam um projeto de alfabetização de iniciativa do GAMI,

Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã, movimento cuja atuação principal se deu no campo da

ecologia e/ou na geração de renda pela reciclagem de lixo seco.

Reconhecia então que a emergência desse grupo, GAMI, merecia um exame

acurado, para tentar dar conta da gênese de um movimento de mulheres - que demarca essa

identidade desde o nome - num local de características interioranas e rurais (ainda que

geograficamente próximo da capital), marcado por uma história masculina.

A bandeira da ecologia assentada publicamente no local na realidade chegou à

Vila carregada por pessoas de fora (estudantes de Biologia das Universidades, movimento

ecológico, oriundos de Porto Alegre) e pelo GAMI, esse movimento de mulheres, mulheres

de Itapuã.3

Ainda como ambição do projeto, pretendia discutir a etnografia como método,

tendo a meta de fazer um exercício etnográfico do local. Essa meta se devia à vontade de

contribuir no campo da educação com esse aporte, muito evocado, assim como um tanto

temido. Tanto que é comum as pessoas utilizarem os recursos de defesa preventiva que

constam de dizer que farão um estudo de inspiração etnográfica. Muitos desses fazendo uma

boa etnografia, declarada como de inspiração e uns tantos fazendo algo como um arremedo

que fica antes de a meio caminho, em que se confunde abordagem qualitativa com etnografia

ou subjetivismo com etnografia. Fonseca (1999), num artigo dirigido a pesquisadores não

antropólogos, situa bem essa questão e nela me apoiarei no capítulo dedicado à etnografia

para dar conta desse objetivo.

Naturalmente, já no projeto tomei uma precaução que seria deixar bem claro que o

olhar dessa pesquisa fosse informado tanto por uma teoria antropológica, quanto pelo

pensamento ligado à educação.

3 Fora do Gami, a palavra “ecologia” e certos conceitos preservacionistas da natureza passaram a ser ouvidos em alguns discursos presentes na região: no texto escolar (que fica bem evidenciado, por exemplo, nos desfiles cívicos de setembro, nas faixas e cartazes que as crianças carregam), no texto das músicas dos compositores locais e no texto político. Mesmo não se transferindo perfeitamente para a prática do homem comum, o discurso está cada vez mais presente na comunidade e vai penetrando a cultura, como veremos adiante.

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Dentro da convicção da dependência que a observação tem da teoria (Chalmers,

1993), e da noção de construção de objeto já mencionada (Bourdieu, 1978), passei a elencar

alguns autores que viria a evocar para entender o campo. Sobre oralidade, cultura escrita,

alfabetização, letramento/alfabetismo e atores sociais: Brian Street, Shirley Heath, Leda

Tfouni, e também Ângela Kleiman, Magda Soares, Harvey Graff, Rejane Rojo, Jack Goody e

Walter Ong. Posteriormente, a orientadora sugeriu Emilia Ferreiro, em seus escritos mais

recentes, e a banca de qualificação sugeriu também Cook-Gumperz e Ribeiro e mais alguns

outros. Devo agradecer às professoras Ondina Fachel Leal, Iole Trindade e Norma Marzolla

pela leitura que fizeram do projeto e sua argüição, constando seus pareceres nos anexos e em

várias partes da tese, uma vez que busquei dialogar com elas no prosseguimento que a

pesquisa teve após o exame de qualificação.

Leituras, intermediadas com idas a campo, conversas com Mônica, com Achutti e

com o grupo de orientação, apresentação do projeto em jornadas científicas foram

acrescentando novas necessidades e novas perguntas. Com Achutti, segui fazendo uma

fotoetnografia da Vila de Itapuã, pesquisa paralela que realizamos pelo nosso grupo de

pesquisa Arte e Antropologia: Fotografia e Fotoetnografia, e que em muito contribuiu para maior

densidade dessa investigação. Além da fotoetnografia, nosso grupo de pesquisa iniciou um

outro projeto, que foi o da realização de um documentário, provisoriamente chamado Cidade

dos Condenados, registrando em especial o Hospital-Colônia de Itapuã. O documentário está

sendo realizado em parceria com o Laboratoire d’Antrhopologie Visuelle et Sonore du Monde

Contemporain - Université Paris 7, e é dirigido por Jean Arlaud.

A fotoetnografia e o filme podem ser considerados como subprodutos desta tese,

ainda que possuindo identidade e temática próprias. A fotoetnografia é uma experiência de

uso de novas mídias e tecnologias para o fazer antropológico. Nela, de forma inédita,

iniciamos um caderno de campo visual (www.ufrgs.br/fotoetnografia), contendo narrativas

em texto e em fotos de idas a campo, constituindo-se em material útil para pesquisadores

interessados em conhecer a dinâmica do trabalho de campo, com a vantagem da

instantaneidade. Em geral, se conhecem os resultados das pesquisas antropológicas, mas

pouco se conhece do processo de construção desses resultados.

Uma vez que tenha explicado um pouco dos começos dessa tese, passaremos a

ela.

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2. ITAPUÃ: DE BELA E ISOLADA A BELA E ATRATIVA

2.1 Práticas de Pesquisa

As reflexões que seguem são uma espécie de micro-introdução à

antropologia e à pesquisa de campo em antropologia e sua possibilidade de aportar

contribuições a estudos no campo da educação. Tanto porque a educação foi um dos

temas de que os antropólogos precisaram se ocupar para entender as culturas que

investigaram ao longo da história da antropologia, mas também porque a educação

vem utilizando o método etnográfico de forma aparentemente crescente. E, por fim,

estes itens são a ante-sala e justificativa para o uso da etnografia nesta tese.

2.1.1 Educação e Antropologia

Como antropologia e educação podem interagir e beneficiar-se, tal como ambas fazem com outros campos de conhecimento. E uma advertência sobre a possibilidade de utilização da abordagem antropológica na educação.

Muitas coisas separam antropólogos e educadores, mas muitas outras os

unem. (...) No diálogo entre antropologia e educação, a questão parece ser: a aventura de se colocar no lugar do outro, de ver como o outro vê, de compreender um conhecimento que não é o nosso. Nessa encruzilhada, os não-antropólogos buscam um “olhar antropológico” pelo qual se guiarão nos mistérios da pesquisa de campo. Por sua vez, a antropologia e os antropólogos se vêem em grandes dificuldades, quando são chamados a tratar dessa realidade cujo nome é educação, seja por não conhecerem, ou ainda, por deslegitimarem um certo percurso do passado da antropologia. (Gusmão, 1997, pp. 9-10)

Se na educação, cada vez mais se discute a pertinência, a relevância, os

percalços e a necessidade de aprofundamento do método etnográfico nas pesquisas de

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campo, foi recentemente que nas reuniões da ABA, Associação Brasileira de

Antropologia, estruturou-se um GT para discutir antropologia e educação. Ele iniciou

tímido, foi crescendo, e a cada novo encontro se exalta o número crescente de

trabalhos inscritos. A prova disso é que na edição de 2005, da VI Reunião de

Antropologia do Mercosul, a área 14, Educación y Enseñanza de la Antropología, se

dividiu em quatro GTs. O que também dá visibilidade a um campo é o conjunto de

publicações, teses defendidas nos pós-graduações, mesas redondas, palestrantes e

outros eventos que extrapolem o pequeno grupo. E isso na antropologia ainda ocorre

de forma tímida.

De outra parte, desde sua origem, a antropologia teve íntima relação com o

campo da educação, ainda que pouco se reconheça a importância atribuída à educação

nos estudos já dos primeiros antropólogos culturalistas (Boas e seguidores) e,

inversamente, que poucos reconheçamos a importância dos estudos antropológicos

para o entendimento das formas educacionais nas diferentes culturas. É a esse passado

da própria antropologia que Gusmão (1997) se refere, ao estabelecer as bases de uma

relação histórica entre antropologia e educação, no texto que inicia este item.

A educação, os processos educativos e a cultura têm íntima relação e são

mutuamente influenciados. Daí porque o diálogo entre a antropologia e a educação

pode ir além do uso de uma como campo de pesquisa e da outra como aporte

metodológico, senão que teórica e metodologicamente ambas têm o que compartilhar.

É nessa perspectiva que se insere esta tese, que, mais do que juntar um método de um

campo e um objeto do outro, pretende integrar a ambos, desde que são compreendidos

como processos imbricados.

Conceitos caros à antropologia como a relativização e a alteridade têm sido

apropriados por muitos campos de conhecimento e, em alguns casos, é desconhecida a

discussão que provocam no âmbito da antropologia, de onde se originaram e onde não

gozam de convergência. Relativismo, anti-relativismo e anti-anti-relativismo (debates

que têm como expoentes Geertz, 2001; Rorty, 1991; Gellner, 1997) são posições a

serem conhecidas e se ampliarem para as áreas que têm feito uso dos conceitos

originários da antropologia.

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No princípio, a grande contribuição da antropologia ao estudo dos

grupamentos humanos foi resgatar a alteridade do campo do inferior, do assustador, da

maldição, do negativo. Iniciara-se a partir das contribuições da antropologia um lento

processo de conscientização da importância da convivência e do respeito à diferença.

Entretanto, a relativização esbarra na contradição decorrente de que, se tudo é relativo,

perdem-se os padrões de julgamento da injustiça, dos direitos humanos, etc. Quem

poderia, porém, ser o árbitro infalível do que pode ser relativizado e do que não se

deve relativizar? O antropólogo se movimenta nesta fina corda bamba, e é a partir dela

que pensa a cultura e as práticas sociais, os conceitos e as explicações. Além disso,

como disse Bourdieu, “o etnólogo deve afirmar a identidade para encontrar as

verdadeiras diferenças” (Bourdieu, 1985, p. 59). Nem sempre esse processo é simples.

Malinowski, ao defender a imersão no campo, como condição de possibilidade da

etnografia, como veremos adiante, afirmava a necessidade de o antropólogo tornar-se

assim um nativo. Porém, seu texto deveria ser, à luz de uma teoria da cultura, a

reelaboração dessa nova experiência ou, por que não, dessa nova identidade, a partir da

qual se produz o texto etnográfico.

Não é nenhuma novidade afirmar que a experiência do trabalho de campo é

a razão de ser do ofício do antropólogo. E o fato de o campo ter deixado de ser um

local distante espacial e culturalmente marca uma grande diferença com os primeiros

tempos da antropologia. A questão passou a ser desde então a necessidade de “tirar a

capa de membro de uma classe, e de um grupo social específico para poder - como

etnólogo - estranhar alguma regra social familiar e assim descobrir o exótico no que

está petrificado dentro de nós." (DaMatta, 1987, p. 157). Essa idéia e a defendida por

Rossetti-Ferreira et alii guardam semelhanças:

“o lugar do pesquisador, de forma análoga aos processos de desenvolvimento humano, pressupõe que o seu fazer está imerso em redes de significações, levando à emergência de significados e sentidos específicos, sendo circunscrito por elas. Assim, o objeto de investigação mobiliza no pesquisador e faz emergir complexas e dinâmicas significações, as quais estruturam e canalizam seus recortes e as interpretações que faz do fluxo de eventos observados.” (Rossetti-Ferreira et alii, 2004, p. 33)

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A emergência do paradigma hermenêutico garantirá a presença no texto

etnográfico dessa nova relação com a subjetividade. Quando o texto etnográfico

faculta - ou mesmo obriga - a tornar claro o resultado da interação da identidade do

pesquisador, modificada pelo contato com o seu campo, fundamenta-se a Antropologia

Interpretativa, de tal modo que:

“no estudo da cultura a análise penetra no próprio corpo do objeto, isto é, começamos com as nossas próprias interpretações do que pretendem nossos informantes, ou o que achamos que eles pretendem, e depois passamos a sistematizá-las (...) os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modelado’.” (Geertz, 1978, pp. 25-26)

A educação, para contribuir com ou se beneficiar da antropologia, melhor o

fará se apropriar-se também dessas discussões que vêm orientando o agir

antropológico e balizando as reflexões das últimas décadas. Em um texto intitulado

“Quando cada caso não é um caso”, Fonseca (1999) defende o método etnográfico

como enriquecedor da intervenção educativa. Entretanto, o objetivo maior do seu texto

é alertar para o uso equivocado, às vezes, truncado, do método “etnográfico”,

sobretudo quando resulta no esclarecimento de casos individuais, ao passo que “a

insistência - da visão antropológica - no aspecto social de comportamento leva à

procura por sistemas que vão sempre além do caso individual”, de tal modo que “o

método etnográfico é visto como o encontro tenso entre o individualismo

metodológico (que tende para a sacralização do indivíduo) e a perspectiva sociológica

(que tende para a reificação do social)”. Uma pesquisa pode ser qualitativa e nem por

isso ser etnográfica. Fonseca afirma não reconhecer a etnografia em algumas pesquisas

que, por adotarem determinados critérios, definem-se como tal. Os critérios referidos

que não levam necessariamente a uma etnografia seriam: número pequeno de sujeitos,

reflexividade, uso de técnicas qualitativas. No primeiro caso, alerta que o número

reduzido de sujeitos pode caracterizar a pesquisa qualitativa, mas nem sempre leva a

uma pesquisa antropológica que necessita sim do reconhecimento do que, nos sujeitos,

são particularidades e o que ele carrega de comum com seu grupo social. Para isso,

Fonseca traz o exemplo de um texto clássico da antropologia:

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“...Sidney Mintz tece sua análise em torno da história de vida de um só porto-riquenho, Taso. Porém, nunca sugere que seu protagonista seja mecanicamente representativo da totalidade dos nativos. Aproximou-se de Taso durante a pesquisa de campo não por algum critério "objetivo", mas por afinidades pessoais. Ao comparar essa figura com parentes e vizinhos, o leitor vê ora pontos de encontro que sublinham semelhanças entre as pessoas, ora divergências que ressaltam individualidades. É nesse vaivém que se resgatam as sutilezas da análise social. Cabe lembrar que o pesquisador já tinha mais de um ano de contato etnográfico com todo tipo de pessoa no território de sua pesquisa antes de iniciar o trabalho intenso com Taso.” (Fonseca, 1999, p. 63, destaques meus)

A propósito da reflexividade, Bourdieu, no capítulo chamado

“Compreender” do livro “A Miséria do Mundo”, aborda a situação de entrevista no

que diz respeito à interação e às formas de comunicação da delicada relação

pesquisador pesquisado:

“só a reflexividade, que é sinônimo de método, mas uma reflexividade reflexa, baseada num ‘trabalho’, num ‘olho’ sociológico, permite perceber e controlar no campo, na própria condução da entrevista, os efeitos da estrutura social na qual ela se realiza. Como pretender fazer ciência dos pressupostos sem se esforçar para conseguir uma ciência de seus próprios pressupostos? Principalmente esforçando-se para fazer um uso reflexivo dos conhecimentos adquiridos da ciência social para controlar os efeitos da própria pesquisa e começar a interrogação já dominando os efeitos inevitáveis das perguntas” (Bourdieu, 1999, p. 694)

Ainda no artigo mencionado, Fonseca apresenta o segundo caso, em que

mostra que o modo confessional adotado em muitas dissertações e teses pode não

equivaler ao que se caracteriza como reflexivo.

“Um segundo motivo que leva os colegas de outras áreas a classificar seu trabalho como ‘etnográfico’ diz respeito à noção de reflexividade, em que a subjetividade do autor/pesquisador é assumida como um componente essencial da análise. Lembro de uma dissertação em particular na qual o estudante, depois de mais de cem páginas discorrendo sobre a reflexividade no método etnográfico, tenta demonstrar sua teoria com uma breve ‘pesquisa de campo’.” (Fonseca, 1999, p. 63)

Técnicas qualitativas como entrevistas e observações simples não são

suficientes para a apreensão do que é fundamental no estudo das culturas: as

regularidades, o universo simbólico (do grupo e do pesquisador), o jogo de forças,

valores atuantes, crenças manifestas e latentes, enfim, um sem número de condições

que só a observação participante, com a interação pesquisador-pesquisado que dela

decorre, permite compreender.

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“Quando estudantes de educação (ou comunicação ou medicina etc.) soltam as amarras de suas tradições disciplinares e se atiram na direção da antropologia sem preparação adequada, podem, em vez de realizar uma costura interdisciplinar, cair no vazio - um território nem lá, nem cá, onde o que mais floresce é o senso comum da cultura do pesquisador.” (Fonseca, 1999, p. 60)

No item seguinte, apresento uma forma de aproximação possível com o

sentido da etnografia para os antropólogos.

2.1.2 A etnografia Da etnografia como trabalho de artesão.

Para usar uma analogia - como toda analogia não perfeitamente apta - o antropólogo é comparável ao artesão tradicional; os demais cientistas sociais, aos operários e técnicos que, numa fábrica, manufaturam agora industrialmente o mesmo produto. Como o artesão, o antropólogo tem um prazer criador mais completo com o seu trabalho que os outros especialistas e, desde a matéria-prima ao produto acabado, conhece melhor a realidade com que lida. Os outros especialistas dividem entre si conhecimentos que o antropólogo não possui, mas o antropólogo é o único que considera a realidade in totto e está apto a lhe aperceber o nexo interior (Peristiany, 1971, p. XIII).

É a etnografia uma metodologia sempre adequada? Ou se não, quando

convém fazer uma etnografia? Qual a sua finalidade? Qual o tempo necessário em

campo para a produção de uma etnografia? Quem pode fazer uma etnografia? É ela

propriedade da antropologia? É imprescindível o estranhamento? A familiaridade com

o campo ajuda? Essas questões podem ser comuns, mas não têm, por certo, respostas

óbvias ou evidentes.

Uma forma de iniciar a resposta a essas questões é remontar à origem da

etnografia na antropologia. O chamado pai-fundador da etnografia, Malinowski, a

partir dos anos vinte, preconizou que apenas pela “observação participante” seria

possível ao pesquisador conhecer o outro em profundidade e, por meio de tal

conhecimento, superar os pressupostos evolutivos e o etnocentrismo (visão pela qual o

homem branco europeu letrado seria superior a todos quantos apresentassem diferentes

constituições, formas de vida e de pensamento). Para isso, a etnografia deveria ser uma

pesquisa intensiva, de longa duração; o etnógrafo precisaria viver no local

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etnografado, aprender a língua, e, sobretudo, observar a vida cotidiana. O pesquisador

deveria dar conta da totalidade da vida tribal, ancorada no tripé: arcabouço da

constituição da sociedade, imponderáveis da vida real e espírito do nativo.

O primeiro exige inventariar a constituição social do grupo, suas leis e

regularidades, as instituições, enfim, tudo o que compõe sua organização social e que

pode estar registrado documentalmente. Já os “imponderáveis da vida cotidiana” são

fenômenos que só podem ser captados pela vivência junto ao grupo, uma vez que não

há como percebê-los nem por meio de perguntas, menos ainda em documentos. São

simplesmente procedimentos cotidianos como rotinas de trabalho, cuidados com o

corpo, formas de comer e preparar alimentos, de resolver problemas de sobrevivência,

relações sociais. Tudo isso só seria captável in loco, daí a preeminência do trabalho de

campo. Os pontos de vista, as opiniões, os ideais, os motivos e sentimentos que

impulsionam à ação, as convicções, enfim, o “espírito do nativo”, seriam captados

pelos depoimentos, de onde a importância das falas e das expressões êmicas (Víctora,

Knauth e Hassen, 2000). Estão na introdução de Argonautas do Pacífico Ocidental tais

considerações metodológicas que, de certo modo, ao preconizarem a imersão total no

campo, garantiram à antropologia o estatuto de disciplina.

É possível que na base de tal peso conferido ao trabalho de campo estivesse

a teoria funcionalista e a concepção de que as culturas seriam totalidades, universos

delimitáveis, que poderiam ser captados pela ótica do antropólogo e sua missão de

perceber e dar um sentido a práticas dispersas organizá-las, traduzindo-as em uma

totalidade. Ou seja, a cultura como um todo-tornado-coerente seria percebida por meio

do olhar do antropólogo.

Nenhum problema há com a idéia do trabalho de campo, que implica

continuidade de tempo em campo, observação, anotações em diários de campo,

conversas, entrevistas, etc. Porém, quando se pensa o registro final, a etnografia,

começam os questionamentos.

Se aceitarmos a classificação proposta pelos pós-modernos, um segundo

momento da história das etnografias pode ser considerado o da produção das

monografias modernas, que não mais se dispunham sobre temas (economia, família,

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religião, mitologia, organização social e política, etc) que abrangessem a visão de

cultura como totalidade, típica das etnografias clássicas. A etnografia moderna

estudava uma cultura a partir de determinados temas, na crença de que a parte sempre

teria a cultura como referência e portanto seria uma forma de ter acesso a ela.

Diferentemente dessas concepções é o chamado paradigma hermenêutico,

no qual se assentaram os pós-modernos e sua defesa da polifonia4, ou seja, a

necessidade de dar voz ao etnografado a par da voz do etnógrafo. Geertz sustentará

que a cultura deve ser vista, antes de tudo, como um texto, e a tarefa da antropologia,

realizar a exegese da cultura. Se a cultura precisa ser interpretada, também não seria

possível aceitar que o fosse a partir de um só olhar ao qual o estatuto da ciência

conferiria maior autoridade. Os pós-modernos não aceitam mais a idéia dessa

autoridade soberana, e passam a ter como objeto a ser desconstruído o próprio texto

etnográfico e a relação de poder do pesquisador em relação aos pesquisados. É bem

verdade, porém, que no rol das boas intenções (autocrítica que atinge o caráter

colonialista e dominador do etnógrafo dos países ricos) integrem-se práticas

questionáveis. Ao propor a revisão da etnografia, ao propugnar a multiplicidade de

vozes, desviou-se a polêmica da disputa teoria e prática para uma disputa no interior

do registro da pesquisa, o que favoreceu um certo rebaixamento da qualidade mesma

da pesquisa e tal perspectiva é discutida por Peirano (1995).

Como o nome do livro já sugere, Peirano, em A Favor da Etnografia,

defende e discute profundamente o ofício do antropólogo. Ela faz três advertências:

não há como ensinar a fazer pesquisa de campo, uma vez que ela depende de variáveis

imprevisíveis que vão desde as escolhas teóricas do pesquisador, passando pelos

imponderáveis da vida cotidiana verificáveis em campo, até a biografia do próprio

etnógrafo. A segunda é que a antropologia não tem a fase ou o estatuto de ciência

normal (e certamente está usando a categoria proposta por Kuhn), uma vez que não se

firma em paradigmas aceitos consensualmente pela sua comunidade, mas vincula

teoria-e-pesquisa objetivando constantes descobertas. Por fim, Peirano afirma que a

4 Alguns destes pós-modernos são James Clifford, George Marcus, Paul Rabinow, James Boon. O primeiro diferencia a polifonia significando escrita compartilhada, da qual é defensor, da polifonia como simples apresentação de múltiplas vozes por ele contestada (Clifford, 1986).

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antropologia enfrenta menos crises do que outros campos em razão de que seu mote,

as diferenças ou os “desvios diferenciais” entre as culturas, nunca irá desaparecer.

Chegou um momento em que os antropólogos se viram diante da dissolução de seu

campo preferencial (os “povos primitivos”), mas Peirano assegura que isso só revelou

o fato de que os antropólogos, ao estudar as sociedades simples, e ao estabelecer

comparações, estavam estudando também o seu próprio mundo (Peirano, 1995, pp. 22-

4).

Quanto aos pós-modernos, a antropóloga é bem contundente ao mencionar

os “efeitos perniciosos” da transposição acrítica desse ideário levadas a cabo por

alguns brasileiros e, além disso, recorre ao próprio Geertz que, de inspirador do pós-

modernismo na antropologia, passou a seu crítico, isto é, fez uma crítica da crítica:

“admoestou o novo estilo como uma doença endêmica que, em lugar de produzir

etnografias, produz diários, reflexões metacientíficas, as chamadas etnografias

experimentais, jornalismo cultural, ativismo sociológico - todos informados por uma

sinceridade redentora que não passa de uma esperança fútil e estéril” (Peirano, 1995, p.

26).

Oliveira, também criticando os pós-modernos, aponta ainda um ponto

condenável, qual seja, “o desapego que seus autores demonstram em relação à

necessidade de controle dos dados etnográficos” o que resulta em uma “perversão do

próprio paradigma hermenêutico” (Oliveira, 2000, p. 29). Objeta contra um certo

formato que podem adquirir as monografias desse movimento, alertando que é

possível escrever-se na primeira pessoa sem necessariamente transformar o texto

etnográfico em uma peça intimista. Mas também ressalta o grande mérito dos pós-

modernos que é a problematização do texto etnográfico:

“para se elaborar o bom texto etnográfico, deve-se pensar as condições de sua produção a partir das etapas iniciais da obtenção dos dados - o olhar e o ouvir -, o que não quer dizer que ele deva emaranhar-se na subjetividade do autor/pesquisador. Antes, o que está em jogo é a ‘intersubjetividade’ - esta de caráter epistêmico -, graças à qual se articulam, em um mesmo horizonte teórico, os membros de sua comunidade profissional. E é o reconhecimento dessa intersubjetividade que torna o antropólogo moderno um cientista social menos ingênuo. Tenho para mim que talvez seja essa uma das mais fortes contribuições do paradigma hermenêutico para a disciplina” (Oliveira, 2000, p. 31).

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Assim, se há quase um consenso crítico a respeito do tipo de etnografia

realmente produzida pelos pós-modernos, por outro lado, eles podem ser

responsabilizados por uma vigorosa reflexão e revisão do fazer antropológico, quanto

mais não seja ao questionarem os limites da autoridade do etnógrafo e a relação

desigual de poder, estabelecida no texto, de pesquisador e pesquisados.

Não há como se propor uma etnografia nos dias de hoje sem levar em conta

essa discussão que está na sua base. Anterior a isso é a questão sobre a pertinência dos

estudos etnográficos ou, de outro modo, quando se faz etnografia, por que se faz

etnografia. No caso desta tese, o projeto de etnografar a vila de Itapuã esteve

associada à idéia de tentar entender o papel que assume a escrita e a leitura num

contexto híbrido rural/urbano em mudança por conta de determinados eventos, a partir

do olhar de adultos que buscam alfabetizar-se. Restringir o estudo apenas a este olhar

seria uma abordagem limitada por deixar de lado o entendimento profundo do entorno

ou da sociedade que o envolve. O conceito de letramento adotado para dar conta desse

momento se vincula ao contexto e dele depende. Uma possibilidade seria tratar a

investigação como estudo de caso. Ora, estudar um caso exige o conhecimento anterior

do contexto, principalmente quando se trata de uma situação ao mesmo tempo tão

peculiar e tão típica, como a que configura a vila de Itapuã.

A peculiaridade estaria na reunião em um mesmo local de características ou

instituições que por si já seriam intrigantes: uma colônia japonesa, uma área resultante

de reforma agrária dos anos 60, um leprosário, um parque de conservação ambiental,

uma comunidade rural limítrofe a uma capital, diferenciada das demais cidades do

entorno, que são ou industrializadas ou cidades-dormitório, uma vila litorânea na

confluência da maior lagoa do país (que não é lagoa, mas laguna) e de um rio (que não

é rio, mas lago), respectivamente a Lagoa dos Patos e o Rio Guaíba. Por outro lado,

nada é mais típico do conceito de vida interiorana do que a vila e seu entorno: as

relações entre conhecidos de longa data, as trocas rituais de bens e serviços, o pequeno

comércio e suas práticas que incluem o caderno e o fiado, o silêncio da hora da sesta e

à noite (com exceção do período de veraneio), a relação com o tempo que não lhes

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cobra acúmulos materiais, e o futuro não é pensado como projeto, a palavra

empenhada no lugar do contrato, a rusticidade das casas, as festas que reúnem todas as

classes etárias e sociais, a missa de domingo, a Igreja na praça central, enfim, um sem

número de traços materiais e comportamentais. Por isso, de certa forma, esta tese

utiliza a etnografia e tenta ir aprofundando a investigação no grupo de alunos do curso

de alfabetização do Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã.

Se hoje a etnografia não pretende apresentar (ou tornar familiar o exótico)

uma população cuja exoticidade intrigava e atraía, o que ela ambiciona é fazer o leitor

pensar: “eu já vi isso, eu conheço isso, mas eu nunca tinha pensado que significasse

isso ou que desse margem a essa interpretação”. Essa idéia se aproxima do

procedimento mencionado por Da Matta (1978) que seria tornar exótico o familiar.

Trata-se de adotar um recurso metodológico de estranhar, distanciar-se das regras, da

visão de mundo e das atitudes legitimadas pela sociedade e suas instituições, tirando-

as da opacidade em que a cultura as coloca. Claro que estamos falando sempre de uma

mesma sociedade, a minha, a do leitor desta tese e que, felizmente, ainda aparece aqui

e ali sob formas que ainda nos permitem nos surpreender - tanto no esperado quanto

no surpreendente.

Como em geral se sabe, a metodologia qualitativa se caracteriza, entre

outras coisas, pelo emprego de uma combinação de técnicas de investigação. Esse

procedimento é recorrente em pesquisas qualitativas, visto que estas têm a

preocupação de associar os objetivos da investigação a técnicas de pesquisa

culturalmente apropriadas. Enfim, com o método etnográfico, pelo qual se coletam

dados com alto grau de detalhamento, produz-se o acesso a informações de diferentes

ordens que vão do discurso mesmo do informante e da tentativa de captação do seu

ponto de vista, ao cotejo com os fatos de que o pesquisador participa. O que talvez

torne esse tipo de estudo uma etnografia seja a possibilidade de o pesquisador, tal

como dito no texto da epígrafe deste item, captar o nexo interior da realidade que tenta

captar na sua totalidade.

Ferramenta imprescindível do etnógrafo, o caderno ou diário de campo

serve para o registro de dados, de palavras-chave e de legendas para descrições mais

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aprofundadas e também (ou principalmente como querem alguns) impressões

subjetivas. No momento mais perto possível das cenas de que participou, o

pesquisador deve registrar de forma detalhada tudo o que viveu em campo. Essas

anotações serão as peças do quebra-cabeças que é o resultado de uma pesquisa5.

O passo seguinte, às vezes, um dos mais demorados na atividade do

etnógrafo é a seleção, análise e síntese destes dados, pois não se pode ceder à tentação

de simplesmente reproduzi-los. A pedra bruta é inexpressiva, rude, disforme. O

trabalho de "ourivesaria" em que o pesquisador precisa ser técnico especializado e

também artesão é o trabalho mais vigorosamente intelectual e árduo da etnografia. Não

se está mais a campo se surpreendendo com os "imponderáveis da vida cotidiana" e

nem com os percalços e imponderáveis dos encontros marcados, não há mais festas,

risadas, nem desencontros, chuvas, expectativas, decepções. De outra parte, na

companhia solitária do micro-computador, das pilhas de livros, das anotações

minúsculas e ilegíveis do caderno de campo (fui eu que escrevi isso?), eis um

pesquisador abandonado à própria sorte, vendo o barco que o deixou no porto das ilhas

Trobriand se afastando, um ponto minúsculo no horizonte.

Também é neste momento que precisamos transmutar o dado social em

sociológico, atravessando-o pelo olhar informado pela teoria.

A etnografia que aqui apresentarei tem a marca da observação participante,

da participação na vida social e das conversas com diferentes atores. Nunca considerei

a possibilidade de entrevistar fora da situação da observação participante, a única

forma, entendo, de superar a tendência de “beber na boca do informante”. Bourdieu

(1985) destaca como um dos problemas da fase de análise, isto é, da tradução para a

ciência dos dados da pesquisa, o que chama de “ilusão da transparência”, uma

armadilha em que sucumbe o pesquisador que crê que o real se descortine

espontaneamente. Bourdieu (1995) refere-se aos pesquisadores principiantes que

sobrepõem o objeto dotado de realidade social ao objeto dotado de realidade

sociológica. Isso os torna potenciais vítimas da sociologia espontânea, ao não

5 A imagem do quebra-cabeças é apenas parcialmente feliz, dado que as culturas, não sendo sistemas fechados, impedem que se chegue a um resultado final ou a qualquer coisa que se apresente como um produto acabado. Ela serve para ilustrar, porém, o tipo de trabalho do cientista social.

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distinguirem um problema social de um problema sociológico. Um fato só se torna um

dado quando atravessado por um suporte teórico.

Muito freqüentemente, também concorre para isso a contribuição de outros

campos de conhecimento e seus aportes: história, geografia, demografia, lingüística,

para ficar com alguns, pois a rigor qualquer conhecimento pode ser a interface

necessária com o problema de pesquisa.

No caso desta tese, em pequena dimensão, a pesquisa documental serviu

para levantamento de um pouco da história da Vila de Itapuã, presente em

documentos, encontrados com alguns dos moradores e em publicações gerais.

O uso da imagem na etnografia é tão antigo como a própria, uma vez que é

da natureza da etnografia reunir os meios que produzam a compreensão da alteridade.

A novidade da fotoetnografia é a prevalência da imagem sobre o texto. Um site

(www.ufrgs.br/fotoetnografia) hospeda a fotoetnografia que vem sendo realizada por

mim e por Luiz Eduardo Robinson Achutti sobre a Vila. A parte relativa ao caderno de

campo - de imagem e de texto - é alimentada no site quase imediatamente a sua

realização, permitindo assim que a fotoetnografia seja acompanhada no seu fazer. Qual

a orientação para a escrita do caderno de campo? Que ele descreva as idas a campo,

exprima os sentimentos do pesquisador e vá, assim, acumulando dados e impressões

que, no futuro, subsidiarão empiricamente as análises da tese.

A etnografia é um método de pesquisa, razão de ser da antropologia e que implica a imersão do pesquisador no cotidiano do Outro na busca daquilo que é singular e do que é regra do ponto de vista cultural, aquilo que organiza e dá sentido à vida de um determinado grupo social. A pedra de toque daqueles que são diferentes de nós, mas que são como nós. Já a fotoetnografia é uma das formas de etnografia que utiliza a fotografia como meio de penetrar, apreender e relatar (no sentido de narrar) a cultura e os valores. (...) Desde o primeiro mês de pesquisa e ao pensar nas formas de arquivamento das fotos, surgiu a idéia de manter um diário de campo textual e fotográfico. A seguir a idéia evoluiu para a sua divulgação pela internet. Assim criamos uma página chamada fotoetnografia, contendo inicialmente o projeto da pesquisa e dois artigos metodológicos. A principal seção é o caderno de campo virtual. A cada ida significativa a campo, trazemos material, trabalhamos esse material, produzindo o diário em texto e imagem e o publicamos on-line tão logo possível. Temos assim um caderno de campo permanentemente aberto, à disposição de quem acesse a qualquer hora o site. (Achutti e Hassen, 2004)

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A partir dessas primeiras aproximações da pesquisa, passo a apresentar a

Vila de Itapuã tal qual a compreendi nestes últimos anos.

2.2 A Chegada à Vila: passar a vida em

De como a Vila de Itapuã poderia ser um campo de pesquisa desde que afinal sediava um curso de alfabetização de adultos.

A escolha da Vila de Itapuã para passar fins de semana aconteceu após

muitas buscas nas regiões fronteiriças de Porto Alegre. Não queríamos estradas

movimentadas e perigosas, não queríamos lugares de passagem para outros lugares,

não queríamos centros urbanos nas cercanias, nem poluição, nem movimento, nem

barulho, também não queríamos muita estrada de terra, nem queríamos que custasse

caro. Itapuã só não atendia ao último quesito: o hectare custava três vezes mais do que

em outros lugares. Mas compramos um sítio com o acesso que imagináramos: uma

curta e horrível estrada de chão batido, que é preciso quebrar numa outra menor e

quase não usada, a qual se deixa por uma menor ainda e muito menos usada, no fim da

qual se chega ao sonhado fim do mundo: o nosso portão. Tanto assim é que o sítio se

chama La Soñada, nome que roubamos da hospedaria do conto “Cavar um Fosso”, de

Bioy Casares. É bem verdade que tal nome não está em placa ou registros, nunca foi

firmado no cartório do finado seu Erci: é apenas um nome.

Vivemos os primeiros sete anos intrigados com Itapuã e suas contradições:

seus delírios de grandeza e seus potenciais não explorados, a autopromoção e a

hospitalidade, uma certa cordialidade e umas certas espertezas, alguns silêncios e uns

poucos brados mansos, o desejo pelo asfalto a par da imobilidade, a tensão entre um

reconhecimento da existência do IBAMA e da SEMA (Secretaria de Meio Ambiente)

e uma revolta pela área do parque fechada, depois abrindo-se com restrições. Uma

profunda queixa pela remoção dos moradores do Parque, que foi se amiudando. No

mais, foram anos em que nada ou quase nada parecia se alterar na paisagem e na vida

cotidiana. A poeira nos dias secos, o barro nos dias de chuva, os buracos todos os dias.

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As mesmas casas, os mesmos comércios, as mesmas festas, quando tudo parecia

cumprir um mesmo plano: manter-se igual.

E minhas observações resultavam sempre numa incompreensão: por que, se

eram tão pobres, as terras não eram plantadas, os pátios não tinham hortas? Por que o

alambique da nossa estrada, que vendia deliciosos licores, nunca tratou de os embalar

em garrafinhas mais atraentes? Por que não havia uma loja com artesanato local, que

poderia comercializar produtos dos índios da reserva, dos pacientes do Hospital-

Colônia, das rendeiras de origem açoriana? Essas últimas nunca existiram, os índios

nem acesso a estradas tinham, o hospital seguia ilhado. Embora o índice de

desemprego não fosse zero, como não se conseguia uma só alma para fazer um

trabalho simples? Por que tivemos que levar pedreiros de outros lugares para fazer

uma simples reforma?

Observando as atitudes comuns na parte urbana, se me fosse imposto pensar

naqueles momentos no “currículo oculto” de Itapuã, eu teria dito que eles praticavam a

desobediência civil. Parecia não haver ali a presença do estado e me parecia haver uma

tomada dos espaços públicos na busca de afirmação de uma identidade própria

itapuense. Pensava que o isolamento da sede do município (Viamão) e uma

desidentificação com o mesmo estimulassem esse processo. Para aquelas pessoas,

pensava eu indignada, parece não haver lei em Itapuã que não seja elaborada e

reconhecida pelos itapuenses. Essa impressão resultava da forma “original” como os

via manter, dirigir e estacionar seus automóveis, como faziam seus negócios e tratos,

lidavam com impostos e leis de transmissão, como participavam do Orçamento

Participativo na condição de unidade à parte, e, por fim, a forma como lidavam com o

espaço urbano, como se ele fosse de ninguém ou de cada um. (Hoje entendo algumas

dessas formas como marcas da predominância da oralidade no lugar.) Sabia que havia

um grupo que, descontente com o lixo jogado pelas ruas, passara a reciclá-lo.

Intrigava-me que levassem o lixo para o pátio de uma casa a despeito da opinião dos

vizinhos num lugar em que essa prática não era usual.

Naquela época, esses dados estavam esparsos nas minhas vagas opiniões

(muitas delas preconceituosas) sobre a Vila. Eu não os reunia como acabei de fazer e

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muito menos os entendia como peças de um jogo que me levasse a compreender que

essas impressões resultavam de uma história e de um contexto que eu desconhecia e

que em breve testemunharia se alterar.

Em 2000 surgiu a rádio Itapuã FM. Escutando-a fui tomando conhecimento

da existência de personagens, de projetos e, por fim, soube que havia uma associação

chamada Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã, GAMI. A coordenadora do grupo,

Jandira Santos, mantinha um programa na rádio, com um formato que o diferenciava

dos demais.

Como uma novela de rádio, o assunto que se arrastava em Itapuã desde que

compramos o sítio, era o asfalto. O escuro objeto de desejo de dez em cada dez

itapuenses era promessa de todos os governos estaduais, que colocavam a placa da

obra no seu início e, ao longo dos 18 quilômetros, placas menores de advertência de

"homens trabalhando", sem avisar que ou eram homens invisíveis ou trabalhavam em

horários pouco usuais. A verdade é que poucos tiveram a sorte de ver tais homens.

Depois de capeamentos incompletos que criavam uma fina camada

totalmente "esburacável" e que não podia nem ser patrolada, finalmente, o asfalto

chegou à entrada da vila e, mesmo que até hoje não tenha atingido o ponto final da via

(o Hospital-Colônia de Itapuã), facilitou a ligação da parte urbana da Vila de Itapuã

com o bairro Lami, extremo-sul de Porto Alegre.

Quando fui buscar a certidão de propriedade do meu sítio, muitos anos

depois de efetivada a compra, e a cena no cartório me chamou atenção, ainda não sabia

que o GAMI já se dedicava a organizar um curso de alfabetização. Ao conhecê-lo,

pareceu possível fazer minha pesquisa nesse local, onde juntaria duas vontades:

desconstruir a perspectiva de redenção pela alfabetização (que foi um objetivo inicial)

e entender e registrar a Vila de Itapuã. Isso porque a Vila foi deixando de ser, aos

poucos, um lugar para passar o tempo e foi se tornando um projeto para passar a vida.

Por que não tentar entender mais e mais o lugar onde possivelmente viverei?

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2.2.1 Em busca do contexto, a Vila de Itapuã

Da história, da geografia e dos moradores. Entre morros e penedos Esta terra tem segredos De encantos e magia Exuberantes paisagens Nas águas traz a mensagem de paz, amor e harmonia. Serenita Fraga, Magia.

O que faz com que, num contexto como o da Vila de Itapuã, a seguir

pormenorizado, um grupo de adultos procurem alfabetizar-se? Existe relação entre o

desejo de se alfabetizar e um possível incremento nos níveis de letramento no local?

Ou seja, o momento especial por que passa a vila pode ser apontado como condição

para a emergência desse grupo?

Apresentarei a seguir algumas descrições de espaços importantes para o

entendimento da Vila:, a região da “Reforma Agrária”, a Colônia Japonesa, o

Hospital-Colônia Itapuã, o Parque Estadual de Conservação Ambiental e a parte

urbana. Pretendo mostrar como a criação desse Parque, inicialmente repudiado pela

população local, passou a ser genuinamente o primeiro destaque positivo da região, ao

passo que os outros marcos sociais ou territoriais garantiam o caráter de isolamento e

de exclusão.

Rompido esse sentimento de exclusão, anunciou-se um novo horizonte que,

entre outras características, trouxe à região a ampliação dos níveis de letramento sócio-

historicamente produzido.

2.2.1.1 Um pouco da história de Itapuã

De como a história do local revela o passado de isolamento. Entre morros e coxilhas Açorianos fizeram as trilhas. Para chegar a Viamão Viajando entre montes Descortinaram horizontes Nas belezas deste chão. Serenita Fraga, Magia.

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Viveram na região índios ibianguaras e outros grupos guaranizados. A eles

se deve o nome do lugar que em tupi significa ponta de pedra.

Os casais açorianos, cuja chegada representa o marco de fundação de Porto

Alegre, capital do Rio Grande do Sul, desembarcaram primeiramente em Itapuã. O

desembarque dos açorianos se deu a partir de 1752. Porto Alegre então não existia

como cidade, era uma região utilizada como porto para Viamão, tanto que se chamava

exatamente Porto de Viamão.

Em 1640, os campos de Itapuã foram divididos em sesmarias e distribuídos

a estancieiros de origem açoriana, provenientes de Laguna/SC. O povoado que aos

poucos se constituiu primeiramente se chamou Porto da Estância, e tal porto serviu de

escoadouro para a produção local. (Borges Fortes, 1978)

Viamão foi oficializada município em 1741 e a ele Itapuã pertence até hoje.

Em 1763, em razão da invasão do estado do Rio Grande do Sul pelos espanhóis,

Viamão passou a sediar o governo do estado e assim se manteve por dez anos. Nessa

época, a divisão das terras em sesmarias e a doação das mesmas a pessoas de

confiança do governo fixaram moradores e pretenderam garantir a posse da região.

Uma grande enseada foi porto de chegada Da capela o portal Itapuã antiga estância Esquecida na distância Da primeira capital Serenita Fraga, Magia.

Quase um século depois, Itapuã foi novamente cenário de importante

acontecimento da história gaúcha: a Revolução Farroupilha. Em junho de 1836, Bento

Gonçalves e suas tropas montaram acampamento, construíram trincheiras e

improvisaram fortificações entre a área central de Viamão e a Vila de Itapuã. Era um

local perfeitamente estratégico para os rebeldes sitiarem Porto Alegre. Durante este

período da Revolução Farroupilha, Viamão, por ter sido muito disputada, foi a região

em que se travaram os mais violentos combates. Além disso, a partir de base em

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Itapuã, os farrapos podiam impedir as comunicações entre a capital e a cidade de Rio

Grande pela Lagoa dos Patos.6 Quando os barcos vindos pela Lagoa chegavam ao

encontro desta com o Guaíba, tornavam-se alvos dos farrapos entrincheirados

próximos ao farol de Itapuã. Quando se deram conta do fato, os imperialistas trataram

de articular um avanço por terra que surpreendeu os farrapos pelas costas. Exército

pobre, sem poderio armamentista de terra que pudesse fazer frente ao do exército

imperial, não teve como reagir. Os farrapos de mais alto posto ficavam instalados

numa grande casa, ainda hoje avistável quando se costeia o Parque de barco, de onde

divisaram o ataque e puderam fugir em direção ao interior. Os soldados, porém, foram

todos mortos, e, como acontece com os de baixas patentes, nem de seus nomes há

registros.

Destes episódios históricos, resta no atual Parque Estadual de Itapuã um

pedaço de uma fortaleza e, no canal do Guaíba, entre a Ilha do Junco e o Morro da

Fortaleza, permanecem restos afundados de embarcações imperiais. Assim, até 1841,

os farrapos ali ficaram estabelecidos e dali partiam para as tentativas de invasão a

Porto Alegre. Foi o conhecido cerco a Porto Alegre. A partir disso, Viamão foi elevada

pelos farrapos à condição de "Vila Setembrina". Em 1880, Viamão tornou-se

município independente de Porto Alegre. De todo modo, pela sua localização de

continuidade pelo litoral e atualmente em razão do asfalto, Itapuã parece se sentir mais

vinculada a Porto Alegre, como se fosse o seu braço mais rural, inclusive, a maior

parte dos motoristas de Itapuã, se precisa ir à sede de Viamão, prefere fazer uma volta

bem maior, indo primeiro a Porto Alegre, caminho recentemente asfaltado.

Raízes entrelaçadas De uma raça miscigenada do Português Guarani a ponta de pedra ita A descendência bendita dos que viveram aqui. Serenita Fraga, Magia. 6 O estreitamento que se revelou estratégico aos farroupilhas é apontado pelo guia do passeio turístico que percorre o rio da vila até o farol, um dos marcos identitários da região. O farol é descrito como o único do país em que a torre faz parte do conjunto arquitetônico, partindo do seu centro.

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2.2.1.2 Descrição do entorno

De como a parte rural da Vila de Itapuã contém lugares "curiosos" e ao mesmo tempo reveladores da sua localização que propiciam o isolamento e a exclusão.

Quando Lefebvre (1969) define a cidade como a "projeção da sociedade

sobre um dado território", ele está a mostrar o caráter de dependência7 que a cidade

possui da história que a constituiu, das peculiaridades de que se constrói. Uma visão

das peculiaridades que constituem a região de Itapuã vai ser aqui apresentada.

Itapuã é um local que mescla o rural e o urbano, o sentido das coisas

paradas no tempo e questões mais atuais como a ecologia, a coleta e reciclagem do

lixo seco, um laboratório de produção de sementes orgânicas. Nessa pesquisa, busquei

identificar a forma que esse sentimento tomou numa comunidade com características

tais que, ao mesmo tempo em que se configura como interessante pelas peculiaridades,

não deixa de representar um pouco de tudo o que existe nas milhares de pequenas

cidades do país.

O local desta etnografia apresenta as características econômicas e

territoriais de um lugarejo, tal como muitos outros, mas também tem como marca a

diversidade, a convivência do ímpar, do desigual, dos contrastes, das ambigüidades.

A Vila de Itapuã dista 40 km da capital do Rio Grande do Sul, e é um dos

sete distritos do município de Viamão, Grande Porto Alegre. A população de 8 mil

habitantes se distribui eqüitativamente na parte rural e no vilarejo. Os dados

estatísticos específicos de Itapuã são difíceis de se obter, pois a Prefeitura de Viamão

não os tem discriminados por distritos. Assim, este dado de população foi fornecido

pelo CAR, Centro Administrativo Regional, enquanto que o presidente da Associação

Pró-Itapuã garantiu que a população não ultrapassava os seis mil habitantes.

Laboratório de ervas do nosso Parque reserva Protegido de Tupã Simples bela encantada Seja sempre abençoada A terra de Itapuã. (Serenita Fraga, Magia) 7 Opõe-se a outros teóricos da antropologia urbana que consideram a cidade uma variável independente.

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Do ponto de vista social, chama atenção em Itapuã a presença de uma

colônia japonesa, onde se podem conhecer imigrantes, que vieram na primeira leva de

imigração japonesa pós-guerra, muitos dos quais, sobretudo os mais velhos, não falam

português. Um outro grupo de japoneses foi alocado na mesma época em Ivoti.

Para a sua atividade econômica, importava estarem próximos a um centro

urbano para onde a produção pudesse escoar. Da perspectiva do Estado, era preciso

achar um local para honrar o acordo, depositando esse povo numa terra pela qual não

houvesse disputa dos habitantes locais. Itapuã era esse lugar: perto da capital e ao

mesmo tempo inacessível, estradas ruins, terra exaurida e pobre, longas extensões

descobertas. Para sobreviver da agricultura, só um plantador tenaz, conformado e

lutador. Servia para colocar os japoneses. A colônia japonesa de Itapuã é hoje

considerada a maior produtora de hortaliças folhosas da região metropolitana

(Rodrigues, s/d, p. 36). Nos hectares em que não há japoneses, gravatás, vassouras e

outros inços vicejam.

As propriedades dos japoneses não são extensas, mas suficientemente

grandes para dificultarem o sentimento de vizinhança. O sentido de comunidade se

compromete em razão do isolamento em que vivem as famílias. Isolamento do

contexto mais geral e isolamento entre si, o qual é rompido em duas situações de

quebra de rotina: as festas e os enterros.

As novas gerações contraíram matrimônios com brasileiros, enfrentaram as

diferenças culturais, tiveram seus filhos, "aquerenciaram-se" ou partiram. As pequenas

escolas da região têm seus bancos ocupados por meninos e meninas de olhos puxados,

que dificilmente faltam à aula e cujos pais também têm presença constante nas

reuniões e participação ativa nas decisões, o que os diferencia da maioria dos outros

pais.

Nas proximidades da colônia japonesa, em uma região de várzea foi, na

década de 60, realizada uma experiência de reforma agrária. Os lotes foram

distribuídos de forma desorganizada, sem apoio e infra-estrutura adequados a colonos

de várias partes do estado. Acabou servindo de argumento contra a própria reforma

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agrária, pois em pouco tempo as terras foram sendo vendidas, restando ali muito pouco

do projeto original, a não ser o nome. O local é conhecido como "Reforma" e é

constituído de pequenos sítios, de moradores que sobrevivem da economia informal ou

subempregos na região ou em Porto Alegre.

Para além da colônia japonesa e da região da “reforma”, numa ponta onde o

mundo parece querer acabar, tendo ao fundo a imensa Lagoa Negra, o Hospital-

Colônia de Itapuã causa uma sensação de volta no tempo. Dez quilômetros adiante da

Vila, vizinhando com o Parque Estadual adiante descrito, o Hospital, criado para

receber doentes de lepra ou hanseníase, não é apenas um edifício, mas uma cidade em

miniatura. Ali se encontram pavilhões de internação, casas, ruas com calçamento de

paralelepípedo, outras de barro, duas igrejas, uma católica e uma luterana, teatro,

cassino, padaria, escola, cadeia, lavanderia, refeitório, horta, tambo de leite, cemitério,

equipamentos com que se buscava reproduzir uma vila. Para a cadeia, iriam os

perturbadores da ordem, mas principalmente os que, inconformados, tentavam fugir e

eram caçados pela polícia tão logo denunciada a fuga. Às vezes, a denúncia estava no

próprio corpo, portador das marcas estigmatizantes. Tudo isso ainda está lá: o teatro,

que é um grande prédio de dois pisos, com vários salões está em ruínas, assim como

outras edificações, e principalmente a igreja luterana de grande valor arquitetônico.8

O local é todo cercado e restrito à visitação, tendo guarda na portaria.9

Estruturalmente, é dividido de acordo com o modelo instalado em outros hospitais-

colônias, em duas partes que, no passado, eram chamadas “parte limpa”, onde ficavam

as casas dos funcionários, e “parte suja”, onde moravam os hansenianos. O Hospital-

Colônia foi construído exatamente com o intuito de isolar seus moradores: os

“leprosos”, que para lá foram encaminhados na década de 40, a maioria à força.

Naquela época, a pessoa que era descoberta portadora de hanseníase ou lepra era

compulsoriamente transferida para o hospital-colônia, onde viveria o resto da vida

entre outros “leprosos”. Se tivesse filhos, esses eram imediatamente separados da mãe,

8 A igreja luterana foi planejada por um dos arquitetos mais importantes da primeira metade do século passado, Theodor Wiedersphan, responsável pela maior parte dos prédios históricos de Porto Alegre (Margs, Correios e Telégrafos, entre outros). 9 Demorei a me dar conta de que a guarda existe não para coibir a saída dos moradores do hospital, mas para defendê-los de uma eventual ameaça externa, como ladrões e oportunistas. Vivem ali pacientes do São Pedro ou idosos e doentes, e o local é bastante isolado.

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encaminhados para uma instituição para órfãos, localizada na zona sul de Porto

Alegre, o Amparo Santa Cruz, conhecido na época como “preventório”. Os filhos

podiam ver os pais duas vezes por ano, mas apenas de longe, e assim mal se podiam

conhecer. Quem quer que se disponha a viajar alguns quilômetros em direção ao nada

e sentar na pequena varanda de uma casa de um paciente viverá uma experiência

marcante. As histórias transbordam da sua ânsia de contar, de romper com o

silenciamento que lhes tem sido imposto. Hoje, nenhum deles está impedido de sair.

Sair para onde? Para encontrar quem?

Um deles me conta com aparente tranqüilidade como foi deixado aos sete

anos de idade naquela cidadezinha aonde foi levado com o pretexto de passar as férias.

Depois de alguns procedimentos que ele não entendeu bem porque se ocupava em

observar aquele lugar, o pai se despediu e nunca mais se viram. Apesar de dezenas de

histórias desse tipo, os “moradores” não foram poupados da inscrição no pórtico: “não

caminhamos sós”.

