Eternidade 1
-
Upload
izabella-paola -
Category
Documents
-
view
235 -
download
1
description
Transcript of Eternidade 1
1
2
Sinopse
Pairando sozinha e perdida, Amélia vive o eterno pesadelo de
acordar nas águas escuras de um rio misterioso. Suas únicas certezas:
ela está morta e não tem nenhuma lembrança do tempo em que era viva.
Ao tentar salvar Joshua, um garoto que se afogava no mesmo rio de águas
escuras que a vinha mantendo prisioneira há tanto tempo, Amélia passa
ter sensações diferentes e a descobrir os segredos que rondavam sua
morte. A conexão entre Amélia e Joshua ultrapassa as barreiras da vida e
da morte. E eles precisam proteger essa felicidade a qualquer custo...
3
Um
Foi como sempre, mas diferente da primeira vez.
Era como se o meu peito fosse uma porta onde alguém tinha enfiado
uma chave com força e girado. A porta — os meus pulmões — queria se
abrir, ceder ao movimento da chave. Aquela parte primitiva do meu cérebro