Grande parte dessa população é de imigrantes alemães, o que faz mais forte

a hipótese de que eles eram enviados para o Brasil ao serem diagnosticados. Nos anos

50, quando se tornou acessível o tratamento da lepra, foi que o local recebeu os

primeiros funcionários. Até então só viviam lá os médicos e irmãs franciscanas,

voluntárias, renunciantes. Os próprios pacientes escolhiam as “autoridades” da vila-

hospital, como delegado e prefeito. Mais de mil pacientes conviveram durante as

primeiras décadas de existência do leprosário. Em 1954, a lei de “internação

compulsória” foi abolida, de forma que deste ano até 1960 o número de pacientes

diminuiu para 350 (Secretaria da Saúde, s/d). Ocorrre que boa parte já sem laços

externos, enfim, sem ter para onde ir.

Destes ainda restavam lá 75 quando comecei essa pesquisa, hoje 60, que

são idosos, alguns com sinais de demência, a maioria mutilados, pois a lepra provoca

desde a insensibilidade na pele até a perda de pedaços do corpo e cegueira, além de

problemas articulares10. As pessoas com quem procurei conversar são aquelas mais

10 (Agência Brasil - ABr) - O Brasil é um dos países do mundo que apresenta o maior número de doentes do mal de Hansen, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). O Rio Grande do Sul é apontado como o único Estado que conseguiu atingir a meta preconizada pela entidade mundial da saúde que é de um caso para

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jovens e lúcidas. Elas falaram de sua chegada ao hospital, dos primeiros tempos, em

depoimentos em geral sofridos, mas às vezes marcados por uma certa nostalgia dos

tempos da juventude. Ali recriaram suas vidas e pactuaram com a simulação de uma

sociedade, talvez a melhor forma de suportar a prisão.

Um dia, visitando o cemitério, dona Evita fez questão de mostrar onde se

havia enterrado na semana anterior um velho companheiro, e se quedou chorosa diante

do montinho que ainda não tinha recebido uma cruz ou um nome.

Dona Juraci mais tarde no mesmo dia conta para a câmera do Arlaud que

vive ali há 40 anos, que foi internada com a lepra tuberculóide junto com o marido que

tinha a lepra do tipo virchowiana, mais psoríase e que morreu de câncer. Ele foi cantor

no conjunto musical de pacientes que se apresentava no teatro. O casal tinha três

filhos, o mais velho com apenas oito anos quando os pais foram diagnosticados, e

foram encaminhados para o Amparo Santa Cruz, encaminhados - nestas épocas em

que não se adivinhava a cura - para o destino, que seria nunca ter contato com os pais.

Dona Juraci os via uma vez a cada mês ou a cada dois meses, separados pela cerca. Ela

conta que foram afetados de tal modo que todos ficaram com “problemas

psicológicos”. Depois de enviuvar, dona Juraci casou com outro paciente, frisando que

os casamentos eram sempre entre doentes, e teve mais um filho. Quando lhe pergunto

como é a convivência com os doentes mentais que hoje também vivem no Hospital,

ela responde sem refletir que é muito boa, que não incomodam nada... para logo depois

contar que entre eles está um de seus filhos.

Hoje, apesar de a hanseníase ser tratada ambulatorialmente, o Hospital-

Colônia continua sendo a casa desses hansenianos, que dividem o espaço daquela

cidade fantasma com mais de cem ex-pacientes do Hospital São Pedro. Confirma-se a

tese de Foucault (1972) que considerava a loucura herdeira da lepra. Quando o último

hanseniano morrer, o que não deve demorar muitos anos, que destino será dado ao

Hospital-Colônia?

cada 100 mil habitantes. O Estado, que conseguiu erradicar a lepra, tem hoje 592 pessoas em tratamento. O mal de Hansen, mais conhecido como lepra, é uma doença infecto-contagiosa que se transmite por um bacilo e se caracteriza pelo aparecimento de manchas, mais escuras ou mais claras, pelo corpo. As partes atingidas ficam insensíveis a dor, ainda que atingidas por objetos perfurantes.

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O local é habitado por idosos que continuam lá porque perderam os

vínculos com a vida de fora. Dadas as condições físicas em que se encontram

(precisam de tratamento para as seqüelas ou por doenças da idade) e as condições que

encontrariam numa sociedade discriminadora e regulada pelo poder aquisitivo, parece

que é o melhor para eles. Alguns vivem nas casas e estas têm pátios, jardins, animais

domésticos, há funcionários que os cuidam e com quem convivem de forma muito

amistosa. As pessoas que trabalham no Hospital-Colônia, a maioria moradora de Porto

Alegre e a minoria da Vila de Itapuã e ainda alguns residentes no próprio Hospital,

tanto quanto os pacientes e tudo o mais que lá vemos, parecem saídas de um outro

mundo. E o estranho é que o lugar, se fosse possível abstrair o passado, parece um

bom lugar de se morar.

Três grandes festas anuais marcam ciclos do Hospital: a festa de São João, a

festa de Natal e a comemoração do dia da hanseníase, na verdade dia da

conscientização sobre a doença. A festa de São João é uma espécie de "e as noivas

chegaram". É organizada por um recreacionista do Hospital com formação em

Educação Física, que transformou um dos pavilhões num ateliê de artesanato. Um dia,

cansado de esperar pela autorização oficial para uso de um prédio abandonado,

Eduardo reuniu alguns pacientes para tomaram posse do lugar numa cerimônia

informal de arrombamento de porta. Conseguiu reformar a estrutura e pintar as paredes

com o apoio tão somente dos pacientes mentais e uma certa "cobertura" da

administradora da época. Para a festa junina, ele providencia que pacientes mulheres

de um outro serviço de saúde público de Porto Alegre venham para comemorar e

dançar com os pacientes da Colônia. A festa de Natal também é organizada por ele. A

festa do dia da hanseníase é uma iniciativa da administração. Neste dia, o hospital é

aberto para convidados, autoridades e população, e se realiza um grande churrasco.

Todos os administradores, em geral vindos de Porto Alegre, que ocupam cargo de

confiança do governo do estado, lutam pela visita de autoridades. Mesmo tendo ido

poucas vezes ao Hospital, pude acompanhar a expectativa que geram em todos as

visitas anunciadas do vice-governador, do secretário da saúde, de alguma autoridade

médica. Nunca testemunhei as visitas, mas sim as frustrações provocadas pelo anúncio

de seus cancelamentos, em geral, em cima da hora. Numa dessas vezes, um

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funcionário se queixava: "se eles não vêm, a gente trabalha aqui para quê? A gente

está se enterrando como os pacientes." Talvez seja esse sentimento responsável pelas

trocas constantes de administradores, cargo que mais parece castigo.

Se os trabalhadores, com a notável exceção que é Eduardo, se sentem

isolados e diminuídos, não se dá o mesmo com os pacientes que sempre fazem questão

de mostrar apego ao lugar. Tanto que alguns temem ser retirados, uma vez que sua

permanência nas casas volta e meia se vê ameaçada por boatos ou por medidas reais.

Há perceptíveis sinais de abandono por parte do poder público: prédios sem

manutenção, diminuição de verba, fechamento do ambulatório à população do entorno,

entre outras. A resistência se dá de forma tímida, os moradores apenas querem seguir

vivendo seu cotidiano, sem sobressaltos, repetindo dia após dia a mesma existência.

Livres, vivem como presos. Cercados, sabem-se livres. Ali, vivem um ritmo próprio

numa cidadela de ficção, com o detalhe de ser real.

Outro ponto geográfico interessante da região, é um mirante natural

chamado Cova Funda, abaixo do qual há uma grande fenda, escavada no morro pela

força dos ventos e da água da chuva. Dali se avistam os canteiros da Colônia Japonesa,

a várzea da região conhecida por Reforma Agráriam a lagoa Negra e a laguna dos

Patos.

Nesse ponto, vivem "depositados" índios guaranis, transferidos da região de

Águas Claras. Pauperizados e longe dos olhos de imprensa, de órgãos municipais,

estaduais, da FUNAI, os índios caçam, vendem madeira da Cova Funda para lenha e

esmolam nas redondezas. Sem acesso ao asfalto, não têm como vender produção

artesanal, passam frio nas malocas de lona preta, adoecem e morrem praticamente sem

assistência.

A região da Varzinha, uma extensa faixa que acompanha a Laguna dos

Patos, está subdividida em propriedades rurais que transformaram a orla em praias

particulares. Alguns dos proprietários abrem vias para a lagoa e cobram ingressos para

banhistas. Outros dividiram suas terras em pequenos terrenos, fazendo loteamentos

irregulares. É nessa região, mas em direção aos morros e não ao litoral que fica o meu

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sítio, numa região chamada Toca do Tigre, nome de uma formação rochosa onde

teriam vivido onças até meados do século passado.

2.2.1.4 O Parque Estadual de Itapuã, enfim algo de positivo...

A região de Itapuã há muito vem sendo alvo de pesquisas, principalmente

na área da Biologia e da Geografia. Além da riqueza de fauna e flora, a região chama a

atenção pela beleza. Beleza grandemente prejudicada pela ação do homem que durante

muito tempo depredou, extraiu o granito rosa, típico da constituição geológica local,

derrubou matas nativas e pescou de forma predatória. Esse dado é importante para

entendermos o sentido do discurso ecológico presente no lugar, encabeçado pelos que

se acreditam porta-vozes de um “ser itapuense” (políticos, professores, lideranças) e

que gradualmente vem se disseminando pela população. Em razão da abertura do

Parque Estadual de Itapuã, a região entrou para o noticiário, ganhando matérias de

destaque nas televisões nacionais.

Você já imaginou como é incrível encontrar bem pertinho de uma metrópole de 1,3 milhão de habitantes um monte de bichos? Bichos como bugio-ruivo, jaguatirica, lontra, gato-maracajá e tantos outros. E que tal se, de quebra, a flora for excepcional, típica da Mata Atlântica, com 206 espécies de aves, 29 de mamíferos, 37 de répteis, 32 de anfíbios, 59 de peixes e 467 de plantas? E se o ar for limpo, livre de qualquer poluição? Pois é, isso parece quase impossível nesses tempos de degradação quase plena da natureza. Mas todas essas maravilhas estão no Parque Estadual de Itapuã, na cidade de Viamão, a 40 quilômetros de Porto Alegre. (...) Aberto ao público no dia 22 de abril, depois de muito trabalho e investimento para deixar o lugar bem bonito e agradável, o parque é nada menos que extraordinário. Para quem tem lá a sua veia ecológica, o passeio é do tipo reconfortante, imperdível. (Correio Braziliense, 3/07/02)11

Não faz idéia quem lê uma notícia como essa de como um lugar tão idílico

pode resultar de um longo conflito e de uma história de desmandos e de perdas. Não

que a notícia não mostre um fato real: uma grande área verde a ser cuidada e com isso

beneficiar flora e fauna no seu direito de ter a vida assegurada. Ela não mostra, porém,

11 Sobre as belezas de Itapuã, vale registrar que o Guia 4 Rodas/2004 elegeu o pôr-do-sol no Parque de Itapuã como o quarto melhor do Brasil, perdendo apenas para Jericoacara no Ceará, praia do Jacaré em João Pessoa e Mirante do Boldró em Fernando de Noronha.

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seu Nico, aos 55 anos (que para um pescador é uma idade bastante avançada),

juntando seus pertences pessoais e os amontoando na carroça de um vizinho, junto

com fogão, cama e guarda-roupa, para logo depois ir se encontrar com a esposa que

chorosa o aguardava uma pequena casa alugada na vila. Seu Nico, nascido e criado no

Parque, casado com a prima, nascida e criada no Parque, que tinha lembrança de ter

saído dele não mais do que oito vezes em toda a sua existência, se transferia deixando

para trás a casa própria, seu trabalho de pescador e toda a sua história. Se fosse só ele,

talvez não fosse o caso mesmo de figurar no noticiário nacional. Ou talvez fosse. O

que ocorre é que o mesmo se deu com mais de trinta famílias, com a mesma história.

Indenização? Promessas houve.

A tragédia que se abateu sobre a família de Nico e dos demais, começa num

episódio aparentemente sem relação com eles. Nos anos 70, o ecologista

Lutzemberger, inconformado com as práticas extrativistas, reuniu jovens estudantes de

Porto Alegre que deitaram sobre uma grande rocha que seria dinamitada por

graniteiros. O fato na época atraiu publicidade e contribuiu para firmar a convicção de

que a mata precisava ser protegida. Em 1973, o Parque foi criado no papel e mais

tarde, por iniciativa do governo do Estado, foi cercado, monitorado, as casas de

veraneio e as de moradores pescadores foram retiradas, tentando-se apagar os rastros

da passagem humana pela área. Neste período a expansão da consciência ecológica

favoreceu a opinião pública quanto ao acerto das medidas. A partir de 1991, ficou

totalmente proibida a visitação ao Parque: apenas pesquisadores, em geral biólogos

com autorização especial poderiam entrar. Apenas um pescador foi mantido no local,

com a incumbência de cuidar de barcos e redes que restaram dos demais pescadores12.

Em 2002, o Parque, depois de longa polêmica entre os preservacionistas

(que entendem que não deveria receber qualquer ser humano) e os conservacionistas

(que entendem que passeios controlados são uma forma de conservação mais eficaz do

que a interdição), foi reaberto à visitação, com cobrança de ingressos e número

controlado de visitantes por dia e por praia. Planejado para receber visitantes, com

instruções de uso, proibições e permissões bem claras e estabelecidas, o Parque

12 Seu Manoel aparece no caderno de campo em www.ufrgs.br/fotoetnografia.

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recebeu no primeiro verão um contingente de turistas que chegava ao limite máximo

permitido nos fins de semana, isto é, setecentas pessoas.

Para a recuperação, manutenção e reabertura do Parque, foram treinados

pela Secretaria de Meio Ambiente e pela Associação de Condutores Locais de

Ecoturismo de Itapuã (ACLEI), inicialmente quarenta moradores para serem

condutores locais. Eles aprenderam a fazer a manutenção das trilhas, conheceram a

história de Itapuã e tiveram noções de primeiros socorros. Boa parte desses agentes

ecológicos foram pescadores, filhos de pescadores e outros moradores da área do

Parque, de certa forma, um dia responsabilizados por parcela dos danos causados pela

ocupação humana no local. Até a renovação do governo do Estado em 2002, se

afirmava que, individualmente, o Parque era um dos maiores empregadores da Vila de

Itapuã.

O jogo de forças subjacentes a essa inversão que se operou a partir da

transformação do local em reserva ambiental mereceria ser aprofundado, uma vez que

ele é exemplar da permeabilidade do local ou de como o local é atravessado pelo

global. Se o local pode ser definido, como o faz Luchiari (1998), “como resultado de

um feixe de relações que soma as particularidades às demandas do global que o

atravessa”, então tal relação dos moradores com o Parque pode ser um exemplo deste

processo. Para o argumento dessa pesquisa, é importante destacar esse fato, pois a

primeira reação dos moradores foi de repulsa ao fechamento do Parque que, na época,

ainda teve como acréscimo a forma autoritária como tudo se processou. A revolta era

generalizada. Com o tempo, os pescadores mais antigos foram se conformando,

tiveram seus filhos trabalhando no Parque ou em trabalhos menos penosos na Vila,

estabeleceram-se em novas casas, aposentaram-se por idade, viram os netos indo para

a escola. O acomodamento dos pescadores diminuiu a revolta geral da população que

foi sendo convencida da importância da proteção da área do Parque.

O Parque foi o primeiro evento a projetar positivamente a Vila, daí porque

ele ocupar posição de destaque no entendimento que essa tese propõe. Ele é

considerado atualmente uma das mais importantes reservas ecológicas de mata

atlântica do sul, tem cerca de 5.500 hectares de praias, campos, lagoas, e é margeado

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tanto pelo Guaíba quanto pela Laguna dos Patos. Há uma sucessão de praias: Pombas,

Pedreira, Araçá, Onça, Junco, Sítio, Praínha, do Tigre, de Fora, além do

impressionante Pontal das Desertas, um braço de areia que avança sobre a Lagoa dos

Patos13. Também na área do Parque está o farol de Itapuã e o morro da Fortaleza. O

farol é um dos mais bonitos do país, e foi erguido bem na confluência do Guaíba com

a Laguna dos Patos, tendo sua construção se concluído em 1860.

Se retomarmos a pequena história da Vila de Itapuã, veremos que os

tempos remotos encontraram uma região marcada pela beleza da paisagem, numa

época em que os caminhos fluviais lhe conferiam uma localização estratégica. Por ali

passaram os casais açorianos antes de se estabelecerem e darem origem a Porto

Alegre. Os casais não ficaram, mas logo a seguir a divisão em sesmarias garantiu

donos às terras devolutas. O povoamento iniciou timidamente na região do porto, um

porto relativamente importante. Uma rede hoteleira foi se instalando em razão da

necessidade de pernoite dos viajantes e também de sua condição de balneário. Uma

estação de água mineral movimentou a insipiente economia local, até que uma famosa

enchente, em 1941, fizesse desaparecer para sempre o veio da água.

Com a retração do transporte fluvial e o incremento do rodoviário, restou

uma condição da Vila: o isolamento, um lugar que não dá passagem a nenhum outro, o

extremo sul da Grande Porto Alegre, limitada pelas águas do maior lago e da maior

laguna do Estado, uma estrada de péssimas condições.

Itapuã, bela e isolada. Eis que tal dupla condição acabou atraindo

“investimentos” no lugar. Lamentavelmente, investimentos pela exclusão: uma mini-

cidade para que leprosos ali aguardassem o seu fim (como os leprosos não eram

necessariamente pobres, a cidadezinha reunia excelentes condições de infra-estrutura

que, por certo, nem de longe compensavam a perversidade da exclusão, da separação

da família, da súbita passagem de cidadão a paria e dos males da doença), a instalação

de imigrantes japoneses, vindos em situação de pobreza para serem colonos no Brasil, 13 Segundo o Plano de Manejo do Parque de Itapuã (1997), na região, há mais de 300 espécies vegetais, entre elas a figueira, a corticeira-do-banhado, a samambaia, o jerivá, o butiazeiro, orquídeas, cactos, timbaúvas e bromélias. Há 40 espécies de répteis registrados, entre eles o jacaré-de-papo-amarelo, teiú, e a cobra coral. Mais de 200 espécies de aves, entre elas, bem-te-vis, suriris, papa-moscas, tico-tico, coleirinhos e saíras fazem parte desse ecossistema. Também passam por ali aves migratórias, como o trinta-réis-boreal, o batuiruçu e o maçarico-acanelado.

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uma experiência de Reforma Agrária, da década de 60, mal planejada e mais bem

entendida se alinhada aos outros “depósitos” de populações na Vila.

As outras cidades da Grande Porto Alegre cresciam, inchavam, assistiam à

chegada do “progresso” (ainda que pela sua pior face, alimentando bolsões de miséria,

ou se aglomerando como cidades-dormitório da mão-de-obra mal paga), eram

iluminadas, asfaltadas, povoadas, enquanto a Vila de Itapuã, como alteração, apenas

assistia à venda das grandes propriedades rurais originais ou o parcelamento das terras

ao serem assumidas pelos herdeiros. Foram aparecendo os pequenos sítios, comprados

por pessoas de fora, ou, se mantidos na família, diminuídos na sua produção, fazendo

com que os provedores buscassem outras fontes de renda que não a própria terra,

empregando-se na extração predatória do granito rosa ou nas fazendas que restavam.

De pequena monta econômica, sobrava como atrativo a região de mata atlântica,

limítrofe às águas do Guaíba e Lagoa dos Patos, onde se construíam modestas casas de

veranistas, próximas às casas dos pescadores.

Na década de 90, o já criado Parque teve sua área fechada para

conservação, o que pareceu naquele momento consolidar o destino da Vila, fadada

sempre a perdas. Isso e mais a forma arbitrária como o Parque foi fechado ao acesso,

como as casas foram desapropriadas e destruídas, os pescadores expulsos, serviram

para firmar o sentimento: não bastassem os excluídos serem mandados para lá, os

próprios itapuenses são expulsos de um território que sempre foi seu. Mas como ali, a

acomodação sempre é questão de tempo, passada a revolta inicial, ficou uma mágoa, e

a vida prosseguiu. Sem explosão imobiliária, até porque a terra seguiu sendo cara. Sem

progresso.

Talvez tudo ficasse assim por muito tempo mais. Entretanto, os planos do

governo não eram deixar o Parque fechado para sempre, nem abandonado. Na gestão

de Olívio Dutra no governo do Estado, houve investimento na infra-estrutura do

Parque que o transformou numa atração turística e abriu-o à visitação pública

controlada (a despeito da reação de biólogos da CLEPEI que acreditam que a

freqüência humana compromete a recuperação ambiental). Nesta mesma gestão, o

asfalto avançou (na verdade, foi refeito em cima de camadas refeitas).

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A partir daí, a importância do Parque finalmente se consolida, e ele é um

primeiro investimento que traz positividade à Vila. Ainda que tenha que pagar para

passar o dia no “seu” Parque, a existência, o modo como se implementou cercado de

cuidados, instruções de uso, mudaram a visão do itapuense. Além disso, o Parque deu

empregos, tornou-se fonte de prestígio e orgulho, trouxe consigo, além do asfalto que

rompeu o isolamento, um novo discurso a respeito da natureza em geral e de Itapuã

como um lugar exemplar. O Parque e o asfalto integraram Itapuã no mapa dos lugares

realmente existentes e não mais depósito. Programas de TV do centro do país, notícias

em jornais do estado, pesquisadores vindos cada vez de mais longe, todos interessados

e exaltando as características louváveis da região. Já não se pragueja mais pela

ausência de “progresso” e desenvolvimento, agora o discurso é ecológico.

2.2.2 A parte urbana

De como a vila é sede de contrastes, e a ecologia ganha corpo no discurso corrente (ainda que não necessariamente uma prática incorporada), mas que eleva o lugar a um novo patamar.

Todos esses lugares mencionados pertencem ao distrito e à órbita da Vila

de Itapuã.

A vila propriamente dita tem uma rua principal muito comprida, calçada

com paralelepípedos, que começa na RS 118, e termina na praia. É na vila que se

evidenciam alguns remanescentes traços da cultura açoriana, seja nas ruas estreitas e

compridas, ou estampados na arquitetura rústica das casas, junto às calçadas, sem pátio

na frente, a igreja voltada para o rio, de costas para o povoado14.

Da perspectiva econômica e social, a região é rural, com uma economia

agropecuária (sobretudo leiteira), que mantém os itapuenses ligados às tradições do

campo, mas também sobreviveu da pesca por longos períodos, a qual acontece até

hoje, só que agora de forma controlada e fora do Parque. Localizam-se bem próximos, 14 Há uma versão segundo a qual a igreja original, inaugurada em 1876, tinha duas torres e era voltada para a vila. Após um incêndio, teria sido reconstruída por um fazendeiro em agradecimento à boa safra do ano. Como a imagem, segundo a lenda, costumava virar-se sozinha para a praia tão logo as senhoras se pusessem a rezar o terço, a nova igreja foi construída de frente para a praia e com isso poderia proteger os pescadores.

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na região da vila, o Salão Reverência de Tradições Gaúchas e a Colônia Z4 de

pescadores. Na rua dos Pescadores, não é raro se ver um homem de poncho e

bombacha tecendo sua rede de pesca.

Muitos moradores da parte urbana são proprietários de sítios resultantes de

heranças que parcelaram as terras, e estes sítios estão geralmente largados e à venda,

sendo os preços geralmente muito altos. Uma primeira impressão de quem anda pelas

estradas internas é de que todas as terras estão à venda. Mas é um jeito típico de

vender: as placas apodrecem, os telefones mal podem ser distinguidos e não tiveram os

prefixos atualizados. Não têm por que se desfazer de um bem, com o qual não contam

para sua modesta sobrevivência, a não ser que a venda lhes traga muito proveito.

A vila propriamente dita é o espaço urbano de Itapuã15. Pode parecer

curioso tratar por urbano um espaço com as características da Vila de Itapuã, um

pequeno distrito da economicamente menos expressiva cidade da Grande Porto

Alegre, Viamão. Isso merece uma primeira explicação. Em que contexto pode-se

considerar urbano tal espaço? Em relação à vida rural - cujas características principais

são o isolamento geográfico decorrente das grandes distâncias entre as moradias dos

grupos familiares, a ausência de serviços públicos do tipo urbano (iluminação pública,

coleta de lixo, tratamento de esgotos, etc), dificuldades de acesso aos dispositivos

urbanos (bancos, comércios, prefeitura, igreja, posto de saúde, locais de lazer, etc) - a

Vila de Itapuã, em que pese a pequena estatura, a menor complexidade e a pouca

diversidade, pode ser reconhecida como o centro urbano da região: é para onde

acorrem as pessoas na busca dos serviços e na busca de uma socialidade típica de

cidade.

Na vila, acontecem os negócios que movimentam a economia local, são

encontrados os profissionais liberais, os prestadores de determinados serviços, o

sistema religioso e judiciário, as festas etc. Portanto, na comparação com o formato da

vida nas propriedades rurais, a Vila de Itapuã é o espaço urbano.

15 Até 1998 havia uma lei municipal que delimitava a zona urbana de Itapuã, assim estabelecida: da ponte sobre o Arroio Itapuã até a rua Julio de Castilhos com a rua Enio Lacerda. E na chamada Colônia de Itapuã, da Lomba do Zequinha até a Região da Reforma Agrária, incluindo o Horto das Oliveiras, próximo ao local onde vivem os guaranis.

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Além disso, Milton Santos (1993), em A urbanização brasileira, defende a

idéia de que o Brasil não pode ser dividido em rural e urbano, mas, no lugar disso,

deve-se reconhecer que existe sim um Brasil urbano com áreas agrícolas e um Brasil

agrícola com áreas urbanas.

Têm suas sedes religiosas na Vila a igreja adventista, a assembléia de Deus,

Deus é amor e dois terreiros de umbanda. A igreja católica é a mais antiga e

notadamente a mais freqüentada. É ela que fornece parte das datas festivas que

compõem o calendário da comunidade: páscoa, natal e a principal festa comunitária, a

festa de navegantes, realizada com uma semana de diferença da de Porto Alegre, que

inclui desfile fluvial, galeto no salão paroquial e feira de produtos locais.

Do ponto de vista político, há uma modesta participação nas reuniões do

Orçamento Participativo, realizado desde 1997. As reuniões tentam tirar prioridades da

região, mas boa parte delas é gasta com discursos que evidenciam o descaso para com

a Vila. A grande queixa em relação ao município é que Itapuã sempre figura com

destaque quando se trata de divulgar as belezas de Viamão, nunca tendo a mesma

relevância em investimentos. Muitos assuntos que dominaram os primeiros anos de

reuniões se prendiam em questões que não eram do âmbito do município ou do

Orçamento Participativo: casos referentes ao Parque, asfalto e emancipação. Também

se discutiram questões específicas, como o posto de saúde. Quando participei de uma

reunião em 2002, os representantes da Prefeitura incentivavam o debate sobre

saneamento básico e regularização fundiária, duas visíveis necessidades da Vila, mas

tais temas não mereceram a atenção dos participantes talvez porque não fossem

questões que lhes dissessem respeito. Eram sitiantes, profissionais liberais e

comerciantes.

A vila tem um comércio pequeno. Na parte antiga da rua principal, em uma

modesta construção de esquina, na fachada, lê-se simplesmente: loja. Na outra face,

loja de confecções. Os outros lugares têm nomes: o armazém das Três Meninas, o

armazém dos Gringos e na faixa, o supermercado Lunardelli, a correaria Coxilha

Verde. Taxi, há o do seu Moacir, com ponto fixo em frente ao cartório. Na avenida

principal, há a Sociedade Recreativa Itapuã, a Sorei. Mas são os CTGs, como o Salão

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Reverência do Centro de Tradições Campolino Guimarães, que mais mobilizam

socialmente a comunidade. O poder público municipal está representado no CAR

(Centro Administrativo Regional), junto ao qual funciona uma agência de correio. Um

posto policial foi conquista relativamente recente da comunidade, assim como a

veiculação de uma rádio comunitária, a FM Itapuã, criada em dezembro de 2000. Não

há posto bancário, o que representa um esforço extra para a grande população de

aposentados buscar seus vencimentos.

Domingo é dia de Grande Rodeio da Rádio Itapuã, que não é rodeio de

animais, mas de cantoria. Sendo itinerante, a cada domingo um dos locais de

convivência é sede do Grande Rodeio que naturalmente é transmitido ao vivo pela

rádio. Às vezes, é no Alambique Fraga, mas pode ser também no Restaurante da Vó,

no Long Beach (!) Bar, no Calunas, na Sorei, quando não vai até o Lami em Porto

Alegre. Neste momento, a rádio se vincula realmente à música gaudéria. Também há

locutores que resgatam história e raízes das músicas populares. Normalmente, a

programação está permeada pela música sertaneja, pela música gaúcha de baile, cujas

letras pouco ou nada se diferenciam da axé-music. A tecnologia, aliada aos

imperativos do mercado, massifica, homogeneíza, tentam opacizar as especificidades

locais. Negação e aceitação da cultura de massa convivem em momentos distintos da

rádio: há tanto o discurso de valorização das tradições mais ortodoxas, quanto os

programas sertanejão, pagode e gauchinha (o estilo dançável gaúcho). Por outro lado,

a diversidade de programação torna a rádio bastante diferente das rádios comerciais

que buscam a identificação com um segmento. O programa de rádio da líder do GAMI

é o que alcança um patamar de maior sofisticação, como veremos adiante.

Os anunciantes são chamados “apoiadores culturais”, imagino que para

garantir que não se trata de uma rádio comercial. Os comerciantes locais anunciam

seus produtos em "reclames" com ênfase no atendimento, sempre feito pelos donos,

cujos nomes são declinados na locução.

A existência da rádio não é exatamente tranqüila. Ela já foi contestada por

“opositores” quanto a sua condição de comunitária, mas houve reação paralela da

comunidade na forma de abaixo-assinados de apoio. A rádio tem sua importância na

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divulgação de artistas locais, mas, sobretudo, na circulação de informação da vila. É

bem verdade que os locutores chamam de "utilidade pública" qualquer tipo de

comunicado, até uns de interesse bem restrito. E grande parte do tempo é gasto em

autopromoção, da própria rádio, de seus profissionais e de uma idealizada Vila de

Itapuã. O modelo é, em geral, a grande cidade - e as iniciativas, os programas, as

campanhas são imitações em pequena escala dos existentes em Porto Alegre e outros

centros.

No aniversário de dois anos da rádio, um tom de desabafo dominava os

discursos dos radialistas, uma idéia de vitória sobre obstáculos e inimigos ocultos. Ao

mesmo tempo, expressões como “potência” e “baluarte” eram atribuídas à rádio

Itapuã. A campanha Comunidade Solidária, mesmo nome de projeto social do governo

de Fernando Henrique Cardoso, distribuiu doações aos moradores carentes, inscritos

para tal, que tinham seus nomes lidos no ar(!).

Nesta época, quando necessário, noticiavam a atuação do único vereador,

oriundo de Itapuã, atualmente Secretário de Agricultura do município. Entretanto ele

não é do mesmo partido dos radialistas, de forma que sempre que é impossível deixar

de elogiar alguma atuação, a ressalva é feita: “independente de cor partidária”. A

rádio, de qualquer forma, cumpre um papel importante nas mobilizações por melhorias

para a região, e assim denuncia o fato de a comunidade itapuense ter erguido um posto

de saúde, e a câmara de vereadores de Viamão ter negado a contratação emergencial

do corpo médico. Denunciam outros problemas, como a ausência de posto bancário, de

creche, e a indignação quando o único posto de gasolina permaneceu desativado,

criando uma absurda situação de dependência dos automobilizados.

O meio de transporte bastante usual do itapuense é o cavalo, como montaria

ou em charrete e carroça. Na região, há centros de treinamento para eqüinos e

hospedarias, mas o cavalo do morador é um matungo trabalhador, magro e cansado.

Perto da praia, um camping inscreve um estilo próprio ao seu redor, que se

traduz por um comércio, conhecido por “o shopping”, parte dele direcionado para os

veranistas e para os campistas, jovens que andam em grupos, com aparência e

comportamentos facilmente diferenciáveis dos jovens moradores. São os turistas

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ocasionais ou os veranistas, que têm casa de praia em Itapuã (além dos sitiantes), que

instauram o confronto silencioso entre o tradicional e o moderno.

Silenciosas também são as convivências do fogão a lenha com o telefone

celular. O cavalo com a moto-serra. O analfabeto e o pós-graduado em Ciências

Biológicas. Nada disso é surpreendente, principalmente se pensarmos na proximidade

de Itapuã com a capital do estado. O que surpreende na sua forma de identidade

cultural é que essa convivência não tenha como ponto de convergência apenas o fato

da cidade, mas sim a real proximidade e a convivência, e a par de ambas, a

sobrevivência das formas tradicionais. O encontro e a convivência do tradicional e do

moderno, de certa forma, provocam-nos um fascínio, pois vemos neles a possibilidade

de resgate de sensações e sentimentos que nos fazem nostálgicos, sem implicar a

ausência de conforto e de comunicação ágil. Entretanto, essa é uma perspectiva

unilateral, a daqueles que, nesta situação, usufruiriam o melhor de cada estilo.

Para as camadas pobres, o encontro do tradicional com o moderno implica

algum conforto, mas sobretudo amplia o horizonte das metas quase inatingíveis, seja o

consumo de bens e serviços, sejam os referentes à qualificação como mão de obra e/ou

a educação. Quando um entrevistado diz: sim, temos luz, mas temos que pagar por ela,

ele ressalta literalmente o preço do conforto e, de certo modo, o relativiza. Foi

possível, até bem pouco tempo, viver sem esses itens de comodidade, o que significava

também viver com pouco dinheiro. Para usufruir dela, coisa que o moderno tornou

inevitável, iniciou-se uma escala de providências que passam pela qualificação da mão

de obra, que por sua vez obriga ao investimento na educação. Daí que o ensino

fundamental é razoavelmente bem oferecido à criança itapuense.

Em Itapuã, convivem tanto o pescador artesanal quanto um laboratório de

produção de sementes de última geração16, um movimento ecológico avançado com a

produção primária a mais tradicional, e tais extremos culturais estão circunscritos num

território relativamente pequeno, e do ponto de vista político bastante inexpressivo: um

distrito de uma cidade da região metropolitana.

16 Até 1985, todo o cultivo de beterraba no Brasil era feito com sementes importadas. Foi no laboratório da Isla, em Itapuã que foi desenvolvida a primeira sementes nacional, a beterraba Itapuã que reúne, segundo os seus criadores, as melhores características de cada tipo.

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Por um lado, Itapuã parece parada no tempo - vinculada a uma cultura

açoriana em que a educação não tem a mesma relevância que, por exemplo, tem nas

culturas germânica ou judaica17 -, por outro, o poder público, sobretudo nas últimas

administrações municipais, influenciou as escolas públicas no sentido de adotarem

propostas críticas e progressistas. Assim, os extremos culturais parecem se reproduzir

na esfera da educação, quando os analfabetos convivem com os estudantes de tais

escolas. É provável que as demandas por alfabetização e educação de jovens e adultos

partam das pressões sociais. Não à toa, o grupo pesquisado pertence a uma iniciativa

de um movimento social, o GAMI, Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã, coordenado

por uma assistente social que já foi candidata a vereadora.

Embora o gradiente entre os mais pobres (desempregados, biscateiros,

agricultores, aposentados) e os mais ricos (proprietários de terras e comerciantes)

economicamente seja considerável, a vida cotidiana e a divisão dos espaços de

sociabilidade torna-os todos partícipes de uma mesma forma de viver, uma

comunidade. Para não omitir uma exceção, há o Beco do Cemitério, região por

motivos óbvios não valorizada para fins residenciais . Neste pequeno aglomerado de

casas, as condições de vida são de tal forma miseráveis que a esses não costuma ser

dada a prerrogativa de convívio na parte central. Esta rua não fica muito longe do

centro, ainda que se situe do outro lado da estrada que costeia a vila. Entretanto, o grau

de marginalidade dos moradores dessa região os condena a restringir-se a ela. São

17 Para fazer essa análise, é preciso ter em mente o reflexo da origem açoriana na comunidade e também, agindo neste contrafluxo, a influência religiosa luterana, com presença na comunidade (sendo necessário ainda investigar a sua abrangência quando comparada com outras religiões ali presentes). É importante considerar as raízes históricas e considerar o papel que teve o saber ler e escrever nos diferentes locais de colonização, influenciados, por sua vez, pelas religiões correspondentes. Enquanto nas colônias alemãs, a valorização da leitura garantia a construção de escolas pelos mais recônditos povoados e prestigiava o saber formal (sendo a igreja luterana conhecida como a igreja da palavra), a cultura latina aceitava que não se soubesse ler e escrever, e a bíblia católica por muito tempo se manteve não traduzida, ficando restrita a uma elite. Os dados do Censo de 2000 do IBGE ajudam a reconhecer esse fenômeno. Comparados os índices de alfabetização do país, oito das dez cidades que obtiveram os índices mais altos localizam-se no Rio Grande do Sul (Morro Reuter, Feliz, Harmonia, Lagoa dos Três Cantos, São Vendelino, Bom Princípio, Salvador das Missões e Ivoti - as outras duas são em Santa Catarina). Estes dez municípios são de colonização alemã, o que reforça as explicações históricas, que remontam a diferenças culturais originais, vinculadas às religiões. A cultura latina tradicionalmente teve menos problemas em aceitar o analfabetismo, ao passo que a cultura alemã se pautou pelo investimento na educação, garantindo universalmente o mínimo que consistia em saber ler e escrever e fazer contas. Entre outras características reveladoras da importância conferida à educação, estava a valorização do professor, equiparado em prestígio ao padre/pastor e ao médico. Ler a bíblia foi uma prerrogativa por que lutaram os protestantes, ao passo que a bíblia católica seguia não traduzida do latim.

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umas poucas dezenas de casas, em um arruamento sobre terras de invasão, que fica à

parte, tendo como limites o cemitério e os matos de eucalipto.

Os itapuenses são descendentes de um número reduzido de famílias, que

são os sobrenomes abundantes em toda a Viamão: Fraga, Barcelos, Goulart. São

famílias bastante numerosas e que mantêm o ciclo ao seguir alimentando o mercado

matrimonial. Seus descendentes são encontrados nos comércios, nos prestadores de

serviço, nas lideranças comunitárias, nos candidatos a cargos eletivos.

Dada a territorialização, os japoneses mantêm-se na sua comunidade, pouco

se integrando. Os trabalhadores moradores do Hospital-Colônia, da mesma forma, e os

habitantes sazonais, os veranistas, chamados “veronistas” formam um grupo à parte,

sobretudo os mais jovens que freqüentam a parte final da avenida principal, junto à

praia, onde se concentram os bares e as lancherias. São jovens como os jovens que

invadem o litoral marítimo do estado, apesar de que seu baixo poder aquisitivo lhes

imprime um nível de diferenças sobre um espectro que é comum a toda juventude.

Jogos de vôlei e futebol de dia na praia; à noite, automóveis estacionados, (mais)

meninos (do que) meninas escorados com suas latas de cerveja, o som bem alto. O

automóvel é velho, o som vem de uma estação de rádio e não de um CD, é estridente e

denuncia as preferências musicais pelas rádios populares.

Mesmo no verão, na Rua dos Pescadores e arredores, dorme-se cedo, pois

quase sempre se está em vésperas de trabalho. Apenas os mais velhos (que são muitos

em Itapuã) nas tardes, jogam cartas numa mesa na entrada da rua, enquanto outros

dormem, acompanhados de seus cuscos tão sonolentos quanto eles, na frente da casa a

sesta de cada dia. A horizontalidade da Vila, os terrenos grandes, os pátios ao redor

das casas, o ethos popular incrementam uma sociabilidade de rua. Na primeira hora da

tarde, o comércio está fechado. E o senhor Erci do cartório seria buscado em casa e,

tão calmo como bem humorado, faria seus assentamentos na velha máquina de

escrever. Embora estivesse até aqui falando da comunidade anônima, seu Erci merece

uma pequena e significativa digressão. No caderno de campo de 12/05/2002, escrevi:

“Seu Erci parece ter a idade do velho cartório. Não é verdade. Tem mais. Seu Erci extrapola o cartório, a cidade, as suas funções. Funciona como banco para movimentações de pequenos valores para seus conhecidos, e coloca sua

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máquina de escrever a serviço de tantos quantos necessitem dar um caráter mais formal a algum escrito, mesmo que não seja necessariamente vinculado à atividade cartorial. Nesses momentos, é um escriba, que aprimora a redação e corrige o português do texto ditado, dando-lhe uma forma circunstanciada. E, nestes tempos de informática, sua máquina de escrever de esferas é um signo da modernidade, que provoca satisfação, quase encantamento no demandante.”

Justamente a personagem que primeiro me fez pensar em Itapuã como um

local merecedor de um estudo antropológico, foi brutalmente assassinado em 2003. Se

não tem o desenvolvimento econômico como traço ou o progresso como meta, Itapuã

também não apresenta índices de criminalidade significativos. Desentendimentos entre

conhecidos, agressões estão entre as ocorrências registradas no posto policial. O

predominante, porém são furtos (incluindo os de motores de barco), arrombamentos de

sítios e casas fechadas e crimes ecológicos (caça e pesca ilegais). Parece pouco - e é,

uma vez que os registros de homicídios são insignificantes. Entretanto, quando a rádio

Itapuã deflagrou uma campanha para compra de viatura para a polícia, recebeu

ameaças por telefone, que se concretizaram em assalto à rádio. A partir daí, a sede da

rádio foi se instalar ao lado do posto policial e ficou claro que os arrombadores não são

tão amadores como se podia pensar e têm seu grau de organização.

Interessada em perceber os efeitos da provável modernização trazida pelo

asfalto e pela abertura do Parque que atrairia um público diferenciado à região, no

primeiro momento, inseri o assassinato do seu Erci nessa perspectiva, um prenúncio de

crimes urbanos, impessoais. A investigação, porém, acabou revelando o criminoso

entre os conhecidos da vítima, motivado por interesses econômicos. E nos últimos dois

anos, nenhuma outra brutalidade semelhante se repetiu18.

18 Embora assaltos noturnos a bares e armazéns mais retirados venham acontecendo.

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2.3 Itapuã, paraíso ecológico ou a construção do Olhar

De como se pode incluir um parêntese para mencionar a renovação dos pontos de vista na situação de pesquisa.

Como o comportamento de uma sanfona, meu estranhamento se alargava

nesses anos de pesquisa. Conversar com o Vladimir é por isso quase um suplício.

Depois de ele ter ouvido a narração da história Boi Velho de Simões Lopes Neto, ele

enfieirou histórias piedosas, nem por isso menos chocantes dos momentos em que um

“homem precisa matar um animal”. Ou sangrar, palavra que deixa tudo bem claro.

Estamos sentados num fim de tarde de sexta-feira na varanda da sua casa. Os dois

filhos já chegaram da escola e já saíram para brincar. Esperamos pela chegada de

Samira, sua mulher, que foi ao mercado e naturalmente "parou em cada esquina para

conversar". Foi com ela que marquei e me atrasei, o que justifica que ela retribua.

Enquanto isso, me beneficio das narrativas do marido, pois quem me mandou evocar o

conto do Boi?

Quando a família tinha açougue, certa vez o pai comprou para carnearem

um boi de canga que, em tempos anteriores, por um ano, tinha servido ao Vladimir.

"Mas logo esse, pai! Vou procurar algum outro para sangrar ele". Porque é assim, quando é [animal] da gente, outro faz o serviço. Um faz pro outro. Mas daquela vez, ninguém quis. Era um boizinho muito meigo, tinha passado pela mão da vizinhança toda. Todo mundo conhecia ele pelo nome. E eu tendo que matar. Ninguém mais quis. Cada fincada no pescoço doía na minha mão, ele me olhava, parecia que falava, e ele quase que chegou a me escapar, era sangue por todo lado.

Outra vez, era uma vaca leiteira, que não servia mais. Daí o Jozimar disse que fazia para mim. Mas eu espiei ele, e ele tava de judiaria, encostava a faca no pescoço dela, só para judiar. O certo é, quando a gente vai matar, esconde a faca aqui, não deixa o bicho ver a faca. "Se é assim, deixa que eu mesmo faço." E mandei ele embora. Só conheci um homem que largou a junta de bois dele para morrer no campo. Criou os filhos e os netos com os boi na canga. Eles já se pagaram, dizia. E pagaram mesmo. Quantas vezes.

Mas tem uns que são bandido. Ali na Varzinha têm tres irmãos. Eles botam o boi manso do lado dos brabo na junta. Passam a faca no manso assim embaixo do pescoço e o bicho fica ali estrebuchando. Os outros tentam disparar porque os bicho sabem o que é matar e o que é morrer. Sabem que vão ser os próximos, e tentam correr desesperados, mas não conseguem se libertar e nem

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correr por causa do peso do outro que morreu e que tá atado ali neles. É assim que eles matam... ainda hoje, se tu for lá... e se divertem. Só tu vendo. (Vladimir, 45 anos)

Vladimir é rude, é tosco, mas entende meu espanto com tantas coisas e,

pouco depois, comentando porque mete espora no cavalo, antropologicamente diz:

“Vocês da cidade tem outro modo de ver a vida. É difícil a gente compreender vocês e

vocês compreenderem a gente.”

É difícil a enfermeira atender com paciência seu Mano que, a cada vez que

retorna ao posto de saúde, tem o pé mais infeccionado. A enfermeira não conhece a

casa, onde vive sozinho, e os hábitos. “Não tem muita mosca aqui?” pergunto,

enquanto um zumbido alto subitamente silencia. A varejeira acaba de pousar bem em

cima do machucado. "Antes tinha mosca, agora não tem mais.(sic)" A casa está toda

capinada na volta, e assim, com a seca que fazia em março de 2004, a terra socada e

rachada parecia zona de deserto. "Assim é bom porque o terreno fica limpo" (sic).

Mais no fundo, lixo de todo o tipo vai se acumulando numa grande valeta.

Na Granja que recebe turistas com diárias equivalentes a de hotéis razoáveis

da capital, servem carne de javali, e o assunto são caçadas. Ali se treina tiro ao alvo,

apesar de que garantem que a caça é sempre mais além, na terra do outro. Onde havia,

há pouco menos de dez anos, uma área de mata nativa, fizeram duas quadras de

futebol e de tênis e se planeja um campo de golfe para o futuro. Estão felizes porque

ficou "mais limpo" e ampliou a vista para o rio e morros. Ali também neste lugar tão

limpo, as moscas habitam o prato de tomates, frustrando minha última alternativa à

refeição à base de carne e sangue.

Na casa do seu Mano, as paredes caiadas têm grandes pregos onde ele

pendura o boné e alguma coisa mais que não sei qual seja. Também tem uma folhinha

do alambique onde se lê uma mensagem de exaltação da natureza. Na Granja, há

fotografias, há pôsters, um quadro branco com avisos, um poema que fala de Itapuã e

um cartaz da Associação Pró-Itapuã que apresenta o "paraíso ecológico" . Em comum

onde há texto farto e onde quase não há nenhum, só as moscas e uma compreensão de

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que Itapuã é natureza e ecologia. Pelo menos, o viajante será bem avisado: umas bóias

de rio fazem as vezes de pórtico na estrada e contém uma inscrição: capital do

ecoturismo.

Samira finalmente chega, quer me incluir no café da noite, mas eu já ouvira

demais para um só dia. Voltaria a entrevistá-la semanas depois. Me interessava um

casal que divide uma casa na rua principal, metade vestidos de prenda e artesanato que

ela vende, e metade correaria onde ele trabalha o couro, fazendo selas, aperos e botas.

A história de uma pesquisa, por mais simples que seja, é sempre uma

história de zigue-zagues e fatos que podem parecer tão decisivos e como tais aparecem

no caderno de campo, com o passar do tempo, são relativizados e podem até

desaparecer tal sua insignificância no momento da análise. Por outro lado, algo que

recebeu uma pequena menção, um comentário enviezado, precariamente articulado

com o objetivo final, pode assumir uma dimensão chave no exame de algum aspecto.

A pesquisa sempre muda nosso olhar pois, assim como nossa presença em

campo influi sobre o que é observado, também nós nos transformamos e

transformamos nossa maneira de ver o mundo quando conhecemos mais o outro. Não

se trata de assumir a sua forma de ver o mundo, mas de acrescentar à nossa maneira de

ver o mundo a maneira dos outros.

Meu olhar sobre a vila foi primeiramente o olhar de quem escolheu aquele

lugar para comprar um sítio, um lugar que fosse apropriado para passar fins de

semana. (Pelo tipo de atividades que meu marido e eu temos nos dias de trabalho, nos

interessava ter encontrado um lugar que garantisse isolamento.) Depois foi o olhar de

quem escolheu esse sítio para ser o futuro lugar de morar (uma tão sonhada quanto

distante aposentadoria teria um pouso a aguardando), e por fim o olhar de quem

escolheu Itapuã para ser o campo de uma investigação. Em cada uma dessas fases,

houve uma forma diferente de perceber a Vila. Dentro deste último, ainda se agregou

um segundo nível de olhar (antes de contar com o dos pesquisados), que foi o que

compartilhei com Mônica.

Mônica, que fora minha aluna de primeiro semestre do curso de Pedagogia,

um dia me procurou depois de assistir à apresentação da fotoetnografia de Itapuã junto

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a algumas primeiras inferências desta pesquisa na Reunião da SBPC em 2002. Ela me

contou que tinha morado toda a sua vida na região de Itapuã, bem junto ao Hospital-

Colônia, onde também tinha sido professora estadual. Depois, já casada, veio morar

com o marido em Porto Alegre, tendo decidido algum tempo após a se exonerar para

se aperfeiçoar como professora e começou o curso de Pedagogia. Voltava a Itapuã com

freqüência porque os pais seguiram vivendo na mesma casa, a meia distância do

Hospital-Colônia e do Parque Estadual. No início de 2004, ela me mandou um e-mail

oferecendo-se para me assistir na pesquisa, voluntariamente caso que não houvesse

como inseri-la na iniciação científica. Empenhei-me para torná-la bolsista e, em abril

daquele ano, Mônica começou a me acompanhar nas entrevistas e observações.

Aluna de segundo semestre, rapidamente partiu para suas próprias

entrevistas e relatórios. Isso porque logo se mostrou uma assistente aplicada, criativa e

curiosa. Nenhuma etnografia pode prescindir de informantes. Mônica era uma

informante muito especial, pois se acrescia de outros valores além do conhecimento do

local, além de ser "nativa". Juntas, fizemos também pesquisas teóricas, discutimos

conceitos, tentamos estabelecer comparações entre autores (tendo sido alfabetizadora

de crianças, era curiosa sobre o tema) e principalmente estabelecer relações entre as

teorias e a Vila. Assim, sua ajuda foi preciosa em todas as fases, mas principalmente

quando discutíamos e tentávamos analisar os fatores culturais que explicavam a forma

de ser dos itapuenses. Tanto se identificou com a pesquisa, que foi o destaque no

primeiro salão de iniciação científica de que participou, concorrendo com alunos de

final de curso. Convidada a escrever sobre a pesquisa para uma revista científica de

outra instituição, escreveu um texto (mesmo que seja uma transcrição um pouco longa)

que é interessante conhecer neste item em que gostaria de me referir não à construção

do objeto, mas à construção do olhar:

“Por ter morado em Itapuã, conhecia tudo por lá, melhor dizendo, pensava que conhecia - ou mesmo conhecia, mas apenas a partir de um só ponto de vista. Quando comecei a ler sobre a região, sob a perspectiva histórica e de certa forma trágica, percebi que minha visão do local em que vivi praticamente toda a minha vida era parcial ou incompleta. Sob o meu olhar, até então tudo parecia natural, mesmo a relação com a natureza que eu não entendia como de exploração. Meu pai, assim como os pais de outras famílias vizinhas, sustentou-nos com a extração do granito rosa, na época uma atividade legal, em um local onde hoje fica o Parque Estadual de Conservação Ambiental de Itapuã.

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Através das conversas com minha orientadora, fui percebendo como era diferente nosso olhar sobre o mesmo local. O dela era quase idealizador. Na sua visão, Itapuã deveria permanecer um lugar tranqüilo, enquanto que para mim e para a maioria dos moradores, isso representava a estagnação e o “progresso” era vivamente desejado, ou seja, que viesse o asfalto, para facilitar a ligação com a capital, que o Hospital-Colônia voltasse aos velhos tempos, em que tudo “funcionava muito bem”, que o Parque fosse novamente aberto e com isso movimentasse a economia local. Hoje, que meu olhar se contaminou por uma diferente perspectiva, mas guardando também um pouco do que sempre pensei, entendo que as coisas não poderiam ser como nós, itapuenses, imaginávamos, nem como queriam as pessoas que não são da região.

Fui professora por doze anos na Escola Estadual de Ensino Fundamental Incompleto Caldas Júnior, que fica próximo ao Hospital-Colônia e perto de onde eu morava. Hoje consigo fazer relações que me permitem compreender muitos fatos que me causavam espanto e compreender, por exemplo, por que a mãe de um aluno não conseguia ajudá-lo nas tarefas de casa e por que um pai não fazia com que o filho freqüentasse regularmente as aulas. Quando iniciei as visitas às aulas do curso de alfabetização do GAMI, encontrei estes pais e entendi que, por mais que achassem importante ir para a escola, não conseguiam ajudar os seus filhos porque não compreendiam o processo. Talvez no curso do GAMI, eles estivessem tendo sua primeira experiência de aprendizagem, pois ali foram alfabetizar-se. Numa sociedade estigmatizante como a nossa, não é fácil declarar-se analfabeto.” (Pellegrim, 2005)

Mônica, na minha opinião, tinha um olhar excessivamente reprovador de

determinadas práticas locais. Assim como eu tinha. Mas as reprovações dela eram a

falta de empenho para progredirem, o maior comprometimento com festas do que com

trabalho e a pouca capacidade para serem empreendedores, enquanto os meus eram a

discrepância entre discurso ecológico e suas práticas. Causava-me positiva admiração

a vida sossegada, a sesta de depois do meio dia, a participação nas festas religiosas e

comunitárias, a ausência de preocupação com o tempo.

Fui tentando lhe explicar que a cultura açoriana não era como a cultura da

família italiana de sua mãe e que seu pai nunca equivaleria a um colono da região dos

vinhedos (e nem a terra exaurida de Itapuã se vergaria com facilidade aos propósitos

de um agricultor). E ela foi tentando me explicar que a vida sem acesso a determinados

bens típicos urbanos era difícil: ter que viajar para receber a aposentadoria ou pagar

contas de banco, a luta da mãe para reformar a casa, o trabalho de ter que fazer o

próprio pão, uma economia estagnada que não dava oportunidades de trabalho, a

inexistência de opções culturais.

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Eu admirava as escolinhas de quinze alunos, as crianças indo e vindo a pé,

juntando pedrinha e brincando pelos caminhos. E ela me apontava as ausências de

oportunidade que tais escolas ofereciam para as crianças mantendo-as quase na

limitação original de suas famílias. Eu pensava na qualidade de vida, sem cobranças,

poucas demandas de consumo, sem ânsia por acumular bens, sem poluição, sem

violência, sem necessidade de conselho tutelar; ela me falava no futuro que cada vez

guardava menos espaço para este estilo de vida, falava das crianças com poucos livros

de histórias, com problemas de saúde, muitos dos quais por falta de informação ou por

práticas equivocadas devidas a crenças arraigadas.

Que restava? Ceder? Fazer a síntese das duas posições? E eu me

perguntava: como um antropólogo deveria se comportar? Que teoria poderia me guiar

nos impasses, tão bem descritos por ela no seu artigo? Quando ela me mandou por e-

mail a primeira versão, me surpreendi, pois nem imaginava que ela visse tão

claramente as nossas diferenças, mas gostei da firmeza da sua posição. Pareceu-me

que, de todas as pessoas com quem convivi em Itapuã, nas diferentes situações, apenas

eu não tinha firmeza. Se eu misturava meus sentimentos de pesquisadora e de "turista

assídua", Mônica parecia ter clareza de que era uma itapuense e uma crítica - e resolvia

sua parte na questão.

Adiante, passarei a tentar mostrar que a emergência do Grupo Atuante de

Mulheres assim como de seu curso de Alfabetização estão relacionados com os fatos

até aqui apontados, desde que os tomemos no seu conjunto como eventos de

letramento. Para isso, segue o capítulo que apresenta o conceito de letramento aqui

adotado, a par de outras concepções existentes sobre o mesmo. Essas teorias, uma vez

relacionadas com o contexto da Vila, é que permitirão entender que o desejo e a

necessidade de ler e escrever encontram sentido no contexto descrito e assim

favorecem a persistência e, de certa forma, o sucesso do propósito.

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3. POR UMA COMPREENSÃO DE LETRAMENTO

"...los analfabetos fueron los que inventaron la literatura. Sus formas elementales, desde el mito a las rimas infantiles,

desde el cuento a la canción, desde la plegaria al acertijo, son todas ellas mucho más antiguas que la escritura.

Sin la tradición oral no habría poesía; sin los analfabetos no existirían los libros"

(Magnus Enzesberger, 1986, p. 130)

3.1. Introdução

Este capítulo e o seguinte, cujos pontos de partida estiveram contidos no

projeto de tese, apresentam a síntese dos dados coletados - ou os dados do real

tornados dados sociológicos ou ainda a fusão construtiva de teoria e dados da realidade

(Bourdieu, 2004). Para chegar a esse ponto, tentei trilhar um caminho teórico que,

mais do que qualquer coisa, funcionasse para mim e para eventuais leitores como um

estudo sobre letramento/alfabetismo. Como as questões relacionadas à disputa sobre os

termos letramento ou alfabetismo não me parecem relevantes para o objetivo desta

tese, optei por utilizar o termo letramento e eventualmente alfabetismo (quando me

referir a autores que o utilizam). Em alguns casos, como se verá adiante, uma vez que

refiz leituras de autores norte-americanos e ingleses, decidi manter literacy sempre que

estiver me referindo aos autores de língua inglesa, lidos no original. Isso porque a

tradução de literacy comporta mais de um sentido e nem sempre o contexto é

suficiente para libertá-lo de controvérsias. O mesmo acontece com alphabétisation no

francês, sendo que o termo littératie, com sentido mais específico do que

alphabétisation começa a aparecer de forma considerável na literatura. Neste caso, é

seguida a mesma origem de literacy, que também em Portugal redundou em literacia.

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Literacia parece ter um sentido bem claro para os portugueses e se refere

aos plenos domínios das habilidades de leitura e escrita (estendidos para literacia da

matemática, das ciências, etc). "A literacia compreende um domínio técnico - das

técnicas de leitura, escrita e contagem e manipulação de materiais escritos em geral - e

um domínio, menos explorado e desenvolvido, de acessibilidades/necessidades sociais

- de uso das técnicas e materiais escritos, nomeadamente por via da procura de

expressão e participação por parte dos cidadãos e trabalhadores nas vidas públicas e

econômicas", escreve o educador português Dores (2004. p. 1). Em geral, a ocorrência

do termo em Portugal decorre do entendimento de literacia como conjunto de

capacidades e competências possuídas e usadas pelos sujeitos, restringido, portanto, a

habilidades do indivíduo medidas em testes que o classificam em rankings. São poucos

os estudos portugueses sobre práticas ou eventos de literacia/letramento, tal como

discutiremos aqui.

A literatura em espanhol também concorre para a imprecisão das traduções,

sendo utilizado o termo alfabetización para diferentes sentidos. Vera Masagão Ribeiro,

ao apresentar trabalho no México, anunciou o uso sem tradução para o espanhol do

termo letramento, assim o justificando:

"Recientemente, en el Brasil, viene a ser también apropiado para el campo pedagógico, en el cual gaña nuevas connotaciones, pasando a ser referencia, principalmente, para la reflexión sobre prácticas de alfabetización y de enseñanza de la lengua. Por su riqueza e implicaciones teóricas y prácticas, el término respectivo, letramento, se ha dejado en portugués". (Ribeiro, 2002, p. 321)

Neste capítulo, são discutidas noções teóricas que permitem a compreensão

do campo de estudo. O objetivo é apresentar o leque de opções conceituais e a

justificativa pela opção por determinadas ênfases em detrimento de outras. Um tanto

do que está aqui já esteve no projeto, e agreguei conteúdos a partir de duas fontes: as

sugestões ouvidas na banca de qualificação e um certo aprofundamento que surgiu da

necessidade de compreender fatos novos aparecidos no campo. Neste último ano após

a defesa do projeto, centrei a pesquisa mais nos alfabetizandos e professora do Grupo

Atuante, mas continuei participando da vida da Vila em relações cotidianas.

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Embora Geertz sustente que se estuda nas aldeias e não as aldeias, esta

pesquisa surgiu do interesse nas duas possibilidades, sendo difícil distinguir quem foi

mais instigante: a aldeia ou a teoria. Se de longa data, tive curiosidade por

compreender a Vila de Itapuã e seu jeito de ser, por outro lado, uma forma de fazê-lo

decorreu precisamente de uma curiosidade em relação ao tema da leitura,

alfabetização, letramento. Enquanto algumas temáticas já contam com aportes

consagrados, filiados a correntes definidas epistemológica e ideologicamente (se é que

essas dimensões são separáveis), no caso do letramento, tais definições ainda não se

fixaram e os próprios sentidos do termo (se não o próprio termo) ainda estão por se

clarearem. E sigo pensando isso, mesmo depois de ter lido muito mais sobre o tema ou

precisamente por ter lido muito mais.

As escolhas que fazemos por teorias e, nelas, por ênfases, são devidas a

preferências, pertinências e acessibilidade. A última pode ter ou não uma origem

empobrecida: a que autores e a que obras temos acesso? Com a Internet, que

disponibiliza textos e formas de aquisição de livros do mundo inteiro, o rastreamento

das publicações ficou muito mais fácil, e a seleção muito mais árdua. Dos autores a

que temos acesso, quais realmente nos tocam e nos seduzem? (preferências). A

sedução pode ser gratuita ou precisa estar relacionada ao seu potencial explicativo?

(pertinências). Neste capítulo, apresento um caminho teórico possível. A este caminho,

acrescentei leituras sugeridas por Iole Trindade que generosamente na banca de

qualificação fez indicações dentro do rumo que eu tentei trilhar. Uma delas seria a

inclusão na "discussão dos conceitos de eventos e práticas de letramento e a relação

entre os letramentos local e distante, global, de STREET, Brian. What's “new” In:

Current Issues in Comparative Education, New York: Teachers College / Columbia

University. V.5, n.2, (May 12, 2003)", que incluí no item 4.5 adiante.

Sem qualquer pretensão de ter resolvido o desafio que Street proporá

conforme veremos adiante, pretendi, nesta tese, analisar o local, mas buscar

compreendê-lo na sua relação com um entorno mais alargado, até porque desde o

início da história da vila de Itapuã em que tentei mostrar o seu isolamento, esse

isolamento sempre soou ubíquo. Pensar nas razões por que os hansenianos eram

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levados para lá remete à compreensão dos efeitos do medo do contágio e do estigma

que só poderiam ser entendidos no contexto mais geral. O mesmo vale tanto para a

Reforma Agrária dos anos 60 como para o fato mais recente, a transferência dos índios

guaranis para a Cova Funda. Assim também a transformação de área verde em parque

de conservação e a relação que se estabelece com o mundo de fora quando o asfalto

melhora a sua ligação com ele são fatos que explicam o local, sem abrir mão do

entendimento e o impacto desses fatos para fora da Vila de Itapuã.

No decorrer dos próximos capítulos, outras sugestões da professora

Trindade deverão ser incorporadas, sendo elas:

"- sobre os processos históricos pelos quais a literacy escolarizada veio a tornar-se o modo dominante a partir do século XIX, ver: COOK-GUMPERZ, Jenny. Alfabetização e escolarização: uma equação imutável. In: COOK-GUMPERZ, Jenny. A construção social da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. - sobre a invenção do letramento, desinvenção da alfabetização e reinvenção da alfabetização, ver: SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. 26ª ANPED, out. 2003. 16 p. - sobre as contribuições dos estudos sobre letramento para pesquisas do tipo etnográfico e a discussão dos modelos de letramento autônomo e ideológico, ver: STREET, Brian. Social literacies: critical approaches to literacy in development etnography and education. London: Longman, 1995. [Cap. 5: A escolarização da literacy; Capítulo escrito com a colaboração de J. Street]. RIBEIRO, Vera Masagão. Por mais e melhores leitores: uma introdução. ___(Org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. SOARES, Magda. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, Vera Masagão. (Org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. p. 89-113." (Trindade, 2004, pp. 6-7).

A professora Norma Marzola inicia seu parecer dizendo:

"A autora toma como ponto de partida de sua pesquisa os estudos existentes sobre oralidade e cultura escrita [literacy]. Minha sugestão é que, além disso, trate-se de como esta problemática aparece e é desenvolvida no Brasil. O interesse pelo estudo da literacy passa a se ampliar, no Brasil, no início da década de 90 [indícios: aparecimento da coleção “Múltiplas Escritas”, da Editora Ática, dirigida por Emilia Ferreiro; a discussão sobre a tradução do termo inglês literacy (alfabetismo, letramento, literácia), com a posterior hegemonia do termo “letramento”, um termo antigo ressuscitado a partir de uma perspectiva lingüística (Magda Soares & CEALE, da UFMG) conjugada a uma visão culturalista baseada em Vigotski e Bakhtin (Kleiman, Rojo, etc., da UNICAMP). Tal hegemonia, no meu entender, despolitizou o debate, reduzindo-o a uma discussão sobre a questão da escolarização do letramento."

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As leituras subseqüentes que empreendi não me convenceram das premissas

do comentário. Uma delas assegura que a hegemonia do termo letramento teria

reduzido o debate à questão da escolarização do letramento.19

O estudo que se segue vai mostrar como precisamente a perspectiva socio-

histórica (que utiliza majoritariamente o termo letramento) se amplia em relação ao

vínculo com escolarização. A outra premissa me parece ser a da valorização da

politização do debate, que para mim é uma supervalorização. Não consegui perceber

onde se localiza o debate político sobre o termo, e não me desagrada nem a perspectiva

lingüística nem a visão culturalista, que teria se sobreposto à outra origem que

desconheço qual seja. Entendi um dos campos da "batalha" - aquele que é acusado de

ter feito imperar o conceito letramento - mas não localizei o outro, ao menos em

publicações que tenham apoiado meus entendimentos. Não sei ainda quais autores

disputaram pela predominância do termo alfabetismo (a não ser Ribeiro que inclusive

utiliza alfabetismo num sentido e letramento em outro, como mostrarei adiante) e a

própria Magda Soares publicou em 1995 um artigo em que utiliza o termo alfabetismo.

Posteriormente, em revisão de sua obra sobre o tema, reapresenta este artigo,

mantendo o uso de alfabetismo e o explicando numa nota de página: "após a

publicação deste texto, em 1995, foi-se progressivamente revelando, na bibliografia,

preferência pela palavra letramento em relação à palavra alfabetismo" (Soares, 2003,

p. 29). Alguns anos antes, em entrevista ao Jornal do Brasil, disse:

"houve um momento em que as palavras letramento e alfabetismo se alternavam, para nomear o mesmo conceito. Ainda hoje há quem prefira a palavra alfabetismo à palavra letramento - eu mesma acho alfabetismo uma palavra mais vernácula do que letramento, que é uma tentativa de tradução da palavra inglesa literacy, mas curvo-me ao poder das tendências lingüísticas, que estão dando preferência a letramento" (Soares, 2000, p. 21).

Também cabe adiantar que a mencionada Emília Ferreiro prefere traduzir

literacy por cultura escrita. E o professor Tomas Tadeu da Silva emprega alfabetismo 19 As pesquisas de Ana Maria Galvão, por exemplo, mostram o contrário. Em Galvão (2002), aparece justamente a importância de outras esferas de letramento, no caso a literatura de cordel.

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na tradução do texto de Graff, The Literacy Myth: Literacy and Social Structure in the

Nineteenth-Century City [1979; new ed., 1991], que recebeu o título de O mito do

alfabetismo, tendo havido a supressão do subtítulo.

Se como diz Soares (1998), no Brasil, em 1986, o termo letramento foi

utilizado por Mary Kato e dois anos depois aparece em Tfouni, de fato é possível que

o interesse tenha se ampliado na década de 90 com a referida coleção. Mas não só ela:

houve um grande interesse no tema, naturalmente não pelo interesse no termo ou nos

termos, mas sim porque as pessoas tiveram um sentimento de necessidade, ou porque,

como dirá a mesma Soares, o fenômeno dará origem ao interesse pelas teorias que se

ofereciam para explicá-lo. Então menos importante do que o debate sobre os termos

me parece ser a análise dos fatos, que é a proposta deste trabalho. Se o nome das

teorias for x ou y, entendo que fundamental segue sendo o conteúdo da teoria nomeada

x ou y. E é sobre esse conteúdo que apresentarei a discussão, escolhendo para me

posicionar aquele conteúdo (independentemente do nome que terá) que me

possibilitará analisar os dados que venho observando na pequena Itapuã e nos

alfabetizandos de um modestíssimo curso, criado e tocado por mulheres de Itapuã, de

um grupo denominado (com certo arrojo) Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã.

Também há que se considerar os autores brasileiros que utilizaram a

vertente de origem francesa de pensadores como Fraenkel, Lahire, Hébrard, Chartier,

Foucambert, para ficarmos com apenas alguns.

Para a busca do entendimento pretendido, parto dos estudos existentes sobre

oralidade e cultura escrita. A escrita cria a necessidade do seu aprendizado, o que leva

às questões relativas à alfabetização, que é o item seguinte. O letramento, o interesse

central, porque vinculado à questão de pesquisa, é analisado na seqüência, assim como

a reunião dos conceitos de alfabetização e letramento pelas suas oposições,

analfabetismo e iletrismo, fecha o capítulo.

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3.2 Cultura oral, cultura escrita

De como oralidade e escrita não devem ser colocadas em oposição visando hierarquias

Conceitos são sempre delicados, sobretudo quando podem ser utilizados

para classificar pessoas. O risco de um conceito virar rótulo é grande, e tal risco se

agrava se os rótulos tenderem a ter caráter pejorativo e/ou servirem para estratificar,

hierarquizar e estigmatizar pessoas ou grupos. Isso acontece em vários campos,

incluída a educação. Dos tantos conceitos problemáticos pelas razões mencionadas, o

de alfabetização (mas também seus corolários) é um dos mais controversos.

Um conceito historicamente inicial neste campo é o de escrita, esse produto

humano de tal importância que acabou por constituir uma visão de cultura, logo

chamada de cultura escrita. Se para entendermos a guerra, buscamos compreender a

paz; e para entendermos o calor, diferenciamo-lo do frio, é porque uma das formas do

entendimento humano se dá pela oposição. Assim, os pares de opostos, muito antes do

impulso que tomaram com o Estruturalismo (e, para exemplificar isso, podemos

retroceder a Heráclito, que entretanto logo ultrapassou a compreensão estanque)

cristalizaram-se como uma das estratégias de entendimento. Caminho quase “natural”

para entender a cultura escrita passou a ser o estudo da cultura que seria sua negação, a

cultura oral. Tal compreensão, porém, que acabou atribuindo determinadas

características à cultura oral (raciocínio emocional, contextualizado e ambíguo), por

oposição às características das modalidades escritas (raciocínio abstrato,

descontextualizado e lógico), acabou a serviço de um entendimento que desconheceu a

complexidade, um conhecimento etnocêntrico, chamado por Street (1984) de great

divide20. Na verdade, os pares de opostos muitas vezes mais obscurecem do que

ajudam a esclarecer.

Na esteira de Ong (1998), a cujo livro atribui uma perspectiva inovadora

para reflexão e análise, Frago (1993) sustenta a tese de que leitura e escrita são práticas

culturais, mas não quaisquer práticas culturais. Elas reestruturam o comportamento,

20 Encontrei as três expressões como tradução de "the great divide" utilizada por Street (1995), divisa em Tfouni (1997), divisão em Kleiman (1995) e dicotomia em Soares (2003), partilha em Lewgoy (2004).

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uma vez que reestruturam a consciência e a mente. Ong defende a idéia de que a

escrita é uma tecnologia (tal qual a imprensa, a televisão e, mais recentemente, o

computador), uma vez que requer uso de ferramentas (penas, canetas, lápis) e

equipamentos especiais (couro, papel, tintas). Já a linguagem oral é natural no ser

humano21.

Na década de 60, surgiram alguns livros importantes que teorizaram sobre a

relação entre oralidade e cultura escrita, tendo sido os principais “O pensamento

selvagem”, de Lévi-Strauss, “As conseqüências do alfabetismo”, de Jack Goody e Ian

Watt, “A galáxia Gutenberg”, de Marshal MacLuhan, “Espécies animais e evolução”,

de Ernest Mayr e “Prefácio a Platão”, de Havelock. Todos tentaram, de certa forma,

entender a direção que tomou a humanidade após a introdução da escrita na

comparação com os tempos de oralidade pura. E, ao fazê-lo, aceitaram que a escrita

permitia dividir a humanidade em duas metades: uma com escrita e outra sem escrita.

Mais arriscado: atribuíram à escrita o poder de permitir a evolução social, daí serem

considerados pelos seus críticos como evolucionistas. Estas cinco obras costumam ser

citadas juntas para exemplificar a tendência que ia se instituindo com esse

pensamento.

Goody, no livro “Domesticação do Pensamento Selvagem”22 analisa as

mudanças em estruturas mentais e sociais que a língua e posteriormente a escrita

acarretaram. Como sugerido no título do livro, Goody (1987) defende que a escrita

representou a domesticação do pensamento selvagem ao criar uma forma diferente de

enunciação e com isso ter potencializado a análise crítica e a acumulação de

conhecimentos. Também a escrita acabou liberando a memória de seus limites

naturais, o cérebro dos sujeitos, garantindo-lhe novos suportes, com o que a memória

se tornou “objetiva” e pôde vencer as distâncias do tempo e do espaço. Daí que a

ciência, ao menos a ciência como hoje a entendemos, só teria se tornado possível a

partir da escrita. E a ciência, por sua vez, levou a tecnologização crescente das

sociedades com escrita.

21 Ver a esse respeito, Havelock (1963) e Graff (1990). 22 Publicado em 1977, sob o título Domestication of the Savage Mind, responde ao livro de Lévi-Strauss, La Pensée Sauvage, de 1962, que apresentava o pensamento selvagem como produtor de mitos.

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Dentre outros estudos, este de Goody foi determinante para a análise

presente em “Oralidade e Cultura Escrita” de Walter Ong (publicado em 1982). Em

capítulo intitulado “A Oralidade da Linguagem”, Ong lembra que a escrita alfabética

mal completa três mil anos, enquanto que a história da humanidade data de dezenas de

milhares de anos. Sendo assim, a oralidade, nessa análise abrangente, foi a principal

tecnologia intelectual utilizada pelo homem na quase totalidade da sua existência. E a

presença importante da oralidade pode ser comprovada com dados como de que “de

todas as milhares de línguas faladas no curso da história humana, somente cerca de

106 estiveram submetidas à escrita num grau suficiente para produzir literatura - e a

maioria jamais foi escrita. Das cerca de 3 mil línguas faladas hoje existentes, apenas

aproximadamente 78 têm literatura” e conclui que “a oralidade básica da linguagem é

constante” (Ong, 1998, p. 15).

Assim, a perspectiva do livro vai alterando um ponto de vista que vigorou

até boa parte do século passado, em que se consideravam as sociedades sem escrita

como inferiores. O que Ong mostrará é que há diferenças incontestáveis entre a cultura

oral e a cultura escrita e que nós, impregnados pela última, mal e mal temos condições

de projetar a vida, o pensamento e, sobretudo, a linguagem dos que pertenceram a

culturas que nunca conheceram a escrita. Ele analisará essa linguagem que em muito

pouco se assemelha à linguagem oral dos tempos contemporâneos à escrita, que ele

chama de oralidade secundária (reativada pelas tecnologias, tais como telefone, rádio e

TV). Portanto, não se trata de simplesmente opor as características de uma para

compreender a outra: as diferenças são mais complexas.

No capítulo em que trata da psicodinâmica da oralidade, quando comenta o

quanto a cultura oral é mais situacional do que abstrata, Ong apresenta e comenta os

estudos de Luria, realizados nos anos de 1931 e 32 em duas regiões da União

Soviética, a respeito dos fundamentos culturais e sociais do desenvolvimento

cognitivo, realizado com dois grupos, um de indivíduos analfabetos e outro de

indivíduos com alguma iniciação na escrita. Ao responder as questões formuladas por

Luria, os analfabetos tendiam a responder mais baseados na sua experiência imediata e

na vida cotidiana do que utilizando categorias abstratas. Assim, não mostraram

capacidade de identificar figuras geométricas (mas se referiam a objetos concretos:

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“prato” no lugar de círculo) nem de agrupar objetos em categorias (mas os reuniam

conforme suas utilidades práticas: serrote e madeira ficavam juntos), nem de produzir

um conceito (para que definir o que se pode ver?), de deduzir corretamente a partir das

premissas de silogismos, nem foram capazes de se auto-definirem (sem recorrer a

opinião dos outros ou a fatos externos de suas vidas). Para Luria, tais respostas

derivariam da falta das habilidades promovidas pela escrita. A escrita levaria ao

pensamento abstrato. Ong interpreta o modo de responder dos analfabetos ou dos

iniciados na alfabetização como pertencente a uma forma de pensamento diferente do

pensamento conformado pelo texto:

“uma cultura oral simplesmente não lida com questões como figuras geométricas, categorização abstrata, processos de raciocínio formalmente lógico, definições ou até mesmo descrições abrangentes, ou auto-análise articulada, nenhum dos quais deriva simplesmente do próprio pensamento, mas do pensamento formado pelo texto. As perguntas de Luria são perguntas de sala de aula, associadas ao uso de textos (...) Elas são legítimas, mas provêm de um mundo do qual o respondente oral não faz parte” (Ong, 1998, p. 68).

Ao mencionar a sala de aula, Ong deixa pistas de uma outra interpretação

para tais tipos de respostas que apresentarei no item 3.4, quando outras variáveis

derrubam essa atribuição à escrita.

Ong (1998), por fim, demonstra como a escrita acabou por provocar o

acesso a novos patamares na consciência e no pensamento. Sem a escrita, não se

teriam as operações intelectuais próprias da escola. Raciocínios mais abrangentes e

complexos foram possibilitados, e o pensamento analítico pôde surgir a partir da

escrita. Além disso, a escrita modificou a forma de estudar, criando uma curiosa

circularidade. A escrita favoreceu o acúmulo de conhecimento e criou uma

necessidade maior de conhecer. Favoreceu o estudo, mas, para isso, se tornou

necessário aprender a escrita.

Outras mudanças adviriam do evento da escrita. Relacionam-se à

temporalidade e à espacialidade. A escrita ganhou a capacidade de conservar-se no

suporte físico, enquanto a fala desaparece em um instante: até mesmo antes de se

terminar uma palavra, a sua primeira parte já se terminou. Na cultura oral, o que não

for memorizado, desaparece. Na cultura escrita, a importância da memória dá lugar à

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habilidade de interpretar o que está registrado. Um texto escrito também pode alcançar

uma distância ilimitada, não apenas a determinada pelo alcance da voz de um orador.

Assim, a escrita permitiu o registro dos pensamentos de forma relativamente fiel, de

forma independente do tempo e do espaço.

Fatos interessantes foram sendo trazidos pelos estudos sobre a escrita,

reveladores de novas dimensões a respeito de pesquisas sobre a memória. Por

exemplo, o caso dos poemas homéricos, Ilíada e Odisséia, que receberam novas

análises. Por muito tempo, estudos se sucederam dos poemas e tanto se acreditou que

tais poemas ou não fossem apenas de Homero (que talvez nem tivesse existido), mas

de múltiplos autores ou se debateu sobre os méritos literários dos poemas. Um dos

analistas defendeu a idéia de que se tratava de combinações de versos existentes,

compilados num único poema. Outros sustentavam que Ilíada e Odisséia eram “tão

bem estruturadas, tão coerentes em sua caracterização e em geral tão bem-sucedidas

como arte que não poderiam ser a obra de uma sucessão desorganizada de redatores,

mas necessariamente a criação de um só homem. (Ong, 1998, p. 29) Um pesquisador,

chamado Milman Parry, acabou demonstrando que os poemas eram uma soma de

fórmulas predizíveis, clichês, frases prontas, associadas a técnicas mnemônicas e a

finalidades métricas. Naturalmente, isso não era um problema estilístico para o grande

poeta, pois antes do advento da escrita, esta “constituição formular do pensamento” era

constitutiva do mundo noético oral (Havelock apud Ong, 1998), e comum e esperada

entre os poetas épicos. A escrita é que tornará obsoletos os clichês, e o texto escrito

libertará “a mente para um pensamento mais original, mais abstrato” (Ong, 1998, p.

33).

Ainda que Ong tenha contribuído com importantes elementos para o

entendimento das culturas orais primárias e para a diferença entre tais culturas e

aquelas que sucedem ao advento/uso da escrita, manteve-se numa posição dicotômica

e de análise por meio de pares de opostos, no caso oralidade x escrita.

A professora Marzola, no seu parecer, indica esse trecho do projeto e

comenta:

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“O raciocínio por oposição, tal como aparece nas páginas 31-32, é central na racionalidade moderna (ver crítica pós-estruturalista de Jacques Derrida: “A estrutura, o signo e o jogo do discurso das ciências humanas”, in A escritura e a diferença. (...). A oposição oralidade/escrita, realizada por Walter Ong e consagrada como a “grande divisão” (the great divide) por Brian Street foi ampla e competentemente criticada por Street. (O Webster traduz divide por divisão, partição: por que traduzi-lo por “divisa”, que quer dizer fronteira, demarcação?”

Ong foi trazido a esse texto justamente para ser contestado, tanto é que o

parágrafo anterior afirma que ele se manteve na posição dicotômica, a qual já foi

apontada aqui como etnocêntrica. (Reconheço que em muitos textos, somente autores

que reforçam o argumento são apresentados, mas não é o caso deste trabalho.) Estou

precisamente seguindo a crítica feita por Street a todos os autores que, ao analisarem

culturas orais e culturas escritas, apostaram em múltiplos sentidos na superioridade das

últimas. Não tendo alcançado exatamente o objetivo do comentário, resumo a título de

reforço do argumento anti-etnocentrismo, o capítulo sete de Social literacies. Nele, de

fato, Street discorre sobre a “great divide” estabelecida entre literacy e oralidade,

proposta entre outros por Ong, mas também por Lévi-Strauss, Mayr, Goody e Watt,

Havelock e outros. De acordo com Street, Ong afirma que a escrita é, em si,

singularmente diferente da oralidade, ao fixar a natureza fugaz do som e da

experiência. Street contrapõe dizendo que essa transição do efêmero ao concreto não é

exclusividade da escrita, e sim uma propriedade geral de toda a linguagem, escrita ou

oral, e é compartilhada especificamente por imagens, histórias, rituais, etc.

Metodologicamente, diz ele, Ong coloca o autor no lugar dos sujeitos e pergunta o que

o observador faria se fosse o observado. Esse argumento é suscetível à carência do

pesquisador em relação à experiência em primeira mão dos sujeitos, a qual ele está

tentando reproduzir. Empiricamente, depois de ser vítima de sua própria metodologia,

Ong é acusado de estar estudando, como sociedade letrada, a subcultura acadêmica da

qual ele próprio faz parte. Ao reconhecer características letradas em sociedades orais,

ele as consideraria influenciadas pelas sociedades letradas.

Por fim, teoricamente, Street considera equivocado o argumento de Ong

sobre a singularidade do letramento, em face de pesquisas recentes que sugerem que é

mais correto pensar nas interações entre oralidade e letramento. No capítulo final,

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Street afirma que, embora alguns dos pesquisadores atuais de literacy rejeitem as

afirmações do modelo autônomo, elas ainda são o alicerce da metodologia e dos

pressupostos teóricos de suas pesquisas e sua prática. Ele aconselha que, dado que

todas as abordagens das práticas de letramento envolvem algum tipo de viés, os

pesquisadores e profissionais o admitam e identifiquem abertamente sua base

ideológica. O autor expõe três falsos mitos relacionados ao letramento: a "great

divide" do discurso escrito, a idéia de que esse discurso é “coeso” e “conectado”, ao

passo que a oralidade é fragmentada e desconexa, e, por fim, a noção de que o

primeiro apresenta seu significado de forma direta e objetiva por meio das “palavras

na página”, enquanto a segunda é vítima das pressões sociais da comunicação face a

face. Street defende uma visão mais ampla da análise do relacionamento entre

letramento e oralidade, que inclui parâmetros de contexto em geral subestimados.

Todas estas perspectivas que visam explicar o surgimento da escrita por

meio de pares de opostos podem ser reunidas no que Chandler (2002) chamou de

“Polarizações do ouvido e do olho”, que é uma outra maneira de dizer o mesmo que

diz a teoria da great divide. Ao denunciar o caráter tirânico das bipolarizações,

estabelece no corpo humano os órgãos da divisão. Há os que privilegiam a oralidade

(auditiva) e os que privilegiam a escrita (visual). Aproveitando o esquema de Finnegan

(1988, p. 168), teríamos:

Cultura Oral Cultura Escrita

Auditiva Fluida Rítmica

Subjetiva Ressonante

Temporal Presente

Participativa Coletiva

Visual Fixa Ordenada

Objetiva Abstrata

Espacial Atemporal

Isolada individual

Goody (1993, p. 298), no debate aberto entre a oralidade e a escrita, define-

se por uma posição intermediária (ressalvando-se que mesmo a adoção de uma tal

conciliação não é feita de forma dialética):

“uma versão moderna do mesmo tema se volta para o natural, o intacto, o oral influenciado pelo desenvolvimento da história oral, pelo interesse pela

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tradição oral (em particular o canto popular) e pela atração da antropologia, e representa, sob certos aspectos, a apoteose do oral e a rejeição do escrito como fonte real da verdade. Devemos cuidar para não ver nas culturas orais uma versão mais satisfatória da nossa própria civilização corrompida e, por outro lado, a não ver a nossa civilização, da cultura citadina, da cultura escrita, como o remédio para todas as bárbaries. É precisamente por uma tal posição intermediária entre o escrito e o oral que nos esforçamos por manter.”

A esse respeito, Olson (1997, p. 11) dirá: "as idéias corajosas de McLuhan,

Havelock, Goody e Watt abriram esse campo para o estudo, confrontando as

sociedades orais com aquelas onde existe a escrita. Como na maioria das teorias

ousadas, pouco restou do entusiasmo inicial". A seguir, Olson citará Finnegan e a

conclusão que chegou em seu levantamento dessa linha de pesquisa: "é difícil manter

uma distinção nítida e radical entre as culturas que empregam a palavra escrita e as

que não o fazem" e irá adiante:

"Por definição, todas as culturas tiveram êxito - senão, não teriam sobrevivido. E em todas elas as pessoas não se limitaram a sobreviver: os etnólogos têm mostrado as ricas práticas e tradições culturais que são partes constitutivas de todo grupo humano, tenha ele uma escrita ou não. A primeira lição em antropologia que Jack Goody deu-me pessoalmente foi esta: 'eles são como eu e vocês, sabe?” (Olson, 1997, p. 11)

O simples classificar em pares de opostos, ainda que admitindo zonas

intermediárias, conduz por si a uma perspectiva etnocêntrica, pois a superioridade

pende para a cultura escrita (não casualmente a de quem assim julga), ou, quando

aparecem vozes valorizando a oralidade, escorregam para posturas ingênuas e

idealizadas. Por essa razão, segundo Hébrard,

“essa maneira de pensar, e isso é sua fraqueza, trata a oposição entre cultura oral e cultura escrita como uma invariante antropológica, enquanto a oposição entre oralidade e escrita não é algo fixo de uma vez por todas. No decorrer dos séculos, o estatuto simbólico da escrita, as funções dos “letrados”, as finalidades e os usos práticos da leitura mudaram. Não somente a fronteira separando o oral e escrito deslocou-se, mas as características da cultura escrita e, por conseguinte, as da cultura oral, modificaram-se.” (Hébrard, 1999, p. 73)

Daí porque mais recentemente, oralidade e escrita tendem a ser percebidas

nem pela idéia de simples contínuo, nem de progressão e nem de hierarquização

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(Galvão, 2002), mas de sobreposições, ou, como diria Craidy (1998, p. 35), um

continuum no qual as duas formas de cultura coexistem em diferentes proporções.

De um ponto de vista mais social, é interessante reafirmar, como faz Tfouni

(1995), que, se a escrita foi a base da ciência e da tecnologia, ela também pertence a

um campo de disputas de poder e tanto pode ajudar a difundir, como a ocultar: o caso

dos textos sagrados na Índia, o uso do latim pela religião católica (só substituído como

reação ao avanço de outras religiões), a sofisticação dos ideogramas chineses

inacessíveis a parcela considerável do povo.

Atribui-se aos sumérios o primeiro sistema completo de escrita, o que teria

acontecido em torno do ano 3.100 a.C. Na mesma época, os antigos egípcios do delta

do rio Nilo teriam inventado o sistema hieroglífico. Desde então, o desenvolvimento

de textos escritos estava estreitamente ligado à tarefa de gravar informações relevantes

para viabilizar a troca de produtos comercializáveis e para o exercício do poder

político e religioso.

Com a invenção do alfabeto pelos fenícios por volta de 2000 a.C., os

registros escritos tomaram grande impulso. Este alfabeto, porém, demandava

interpretação e, portanto, conhecimento contextual. Os gregos, ao criarem as vogais,

garantiram maior autonomia ao texto. O alfabeto grego foi difundido na Península

Itálica. A repulsa de Platão à escrita é o centro da obra “Prefácio a Platão”, de

Havelock. No Fedro, Platão apresenta a escrita como uma ameaça externa. Era uma

ameaça à capacidade da memória humana. Quem aderisse à escrita pararia de exercitar

a memória e se tornaria esquecido, confiaria na escrita para suas evocações, confiando

mais nos suportes externos do que nos recursos internos. Escrever era assim uma

ameaça à instrução. O texto escrito daria aos estudantes informação sem a devida

instrução23.

Na propagação do cristianismo, os apóstolos ensinaram a religião cristã aos

povos pagãos através da oralidade e da leitura das Escrituras Sagradas. A difusão, por

toda a Europa, do sistema de escrever que conhecemos hoje, tem suas raízes na escrita

23 Já o argumento pró-escrita (o da disseminação das idéias sem a necessidade da presença do autor) para Rousseau (1983) representa a desumanização que a escrita acarreta: separa o autor de seus textos.

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carolíngia, que constituiu um dos grandes acontecimentos culturais da Idade Média. O

fato de ela ter-se imposto sobre as outras escritas foi fundamental para a comunicação

entre os povos, pois a proliferação de escritas inviabilizaria o entendimento comum. A

partir de um mesmo alfabeto, existem as várias línguas. Se imaginássemos que as

várias línguas que hoje existem tivessem como suporte um alfabeto correspondente,

decididamente o estudo das línguas seria muito mais difícil ou provavelmente algumas

línguas acabariam eliminadas na relação desigual de poder entre os países24.

O século XII assistiu, na Europa, ao aparecimento de cidades e nações, das

ordens religiosas, de um grande desenvolvimento do comércio, da criação das

universidades. A cultura vai se tornando laica, lentamente inicia-se o processo de

libertação dos ditames da Igreja, e os livros passam a ser cada vez mais demandados,

ocasionando o surgimento de copistas leigos, no lugar dos monges copistas.

O Renascimento, o crescimento das cidades, mas principalmente a

revolução nos domínios da escrita, a invenção da imprensa por tipos móveis por

Gutenberg, popularizou os livros e criou demandas para o ensino da leitura e da

escrita, impulsionou as escolas e as bibliotecas. É um marco revolucionário, pois

passou a permitir que uma mesma obra tivesse a possibilidade de alcançar milhões de

pessoas. Um longo caminho foi percorrido pelos livros até alcançarem a forma como o

conhecemos hoje. Basicamente, desde que estabelecido o papel como suporte, o livro

chegou a sua maturidade.

Gostaria aqui de responder a seguinte crítica lançada por Marzolla:

“A ênfase na invenção da imprensa (um lugar comum), na p. 34, esquece as condições que determinaram a existência do livro e a necessidade do seu

24 O parágrafo mereceu o seguinte comentário da professora Marzola: A afirmação (p.34) de que “a partir de um mesmo alfabeto, existem várias línguas” leva ao entendimento de que a racionalidade não é do alfabeto em si ou da escrita alfabética, mas é imposta pela língua. É esta que, em relações de poder e como efeito dessas relações, usa o alfabeto (como peças de um jogo) de uma determinada maneira (gramática) e é essa maneira, presente também e primeiro na língua oral, que produz, regula e até mesmo altera essa racionalidade. Como essa maneira está presente tanto na oralidade como na escrita, não haveria a 'grande divisão' preconizada por Ong." Realmente acho que, se é o caso de se colocar em termos de racionalidade (e aí sim, um termo tão importante para o moderno e mais ainda para o Iluminista), então esta é imposta pela língua e não pelo alfabeto. Apenas desconfio que não se trata de racionalidade imposta por esse ou aquele, até porque concordo com os que pensam que a língua, por ser viva, nem sempre se deixa pautar pela racionalidade ou pela simples existência ou imposição da regra... (ver, por exemplo, Bagno, 1997, 1999 e Possenti, 1996). Na seqüência, diz que a gramática produz, regula e altera essa racionalidade. A gramática, porém, não existe por si e nem tem por si autonomia para regular e alterar, mas ao contrário, todos os estudos em lingüística mostram a necessidade de ela se adaptar a inovações. Penso que essa seria uma maneira simplificada de ver as questões da língua/ linguagem / signos.

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surgimento: a arquitetura da página que possibilitou que o texto se tornasse inteligível (ver Ken Morrison, “Estabelecendo o texto: a institucionalização do conhecimento por meio das formas históricas e filosóficas de argumentação”. In: Bottéro, J. & Morrison, K. Cultura, pensamento e escrita. São Paulo: Ática, 1995, pp. 141-199).” (Marzolla, 2004)

Eu diria que a "ênfase" mencionada no parecer mereceu não mais do que a

rápida menção no parágrafo acima e talvez seja lugar comum mencionar a imprensa,

tanto quanto seria uma falha incomum deixar de aludir à imprensa ao traçar um

esboço, por mais rápido que fosse, da história da cultura escrita. De fato, a arquitetura

da página foi uma inegável contribuição, anterior e condição para a leitura, ainda que

não comparável ao "lugar comum”: imprensa.

Chartier (1997) mostra que os primeiros textos tinham o rolo como suporte

e eram construídos em trechos divididos em colunas. Para serem lidos, era preciso que

o rolo fosse sendo desenrolado. O códex que foi um avanço tecnológico em termos de

suporte, permitiu que o texto fosse distribuído na superfície da página e localizado

através de paginação, numerações e índices. Se poderia seguir nesse histórico

chegando à era do computador e mais recentemente da expansão do uso do

computador. O texto na tela do computador também não deixa de equivaler a um rolo

desenrolado no sentido vertical. Prosseguir e aprofundar essa análise se distanciaria do

tema dessa pesquisa, conquanto dê margem a interessantes reflexões e a importantes

pesquisas.

Além disso, eventos paralelos à arquitetura da página não foram poucos na

cultura escrita, incluindo-se aí o aprimoramento do papel. De qualquer modo, esse

"lugar comum" mereceu um estudo de quase vinte anos da historiadora inglesa

Elizabeth Eisenstein, cuja síntese se dá em trezentas páginas e está publicada no Brasil

sob o título "A Revolução da Cultura Imprensa: os primórdios da Europa Moderna"

(da Coleção Múltipla Escrita, ed. Ática). A autora, que orientou mais de vinte teses no

campo dos estudos sobre imprensa, nesta obra tem como objeto a forma como a

imprensa alterou as comunicações escritas dentro do que denomina Comunidade do

Saber, as comunidades cultas européias. Ela mostra a influência da imprensa na

alteração dos métodos de coleta de dados, nos sistemas de armazenamento e

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recuperação desses dados, mas principalmente tem seu foco na mudança nas

comunicações, decorrente da imprensa, sem desprezar outras variáveis associadas.

Lançando mão de exemplos interessantes, a pesquisa apresenta as formas pelas quais a

maior variedade de registros escritos afetou as maneiras e aprender, pensar e perceber

das elites letradas (mostrando, ao mesmo tempo, que a composição dessa elite letrada

merece cuidado, podendo abranger tanto o clero e o patriciado como os pobres

urbanos, e não uma elite social, dado que cavalheiros e lordes estavam mais

interessados em caçadas e cavalgadas do que em prazeres sedentários).

O que não se pode negar (e sim se deve enfatizar para que não nos

contaminemos com o vírus da naturalização) é que a língua escrita influencia

sobremaneira a vida social desde que se impôs como uma tecnologia. Tampouco se

pode esquecer que não se trata de uma tecnologia neutra, mas com consideráveis

conseqüências no tecido social.

"El que unos lean y escriban y otros no puede afectar las relaciones sociales entre los grupos; que unos lean y escriban de una manera y otros lo hagan de otra, también puede influir en las relaciones sociales; que unos utilicen la lectura y la escritura con propósitos específicos (para promover su causa, ejercer poder, expresarse, bincularse con un so y deslindarse de otros), también tiene consecuencias en el mundo social" (Kalman, 2000, p. 16).

Daí Goody (1987) ter afirmado que a língua escrita não é monolítica, é

múltipla em uso, forma, função e propósitos e suas potencialidades dependem do tipo

de sistema que prevalece em cada sociedade.

Com o novo marco na história da escrita, a Internet, alguns já condenaram o

futuro do livro. Eco (2004) ironiza essa posição, ao descrever a decepção de seus

entrevistadores quando se recusa a declarar o desaparecimento do livro. Remonta na

sua exposição à crítica de Platão no Fedro, segundo o qual a escrita mataria a

memória. Depois, lembra o romance “Nossa Senhora de Paris”, de Victor Hugo, em

que o padre Frollo, no período pós-invenção da imprensa, teme que o livro mate a

catedral, uma metáfora para a idéia de que o alfabeto mataria as imagens. Isso porque

na catedral as imagens transmitiam conteúdos e valores morais para uma população

que não precisava e nem tinha o que ler. Eco mostra como, no século XX, mais uma

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dessas previsões se deu por McLuhan quando na “Galáxia de Gutemberg”, vislumbra a

substituição da maneira linear de pensar por outro modo de percepção conformado

pelas imagens de TV. Na sua esteira, alguns teriam dito: a TV vai matar o livro. O que

não se previa ainda era que o computador funcionasse como um contra-ataque de

Gutemberg:

“sem dúvida, um computador é um instrumento por meio do qual é possível produzir e editar imagens, sem dúvida as instruções são fornecidas por ícones; mas também não há dúvida de que o computador se tornou, acima de tudo, um instrumento alfabético. Em sua tela correm palavras e linhas escritas e, para usar um computador, é preciso saber ler e escrever” (Eco, 2004, p. 7).

Tanto esse efeito existe que hoje há inúmeras iniciativas de alfabetização

que têm no computador o seu melhor aliado25. Crianças e jovens, mas também adultos,

são estimulados e encontram no computador um apoio à alfabetização.

3.3. Alfabetização, alfabetizações... letramento

Do percurso do conceito de alfabetização ao conceito de letramento

A difusão da escrita tem como conseqüência óbvia a necessidade crescente,

numa primeira instância, de sua codificação e decodificação. Craidy (1998, p. 33) se

alinha a autores como Chartier (1996) e Foucambert (1994) para mostrar que "a

modernidade traz a marca da escrita", e a cultura escrita passa a se identificar com a

cultura escolar após o advento da industrialização. Nos séculos que lhe antecederam,

25 Numa crítica menos dirigida a mim e mais a Eco, a quem citei, a professora Marzola ponderou que "a relação entre a escrita e o computador é muito mais complexa do que a referida na p.35[no caso, do projeto de tese]. Da forma que está, uma máquina de escrever dá conta do recado. Também nela 'correm palavras e linhas'." Se, entretanto, entendi bem o argumento de Eco, ele não pretendia esgotar a relação entre escrita e computador, mas apenas lembrar que o computador não haveria de sepultar o livro, dado que mantém-se dependente do sistema alfabético, em que pese a presença de ícones informativos. E o seu poder de atração na comparação com a máquina de escrever é tão óbvia que explicar a complexidade da relação pode aí sim ser um elenco de constatações evidentes. Apenas seria o caso de discutir com Eco a diferença gritante da memória (na sua concepção individual) do homem contemporâneo de Platão e a memória do homem de hoje. Numa outra concepção de memória, como aquela a que nos referimos como a memória de um povo, a escrita permitiu que se mantivessem registrados fatos fadados a desaparecer não fora serem grafados, e neste caso, a escrita foi aliada da memória coletiva.

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as pessoas aprendiam a ler sem passar pela escola. Almanaques, cartazes, manuais

cordel, catecismos, como mostra Chartier (1987) chegavam às mãos das pessoas que,

mesmo sem saber ler e escrever, podiam contar com alguém das suas relações que o

fariam por ela. A introdução da cultura escolar transferiu para os domínios da escola a

maior parte da responsabilidade pela alfabetização. "Foi a partir da universalização da

escola obrigatória nos países avançados que a questão da alfabetização passou a ser

objeto de preocupações políticas, suscitando pesquisas, debates, e mesmo campanhas

de erradicação[!]" (Craidy, 1998, p. 38, grifo e espanto da autora). A dificuldade de se

analisarem as tais campanhas e o conceito que lhe é inerente é precisamente se

identificar a partir de que momento um sujeito passa a ser considerado alfabetizado,

sobretudo se levarmos em conta a afirmativa de Fraenkel (citada por Craidy, 1998, p.

39), quando se refere ao grande e complexo campo semântico que se abre entre os

termos letrado e iletrado.

Num sentido mais estrito da definição, o termo alfabetização não poderia

deixar de mencionar o seu objeto. O risco de se buscar essa definição é que, sempre

que se apresenta esse fragmento dos tantos que, juntos, ajudam a compreender o que

seja alfabetização, surge a categoria acusatória de ser uma definição limitada. O que,

entretanto, não se poderia deixar de fazer - se queremos entender a alfabetização - é

começar por tal sentido, imaginando-se um leitor que quer iniciar pelo ponto de

partida. Neste caso, se diria que a alfabetização é o processo de transferência do

sistema fonológico para o sistema ortográfico e vice-versa; ou processo de aquisição

do código escrito; ou processo de representação de fonemas em grafemas, pelo qual se

escreve, ou representação de grafemas em fonemas, pelo qual se lê; ou domínio do

sistema de escrita. Essa definição inicial de imediato deve sofrer críticas visando

clarear e captar a dimensão mais complexa do conceito: a língua escrita não é a

simples representação da língua falada, não se trata de transpor uma na outra, visto que

a organização do discurso oral é distinta da organização do discurso escrito. Tais

críticas seguem presas ao sentido estrito de alfabetização, aquele que apenas dá conta

da dimensão mecânica do processo26.

26 Na década de 30, surgiu nos Estados Unidos o conceito de alfabetismo funcional que posteriormente na Segunda Guerra foi utilizado pelo exército norte-americano para designar a capacidade dos soldados de

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Uma pequena ampliação deste sentido já obrigaria a incluir no conceito de

alfabetização o seu significado social, que acaba por indicar que, dependendo das

funções atribuídas à escrita, pode variar de sociedade para sociedade.

Definir alfabetização torna-se importante não apenas pelo próprio conceito,

mas pela dependência que dele se cria para o entendimento de um outro conceito que

interessa particularmente neste projeto, o de letramento. Descontinuar os conceitos de

letramento e de alfabetização é uma operação necessária, ao menos inicialmente e para

efeitos analíticos, para a melhor compreensão de ambos.

A alfabetização habita o imaginário, enfatizado pelo discurso da mídia, de

educadores e do discurso oficial, como uma categoria que, ao propor um marco

divisório entre pessoas alfabetizadas e não alfabetizadas, institui um posto de

inferioridade para as últimas que as desqualifica na sua condição de fazer frente à vida

e na participação como cidadãos. Assim, a possibilidade de alfabetização emerge no

senso comum como categoria emancipatória do ponto de vista da cidadania, produtora

de maior autonomia e de redenção.

No bojo da noção corrente da expectativa de que a alfabetização venha a

promover alterações importantes do modo de viver e na equidade entre as pessoas, e

principalmente no desenvolvimento dos países, inserem-se as tais “campanhas de

alfabetização” e os diferentes nomes que receberam ao longo do tempo e das

administrações. Como estratégia para atrair público para a alfabetização, é de admirar

que funcionem, quando em geral iniciam justamente inferiorizando e atacando a auto-

estima dos candidatos. Quando isso ocorre, revelam uma compreensão estreita e

limitante.

Para Levin (1984, p. 15), na melhor das hipóteses, a educação pode ser

usada como um meio para mobilidade individual sem modificar a distribuição geral

dos rendimentos ou oportunidades. Entretanto, mesmo nesse caso, a simples

entenderem instruções de procedimentos que viessem na forma escrita. Nessa época, a Unesco ainda se contentava a considerar alfabetizado aquele que tivesse capacidade de escrever e ler compreensivamente um enunciado curto e simples relacionado a sua vida diária. Só no final da década de 70, a UNESCO introduziu nas suas definições a de alfabetizado funcional, que seria aquele indivíduo que diante da leitura e da escrita apresentasse desempenho compatível com as necessidades decorrentes do papel que assume na sociedade. Ver a esse respeito artigos aprofundados tais como de Ribeiro (1997) e Soares (2004).)

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alfabetização segue sendo um demarcador muito precário da inserção e da

qualificação.

Ainda assim, é evidente que ninguém duvida da necessidade e da

importância da alfabetização numa sociedade centrada na escrita, senão que, para que

ela concretize uma mudança de estatuto ou de aquisição de cidadania, ela precisa estar

associada a outros fatores (e o próprio processo de alfabetização, segundo Paulo

Freire, deve vir acompanhado de uma tomada de consciência, de leitura da realidade

social que permita ao sujeito a intervenção transformadora) sem os quais seus efeitos

são muito frágeis e pouco duradouros. Um desses fatores pode ser o letramento, tendo-

se o cuidado de tomá-lo na sua dimensão sócio-histórica, como veremos adiante.

Ao tomar a alfabetização como forma de política cultural, Macedo (2000)

alerta para o fato de que ela pode ser um conjunto de práticas que atuam tanto para dar

poder, quanto para marginalizar. Se tomada como aprendizagem da língua padrão,

com ênfase na leitura técnica e habilidades para a escrita (como ainda acontece em

muitas das iniciativas de alfabetização, especialmente as que ainda se definem como

campanhas ou cruzadas e visam erradicar o analfabetismo), além de estar-se

retrocedendo no tempo em relação aos conceitos de Paulo Freire, concorre-se para o

alertado por Macedo.

Frago (1993) defende a idéia de que não basta falar-se em alfabetização,

pois, a se ficar com o substantivo no singular, não haveria como incluir a diversidade

de zonas intermediárias que o conceito abrigaria. Dessa forma, entende que não existe

alfabetização, mas alfabetizações. Conforme a sociedade, o contexto e o momento,

uma noção de alfabetização se faria presente. Concebe tais alfabetizações como

práticas sociais, “práticas ou modos de mostrar e compreender o mundo e as relações

sociais, os demais e nós mesmos, o grupo ou grupos de pertinência e os de comparação

ou referência” (p. 108). Assim definida, a alfabetização (ou pelo menos a palavra

utilizada para traduzir alfabetización no seu livro "Alfabetização na sociedade e na

história") equivale à definição de letramento de vários autores (Kleiman, Tfouni, e

mesmo Soares, ou equivale a alguns usos de literacy por Heath, Street e outros), o que

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leva de volta a pautar a dificuldade que o entendimento deste conceito enfrenta por

conta das traduções.

Emilia Ferreiro (2003, p. 31 ) é categórica:

“Há algum tempo, descobriram no Brasil que se podia usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha consciência fonológica. (...) Eu não uso a palavra letramento. Se houvesse uma votação e ficasse decidido que preferimos usar letramento em vez de alfabetização, tudo bem. A coexistência dos termos é que não dá."

Kalman, ao professar a aula magna no dia da Alfabetização no México,

intitulada "La Importancia del Contexto en La Alfabetización", enfatiza a definição

que toma a alfabetização como práticas sociais:

"... quiero plantear que la alfabetización (entendida como el uso de la lectura y escritura para participar en el mundo social), los procesos de desarrollo de lenguaje oral y escrito y el acceso a la cultura escrita son un asunto de prácticas sociales, son actividades humanas que tienen que ver con procesos sociales y culturales" (Kalman, 2000, p. 15).

No seguimento, dirá que ela é também a apropriação de práticas

comunicativas medidas pela escrita e que, embora seja um processo que inclui a

apropriação do sistema de escrita, não se limita a isso. E que

"vale la pena subrayar que la lectura y la escritura son actividades sociales, son prácticas situadas. La alfabetización es social porque sus formas y usos se construyen históricamente a través de una diversificación continua y porque se utiliza para interactuar con otros; es situada porque se realiza en situaciones específicas, con propósitos comunicativos definidos y con consequencias para la vida de los usuarios". (Kalman, 2000. p. 16)

Recente documento da Unesco (2003), intitulado “Alfabetização como

Liberdade”, incorpora essas noções. No item “Alfabetização, um conceito em

evolução”, é realizada uma exegese do termo e das medidas que foram sendo adotadas

ao longo da história, em conformidade às diferentes concepções, para concluir que

atualmente:

“o foco cada vez mais intenso colocado sobre as práticas de alfabetização, o uso da alfabetização e os contextos onde ela é transmitida levou ao reconhecimento de que a alfabetização serve a propósitos múltiplos e é adquirida

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de diversas maneiras. A alfabetização, portanto, passou a ser encarada não como um conceito único, mas sim plural: as alfabetizações” (p. 34).

Nestes casos, se estaria tomando a alfabetização no sentido de processo de

ensino e aprendizagem do código escrito, ou ao tomá-la como “práticas de

compreender o mundo...” já não estariam sendo incluídas novas nuanças no conceito?

Parece-me que nestas acepções já se encontra um pouco do sentido de letramento

como veremos adiante.

Soares (2001) define claramente alfabetização: “Alfabetizar é ensinar a ler e

a escrever, é tornar o indivíduo capaz de ler e escrever (...) Alfabetização é a ação de

alfabetizar”. De onde alfabetizado seria aquele que domina o código escrito. No artigo

"Letramento e alfabetização: as muitas facetas", apresentado na ANPED de 2003 e

publicado em 2004, Soares apresenta os diferentes conceitos de alfabetizado para os

Censos brasileiros (até 1940, era quem declarasse saber ler e escrever; depois quem

fosse capaz de ler e escrever um bilhete simples, até a exigência de número mínimo de

anos de escolarização) para declarar que há uma "progressiva, embora cautelosa,

extensão do conceito de alfabetização em direção ao conceito de letramento: do saber

ler e escrever em direção ao ser capaz de fazer uso da leitura e da escrita" (Soares,

2004, p. 7). Neste caso, estaríamos falando na dimensão individual de letramento.

Vejamos como a própria Soares distingue as duas dimensões, individual e

social do letramento. Em artigo intitulado "Língua escrita, sociedade e cultura:

relações, dimensões e perspectivas", publicado em 1995, ela define alfabetismo (na

época era o termo que ela preferia e não o neologismo letramento) como um conjunto

de comportamentos caracterizados pela ampla complexidade, referida inicialmente a

duas dimensões. Como atributo pessoal, o alfabetismo se referiria "à posse individual

de habilidades de leitura e de escrita" (Soares, 1995, p. 8). Como dimensão social, o

alfabetismo seria visto como fenômeno cultural, envolvendo atividades sociais que

envolvem a língua escrita, assim como demandas sociais de uso da leitura e da escrita.

Para Tfouni (1997), a alfabetização, sendo um processo individual, não se completa

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nunca27, em razão de que a alfabetização, nas sociedades letradas como a nossa,

acompanha as suas mudanças que são constantes.

Nesta pesquisa, a alfabetização (talvez devendo ser entendida aqui como

categoria êmica) é entendida como um mote para a compreensão dos fenômenos

recentes e das transformações por que passa a Vila de Itapuã. Entretanto, a noção

central para o entendimento dessas transformações, a partir das quais o surgimento de

uma classe de alfabetização de adultos é apenas uma manifestação, é a noção de

letramento/alfabetismo/literacia, tomada como referência a concepção de Leda Tfouni

(1988, 1997). Os alunos do curso recorreram a ele em busca da "alfabetização", o

curso se diz de alfabetização, a professora se define como alfabetizadora. Nas

entrevistas, os pesquisados explicaram seu entendimento do conceito de alfabetização

por expressões como "saber ler e escrever", "ler de tudo" e variações muito próximas.

Entretanto, a alfabetização ou o que diz dela o senso comum, é apenas a ponta do

fenômeno a ser analisado e a forma que ele toma para se tornar manifesto. A

etnografia e as conclusões dela derivadas apontam que há algo de mais profundo,

menos evidente e menos óbvio por trás da criação do curso de alfabetização de adultos

do Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã.

3.4. Letramento, letramentos

De como letramento pode ser pensado como processo sócio-histórico.

Desde que se firmou como um conceito relevante para a compreensão do

momento atual, letramento passou a ser um termo bastante utilizado. Raramente hoje

estudos sobre alfabetização deixam de mencioná-lo. Alguns autores se definiram pela

27 Talvez seja força de expressão o uso do “nunca”. Por mais que uma tecnologia traga embutida uma nova linguagem e um novo sentido para o ato de ler, esses momentos não são a regra e estariam quebrando padrões. Seria forçar demais as fronteiras do conceito dizer de Saramago, por exemplo, que ele não concluiu sua alfabetização, uma vez que, a qualquer momento se poderá criar um desafio de leitura para o escritor. Fora a questão lógica: se Saramago, como sucedeu a Sartre, ficasse cego, diríamos que ele teria ficado analfabeto, uma vez que teria perdido a capacidade de ler no alfabeto tradicional? Por isso, a noção inicial de que não há alfabetização, mas alfabetizações, resolve essas questões e, se não torna os conceitos precisos, também não peca por torná-los contraditórios.

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investigação do ponto de vista dos efeitos provocados pelo letramento nos indivíduos,

da perspectiva educacional ou psicológica. Sociólogos e antropólogos se detiveram

nos aspectos sociais do letramento, isto é, buscando entender como as diferentes

sociedades ou culturas se relacionam com o letramento, outros preferiram mostrar

como ele afeta a sociedade quanto a usos sociais da leitura e da escrita.

Tfouni, ao longo do livro Letramento e Alfabetização, denuncia o caráter

etnocêntrico de estudos sobre grupos sociais não alfabetizados no campo da psicologia

transcultural, etnolingüística, psicologia cognitiva e antropologia. Como sugestão para

superação de tal postura, ela sugere que se comecem a considerar a alfabetização e o

letramento como “processos interligados, porém superados enquanto abrangência e

natureza” (Tfouni, 1997, p. 27). Além de distinguir letramento e alfabetização a partir

da variável escolarização, tal perspectiva permite reconhecerem-se nos grupos não

alfabetizados características usualmente atribuídas aos alfabetizados, tais como a

capacidade de raciocinar logicamente.

Cinco décadas depois da já mencionada pesquisa comparativa de Luria

entre adultos analfabetos e adultos alfabetizados, os psicólogos Scribner e Cole (1994),

ao isolarem a variável “escrita”, mostraram como a presença de habilidades cognitivas

(classificação, categorização, raciocínio lógico dedutivo, etc) é mais dependente da

escolarização do que da escrita. Para isso, pesquisaram o grupo Vai da Libéria, entre o

qual encontraram três escritas, vinculadas a três contextos: a escrita Vai, aprendida na

tradição familiar (utilizada para assuntos “leigos”, atividades práticas, como

correspondências pessoais e transações comerciais, e culturais, incluindo os

provérbios), a escrita inglesa (aprendida na escola) e a escrita arábica (utilizada para

textos sagrados e religiosos na instrução do Corão). Scribner e Cole perceberam que,

submetidos aos mesmos testes utilizados por Luria, os indivíduos escolarizados, ou

seja, os usuários da escrita inglesa, eram os únicos a utilizar as “capacidades”

atribuídas por Luria à escrita. Os usuários das outras escritas apresentaram resultados

semelhantes aos dos analfabetos.

“Os alfabetizados na escrita vai não apresentaram diferenças significativas em relação aos não alfabetizados em quaisquer das medidas cognitivas, tais como as tarefas de ordenação e raciocínio que foram sugeridas como decorrentes da

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experiência com a linguagem escrita” (Scribner e Cole, 1978, p. 450, tradução minha).

Ou seja, era a escola e o tipo de habilidade ali estimulado (ancorado, é

claro, na escrita) que garantia as diferenças na forma de uso de raciocínio lógico,

classificação e memorização, entre outras28.

Graff mostra as amplas implicações das conclusões do estudo de Scribner e

Cole sobre a língua Vai, as quais enfatizam o impacto limitado da literacy fora da

educação formal em habilidades cognitivas. Em lugar do pressuposto que os

estudantes podem trazer para seu estudo do letramento, sobre suas conseqüências

libertadoras ou revolucionárias, ele acredita que o oposto é mais provável. Os tipos de

processo de pensamento que a educação irá ensinar provavelmente irão variar segundo

a ideologia do país e período histórico de que são parte. Graff sugere que as

conclusões sobre o impacto do letramento devem observar que tipo e que qualidade de

letramento as escolas buscaram proporcionar. Ele também acredita que a área da

pesquisa sobre letramento sofre da obstrução à compreensão causada pela

dicotomização dos estudos sobre o tema, como tendem a fazer aqueles chamados por

Street de teóricos da “great divide” e que pólos opostos, como letrado e não-letrado,

escrito e oral, não descrevem circunstâncias concretas de forma realista: “o que se

precisa entender é que o oral e o letrado, assim como o escrito e o impresso, não

necessitam ser postos em oposição, como escolhas simples” (Graff, 1987, p. 25).

Para ilustrar esse argumento, ele usa o exemplo do cristianismo - religião

baseada na Bíblia, mas difundida principalmente por meio da pregação e dos

ensinamentos orais. Graff considera que a perspectiva de se partir do pressuposto de

que o letramento está inextricavelmente ligado ao desenvolvimento, ao avanço e ao

crescimento é indevidamente limitadora, deformadora e simplista. O argumento é

confirmado por Shirley Roburn, que acredita que a tradição ocidental que considera o

letramento como conhecimento em desenvolvimento e expansão, está firmemente

28 Posteriormente, outro pesquisador, Allan Bernardo (1998) comparou habilidades cognitivas de analfabetos, alfabetizados em escola e alfabetizados sem escolarização numa experiência realizada nas Filipinas, comprovando que as pessoas alfabetizadas na escola produziam respostas mais adequadas às perguntas e explicações mais completas, não sendo, pois, a variável alfabetização a responsável pelo melhor desempenho.

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estabelecida, mas pode ser prejudicial. Roburn questiona a tendência a descrever

culturas orais como pré-letradas e ver a “intersecção oralidade/letramento” como uma

progressão unidirecional rumo à sociedade letrada, com base em que essa perspectiva

não apenas desvaloriza a oralidade, mas também limita o letramento a “um caminho da

evolução do conhecimento” (Roburn,1994).

O viés do letramento inclina-se, segundo a autora, em direção à

documentação, em lugar da experiência, e essa abordagem ocidental desvaloriza as

pessoas por considerar o texto, e não elas - pessoas - como guardiãs do conhecimento.

A partir das evidências estudadas, parece haver poucas razões para crer que o

letramento, em si, influencie o pensamento racional. As evidências parecem sugerir

que todas as sociedades serão capazes de utilizar o conhecimento racional e científico

baseado na experiência, sejam elas letradas ou não. Ainda é preciso discutir se o

ensino escolar cumpre um papel importante, e por meio dele o letramento ainda pode

ser considerado necessário ao pensamento racional, mas a sugestão parece ser a de que

as visões da positividade da educação com base no letramento têm um viés cultural,

com poucas evidências reais que as sustentem.

A atribuição à escrita de potencialidades que são garantidas exclusivamente

pela escolarização faz parte, segundo Kleiman (1995) do chamado modelo autônomo

de letramento proposto por Street (1984), mais adiante apresentado. De qualquer

modo, a pesquisa inaugura uma nova fase nos estudos sobre letramento, superando a

perspectiva etnocêntrica dos “evolucionistas” da década de 60.

Tfouni (1995) vai mais além, e apresenta outra explicação para justificar a

presença ou ausência das capacidades de abstração, raciocínio lógico, descentramento,

resolução de conflitos, etc. Suas pesquisas com adultos analfabetos revelaram neles

tais capacidades, o que lhe fez atribuir a presença delas, não à escrita, à alfabetização

ou mesmo à escolarização, mas sim à sua pertença a sociedades com alto grau de

letramento. Assim, quanto mais alto o grau de letramento das sociedades, mais tais

capacidades estarão presentes nos indivíduos, mesmo nos analfabetos. Ocorre que,

embora analfabetos, seus graus de letramento são maiores do que os dos indivíduos

inseridos em sociedades menos letradas. Isso é possível porque ela está se referindo à

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natureza sócio-histórica da noção de letramento. E o mais importante é a denúncia que

faz em relação à alienação desses analfabetos que se encontram numa espécie de limbo

ou de duplas perdas: nem mais são detentores dos valores da cultura oral (os saberes

específicos, a historicidade, os desejos) e nem têm acesso ao conhecimento

sistematizado presente nos suportes de escrita, os livros e mais recentemente, o banco

de dados da experiência humana mundial, a Internet.

3.4.1. O mito, a "divide", os modelos

Ong apresenta uma série de características do pensamento e da expressão

fundados na oralidade, que, analisados um a um por Kleiman, revelam-se produtores

da idéia da mitificação do letramento. E por estas razões ela inclui o livro de Ong

sobre oralidade e cultura escrita entre os tantos que reforçam o chamado “mito do

letramento”.

No artigo intitulado justamente “O mito do Alfabetismo”, Graff critica a

super valorização do alfabetismo em um sentido vago, quando são desconsideradas as

análises da ideologia, da cultura e da consciência. Tal mito derivaria de determinadas

concepções ligadas ao alfabetismo, sobretudo as teorias sociais e pós-iluministas, bem

como a expectativas atuais relacionadas ao papel da escolarização “no

desenvolvimento sócio-econômico, na ordem social e no progresso individual” (Graff,

1990, p. 31). Decorreria daí o fato de o alfabetismo, na sua opinião, ser

“profundamente mal entendido”. E em que consistiria esse mau entendimento? Dentre

outras coisas, decorreria da negação ou do desconhecimento do papel vital do contexto

sócio-histórico (Graff, 1990, p. 33). Na sua argumentação, o autor inicia criticando as

tentativas de definição de alfabetismo para expor a principal contradição da tentativa

de se defender o alfabetismo como condição de desenvolvimento, qual seja a

disparidade entre teoria, que ele, na verdade, trata por “suposições teóricas” (p. 33) e

pesquisa empírica, a última muito incipiente, razão pela qual, deveria ser intensificada,

sobretudo no que diz respeito à reconstrução dos contextos de leitura e escrita (“como,

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quando, onde, por que e para quem o alfabetismo foi transmitido, significados que lhe

foram atribuídos, usos que dele foram feitos”, etc).

“Uma vez que a nossa sociedade valoriza justamente aquilo que é postulado como característico do pensamento transformado pela escrita, caracterizações como a de Ong reforçam o que Graff (1979) denominou de ‘mito do letramento’, isto é, uma ideologia que vem se reproduzindo nos últimos trezentos anos, e que confere ao letramento uma enorme gama de efeitos positivos, desejáveis, não só no âmbito da cognição, mas também no âmbito do social. Esses efeitos vão desde a participação na espécie até a posse de qualidades espirituais... (Kleiman, 1995, p. 34)

Uma rápida incursão sobre o tema do letramento se torna importante uma

vez que, quando instados a falar sobre a alfabetização ou a leitura, a fala de alguns dos

entrevistados representa as interpretações típicas do “mito do alfabetismo”. Ou seja,

essa concepção presente em teóricos facilmente contaminou a opinião comum,

impulsionada também pelas campanhas de alfabetização. Em Itapuã, a vida cotidiana

começa a ser afetada tanto por esses discursos a respeito da educação que com o tempo

foram se instalando com mais força, como por necessidades mesmas que começam a

se apresentar na vila, como, por exemplo, as novas placas de sinalização relacionadas

ao Parque (localização, normas de seu uso, distâncias, nomes de logradouros) e às

sinalizações trazidas pelo asfaltamento da antiga estrada.

Em relação às crianças, há mais tempo é tida como obrigação já

devidamente incorporada a freqüência à escola. Ela não parece vir acompanhada de

maior reflexão, mas passou a fazer parte de uma forma de viver que já não comporta

mais outras opções (até porque obrigação legal), assim como a cultura dominante não

comporta mais o trabalho infantil. As crianças, quando trabalham, “ajudam” os pais, e

essas atividades não são definidas exatamente como trabalho infantil: “apenas ajudam,

só isso”29. A escola passou a fazer parte de uma fase da vida das crianças,

29 Sobre trabalho infantil, algumas considerações precisam ser feitas e estas desafiam o senso comum sobre a precoce inserção das crianças de grupos populares no mundo do trabalho. A antropóloga Tânia Dauster lança

algumas luzes para uma compreensão menos simplista e etnocêntrica da questão. Em primeiro lugar, é preciso realmente tentar compreender os grupos populares e, sobretudo, ter em vista de que, apesar de pertencermos a

uma mesma abrangente sociedade, a complexidade dessa mesma sociedade leva a diversidades às vezes tão profundas que nossos encontros parecem os encontros de séculos passados do velho mundo com o exótico novo

mundo. O trabalho infantil parece se inserir nessa perspectiva, dada a certeza com que o repugnamos. Dauster (1992), porém, mostra como ele se insere no sistema relacional de prestações e de trocas, de tal modo que

“obrigatoriedade do trabalho abrange outros significados além da instância econômica”. Isto porque o trabalho infantil se insere na visão de mundo popular como um princípio de socialização: o papel dos pais é o de prover casa

e comida, e o dos filhos, a ajuda, a complementação, configurando-se um “texto cultural no qual são lidos valores e significados que configuram a construção social desta realidade e das identidades de crianças e jovens”

(Dauster, 1992, p. 34). O trabalho passa a ter para a crianças também o sentido de “decisão” e “afirmação”, ao lhe garantir uma identidade que já se define pela opção pelo trabalho, que lhe dá acesso, não só ao pertencimento

à família no sistema de reciprocidade, mas eventualmente lhe possibilita a aquisição de determinados bens de consumo, sobretudo os impostos por uma sociedade de consumo. O trabalho infantil, ainda que carregado de

ambivalências, assim, se naturaliza, pois a família é uma “unidade de rendimentos” (Durham, 1980), o que não apenas lhe garante um padrão mínimo de consumo, mas é sua própria razão de ser como agrupamento. Daí que,

ao mencionar a relação com a escola, Dauster evidenciará o conflito estabelecido entre uma “infância de curta duração” e a escola que tem como modelo a “infância de longa duração”, o que traz como resultados não uma

escola que se adapte e busque alternativas, mas uma “escola de curta duração”.

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indispensável, mas nem por isso garantidora de um destino muito diferente ao dos

pais.

Não há dúvida que os usos que se possam fazer da necessidade do estudo

em relação aos grupos sociais podem variar da ajuda e apoio descompromissados até

práticas perversas que incluiriam a dominação e o sufocamento. Investigar e avaliar o

letramento de indivíduos ou grupo sociais, conforme a perspectiva adotada, tanto pode

levar a uma compreensão dos limites, das alternativas, das soluções, da necessidade de

permanência ou de mudança, como pode levar ao desprestígio, ao isolamento, à

interferência nas autonomias.

Uma corrente importante nos estudos sobre letramento, sobretudo naqueles

que trabalham com a perspectiva social do letramento, isto é, na análise de grupos

sociais com maior ou menor grafocentrismo, aponta os perigos de uma abordagem

etnocêntrica. Essa corrente denuncia as perspectivas que rebaixam e desprestigiam os

grupos menos letrados.

Um conceito de letramento, na comparação entre alfabetizados e

analfabetos, pode ser a possibilidade de os primeiros terem desenvolvido e usarem

capacidades metalingüísticas. Outro, diferente, seria uma prática discursiva de grupos

sociais em relação a outros grupos sociais sem envolver necessariamente a leitura e a

escrita, mas voltado para o tipo de interação que relaciona oralidade e escrita

(Kleiman, 1995, p. 17-8).

De acordo com Scribner e Cole (apud Kleiman, 1995, p. 19), letramento

poderia ser definido como “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita,

enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para

objetivos específicos”. Assim, a escola é vista como uma das possíveis agências de

letramento (a principal na nossa sociedade), a qual, por sua vez, se preocupa com um

dos tipos de prática de letramento, qual seja a alfabetização (no sentido de aquisição de

códigos alfabéticos e numéricos) e não com o letramento como prática sócio-cultural.

Daí resultariam, inclusive, alguns dos equívocos cometidos na alfabetização escolar na

realização do propósito de “alfabetizar letrando”. Quando lecionei uma disciplina

sobre cultura escrita numa especialização em alfabetização, lemos o texto de Kleiman.

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Em certa altura do capítulo inicial, ela apresenta algumas observações de salas de aula

de alfabetização de adultos. Numa dessas, a professora tenta analisar uma receita de

bolo de fubá, e na outra trabalha a leitura de uma bula de remédio, convencida de que

estava aplicando corretamente uma metodologia progressista. Entretanto, o resultado

não corresponde ao esperado, os alunos não dão as respostas que a professora previra e

para a qual encaminhara sua argumentação, e para a sua indignação, ainda contestam,

no caso da bula, a própria medicina: estavam em jogo dois diferentes conceitos de

letramento, e a professora imersa no primeiro. Alguns dos meus alunos, após a leitura

do capítulo, diziam: mas isso também acontece comigo! Várias vezes já me aconteceu!

Eu penso que estou fazendo certo, eu estou usando materiais do cotidiano dos alunos,

mas a forma como trabalho é essa. E eu não sabia como sair disso.

Neste sentido, embora tratando de um outro universo, o de meninos e

meninas de rua, o estudo de Craidy (1998) demonstra como a alfabetização é

dependente da significação que a escrita e a leitura possam assumir para o

alfabetizando. O professor, por sua vez, precisa dominar minimamente a cultura da

qual se origina seu aluno e a ordem de significação que têm a leitura e a escrita para

ele.

Para Kleiman (1995), agências de letramento como a rua e as instituições

sociais promovem interações entre seus usuários/integrantes/participantes, que são

promotoras, por sua vez, de outro tipo de letramento, menos calcado em competências

individuais e mais resultantes da própria interação, isto é, do significado que a escrita

assume na relação social. Apresenta um rápido histórico do letramento para chegar ao

que entende como uma das possibilidades de pesquisas, dado esse conceito mais

alargado de letramento, isto é, que contempla a interação de grupos analfabetos

imersos em espaços letrados, pesquisas (assim como a defendida nesse projeto) que

têm como objeto:

“examinar as conseqüências sociais, afetivas, lingüísticas, que tal inserção social significa. Para realizar tais estudos, utilizam-se na pesquisa atual sobre o letramento, metodologias que permitam descrever e entender os microcontextos em que se desenvolvem as práticas de letramento, procurando determinar em detalhe como são essas práticas” (Kleiman, 1995, p. 17)

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Soares, em “Letramento, um tema em três gêneros”, apresenta o letramento

como verbete, como texto didático e como ensaio (os gêneros do título), com o que se

revela o esforço da autora na definição, na tentativa de clarear o campo, limpar o

terreno... Embora seja obra datada, trata-se de leitura obrigatória, uma vez que

esclarece o conceito, desde sua origem e necessidade até as definições que visam

discerni-lo de termos conexos. Soares inicia identificando o nascimento do conceito,

ao informar que sua primeira ocorrência se deu no livro de Mary Kato em 1986 e

posteriormente foi tratado por Tfouni. A última teria proposto a diferenciação entre

letramento e alfabetização, com o que teria garantido, segundo a autora, o estatuto de

termo técnico ao letramento. Ainda nessa introdução, Soares cita Kleiman que teria

colocado o letramento no centro da análise da coletânea por ela organizada, “Os

significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita”, de

1995, do qual já vimos tratando aqui.

Quanto à origem do termo, afirma que o mais provável é que tenha vindo da

tradução do inglês, literacy, que seria a “condição de ser literate”. Por sua vez literate,

segundo Soares significa “viver em estado ou condição de saber ler e escrever”, que

não podemos traduzir por literato, uma vez que literato para nós significa erudito.

Letramento está longe de equivaler a erudição, ainda que todo erudito tenha o

letramento como condição, mas há formas de letramento que implicam práticas bem

menos sofisticadas do que as do erudito. Assim, literacy seria “a condição de ser

educado, especialmente capaz de ler e escrever”, e letramento seguiria esse sentido.

Tfouni (1997, p. 32-3), contudo, alerta para o equívoco que pode se

constituir ao se adotar o termo letramento como relacionado a quaisquer dos

significados que a palavra literacy possui no inglês30.

Ela enumera os diferentes significados do termo presentes, sobretudo na

literatura norte-americana: uma perspectiva que denomina individualista-restritiva, isto

é, em que literacy equivaleria à aquisição de leitura/escrita, a última como código, ou

seja, alfabetização; outra perspectiva, a tecnológica, pela qual os usos da leitura são a

30 Sérgio Bath, tradutor de O mundo no papel de David Olson anuncia em nota que "o autor usa constantemente literate e literacy, que traduzimos, segundo o contexto, por 'escrita', 'leitura e escrita', 'domínio da escrita', 'aprendizado da escrita' ou 'alfabetização'. (Olson, 1997, p. 10)

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condição de possibilidade para o progresso e o desenvolvimento; e uma terceira, a

cognitivista, com ênfase no aprendizado individual. Em todas, em alguma medida,

letramento e alfabetização, segundo Tfouni, encontram-se sobrepostos, assim como a

relação de letramento com escolarização e ensino formal. Em quaisquer dessas

acepções do termo inglês literacy, portanto, não caberia incluir os analfabetos. E tais

acepções pertenceriam ao modelo autônomo tal como definido por Street.

No português, o termo letramento já é verbete de dicionário. Alguns autores

adotaram o termo letramento, enquanto outros optaram por utilizar alfabetismo com o

mesmo sentido. O mesmo sentido é que é o ponto chave da questão. Que sentido é esse

ou: existe um sentido unívoco? Soares (2002, p. 144), em artigo mais recente, presente

na revista “Dossiê Letramento”, defende que não há uma diversidade de conceitos de

letramento, mas diversidade de ênfases na caracterização do fenômeno que dá origem

ao termo.

Como é esperado que suceda a todo conceito introduzido a partir da

necessidade de expressão de fenômeno novo, o de letramento (ou de alfabetismo)

aparece carregado de imprecisões e de necessidade de ajustes. Tfouni (1997, p. 30)

alerta que “é preciso notar que não existe questão fechada acerca do que seja o

letramento”; Soares (1998, p. 82) chegou a afirmar: “uma definição que possa ser

aceita sem restrições parece impossível” e, na apresentação do referido dossiê:

“letramento é um conceito novo e fluido; ou melhor: um conceito novo e, por isso,

fluido” (Soares, 2002, p. 15). E Ribeiro, na introdução ao livro Letramento no Brasil

(2003, p. 10), diz referindo-se ao termo que "sua aceitação e a delimitação de seu

sentido ainda não são unânimes, como o leitor poderá constatar em comentários sobre

a questão presentes em mais de um dos artigos deste livro". Em entrevista centrada no

papel da leitura, Ribeiro (2003)31 trata dos conceitos alfabetismo/letramento, buscando

diferenciá-los, e diz que letramento:

“é semelhante ao alfabetismo, mas no livro utilizamos ‘alfabetismo’ quando tratamos especificamente do nível de habilidade medido na prova e ‘letramento’ quando tratamos de prática da leitura e da escrita, algo mais geral, sociológico.

31 Nesta entrevista, dada ao redeGIFE em 15/9/2003, Masagão comenta o livro “Letramento no Brasil”, no qual são analisados os resultados do “Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional” de 2001. Coube a Masagão, organizadora do livro, comparar os dados de 2001 com os de 2003. (www.ipm.org.br/ent.htm)

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Essa palavra é uma importação de uma palavra em inglês que significa cultura escrita ou movimento para tornar a sociedade letrada, usuária da leitura e da escrita. No inglês não existe o termo alfabetização no sentido que temos aqui. Lá usa-se ‘learning’, ‘reading’ e ‘writing’, mas não há esse sentido de aprendizagem inicial, do bê-a-bá. Na década de 80 começaram a surgir muitos estudos sobre a cultura escrita, relação de oralidade, estudos antropológicos, por isso passou-se a traduzir a palavra. Uns traduziram por alfabetismo, outros por letramento. Mas o letramento, na academia, virou o grande termo.” (Ribeiro, 2003, s/p)

Na já referida introdução, Ribeiro repete a idéia de que alfabetismo foi

utilizado para designar níveis de habilidade dos grupos pesquisados e, "para se referir

a práticas de leitura e escrita, à presença da linguagem escrita na cultura, à relação

desse fenômeno com a escolarização, cada autor utilizou seus próprios termos, muitos

deles - como era de esperar - o termo letramento, que figura também no título do livro"

(Ribeiro, 2003, p. 12).

Tal distinção entre alfabetismo e letramento não é consensual. Em geral,

são termos tidos como equivalentes e, portanto, trata-se de opção. Se como já apontado

aqui, um dos problemas dos textos traduzidos do inglês para o português, podemos

complexificar mais ainda a questão se acompanharmos a discussão em língua inglesa

acerca do que seja literacy. Na World Conference of Literacy de 1996, Kelder (1997,

p. já afirmara que:

"Literacy representa coisas diferentes para as pessoas. Todos querem níveis mais altos de literacy e este nível mais alto de ansiedade alimenta os mitos políticos, sociais e econômicos, associados com o conceito e mascaram sua realidade, impedindo que se reconheçam as literacies históricas, as complexidades políticas, culturais e sociais e suas implicações. Trazendo uma dimensão crítica às multi-literacies, os estudantes desenvolverão uma meta linguagem para entender como os significados são criados".

O mesmo pesquisador, em artigo intitulado “Rethinking literacy studies”

(Kelder, 1997), diz que "essa revisão feita por alguns dos principais pesquisadores no

campo dos estudos de literacy desenvolverão alguns dos significados da literacy para

revelar sua multidimensionalidade e sua imersão em contextos sociais, culturais e

políticos”.

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Ao mencionar várias pesquisas, Kelder usará a expressão “plurality of

literacies” que tomou de Street (1995). Vincent (2003, p. 1) inicia seu artigo intitulado

"Literacy Literacy" afirmando que o termo "Literacy ficou muito ‘promíscuo’. A

palavra mesma, fragmento de linguagem, tem a cada dia sua aplicação expandida. Nós

temos mais e mais literacies. Tanto no discurso acadêmico como no popular, o termo

está ligado a um conjunto em proliferação de condições e atividades."

Sendo esse conceito múltiplo e controverso, talvez a distinção de aspectos e

a nominação para os diferentes sentidos possam ser uma boa alternativa, e apenas o

acúmulo no campo teórico é que dirá que termo e que sentido sobreviverão. Um dado

interessante para compreensão da polêmica é, tal como sugere Soares, começar-se pelo

fenômeno. Qual o fenômeno afinal que surge, que é recente, que precisa ser nomeado

e que o tem sido por alfabetismo ou letramento?

Autores que se mantêm na dimensão individual do conceito explicam que,

na época atual, nas sociedades grafocêntricas como a nossa, em que a alfabetização,

entendida como processo de aquisição de rudimentos que garantem ao indivíduo

algum domínio da leitura e da escrita (para ficarmos numa definição ampla e com isso

pouco conflitante), está disseminada e deixa de importar como problema, surge uma

nova exigência aos alfabetizados. Essas novas exigências podem ser apontadas de

diferentes perspectivas: competência crescente na interpretação de textos, uso social da

leitura e da escrita, etc. Ainda que se aceite que a alfabetização é um processo

contínuo, cuja completude não se dá em razão da complexificação das linguagens,

faltaria um termo que designasse essa capacidade ou esse uso da capacidade de ler e

escrever como prática corrente.

“Há, assim, uma diferença entre saber ler e escrever, ser alfabetizado, e viver na condição ou estado de quem sabe ler e escrever, ser letrado (atribuindo a essa palavra o sentido que tem literate em inglês). Ou seja: a pessoa que aprende a ler e a escrever - que se torna alfabetizada - e que passa a fazer uso da leitura e da escrita, a envolver-se nas práticas sociais de leitura e de escrita - que se torna letrada - é diferente de uma pessoa que não sabe ler e escrever - é analfabeta - ou, sabendo ler e escrever, não faz uso da leitura e da escrita - é alfabetizada, mas não é letrada, não vive no estado ou condição de quem sabe ler e escrever e pratica a leitura e a escrita.” (Soares, 1998, p. 36)

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Aqui, porém, começa o início da dificuldade para estabelecimento do

conceito de maneira “clara e distinta”. Vou tomar como ponto fulcral dessa dificuldade

um quadro apresentado por Soares em que ela analisa as várias categorias em que os

indivíduos podem ser enquadrados:

“Um adulto pode ser analfabeto e letrado: não sabe ler nem escrever, mas usa a escrita: pede a alguém que escreva por ele, dita uma carta, por exemplo (e é interessante que, quando dita, usa as convenções e estruturas lingüísticas próprias da língua escrita) - não sabe escrever, mas conhece as funções da escrita, e usa-as, lançando mão de um “instrumento” que é o alfabetizado (que funciona como uma máquina de escrever...); pede a alguém que leia para ele a carta que recebeu, ou uma notícia de jornal, ou uma placa na rua, ou a indicação do roteiro de um ônibus - não sabe ler, mas conhece as funções da escrita, e usa-a, lançando mão do alfabetizado. É analfabeto, mas é, de certa forma, letrado, ou tem um certo nível de letramento. Uma criança pode ainda não ser alfabetizada, mas ser letrada: uma criança que vive num contexto de letramento, que convive com livros, que ouve histórias lidas por adultos, que vê adultos lendo e escrevendo, cultiva e exerce práticas de leitura e de escrita: toma um livro e finge que está lendo (e aqui de novo é interessante observar que, quando finge ler, usa as convenções e estruturas lingüísticas próprias da narrativa escrita), toma papel e lápis e “escreve” uma carta, uma história, ainda não aprendeu a ler e escrever, mas é, de certa forma, letrada, tem já um certo nível de letramento. Uma pessoa pode ser alfabetizada e não ser letrada: sabe ler e escrever, mas não cultiva nem exerce práticas de leitura e de escrita, não lê livros, jornais, revistas, ou não é capaz de interpretar um texto lido: tem dificuldades para escrever uma carta, até um telegrama - é alfabetizada, mas não é letrada.” (Soares, 1998, p. 47)

Uma primeira imprecisão salta aos olhos se destacamos as categorias ou os

três casos comparados32.

32 Esta parte do texto recebeu a seguinte pergunta da professora Trindade: "por que preferiste associar o termo analfabeto a letramento ao invés da expressão não-alfabetizado para reconhecer o adulto, ao mesmo tempo em que usas a expressão não-alfabetizada para reconhecer a criança? Fazes isso mais adiante (p. 48), ao discutir possíveis posições que podem ocupar sujeitos não-escolarizados ou escolarizados: (1) adulto analfabeto letrado; (2) criança não-alfabetizada e letrada e (3) pessoa alfabetizada e não letrada. O que estou sugerindo é que possas discutir por que as crianças são reconhecidas como “não-alfabetizadas” e os adultos como “analfabetos”. Ou seja: é a passagem pela escola que determina o uso dessas categorias: adulto/pessoa analfabeto/a, adulto/pessoa alfabetizado/a, criança/adulto/pessoa letrado/a, criança não-alfabetizada? E os adultos que não passam pela escola, ou seja, que são categorizados como “não escolarizados” podem ser reconhecidos como “não-alfabetizados”? Seriam categorizados simplesmente como “analfabetos” ou como adultos não-escolarizados e não-alfabetizados (ampliando essa categoria pela inclusão dos semi-escolarizados e semi-alfabetizados)? Se adultos e crianças não passaram pela escola, ambos não poderiam ser reconhecidos como não-alfabetizados? O que estou fazendo é tentar mostrar que há um deslocamento dessa posição de não-alfabetizado para alfabetizado associada à idade nos discursos cotidianos, incluindo, inclusive, o acadêmico." (Trindade, 2003, p. 2) A classificação dos três casos foi retirada da citação de Soares precisamente com o intuito de mostrar que os tipos não eram exaustivos e eram até mesmo, de certa forma e justamente pelas razões apontadas no parecer de

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1 Adulto analfabeto e letrado

2 Criança não alfabetizada e letrada

3 Pessoa alfabetizada e não letrada

Tomemos o primeiro caso, o do adulto analfabeto e letrado. Ele está sendo

considerado letrado, apesar de seu analfabetismo, porque faz uso social da escrita (ao

ditar uma carta e usar as “convenções e estruturas lingüísticas”) e da leitura (ao pedir

que alguém lhe leia uma carta que recebeu ou uma placa de rua). Agora, comparemos

essa situação de uma pessoa adulta considerada letrada com o caso terceiro da pessoa

alfabetizada e não letrada. A pessoa deste caso, por ser alfabetizada, provavelmente

não peça a ninguém que lhe escreva uma carta, ou, no limite, se é considerada incapaz

de escrever, por certo, se pedisse, teria as mesmas condições ou melhores de usar as

“convenções e estruturas lingüísticas” que a mais precária das alfabetizações (ou

mesmo a regressão ao analfabetismo) teria lhe conferido ou, se não pela alfabetização,

por viver na mesma sociedade grafocêntrica do adulto do caso um. No caso terceiro,

estão-se exigindo determinadas condições de uso da leitura e escrita (cultivar e exercer

práticas de leitura e de escrita, ler livros, jornais, revistas ou interpretar um texto lido,

capacidade de escrever uma carta ou telegrama) que não se exigiu para fins de

classificação na categoria letrado ao caso um. O adulto do caso um pede a alguém que

lhe indique o roteiro de ônibus ou uma placa de rua. O que se espera do adulto do caso

três? Ou ele viveria alijado desse tipo de necessidade ou teremos aqui o caso de dois

pesos, duas medidas. Para sair-se dessa contradição, seria necessário superar a

perspectiva do letramento na sua acepção individual.

Creio que aqui há uma sobreposição entre letramento concebido como

capacidade individual e como prática social, de tal modo que aparecem alinhados na

análise as duas dimensões: competência da leitura e da escrita e prática social da

leitura e escrita.

Trindade, um tanto incongruentes - ou se não bastante incongruentes - reveladores de uma certa mistura de categorias. A professora Trindade é precisa ao buscar a lógica da classificação na relação com a escolarização e ao apontar o deslocamento. Um dos preconceitos que incide sobre os adultos é então este de serem associados ao analfabetismo.

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Se letramento fosse isolado como competência, o problema estaria em parte

resolvido, pois se supõe que a competência esteja associada à prática de leitura e

escrita (sem a prática, há casos de pessoas que desaprendem a ler e escrever, a

chamada regressão ao analfabetismo, ou o fazem de maneira cada vez mais precária).

Ocorre que nos manteríamos sem um conceito que precisaria ter um termo próprio

para a prática social de leitura e escrita do não alfabetizado. Ou seja, a única

alternativa lógica para a sobreposição de conceitos contraditórios sob um mesmo

termo, é a criação de um outro termo para definir esse caso especial.

Senão vejamos com Soares:

“à medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um número cada vez maior de pessoas aprende a ler a escrever, e à medida que, concomitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais centrada na escrita, um novo fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escrever. As pessoas se alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não necessariamente incorporam a prática da leitura e da escrita, não necessariamente adquirem competência para usar a leitura e a escrita, para envolver-se com as práticas sociais de escrita: não lêem livros, jornais, revistas...” (Soares, 1998, p. 46)

Neste parágrafo, fica explícito um círculo vicioso que envolve competência

na leitura e na escrita e prática social de leitura e escrita. A prática necessita do lastro

dado pela competência, e a competência se ampara na prática. Se admitimos o adulto

analfabeto com prática social de leitura e escrita, estamos negando a afirmativa de que

prática social de leitura e escrita supõe competência. Antes: estamos aceitando uma

certa independência de ambas. É difícil superar a circularidade se não acrescentarmos

outra dimensão.

Tfouni, em “Letramento e Alfabetização”, acrescenta uma outra categoria

de diferenciação entre letramento e alfabetização a partir das dimensões individual e

sócio-histórica.

Como a autora constrói seu argumento: antes de tudo, afirma que a

alfabetização pertence ao âmbito do individual por se referir à aquisição33 da escrita

33 Não cabe aqui entrar na discussão sobre o uso do termo “aquisição”, contestado por alguns autores em razão do seu caráter inatista. Sobre essa questão, ver Rojo, 1998.

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como aprendizagem de habilidades para leitura e escrita. E ainda nessa linha da busca

de definições, afirma que pertencem ao sentido do letramento os aspectos sócio-

históricos da aquisição da escrita. No passo seguinte, comentário sobre a escrita,

aponta como ela serviu historicamente para difusão de idéias, mas também para

ocultamento (lembra então os textos herméticos, os textos sagrados, etc), ou seja,

esteve a serviço do poder e da dominação.

A alfabetização é analisada a seguir a partir das suas duas perspectivas:

“como um processo de aquisição individual ou como um processo de representação de

objetos diversos, de naturezas diferentes” (Tfouni, 1997, p. 14). Em relação à primeira,

discute a necessidade de se entender a alfabetização como processo que não se

extingue e, portanto, distinguir alfabetização de escolarização. Ainda que a escola

alfabetize, a alfabetização não é prerrogativa exclusiva da escola, visto ser um

processo contínuo e visto que há práticas sociais para além da escola, que são a razão

mesmo de ser da alfabetização. Daí que ela não deva ser vista como um processo

mecânico, de cumprimento de regras e normas. O paralelo alfabetização/escola está

sendo trazido recorrentemente ao texto porque, mais adiante, na tentativa de explicar o

curso de alfabetização do GAMI e a própria vila de Itapuã, tal relação será importante.

Já a segunda perspectiva, a que enfatiza a representação de objetos, dá

conta do caráter de simbolização contido na escrita, o que equivale a dizer que entre a

oralidade e a escrita estabelece-se uma relação de interdependência, com influências

mútuas entre ambas.

A autora afirma que a alfabetização “se ocupa da aquisição da escrita por

indivíduos ou grupos de indivíduos”, ao passo que o letramento focaliza aspectos

sócio-históricos dessa aquisição34.

34 Entretanto, há acepções de letramento que se limitam à dimensão individual. Ribeiro assim explica a diferença: "A dimensão individual do letramento diz respeito à posse de capacidades relacionadas à leitura e à escrita, que incluem não só a habilidade de decodificação de palavras, mas um amplo conjunto de habilidades de compreensão e interpretação que podem ser aplicadas a uma gama muito diversa de textos. A dimensão social do letramento diz respeito às práticas sociais que envolvem a escrita e a leitura em contextos determinados. O que está em jogo, nesse âmbito, são os objetivos práticos de quem utiliza a leitura e a escrita, as interações que se estabelecem entre os participantes da situação discursiva, as demandas que os contextos e as práticas sociais colocam, as representações e os valores associados à leitura e à escrita que um determinado grupo cultural assume e dissemina. (Ribeiro, 2002, p. 269)

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Ao apresentar as questões típicas de que se ocupam os estudos sobre

letramento (mudanças decorrentes da passagem de uma sociedade não letrada para

letrada, comparações entre grupos não-alfabetizados em sociedades letradas e em

sociedades iletradas, penetração de valores de sociedades letradas em grupos não-

alfabetizados), Tfouni ilustra como tais estudos sempre acabam remetendo ao contexto

e às estruturas sociais. Por fim, explica que pretende demonstrar que, nas sociedades

industriais modernas, não existe o iletrismo, que seria o letramento grau zero. Pode

existir, se entendo bem seu argumento, o analfabetismo absoluto, mas não o iletrismo.

E apresenta a questão que interessa especialmente nesse projeto de pesquisa: “pode-se

encontrar em grupos não alfabetizados características que usualmente são atribuídas a

grupos alfabetizados e escolarizados?” e acrescenta: “se a resposta for positiva,

estaremos mostrando que letramento e alfabetização são distintos, e devem ser

estudados separadamente”. No parágrafo seguinte, afirma, com segurança, que a

resposta é positiva.

Não há dúvidas quanto à primeira parte, isto é, que alfabetização e

letramento são processos distintos e, como tais, devem ser estudados. Tampouco se

pode conceber que os analfabetos possam não carregar “características” de

alfabetizados, o que implicaria definir os analfabetos como seres essencialmente

distintos de alfabetizados. É evidente que, havendo convivência e comunicação,

características típicas ou “usualmente atribuídas a grupos alfabetizados” se apresentem

também nos analfabetos. A partir daí, Tfouni retoma a importância do contexto sócio-

histórico e conclui que a influência se deve ao fato de a sociedade em que se

encontram os indivíduos ser letrada ou não (Tfouni, 1997, p. 27).

No momento seguinte, Tfouni faz uma crítica veemente à chamada "great

divide" (vinculada ao modelo autônomo de letramento), que seria o estabelecimento de

um marco divisor nas sociedades a partir da generalização da escrita e dos usos

letrados da língua. Por esta teoria, teríamos uma bipolarização que poderia,

aproveitando as descrições de Tfouni, ser esquematizada como a seguir:

The Great Divide

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Modalidades orais Modalidades escritas

Raciocínio Emocional,

contextualizado, ambíguo

Abstrato,

descontextualizado e

lógico

Processos de pensamento Pré-lógico Lógico

Primitivo Moderno

Concreto Científico

Linguagem Funções interpessoais Funções lógicas

Pela concepção da great divide, a generalização dos usos da escrita aparece

associada a progresso, desenvolvimento individual e social, mobilidade social, etc,

estando assim carregado de uma positividade praticamente inexistente na modalidade

oral.

A teoria da great divide teria recebido uma nova versão na classificação de

Street, correspondendo ao modelo autônomo. Os modelos pensados por Street são o

autônomo e o ideológico.

No primeiro, a escrita seria um produto em si, determinada pelo

funcionamento interno ao texto escrito, e assim distinta da linguagem oral. O modelo

autônomo, fruto de uma perspectiva conservadora, vê o letramento como tecnologia

neutra, centrada no reconhecimento dos processos racionais da escrita (tidos como

exclusivos dela, a exemplo da abstração e do raciocínio lógico), e portanto pode ser

atribuído ou não aos indivíduos. Estamos diante desta concepção sempre que tomamos

o leitor como se fosse autônomo, como se pudesse ser separado da sociedade, sempre

que tratamos as habilidades cognitivas utilizadas na decodificação de um texto,

independentemente do contexto de sua produção. Neste modelo, letramento se vincula

estritamente à escrita e, por conseguinte, à alfabetização, e, por conseqüência, cria um

abismo intransponível entre alfabetizados e não alfabetizados (Tfouni, 1997, p. 36).

Já o modelo ideológico entende fala e escrita como intrinsecamente

interpenetradas, sendo que a escrita cumpre importante papel na formação de sentido

do contexto, tanto na interação entre os sujeitos como em relação aos processos e

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estratégias interpretativas. Aqui, as práticas de letramento são não somente culturais,

mas também permeadas pelas estruturas de poder. A unidade de estudo são os

“eventos de letramento”, entendidos como o contexto da escrita nessa acepção. O

modelo ideológico (que não deixa de incluir o autônomo porque o amplia e dá mais

amplos sentidos à leitura e à escrita) e o significado dos eventos de letramento são

fundamentais para essa pesquisa, uma vez que a etnografia buscou revelar esses

eventos na Vila de Itapuã.

Como Tfouni escreve, em 1995, no prefácio do livro, seu trabalho nesse

campo começou em 1982, ano em que começou a pesquisar adultos não alfabetizados.

Já então, enquanto a maioria das pesquisas tratava de investigar as alterações que se

produziam nas pessoas ao tornarem-se (sic) alfabetizadas, seu interesse se voltava para

os analfabetos inseridos numa sociedade grafocêntrica que, entretanto, não equivalem

aos analfabetos de uma sociedade sem sistema de escrita. Ou seja, havia um vácuo na

terminologia para definir esse sujeito, isto é, um analfabeto com determinadas práticas,

diferente de outros analfabetos. Segundo ela, “foi dessa constatação que surgiu o

neologismo letramento” (p. 8). E com isso, mais uma vez reitera a possibilidade do

letramento em analfabetos.

Tfouni, no capítulo terceiro (Autoria e letramento: análise das narrativas

orais de ficção de uma mulher analfabeta), apresenta dona Madalena, a mulher do

título, contadora de histórias, e mostra como, na sua oralidade, ao contar histórias,

aparecem elementos de escrita e que, portanto, a sua expressão oral traz características

de letramento. Assim, para a lingüista, sustenta-se a sua posição de que esses fatos se

justificam dentro de uma concepção sócio-histórica de letramento, cujo critério central

é a concepção discursiva de autoria.

Freire, entre tantos outros méritos do conjunto de sua obra, chama a atenção

para a importância da palavra, que não é neutra, mas geradora de sentidos e de

possibilidades. Se a alfabetização não corroborar com a descoberta desses sentidos, ela

pode cair no vazio. O uso social da leitura e da escrita decorre dessa forma de encarar

a palavra. O alfabetizando, ao se relacionar desse modo com a palavra, também se

torna autor da palavra e de tudo o que ela carrega consigo. “Alfabetizar-se não é

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aprender a repetir palavras, mas a dizer a sua palavra, criadora de cultura” (Freire,

1978, p. 19).

Fachel (2004), no parecer avaliativo do projeto de tese, afirmou:

“Tenho várias dúvidas sobre o conceito de letramento e certamente este conceito, no campo da antropologia, é mais bem descrito como cultura escrita, no entendimento que exige o domínio de um determinado código (a escritura), uma competência da modernidade. Muitos dirão que na pós-modernidade reinaugura-se a primazia da oralidade, agora acompanhada de seqüências de imagens, e a mídia em suas diferentes modalidades substitui o nosso velho contador de história que, em lugarejos como Itapuã, teimam em existir. Mas não cabe a mim discutir o conceito de letramento, cabe dizer que o domínio do fazer etnográfico apresentando o que a autora chama de letramento me leva a entender perfeitamente esse processo de valorização social da palavra escrita como aquilo que os clássicos da antropologia chamariam de fato social total, do qual a própria apreensão do fato (a análise do investigador) faz parte.”

Podemos assim falar de letramento numa aproximação com cultura escrita.

Uma pluralidade de usos e formas de linguagem, na qual a escrita cumpre um papel de

mediação, ainda que o fenômeno seja muito mais complexo do que a simples

transcrição do oral, como já vimos. A escrita se situa num mundo que "fala" e assim

convive com a oralidade. Para Heath (1983), a literacy se alimenta das formas de falar

e interagir que acompanham a escrita e a leitura. Mas a relação entre a língua oral e a

língua escrita é mais entremeada do que linear. Ao se escolher a leitura ou a escrita

como recursos comunicativos, se cria e recria também a cultura de usar a língua

escrita, suas formas e significados. A noção de cultura escrita significa assim três

processos de produção cultural: a cultura de ler e escrever, a cultura que lê e escreve, a

cultura que se produz ao ler e escrever.

O livro Ways with Words apresenta o resultado de dez anos de pesquisa de

Shirley Brice Heath junto a três comunidades das Carolinas (EUA): uma comunidade

de classe média urbana e duas comunidades rurais, sendo uma afro-americana e outra

anglo-americana. A antropóloga pesquisou as práticas e crenças em torno da língua

escrita e da oral, e mostrou que as duas comunidades rurais tinham pouco êxito

escolar, mas seus problemas escolares variavam de acordo com as fases do processo

educativo. Na comunidade de origem afro, a prática de jogos de linguagem e de

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grandes narrativas, verdadeiras ou falsas, estavam presentes. Como nos primeiros anos

de escolarização, o predomínio era de tarefas concretas em torno da

decodificação/codificação da língua escrita, as crianças apresentavam maus

desempenhos. Suas capacidades originais até poderiam vir a ter valor em séries

posteriores da escola, mas as crianças já viriam de deficiências acumuladas.

Já a comunidade rural anglo-americana é fortemente religiosa e, por conta

disso, há grande preocupação com a correta interpretação do que se lê nos escritos

religiosos e também uma grande preocupação com os conteúdos de verdade do que se

considera relato pessoal. Suas crianças começam bem na escola, mas apresentarão

problemas nos anos médios quando os processos de compreensão e de elaboração das

aprendizagens serão valorizados.

Incluindo nesse caminho investigativo a sócio-lingüista Cook-Gumperz

(1991), tive acesso à forma como a associação entre alfabetismo e escolarização foi

evoluindo. Ela mostra, especialmente no capítulo "Alfabetização e escolarização: uma

equação imutável", que nos séculos XVIII e XIX, o movimento de universalização dos

sistemas de ensino foi influenciado por dois interesses diferentes. De um lado os

interesses dos que pensaram que a escolarização poderia fortalecer uma cultura

popular letrada já existente e que se beneficiaria da sistematização oferecida pela

escola. De outro, havia os que viam na escola uma forma de disciplinarização da classe

trabalhadora. Segundo Trindade, Cook-Gumperz

"mostra, também, através da análise da produção dessas expectativas desde o século XVI, e especialmente, entre os séculos XVIII e XIX, em diferentes regiões e comunidades, que tal alfabetização se daria na interação cotidiana, por meio de tarefas práticas, possuindo maior valor nas áreas sociais e recreativas da vida. Apenas, gradualmente, ela ingressaria na vida econômica das pessoas comuns em formas que determinariam suas perspectivas de vida. Ou seja, inicialmente, a atividade econômica não era a única razão para o desenvolvimento da alfabetização. A mudança, portanto, não foi do total analfabetismo para alfabetização, mas sim de uma multiplicidade dificilmente estimada de alfabetizações, de uma idéia pluralista acerca da alfabetização até uma idéia da alfabetização única, estandardizada do século XX e, eu diria, que estas interpretações todas estão sendo revisadas, entre o final do século XX e neste início do século XXI, quando comparamos as práticas sociais da leitura e da escrita (letramento social) e sua escolarização (letramento escolar)." (Trindade, 2004, p. 2)

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Já no século XX, nova alteração faz com que a alfabetização passasse a ser

percebida como um direito humano universal, uma vez que a alfabetização carrearia o

desenvolvimento dos locais. Assim, tramado com a escola, esse novo tipo de

alfabetização seria passível de testes e se apresentaria descontextualizado. Hoje

voltamos a ver a alfabetização associada a contextos sociais em inúmeros estudos

[Barton e Hamilton (1998), Heath (1983 e 1999), Kalman (2000)]

Cook-Gumperz (1991) mostra como no século XX, a alfabetização aparece

relacionada à possibilidade de os indivíduos acederem a outras tecnologias. É quando

se cristaliza uma alfabetização tipicamente escolar, como habilidade cognitiva,

padronizada e testável. A autora demonstra como a equação alfabetização/

escolarização sofreu mudanças nos últimos cinqüenta anos.

"Ainda é possível uma alfabetização sem escolarização (...); mas ter escolarização sem alfabetização é impossível. (...) a posição dos modernos sistemas educacionais como instituições de seleção e colocação na complexa divisão do trabalho, transformou a escolarização em uma força preponderante. A alfabetização foi redefinida dentro do contexto da escolarização e transformou-se naquilo que agora chamamos de alfabetização escolar, isto é, um sistema de conhecimento descontextualizado, validado através de desempenhos em testes" (Cook-Gumperz, 1991, p. 54).

Esta afirmativa será retomada mais adiante, quando, ao apresentar o caso

dos alfabetizandos do GAMI, tentarei mostrar como a sua inserção no mundo letrado

vem prescindindo da escola formal nos seus projetos pessoais.

3.5 Analfabetismo, Iletrismo Da produção social do iletrismo

Mais relevantes do que os termos, que passam a ser questão de convenção,

que com o tempo acaba acontecendo quando os termos mais “fracos” vão dando lugar

aos que se mostram mais fortes no seu uso ou na disputa no campo de poder35, são os

35 Estou incluindo aqui a expressão "campo de poder" ou mesmo a noção de poder num sentido mais fraco do que em geral lhe atribuem os pós-estruturalistas, dado que me alinho muito mais a Sahlins (2004) que, no livro "Esperando Foucault, Ainda", diz provocativamente que "a corrente obsessão foucaulti-gramsci-nietzschiana

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fatos, fenômenos, sensações que estão lhes dando origem. Por isso, os conceitos que

hoje ainda precisam de distinções teóricas aos poucos darão lugar a significados cada

vez mais precisos. Entre esses conceitos no campo que estamos discutindo, que ainda

precisam de sintonia fina, estão os negativos.

Menos problemático, em princípio, seria o conceito de analfabeto que se dá

pela negação simples. O analfabeto é a negação do alfabetizado (mesmo aceitando-se

que alfabetização possa se caracterizar pela incompletude). O analfabeto não sabe nem

ler e nem escrever. Parece resolvido. Frago (1993) ironiza com essa concepção e diz

que quem pensa assim é analfabeto em questão de alfabetização. Mesmo restringindo

o conceito à alfabetização como decodificação e transcrição de símbolos lingüísticos,

ainda haveria um sem número de variantes correspondentes a múltiplas nuanças. O

extremo, isto é, a negação mesmo, seria o analfabetismo absoluto. Mas haveria a semi-

alfabetização, isto é, a possibilidade de saber ler e não saber escrever. Também o

analfabetismo cultural, a impossibilidade de, mesmo lendo, não compreender

determinados tipos de textos possibilitadores de acesso à vida cultural de sua

comunidade. E ainda o analfabetismo funcional (Frago, 1993, p. 16). Na década de 90,

começa-se no Brasil a falar nos analfabetos funcionais36, pessoas que, ainda que

possam saber ler e escrever, não fazem uso adequado de tais capacidades até mesmo

no que se refere a textos da vida cotidiana. Frago argumentará em relação à imprecisão

do termo “funcional”, pois o que pode ser funcional para alguns indivíduos ou

contextos, pode não sê-lo para outros.

Quando começamos a falar em letramento, o fazemos para opor tal estado

ao de iletrismo. Soares (2000, p. 21) diz que "os franceses diferenciam illetrisme muito

claramente de analphabétisme”, e Foucambert (1994) assegura que iletrismo não

equivale a analfabetismo funcional: enquanto o analfabetismo funcional seria

conseqüência da falta de exercício das técnicas de correspondência grafo-fonéticas, ou

seja, a perda do domínio delas, o iletrismo seria conseqüência do afastamento das

pelo poder é a encarnação mais recente do incurável funcionalismo na antropologia" e, no comentário ao mesmo livro, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (caderno 2 da Folha de São Paulo, 3/10/04) diz que "o poder tem cada vez mais, de fato, funcionado analiticamente como se fosse uma espécie de éter do mundo social, verdadeira substância mística a mediar universalmente as ações humanas." 36 A UNESCO já utilizava a expressão desde a década de 70.

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redes de comunicação escrita, resultante, via de regra, da exclusão dos processos de

produção de tais redes. Ou seja, isso mostra um mesmo fenômeno sendo visto a partir

de posições teóricas diversas.

A contribuição de Graff em “O mito do alfabetismo” partiu da tentativa de

desmitificar o letramento, e desmitificar a escolarização ou a alfabetização. Mais

recentemente e com um título que reflete a face especular do tema, o francês Lahire

(1999) em “O mito do iletrismo”, contrapõe-se a uma forma discursiva que visa

associar incapacidades morais e cognitivas ao menor uso, por parte de alguns grupos

sociais, de leitura e escrita. Nas décadas de 70 e seguintes, segundo Lahire, deu-se na

França a descoberta do iletrismo ou a invenção (no sentido de construção social) do

iletrismo, para a qual contribuíram vários setores como imprensa, academia e governo.

Produziu-se um discurso em que os males sociais e o iletrismo foram postos em

relação direta37.

Para explicar a gênese do iletrismo, Ferreiro (2000, p. 36) diz:

"Los países pobres no han superado el analfabetismo; los ricos han descubierto el iletrismo. ¿En qué consiste ese fenómeno que en los años 80 puso en estado de alerta a Francia, a tal punto de movilizar al ejército en la ‘lucha contra el iletrismo’? El iletrismo es el nuevo nombre de una realidad muy simple: la escolaridad básica universal no asegura la práctica cotidiana de la lectura, ni el gusto por leer, ni mucho menos el placer por la lectura. O sea: hay países que tienen analfabetos (porque no aseguran un mínimo de escolaridad básica a todos sus habitantes) y países que tienen iletrados (porque a pesar de haber asegurado ese mínimo de escolaridad básica, no han producido lectores en sentido pleno)."

Béatrice Fraenkel (1993), por exemplo, mostra que o termo iletrismo

remete a situações e a relações com a escrita que variam no tempo (variações

históricas), no espaço (variações culturais). O iletrismo, para ela, está fortemente

ligado ao tipo de relação que as sociedades mantêm entre saberes técnicos e saber

cultural.

Tfouni (1997, p. 23) sustenta que o iletrado, como oposto do letrado, na

prática não existe, visto que nas sociedades modernas, industrializadas, algum grau de

letramento qualquer indivíduo possui. Tal concepção só é possível, entendendo-se 37 Um bom ensaio analítico e histórico da categoria iletrismo na França, pode ser encontrada em Lenoir (2003).

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letramento não numa possível dimensão individual (que então fica restrita aos

conceitos de alfabetização), mas sempre remetido a uma dimensão social. A própria

existência de graus de letramento é concebida, entendendo-se que o grau zero no nosso

contexto não existe. Assim, pode existir o não alfabetizado, mas não existe o iletrado.

Por isso, Tfouni assegura que, sendo alfabetização e letramento “processos

interligados, porém separados enquanto abrangência e natureza”, devem ser estudados

separadamente (p. 25)38.

Além disso, análises de cunho etnográfico, realizadas em diferentes lugares

do mundo revelaram práticas de letramento diferentes daquelas consideradas legítimas

pelos promotores oficiais da leitura, como mostraram Chartier e Hébrard (1995).

Dessa forma, além de não existir o iletrado total, também há que se considerar a

natureza das práticas de letramento consideradas ao classificar o iletrismo de

indivíduos ou de grupos.

Frago (1993) insiste na figura do analfabeto secundário, aquele que padece

de um analfabetismo “que já não tem nada de digno” quando comparado ao analfabeto

das culturas orais [“contadores de contos e conversadores amenos das tertúlias

tradicionais” (Frago, 1993, p. 23), aqueles que teriam dado origem à literatura como na

epígrafe, tirada de Enzensberger, 1986]. O analfabeto secundário ou analfabeto

informado tem “memória atrofiada, atenção fugaz e dispersa, desinformado pela sobre-

informação trivial, consumidor qualificado e incapaz, acrescentaríamos, de esboçar um

discurso oral minimamente prolongado, ameno, correto e preciso, isto é, completo e

significativo. Seu mundo, seu meio ideal, é a televisão” (Frago, 1993, p. 23 e p. 77)

38 É interessante comparar essa idéia com a de Soares (2000, p. 22) segundo a qual: "alfabetização e letramento se somam. Ou melhor, alfabetização é um componente do letramento. Considero que é um risco o que se vinha fazendo, ou se vem fazendo, repetindo-se que alfabetização não é apenas ensinar a ler e a escrever, desmerecendo assim, de certa forma, a importância de ensinar a ler e a escrever. É verdade que essa é uma maneira de reconhecer que não basta saber ler e escrever, mas, ao mesmo tempo, pode levar também a perder-se a especificidade do processo de aprender a ler e a escrever, entendido como aquisição do sistema de codificação de fonemas e decodificação de grafemas, apropriação do sistema alfabético e ortográfico da língua, aquisição que é necessária, mais que iso, é imprescindível para a entrada no mundo da escrita. Um processo complexo, difícil de ensinar e difícil de aprender, por isso é importante que seja considerado em sua especificidade. mas isso não quer dizer que os dois processos, alfabetização e letramento, sejam processos distintos; na verdade, não se distinguem, deve-se alfabetizar letrando..."

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Neste caso, em que reconhece a substituição da leitura intensiva e profunda

do passado, pela leitura extensiva, superficial, da sobre-informação, o autor denuncia

que aspectos positivos da oralidade foram abandonados, ao mesmo tempo em que

poucos dos aspectos da cultura escrita foram assimilados. Aqui provavelmente se

possa fazer relação com a tese sustentada por Tfouni (1997) de que o marco divisor do

letramento para o iletramento é a autoria. E como autoria tanto o analfabeto quanto o

alfabetizado podem ter, não deve a alfabetização servir de referência para sua

definição. O letrado tem autoria. Daí ela sustentar ser a função-autor a “noção-eixo do

conceito de letramento enquanto processo sócio-histórico” (Tfouni, 1997, p. 41) Com

os exemplos, ela também desvincula letramento de escolaridade. Ela apresenta três

textos produzidos por diferentes pessoas: uma universitária, um secretário de

universidade e um recém alfabetizado. O texto da primeira é pretensamente formal,

mas o que ganha de aparência de formalidade corresponde a um “eruditismo

desgastado”, a “períodos redundantes”, empolamento e conteúdo vazio. O texto do

segundo, uma notícia confusa, resultante de um texto que parece não ter sido

planejado, “é dominado pela afluência dos significantes”. Já o terceiro texto é uma

crônica, marcada pelo “domínio do intradiscurso”, o que garante ao recém alfabetizado

que o escreve a condição de autor. Tfouni esclarece que, pelo seu conceito de

letramento, tanto há características orais no discurso escrito quanto características de

escrita no discurso oral. A função-autor estaria ligada ao discurso letrado e, portanto, o

analfabeto pode apresentar na sua oralidade as características do discurso letrado,

sobretudo o domínio do interdiscurso, a auto-reflexibilidade.

De qualquer modo, importa aqui se ter claro que o iletrismo é uma

dimensão do mundo social, e o iletrado é produzido como excluído. Embora possa não

existir um iletrado total, há inegavelmente grupos muito fracamente inseridos no

mundo letrado. Não se trata aqui então de mais ou menos usos da leitura e da escrita na

vida cotidiana, mas da ausência ou da pequena dimensão do relacionamento que esses

grupos estabelecem com as formas de pensamento da cultura letrada. Sua forma de

conceber-se no mundo e de pensar são pobremente atravessadas pelos modos de

conceber-se no mundo e de pensar próprios da cultura letrada.

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Assim, quanto mais forte a conjuntura de letramento, permeada por eventos

de letramento, presente numa comunidade, menos iletrismo e mais motivação para o

aprendizado da leitura e da escrita. Dito de outro modo, a inserção cultural no mundo

letrado é favorecedora não somente da alfabetização (porque ela pode acontecer pela

motivação, pelos interesses e pelo ingresso mesmo numa forma de ser e de pensar)

como da sua manutenção e continuidade.

3.6. Conclusão

Neste capítulo, pretendi ter apresentado um breve panorama dos conceitos

relacionados ao letramento/alfabetismo. As discussões que estão na base do letramento

são importantes, pois delas partirá uma noção mais consensual à medida que o campo

vá se solidificando. Conforme a perspectiva pela qual se aborde o fenômeno que dá

origem à discussão e à própria tentativa de definição de letramento, um ou outro

aspecto assumem maior relevo. No caso da Vila de Itapuã e do Grupo Atuante de

Mulheres de Itapuã, a adesão ao curso de alfabetização se dá numa relação com o

contexto específico.

A leitura de considerável número de autores (brasileiros, argentinos,

franceses, norte-americanos e ingleses) teve o efeito de levantar discussões sobre

temas relacionados à escrita e à leitura.

Parece haver um consenso entre eles no que se refere à importância da

vinculação do tema ao contexto social do qual emerge, há um reconhecimento de que

o domínio do código escrito é importante, mas não suficiente. Não se deve exagerar a

importância do contexto, mas tomá-lo na justa medida, isto é, na medida que permite

alargar o entendimento do que seja alfabetizar, alfabetizar-se, ler, escrever. Há

divergências entre autores que valorizam a cultura escrita e outros que a entendem

apenas como uma variável. Há importantes autores que se debruçaram sobre a cultura

escrita analisando seus efeitos sobre o partícipe, e importantes autores que viram

nesses estudos um viés etnocêntrico sempre que se atribuiu à escrita uma super

valorização.

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Há discussões importantes sobre o conceito de alfabetização: se vinculada à

codificação/decodificação ou devendo ir além e se sobrepondo ao conceito recente de

letramento/ alfabetismo / literacia. Neste caso, há que se compreender ainda como

diferentes autores compreendem esse conceito e outros mais dele decorrentes, como

iletrismo, por exemplo. Uma dificuldade considerável decorre da tradução dos termos

do inglês, francês e espanhol, uma vez que nestas línguas, a mesma palavra pode

designar mais de um sentido, incluída mesmo a alfabetização.

Afirmativas fortes como a que sustenta que a escola é apenas um dos

agentes de letramento, mas que as pessoas se alfabetizavam antes de existir a escola,

estiveram aqui presentes. Sua conseqüência, associada com a valorização da necessária

imersão do sujeito numa atmosfera letrada, será que o objetivo de alfabetizar letrando

é condição necessária, mas não suficiente para garantir sucesso na alfabetização.

Não haveria como analisar o momento de uma pequena comunidade rural e,

nela, um grupo de adultos que buscam alfabetizar-se sem conhecer um pouco da

contribuição de cada uma das propostas antes mencionadas, devendo-se notar que o

estudo não foi exaustivo, mas fruto de uma seleção e talvez por isso contendo lacunas

e ausências.

Relativizar os conceitos de alfabetização e de letramento, acrescentando a

dimensão do contexto sócio-histórico foi para mim um caminho quase óbvio. Minhas

experiências anteriores nesse sentido foram bem mais traumáticas. Quando pesquisei

no campo da violência, não foi sempre fácil compreender e levar adiante a noção de

que a violência recebe diferentes significados e pesos variáveis conforme o contexto.

Como qualquer tema para todo antropólogo, sabia disso teoricamente. Corpo, saúde,

doença, que também foram temas com que me envolvi em pesquisas antropológicas,

assumem conceitos e significados que variam de forma surpreendente em diferentes

grupos culturais39. Numa pesquisa mais recente, entrevistei jovens e coordenei um

grupo focal sobre saúde reprodutiva com moças de uma vila, reputada pelos seus altos

índices de violência nas estatísticas policiais. Ali reuni as duas temáticas de pesquisas

anteriores, e mesmo com muitos anos de campo em grupos populares, não deixei de 39 A esse propósito, o livro Tabu do Corpo (editora Dois Pontos, 1986) de José Carlos Rodrigues apresenta convincentes exemplos da relação corpo-cultura e suas variantes no tempo e no espaço.

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me surpreender com o grau de naturalização com que se abordavam temas como

estupros, assaltos, surras e como as jovens diziam que, muito pior do que qualquer

destes fatos, era serem consideradas suspeitas nas lojas do centro da cidade em razão

de sua aparência40.

Se entender os temas na relação com seus contextos é um caminho natural

da antropologia, tratar o tema da alfabetização/letramento dessa forma não se me

afigurou como um grande desafio, mas como uma obrigação de ofício por ser esta a

vocação da antropologia, isto é, estudar os temas tal como se manifestam nas

particularidades dos micro-contextos. A novidade proposta pelos autores que assim

defendem que seja é embutir no contexto mesmo de letramento que a leitura e a escrita

são sócio-historicamente dependentes.

Foi o que tentei verificar na vila de Itapuã, como mostro a seguir.

40 As narrativas das moças podem ser conhecidas em Hassen (2003, e ali é mostrado como a noção de violência simbólica está presente nas concepções das jovens.

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4 A EDUCAÇÃO NA VILA DE ITAPUÃ E O GRUPO ATUANTE DE MULHERES DE ITAPUÃ / GAMI

4.1 A educação na Vila de Itapuã e os antecedentes do GAMI

Las ciudades contienen, además, muchos e diversos parámetros: las personas, la historia, la situación geográfica, la propia configuración, el funcionamiento, los cambios, los ritmos de evolución, el urbanismo, la economía, las fiestas, los servicios, etc. La vivencia de todos y de cada uno es, en sí mesma, un acto de aprendizaje... (Bellot, 1997, p. 5)

O Distrito de Itapuã apresenta demandas reprimidas de espaços educativos.

Fora das escolas, há muito poucas iniciativas, e, neste caso, parece se apresentar um

sentimento de que a capital supriria determinadas especialidades educativas, como

cursos profissionais e de complemento de formação, como os de informática e de

línguas estrangeiras.

Por outro lado, a rede municipal conseguiu manter as pequenas escolas,

espalhadas pelo meio rural, de forma que há escolas como a Escola Professor Souza

Lobo e a Escola Municipal Quatorze de Setembro, cada uma com um total, em 2004,

de 22 alunos; a Escola Lucio Fraga dos Santos, no Campo dos Morros, com 15 alunos;

a Padre Schneider com 32 alunos; e a Felisberto da Costa Nunes, com 26 alunos, para

ficar com alguns exemplos. Naturalmente a escola da vila, o Genésio Pires que é

estadual, tem outra dimensão e contava em 2004 com 780 alunos, sendo a única escola

pública de ensino fundamental e médio.

A população de Itapuã nos últimos anos se mobilizou para arrecadar

dinheiro para que a escola Genésio Pires pudesse participar dos concursos anuais de

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bandas dos quais volta sempre com premiações. Há um visível investimento afetivo

nas bandas escolares, vinculado à importância conferida às festas cívicas, notadamente

às relacionadas à história do Estado. Os desfiles e as festas cívicas são os marcos dos

eventos da região, lado a lado com os religiosos de importância local, como a festa de

navegantes.

Menos do que constituir uma ambiência possibilitadora de experiências

educadoras, a vila fica na dependência das iniciativas originárias da escola. A

"Genésio" abre para a comunidade escolar e entorno o Projeto Educação Ambiental, a

Oficina de Capoeira e a Oficina de Banda. A escola Municipal de Ensino Fundamental

Felisberto da Costa Nunes criou o Projeto Horta Escolar, que faz trocas com a

comunidade e com os alunos das outras escolas. Assim como as demais, participa da

Feira de Ciências das Escolas Rurais da Região de Itapuã, que se integra

posteriormente na Feira Municipal de Ciências de Viamão, a FEMUCI. A Escola

Doutor Liberato, além de projetos semelhantes e de Educação Ambiental, mencionado

por todas as escolas, lançou o Chá da Primavera, um dia de degustação na praça de

chás medicinais cultivados na escola, existentes na região e com troca de indicações

medicinais com pais e outras pessoas da comunidade, supervisionadas pela professora

coordenadora do projeto.

Para além das estruturas formais de educação, “aprender a cidade”, segundo

Colomer (1997), equivale a aprender a ler a cidade, isto é, reconhecer o conhecimento

esparso na vida cotidiana, traduzir em conhecimento a série de estruturas não

imediatamente visíveis. Todo meio urbano gera um conhecimento informal, que é

também um conhecimento sobre o próprio meio urbano, afirma Bernet (1997) para a

seguir comentar que, todavia, esse conhecimento, ainda que útil e fundamental para a

vida dos cidadãos, padece de superficialidade (uso das estruturas aparentes sem

conhecimento profundo ou das origens) e de parcialidade (cada segmento - social, de

idade, profissional, etc - conhece as estruturas que lhe são mais afetas e desconhece as

outras). Assim, para que a cidade supere esses limites, é necessário que ela própria se

torne objeto de educação (Bernet, 1997, p. 30).

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No caso de Itapuã, a reabertura à comunidade do Parque de Conservação

Ambiental começou a atrair um número considerável de turistas. Essa atração, por sua

vez, reacendeu o sentimento de emancipação. No bojo desses movimentos,

estruturaram-se formas de atenção ao turista na própria vila, pequenas pousadas,

aluguéis de quartos e passeios náuticos. Os guias turísticos no Parque e nos barcos que

partem da Vila são moradores locais, treinados para conhecer e fornecer informações.

No seu entorno, criam-se mecanismos de fomento dessas informações, e elas passam a

circular na comunidade. São informações fundamentalmente da história da região, da

formação natural, da formação das comunidades, das tradições, das peculiaridades

locais.

Ao caráter turístico mais recentemente incrementado, atribuo o

envolvimento dos cidadãos nas tarefas de apresentação da cidade, o que implica

conhecê-la e valorizar os aspectos tidos como típicos: a natureza privilegiada, mas

também a culinária regional, as festas religiosas e tradicionais, os personagens e os

velhos fundadores. Esse novo modo de viver a cidade que faz com que, por exemplo,

Dona Petronília, senhora pobre e analfabeta de quase 80 anos, seja mencionada no

depoimento de um comerciante (dono de mercado) como “um patrimônio” de Itapuã,

pois “conhece a história desse lugar e conhece tudo por aqui”. Assim como ela, outros

idosos são reconhecidos na cidade como os detentores da memória, e sua menção

sempre rende o comentário de que alguém deveria ouvi-los para escrever um livro

sobre Itapuã. O sonhado “livro sobre Itapuã” é matéria para comentário freqüente dos

moradores, que valorizam assim a história oral, mas sabem que uma maneira segura de

conservar essa história é pela cultura escrita, dado que só os antigos a conhecem e a

guardam, restando aos mais jovens apenas fragmentos e pequenas notícias, mas

capacidade para registrá-la pela escrita e assim conservá-la.

Seu Joaquim, antigo pescador, expulso do Parque, hoje morador da Rua dos

Pescadores, está contrariado com o tempo: amanhece bom, mas a viração está

anunciada no serviço meteorológico com que a experiência o equipou: não dá para

enfrentar a Lagoa, e o jeito é dar uma pequena volta pelo rio, jogar uma rede sem

muita esperança. Não pude aceitar o convite para a pescaria porque era dia de observar

a aula de alfabetização. Tendo ouvido minha explicação pela recusa, disse: “é bom que

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esse pessoal de mais idade aprenda a escrever, há muita história em Itapuã, e precisa

ter um livro sobre isso aqui”.

Retomando: uma vez criados dispositivos direcionados aos turistas, toda a

região se beneficia. As crianças são estimuladas a conhecer e a desenvolver

habilidades de apresentar a região, com ênfase nos processos históricos e naturais.

Contar a vida dos índios guaranis, os primeiros habitantes, contar a chegada dos

portugueses que por ali passaram antes de avançarem em direção a Porto Alegre,

contar a Revolução Farroupilha desde a parte que coube à Itapuã no cerco a Porto

Alegre pelo exército farrapo41, entre outros fatos, passaram a fazer parte do repertório

de conhecimentos das crianças (fatos que em algumas escolas integram os conteúdos

de diferentes disciplinas) e de parte dos moradores da vila. O conhecimento das

origens contribuiu também para criar uma identidade com o local de moradia e para

garantir sua cidadania pela identificação de uma origem e um destino comuns.

De outro lado, a existência do Parque Estadual de Itapuã fez a comunidade

despertar para a questão ecológica, com possíveis resultados na conscientização da

importância da natureza. O esforço dos educadores, segundo depoimento de uma

professora de escola municipal vizinha do Parque (Escola Municipal Caldas Júnior),

tem sido grande no sentido de ressaltar o valor da natureza por ela mesma “para que

eles não fiquem com a idéia de que a natureza só vale porque dá renda para os que

trabalham no Parque”. Isso passaria pelo respeito aos animais, principalmente o lobo-

guará e o bugio, em risco de extinção, e ainda existentes em locais fora do Parque.

Muitas crianças conhecem o bugio das “visitas” que os animais fazem às casas mais

isoladas, e todos em algum momento já viram a família de bugios que praticamente

vive na rua principal da vila. Tais visitas podem trazer danos, se os animais comem

frutas dos pomares ou entram em casa em busca de comida. Por outro lado, sua carne

pode virar uma refeição. A verdadeira mentalidade preservacionista deveria ser

tolerante com o primeiro fato e talvez devesse propor alternativas alimentares que não

as resultantes de animais ameaçados de extinção. Ocorre que curiosamente - e por

sorte, num certo sentido - a ecologia virou na prática um valor de mercado.

41 Um súbito incremento nas memórias históricas da região foi dado pela mini-série da rede Globo que adaptou o romance “Casa das Sete Mulheres” de Letícia Wierzchowski, ambientada no Rio Grande do Sul, e centrado justamente na Guerra dos Farrapos.

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Segundo outras professoras, a caça (neste caso, o alvo preferencial é o tatu)

ainda é muito utilizada pelas famílias dos alunos sem o respeito e o conhecimento das

espécies e das datas proibidas. Elas comentam que, diante do argumento da falta do

que comer, é muito difícil insistir em preceitos ecológicos. Mas explicam que outros

tipos de danos à natureza vêm sendo amplamente combatidos e têm boa aceitação. A

comunidade está despertada, por exemplo, para a questão do lixo, da separação, do uso

de parte dele na compostagem, do fato de que não deve ser jogado nas águas. Parte

dessa consciência é devida ao trabalho das escolas, parte vindo de fora, por meio de

estudantes das Universidades que freqüentam a região, motivados pela Reserva e, por

fim, parte se deve a campanhas de mídia nacionais. Dela resultaram as condições

propícias ao surgimento do próprio GAMI.

Seja como for, o que se percebe é que há uma dimensão intencional de

educar a partir da cidade. “Aprender da cidade”, segundo Filmus (1997, p. 80), supõe

que essa funcione como um agente de educação. Tal educação tem ao mesmo tempo

um grau de informalidade e um grau de intencionalidade. Daí o fato de que a cidade

educar não significa ser ela educadora. Para ser educadora, essa intencionalidade

precisa estar presente no caráter do que se ensina, e tal caráter, por sua vez, deve se

pautar da educação para o positivo.

Seria ingenuidade não perceber que boa parte da intencionalidade das ações

de educação verificáveis em Itapuã pode ter sua origem no projeto de emancipação.

Este antigo desejo da comunidade voltou a tomar corpo nos últimos anos, desde que se

viu mais valorizada pela chegada do asfalto e pela reabertura do Parque Estadual de

Itapuã. O desejo das principais lideranças políticas tem contagiado outros segmentos, e

parece haver um entendimento segundo o qual é necessário que se evidencie uma

noção clara de cidadania marcadamente itapuense. Daí o crescimento do incentivo a

ações no âmbito da vila que demonstram o enraizamento e a divulgação dos valores

locais42. A história da região é cantada em músicas de cunho histórico, os

estabelecimentos comerciais, bares e alambiques, onde acontecem os rodeios de

42 O sentimento de emancipação tanto leva a uma positiva valorização local, que enaltece tradições, costumes populares, história dos dominantes e dos dominados, personagens, enraizamento, quanto a um prenúncio de individualismo projetado na concepção de cidade, competição, disputas, etc.

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cantoria todos os domingos, ganharam músicas com letras que contam as suas origens,

enaltecem proprietários e freqüentadores, valorizam suas “especialidades”.

"Eu não sou daqui, eu recém cheguei de uma terra irmã, estou lavando a alma nas águas mansas de Itapuã. " (música de Odilon Ramos)

“Nessa vida, não existe melhor paga Do que a ‘tonturinha’ do Alambique Fraga. Ninguém resiste a uma purinha Tomada onde ninguém te logra Com o atendimento cordial da Verinha E da outra Vera, a sogra. (Adelmar)

4.2 GAMI, Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã

Nos últimos anos, duas frentes de ação tomaram corpo na região: um

movimento de mulheres e um movimento de conscientização ecológica. Este último

tem diferentes e mais remotas versões: desde as mais oficiais, relacionadas ao Parque

de Conservação Ambiental de Itapuã, assim instituído desde 1973, até iniciativas

privadas como o Movimento Pró-Itapuã, encabeçado por pequenos empresários ditos

de ecoturismo, parte deles oriundos de Porto Alegre, até as individuais (como as placas

feitas a mão na Estrada da Varzinha, que dizem: lixo na rua é uma herança para seus

filhos). Já o outro movimento é uma iniciativa localizada e pontual, com algum grau de

espontaneidade, o GAMI, Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã.

O GAMI não surge do nada, nem deve ter provindo isoladamente da

experiência de sua coordenadora de trabalhar na capital. Ele surge embalado por um

novo contexto. Uma nova dimensão se acrescentou muito recentemente ao local e de

certa forma corresponde ao antes mencionado, isto é, ao que alguns pensadores da

relação cidade e educação chamaram de “aprender a cidade” (Filmus, 1997, p. 85;

Bernet, 1997, p 29; Colomer, 1997, p. 25).

É neste contexto rapidamente delineado que situarei a fundação do GAMI,

Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã, em 1998.

A Vila, parte urbana de Itapuã, pode ser segmentada socialmente em três

espaços: o mais “nobre” é o centro e arredores da igreja, sub-prefeitura, cartório, praia

e marina; o mais popular tem como referência a Vila dos Pescadores que é o nome de

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uma rua; e por fim, o lugar mais pauperizado é a Rua do Cemitério, tornada Beco do

Amor, como explicarei adiante. O GAMI está sediado na Vila dos Pescadores.

A coordenadora do GAMI, Jandira, e uma amiga, Maria do Carmo,

tomaram a iniciativa de formar o grupo, mas tomaram ainda uma iniciativa mais

ousada. Elas e as demais mulheres começaram a recolher o lixo depositado nas

estradas e ruas da Vila de Itapuã e a reciclá-lo por conta própria no pátio de sua casa,

criando ali o espaço de trabalho da cooperativa de mulheres recicladoras. Quando

surgiu a Rádio Comunitária Itapuã, Jandira assumiu um espaço, chamado Programa do

GAMI.43 O repertório era de música popular brasileira antiga, de Vicente Celestino,

Ataulfo Alves, Altemar Dutra, marchinhas de carnaval, músicas dos festivais da

década de 60, Jovem Guarda, Chico Buarque, Elis Regina. Seu discurso mobilizava as

pessoas para a limpeza da cidade, valorizava os “lemas” do GAMI, entre eles, o de que

o importante não é “dar”, mas criar condições de trabalho para as pessoas, “o desejo

pelo trabalho é que dá independência ética, moral, mental” (provavelmente aqui está

“respondendo” a outros grupos de mulheres que fazem “caridade”). “A carruagem do

GAMI passa, e outros vão deixando o trem da história passar” (Programa de 11/5/03)

No programa de 28 de outubro de 2003, ao apresentar uma música do Raul Seixas,

comentou que ele foi parceiro de Paulo Coelho e seguiu ironicamente: “esse Paulo

Coelho mesmo, esse que foi para a Academia Brasileira de Letras. Nem dá para falar

muito alto, mas foi mesmo”. O ponto forte do Programa, para além da crítica literária,

são naturalmente os apelos pela limpeza das casas e das ruas, e principalmente

incentivo à separação do lixo.

Se o município de Viamão até hoje não conseguiu organizar a coleta

seletiva de lixo na sede, menos ainda se dispôs a organizar a separação no distrito de

Itapuã, de forma que as pessoas que fazem a separação devem levar o lixo diretamente

ao GAMI. O grupo também conseguiu que o DMLU de Porto Alegre mandasse um

caminhão semanalmente, partindo da zona sul da capital. Quando não havia lixo

suficiente no galpão, as recicladoras percorriam as ruas da Vila catando o lixo seco nos

volumes frente às casas. O trabalho de reciclagem do GAMI acabou produzindo sua

43 Um outro programa é apresentado por uma mulher, e se chama Prenda Linda. A locutora homenageia os amigos com músicas e manda beijos para listas infindáveis de moradores, como se lesse uma lista telefônica.

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própria concorrência, e vários moradores transformaram suas residências em espaços

de separação de lixo, só que com muito mais precariedade. Enquanto isso, o GAMI

conseguiu apoio da Copesul para construção do galpão e da sala de aula/ sala da

administração.

Embora contando com apoio de muitas pessoas, a ponto de o rendimento

per capta das recicladoras já ter chegado a dois salários mínimos mensais, a separação

não acontecia sem gerar polêmicas. Apesar da organização e do trabalho árduo das

mulheres que conferia uma aparência de capricho na disposição dos materiais, os

vizinhos reclamavam do cheiro e das moscas - e não sem razão. Mesmo sendo um

local por onde correm ventos, as moscas resistiam junto aos resíduos (e também aos

cachorros no canil). Em novembro de 2003, um grande galpão de costaneira foi

erguido no terreno da frente da casa e passou a ser o galpão de triagem do lixo,

melhorando essas condições e ampliando o espaço. Atualmente, as visitas ao galpão de

triagem do GAMI precisam ser agendadas e só acontecem aos sábados. O número de

recicladores está sempre variando, mantendo uma média de sete a oito pessoas. O

objetivo, segundo a coordenadora, é chegar a vinte e um trabalhadores, mas alguns

percalços, principalmente a irregularidade da chegada do lixo via convênio com o

DMLU de Porto Alegre, foram mostrando que a meta é excessivamente otimista.

Contradições ficam evidenciadas pelo fato de o GAMI representar tanto um

pensamento progressista (a questão ecológica, a separação do lixo mais poluente e a

criação de postos de trabalho para mulheres) quanto a ausência de oficialidade (não

havia licença, não havia presença, apoio nem controle do estado). A convicção do

primeiro fato se deve à forma como fui recebida numa das primeiras vezes por uma

das recicladoras, Anete, espécie de gerente e relações públicas, que me mostrou todas

as fases do processo com tal desenvoltura que perguntei como ela tinha aprendido

tantas coisas e como tinha uma apresentação tão organizada, ao que ela respondeu que

falava a escolares e visitantes sobre a importância da separação do lixo.

Perguntada sobre como vê Itapuã, a recicladora comparou com a sede:

“Viamão é uma bagunça, não tem separação de lixo, e aqui tem. Lá eles não são

ecológicos e nós somos (sic). Lá eles só vão pra dormir [alude à possibilidade de a

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sede ser cidade-dormitório de Porto Alegre, o que não é fato consumado, mas sua

categoria de acusação] e nós, não: nós moramos aqui e nós cuidamos das casas e das

crianças o dia todo. Quando a gente é morador mesmo, a gente cuida e gosta da terra.”

Há que se relativizar esse depoimento, e não só no que se refere ao “ser ecológico”.

Lixo nas ruas, cães abandonados, cavalos perambulando, pátios que parecem ser

depósitos de ferro velho são mais encontráveis do que casas bem cuidadas.

Uma outra iniciativa do GAMI, além do curso de alfabetização do qual

falarei mais tarde, e posterior ao mesmo, foi o lançamento de um jornal, "O Ronco do

Bugio", cujo primeiro número saiu em agosto de 2002. Um tablóide de quatro páginas,

com tiragem de 2000 exemplares e distribuição gratuita. No primeiro editorial,

assinado por Jandira Santos, lê-se

"O GAMI pensa grande como merece e precisa a comunidade de Itapuã. O Ronco do Bugio, além de divulgar o trabalho do GAMI, deverá servir a comunidade, divulgando fatos e casos do cotidiano, promovendo os moradores da localidade. (...) O GAMI é uma entidade forte, pois surgiu de uma idéia da atual coordenadora e tomou corpo em um coletivo que acreditou nesta idéia. Muitas mulheres foram chamadas, parafraseando o evangelho, mas poucas tiveram condições de abraçar o projeto na sua totalidade e portanto poucas foram escolhidas..." (O Ronco do Bugio, 2002, p. 2)

Um jornal, por tudo o que representa em termos de letramento numa

comunidade como a de Itapuã, se reveste de múltiplos significados. Desde o nome que

já evoca o animal-símbolo do local, cuja preservação depende de reservas como a de

Itapuã, até o objetivo de difundir o trabalho da entidade e de "divulgar fatos e casos do

cotidiano, promovendo os moradores", passando pelo fato mesmo de ser uma

comunicação escrita que surge depois do programa de rádio e sendo considerada a

maior conquista do GAMI, por ser o único jornal da Vila.

4.3 Os alfabetizandos do GAMI

Pode-se falar então de auto-análise provocada e acompanhada: em mais de um caso nós sentimos que a pessoa interrogada aproveitava a ocasião que lhe tinha sido dada de ser interrogada sobre ela mesma e da licitação ou da solicitação

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que lhe asseguravam nossas perguntas para realizar um trabalho de explicitação, gratificante e doloroso ao mesmo tempo, e, para enunciar, às vezes com uma extraordinária intensidade expressiva, experiências e reflexões há muito reservadas ou reprimidas. (Bourdieu, 1999, p. 704-5)

Coragem e iniciativa são marcas da coordenadora do GAMI. A triagem mal

e mal se organizara, e Jandira tratava de abrir outra frente: a alfabetização. Ela

percebeu que alfabetizar seria um projeto que, além de necessário, daria visibilidade ao

GAMI e o diferenciaria ainda mais do mero assistencialismo. Buscou apoio do Estado,

tendo o curso iniciado como MOVA44, mas logo percebeu que não se submeteria à

morosidade e às exigências burocráticas. Depois de uma experiência não muito bem

sucedida com uma professora que junto com ela fundara o GAMI, “contratou” por sua

conta uma professora aposentada, anunciou o curso, contando para isso com a

divulgação na rádio, e, assim que julgou ter alunos suficientes, começaram as aulas,

mesmo sem sede fixa.

A primeira turma de alfabetização do GAMI foi constituída em 2002. Eram

catorze alunos (a mais nova com 21 anos e a mais velha com 75) e houve apenas uma

desistência no decorrer do ano, apesar de todos os percalços de uma iniciativa marcada

pelo improviso e pela irregularidade. Dois nada desprezíveis problemas

acompanharam o grupo: falta de professora e falta de sala de aula.

Apesar das dificuldades, dos meus primeiros encontros com o grupo ficou a

impressão de uma identidade renovada ou em construção/reconstrução daquelas

pessoas. Ainda estava estudando a possibilidade de escolher a alfabetização do GAMI

como universo de pesquisa e fui à vila para assistir a uma aula. Até esse dia, só tinha

notícia do grupo, porque os vira em 2002 no desfile de 1º de setembro, quando

marcharam na avenida principal junto com as demais escolas da região, num dos

momentos cívicos tão caros à população de Itapuã. Naquela ocasião, perguntei à

professora que os acompanhava em que local as aulas eram ministradas e, quando a

chuva engrossou, num dos dias mais frios do ano, fui embora com vagos indicativos

do endereço. 44 Movimento de alfabetização de jovens e adultos. O primeiro MOVA foi criado por Paulo Freire quando secretário de educação de São Paulo. A experiência inspirou outras. No Rio Grande do Sul, foi implantado na dimensão estadual e se trata de uma proposta de alfabetização em parceria com entidades organizadas. Alguns municípios também criaram seus MOVAs, como foi o caso de Viamão.

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Um mês depois, voltei à vila e os procurei no lugar indicado, junto à Igreja

Luterana. Fechada. No GAMI, as mulheres que faziam triagem não tinham certeza

sobre o local da aula, indicaram a casa da professora, mas ali não encontrei ninguém.

Uma vizinha deu a direção de onde provavelmente estariam, numa casa inabitada. De

fato, no meio do capim alto, no fundo do terreno, onde um banhado aumentava a

aparência de abandono, uma portinha e a movimentação de vultos eram indícios da

provável sala de aula. Estavam lá seis mulheres. Na pequena peça, elas decidiam como

dispor uma mesinha e uns cavaletes de mesa de churrasco, dois bancos de madeira e

algumas cadeiras. Eu não sabia então que trocar de sala não era novidade para elas.

Uma primeira limpeza da sala já tinha sido feita e agora precisavam organizar os

poucos móveis. Mas isso foi logo sendo feito, move daqui, muda para ali, coloca uma

toalha, a senhora mais velha logo se acomoda na ponta da mesa, chega mais um casal,

fico sabendo que são dois os homens a se alfabetizarem pelo Grupo Atuante de

Mulheres, pendura-se um pequeno quadro verde, e a precariedade vai sucumbindo à

beleza da toalha engomada, no instante seguinte secundarizada pela disposição dos

cadernos e pastas, pelos braços estirados, pelas mãos que se ajudam umas às outras no

contorcionismo que permite enlaçar os lápis. A aula logo começaria na nova “sede”.

Atenuavam pelo bom humor o que poderia servir de desestímulo (as

constantes trocas para salas improvisadas). Olhei os cadernos que me eram mostrados

com indisfarçado orgulho pelos de “letra mais bonita” e com justificativas pelos

“menos adiantados”. Cadernos encapados, molduras feitas à caneta nas páginas

preenchidas por exercícios de cópia... meu repertório de elogios ia-se terminando, mas

os cadernos não. Quando senti que a aula não começava e era eu que interferia, fui

embora, mas guardei a imagem daquele dia, daquelas pessoas animadas com a

sociabilidade adquirida por meio da sua alfabetização.

Os adultos analfabetos podem ser imaginados como pessoas sem passado

escolar. Entretanto, eles têm um passado de experiências educacionais, tanto porque a

educação se dá em diferentes instâncias e não apenas na escola, mas também porque,

em muitos casos, eles tiveram algumas investidas em escolas, sendo as vítimas da

exclusão escolar. Moll (2000, p. 130), referindo-se aos candidatos ao programa de

educação de jovens e adultos do Morro Alto/ Porto Alegre, diz: “o desejo da conclusão

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da escolaridade revela-se nas tentativas reiteradas de voltar aos estudos”, e adiante: “os

depoimentos são ricos no desejo que expressam de retornar à escola ou no gosto que

teriam tido de poder concluí-la” (Moll, 2000, p. 131). É provável, portanto, que essa

nova perspectiva de estarem integrados a um projeto educativo faça-os revisitar o seu

passado reconciliando-se com algumas de suas lembranças da escola e da educação.

Era em algo assim que pensava quando os deixava, lamentando não poder começar

naquele momento mesmo a entrevistá-los. Queria saber como explicariam sua

presença no curso, o que falariam de suas experiências os que tiveram passado escolar,

como relacionariam sua vida com a leitura e a escrita, o que projetariam a partir de sua

volta aos estudos. Pensava se ouviria relatos mais ou menos esperados, relatos que se

repetem tanto e tão iguais nas pesquisas com Educação de Jovens e Adultos. Ou se as

peculiaridades de Itapuã também neste grupo encontrariam assento.

No caso do grupo pesquisado, de adultos do curso de alfabetização na Vila

de Itapuã, penso que a retomada dos estudos se insere numa situação etnográfica

traduzida pela confluência do tradicional e do moderno, e por conseqüência, das

pressões que este encontro produz nos indivíduos. Tal pressão começa a fazer efeito no

rompimento de alguns padrões culturais. Aqui a noção de letramento se faz necessária,

ao ser reveladora dos processos de modernização e sua relação com a educação e, em

especial, com a escrita. Não à-toa, o movimento que encabeça a alfabetização é o

movimento mais progressista existente na Vila (outros movimentos de mulheres da

região são de clube de mães, que envolve costura e assistência, um movimento de

"prendas", que promove cavalgadas femininas, e há os movimentos não vinculados a

gênero: há um movimento pela emancipação e um de comerciantes).

Em Itapuã, o motivo de redenção até pode existir por baixo da vontade de

voltar a estudar, mobilizando a necessidade e o desejo que os mantêm na classe de

alfabetização, mas também há um papel a ser analisado sobre a pressão social trazida

pela modernidade que se revela no perfil do GAMI. Se quisermos amenizar a idéia de

“pressão”, o que me parece mais adequado, podemos falar de um modo de pensar que

vai progressivamente tornando-se mais letrado. O estudo dos analfabetos de Itapuã não

se compara aos estudos de analfabetos imersos em sociedades altamente

industrializadas e grafocêntricas. Se “a cidade tem sido e é o meio por excelência da

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escrita; nela nasceu e é nela onde se produz e oferece toda panóplia visual de signos,

usos, funções e possibilidades mencionadas” (Frago, 1993, p. 91), Itapuã é um

lugarejo, uma pequena comunidade rural e, entretanto, acabou por se ver envolta numa

atmosfera de letramento ou numa conjuntura de letramento, noção que pretendo

desenvolver adiante. Tampouco os analfabetos de Itapuã vivem numa sociedade sem

escrita. Eles vivem num lugar que mantém forte presença de oralidade e presença

moderadamente crescente de escrita ou, se não de escrita no sentido da descrição de

Frago, de um modo de pensar típico das sociedades grafocêntricas, como é o caso da

valorização da educação e da escola, incluindo a educação ambiental.45

A constituição de uma tal sociedade não cria os mesmos mecanismos de

exclusão em que encontramos imersos os analfabetos de uma sociedade urbana

industrializada. Os analfabetos de Itapuã não sabem ler e escrever, mas ocupam o

mesmo lugar social dos alfabetizados, freqüentam as mesmas festas, os mesmos bailes,

as mesmas cerimônias religiosas, os mesmos mercados, fazem os mesmos passeios e

conversam na mesma roda, são ouvidos com a mesma consideração. E, em alguns

casos, trabalham no mesmo lugar que os alfabetizados em funções que não exijam a

escrita ou que se contentem com suas estratégias pessoais de lidar com a necessidade

de leitura.

Mesmo se encontrando num posto social não estigmatizado pela sua

comunidade, esse grupo responde à chamada para freqüentar o curso de alfabetização.

Durante o ano de 2003, acompanhei um pouco o grupo nas suas peregrinações por

sede, no enfrentamento das dificuldades de outras ordens. Nunca vi, porém, a vontade

arrefecer.

Na edição de 2003, começaram quinze alunos, depois apareceram mais

candidatos, e a turma foi dividida em duas, pelo critério de “adiantamento”. Eles

tinham de 40 a 79 anos, provinham da vila, mas também do Hospital-Colônia e da

45 Poder-se-ia objetar que o pensamento ecológico também está presente nas sociedades sem escrita ou até mais nelas, como seria o caso dos povos indígenas, do que na sociedade urbana industrializada “poluidora e devastadora”. É preciso, neste caso, diferenciar os modos como se apresenta esse pensamento ecológico em um e em outro caso. Nas sociedades urbanas industrializadas, a defesa da ecologia aparece como uma reação e forma de superação de práticas predatórias no sentido de resgate das ofensas à natureza, ao passo que, nos povos indígenas, por exemplo, suas práticas e sua relação com o ambiente não comprometem a existência e a conservação da natureza. O passado da Vila de Itapuã é uma história de ataque à natureza na forma da caça a espécies em extinção, pesca desregrada e extração de pedra. A origem do pensamento ecológico em voga na Vila atualmente é importada.

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parte rural. As aulas aconteciam à tarde, nas segundas, quartas e sextas. Terças e

quintas eram os dias da turma mais adiantada. No princípio, eram duas professoras,

uma das fundadoras do GAMI e a outra, estudante de nível médio. Em razão dos

baixos proventos (o salário é pago pela coordenadora do GAMI), a segunda desistiu. A

primeira atuou pouco tempo. Sua substituta, uma professora estadual aposentada,

eventualmente desistia, depois se arrependia e voltava. Com o tempo, a professora

Serli foi sendo cada vez mais valorizada e assumiu definitivamente a turma e o seu

papel de educadora de adultos.

As primeiras observações me fizeram crer que as aulas não sobreviveriam

aos meses iniciais. Serli parecia representar, em qualquer sentido pelo qual fosse

analisada, tudo o que os meus alunos de pedagogia aprendiam a não ser. Didática,

planejamento, conteúdos, tudo parecia ser a antítese do que entendemos por

alfabetização de adultos. Um dia de muito frio, em que meus pés congelavam nos

sapatos, o vento corria solto pelas janelas quebradas do imenso salão da Sorei

(Sociedade Recreativa de Itapuã), em que me espantava com o terrível esforço dos

alunos em decidir qual palavra da lista do quadro iniciava com a letra h, uma velha

senhora, chamada Erenita, sentada no espaço especialmente reservado aos alunos

“mais atrasados”, me disse: “eu adoro estar aqui; esse lugar é como um templo [movia

o rosto de ponta a ponta do salão], e a professora é como um sacerdote. Ela é uma

maravilha pra nós”.

Uma semana antes, a professora pedira à companheira da dona Erenita que

lesse umas frases no quadro, para mostrar para mim como “eles regridem quando

ficam sem vir à aula”. Se imaginamos que ser apontado como exemplo de regressão é

muito constrangedor, é porque não vimos dona Erenita brigando com as palavras,

fixada no quadro e por fim, rendendo-se: “ah, não lembro mesmo, vou ter que começar

tudo de novo” e dando uma grande risada. Depois de um tempo, fui aprendendo que,

ali, a única a se constranger com situações assim era eu. Um ano mais tarde, Mônica

passaria por essa mesma experiência e sentimento. Os alunos parecem lidar com essa

forma “escolar” de maneira muito natural. Em parte, porque é assim a escola que se

cristalizou no seu imaginário. Lembremos que a professora é uma professora leiga, de

um tempo em que ensinar passava pelo entendimento de que bastava conhecer o

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conteúdo a ser ensinado e que foi se “formando” na prática. Mas também há um

aspecto importante que diz respeito à professora: o grupo a reconhece como uma

autoridade, nutre profundo respeito por sua figura e, além disso, estabelece com ela um

vínculo que passa também pelo humor. Ela fica braba quando erram, e os acompanha

quando riem, para logo depois restabelecer a ordem da sala de aula.

Stromquist (2001), ao comentar os New Literacy Studies (NLS), explica que

tais estudos mostram, entre outras coisas, que muitos programas de alfabetização,

estando por demais interessados nos resultados cognitivos, “não são sensíveis ao modo

como o processo de alfabetização opera para seus participantes e a como eles se

adaptam à cultura que os cerca” (Stromquist, 2001, p. 308). Se os NLS mostram que

ensinar adultos a se tornarem alfabetizados dentro dos paradigmas escolares resulta

tantas vezes em fracasso, daí talvez resulte o sucesso da alfabetização do GAMI. Fora

dos cânones, dos preceitos mais rudimentares da alfabetização de adultos, que outra

forma haveria para se explicar que os estudantes perseverem e, a despeito de tudo,

estejam aprendendo e querendo continuar estudando? Como não havia ainda EJA na

Vila, a alfabetização estava se estendendo no que se considerava “turma mais

adiantada”, a composta pelos alunos do ano anterior, e novos alunos. Creio que isso

sugere que estudos sobre letramento podem ser um relevante apoio àqueles referentes

propriamente aos métodos de alfabetização, de onde a sua importância pedagógica.

De vez em quando, acontecia de chegar aluno novo. Dona Maria veio

trazida pela filha, Loiva, que freqüentara a alfabetização em 2002 e foi aprovada no

então implementado Educação de Jovens e Adultos do Genésio Pires, cuja exigência é

ser alfabetizado. Serli pareceu um pouco contrariada porque uma entrada no meio do

ano exige procedimento diferente. Pediu a dona Maria que fizesse desenhos, que fosse

desenhando qualquer coisa, a sala, a rua. "É para ver a motricidade", me disse. Os

demais faziam cópia do quadro. Dona Maria, constrangida, dizia não saber desenhar,

mas mostrava certo jeito para pegar o lápis, o que contentou a professora.

Nas aulas de matemática, eles copiam a armação das contas "passadas" no

quadro. Mesmo arriscando que o colega que vai para a frente erre, todos copiam a

resposta que ele escreve e, confirmando-se o erro, depois que Serli o aponta, e que o

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colega coça a fronte, examina a conta feita, mexendo a cabeça para um lado e para

outro, todos apagam. Copiam a nova tentativa. Apagam se persistir errada. E tudo só

termina quando finalmente o acerto faz a borracha descansar.

Das aulas que observei, visei principalmente aos alunos e a suas atitudes

em relação à leitura e à escrita.

Nas minhas observações, sempre os encontrei alegres. Brincam com sua

condição de estudantes - na sua idéia, uma volta à infância, com o que não parecem

contrariados. Conheciam-se da pequena comunidade de Itapuã e foram se tornando

íntimos com o passar do tempo. Alunos que ficaram juntos um, dois, três anos na

classe de alfabetização. Houve ocasiões em que julguei que esse longo tempo fosse

sinal do fracasso. Depois passei a ver a classe de alfabetização como muito mais do

que um passo para irem adiante. A classe mesma é o futuro, porque estar nela é estar

realizando o sonho de estudar. Serli vai adaptando os conteúdos à permanência deles,

sabe que muitos poderiam prosseguir no EJA como ocorreu a Loiva, mas se dá conta

de que, mesmo que fiquem ali, estão numa sala de aula. Penso que a sala de aula de

Serli é o ambiente letrado em que se encontram e nem todos estão interessados nos

desafios crescentes e na progressão que o EJA ofereceria. Loiva era a mais jovem

aluna do GAMI.

"Quando vejo a [diz o nome da vizinha] sentada na varanda lendo

jornal, eu tenho um sonho que é um dia sentar na minha varanda com um jornal e ficar lendo a manhã toda. Depois vou pegar um livro. Na velhice, um livro é um amigo que conversa com a gente. Eu vou sair do curso da Serli cheia de amigos, esses aqui do curso, os meus colegas como eu digo, e os livros que eu vou ler."

Pergunto a dona Lourdes se já tem livros em casa ou em como pensa em

comprá-los, pois não há livrarias em Itapuã. "Mas tem livro aqui, vem quantidade no

lixo, as gurias juntam. Olha quanto livro bom tem ali me esperando. Eu vou continuar

na Serli, e vou ler esses livros todos da prateleira".

Ao responder por que razão entende que aqueles livros foram jogados no

lixo, apresenta uma hipótese com valor de teoria: "ah, porque as pessoas já tinham

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condições de ler livros mais difíceis e daí esses aí já não eram mais para elas. É gente

que foi para outro nível de leitura". E por fim, ao me explicar o que seriam "níveis de

leitura", diz: "logo que a gente começa a ler, só lê coisas pequenas, bilhetinhos, depois

vai ler cartas, depois jornal, depois livros e depois livros cada vez maiores. A pessoa

só está alfabetizada mesmo quando lê livros maiores, daqueles ali da ponta, aquele

bem grande". Busquei o livro “bem grande”, e era o clássico de Melville.

"Não importa que o livro destacado fosse um clássico infanto-juvenil, Moby-Dick, ainda por cima em espanhol. O interessante é que o livro ocupava um local de destaque no cenário da sala de aula improvisada, e seu impressionante número de páginas (mais de 350) se impunha como um desafio e um símbolo do prestígio do leitor, a aguardá-los". (caderno de campo, 12/8/03)

O ano de 2004 foi dedicado a leituras, mas também ao trabalho de campo.

Julgando ter acumulado dados para a etnografia, restava aprofundar a pesquisa junto

aos alfabetizandos do GAMI.

Neste ano, houve consideráveis conquistas, comemoradas por todos, alunos

e professora. Primeiro, a finalização do novo galpão para a triagem de lixo garantiu um

espaço contíguo para a sala de aula. Pela primeira vez, o fantasma da itinerância ficava

para trás. A "casa própria" da sala de aula, porém, ainda se ressentia dos males da

improvisação. Sem ter energia elétrica, janelas de tampão no inverno deram duas

alternativas: ou muito frio ou muita escuridão. Claro que eles optavam pelo frio, que

não era pouco, para garantir o mais importante: enxergar no pequeno quadro os

ensinamentos e tarefas da professora.

O início das aulas foi cercado de um evento nas suas vidas: a TV Educativa

fez uma matéria especial sobre a alfabetização do GAMI. Para a gravação, todos lá

estiveram com suas melhores roupas, ainda que pousassem de dia "normal" de aulas.

No mês seguinte, como tivesse o programa gravado em fita cassete, fizemos uma

sessão especial em que também mostrei no micro-computador a página da

fotoetnografia da internet e outras fotos digitalizadas da Vila.

Mônica escreveu no seu diário de campo:

"Quando se viram no vídeo as expressões nos seus rostos... foi algo muito especial. Penso que estavam se sentindo ‘o máximo’. Quem mais me chamou a

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atenção foi o Sr. Orlandino que desde o primeiro momento, quando perguntei se queriam ver a fita com a reportagem, se prontificou a ajudar para que fosse possível assistirmos, trazendo uma extensão bem grande para puxarmos a luz. Ele fazia várias expressões de alegria quando a imagem dele aparecia no vídeo. Outro momento importante foi quando tiveram a oportunidade de escreverem seu nome no computador. Muitos só conheciam o equipamento através da TV e o do banco onde recebem suas aposentadorias. Quando viram um bem de pertinho e diferente dos que já tinham visto antes ficaram parecendo crianças com brinquedo novo. Todos quiseram escrever seu nome, inclusive a professora que, naquele momento, passava a ser igual a todos os alunos na descoberta de um novo instrumento que a tecnologia criou. Acho que foi um dia muito importante na vida daquelas pessoas, que ficará gravado em suas memórias, como na minha por um bom tempo”. (Mônica, caderno de campo, 27/5/04)

Tive preocupações de outra ordem:

"quanta novidade para ser assimilada num dia só! A emoção de se reverem na TV agora reunidos no seu grupo (todos haviam assistido à matéria nas suas casas no dia em que foi gravada), o primeiro encontro com um computador que tanto mostrou fotos da vila e de pessoas conhecidas, como também lhes proporcionou a primeira experiência de digitação. E a melhor expressão do dia. Dona Dileta, depois de ter levado quinze minutos catando as letras do seu nome, disse: não é difícil o computador, é até mais fácil. Tenho para pensar uma questão ética das mais conflitantes para um antropólogo, o grau de interferência que acabamos tendo no grupo. Arrependimento nenhum. Apenas uma questão para pensar." (caderno de campo, 27/5/04)

Uma outra novidade ocorrida mais no meio do ano é que a professora

assumiu também a coordenação do galpão, com o distanciamento de Jandira que foi

morar em Porto Alegre. E a melhor notícia para a alfabetização foi a construção de

uma nova sala de aula, de material, com energia elétrica, quadro verde grande,

cadeiras e mesas individuais. Assim, o ano se encerrou com uma festa de natal, as

trocas, as despedidas e as promessas de retorno no ano seguinte.

4.4 Vidas modestas, pequenas histórias

Entrevistas foram feitas com quase todos os alunos do GAMI, com exceção

de duas pessoas, uma que morava em lugar que nunca consegui encontrar e que deixou

de freqüentar o curso por um período mais longo. A outra adiou muitas vezes a data e

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me provocou a sensação de ser invasiva, com o que abandonei o projeto de a

entrevistar. Outros que teriam ficado de fora por falta de iniciativa minha (porque

achei que nunca haviam se mostrado receptivos) no dia da festa de natal declararam-se

chateados de ainda não terem sido procurados. Tratei de fazê-lo em seguida.

Sem roteiro de entrevista, tinha em mente as perguntas centrais (sobre a

razão de querer alfabetizar-se e sobre os usos sociais de leitura e escrita com que

conviveria) e alguns itens a serem observados e perguntados (portadores de texto nos

ambientes e nos trajetos, percepção da vila e suas possíveis alterações).

Nas conversas busquei a história da pessoa, história do seu nome (como

mote para a conversa, mas também com interesse na informação mesma), com quem e

onde aprendeu coisas que considerava úteis ter aprendido, passagem por escola,

chegada ao GAMI, como tomou conhecimento do curso, qual sua relação com o

movimento das mulheres e com a reciclagem.

Na pesquisa de campo com os alfabetizandos, planejei inventariar dados das

relações com o trabalho (emprego, tipo de emprego, estratégias para conseguir

emprego, tipos de demandas e necessidades presentes no trabalho), formas de lazer

praticadas e desejadas. Na esfera da participação e cidadania, que inserções na vida

comunitária e como se davam, se essas atividades incluíam em alguma dimensão a

necessidade de leitura e de escrita. Nas relações pessoais, se a necessidade de se

mostrar informado se fazia presente. A esfera religiosa recebeu uma atenção especial,

uma vez que é freqüentemente mencionada entre as motivações para a busca da

alfabetização, o que apareceu em um único caso, o de dona Aidir, que é crente e quer

ler a bíblia.

Desde o projeto, eu sabia que as respostas mais interessantes sobre a razão

de freqüentarem o GAMI recairiam naqueles que, não tendo um objetivo concreto a

declarar, pouco soubessem explicar a razão de sua presença no curso. Não era o caso

do seu Adalberto que deixava bem claro que queria tirar a carteira de habilitação.

Cristina vendia cosméticos e as anotações eram vitais para esta atividade. Eles

poderiam estabelecer relação muito tênue com o que me interessava investigar, isto é,

uma atmosfera de vinculação à cultura letrada.

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Por outro lado, ambos se vinculavam diretamente a necessidades trazidas

pela escrita. A venda de cosméticos é uma relação direta com a cultura escrita e é

mesmo um evento de letramento no sentido típico de Heath (1983), pois tal atividade

demanda uma série de práticas letradas: divulgar entre as clientes o catálogo com os

produtos, indicar a elas que escrevam seus nomes junto aos produtos desejados,

preencher o pedido de acordo com as encomendas traduzidas pelos nomes escritos no

catálogo, postar o pedido final no correio, revisar os produtos na sua chegada e

entregá-los corretamente a cada cliente, cobrar de acordo com o preço do catálogo e

repassar o pagamento à Empresa, descontando a sua parcela.

De certa maneira, o asfalto trouxe a fiscalização do tráfego e a exigência da

habilitação de Adalberto. Dirigindo desde muito tempo nas estradas secundárias, vielas

esburacadas, não sentia necessidade de mais do que fazer as mudanças e conduzir o

carro "a rumo". O asfalto criou demandas para o motorista intuitivo: além da

fiscalização e do conseqüente risco de ser flagrado sem carteira de motorista, as

sinalizações ao longo dos trechos precisam ser entendidas para sua própria segurança.

Não havia como evitar a clássica pergunta sobre por que buscaram a

alfabetização. Fui ouvindo as variadas explicações: para ler com a neta, diz uma, para

escrever a história da minha vida, diz outra, e outras respostas são: para ser alguém,

para ler jornal, para deixar de ser burro, para não precisar de ajuda dos outros, e muitas

respostas tautológicas, porque é bom, porque é importante, porque é preciso. Dessas

respostas as que muito me interessavam, a par de reconstituir as demais nos contextos

das vidas dos respondentes, eram as três últimas. Para sair da resposta circular, seria

preciso entender a motivação mais íntima e tentar perceber se ela de fato se relaciona

com o avanço do letramento no lugar, o que estaria criando uma atmosfera

motivadora. Naturalmente que a resposta a isso não seria declarada pelo pesquisado,

mas precisaria ser buscada por entre as suas palavras, mas também na vida que leva e

nas relações que estabelece com ela e com seus constituintes, nos significados falados

e vividos. No início da pesquisa, não tive clareza nem mesmo de que declarações ou

dados observados poderiam servir de indicadores.

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Para minha surpresa, acabou aparecendo uma fala entre as entrevistadas que

por si mesma mostrou a relação com os novos tempos. Dona Ilda será a primeira a

declarar a necessidade de "falar bem" por causa das pessoas de fora que falam

corretamente (com todo o questionamento que esse "corretamente" virá a merecer).

Foi interessante descobrir que a motivação vinha sim das pessoas de fora, trazidas

segundo minha hipótese inicial pelo asfalto e pelo Parque, mas também que se prendia

ainda a uma prática da oralidade. Falar como os de fora. Não era "precisar ler e

escrever" para... "ler e escrever", e sim: ler e escrever para falar melhor. Para falar

como falam os que falam bem. E os que falam bem são de fora e... sabem ler e

escrever.

Os depoimentos que mais vinculam a busca da alfabetização com os

eventos de letramento tal como aqui definidos foram os de Lourdes, Ilda, Erenita e

Laura. As quatro em diferentes momentos referiram a vontade de aprender a falar bem,

a falar como falam as pessoas que vêm a Itapuã. O curioso disso é que elas acabaram

mencionando uma vantagem da alfabetização na conseqüência que ela haveria de ter

na oralidade. Falar bem. Aprender a ler e a escrever para poder falar bem. Nenhum

dos entrevistados do GAMI mencionou o desejo de aprender a ler e a escrever para

identificação de ônibus, raras foram as menções a leitura de portadores de texto

vinculados a religião ou a literatura ou a trabalho ou escrever cartas. Elas

manifestaram a vontade de ler e escrever para razões mais ambiciosas, como ler

jornais e livros, ou escrever sua história. Mas uma ênfase maior se referiu a situações

comunicativas orais na relação com as pessoas de fora, seja porque elas vêm a Itapuã,

seja porque elas querem ir a Porto Alegre e portar-se de forma adequada. Para elas, a

maior visibilidade do analfabetismo se daria pela maneira de falar e, por conseqüência,

o falar bem revelaria sua pertença ao universo mais letrado.

Ao descobrir que mel se escreve com a letra ele e não com u, Erenita

tomou-se de surpresa e entendeu ter achado ali a chave das diferenças entre os mais

"ilustrados" e ela. Lourdes agora tem mais facilidade de ir a Porto Alegre e de visitar

familiares: quer poder falar, pois diante deles costumava ficar calada por vergonha.

Por outro lado, ao exemplificar que a palavra muito se escreve de um "jeito esquisito",

Laura questionou o sentido de se alfabetizar uma vez que a escrita não era igual à fala

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e que portanto poderia não ajudá-la a falar corretamente. A professora não discorreu

sobre as diferenças entre oralidade e escrita de que talvez tenha pouca consciência,

mas prontamente respondeu: “isso é uma exceção, a maior parte das coisas que vocês

aprendem comigo vai fazer vocês deixarem de parecerem atrasadas. [E rindo

continuou] Vocês agora vão aprender a falar e a falar com qualquer doutor.”

O quadro abaixo apresenta alguns dos alunos do GAMI que foram

acompanhados no ano de 2004. São informações declaradas por eles.

Nomes Idade Profissão Início no curso

1. Adalberto 54 Agricultor 2002 2. Cristina 36 Revendedora 2003 3. Dalva 32 Dona de casa 2004 4. Dileta 50 Dona de casa 2002 5. Erenita 69 Serviços gerais 2003 6. Gilmar 44 Pedreiro e trabalhador rural 2002 7. Ilda 61 Dona de casa 2003 8. Jerônimo 39 Desempregado 2004 9. Laura 59 Dona de casa e balconista 2002 10. Lorenir 37 Comerciária 2004 11. Lourdes 55 Aposentada 2003 12. Orlandino 61 Artesão 2002 13. Maria da Graça 32 Empregada doméstica 2002 14. Aidir 48 Dona de casa 2004

A seguir, apresento sínteses das entrevistas de quatro estudantes do GAMI

que pude acompanhar mais de perto no ano de 2004.

Dona Erenita e a expulsão do Paraíso

Da rua, se passa diretamente à pequena sala da casa de Erenita. Dos vários

porta-retratos da família, um se sobressai: é o da neta que cursa Pedagogia. Um

aparelho de TV e um de som ficam no centro da estante. Relógio e um quadro de

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natureza ocupam o pouco de parede que sobra. Prefere sentar na cadeira que traz da

cozinha para contar a cada dia um pouco da sua vida.

Dona Erenita (69 anos) nasceu na praia da Pedreira. Depois a família se

mudou para a praia do Araçá e depois para a praia do Sítio, áreas hoje pertencentes ao

Parque de Conservação Ambiental de Itapuã. No Sítio, ela viveria a maior parte da

juventude.

Do início da sua vida voltam os resquícios de uma tragédia. Quando tinha

três meses de idade, a irmã mais velha, como era hábito, saiu para lavar roupa num

banhado, levando o bebê consigo. Deixou Erenita num galpão de palha, onde ficaria

abrigada, mas ao alcance de sua vista. Ninguém soube explicar exatamente como se

deu a morte por afogamento da jovem. As pessoas recolheram o corpo inerte e o

levaram para casa, esquecendo-se do bebê no galpão. Sua existência só foi lembrada

por uma senhora, para cuja família os pais de Erenita trabalhavam. Erenita teria ficado

o resto do dia sozinha e, quando recolhida, passava mal. Ao ser indagada sobre onde

estaria a filha menor, a mãe teria dito: "Jesus me levou essa aqui e eu não quero saber

da outra". Salva por esta senhora que saiu em sua busca, morou com ela nos seus

primeiros anos e depois, quando a mãe pôde se recompor um pouco, voltou para a

família biológica. Evidentemente que por ser bebê, deve estes fatos à memória dos

mais velhos. Emociona-se ao falar no pai, "castelhano, mas bom" que nunca bateu

num filho. "Quando ele chegava, as filhas iam tudo correndo até a praia atrás dele,

naquela faceirice".

Dona Erenita bem que tentou estudar. Havia no Araçá a escola do "falecido

Podalírio", e o evento escolar do qual recorda é do içamento da bandeira no sábado e

do hino nacional cantado na frente do colégio: "coisa linda era aquilo". Toda a lindeza

só duraria até uma parte do ano, quando então o pai decretaria: “amanhã nós vamos

para beira de praia". E mesmo que os filhos perguntassem "e o colégio?", ele diria:

"pra que colégio? nós não temos o que comer, como é que vocês vão ficar aqui?"

Então sua família, junto com outras, passava até quatro meses durante todo

o período de safra na outra costa do rio, pescando nas proas dos barcos. Ela tinha 13

anos quando compraram a "canoa própria". Quando juntou umas economias, o pai

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pôde fazer uma casa de madeira, com cozinha de barro. Erenita empregou-se no

Hospital Colônia, na casa do Dr. Arlindo, "um médico maravilhoso". Mas a mãe,

quando descobriu que a menina dormia no porão da casa do médico maravilhoso,

buscou no fundo de sua dignidade o arroubo com que resgataria a filha: “vou te tirar

hoje mesmo daqui”. No caminho, encontraram outro médico, o Dr. Larry, que fez

proposta mais digna, e a menina passou a trabalhar na sua casa, mas dormindo no

quarto junto com as filhas do casal. Ali diz ter tido "vida de príncipe" e, nos fins de

semana, carregada de coisas dadas, ia visitar a família. A mãe, "faceira, ia me

encontrar lá em cima do morro da Pedreira".

Quando casou aos 17 anos com o pescador Erci, deram uma festa na Salga

do Araçá. O sogro tinha armazém na Praia do Sítio, e ela assegura que naquela época

eram todos felizes, apesar de que viviam "iguais a bugres de tanto que trabalhavam",

buscando lenha nos matos, tecendo rede para fora, indo à salga trocar peixe por

mantimentos, longas distâncias, muitos pesos. Uma vez, a família navegou para o lado

de Palmares, onde acampou em pescaria. Indo recolher as redes, o casal não percebeu

a tempestade que se aproximava e acabou os colhendo. Ela lembra que por entre as

ondas altas avistava as crianças na margem e sofria, imaginando que, se o barco

virasse e eles morressem, os filhos ficariam ali, sozinhos, perdidos no mundo e

morreriam também. Mas conseguiram se salvar e, quando retornaram ao Sítio, logo

chegou a notícia de que o marido seria embarcado e foi então que se tornou

marinheiro, passando muito tempo fora de casa.

Quando o colégio (uma "brizoleta") do Sítio foi fechado, a família obrigou-

se a mudar para a vila de Itapuã para que os seus dois filhos em idade escolar

pudessem estudar, "o estudo era tudo na vida para os meus filhos". Dali mudaram-se

para alguns bairros de Porto Alegre, ela trabalhou por 15 anos no asilo Padre Cacique,

também na Febem, em casas de família e na construção de um estádio de futebol. Para

garantir que os filhos estudassem, Erenita trabalhava sem parar. Ao chegar à noite,

tinha o serviço da casa por fazer, incluindo a refeição do dia seguinte, a marmita que

levaria para o trabalho e que, por guardar nela comida de até dois dias, acredita, o

alumínio lhe atacou o fígado.

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Os filhos estudaram, dois tiraram cursos técnicos, casaram, ela morou nos

fundos de suas casas, e há cinco anos voltou com o marido para viver na Vila de

Itapuã. Orgulha-se do filho que é o técnico em Raio X, e "sabe tudo, o nome de todas

as partes do corpo da gente, porque ele estudou muito". Apenas um deles não foi além

da quinta série. Para ele, seus esforços de nada adiantaram, porque não gostava de

estudar.

Quando Erenita fala na infância e na juventude vividos na região

transformada em Parque, nos transporta para o éden, apesar de que o seu conceito de

paraíso inclui o trabalho pesado:

"Tudo era muito bom no Sítio e na Pedreira. Quando eu voltei na Pedreira, eu cheguei a chorar, eu olhei, subi em cima das pedras onde nós morávamos. A gente chorou porque não pode mais entrar lá. (...) tomara que “eles” deixem a gente entrar, nem que tenha que pagar, mas que se possa entrar. (...) se um dia, nem que nós fosse velhinho, que nos deixassem entrar. Porque a gente não vai estragar nada, só matar a saudade, mas não deixam. Tudo aquilo deixou muita saudade para a gente. Porque eles não deixam as pessoas ir ao menos lá? Ninguém vai roubar, nem tirar um galho de árvore, nada. Só visitar, matar as saudades, mas eles não deixam. Podiam deixar entrar pelo menos a gente que nasceu e se criou ali.”

Sua percepção de cuidado com a terra não é exatamente a mesma dos

gestores do Parque, e o que ela chama de "atirado", para os técnicos é a recuperação

da natureza diante do modo "caprichado" dos antigos moradores manterem “limpa” a

volta das árvores. Tanto que ela dirá que "gostava muito mais como era antes, quando

nós morávamos lá. Aquela época era abençoada, cada casa cuidava, era tudo limpinho

embaixo daquelas árvores, todo mundo cuidava. Agora tá tudo atirado. Só restou a

igrejinha. Tiraram nós de lá. Tiraram e não fizeram nada. Não se interessaram por

nada lá...”

Mas Erenita também reconhece as vantagens de viver "na cidade" na

comparação com o passado:

"Eu gostava do Sítio, a gente andava de barco. Era tão bom!... Sabe, pão não existia aqui. Esses pão cacetinho, não se via. Só em Porto Alegre é que tinha esses pães. A gente comia só peixe. Aqui na Vila hoje é muito bom, tem de tudo. Aqui, no Itapuã, quando eu era moça, que nós vinha pra cá, só tinha essa rua principal. Da Igreja, pra lá, só tinha mato, não tinha luz elétrica, era só lampião.

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Quando tinha festa era um senhor que trazia a luz. Não sei se era com gerador ou o quê. E agora está tudo arrumado, tem a praça, tem os veleiros, tem supermercado. Naquela época só tinha um armazém que era da Dona Catarina, onde hoje é o missionário e um colégio. A gente lavava roupa no arroio, botava uma tábua e lavava. Agora tá muito melhor e tá cada vez melhorando mais”.

“Essa faixa foi a coisa melhor que fizeram. A gente num instantinho está em Porto Alegre. Facilitou muito pras pessoas andarem, não tem mais aquele poeirão. Nos dias de chuva aquele barro, era horrível. Agora tá muito bom. A gente vai mais rápido pra Porto Alegre.”

Quando soube que poderia voltar a estudar, não teve dúvidas e a mesma

visão romântica que tem do Sítio e do Araçá também tem da sua atual professora:

“porque representa aquele colégio ali que eu estou dentro de uma igreja. Nós com os livros na mão, naquelas mesinhas. Porque agora tem uma mesinha para cada um. Mais a coisa mais linda do mundo. Nós parecemos crianças ali escrevendo naquelas mesinhas. Coisa mais linda. Então parece que estou numa igreja. Ali eu descanso a minha cabeça umas horas, ali com ela. E ali eu tô escrevendo e aprendendo a falar direito. A Serli está nos ensinando também cada vez mais o caminho bom e a passar para os netos isso. Eu tô sabendo que eu não vou aprender mais nada, porque eu tenho umas dores de cabeça muito forte e eu me esqueço das coisas. Mas com a Serli é que eu fui ler.

Estava aprendendo, mas me dá uns brancos na cabeça e eu esqueço tudo. Tem dias que eu tô boa, mas tem outros que não dá. Mas eu me sinto muito feliz, porque a Serli é muito boa. Que professora maravilhosa, ela tem uma paciência. Porque dá aula pra velho não é fácil!! Porque eu já trabalhei, quando era nova, com gente bem velhinha e só tendo muita paciência. E a Serli é a coisa mais linda. Passa aquelas coisas do livro e às vezes eu sei, outras eu já não sei mais, e ela sempre com aquela paciência. Fico esperando as outras dizerem e elas não dizem, esperando por mim e assim a gente fica, e ela não perde a paciência. A Ilda não te contou da aula de ontem? Olha, quem ganhou mais pontos na aula de ontem por ler foi a Ilda. Ganhou 5 ou 6 pontos, eu ganhei 3 e a D. Lourdes ganhou 1. Bom, eu com 3 pontos estou rica, mas eu chorei de rir, como foi bom!

Eu adoro aquilo lá, eu não sabia a lição e a professora tinha saído, aí eu pedi para o Adalberto me ensinar. Isto é coisa que não se faz, né? Parece coisa de criança. Mas ele me explicou e eu fiz. Quando a Serli voltou e viu, ela me perguntou: mas como é que tu fez? Tu não sabia! Olha, D. Serli, foi a mão divina que me deu essa explicação, que veio lá de cima - e o Adalberto se estourando para rir. E eu fiz tudo com a mão de Jesus divina que me iluminou.

Olha, aquele colégio é a coisa mais boa da minha vida. As pessoas me perguntam quando eu vou passando: aonde tu vai, Erenita? Eu vou estudar! O que tu vai aprender? Eu vou estudar para ser advogada - digo só pra rir dos outros. E não é que a mulher pensou que é mesmo? Eu nunca tive essa oportunidade de estudar como agora. Eu já tive no colégio, mas naquela época, a

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gente não podia ficar, depois me casei.

Eu sempre trabalhei para dar as coisas pra os filhos. Porque eles nunca precisaram roubar, nem pedir nada pra ninguém. Então eu sempre trabalhei. Ontem um pai contou pra nós que um filho roubou dele, eu disse: porque tu não ensinou, não dava as coisas, escondia o dinheiro e aí ele fazia isso. Eu era analfabeta, burra mesmo, mas eu sempre fui pela parte boa. Ensinei os meus filhos, como o meu abençoado pai nos ensinou a parte boa, com carinho.

Assim eu ensinei meus filhos. Eu não tinha roupa, só duas mudas, mas para os meus filhos não faltava.

A minha nora adora saber que eu estou indo para a aula. Ela não quer que eu falte. A minha neta trabalha com criança pequena, ela está estudando para ser professora. Vai se formar no ano que vem. Ela chega aqui e me diz: vó, eu quero o teu caderno. Tem a Márcia, a mais velha, vai se formar este ano, eu acho que ela vai ser professora também. Eles me dão muita força. A Márcia comprou até a bolsa pra mim ir ao colégio, comprou os materiais e, quando ela chega, não deixa de olhar meus cadernos. E me diz: como a senhora está aprendendo, que bonito! Quando ela não vem, ela liga e diz: ô vó, tu tá indo à aula? Tô, Márcia. Vó, tu não falta a aula! Eu vou sempre. Eu vou mesmo. Só quando eu tô doente é que falto. Minha família me apóia. Eu gosto muito de estar lá com a Serli. Eu me sinto bem com ela. Eu acho que já estou mais de ano no colégio, né? Eu fico ali escrevendo, sentada ali com eles e eu me sinto feliz, ali com meus colegas. Ontem foi um dia que a gente riu muito. Como estava boa a aula ontem!

A gente conversa e aprende a falar certo. Eu acho que falar certo é não falar errado, uma palavra errada, um nome de um lugar. Eu não sabia dizer ônibus. Eu dizia assim caminhão, lá vem o caminhão ou vou pegar o caminhão. Eu tenho que dizer ônibus. Eu dizia outras palavras erradas, né?

É eu aprendi muito, aprendi muita coisa boa com a Serli. Eu aprendi a não ser estúpida com os outros. A gente ali aprende só o que é bom. A gente já está com idade, mas isso não importa. Porque eu trabalhei muito e a cabeça já fica cansada. A Serli nos ensina como as irmãs do Padre Cacique ensinavam, se a gente falava uma coisa errada elas ensinavam o certo. Comer de garfo e faca eu não sabia. Fui aprender quando trabalhei na creche. [nós éramos] umas burras, que não sabiam, analfabetas. Aí eu passei para os netos que também não sabiam comer com os garfinhos. Eu acho muito bonito isso.

Agora tem pessoa que não gosta de aprender. Eu, eu fico feliz. A Clotilde me ensinou a fazer uns pontinhos de tricô. Às vezes eu fico sentada aí na rua fazendo uns pontinhos.

Mas eu quero tão bem aquela mulher (Serli), como se fosse uma filha. Ela tem idade para ser minha filha. É uma pessoa muito boa. Eu gosto muito dela. Gosto de ver ela rindo. Então digo uma coisa errada, como ela ri, menina! Vocês podem rir, não tem problema. Às vezes eu digo uma coisa lá que não tá bem, né? E as outras também dizem. Nós rimos, e ela não se importa. Outras pessoas já não gostam. Então lá com a Serli, eu sei tudo!

A coisa que ainda é a mais triste para mim é não poder voltar no Araçá e no Sítio. Menina, tu sabe o que é viver a vida inteira num lugar e depois ele ser proibido? Parece que a vida foi cada vez me separando mais daquele lugar e agora nunca mais acho que vou poder voltar!”

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Dona Lourdes: Sentar na rua para ler jornal

Nem Lourdes, nem as duas irmãs puseram os pés numa escola enquanto

eram crianças. Na época não era estranho. Os pais eram agricultores e eram pobres.

Nem por isso a infância deixou de trazer momentos de boas recordações,

principalmente porque a pobreza parecia ser compensada pelas possibilidades de

brincar muito. Naquela época, em que as famílias moravam longe umas das outras,

quando as crianças encontravam outras crianças era uma grande festa.

Dona Lourdes, curiosamente, teve sua vida marcada pela escola.

Aposentou-se depois de 29 anos ininterruptos trabalhando como merendeira na escola

Genésio Pires. Não aprendeu a ler e a escrever. Alguns professores chegaram a

convidá-la para estudar, o desejo existia, mas o excesso de trabalho, a obrigação de

abrir a escola às cinco da manhã, buscar água em panelas, pedir ingredientes para ter o

que colocar na sopa, a distribuição da merenda sala por sala, como foi rotina em

alguns períodos tornavam impossível a criação de um outro espaço de obrigações, para

além dessas e mais da família, marido e três filhos.

O marido sabe ler muito bem, porque aprendeu sozinho, “alemães são mais

inteligentes”. O pai do marido sabia ler e escrever, mas não ensinou. A mãe era

analfabeta, mas muito inteligente.

O grande orgulho de Lourdes foi ter conseguido que os três filhos

estudassem: o que ela não teve, quis garantir a eles. A trajetória é a mesma de tantas

mães que, neste país que lhes negou estudo, lutam para reverter o destino dos filhos. E

algumas conseguem, como conseguiu dona Lourdes.

A casa que ela insiste em apresentar como modesta é um primor de ordem.

A privacidade é garantida por uma cerca viva cuidadosamente podada, que também a

protege da poeira da rua sem calçamento. As paredes, pintadas de rosa, são nuas, com

exceção de um calendário. Dona Lourdes tem dúvidas sobre se conseguirá ler, mas

mostra suas boas noções. Aponta os meses no calendário e mostra o dia de seu

aniversário, inclusive posando para foto no seu orgulho nervoso. Também tem um

orgulho dos seus saberes de merendeira. Chegava na escola ainda noite escura, e temia

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pelo que aconteceria se morresse de noite e ninguém a abrisse. Nos 29 anos em que

passou na mesma escola (e só não os passou no mesmo local porque a escola mudou,

de endereço e de nome - ao ganhar um terreno, transferiu-se e o doador exigiu que o

nome Valdemar Ripoll fosse substituído pelo nome do seu pai, Genésio Pires),

conhecia cada aluno e, sensível à fome dos mais pobres, sabia como estender o

cobertor curto aos mais necessitados: repetia a merenda e, também sensível para não

ofendê-los, criava desculpas para justificar a repetição para uns diante dos outros: "não

tiveram tempo de tomar café antes de sair".

Há uma pequena estante com porta-retratos de filhos e netos. Há também

um cartão desenhado e escrito no computador que a neta lhe deu. Pergunto se sabe o

que está escrito, ela reproduz o texto, mas confessa que foi porque a neta o leu e ela

gravou.

Seu desejo é ler livro e jornal. Nada de bilhetes, que disso ela não precisa.

Nunca esquece nada do que deve comprar no mercado, sempre soube lidar com os

remédios que precisa tomar ou que precisou dar aos filhos pequenos, conhece os

números para telefonar. Dona Lourdes diz que não vai precisar escrever, ela quer

apenas ler. Cartas, não tem mais recebido. Mas jornais e livros, é preciso poder lê-los.

“O meu pai me ensinava, mas ele trabalhava muito. Ele era agricultor e não tinha quase tempo de me ensinar e eu também era meio arteira e a hora que ele tinha tempo pra me ensinar, inventava de ir brincar. Então não aprendi. (...)

Depois chegaram outras funcionárias que eram concursadas, e eu sabia mais do que elas. Só que quando eu comecei a trabalhar no Valdemar Ripol era uma

escola que só tinha um fogãozinho de duas bocas. Eu levantava às 4h30min da manhã para dar tempo de chegar e colocar a panela no fogo pra fazer a merenda e servir às dez horas pras crianças. Era um fogãozinho muito pequeno e tinha que fazer sopa. Eu tinha que deixar as coisas todas picadas nas bacias com água. Era um dia na semana que eu fazia essa sopa. Eu pedia ajuda nos supermercados para ganhar os ingredientes. As crianças também ajudavam. Naquele dia era certo que tínhamos merenda, nos outros só se tinha ingredientes.

Depois começou a vir merenda, aí eu fazia todos os dias. Ah, eu tinha que servir nas bandejas na porta das salas. Porque na época não tinha refeitório. Olha, quando eu terminava de servir, já estava até tonta de tanto levar de sala em sala as bandejas com os pratos. (...) Eu e o professor Neri éramos os primeiros a chegar. Ele ia fazer o chimarrão e eu já colocava as panelas no fogo pra começar a merenda. Daí cada um no seu fazer, ficávamos esperando a criançada chegar nos

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seus afazeres cada um. (...)

No Genésio faltava água quase todos os dias e eu tinha que buscar água longe com aqueles panelões. Eu passei muito trabalho. Às vezes o meu marido me dizia: solta esse trabalho, tu ganha tão pouco, e eu dizia: não vou soltar, eu já trabalho há tanto tempo, quem vai cozinhar para aquelas crianças?

Eu tinha muita vontade, quando me aposentei, de uma vez por semana fazer um sopão para distribuir pras crianças bem pobres que precisassem mesmo. Como aquelas ali da Vila do Cemitério, mas depois eu andei pensando, se eu não tiver ajuda eu não poderei fazer sempre. Aí, as crianças iriam acostumar a vir me pedir, eu não teria para dar e ia ser mais triste, né. Eu adorava fazer a sopa pra eles, quando eu encontrava com eles na rua, eles me diziam: Tia, vai lá no colégio fazer sopa pra nós.

A merenda tinha pra todos, mas não dava pra dar repetições, porque não era muita. Então pra aqueles que tinham o que comer em casa, eu servia só uma vez e para “eles” eu dava repetição e servia bem o prato e dizia assim: eu vou te dar mais um pouco porque tu não teve tempo de almoçar ou tomar café. Fazia uma coisa assim. Porque os outros, às vezes, também queriam, mas eu não podia dar repetição. Daí eles diziam: Tia porque tu dá pra eles e pra nós não? Eu inventava uma conversinha pra eles não ficarem tristes e os outros também não perceberam que eu estava ajudando os colegas que não tinham o que comer. Então eu sempre dava mais um pouquinho pra aqueles que precisavam e com essa conversa eu não deixava ninguém triste. (...)

Vocês nem sabe como foi triste no dia em que me aposentei, como eles choravam e eu também. E ainda depois me encontrava com eles na rua e eles me abraçavam e nós chorávamos juntos.

(...) Até hoje eu encontro os professores da escola, as crianças, e eles mexem comigo: que férias tão grande que tu tirou que não voltou ainda?

Sabe que quando eu terminava de servir a merenda, eu já estava cansada, aí eu me lembrava das professoras que trabalhavam quatro horas de manhã e quatro horas à tarde, saíam cedo de casa e chegavam à noite, como não deveriam estar cansadas, né? Mesmo assim não desistiam, lá estavam todos os dias, por isso as crianças gostam tanto de nós, porque sabem que a gente trabalha com carinho.

Pode ser que esse ano seja melhor, que a minha cabeça dê aquele estalinho e eu aprenda mesmo, né? A minha letra é horrível. Então eu digo pra professora, vê se a senhora vai entender, eu não estou escrevendo pro namorado, e ela ri que nem sei...

Ler, eu tenho vontade de ler. Mas ler um livro, uma revista, o jornal, cartas que escreviam antes pra mim, tudo eu gostaria de ler. Não ter que estar pedindo para os outros. (...)

... o meu marido nunca foi na escola e sabe ler e escrever que é uma maravilha. Sozinho, ele conta que com sete anos tinha uma loucura para aprender a ler. Os irmãos dele todos já sabiam ler e só o mais velho foi na escola. Os outros todos aprenderam sozinhos a ler. Parece que os dois mais novos também foram na escola. O resto, inclusive ele, aprenderam sozinhos. Eles eram nove ou dez, não me lembro bem. Então eles por conta própria aprenderam.

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Dizem que as pessoas de origem alemã têm muita inteligência, têm cabeça melhor. (...)

A Cristina me avisou que as aulas já tinham começado, e eu pedi pra ela perguntar se eu podia ir. Ela disse que sim. Eu fiquei tão contente, já fui comprar um caderno, um lápis e me mandei. Cheguei lá e disse: Ah, professora eu não sei nada. Então vai fazendo aí o que tu sabe. Mas num instante eu já comecei a fazer a data e a fazer tudo. Graças a Deus eu já aprendi assim. (...)

Gostei já dos primeiros dias de aula, fiz uns desenhozinhos bem feios, mas gostei, me senti bem, a companheirada, muito boa. São muito queridas as pessoas que estão lá. Tomara que eles fiquem de novo esse ano. Todos precisam e já tem uns que estão lendo que é uma maravilha. O seu Adalberto e a Dona Dileta não sabiam nem pegar o lápis, e eles agora já sabem ler e escrever. Já fazem nota pra ir no armazém, no supermercado.

O asfalto foi maravilhoso, até pra minhas caminhadas que eu faço de manhã, porque caminhando na estrada de chão, a gente tinha que fazer mais força. O asfalto também foi muito bom até pra gente receber visitas. As minhas filhas diziam: mãe, enquanto essa estrada não ficar boa não dá pra vir, porque termina com o carro. Então agora seguido eu estou recebendo visita delas. (...) De Porto Alegre até quase a Colônia, as pessoas vêm e vão com mais facilidade.

Ficou melhor, tem mais lojas, os supermercados são melhores, tem farmácia que não tinha. Lá no prédio do Supermercado “Toaza” tem locadora de vídeo, lojas, a farmácia, então ficou muito bom. (...)

É preciso ter estômago pra trabalhar ali [triagem do lixo], eu por exemplo, não sei se conseguiria. (...)

Me disseram que lá no Parque tá tudo muito bonito, que tem uns desenhos dos bugios, tem mapas e tem muitos cartazes. Eu quando for lá vou me parar na frente dos cartazes e vou ler. Vai parecer que eu sempre soube ler, porque não preciso contar que não sabia, né?

Tenho uns [livros] que a minha neta me trouxe. Eu até mostrei pra Serli pra ver se eu podia usar. Ela disse que sim, que era bom. O meu filho assina jornal, aí vai pra casa dele, mas a gente vê de vez em quando. Se Deus quiser, ainda vou me sentar ali na rua pra ler o jornal.”

Dona Ilda queria era escola... e bailes... e aplacou o luto na alfabetização

A cozinha é o espaço de estar na pequena casa de dona Ilda e seu Moacir.

Na mesa de refeições é que as pessoas são recebidas e é de onde se assiste à televisão.

Uma pequena estante tem muitos bibelôs, não há fotografias expostas. Não há livros

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na casa. Na parede, apenas um calendário. Seu Moacir passa pouco tempo em casa,

afinal é o taxista (único) de Itapuã.

Ilda nasceu na região de Itapuã conhecida como Gravatá. No sítio em que

nasceu, passou a infância com os pais e sete irmãos. Ali plantavam, criavam animais,

brincavam e trabalhavam muito. O bom é que eram todos muito amigos. O ruim é que

não havia escola perto, e assim a menina no tempo de ir para a escola aprendeu apenas

a desenhar o nome em casa.

Até houve uma escola um dia. Duas moças que moravam num sítio

próximo, Dileta e Dalila, montaram uma escola na parte da frente da casa. Dona

Mariquinha, a mãe das moças, fazia a merenda. Os quatro irmãos mais velhos de Ilda

se matricularam e ali aprenderam a ler e a escrever.

Ilda conhecia bem a escola. Por fora. Ia até lá, brincava no pátio, olhava a

pequena horta do sítio das professoras. Quando a mãe das jovens professoras morreu,

elas partiram, e a escola se acabou. Dona Ilda guarda uma fotografia daquela velha

escola, encravada nos pequenos vales de um lugar ainda tão desabitado. A fotografia

era um guardado da mãe, que Ilda segue mantendo, agora em consideração a ela.

Pena que a escola terminou antes de Ilda chegar à idade “certa”.

Um dia o pai, que fazia serviços para fora, foi chamado para cortar

eucaliptos na chácara do seu Edegar. Tendo o seu trabalho sido apreciado, acabou o

contratando. O pai então deixou o sítio com os filhos maiores e se empregou de

caseiro, levando o resto da família. As filhas do patrão passavam o fim de semana na

chácara e, descobrindo que havia crianças sem escola, se ofereceram para ensinar-lhes

a ler e a escrever. Ilda não quis. Um misto de vergonha e revolta, e ela dizia: “Eu

quero ir é para a escola, eu sempre dizia para a mãe, eu quero é uma escola, porque eu

pensava que a escola ensinava melhor". A mãe insistia: "deixa de ser boba, aproveita

que as moças estão ensinando, mas eu teimava que queria era escola. Por isso eu não

aprendi.”

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Passado um certo tempo, o pai se deu conta de que o seu gado ia magro, o

sítio mal cuidado. Era hora de voltar. O patrão lamentou: “o senhor não vai me

deixar!”, e o pai foi firme: “tenho que cuidar também do que é meu”.

Licença para ir aos bailes, só se um dos irmãos fosse junto. Não era

problema para a menina Ilda, que tinha cinco deles, um especialmente próximo que

sempre a levava junto. Foi num baile que conheceu Moacir, flertou, namorou e casou

com ele. Tinha então 20 anos.

Mesmo depois de os filhos terem nascido, Ilda e Moacir seguiam indo a

bailes e rodeios. Menos, mas iam porque sempre gostaram de festa. Conheceram-se

numa e parecia que a vida ia ser assim: muito trabalho e muita festa. Num acidente de

carro, ocorrido há onze anos, eles perderam um filho. Desde então se acabaram as

festas, e o gosto pela vida, diz, se foi com ele. Ilda se emociona ao falar do filho e

revela a mudança na vida, só amainada pelo fato de as netas terem ficado com ela logo

depois do acidente. A viúva voltou para a sua cidade de origem, deixando as meninas.

A menor viveu com Ilda dos dois aos sete anos quando então voltou para a mãe, mas

passa as férias em Itapuã, e a mais velha segue com dona Ilda. Mas não puxou à vó,

prefere ficar em casa a se aventurar nas festas.

Um dia, a filha contou para ela que havia uma alfabetização de adultos na

Vila. “Mãe, por que a senhora não começa a freqüentar o curso também?” Passado o

espanto inicial, a idéia começou a fazer sentido. Do lado do sofá, um jornal comprado

pelo marido tinha tão pouco a lhe dizer. Agora ela já podia achar que não existia uma

idade específica para se estudar, a menina que não foi para a escola se viu diante da

possibilidade de aprender. “Eu? Acho que minha cabeça não dá mais para essas

coisas...” Já não estava tão convicta, a filha e o marido insistiram, e ela se apresentou

na sala da professora Serli:

“Eu aprendi a fazer meu nome quando menina com meus irmãos e para casar eu soube fazer direitinho, depois esqueci, e agora volto a aprender. Estou contente, já consigo até pegar o jornal e ler algumas palavras. Gosto muito da professora Serli, ela tem muita paciência com a gente. Gosto muito das aulas dela e me sinto muito bem freqüentando o curso. Não gosto de faltar aulas. Só falto quando é muito preciso.

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E graças a Deus, menina, estou aprendendo! Essa professora que nós temos é muito interessada. Eu até digo: se ela era com as crianças como ela é com nós, então era maravilhosa. Eu disse pra Nice [filha]: não falto de jeito nenhum, porque a aula é duas vezes por semana. Atrasa o serviço, faz outro dia, porque se a gente vai esperar não ter nada para fazer, não iria nunca. Eu deixo [o trabalho para depois] e vou porque eu quero aprender.

Outra coisa boa é falar direito. Ah, falar direito, falar bonito, assim que ninguém ouvindo nós saiba se nós somos analfabetos.

Vou seguir na escola da Serli, estudando no GAMI. Eu penso, depois de estar bem firme nas contas e nas leituras, de seguir estudando. Escrever é mais difícil, força a cabeça. Mas eu vou seguir, porque em casa só eu não sei ler e escrever. Todo mundo sabe na minha casa. Meu marido vê filme da locadora que é com letreiro. Só eu não posso ver. Eles discutem a política com o que sai no jornal. Eu não posso ler, não sei o que se passa. Até o GAMI tem um jornalzinho, eu guardo para poder ler. Uma coisinha eu leio assim, mas não é de vereda. Meu marido lê num trote só. Eu leio os nomes, leio as coisas na rua. Cartas, eu sei para quem é.

No ano passado, quando eu tava começando, me aconteceu a coisa mais maravilhosa. A conta da luz veio errada na minha casa. Eu peguei, vi que não era nossa, levei um susto. Daí me acalmei e disse para mim: tu já sabe ler. Que nome tem aqui? E li direitinho, vi que era do seu Leocádio Braga. Nunca esqueci disso. Pedi para a Serli para eu escrever o nome do Leocádio, ela me ensinou, eu falei para todo mundo. Foi logo no início. Daí me entusiasmei, vi que poderia ler.

Eu acho, até eu tinha uma coisa... sempre dizia pra Nice: eu antes de sair desse mundo tenho que aprender nem que seja um pouquinho a ler e escrever.”

Dona Laura e a fala mais completa

Logo adiante do outro lado da casa da Dona Laura (60 anos), os homens

jogam carta debaixo de uma figueira. Nós íamos ficando pela varanda naqueles dias

em que o frio ainda não era tanto, depois nos falávamos na sala e, no inverno gelado,

sentávamos na cozinha. Aos poucos, foi ficando mais tranqüila de estar sendo

“entrevistada” e gostando de falar do passado.

A pequena Laura aos quatro anos foi emprestada para uma tia materna, que

tinha acabado de perder a única filha. A mãe de Laura, afinal, tinha 14 filhos, poderia

bem ceder uma até que a irmã pudesse ter outra criança. Laura não lembra da ida para

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a tia, mas nunca esqueceu da volta, quando o pai biológico apareceu num dia sem

aviso com intenção de levá-la.

Tinha então dez anos de idade. Havia sido criada por aquela família de tios,

desde quando o tio a levara na garupa do cavalo para morar em outra casa. Tornou-se

tão reconhecida pela família dos tios que o avô, de quem guarda saudades é o pai do

tio, que também a tratava como verdadeira neta. Dele tinha ganhado uns boizinhos de

presente, que ficaram para trás no dia da volta, esse dia tão sofrido que nunca se

desgrudou dela e que é o primeiro fato da infância que rememora. Ela embarcou no

jipe com os pais biológicos e os de criação. Chegando na casa dos primeiros, não quis

descer, agarrando-se ao banco, o que provocou uma grande discussão entre os adultos,

da qual resultou o rompimento dos pais biológicos com os adotivos. Não bastasse estar

vivendo todo o drama, ainda acabou acusada de ter provocado uma briga familiar: tudo

porque eu não quis sair do jipe. Se eu tivesse saído do jipe... eles não teriam brigado...

Lá estava ela numa casa de estranhos. Por que a buscaram? Primeiro

porque o acordo de “empréstimo” previa o tempo de a tia poder ter um filho realmente

seu, e isso tinha acontecido. Até se deu mais tempo, porque a filha verdadeira da tia já

estava com dois anos, quando Laura foi buscada. Mas também sucedia de os seus pais

biológicos terem apenas quatro filhas mulheres até então, sendo que as outras três já

estavam casando. Era preciso que alguém ajudasse a mãe a cuidar dos homens: Laura

fazia falta então. Depois que ela se mudou para a nova casa, ainda nasceu mais uma

irmã. Nem seria preciso dizer então porque não freqüentou escola.

Não é um jeito magoado nem ressentido de falar o de Laura. É uma visão

de destino, de “foi porque tinha que ser”. Sua mãe era parteira. Embora tivessem

muitos bens, a vida era sofrida e de muito trabalho: trabalho de sol a sol. Comenta que

a vida no campo é muito trabalhosa, na vila é melhor. Às vezes, a mãe chegava a

atender a três partos no mesmo dia. Dona Laura dá uma gargalhada lembrando de uma

gringa que era a maior freguesa da mãe. E dona Laura também o foi, pois a mãe fez

seu único parto.

Quando foi criado o GAMI, a filha de dona Laura comentou sobre a

separação de lixo, e ela começou a guardar para as mulheres que viriam buscar. Um

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dia, soube que abririam um curso de alfabetização. Seu desejo íntimo serviu para fazê-

la corajosa e perguntar a uma das catadoras se o curso era pago. Então não tenho

desculpa, sou a única analfabeta da família.

Eu quis estudar, mas nunca tinha pensado nisso. Quer dizer, eu vivi a

minha vida toda sem achar que precisava. A gente pra fora, gente de fora, assim, parece que não precisa de ler, de escrever, assim. A gente vive como os bichos [ri e sente que precisa explicar] só assim, nisso de ler. Como é que eu vou te dizer, não sente falta. Eu cheguei a ir para colégio, mas nem me importava se tinha que sair. Meu pai tirava e eu nem dava bola. Mas agora, eu já acho bom. Por que tu vê só, se a gente fala errado, todo mundo repara. Quem sabe ler e escrever tem uma fala mais completa (...) fala melhor as palavras, não fala errado, fala os nomes certos. Isso aí a professora explica para nós, que a gente não pode ser como uns bichos. E eu vejo que a gente lendo, aprende também a falar. Aprende com os livros, aprende a conversar de um outro jeito. Menina, como eu falo errado! Eu tenho muito que aprender ainda.

Eu tenho uma netinha agora recém tá na primeira, e ela já tá agora assim: olha, vó vamo vê quem vai aprender primeiro. E ela já tá quase lendo, tem uma inteligência!! - e hoje em dia tem o prezinho pras crianças se adaptar com as outras crianças. É bem diferente.

... O meu pai foi criado muito humilde. Ia bem, mas era muito sacrificado, o pai fazia cachaça, aguardente, e vivia trabalhando, a minha mãe vivendo dali, não era fácil. E depois de um tempo botou tambo de leite e era muito serviço pra minha mãe também.

Aí eu fiquei, eles ficaram de mal um pouco, aí depois lá no meu vô, lá na chácara da Iara, lá do meu vô Zeca, que era pai da minha mãe. A gente se reunia tudo lá, fim de ano, anos do meu vô e foi lá que eles fizeram as pazes.

Que a dona Ana, que tem os filho plantador de verdura e tudo. A mulher é gringa. Bah, a minha mãe atendeu ela nem sei quanto. Eu, a minha mãe me atendeu quando eu ia ganhar a minha filha. Teve uma vez que a nora dela, parece que mãe adivinhava quando tava perto de ganhar.

Uma vez saiu ela e meu pai, foram pra casa do meu irmão, aí chegou lá, o outro meu irmão morava bem pertinho. Aí chegou lá, minha cunhada doente, disse que tinha ido lá e voltado não sei quantas vezes. Eu disse: mas mãe, examina ela. A mãe disse: olha, essa noite tu ganha. Aí a minha irmã disse: não, tu não vai embora, fica aqui. Quando foi no outro dia a mãe chega bem faceira que já tinha deixado eles lá com a menina.

Isso foi dia vinte e cinco de janeiro, quando foi vinte e nove de janeiro ela disse pro pai: pai, vamos lá em Novo Hamburgo e lá a minha cunhada tava pra ganhar nenê também. E daí chegou lá, quando foi dia trinta minha cunhada também ganhou nenê, e ela fez o parto.

Um dia eu tava na casa da minha cunhada que também tava pra ganhar nenê, e a minha cunhada quase desmaiou, mas eu disse: eu não, eu não dou pra

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isso! A única que dava era uma das minhas irmãs, uma que mora na Cavalhada. Ela também... mas nunca conseguiu, depois foi pra Porto Alegre. Às vezes andou dando problema nos partos, mas tinha uns médicos perto dela, podia chamar, qualquer coisa chamava e dava orientação pra ela. E ela tinha a ficha, tudo que tinha que botar... quanto peso.

A pessoa sabe, quando ela é parteira, ela sabe quando não dá, porque nos hospital quando eles tão vendo que dá pra ser parto normal, eles não fazem. A minha filha quando ganhou nenê nós ficamos o dia inteirinho no hospital, eu implorava, não ela vai fazer parto normal...

Eu sei que depois, eu me casei, morei oito meses lá na Toca do Tigre (...) foi quando tive minha filha, depois eu fiz uma casa pra mim, caiu bem quase aonde eu morava antes. É lá na chácara onde morava o meu irmão, lá eu morei doze anos. (...) Casei minha filha ali. Só tenho uma filha, só. Era importante para mim que ela casasse bem, com uma pessoa boa, que cuidasse bem dela, como nós. E aí nós viemos pra cá, e aqui nós tinha terreno aqui [no centro da Vila] e tinha outro aqui.

Aí construímos aqui, viemos pra cá, vai fazer em setembro doze anos que nós viemos pra cá.

(...) Eu nunca morei fora de Itapuã, mas eu achava que eu nunca ia me dar assim em vila. Nunca que eu morava dentro de vila, mas aí como lá era da minha mãe, não era meu, e aí a gente vendo que é da gente, a gente logo já gosta. E lá na chácara é bom, mas é uma vida muito sacrificada. E a chácara da minha mãe é muito grande e ficou só eu, era cuidar de bicho, era o dia inteiro trabalhando em plantação e tudo. (...)

Ah, agora eu já tô velha, eu trabalho na loja da minha filha, desconto INPS, logo eu me aposento. Agora com essa coisa de idade e tempo de serviço, pois é e eu vou estar só com dez anos e meio. Eu sei que a idade é os sessenta anos.

Agora, a minha filha, quando casou morava lá pro Capão da Linha, depois compraram um terreno ali onde é o mini-mercado. Fizeram uma casinha nos fundos e tinha um armazenzinho na frente, depois foram aumentando, aí meu genro comprou o terreno do lado, fez uma casa nos fundos e se mudou pra lá. Depois fez uma casa na frente e se mudou pra casa da frente. No ano passado, ele fez uma casa ali naquela área de serra, aí ela queria botar uma lojinha, porque o marido trabalhava muito. Aí tá a lojinha ali, mas não aparece quem queira alugar, tá fechada. Queriam que ela voltasse pra casa que ela morava ela disse: não, já vim pra cá, agora pra trás eu não volto, só vou pra frente. Teve mais de quatro anos a lojinha ali. Eu ia pra casa dela, ela abria às 8h da manhã, ao meio-dia ela ia almoçar; 2h ela voltava pra abrir e eu vinha com as duas netas pequenas.

(...) Por isso que também eu não cursei o colégio aqui, porque aí eu

entrei, no ano que vem ele me tirou pra ir pra lá, porque tinha que fazer essas canas que ele tinha comprado e então eu tinha que ir pra lá, cozinhar pros meus irmãos.

Eu tive aula no colégio, uns dois ou três meses, mas acho que a minha

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cabeça era muito ruim, não conseguia aprender. Era aqui onde é a Brigada, ali. E meus irmãos tudo aprenderam ali. Tinha uma época que meu pai chegou a ter cinco ou seis filhos no colégio. Nisso acho que eu tinha uns doze anos, eu acho. Mas não foi a primeira vez que eu fui pro colégio, eu já tinha passado por colégio lá na Pimenta, lá na minha tia.

A primeira vez foi lá, de certo eu fiquei uns dois anos, eu não me lembro, eu me lembro da minha tia me ensinando o ABC, e eu num entrava na cabeça. Antigamente era tudo mais difícil, eu acho, que hoje em dia a gente vê, eu sei pelas minhas netas.

Agora que eu comecei no GAMI, e o meu marido vai também. Ele já é aposentado há bastante tempo, vai começar a ir comigo pra lá. Quando eu comecei a ir pra aula, pensei: ele já fica sozinho a manhã toda cuidando da chácara, ainda ficar sozinho à tarde... Aí ontem ele já foi, gostou. Lá ela dá um recreiozinho, tem outros lá, a gente conversa... Então ele vai pra se animar, e é aqui pertinho, eu dizia para ele não desanimar.

Mas eu iria até se fosse bem longe.

Quando eu entrei na Serli, eu já tinha aprendido a ler mas há muito tempo, nem me lembrava de mais nada. Agora, leio, escrevo... a minha letra é uma feiúra, mas dá para entender. A Serli tem muita paciência e diz: escreve direito que tu sabe. E é, eu sei. Daí, tenho que caprichar. Não posso fazer feio para as minhas netas. A mais velha fiscaliza os meus cadernos, eu tenho que prestar conta. E ela diz: vó, que que é isso aqui? É um a, é um esse. Daí elas riem e eu também. Como é que eu fui escrever assim tão feio? Daí eu me encapricho.

A professora Serli agarrando amor às palavras

Não é o filme “Nenhum a Menos”, mas poderia ser um filme. A história

profissional da professora Serli começa quando em 1972, decidida a não continuar

empregada doméstica, de Porto Alegre, retornou a sua terra, Itapuã. Hospedou-se na

casa da cunhada, no Hospital Colônia, onde ficou sabendo que haveria um curso de

auxiliar de enfermagem. Tentou se inscrever, mas não tinha documentos. Seu

Apolinário era quem fazia as inscrições. Não pôde aceitá-la, mas no dia seguinte a

procurou com uma proposta de trabalho: as crianças da escola da Varzinha estavam há

meses sem aula, porque a professora Zenaide tinha ficado “doente da cabeça”. Já deu

aula? Nunca, mas a minha paixão é ser professora. Na sede do município, depois de

falarem com o prefeito e apresentarem a candidata, aplicaram-lhe um teste. O que quer

que este teste significasse, o fato é que foi contratada. Correram a Viamão, fizeram os

documentos. Serli estava ansiosa para conhecer a escola, mas naturalmente com medo.

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Além de ter pouca escolaridade (na escola regular, estudara até a 5ª série), nenhuma

experiência, ainda teria que morar na casa de algum aluno, porque a escola ficava

numa região muito retirada e sem transporte. No domingo que antecedia a estréia no

trabalho, o primeiro problema foi conseguir uma maneira de chegar na escola.

Procurou um conhecido para ver se ele poderia levá-la, mas ele não podia, porque era

dia de namorar. Na segunda-feira, uma boa alma motorizada aceitou levá-la e assim a

jovem pôde se apresentar no trabalho com sua pequena mala.

“Era dia 23 de outubro de 1972, meu primeiro dia de aula. Aí, fui

começando, como eu achava que era. Os alunos foram chegando e avisando os outros. Outros pais não tinham ficado sabendo, iam a Viamão fazer queixa, mas eu já estava trabalhando. Tinha bastante alunos, passei sufoco, era de 1ª a 4ª série, e as crianças todas atrasadas para passar no exame de final do ano. Eu também, atrapalhada, não entendia nada, sozinha, não conhecia nenhum outro professor que pudesse me ajudar.”

Quando Serli conseguiu conversar com a professora que foi substituir,

descobriu os documentos da escola, as folhas de chamada e obteve alguma orientação

de como proceder com as crianças que a aguardavam.

“Era um dia muito feio, ventoso. Uma aluna me levou de charrete e

nós fomos subindo barranco, passando pelo meio dos capins. Ela morava lá num fundão. Eu fiquei toda dura, porque imaginava que ia voar daquela charrete. Sobe e desce barranco e aquele cavalo disparava para um lado e disparava pra outro. Mas chegamos e conversei com ela. Ela estava com o material na casa dela. Cadernos de chamada, as orientações da escola. Aí, ela me entregou e me explicou, mais ou menos, como funcionava e eu fui pegando. Comecei a ler, fui me dedicando, com muita força de vontade de seguir em frente, aprendi logo e comecei a dar a minha aula. Fui ficando ali, “agarrando” amor às palavras. O pessoal se agarrou a mim também. Pessoas de fora, né. Não tem intimidade, são todos acanhados.”

A família que a hospedou era de “pouca conversa”. Cederam-lhe o quarto

dos filhos homens, transferidos para o galpão, e colocaram um fogão no seu quarto.

Era de pouca utilidade: ela não cozinhava e assim pouco comia, e ia emagrecendo.

“Era tudo muito sofrido, aquelas crianças vinham de longe, sem

merenda, sem nada, na escola tudo era muito precário, não tinha banheiro, eu tinha que ficar arrumando umas tábuas daqui outras de lá, pra “enjambrar” um

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banheiro. Água era de poço, tinha que puxar de balde era muito triste naquela época, porque eu e as crianças passamos muito trabalho. Hoje em dia eles têm tudo e não aproveitam. Tem condução pra levar e buscar em casa tem merenda boa, tem material escolar, a escola com tudo e mesmo assim essas criaturas não querem estudar.”

Depois sua história profissional inclui as transferências, o jogo de

interesses, a disputa por espaço nas escolas, a oscilação entre as 20 ou 40 horas

semanais.

“Em 1979, já comecei o ano trabalhando ali. Eles tiraram a escola lá

da Grota, porque ficava num lugar muito distante e eles tinham pena de mim. Às vezes o prefeito chegava lá e me dizia: nós não vamos te deixar aí sozinha, tu vai conosco. Foi quando melhorou muito pra mim, porque eu fiquei de dona da escola. A escola foi transferida e eu fiquei trabalhando ali até março de 94. Em 94 a minha escola fechou, porque tinha poucos alunos. Os meus alunos passaram a estudar no Frei Pacífico, então eu fiquei “no ar”. Eles continuaram me pagando, embora eu não trabalhasse. Como eu achava ruim aquela situação, eu ia mesmo assim lá pro Frei Pacífico e ficava lá até a hora do ônibus. Do Felisberto fui trabalhar lá no 14 de Setembro, que ficava na Quebrada. Fiquei três meses para substituir uma professora de licença-prêmio e voltei para o Felisberto. Aí a outra professora dali queria ficar com as 44 horas só para ela, e queria que eu saísse, que ela queria ficar trabalhando sozinha ali. Nós até brigamos, porque eu não queria sair. Os pais não queriam que eu deixasse os alunos. Aí, vai, vai, até que ela venceu. Aí, eles me encaixaram lá no Passo D´Areia.

Sabe, eu comecei a fazer umas voltas engraçadas, uns zigue-zagues. Eu até me senti muito ruim com isso, sabe? Fiquei meio chocada, mas o que fazer? eu tinha que agüentar, depois de tantos anos. Eu já passei trabalho até agora, vou passar mais trabalho um pouquinho.

Aí, fui para o Passo D’Areia. Mas só tem uma coisa , eu só vou para o Passo D’Areia se eu ficar trabalhando as 44 horas lá. Tá, tudo bem tu vai ficar as 44 horas lá. Mas as nossas 44 horas estavam meio confusas, porque eles tinham nos tirado, depois nos deram de novo, estava meio estranho. (...) Eu me aposentei em abril de 1998.

O GAMI surge na vida de Serli quando ela já desistira da profissão de

ensinar. Com seu novo grupo de alunos, encontrará uma motivação para recomeçar. E

assim, estão todos a recomeçar: ela a ensinar e eles a aprender. Serli conhece cada

aluno, foi tratando de lidar com eles a partir de suas referências anteriores, capta as

diferenças e faz as adaptações que pode.

“Daí eu conheci a Jandira e como não tinha dado certo com as outras

professoras, ela me convidou para trabalhar aqui no GAMI com a alfabetização e

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já faz três anos que eu trabalho aqui com a alfabetização e pretendo continuar por um bom tempo trabalhando aqui, porque o pessoal quer, estão gostando e eu gosto. Eu estava acostumada a trabalhar com criança, aí peguei a alfabetização pra adultos e tô achando até melhor. É bom. Só que eles se acham muito cansados, que não vão conseguir, que não sei o quê. Mas se vocês tentarem o quanto vocês conseguirem já é o bastante. É, e estão tendo um bom resultado. A gente que está acostumada não nota tanto, mas eles estão percebendo melhor.

Eles chegam e já dizem a finalidade deles. No caso, o Adalberto é um rapaz novo ainda, está com 53 ou 54 [está sendo irônica e ri um pouco]. O sonho dele é aprender a ler e escrever, porque ele quer tirar a carteira de motorista, quer fazer os documentos. Então ele acha que precisa, como precisa mesmo. A Dileta também, que é mulher dele agora, também não sabia nada e me disse: Serli, eu também preciso, porque trabalho com minhas vendas de coisas e faço meus anguzinhos pra vender e eu preciso. A pessoa sabendo lê, claro que melhora né? Graças a Deus, ela tá ali e depois eu vou te mostrar o que ela escreveu de encerramento de ano, que eu fiquei abobada. Chegou a me arrepiar, ontem, quando eu li. Ela mesma ficou impressionada e me disse: Serli, eu não sei como é que eu escrevi isso! O Adalberto também ficou naquela ansiedade, e eu disse: Adalberto, é assim, assim, assim...Eu dou só o início para vocês e aí se vocês quiserem continuam esse meu início, se não façam do jeito de vocês. Aí ele me disse: Quem sabe eu falo e tu escreve. Não de jeito nenhum, eu quero ver a tua escrita e ali ele começou. Sabe, eles já estão encaixando, eles já sabem entrar na conversa através da escrita, é claro tem aquela parada, mas isso até a gente tá escrevendo e dá aquela parada pra dar uma recordada, lá pelo meio né? [Sim.] E aí foi, às vezes, eu dava uma olhadinha e ele ficava me olhando e a palavra que eu ia dizer ele falava, então ele já encaixava. Eu disse: vocês já estão prontos pra escrever em casa, porque eu darei uma tarefa para fazer em casa.

A Dona Ilda é porque ela tem muita vontade de aprender a ler e a escrever. Ela vê as coisas na frente dela e ela quer ler. É o grande sonho dela aprender a ler. Outra coisa, ela não precisava pagar mais passagens, porque já tem 67 anos, parece, mas ela continuava pagando, sabe por quê? Porque ela não sabia ler, e ela tinha vergonha de mostra a carteira pro motorista, porque não estava assinada. Então ela escondia. Ela mesma nos contou aqui isto. Até que um dia o Sílvio, motorista do ônibus e conhecido dela, perguntou: Dona Ilda, a senhora ainda paga passagem? Não, Sílvio é que eu não sei escrever, então eu não gosto de mostrar a minha carteira. Depois que se passou isso, nós até dissemos pra ela, mas isso é bobagem, a senhora entra mostra a carteira rapidamente, que eles nem vão ver, o que eles conferem é a data de nascimento, mas como ela não sabia... Agora não, ela entra bem faceira e mostra a carteira nova, assinada com seu nome. Ela tem orgulho em dizer que foi a Viamão, assinar documentos, preencher fichas para encaminhar a sua aposentadoria. Pode ir nos médicos sozinha. Porque ela mesma sabe assinar as fichas. Ela tem orgulho em ter aprendido, isso é uma realidade para ela. Um sonho que ela conseguiu realizar. Ela precisa ainda desenvolver a leitura, lê alguma coisinha, mas muito pouco. “A cabeça já não ajuda, muito fraquinha...”

O seu Orlandino já sabe ler e escrever, mas ele quer aumentar os conhecimentos dele. Ele é muito ruim na escrita, pra ler ele é bom. Lê bem, apesar de que tem uns probleminhas de dicção. Na escrita é que ele tem dificuldade em algumas palavras. Não sei se ele quer escrever muito ligeiro. Eu sempre digo,

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depois que vocês escreverem, devem voltar para ler e ver se está certo, porque só vocês lendo é que vão descobrir se está certo ou não. E é assim que o Adalberto faz. Ele antes de escrever, ele pensa, lê bem e pergunta se ele não sabe. De primeiro eles não perguntavam, agora já perguntam e é assim tem dúvida tem que perguntar.

A Erenita quer ser jornalista como vocês sabem [dá uma gargalhada]. Ela é assim tem dias que tá bem e faz tudo direitinho, tem outros que não consegue. Então ontem fiz um ditado relâmpago. Eu disse: Erenita, tu não passa a perna. Ela gosta muito de ditado relâmpago. E esse ano eu não tinha feito ainda. Fiz ontem. Ela me disse: tá, tá, pode deixar... Eu estou cuidando, ela com a mãozinha assim copiando. Ela é assim...

O ditado relâmpago é assim: eu passo a palavra no quadro, eles lêem, eu apago e eles têm que escrever. Palavras simples, é claro. Elas acham uma graça. Gostaram tanto que nem sei, né? Então dois acertaram todas, até a Lorenir, uma baixinha que tem ali.

Os irmãos dela foram meus alunos na Varzinha, ela não chegou a ser. Mas não tinha jeito deles aprenderem. Já são de família que não desenvolvem. Então ela, eu tô sentindo que tá querendo aprender. Tem bastante vontade de aprender. Vem lá do Sandu aqui só para freqüentar as aulas.

Tem outra, a Maria da Graça, mas agora ela tá muito preocupada com a mãe que está doente e mora lá na Quebrada. Ela vai ter que ir morar com a mãe para cuidar dela e está preocupada, porque vai ter que deixar de freqüentar as aulas, pois não tem como pagar as passagens, pois terá que parar de trabalhar para ficar em casa com a mãe. Até fiquei de ver se eu consigo vale-transporte para ela. É muito querida essa guria. Ela não sabe ainda ler nem escrever. Ela é muito engraçada, brinca dizendo que é cabeça ruim. Mas que tanto tu culpa essa cabeça, guria! Tu não tem é concentração, tu chega aqui cheia de preocupações. Se preocupa com a mãe lá e aí não se concentra na aula. Porque se vocês vêm com a preocupação, vocês só estão com o corpo aqui, o pensamento anda voando. Então vocês têm que se concentrar para aprender. Eu vejo quando eles chegam se estão preocupados. Ela quer aprender a desenvolver alguma coisa né? Tu vê, uma mulher nova, bonita, não sabe ler nem escrever... é brabo, né? Ela quer continuar estudando, mas tá com esse problema agora que não tem as passagens.

Quem mais? Ah, A Dona Lourdes. Essa também trabalhou uma vida inteira na escola e não sabe ler, nem escrever. Trabalhou a vida inteira nesse Genésio Pires aí. Se aposentou e não sabe nem escrever o nome. Agora ela começou a vir para cá. Só que ela tem um problema, entrou um dia e já queria sair sabendo no outro, e aí tem que explicar pra ela que não é assim. A senhora entrou agora, há quanto tempo os outros já estavam aqui e tem que ver que a senhora não é criança. Se fosse assim, uma escola como seria? A senhora vê, as crianças ficam na escola um ano, e muitas não conseguem vencer aquele ano e estudando todo o santo dia. Não é que nem vocês que vêm duas vezes por semana... Ah, às vezes, ela é pior que a D. Erenita. Quando as duas estão juntas não tem que agüente, contam histórias, anedotas, é muito engraçado. E uma promete de se agarrar com a outra na saída e brigarem. Tu cala a boca, que eu te pego na saída. É uma graça, a gente ri que chora. A D. Lourdes é muito engraçada. Aquele meu velho não tem paciência de me explicar e eu já brigo com ele também. E a gente vê como ela se esforça para tentar aprender. Eu sempre digo: D. Lourdes, isso é

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com calma. A senhora não pode se agitar, devagarinho a senhora vai conseguir, mas tem que ter calma, não pode ficar aflita desse jeito. Ela tem muita dificuldade motora. A mão dela é muito inchada. Talvez em função do reumatismo.

A D. Laura queria aula todos os dias. Eu disse que todos os dias não dava. Vocês vêem, tendo aula duas vezes por semana já não é fácil para todo mundo vir sempre, imagina todos os dias. D. Laura tá bem. Lê e escreve direitinho. O seu José também estava muito bem, resolve conta, lê, escreve. Quer dizer que para ele estava muito bom.

Tem a Aidir, mãe do Rogério. Ela nunca esteve no colégio, sabe um pouquinho porque a filha ensinou ela em casa. Então ela veio para desenvolver um pouco mais. Ela quer aprimorar seus conhecimentos e aprender a ler melhor. Porque ela é crente, gosta muito de ler a Bíblia. Aquela coisa toda, né? Ela tem uma noção já. Está bem. Aqui ela se entrosou e pegou bem mais. Então ela está bem.

A Cristina fez a 1ª e a 2ª série há muitos anos. Então ela lê que é um avião. Pra ler é uma beleza, pra escrever é rápida também. O problema dela é ortográfico. Ela tem muito erro na escrita e fazer entender as atividades ela tem muita dificuldade. Se tiver que escrever uma história, desenvolver uma composição, aí é “dificultoso” pra ela, mas ela já faz, com muito erro, mas faz. Então a Cristina só quer aumentar os conhecimentos.

A gente vê a vontade deles aprender. Eu não sei se é a curiosidade em

conhecer melhor as coisas do dia-a-dia ou se é pra aprender a escrever alguma cartinha, porque eles têm vontade. Eu vejo, às vezes, eles falando em escrever para fulano. Eu digo: vocês querem aprender, aproveitem agora que está chegando o Natal e escrevam um cartão para algum parente ou amigo e vão guardando em casa e depois tragam que eu faço um “check-up”, dou uma olhada bem caprichada para vocês. Eu acho também que muitos estão aqui que é para entender as coisas que as pessoas falam e às vezes eles não entendem. Porque muitas coisas eles não entendem ao conversar. Às vezes uma palavra diferente, querendo estar por dentro dos assuntos. Claro que tem os espertinhos, que são até demais. Até o significado de alguma palavra que eles não sabem citar e sobre o dia-a-dia, coisas que acontecem no país e no mundo. Eles ouvem e ficam curiosos e querem entender essas coisas que estão acontecendo. Se pegam um jornal pra ler ou até mesmo ouvem uma reportagem que está dando e não conseguem entender ou entendem, aí eu não sei, não entendo o porque desse querer mais.

No começo quando a gente fala: observem os livros, recortem as

gravuras que vocês acharem interessantes e colem no caderno. Sabe, eles não gostam. Como é engraçado, porque criança adora, né? Eles não, dizem que vem aqui pra aprender e não para recortar e colar. Eles ficam danados. Eu sei que eles não gostam de trabalhar com desenho. Eu estava trabalhando muito com desenho com eles para “amolecer” a mão. Eles não gostam. Eu falo: gente, eu preciso trabalhar isso com vocês. Porque vocês têm dificuldade e é só através dos desenhos que vocês vão conseguir. A leitura vai ficar bem mais fácil através dos desenhos. Além do mais, cada um faz o desenho do seu jeito. Cada um faz como sabe. O importante é que vocês saibam o que estão desenhando. Eu boto no quadro tudo “meio a bala”, que é para eles verem que não precisa ser perfeito, mas

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eles querem fazer tudo direitinho. Eu fiz um texto com eles só com desenhos. Eles já estavam até lendo. Até a Jandira estava aqui e viu, ela até ficou abobada como eles conseguem entender e ler aqueles meus desenhos. Ela até brincou, isso é japonês, chinês, o que, que é? Fica quieta e observa. Chamei um pra ler, acho até que foi a D. Ilda. Escrevi uma frase só com desenho, e a D. Ilda começou a ler, chegou no “T” e o “A” que é as coisas que elas mais sabem ler e ela não conseguiu. Eu ajudava, ela ia e voltava, arregalava os olhos e não conseguia. A Jandira entendeu o que eu estava fazendo e achou interessante. Eu escrevi só com desenhos, por exemplo. O tatu gosta de cavar. Eu não escrevo nem uma sílaba, vou desenhando até formar a frase só com os desenhos representando. Escrevo no quadro “cabana”, aí eles olham, lembram de alguma sílaba ou não, aí eu vou e coloco o desenho e eles lêem. Porque eu também sou assim até hoje. Se eu quero gravar uma palavra e memorizo um desenho que represente... e pronto, não esqueço mais aquela palavra. São maneiras que a gente tem que encontrar pra ver se eles aprendem, desenvolvem, né? Mas eles estão se saindo bem. Pena que agora acabou também. Agora as aulas acabaram, só o ano que vem. Quem quiser, continuar que venha.

Nós estávamos conversando ontem até que essas aulas que eu estou dando quem me paga é o GAMI. Que é uma coisa que nós achamos errado, né. Quarta-feira na reunião das mulheres do GAMI, a Vilma, que é uma sócia, falou que não achava certo isso. E a Jandira falou: boa questão! Eu como estou aqui, quando entrei já era o GAMI que pagava, não tive tempo de entrar em detalhes com a Jandira e acho errado, como de fato é errado mesmo: as mulheres se matar trabalhando, e eles aqui só.... Até o Adalberto falou: isso tá muito errado mesmo, as mulheres lá se “ralando”, trabalhando embaixo do mau tempo e nós bem sentados aqui, só na “mamata”, aprendendo a ler e escrever, elas pagando pra nós, pois é elas que pagam.

As pessoas que eu converso, quando eu vou para Porto Alegre ou

Viamão, e digo que moro aqui, já ficam curiosas para saber como estão as praias e como está isso ou aquilo. E digo está cada vez melhor! Eles já ficam com vontade de conhecer também. E o pessoal daqui diz que Itapuã é um lugar tranqüilo, bom pra descansar, é maravilhoso, mas também tem gente que não gosta de ir ao Parque porque tem que pagar e eles não se sentem mais à vontade como antes.

4.4.1 Alfabetizar-se para falar melhor

Além da menção à importância da oralidade no desejo por aprender a ler e

escrever, algumas outras coisas chamam atenção no grupo de alfabetizandos(zados) do

GAMI. Todos participam de alguma maneira de relações que envolvem algum grau de

letramento, e sua aspiração à alfabetização, mais do que a simples manifestação,

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reflete essa condição. Mesmo encontrando-se raros portadores de textos nas suas

casas, percebe-se alguma compreensão do mundo da escrita, assim como seu

envolvimento com formas de viver vinculadas à língua escrita, seja o marido ou um

vizinho que lêem jornal, filhos técnicos, filho que conhece os nomes de todas as partes

do corpo humano, o marido que vê filme com legenda, a neta universitária, o trabalho

numa escola.

A própria percepção de uma oralidade diferenciada se deve a uma

sensibilidade que teve como se aguçar ao longo dos tempos. Quando tomam

conhecimento de uma alfabetização de adultos, é como se tivesse chegado a sua vez:

depois de em crianças terem sido retiradas da escola pelos pais e de terem passado a

vida driblando o analfabetismo ou envergonhando-se, não haveria mais desculpas.

Uma vez freqüentando o curso do GAMI, descobriram-se gostando da situação de

aprendizagem e do próprio aprender. Aos atributos conhecidos de “cabeça ruim”, “não

dá para a coisa”, somou-se um evidente contentamento (o “colégio” que parece uma

igreja) e uma perseverança (“faltar, só por doença”, “iria mesmo se fosse longe”).

Quando na sala da Sociedade Recreativa, via-os na dúvida se abriam a janela para ter

claridade e congelavam com o vento gelado que vinha direto do rio, ou se

permaneciam no escuro, forçando a “vista fraca”; quando os via chegando para a aula

e a sala emprestada estando fechada, anunciando a peregrinação pelas longas ruas a

cata de lugar; quando um pacote de balas era considerado luxo e rapidamente

desaparecia, tive a curiosidade de compreender a fonte da motivação. Embora não

fosse novidade, ia percebendo que não há uma origem única, mas uma série de

condições: do apoio familiar a uma disponibilidade de tempo, passando pela

sociabilidade escolar, a vontade de mudar de condição e o papel da professora.

Por conta de viverem num lugar que demanda poucos usos e práticas

sociais de leitura e escrita, a condição de analfabetos se revela de maneira especial.

Pegar ônibus e evitar mostrar a identidade não era rotina para dona Ilda, e a cena que

mencionei lá no início, no cartório, se relacionava a uma testemunha de casamento,

fatos, enfim, de quebra do cotidiano. Não sendo tanto nos usos sociais, onde residiria a

exposição do analfabeto em Itapuã?

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A resposta volta a ser: principalmente na oralidade. Dona Erenita descobriu

que chamar o ônibus de caminhão a fazia diferente de quem sabe os nomes corretos

das coisas, aprendeu a conhecer a semelhança entre o “u” e o “l” na escrita de palavras

tão semelhantes. Dona Laura gostaria de falar bonito para que, se alguém a ouvisse,

não tivesse como saber se era analfabeta. Dona Lourdes se encoraja a falar mais nas

casas dos parentes na capital, e assim inspiram a professora a dizer que todas falarão

“como falam os doutores”. Assim, a professora, que pouco domina métodos de

alfabetização ou propostas mais progressistas, insere-se com seu desejo de ensinar no

desejo (com características específicas) daqueles alunos.

4.5. Eventos de Letramento

Morador do Beco do Cemitério, onde vive com a família extensa, Toró um

dia foi prestar pequenos serviços na casa de um excêntrico novo morador do Centro de

Itapuã. A relação com ele criou um circuito centro-cemitério. Isso porque,

inconformado em morar num lugar na proximidade física e no nome associado ao

cemitério, Toró entendeu que pelo menos o último poderia ser diferente. Decidiu por

sua iniciativa que a rua mais pobre de Itapuã deveria ter outro nome e a batizou de

Beco do Amor. Na outra ponta, Noé, o novo morador, vindo da zona sul de Porto

Alegre para se estabelecer em Itapuã, resolveu adiantar o futuro e construir seu próprio

túmulo no cemitério. Da associação dos dois desejos, surgiu o referido túmulo, pintado

de preto e amarelo, que Toró ajudou a construir, e surgiram pela vila placas que

anunciam a "nova rua", igualmente em preto e amarelo, que Noé ajudou a pintar.

Há coisas interessantes demais nessa história, que, como tantas outras de

Itapuã, por si já resultariam em um estudo de caso antropológico. O que mais chama

atenção, para efeitos desta tese, é a relação estabelecida entre o morador do Cemitério

e o morador do Centro da Vila. O primeiro manifesta o desejo, e o segundo o auxilia

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na forma de plasmar a intenção de alterar o nome estigmatizante: pintando as placas,

uma vez que apenas afirmar a existência do novo nome oralmente não lhes pareceu

suficiente. Se a mudança de uma rua numa cidade regulamentada implica um processo

burocratizado e por vezes lento, ali se planejou de forma individual (mas certamente

com o apoio do grupo de moradores) e se concretizou rapidamente por meio da

divulgação. Me interessou aqui que essa divulgação se deu pela escrita, a forma

reconhecida pelos "legisladores da rua” – muitos deles analfabetos - como capaz de

"oficializar" a mudança. E o responsável pela parte que coube à escrita foi o novo

morador da vila, futuro morador do cemitério, o agente da cultura letrada entre eles.

Não se deve desprezar a importância das placas, tanto que, provavelmente em razão da

mensagem contida nelas, a que foi pregada junto à Igreja Assembléia de Deus, não

durou 48 horas. As demais seguem espalhadas pela cidade anunciando a direção do

Beco do Amor.

Este fato, retirado do fluxo da vida cotidiana, destacado para análise e

associado aos papéis dos diferentes atores, pode ser considerado um evento com

múltiplas conotações: a tentativa de Toró e seu grupo de valorizar o local de moradia,

a importância do nome nessa relação com o valor do local, o sentido do próprio nome

escolhido (amor), o estigma do cemitério e da morte, ao mesmo tempo contestado pela

iniciativa de Noé e seu túmulo antecipado e alegre, e por fim, o que interessou aqui

destacar, o uso da escrita como a forma encontrada para marcar a nova posição. Essa

relevância que a escrita assumiu no processo pode permitir que se considere todo o

"fato social" aqui apresentado como um evento de letramento, isto é, um

acontecimento em que a escrita desempenha um papel crucial, vinculado a uma

história e a uma concepção social.

É com esse conceito de letramento como processo sócio-histórico, que por

conseguinte permeia os indivíduos de uma dada sociedade, atingindo a todo o grupo,

mesmo aos que não sofreram o processo de alfabetização e/ou de escolarização, que

procuro entender o momento atual da Vila de Itapuã. Ao não conceber o letramento

como um conceito neutro - entendendo, portanto, que ele é dependente do contexto,

em alguma medida, pontuado pela ideologia, pelas normas culturais locais, pelo

sistema de valores locais (Lankshear e Lawler, 1987) - a etnografia visou compreender

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o intrincado processo que se dá entre esses elementos locais que devem ser

reconhecidos e interpretados e sua relação com o letramento. E, ao vincular letramento

e os contextos de sua produção, aceito que não há letramento, mas letramentos.

Aqui é preciso apresentar uma breve explicação sobre os New Literacy

Studies (Novos Estudos de Letramento), a fim de que as críticas a eles possam fazer

sentido e a sua relação com o presente estudo fique clara. NLS pode ser considerada

uma escola, relativamente recente, constituída por pensadores de língua inglesa do

campo da lingüística e da antropologia, mas também da semiótica e da história. Alguns

deles são Heath (1983), Street (1984, 1993, 1995), Gee (1996), Barton (1994, Barton e

Hamilton (1998), e todos se incluem numa perspectiva chamada de "abordagem sócio-

cultural". Eles examinam minuciosamente os contextos locais em que se dão eventos

e práticas de letramento (conceitos que discutem), na defesa do postulado de que o

letramento não é um conceito homogêneo e de que existem letramentos locais, ou seja,

tais pesquisadores tomam letramento como práticas sociais de leitura e escrita,

decorrentes dos contextos em que são produzidas. Por esta razão, os estudos são feitos

com método etnográfico e em comunidades.

Para os NLS, a forma como lemos e escrevemos depende do contexto em

que o fazemos. E tudo isso, por sua vez, implica conseqüências para o meio social, ou

o local, como diriam. Decisões que precisamos tomar a todo instante quando estamos

envolvidos nos processos de leitura e de escrita são dependentes do contexto: as

intenções que temos, as condições em que nos movemos, a forma como o fazemos.

Por isso os New Literacy Studies se preocupam em entender ao máximo o contexto das

práticas de letramento: como as pessoas participam dos eventos de leitura e escrita,

com que recursos contam para isso, que práticas são mais conhecidas e empregadas e,

principalmente, que sentidos específicos encontram na escrita e na leitura. Não deixam

de examinar também o conteúdo ideológico do letramento e as implicações

decorrentes das suas especificidades.

Street, no texto What's 'new' in New Literacy Studies? Critical approaches

to literacy in theory and practice, tem dois objetivos, no mínimo. O mais importante

objetivo do texto de Street é partir das críticas que receberam os NLS, críticas essas

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que apontaram que pode ser uma perspectiva limitada e limitante aquela que se detém

na análise do "local" que teria sido supervalorizada pelos NLS. Na fase atual, que seria

o que haveria de novo nos "Novos Estudos de Literacy", esse tipo de pressão além de

enriquecer o debate, leva os NLS a ampliar seu campo de estudo, restabelecendo o elo

do letramento local com o "distante". Compreende-se que, num primeiro momento, o

objetivo de tais estudos foi justamente chamar atenção para o local quando o conceito

de letramento parecia excessivamente generalizante. E no momento atual volta a ser

necessário o contexto mais amplo ou o elo com tal contexto. Street aceita as críticas e

defende os NLS:

"As preocupações de Brandt e Clinton com a ênfase exagerada que teria o "local" em alguns trabalhos dos NLS; seu reconhecimento de que as literacies com que se envolvem vêm de outros lugares/origens e não são auto-inventadas; e de que há mais coisas acontecendo em uma literacy local do que "simplesmente práticas locais" são todas advertências importantes para impedir que os NLS enfatizem e romantizem demais o local, como vêm sendo acusados de fazer (cf resposta de Street a McCabe, 1995 in Prinsloo e Breier, 1996). Mas esse debate importante pode ter continuidade sem que se precise chamar o literacy "distante" de "autônomo", como Brandt e Clinton sugerem em sua tentativa de abordar certos aspectos autônomos da literacy sem apelar ao "modelo autônomo" da literacy. Na verdade, as características das literacies distantes não são mais autônomas do que as das literacies locais, ou mesmo do que qualquer prática de literacy: seu distanciamento, seu poder relativo sobre as literacies locais e seu caráter "não inventado" em relação a usuários locais não as tornam mais "autônomas", e sim apenas "distantes", "novas" ou hegemônicas. Para estudar esse processo, precisamos de uma base/estrutura e de ferramentas conceituais que possam caracterizar o relacionamento entre local e "distante". Penso que a questão levantada nos primeiros trabalhos dos NLS com relação a como se pode caracterizar a mudança, da observação dos eventos de literacy à conceituação das práticas de literacy proporciona, sim, uma forma metodológica e empírica de lidar com essa relação e, sendo assim, dar conta das preocupações de Brandt e Clinton com as 'limitações do local'." (Street, 2003, p. 32. tradução minha)

Na vila de Itapuã, entendo que a chegada do asfalto e a implementação do

Parque Estadual, unidade de conservação da biodiversidade local, representam a

chegada de uma determinada “modernização”. Essa modernização (que não acontece

sem conflitos e contradições e nem linearmente) criou condições de possibilidade para

eventos de letramento, e esses, ao aumentar o grau de letramento local, vêm

favorecendo algumas alterações no panorama do lugar, dentre as quais, a própria

gênese do GAMI e, a partir dele, a classe de alfabetização. Quero evitar, porém, a

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relação direta entre alfabetização e letramento, mas entendê-los por meio da

compreensão desse jogo, como ao mesmo tempo distintos e intercambiáveis, ou como

citado anteriormente, “processos interligados, porém separados enquanto abrangência

e natureza” (Tfouni, 1997, p. 24-5).

Os alfabetizandos do GAMI parecem buscar inserir-se socialmente

sobretudo neste momento. Alfabetizar-se talvez seja a estratégia pela qual esses

sujeitos passam a fazer parte da cultura escrita que começa a tomar forma, na medida

em que o valor paraíso ecológico é um valor da cultura letrada e passou a ser o

atrativo (assumido) do local para alcançar um destaque positivo na comparação com

outras cidades da Grande Porto Alegre, mais urbanizadas e industrializadas. Esse

momento acabou por servir de motivação para se inserirem num projeto de

alfabetização quando a escrita vai assumindo papéis crescentes na vida local e sendo

reconhecida como algo que dá "autoridade", a exemplo das placas do Beco do Amor. A

proximidade que se tornou maior com a capital a partir do asfalto trouxe novos

moradores, fazendo maior uso da escrita e com uma oralidade diferenciada, porque

mais permeada pela cultura escrita.

Vejo, então, a classe de alfabetização como uma das medidas resultantes

dos valores que passaram a circular na Vila, na medida em que se torna mais letrada

do que era antes dos eventos de letramento (em sentido amplo): a chegada do asfalto e

a consolidação do Parque de Itapuã. Os alunos reconhecem essa diferença e querem

inserir-se, querem ler, mas querem também “saber falar”, “falar melhor”, “falar

bonito”, “falar como qualquer doutor”.

O outro objetivo de Street no já mencionado artigo é apontar o estado da

arte dos NLS, assim como historiar o surgimento de novos termos e expressões,

reveladores de diferentes nuanças em literacies (dando por óbvia a aceitação nos

meios acadêmicos da existência de múltiplos(as) literacies). Ele volta a afirmar que o

modelo ideológico (alternativo ao modelo autônomo) oferece pontos de vista mais

culturalmente apropriados ao reconhecimento das práticas de letramento. Antes

defende que o modelo ideológico parte de diferentes premissas em relação ao

autônomo, isto é, ele postula que a literacy não é simplesmente uma habilidade neutra

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ou uma técnica, mas uma prática social. Uma vez que entende que as maneiras pelas

quais as pessoas ingressam na escrita e na leitura estão enraizadas em concepções de

conhecimento, identidade e de ser. Assim também os efeitos do ingresso na leitura e na

escrita dependem dos contextos específicos em que tais pessoas estão imersas.

Então volta a apresentar a distinção entre "eventos de letramento" e

"práticas de letramento", pois, como afirma, os pesquisadores dos NLS se recusam a

ter como objeto simplesmente o termo literacy, dada a variedade de acepções

possíveis, uma vez que correspondem a diferentes contextos. Daí o uso de termos

alternativos que, colocados no lugar de simplesmente literacy, dariam conta da idéia

de variação: eventos de letramento e práticas de letramento seriam úteis para isso.

Eventos de letramento seria a locução usada primeiramente por Anderson

(1980) e seriam definidos como “a ocasião durante a qual uma pessoa tenta

compreender signos gráficos”. Shirley Brice Heath, depois, caracterizaria eventos de

letramento como "qualquer ocasião na qual a escrita cumprisse um papel dominante na

natureza da interação entre participantes e seus processos interpretativos". Street a

seguir diz que para ele as práticas de letramento seriam práticas sociais e concepções

de escrita e leitura, porém mais tarde criou o termo para dar conta dos eventos de

Heath e dos modelos sociais de letramento em que participantes interagem com a

leitura e escrita.

Estou utilizando aqui a idéia de “eventos de letramento” concebendo evento

numa dimensão mais macro do que a concepção utilizada por Kleiman que chama de

evento de letramento, por exemplo, a leitura de histórias infantis para as crianças

dormirem (Kleiman, 1995, p. 18). A expressão “eventos de letramento” tem em Heath

(1983) sentido semelhante, isto é, seriam atividades específicas em que a escrita e a

leitura desempenham um papel. Para Heath, os eventos seriam constituídos pelas

ocasiões concretas nas quais a língua escrita está vinculada à natureza das intervenções

dos participantes, suas estratégias e seus processos interpretativos. Penso que melhor

do que o termo “eventos”, a idéia de “situações” parece mais apropriada a estas

descrições. Street (1993, p. 40) exemplifica eventos de letramento utilizando o caso de

uma exposição oral, em que o apresentador fala, mas também lê algumas de suas

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anotações, mostra outras no projetor, enquanto a assistência seleciona dados e os

anota, olha um pouco para o projetor depois abaixa a cabeça, escreve, lê suas próprias

anotações, volta a ouvir, a ler o que está projetado, enfim, todo um cenário em que a

leitura e a escrita cumprem um papel central.

Entretanto, embora entendendo que essa é uma noção útil, a que pretendi

utilizar nessa pesquisa ultrapassa tal dimensão concreta do papel da leitura e da escrita.

Pretendo direcionar a idéia de eventos de letramento rumo a um nível maior de

abstração, razão pela qual gostaria de dar-lhes um significado mais próximo ao que

Street (1995) confere ao que chama de “práticas de letramento”, que inclui modelos

sociais e culturais que dão sentido aos usos da leitura e/ou da escrita, que ajudam a dar

forma ao modo como os comportamentos e os significados que os acompanham são

relacionados ao uso da leitura e da escrita (Street, 1995, p. 2).

Evento no dicionário Houaiss (2002, p. 1277) tem os seguintes significados:

1. acontecimento ger. observável; fenômeno 2. B acontecimento (...) 7. LING fato, processo, expressos por um verbo ou por um substantivo verbal que denota ação. ETIM lat. Eventus, us ‘acontecimento, sucesso,...

Utilizarei o termo eventos de letramento num sentido que remete a fatos ou

acontecimentos que concorrem para o letramento, e neste caso, caberia no conceito de

eventos de letramento qualquer acontecimento que interfira nos contextos locais na

direção de elevar níveis de letramento, ou antes, de conferir determinado sentido à

leitura e à escrita.

Parque + asfalto ↑grau de letramento (ecologia/proximidade com a capital) → GAMI → classe de alfabetização (Eventos de letramento)

O que significaria este quadrinho, com suas flechinhas que sugerem relação

direta de causa e efeito? Quando cheguei a este ponto da tese, pensei em dedicar um

capítulo especial ao asfalto, uma vez que ele assumiria uma tal relevância no

argumento. Para não repetir o que já tivesse escrito, utilizei a ferramenta de busca do

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Word com a palavra asfalto. Como resultado do passeio pelo texto, notei que a menção

ao asfalto acontecia a intervalos médios, e assim achei que não havia sentido em retirar

os conteúdos sobre o asfalto dos locais em que ele parecia tão bem “assentado”. O

assunto asfalto está disperso “trecho a trecho” nesta tese, imitando o modo da sua

implementação no braço da RS 118 que chega a Itapuã. Convicta de que essa era a sua

melhor colocação, decidi deixar como está, apenas lembrando que o asfalto foi desejo

da comunidade, que demorou muito tempo e que só avançou por conta da abertura do

Parque de Itapuã.

Também já foi dito aqui que o Parque representou finalmente uma ação que

trouxe alguma positividade à Vila, depois de uma longa história de ações do poder

público que sempre supunham Itapuã como um local de depósito, despejo ou de

abandono. A primeira relação com a área do Parque, quando seus moradores

tradicionais foram expulsos e acabou um certo turismo de verão, foi de indignação. Só

quase uma década depois desse fato é que o Parque, ao ser aberto com boa infra-

estrutura e capacidade de gerar empregos locais, foi reclassificado no pensamento

itapuense. Além disso tudo, foi ele o grande impulso para o avanço do asfalto.

Voltando à questão das flechinhas, se poderia perguntar: sempre que

tivermos abertura de parques ambientais ou asfaltamentos, teremos ampliação de

letramento? Naturalmente que a resposta é “não necessariamente”. Com isso, quero

reforçar a idéia de que não se devem considerar relações de causa e efeito no esquema

acima.

Determinados eventos são mediados ou conseqüentes da cultura escrita, do

texto (ainda que aparentemente pouco ou nada relacionados de maneira direta com

ela), e deles decorrem as práticas de letramento. Neste caso, é que se torna possível

considerar o Parque e a chegada do asfalto como eventos que de alguma forma se

relacionam com a cultura escrita ou são por ela atravessados. O que significaria isso?

Que toda a movimentação em torno do Parque gerou um novo universo de

preocupações, de novidades, de reversão de idéias até então sedimentadas, de

penetração gradual na comunidade de outras formas de pensar o mundo, diferentes das

que eles tinham até então. A relação que o itapuense mantinha com a natureza era de

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exploração no sentido da extração de pedra, da derrubada de árvores, das queimadas,

do derramamento de óleo dos barcos nas águas, de descaso com o lixo, da pesca e da

caça sem regulação.

O fechamento do Parque impôs, num primeiro momento de forma

arbitrária, um padrão de relação com a natureza diametralmente oposto ao que se

costumava ter em Itapuã. Depois, as equipes de implementação se renovaram e, sem

abrir mão dos preceitos ecológicos, foram incluindo os moradores na missão de

conservação do Parque, chegando a ponto de treiná-los e empregá-los na defesa da

natureza do Parque na condição de condutores locais. Na época de sua abertura, o

Parque chegou a ser o segundo empregador da região, só perdendo para uma empresa

criadora de frangos. Enquanto isso, internamente as diferentes correntes de ecologistas

disputaram ferrenhamente por suas posições, cujo ponto de conflito maior era se o

Parque deveria ser de preservação ou de conservação. Em sendo de conservação, as

possibilidades de abertura à visitação seriam muito mais restritas. Preponderou a

ecologia mais moderada.

Comentei esse fato porque os itapuenses foram expectadores dessas e de

outras discussões. Mas foram expectadores de mais informações. A área de influência

dos condutores empregados no Parque era grande. Se contarmos parentes e vizinhos,

praticamente toda a vila se viu envolvida na questão ecológica que pautava a discussão

sobre a sua maior área verde pública. Grupos de ecologistas decidiram fazer trabalhos

de conscientização ambiental em escolas da região. Enfim, um sem número de

iniciativas acabaram pulverizando sobre a vila diferentes entendimentos em relação à

natureza.

Essa forma de relação com a natureza parte de típicos representantes da

cultura letrada: técnicos, universitários, professores. Itapuã foi notícia em periódicos

de vários lugares do país. Tudo contribuiu para que o discurso ecológico fosse

penetrando gradativamente até ser em definitivo incorporado no discurso do morador.

Como já dito e até mostrado aqui, mesmo que a prática não o reflita de forma plena, o

itapuense sabe falar sobre a ecologia e gosta de falar sobre a natureza, que agora

defende.

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O asfalto tem um outro componente: ele facilita a ida a Porto Alegre, uma

capital em que a presença da escrita é considerável. E facilita a vinda a Itapuã dos

porto-alegrenses que criam diferentes demandas e trazem novos discursos.

Enfim, a soma e a combinação desses eventos de letramento se poderiam

considerar como uma conjuntura de letramento.

Nos depoimentos de alguns dos alfabetizandos do GAMI, mostrei a sua

percepção dessas formas de expressão dos mais letrados. Sucede que de forma não

automática, não visível, não explícita, tentei mostrar que a alfabetização do GAMI não

surge por geração espontânea, mas brota de um tal contexto, assim como o desejo pela

alfabetização dos seus alunos também se vincula a esse contexto. O que quero dizer é

que:

1. considero a iniciativa de alfabetização do GAMI bem sucedida, tanto

porque a grande maioria dos alunos está lendo e escrevendo, como porque

2. os que não estão lendo e escrevendo nem por isso pretendem desistir, e

seus tempos de permanência atestam que não desanimam,

3. e, por fim, a sala de aula da alfabetização é o ambiente letrado que eles

querem freqüentar.

Atribuo esse sucesso a uma concepção de alfabetização que está vinculada a

um contexto de aumento de letramento visto na sua natureza sócio-histórica, ao fato de

que o curso não foi instituído por uma iniciativa de alguém que decidiu alfabetizar,

mas foi instituído por uma pessoa que percebeu a demanda do curso, ou seja, ele não

vem de cima para baixo.

Terminarei este capítulo tentando responder à pergunta de Trindade, feita

na defesa do projeto desta tese:

Acreditas haver uma sobreposição entre letramento concebido como capacidade individual e como prática social, de modo que aparecem alinhados na análise as duas dimensões: competência da leitura e da escrita e prática social da leitura e da escrita (p. 48). Sublinhas, então que, para Tfouni “a alfabetização pertence ao âmbito individual por se referir á aquisição da escrita como aprendizagem de habilidades para leitura e escrita”, enquanto “pertencem ao sentido do letramento os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita” (p. 50). Dessa forma, pode existir o analfabetismo absoluto (se considerares este como pertencente ao âmbito individual), mas não o iletrismo (considerando este como

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pertencente ao âmbito social) (p. 51). Compreendes, assim, que o letramento do modelo autônomo (vinculado estritamente à escrita) restringe o letramento a uma prática individual escolar (alfabetizar letrando) enquanto o letramento do modelo ideológico considera as práticas de letramento como culturais e permeadas por estruturas de poder (p. 52). Observas, então, que “o modelo ideológico e o significado dos eventos de letramento são fundamentais para este projeto [o teu projeto de pesquisa!], uma vez que a etnografia busca revelar eventos na Vila de Itapuã” (p. 52). Pergunto, então: o GAMI, com sua/s turma/s de alfabetização, estaria mostrando uma prática individual de alfabetização ou uma prática social de letramento? Teria como referência um modelo autônomo ou ideológico? Street (1995), que criou estes modelos, acredita que o modelo ideológico inclui o modelo autônomo.”(Trindade, 2004. p. 4)

Essa pergunta de certa forma norteou a pesquisa realizada no último ano. E

o sentido dessa pesquisa foi justamente mostrar a relação entre os dois conceitos,

quando entendo que a alfabetização, essa prática individual, pode ser mais bem

sucedida se estiver associada a um contexto de letramento, referenciado no modelo

ideológico, que aqui chamei de conjuntura de letramento, dado que a conjuntura diria

respeito à soma e combinação de eventos de letramento. Que não precisam ser estes

eventos encontrados em Itapuã... que até mesmo possam ser eventos menos

espontâneos, desde que não faltem às pessoas uma mínima imersão na cultura letrada e

as demandas que ela traz.

De outro lado, alfabetizar pessoas não inseridas nessa cultura letrada

equivale a alfabetizar por alfabetizar, ou alfabetizar para obter índices de

desenvolvimento ou alfabetizar para defender posições políticas. Claro está que numa

sociedade como a nossa ninguém deixa de se beneficiar particularmente se puder ler e

escrever. Entretanto, como manter lendo e escrevendo quem não vir, por si próprio,

sentido em ler e escrever?

4.6 Conclusão

Tive por objetivo neste capítulo apresentar os resultados de uma reflexão

sobre fatos acontecidos em Itapuã, relacionados a um grupo de alfabetização.

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Apresentei neste capítulo uma breve discussão sobre conceitos tais como

eventos de letramento, práticas de letramento e conjuntura de letramento.

Mas enfim, para essa pesquisa, as noções de eventos de letramento ou de

conjuntura de letramento puderam ajudar a compreender um processo instaurado em

Itapuã, nos seus tempos mais recentes. A compreensão desse processo demanda, por

sua vez, no acompanhamento de tais momentos e em que eles se diferenciam da

história anterior da região.

Iniciei mostrando que Itapuã apresenta poucas iniciativas de ensino que não

sejam da rede pública. Por outro lado, a penetração do pensamento ecológico inaugura

um tipo de aprendizagem que se disseminou intersticialmente, chegou ao cancioneiro

popular, às festas comunitárias, se integrou no projeto emancipatório. Tendo uma

economia muito precária, a relação com a natureza a torna, segundo os articuladores

da emancipação, a “capital do ecoturismo”, ainda que só muito lentamente aconteça a

incorporação às práticas cotidianas. Nessas, visei incluir como manifestações de

letramento as reiteradas menções à necessidade de um livro que conte a história de

Itapuã, as placas do Beco do Amor, e o próprio jornal do GAMI.

Tal conjuntura, no entendimento aqui defendido, criou as condições de

surgimento do GAMI. E o GAMI percebeu a necessidade de incluir a alfabetização na

sua atuação, o que fez por iniciativa própria a partir de 2002, ativando um tímido

grupo de pessoas maduras que viveu a vida sem ler e escrever. 2002, 2003, 2004, o

curso seguiu, com um grupo mais ou menos fixo, alguns aprendendo a ler e a escrever

e persistindo, forçando a professora a preparar aulas diferenciadas a novos integrantes

a cada jornada. Ao mesmo tempo que confrontava seus alunos com suas condições de

analfabetos, também os erguia ao demonstrar esforço e encarar com bom humor as

dificuldades que os igualavam.

Bastava para meu propósito refletir sobre o surgimento desse Grupo como

um dos resultados do avanço do processo de letramento. Para minha surpresa, porém,

os alunos mesmos verbalizaram o desejo de falarem melhor para estarem à altura do

novo momento da Vila e da afluência de pessoas de fora, reconhecidos como mais

letrados, o que para eles significa falantes qualificados, ou pessoas que sabem ler e

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escrever...bem. Entendi essa sensação como a pressão do encontro do moderno com o

tradicional, que foi lido aqui em termos do conceito de letramento na sua natureza

sócio-histórica. Assim, acontecimentos como a chegada do asfalto e a abertura do

Parque de Itapuã, que nessa conjuntura específica tiveram o papel de aumentar o grau

de letramento, foram por isso compreendidos como eventos de letramento.

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CONCLUSÃO

Com certo atraso, a modernidade chega à Vila de Itapuã. O asfalto, luta

antiga da comunidade junto ao governo estadual, foi sendo colocado num ritmo tão

lento como o da vida itapuense. Isso que veio pelo impulso dado pelo estabelecimento

do Parque de Conservação Ambiental. Ocorre que lá pelas tantas, ainda não bem

completo, chegou.

Assim o povoado, que se localiza antes do Parque, já usufrui do asfalto e,

com isso, a sensação de isolamento se atenuou. A Vila vai se sentindo integrada ao

mundo moderno. É interessante observar, neste sentido, que a pavimentação uniu

Itapuã à capital Porto Alegre e não à sede municipal, Viamão. Ou seja, esse mundo

moderno é a capital. Além da ligação pelo asfalto, que facilita ao itapuense vir a Porto

Alegre, o Parque representou o atrativo na direção inversa: o porto-alegrense vai a

Itapuã.

Um grupo de mulheres, com perfil muito diferente da prenda, que empunha

a bandeira ecológica com ação concreta (triagem do lixo, que nem a sede do município

faz) só consegue espaço, ou até mesmo decorre, de uma mudança cultural em curso.

Diferencia-se dos outros grupos de mulheres do lugar desde a presença no nome da

qualificação de “atuante”, Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã, o que resultou na

sigla GAMI. Além da separação do lixo, instituiu um curso de alfabetização de

adultos, sem qualquer apoio externo, de governos ou entidades.

A alfabetização começa modesta, e em pouco tempo, pelo crescimento da

procura, abre duas turmas para diferentes níveis, é freqüentada por mulheres, mas

também por homens, que vêm de todas as partes. Nada parece causar desânimo nos

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alunos, que estudam e se socializam nas trocas. Precisaram dessa motivação para

terem persistido sem as mínimas condições materiais, itinerando sem sede, ora num

salão congelado, ora numa sala apertada sem ventilação. No segundo ano, chegou a

haver lista de espera. Não pagam qualquer taxa, e o salário da professora (um terço do

salário mínimo) é pago pela coordenadora do GAMI.

O que buscam estes alunos ao enfrentar tantos desafios, os desafios

esperados em todas as classes de alfabetização de adultos, e os específicos das

condições oferecidas pela alfabetização do GAMI? Defendi a idéia de que buscam a

inserção numa mudança cultural em curso na Vila, um processo crescente de

letramento, tal como o defende Leda Tfouni (1997) isto é, como processo sócio-

histórico.

A esse percurso da comunidade, não linear, não isento de contradições (e

que permitiu que o “grupo de mulheres atuantes” ganhasse espaço na rádio

comunitária) que estou chamando de letramento. Foi-se criando ali uma necessidade

de relacionamento com as formas de pensar típicas do mundo letrado. Este sentido

conferido ao mundo letrado é o precursor da ambiência que dará condições para a

origem do grupo de mulheres, que, por sua vez, criou uma experiência de alfabetização

de adultos. Uma outra maneira de pensar o mundo toma forma na Vila a partir da

perspectiva instaurada pelo Parque e da ligação a Porto Alegre, razão por que passo a

chamar a chegada do asfalto e a abertura do Parque de “eventos de letramento” [menos

no sentido que Heath (1983) e Kleiman (1995) conferem à expressão, mas mais

próximo ao significado de práticas de letramento tal como definidas por Street (1993)].

Dentro dessa perspectiva, é que foi possível falar em “eventos de

letramento”, acontecimentos e circunstâncias que criam condições favoráveis à

emergência e estabelecimento de um pensamento tipicamente letrado ou decorrente do

pensamento vinculado a leitura e escrita. A soma e a combinação de tais eventos

criariam uma conjuntura, aqui chamada de conjuntura de letramento, por meio da qual

se poderia perceber o estado de um local como de estabelecimento de relações sociais

e ambientais cada vez mais atravessadas por uma forma de pensamento letrado.

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Tais fatos, Parque e asfalto, em outros contextos, poderiam ter outro sentido

ou serem apenas fatos. Neste contexto marcado por uma história particular, por uma

conformação geográfica particular e por sua própria constituição (como apresentadas

antes), podem ali ser considerados eventos de letramento, quando talvez não o fossem

em outros contextos. Talvez se possa considerá-los frutos de uma modernidade

“tardia”, permeada por um discurso progressista ecológico, não necessariamente

genuíno, mas que passou a fazer sentido como um discurso alternativo, no amálgama

que se produziu quando esse discurso se encontrou com as pré-condições do lugar.

Com ele, o itapuense faz frente à ex-condição de lugar renegado.

Roque Moraes (2002) sustenta, em artigo sobre metodologia de pesquisa,

que somente no ponto final se atinge a clareza do ponto de interrogação inicial. O

objetivo do seu texto é tranqüilizar o pesquisador em relação à insegurança sentida nas

fases iniciais e intermediárias da pesquisa qualitativa, quando o objeto de pesquisa

ainda está em construção. Próxima do ponto final, reconheço que a interrogação

inicial se fez mais clara, ou talvez somente agora tenha condições de formular uma

questão de pesquisa, que, se a tivesse feito lá no início, no dia em que assisti à primeira

aula da alfabetização das mulheres do GAMI, teria por certo tido muito mais

facilidades nessa jornada em campo.

Chego ao final da tese tendo aprendido muitas coisas, tendo adotado um

conceito de letramento para explicar a situação que me propus entender, tendo

proposto assim uma alternativa para compreender uma pequena comunidade rural do

sul do Brasil. Um lugarejo e suas singularidades, que carrega as marcas residuais do

isolamento a que foi relegado, e uma alteração para melhor. Ao longo desse processo,

Itapuã passou a se autodefinir como capital do ecoturismo, tal o ponto a que chegou,

no seu imaginário, a relação com a ecologia, deixando para trás a história das perdas e

da exclusão, substituindo o antigo desejo por “progresso”, fábricas, indústrias,

edifícios. Restam muitas lutas a serem travadas na direção de tornar essa identidade

ecológica mais real, desde uma alteração nas práticas dos moradores, até as iniciativas

do poder público como recolhimento mais sistemático de lixo e saneamento básico.

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Acompanhando esse percurso da história recente do lugar, tentei entender a

iniciativa de um grupo de mulheres que se associam e que, partindo do pátio da casa

de uma delas, onde separam lixo, chegam a construir um grande galpão, implementam

uma classe de alfabetização, mantém um programa de rádio e lançam um jornal, tudo

por seu esforço.

O sucesso da iniciativa de alfabetizar do GAMI é atribuído a alguns fatores

identificáveis. Primeiramente, aos eventos de letramento, por tudo o que já foi exposto,

com o que concorda Craidy ao sustentar que “a alfabetização é um processo lento,

longo e que depende dessa inserção no mundo da escrita para se manter. Senão a

pessoa aprende o código, depois retrocede e se torna incapaz em poucos meses.”

(Craidy, 2003, p. 10)

Segue-se a isso, o entendimento de que, para os alunos do GAMI, a sala de

aula (que eles chamam de “colégio”) é a síntese do mundo letrado que, ao ser

freqüentada, coloca-os em relação com o novo momento de Itapuã. Esse novo

momento foi revelador de que oralidade e letramento não devem ser colocados em

oposição. Alguns dos alfabetizandos, cujas histórias também carregam as marcas da

exclusão, declaram perceber que sua forma de falar é reveladora do analfabetismo e

que falar melhor é um dos motivos por que querem aprender a ler e a escrever.

Defendi a tese de que a penetração do pensamento ecológico se deu pelo

processo de implantação do Parque de Itapuã, o que concorreu para o avanço de um

pensamento típico da cultura escrita. Contribuiu para esse avanço do pensamento

letrado a afluência de pessoas da capital e de outros turistas, além da facilidade de os

itapuenses irem a Porto Alegre, ambos fatores relacionados ao asfaltamento da estrada.

Dona Erenita morou em Porto Alegre, Dona Lourdes trabalhou toda a vida

em escola, Dona Ilda e Dona Laura são as únicas analfabetas da família. Viveram sem

saber ler e escrever, mas correram ao GAMI quando apareceu a oportunidade. Querem

se tornar falantes e querem se tornar leitoras. Tentei mostrar como a concretização de

suas alfabetizações veio a se concretizar pela oportunidade oferecida pelo GAMI, mas

que por certo não foi a única ou mesmo a primeira nas suas vidas. Sucede que a

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conjuntura de letramento que concorre para o surgimento do GAMI também concorre

para que elas tenham se mobilizado.

As pessoas se alfabetizam na medida em que sofrem um processo de inserção cultural no mundo alfabetizado. Então, ser alfabetizado não é simplesmente dominar o código alfabético, o código escrito. Alfabetizar-se é se inserir em um processo de relações culturais, onde a língua escrita tem um significado maior e ler e escrever é importante na forma de viver, na forma de pensar, na forma de relacionar-se. (Craidy, 2003, p. 11)

Apresentei antes o texto em que Street mostra as críticas que os New

Literacy Studies vinham sofrendo. Ele não responde, porém, a críticas de outra ordem,

como a feita por Stromquist (2001), segundo a qual os NLS apresentam uma

característica politicamente improdutiva, isto é, a afirmação de que, uma vez que

existem diversos tipos de letramento, o domínio da palavra impressa é apenas uma

possibilidade num conjunto maior, de certa forma assim o desprezando. Para

Stromquist (2001, p. 310), "isto está em desacordo com posições que vêem o domínio

da palavra impressa como uma habilidade crucial no lidar com instituições sociais

crescentemente complexas".

Não foi por certo a intenção do presente estudo, dado que, se obviamente

não me alinho com a depreciação dos analfabetos, tampouco pretenderia louvar essa

condição. Pelo contrário, vejo com otimismo o desejo das pessoas que buscaram a

alfabetização, sua confiança nos benefícios que ela traria a sua vida prática, mas

também simbólica. Penso que há poucos prazeres tão bons e baratos quanto os que

proporciona a leitura de um bom livro e penso que qualquer pessoa, em qualquer

cultura, tem o direito de se beneficiar dele. Aqui me filio conscientemente no que

Macedo (2000) chama de "abordagem romântica de leitura", discordando da forma

como é por ele caracterizada (isto é, abordagem que deixa de problematizar o conflito

de classe e as desigualdades de sexo e raça; ignora o capital cultural dos grupos

subalternos, supõe que todos tenham igual acesso à leitura, enfim, tenderia a

reproduzir o capital cultural da classe dominante por a leitura estar a ela vinculada).

O romance Balzac e a Costureirinha Chinesa, de Dai Sijie, filmado em

2002 pelo próprio autor, mostra como a literatura e a imaginação por ela despertada

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podem mudar o pensamento e a vida das pessoas. É uma ficção com a qual se

identifica quem quer que um dia tenha sentido a felicidade da descoberta da boa

literatura. Chamar essa visão de “abordagem romântica”, entendendo-a alienada, só

pode partir de quem nunca se concedeu o direito de ler por prazer, o que a chinesinha

do campo de reeducação maoísta pôde fazer.

Preconceito seria achar que a leitura de livro é um prazer determinado

socialmente. Lamentáveis me parecem as intenções de alfabetizar as pessoas para

melhorar índices indicativos de desenvolvimento, alfabetizar para que as pessoas

possam pegar ônibus ou para dar conta de lista de compras e outros objetivos

pragmáticos que, sem negar sua utilidade em variadas circunstâncias, são um

subaproveitamento da leitura e da escrita, que se torna mais absurda ainda se pensada à

luz da dificuldade que representam os estágios iniciais a tanto custo suplantados pelos

neoleitores. Alfabetizar com tomada de consciência é bom, desejável, serve aos

interesses das “classes subalternas”, mas ainda é pouco. Faz parecer que neste mundo

a fantasia e o sonho vão ficando para trás e somente as utilidades práticas podem ser

valorizadas.

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ANEXOS PARECERES DA BANCA DE QUALIFICAÇÃO ABRIL/2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

PARECER SOBRE A PROPOSTA DE TESE “EVENTOS E CONJUNTURA DE LETRAMENTO: A VILADE ITAPUÃ E OS ALFABETIZANDOS DO GRUPO ATUANTE DE MULHERES”, DE MARIA DE NAZARETH AGRA HASSEN PROFA. NORMA REGINA MARZOLA Mais do que um apanhado sobre o conjunto da proposta, proponho-me fazer alguns apontamentos críticos sobre algumas questões enfocadas no trabalho, no sentido de contribuir para a discussão de pontos que considero relevantes para a realização da tese. Deixo a critério de Maria Nazareth e de sua orientadora, profa. Carmem Craidy, o aproveitamento dessa contribuição. - A autora toma como ponto de partida de sua pesquisa os estudos existentes sobre

oralidade e cultura escrita [literacy] (pp.26/27). Minha sugestão é que, além disso, trate-se de como esta problemática aparece e é desenvolvida no Brasil. O interesse pelo estudo da literacy passa a se ampliar, no Brasil, no início da década de 90 [indícios: aparecimento da coleção “Múltiplas Escritas”, da Editora Ática, dirigida por Emilia Ferreiro; a discussão sobre a tradução do termo inglês literacy (alfabetismo, letramento, literácia), com a posterior hegemonia do termo “letramento”, um termo antigo ressuscitado a partir de uma perspectiva lingüística (Magda Soares & CEALE, da UFMG) conjugada a uma visão culturalista baseada em Vigotski e Bakhtin (Kleiman, Rojo, etc., da UNICAMP). Tal hegemonia, no meu entender, despolitizou o debate, reduzindo-o a uma discussão sobre a questão da escolarização do letramento.

- O raciocínio por oposição, tal como aparece nas páginas 31-32, é central na

racionalidade moderna (ver crítica pós-estruturalista de Jacques Derrida: “A estrutura, o signo e o jogo do discurso das ciências humanas”, in A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995, pp.229-249). A oposição oralidade/escrita, realizada por Walter Ong e consagrada como a “grande divisão” (the great divide) por Brian Street foi ampla e competentemente criticada por Street. (O Webster traduz divide por divisão, partição: por que traduzi-lo por “divisa”, que quer dizer fronteira, demarcação? (Ver crítica de Street a Ong in Social literacies. London: Longman, 1995, pp. 153-159).

- A afirmação (p.34) de que “a partir de um mesmo alfabeto, existem várias línguas” leva

ao entendimento de que a racionalidade não é do alfabeto em si ou da escrita alfabética, mas é imposta pela língua. É esta que, em relações de poder e como efeito dessas relações, usa o alfabeto (como peças de um jogo) de uma determinada maneira (gramática) e é essa maneira, presente também e primeiro na língua oral, que produz, regula e até mesmo altera essa racionalidade. Como essa maneira está presente tanto na oralidade como na escrita, não haveria a “grande divisão” preconizada por Ong.

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- A ênfase na invenção da imprensa (um lugar comum), na p.34, esquece as condições que determinaram a existência do livro e a necessidade do seu surgimento: a arquitetura da página que possibilitou que o texto se tornasse inteligível (ver Ken Morrison, “Estabelecendo o texto: a institucionalização do conhecimento por meio das formas históricas e filosóficas de argumentação”. In: Bottéro, J. & Morrison, K. Cultura, pensamento e escrita. São Paulo: Ática, 1995, pp. 141-199).

- A relação entre a escrita e o computador é muito mais complexa do que a referida na

p.35. Da forma que está, uma máquina de escrever dá conta do recado. Também nela “correm palavras e linhas”.

- Penso que é preciso criticar a retórica da alfabetização, que de certa forma é

reproduzida na p.35: o significado da autonomia como auto-nomos, auto-disciplinamento, auto-regulação, internalização da regra (Piaget: O julgamento moral da criança). Após fazer a crítica dessa retórica, quando ela se concretiza nas chamadas “campanhas de alfabetização”, a autora defende a possibilidade de “uma mudança de estatuto ou de aquisição da cidadania” (como se a cidadania fosse uma coisa adquirida: quem nasce numa sociedade de direito, nasce cidadão e deve, isso sim, assumir sua relação com o Estado) desde que ela esteja “associada a outros fatores”. E vai buscar Paulo Freire (p.36) para dizer que a alfabetização “deve vir acompanhada de uma tomada de consciência, de leitura da realidade social que permita ao sujeito a intervenção transformadora”, sem problematizar minimamente os conceitos aí envolvidos: “tomada de consciência”, “leitura da realidade social”, “sujeito”, “intervenção transformadora”. Toma-os no sentido do senso comum, como se eles fossem evidentes por si mesmos, sem ao menos tentar exercitar o que preconiza na parte inicial do trabalho: “fazer exótico [estranhar] o familiar”.

- Ainda na p.36, baseia-se em Macedo para “tomar a alfabetização como forma de

política cultural” (de quem?). Dizer que a alfabetização é uma forma de política cultural significa dizer que ela tem o poder de transformar [uma prática: “aquilo que se faz”, segundo Paul Veyne], de uma forma cultural, as pessoas, ou seja, de integrá-las à cultura dominante. E ao definir a alfabetização como “um conjunto de práticas [de transformação] que atuam tanto para dar poder quanto para marginalizar”, apresenta uma visão de poder como uma propriedade que pode ser dada ou distribuída: o empowerment (fortalecimento do poder de u indivíduo, de um grupo, etc.) tão em voga nos EEUU na década de 90 (ver Henry Giroux e Michael Apple, que adotam tal ponto de vista. Para uma crítica do empowerment, ver James Ladwig (SMED/POA).

- Na p.37, traz a definição de alfabetização de Magda Soares, concluindo que o

“alfabetizado seria aquele que domina o código escrito”. Domínio do código ou da “língua padrão” (p.36)? Deve-se ter em conta que “a língua é um dialeto com um exército e uma armada” (apud Emilia Ferreiro, Psicogênese da língua escrita, cap.7), que se impõe, portanto, em relações de poder. Dominar a língua escrita tem, portanto, implicações e efeitos muito mais amplos do que simplesmente dominar o “código escrito”. Dizer isto é despolitizar a questão (bem ao gosto de Soares!).

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- Questão do iletrismo nas sociedades letradas (p.40). Ver alfabetismo laico e alfabetismo clerical, de Ivan Illich (in: David Olson & Nancy Torrance, Oralidade e cultura escrita. São Paulo: Ática, 1994).

- Na p.43, cita o estudo de Craidy (1998) que “demonstra que a alfabetização é

dependente da significação que a escrita e a leitura possam assumir para o alfabetizando”. Como concluir daí que “o professor precisa dominar minimamente a cultura da qual se origina seu aluno”? Como dominar a cultura do outro? É possível? Esta é uma visão dos intelectuais de esquerda da década de 70, quando imperava uma certa “pesquisa participante”, na qual o pesquisador tinha de “viver” a vida dos oprimidos para “poder” falar por eles, para ser a sua voz, se auto-denominando um “intelectual orgânico”, numa clara e oportuna distorsão do sentido do conceito de intelectual orgânico criado por Gramsci.

- Na p.44, cita Kleiman para “examinar as conseqüências sociais, ...” da alfabetização.

Ora, colocar o problema nesses termos – de conseqüências – é cair no “mito da alfabetização”, como mostra Harvey Graff em seu artigo traduzido na revista Teoria & Educação 2, de 1990, citado na bibliografia.

- Na p.46, afirma que um “fenômeno novo” tem necessidade de um novo conceito. Mas,

afinal, não foram os conceitos de letramento e de alfabetismo que criaram e produziram o fenômeno da alfabetização de modo diferenciado? Do contrário, não se entenderia toda a luta desenvolvida em torno desses conceitos e pela imposição de um deles, no caso, letramento. Se se referissem ao mesmo fenômeno, seria indiferente usar um ou outro conceito ou, então, tomá-los como sinônimos. O problema é que eles produzem coisas diferentes, modos diferenciados de ver e entender a alfabetização. Daí a importância da luta e do embate entre os conceitos. Só por isso não é um combate de nomenclaturas nem uma discussão esotérica ou bizantina. É por isso que o “letramento” não é, como quer Soares, “um conceito novo e, por isso, fluído” (sic!), o que, aliás, não quer dizer coisa alguma. Daí ser uma ingenuidade dizer que o sentido de um conceito é assegurado pelo “acúmulo no campo teórico” (p.46): o sentido é imposto em relações de poder, ou seja, é preciso agenciar poderes para impô-lo num campo de forças (ver Bourdieu; ver Foucault).

- P.47: quem quer estabelecer o conceito de maneira “clara e distinta”? Pelo que sei, esta

foi a tentativa de Descartes, no século XVII. E, desde então, muita água rolou sobre o “cogito”.

- Não vou me deter aqui nas considerações de Tfouni, que me parecem extremamente

frágeis do ponto de vista teórico. Ex.: “... a alfabetização – quando tomada do ponto de vista sociointeracionista – é um processo [que] já supõe que sua conseqüência é de certa forma o que se está definindo como letramento [o que é um raciocínio tautológico!]. Ou seja, a alfabetização no sentido interacionista já equivale a letramento. Do ponto de vista individual, não.” [O que quer dizer isso? Que a alfabetização não é letramento quando ela se dá só no indivíduo? Mas há indivíduo sozinho numa perspectiva sociointeracionista? Em suma: não há consistência nem coerência nessa afirmação]. Na

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p.47, repete-se o argumento: “Para sair dessa contradição, seria necessário superar a perspectiva do letramento na sua acepção individual” (sic!).

- Na p.50, talvez fosse necessário discutir o uso do termo “aquisição”, ao contrário do

que diz o pé-de-página. Além disso, seria preciso também discutir e por em questão as duas perspectivas apontadas por Tfouni: “aquisição individual” e “processo de representação de objetos diversos, de natureza diferentes”. A não discussão sobre esse “processo de representação” leva à idéia de que ele é evidente por si mesmo, quando há, dentro da própria lingüística, entendimentos diferentes sobre a questão. Sapir, por exemplo, fala da escrita como uma representação da representação, um símbolo do símbolo, já que ela não representa a coisa, mas o nome da coisa, o qual já é uma representação. Foucault discute amplamente a questão da representação no 3º. Capítulo de seu livro “As palavras e as coisas” e faz uma belíssima e famosíssima apresentação do tema na introdução do livro, ao tratar do quadro “Las meninas”, de Velasques. De forma que a colocação de Tfouni é de uma simplificação atroz.

- Na p.52, a autora reproduz a divisão que Kleiman, Tfouni e outros estabelecem entre o

“modelo autônomo” e o “modelo ideológico” de Street. O próprio autor adverte para essa impropriedade em Social Literacies. No último parágrafo da página, Tfouni “comete” um atentado ao falar de “analfabetos de uma sociedade sem sistema de escrita” (sic!).

- Se a palavra é geradora de sentidos, como quer Paulo Freire (p.53), então só resta

descobri-los. Não sei como, a partir daí, o alfabetizando pode se “tornar autor da palavra e de tudo o que ela carrega consigo”, na medida em que não lhe resta outra coisa a fazer senão descobrir os seus sentidos já dados. Há, isto sim, um assujeitamento do alfabetizando a esses sentidos pré-existentes (atribuídos por quem?) e “dizer a sua palavra” torna-se, então, dizer os sentidos dados por outros, sujeitar-se a eles. Como fazer da palavra tornada sua (subjetivada) “criadora de cultura”? A não ser por um processo ideológico que torna invisível sua sujeição, o sujeito que se tornou: reprodutor da cultura dominante. Os Estudos Culturais contemporâneos, sobretudo Stuart Hall (in Representation), trataram longamente da questão da cultura como atribuição (produção) e compartilhamento de sentidos. Concluíram que essa produção se dá em relações de poder e que, como diz o poeta Camões, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” (de sentido). O texto, no entanto, dá a impressão de uma busca de “definições definitivas”, contrariando os próprios pressupostos históricos adotados, “esquecendo” que as definições são históricas, isto é, surgem, emergem, em determinadas circunstâncias históricas e locais, assim como os sentidos das palavras. Essa busca por definições torna, entretanto, invisível a luta pelo poder de nomear, de definir, de atribuir ou produzir sentido. Alfabetização, letramento, alfabetismo constituem um campo de lutas. Seria mais interessante analisá-lo como tal e descrever as diferentes estratégias utilizadas pelas diversas áreas de estudo (lingüística, pedagogia, etc.) para impor, para exercer o poder de nomear, definir, produzir os sentidos. Da forma como o texto está construído, a autora fica no dever de concordar com ou aceitar uma das definições (a de Soares? a de Tfouni? a de Paulo Freire? até porque elas não são complementares) e fica devendo a explicação de como a palavra chegou a adquirir tais ou quais sentidos. Penso que este não é o caminho mais produtivo para uma tese de doutorado.

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- Ainda na p.53, afirma-se que o “critério central de uma concepção sócio-histórica (sic)

de letramento é a concepção discursiva de autoria”. O que isso quer dizer??? - Ao tratar dos Eventos de Letramento, afirma-se “não conceber o letramento como um

conceito neutro” (ao contrário de Soares), o que significa dizer que tal conceito não é neutro politicamente. Contudo, “ao vincular letramento e os contextos de sua produção”, conclui singelamente pela existência de letramentos, no plural, sem levar em conta o que efetivamente esses contextos produzem e de que modo. Reduz, assim, o problema a um relativismo cultural simplista, à maneira de “em cada cabeça, uma sentença”. O “jogo” referido na p.54, fica, então, reduzido a “processos interligados, porém separados enquanto abrangência e natureza”, como quer Tfouni. Quando o “jogo” aqui, como em qualquer jogo, é feito de táticas e estratégias, com o objetivo de vencer, ou seja, de poder dizer e, portanto, definir o que é (e o que não é) alfabetização e letramento.

- Na p.54 ainda, a autora dá a entender que o “valor da cultura letrada” passou a existir,

para aquela população, a partir do “valor paraíso ecológico”. É preciso nuancear a questão, já que aquela população, embora isolada, nunca esteve fora da cultura letrada.

- Na p.55, atreve-se a “dar um significado” aos eventos de letramento, contradizendo a

posição adotada, juntamente com Paulo Freire, que as palavras (no caso, “eventos de letramento”) têm sentidos que é preciso descobrir. Além disso, tais eventos nunca se “somam” ou se justapõem, mas se imbricam, se interligam, se relacionam, formando uma rede em determinadas circunstâncias históricas e locais, ou seja, numa dada conjuntura.

- A idéia de que “os termos mais “fracos” vão dando lugar aos que se mostram mais

fortes no seu uso” não diz como se impõe tal ou qual uso (quem o apresenta, de que posição de poder, em que relações de poder, etc.). Ao afirmar que “os fatos, fenômenos, sensações” são mais relevantes que os termos e dão origem a eles, esquece-se que eles só se tornam “fatos, fenômenos, sensações” quando ditos em determinados termos. Não há nada fora da linguagem, nem fatos nem pensamentos: todos passam a existir a partir das palavras, cujos significados não são menos ou mais precisos, mas são relativos a determinadas conjunturas. O sentido das palavras, portanto, não é fixo nem contínuo: transforma-se, através de rupturas, na historia. Essa idéia de que os significados se tornam “cada vez mais precisos” tem como pressuposto um evolucionismo característico do final do século XIX, efeito da publicação de “A origem das espécies” de Darwin, em 1859.

- A citação de Frago, no final da p.57, é, no mínimo, infeliz, e reforça o “mito do

alfabetismo” analisado por Graff. Dizer que o “mundo”, o “meio ideal” do analfabeto “é a televisão”, como diz Frago, é imaginar que a televisão não tem essa importância para os letrados e transformá-la num “grande mal”. Como sustentar teoricamente essa posição? Com que argumentos? E com que finalidade? Isto seria o mesmo que atribuir a violência das ruas, no Brasil de hoje, à programação da TV. O que é um absurdo, como têm demonstrado os estudos sobre mídia (ver Rosa Fischer).

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- Tfouni rides again: sustenta ser a função-autor a “noção-eixo do conceito de letramento

enquanto processo sócio-histórico” (citado na p.58). Aqui, a autora usa um conceito foucaultiano – a função-autor – para defender uma idéia que não tem nada a ver com Foucaul (ver dele “O que é um autor?”). Os efeitos que Tfouni tira desse conceito (por que ela o usou? Por que o escolheu? Em função de que? O que indica essa “aproximação” com Foucault através do uso desse conceito?) são não só totalmente contrários ao pensamento de Foucault, como não se sustentam de nenhum outro ponto de vista, pela pobreza e falta de consistência de seus argumentos. Definitivamente: Tfouni só atrapalha!

- Das discussões sobre letramento (p.59) não sairá “uma noção mais consensual”. O

termo letramento não é neutro porque há toda uma política para a sua imposição, porque há interesses (acadêmicos, sim) para que ele se torne hegemônico, se imponha sobre os demais, se “naturalize” como verdadeiro e, assim, produza um consenso que interessa a determinados grupos (acadêmicos, sim). (Ver Thomas Kuhn: “A estrutura das revoluções científicas”).

- Por último, e para ficar só nesse capítulo, afirma-se que “as noções de eventos de

letramento ou de conjuntura de letramento podem ajudar a desvelar...”. Este é um termo – desvelar – inteiramente comprometido com uma perspectiva teórica, a fenomenologia, que não é a perspectiva da autora neste trabalho.

Com a expectativa de que minha contribuição crítica possa levar a uma qualificação ainda maior do trabalho de tese, considero a proposta APROVADA

Profa. Norma R. Marzola

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PARECER SOBRE PROJETO DE TESE

“EVENTOS E CONJUNTURA DE LETRAMENTO: A VILA DE ITAPUÃ E OS ALFABETIZANDOS DO GAMI”

DE MARIA DE NAZARETH AGRA HASSEN

ONDINA FACHEL LEAL

Em primeiro lugar – e porque isto é de fato prioritário em relação a este texto – eu gostaria de falar do prazer de leitura que ele oferece. Referir o prazer da leitura de um texto, que descreve como eventos de letramento um processo de transformação social de uma comunidade relativamente isolada e tradicional, não é trivial. É evidência de que Nazareth é “letrada” em etnografia. A descrição densa que nos oferece é exemplar como exercício do método etnográfico. Já na “apresentação” quando se coloca o problema a ser investigado – a chegada da cultura escrita em uma comunidade em que predominava uma cultura oral – a qualidade do texto na descrição de um personagem – ator social manipulando a sua condição estigmatizante de não letrado – é excepcional, e, a partir deste primeiro parágrafo, que nos joga para dentro da cena, da “teia de significados” do tecido social para dentro da vila de Itapuã, não conseguimos mais sair. Estamos enredados e cúmplices. Eventualmente, ao final, temos que sair, mas permanecemos com a certeza de que aprendemos sobre Itapuã, o desejo das mulheres (e homens) em ler: em ler as letras e o mundo, porque o mundo para além de Itapuã é feito de escrituras.

É a densidade do fato social do aprendizado da leitura e da escritura que Nazareth nos demonstra, em uma etnografia que combina magistralmente falas, ditos e interditos, descrições, imagens, escritos e dizeres, documentos – resultantes do uso de várias técnicas de coleta de dados: a observação participante, as entrevistas (estruturadas ou não), a observação do olhar guiado por um claro referencial teórico (que nunca sufoca o dado), do diário de campo, da fotoetnografia, da coleta de dados e informações censitárias, da informação documental, das histórias de vida, do registro do folclore, enfim de todas as estratégias de que a boa etnografia deve se valer.

O que está para além dos requisitos acadêmicos do método etnográfico neste texto-proposta de Nazareth é a beleza da escritura. Fico me perguntando se é a beleza e qualidade literária do texto que seduz e torna o leitor cúmplice dos desígnios da vila de Itapuã ou se é o domínio que a autora tem dos recursos e da escrita etnográfica que torna o texto belo e esclarecedor dos processos sociais que ele se propõe a desvendar.

O olhar atento e treinado, de que tanto falamos em nossos manuais e cursos de “método etnográfico”, neste estudo consegue perceber detalhes como o rubor na face da velha senhora, aluna do curso de alfabetização que por vezes não tem sala de aula ou professor. Mas, enfim, isto é apenas mais um detalhe ou mais um “imponderável da vida social” no dizer de Malinowski, que vai descrevendo aquilo que realmente é o fio condutor e que faz deste texto uma tese: o processo de redefinição de prioridades de uma comunidade – quando a escritura (ou o letramento?) passa a ocupar um espaço que era antes ocupado pela oralidade.

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Tenho várias dúvidas sobre o conceito de letramento e certamente este conceito, no campo da antropologia, é mais bem descrito como cultura escrita, no entendimento que exige o domínio de um determinado código (a escritura), uma competência da modernidade. Muitos dirão que na pós-modernidade reinaugura-se a primazia da oralidade, agora acompanhada de seqüências de imagens, e a mídia em suas diferentes modalidades substitui o nosso velho contador de história que, em lugarejos como Itapuã, teimam em existir. Mas não cabe a mim discutir o conceito de letramento, cabe dizer que o domínio do fazer etnográfico apresentando o que a autora chama de letramento me leva a entender perfeitamente esse processo de valorização social da palavra escrita como aquilo que os clássicos da antropologia chamariam de fato social total, do qual a própria apreensão do fato (a análise do investigador) faz parte.

Abril 2004

Ondina Fachel Leal.

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PARECER SOBRE PROJETO DE TESE ALUNA: MARIA DE NAZARETH AGRA HASSEN TÍTULO: "“EVENTOS E CONJUNTURA DE LETRAMENTO: A VILA DE ITAPUà E OS ALFABETIZANDOS DO GRUPO ATUANTE DE MULHERES DE ITAPUÔ PROFESSOR ORIENTADOR: CARMEM MARIA CRAIDY ________________________________________________________________________ PROFESSOR EXAMINADOR: IOLE MARIA F. TRINDADE

Primeiramente quero expressar o meu prazer de te conhecer pessoalmente, Maria Nazareth, pois a primeira vez que tomei conhecimento do teu trabalho foi através de divulgação de site no ano de 2003 que apresenta um diário de campo virtual de trabalho comum de pesquisa que fazes com outros dois colegas na Vila Itapuã. Visitei novamente o site ao ler tua proposta de pesquisa. Aproveito, então, para te fazer uma pergunta inicial: como a tua pesquisa de doutorado se associa a essa pesquisa comum se diferenciando enquanto pesquisa individual?

Quero dizer também que mais uma vez tive a possibilidade de participar uma banca de orientanda da Carmem que privilegia os estudos sobre letramento e utiliza a etnografia como metodologia de pesquisa, o que me leva a ressaltar a importância deste momento, não só pra ti, Nazareth, mas para todas nós que compomos esta banca, por representar uma chance ímpar de discutirmos trabalhos que se interseccionam através de temáticas e metodologias de pesquisas, mesmo que a partir de abordagens diversas.

Ressalto também a qualidade da discussão que fazes dos estudos sobre letramento, pois não mapeias e apresentas simplesmente o que estamos acostumados/as a ler em textos daqueles/as que escrevem e pesquisam sobre letramento e alfabetismo, mas lanças a dúvida e questionas interpretações que naturalizam determinadas crenças. Devo observar que são inúmeros os pontos que poderia detalhar na minha análise de tua proposta de tese, mas vou priorizar a discussão dos estudos sobre alfabetismo e letramento, já que, imagino, seja essa a contribuição que esperas da minha participação nesta banca de qualificação de tua proposta de tese, embora vá relacionar essa discussão, em alguns momentos, ao trabalho de campo e, portanto, à etnografia.

Já no título do teu projeto de pesquisa - “Eventos e conjuntura de letramento: a vila de Itapuã e os alfabetizandos do grupo atuante de mulheres de Itapuã” -, trazes claramente dois conceitos que interessam ao teu projeto de pesquisa: “eventos de letramento”, reconhecidos no corpo da proposta como “acontecimentos e circunstâncias que criam condições favoráveis à emergência e estabelecimento de um pensamento tipicamente letrado ou decorrente do pensamento vinculado à leitura e escrita” (p. 98), e “conjuntura de letramento”, reconhecida como “soma e combinação de tais eventos [...], por meio da qual se poderia perceber o estado de um local de estabelecimento de relações sociais e ambientais cada vez mais atravessadas por uma forma de pensamento letrado” (p. 98). Não vou discutir esses conceitos já, mas deixar para falar sobre eles mais adiante.

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No capítulo inicial, de apresentação da proposta, a partir de situações vivenciadas com o delineamento do trabalho de campo, discutes como podem se sentir pessoas reconhecidas como analfabetas ou semi-alfabetizadas ante situações de uso da escrita ou da leitura (p. 5-6). Ou seja, através desse relato, nos apresentas o “mito do letramento”, lançando, pelo menos, três pontos de vista: (1) o dos que acreditam no mito e se sentem constrangidos, envergonhados, embotados, desmoralizados, aniquilados por ele; (2) o dos que, mesmo sem o querer, mas pelo valor dado ao domínio das habilidades de leitura e de escrita e seus usos, estigmatizam as pessoas que são reconhecidas dessa forma e (3) o dos que examinam essas duas posições e as interpretam. E é a partir desta terceira posição, que tu propões o teu objeto de pesquisa, isto é, examinar e interpretar tais situações em uma tentativa de compreensão do posicionamento de, pelo menos um desses dois “outros” que o mito produz: o estigmatizado. Um esclarecimento: por que preferiste associar o termo analfabeto a letramento ao invés da expressão não-alfabetizado para reconhecer o adulto, ao mesmo tempo em que usas a expressão não-alfabetizada para reconhecer a criança? Fazes isso mais adiante (p. 48), ao discutir possíveis posições que podem ocupar sujeitos não-escolarizados ou escolarizados: (1) adulto analfabeto letrado; (2) criança não-alfabetizada e letrada e (3) pessoa alfabetizada e não letrada. O que estou sugerindo é que possas discutir por que as crianças são reconhecidas como “não-alfabetizadas” e os adultos como “analfabetos”. Ou seja: é a passagem pela escola que determina o uso dessas categorias: adulto/pessoa analfabeto/a, adulto/pessoa alfabetizado/a, criança/adulto/pessoa letrado/a, criança não-alfabetizada? E os adultos que não passam pela escola, ou seja, que são categorizados como “não escolarizados” podem ser reconhecidos como “não-alfabetizados”? Seriam categorizados simplesmente como “analfabetos” ou como adultos não-escolarizados e não-alfabetizados (ampliando essa categoria pela inclusão dos semi-escolarizados e semi-alfabetizados)? Se adultos e crianças não passaram pela escola, ambos não poderiam ser reconhecidos como não-alfabetizados? O que estou fazendo é tentar mostrar que há um deslocamento dessa posição de não-alfabetizado para alfabetizado associada à idade nos discursos cotidianos, incluindo, inclusive, o acadêmico.

Embora vás examinar a produção da alfabetização/alfabetismo e letramento em uma situação não formal de escolarização, a discussão do conceito de analfabeto e sua relação com o letramento exigem a discussão de sua produção relacionada à escolarização. O exame do mito do letramento exige que diferenciemos como se dá a produção do analfabetismo, já que a aquisição e a funcionalidade da leitura e da escrita para comunidades diversas nos mostram que não passamos do analfabetismo ao alfabetismo, mas de múltiplas alfabetizações à alfabetização escolar.

Cook-Gumperz (1991), no capítulo “Alfabetização e escolarização: uma equação imutável”, da obra “A construção social da alfabetização”, mostra como se dá a invenção desse mito através de diversos estudos históricos em que mudanças nas expectativas de alfabetização (literacy), ao longo da escolarização, substituem a idéia da capacidade rudimentar e quase geral de ler um pouco e talvez assinar o próprio nome pela capacidade de ler materiais novos e aprender informações antes desconhecidas. Mostra, também, através da análise da produção dessas expectativas desde o século XVI, e especialmente, entre os séculos XVIII e XIX, em diferentes regiões e comunidades, que tal alfabetização se daria na interação cotidiana, por meio de tarefas práticas, possuindo maior valor nas áreas sociais e recreativas da vida. Apenas, gradualmente, ela ingressaria na vida econômica das pessoas comuns em formas que determinariam suas perspectivas de vida. Ou seja, inicialmente, a atividade econômica não era a única razão para o desenvolvimento da

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alfabetização. A mudança, portanto, não foi do total analfabetismo para alfabetização, mas sim de uma multiplicidade dificilmente estimada de alfabetizações, de uma idéia pluralista acerca da alfabetização até uma idéia da alfabetização única, estandardizada do século XX e, eu diria, que estas interpretações todas estão sendo revisadas, entre o final do século XX e neste início do século XXI, quando comparamos as práticas sociais da leitura e da escrita (letramento social) e sua escolarização (letramento escolar).

Apresento tal teorização de Cook-Gumperz para que penses sobre o objetivo da tua pesquisa (como podem se sentir pessoas reconhecidas como analfabetas ou semi-alfabetizadas ante situações de uso da escrita ou da leitura). Proponho, portanto, que penses que - se não passamos do analfabetismo para o alfabetismo -, como se dá construção do mito do letramento? Como se dá a construção e a produção do conceito de analfabeto, alfabetizado, não-alfabetizado letrado, considerando a diversidade de discursos que produzem tais conceitos e representam os sujeitos a partir desses conceitos, como os discursos da mídia, do cotidiano, político, acadêmico (em suas vertentes múltiplas de interpretação pelas áreas pedagógica, psicológica, sociológica, antropológica, etc)?

Graff (1990) observa que é a crença nos efeitos positivos da literacy e da escolarização no desenvolvimento sócio-econômico, na ordem social e no progresso econômico que pode ser identificada com o “mito da literacy”.

Resumindo: o que eu posso te dizer, ao considerar o que nos diz Graff (1990), sobre o “mito da literacy”, e Cook-Gumperz (1991), sobre a passagem de múltiplas alfabetizações a uma alfabetização escolar, é que a produção do analfabetismo se dá com a produção desses discursos e suas representações. Ou seja, a alfabetização, o analfabetismo, o letramento e o alfabetismo são produtos culturais datados e, se os interpretamos dessa forma, podemos compreender como se dá a invenção de seus significados, bem como os deslocamentos por que passam essas interpretações em contextos e épocas diversas. Isto é, a forma como reconhecemos alguém como letrado, alfabetizado, semi-alfabetizado, analfabeto funcional, analfabeto depende de discursos diversos (mencionados antes) e da produtividade desses discursos e suas representações em produtos e práticas sociais diversas.

A discussão da crença e da descrença no mito da alfabetização (habilidade) e alfabetismo/letramento (usos) reaparecem no momento em que apresentas as trilhas da pesquisa, através de uma etnografia realizada na Vila Tronco/Porto Alegre, entre 1998 e 2000 (p. 10-11), em que mostras como alfabetizados e não-alfabetizados interpretam de forma diversa essas habilidades e seus usos, pontuando que expectativas anteriores a essa posse, transformam-se a partir da sua posse. Dizes que: “Um não alfabetizado sente-se como pertencente ao mundo não letrado, ao passo que, tão logo alfabetizado, a distinção atenua-se ou desaparece, uma vez que a alfabetização representa pouca alteração em determinados aspectos da vida” (p. 11). Para dizeres, em seguida: “A partir desse reconhecimento [da insuficiência da alfabetização], um outro conceito era necessário para garantir o entendimento de complexas situações que a leitura e a escrita implicam. Daí o encaminhar da pesquisa para os conceitos relativamente recentes de letramento ou alfabetismo, com o que buscaria[s] compreender, afinal, o que seria e que condições garantiriam o pertencimento a tal sociedade” (p. 12). Assim, a pesquisa que te propões a fazer junta duas vontades: “desconstruir a perspectiva de redenção pela alfabetização (que era meu [seu] objeto original) e entender e registrar a Vila Itapuã” (p. 14), sendo que esse interesse por Itapuã demonstra que compartilhas com Peirano, que citas na tua proposta de tese (p. 22), a compreensão de que, ao estudar as sociedades “simples” e ao estabelecer comparações, o antropólogo está estudando seu próprio mundo.

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No capítulo 4, tu nos mostras, Nazareth, que em pesquisas desenvolvidas com adultos “analfabetos”, como no caso da tua pesquisa, tais capacidades são atribuídas, não à escrita, ou à alfabetização, ou mesmo à escolarização, mas à sua pertença a sociedade com alto grau de letramento (p. 39-40). Ao relacionar o mito da literacy e seus modelos com a “grande divisão”, nos mostras também que esse mito está associado à valorização da cultura escrita - em detrimento da oralidade -, e ao modelo autônomo, que privilegia a escolarização dessas práticas ao invés dos eventos em contextos e conjuntura que permitam reconhecê-las como práticas sócio-históricas. Concordando com Tfouni, quando esta considera que em quaisquer das acepções de literacy não caberia o incluir os analfabetos (ou o conceito de analfabeto, eu diria) (p. 45), procuras mostrar que há uma imprecisão quando se destacam três categorias ou três casos comparados - (1) adulto analfabeto letrado; (2) criança não-alfabetizada e letrada e (3) pessoa alfabetizada e não letrada (p. 48). Consideras, então, que para superar essa contradição, seria necessário superar a perspectiva do letramento na sua acepção individual (p. 48).

Acreditas haver aí uma sobreposição entre letramento concebido como capacidade individual e como prática social, de modo que aparecem alinhados na análise as duas dimensões: competência da leitura e da escrita e prática social da leitura e da escrita (p. 48). Sublinhas, então que, para Tfouni “a alfabetização pertence ao âmbito individual por se referir á aquisição da escrita como aprendizagem de habilidades para leitura e escrita”, enquanto “pertencem ao sentido do letramento os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita” (p. 50). Dessa forma, pode existir o analfabetismo absoluto (se considerares este como pertencente ao âmbito individual), mas não o iletrismo (considerando este como pertencente ao âmbito social) (p. 51). Compreendes, assim, que o letramento do modelo autônomo (vinculado estritamente à escrita) restringe o letramento a uma prática individual escolar (alfabetizar letrando) enquanto o letramento do modelo ideológico considera as práticas de letramento como culturais e permeadas por estruturas de poder (p. 52). Observas, então, que “o modelo ideológico e o significado dos eventos de letramento são fundamentais para este projeto [o teu projeto de pesquisa!], uma vez que a etnografia busca revelar eventos na Vila de Itapuã” (p. 52). Pergunto, então: o GAMI, com sua/s turma/s de alfabetização, estaria mostrando uma prática individual de alfabetização ou uma prática social de letramento? Teria como referência um modelo autônomo ou ideológico? Street (1995), que criou estes modelos, acredita que o modelo ideológico inclui o modelo autônomo. Penso que deves aprofundar essa discussão com a leitura de artigo recente do autor, que indico ao final deste parecer ou com a releitura do capítulo 8, da obra Social literacies, quando discute o autor discute a grande divisão e os referidos modelos.

Preocupada “em evitar uma relação direta entre alfabetização e letramento, mas entendê-los por meio da compreensão desse jogo, como ao mesmo tempo distintos e intercambiáveis” , diferencias o analfabeto de uma sociedade grafocêntrica do analfabeto de uma sociedade sem sistema de escrita, mostrando que havia um vácuo na terminologia para definir o primeiro sujeito, isto é, um analfabeto com determinadas práticas, diferentes do outro analfabeto, das sociedades ágrafas (p. 52). Informas, então que o neologismo letramento surge dessa constatação (p. 53).

A chegada do asfalto e a consolidação do Parque de Itapuã são tomados como eventos de letramento, em sentido amplo, que possibilitam que a valorização da escrita na Vila, crie uma classe de alfabetização (p. 54). Diferencias, então, a concepção que usas da utilizada por Kleiman (1995) e da Heath (1983) e Street (1993). Dizes que Heath define “eventos de letramento” como “ocasiões concretas nas quais a língua escrita está vinculada

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à natureza das intervenções dos participantes, suas estratégias e seus processos interpretativos” (p. 55). Preferes dar um significado a “eventos de letramento” mais próximo ao que Street (1995) confere ao que chama de “práticas de letramento”, que inclui modelos socais e culturais que dão sentido aos usos da leitura e/ou da escrita, que ajudam a dar forma ao modo como os comportamentos e os significados que os acompanham são relacionados aos usos da leitura e da escrita (p. 55). Tal interpretação de práticas de letramento corresponde a “perspectiva adotada por boa parte das pesquisas etnográficas sobre letramento, os chamados NLS, New Literacy Studies[Novos Estudos sobre Letramento], corrente que investiga experiências cotidianas relacionadas a exemplos em que a comunicação e o uso da escrita acontecem. Ao associares “eventos de letramento” a “práticas de letramento”, reconheces que a soma e combinação desses eventos poderia se considerar como uma “conjuntura de letramentos (p. 55-56). Considerando que os eventos de letramento (Heath, 1982) correspondem às descrições de situações que envolvem a língua, caracterizando-as e as práticas de letramento (Street, 1995) correspondem às interpretações dos eventos para além de sua descrição, ao mostrar como é construído, o sentido e o significado, produto não só de situações e de suas características específicas, mas também das convenções e concepções, pergunto: por que manter o uso da expressão “eventos de letramento” ao invés de usar a de “práticas de letramento”? Como reconheces esses eventos e/ou práticas na pesquisa? E a conjuntura? Qual a necessidade de usar o termo conjuntura? A definição de letramento apresentada por Kleiman (1995, p. 19), é inspirada na interpretação que fazem de letramento Scribner e Cole (1981). A autora considera que podemos definir hoje letramento como um “conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos”, esclarecendo, em seguida, que as práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro da prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados, ao longo da dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser em função dessa definição, apenas um tipo de prática - de fato, dominante - que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita (Kleiman, 1995, p. 19). Apresento esse conceito de letramento por entender que o mesmo é coerente com o que apresentavas antes quanto à relação entre práticas e eventos de letramento.

No capítulo 5, “A etnografia de Itapuã”, procuras mostrar como a presença do Parque de Itapuã, inicialmente repudiado pela população da Vila, passou a ser genuinamente o primeiro destaque positivo da região, ao passo que outros marcos sociais ou territoriais garantiam o caráter de isolamento e exclusão, anunciando um novo horizonte que, entre outras características, trouxe à região a ampliação dos níveis de letramento sócio-historicamente produzido (p. 61). Mostras que um conjunto de iniciativas e de modificações ocorridas na Vila com a reabertura do Parque se constituem como eventos de letramento, pois, de uma forma ou de outra, passam pela cultura escrita ou levam até ela. Pensas que tais eventos de letramento “naturalmente” aumentam o grau de letramento da comunidade como um todo, e esse aumento repercute nos indivíduos, dentro da compreensão de letramento como processo sócio-histórico (p. 82).

Eu não diria que esse processo de aumento do grau de letramento ocorre de forma tão natural assim. Parece-me que vislumbras alguns caminhos para a continuidade do trabalho de campo, ao descreveres alguns eventos de letramento que documentam a história da Vila de Itapuã através de múltiplas narrativas: a sobre o cartório de Itapuã, acompanhada da história do senhor Erci (p. 75); a sobre as escolas da região, a do GAMI e

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a da criação de espaços educativos fora da escola, (p. 78), incluindo o espaço da rádio usado por esse grupo (p.70-71); a sobre o treinamento de guias turísticos locais sobre a história de Itapuã (p. 80); a sobre a história oral de Itapuã a ser contada em livro permeada pela história de dona Petronília (p. 80); a sobre a história da região cantada em músicas de cunho histórico e sobre os rodeios de cantoria nos estabelecimentos comerciais, bares e alambiques (p. 82), entre tantas outras que podes ainda documentar na continuidade do trabalho de campo. Isto é, há uma multiplicidade de vozes contando a história da região e que precisam ser documentadas na tese, sendo estas marcadas por formas diversas de representá-la, seja pela oralidade, pela escrita e/ou pela leitura.

Na página 87, nos informas que, uma vez que possas aprofundar o conhecimento da Vila que, imagino, envolva a descrição e análise de todos esses eventos e conjuntura de letramento, a pesquisa buscará conhecer esses adultos que procuram o curso de alfabetização para ver, então, como explicam sua presença no curso, o que falam os que tiveram passado escolar de suas experiências, como relacionam sua vida coma leitura e a escrita, o que projetam a partir de sua volta aos estudos. Já que, o fundamental será a busca da relação de sua presença ali com o contexto sócio-histórico de letramento presente na Vila. Observas que o estudo dos analfabetos de Itapuã mostra o movimento que a Vila faz de criação de uma atmosfera de letramento ou de conjuntura de letramento (p. 89), pois seus habitantes, incluindo os “analfabetos”, vivem num lugar que mantém forte presença da oralidade e presença crescente da escrita (p. 89). Quando mencionas algumas respostas dos analfabetos para freqüentar o curso de alfabetização, dizes que as que mais te interessam são aquelas generalistas: porque é bom, porque é importante, porque é preciso (p. 90). Pergunto: como vais chegar às respostas mais objetivas ou às motivações mais íntimas? Essas respostas individuais poderão se relacionar com o avanço do letramento da Vila?

Na página 92, nos dizes que “ensinar adultos a se tornarem alfabetizados dentro de paradigmas escolares resulta freqüentemente em fracasso, daí talvez resulte o sucesso da alfabetização do Gami” (p. 92). Pergunto, então: no que o trabalho de alfabetização observado em sala de aula se diferencia do comumente realizado na escolarização formal? A que atribuis a perseverança dos adultos? Às aulas? A algo diferente daquilo que os mitos da escolarização, da alfabetização e do letramento costumam impor como respostas? Como os adultos acham que devem ser as aulas? Respostas a essa questão podem mostrar que as expectativas que tais adultos têm da sua aprendizagem nesses espaços não formais? Como se diferenciam essas respostas, se considerarmos a faixa etária (quais são as respostas dos jovens, dos adultos ou dos velhos?), a inserção no mercado de trabalho (do guia, da dona de casa, etc), as marcas de gênero (ser homem, ser mulher, etc), suas expectativas de vida (planos quanto à constituição de família, mudança de emprego, melhoria de vida, etc). Na página 97, nos dizes, que: “O que buscam estes alunos ao enfrentar tantos desafios, os desafios esperados em todas as classes de alfabetização de adultos [....] [, talvez seja] a inserção numa mudança cultural em curso na Vila, um processo crescente de letramento tal como o defende Leda Tfouni (1997), isto é, como processo sócio-histórico”. Penso que, novamente, vais ter que “etnografar” essas buscas para ver se confirmam as tuas expectativas, ou seja, se confirmam “a inserção numa mudança cultural em curso na Vila”. Ficam como questões: Não seriam, novamente, os mitos da alfabetização e do letramento que colocam em um conjunto de eventos a expectativa do itapuense fazer frente à ex-condição de lugar renegado? Quem dá essas respostas? Como ela é construída, produzida?

Listo a seguir algumas sugestões de leitura, apontando sua contribuição para a tua pesquisa:

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• sobre a discussão dos conceitos de eventos e práticas de letramento e a relação entre os letramentos local e distante, global, ver: STREET, Brian. What’s “new” in New Literacy Studies? Critical approaches to literacy in theory and practice. In: Current Issues in Comparative Education, New York: Teachers College / Columbia University. V.5, n.2, (May 12, 2003); • sobre os processos históricos pelos quais a literacy escolarizada veio a tornar-se o modo dominante a partir do século XIX, ver: COOK-GUMPERZ, Jenny. Alfabetização e escolarização: uma equação imutável. In: COOK-GUMPERZ, Jenny. A construção social da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. • sobre a invenção do letramento, desinvenção da alfabetização e reinvenção da alfabetização, ver: SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. 26ª ANPED, out. 2003. 16 p. • sobre as contribuições dos estudos sobre letramento para pesquisas do tipo etnográfico e a discussão dos modelos de letramento autônomo e ideológico, ver: STREET, Brian. Social literacies: critical approaches to literacy in development �thnography and education. London: Longman, 1995. [Cap. 5: A escolarização da literacy; Capítulo escrito com a colaboração de J. Street]. RIBEIRO, Vera Masagão. Por mais e melhores leitores: uma introdução. ___(Org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. SOARES, Magda. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, Vera Masagão. (Org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. p. 89-113.

Listo a seguir algumas sugestões de correção: • como GAMI é uma sigla que faz uso das iniciais de “Grupo Atuante de Mulheres de Itapuã”, a escolha pelo uso primeira inicial maiúscula e das demais das letras iniciais minúsculas (Gami) foi feita pelo grupo? Em uma das fotos que apresentas, na p. 93, a sigla aparece em um dos latões de lixo, escrita com todas iniciais maiúsculas (GAMI). • quando referencias alguns autores/as que utilizarás para a discussão de oralidade,cultura escrita, alfabetização, letramento/alfabetismo e atores sócias, uma das autoras citadas é Roxane Rojo e não Rejane Roxo (p. 8); • na página 18, apresentas uma citação direta de Fonseca (1999?) sem indicar a página; • o Bourdieu sem referência, na página 24, é de 1985, que estás discutindo no mesmo parágrafo? • em nota da página 29 mencionas uma critica aos estudos de Luria sem indicar a fonte dessa informação; • corrigir “hieroglífico” na página 33. • corrigir na página 64, substituindo a palavra “fechamento” por “abertura” [A repulsa era em relação à abertura do Parque e não ao seu fechamento, não?!] • corrigir na página 65: (Rodrigues, s.d, p. 36); • Na página a 69, no último parágrafo, não mencionas o ano de publicação (1993) da obra de Milton Santos referida.

Agradeço mais uma vez o convite e peço que fiques a vontade para responder e comentar o que julgares adequado neste momento.

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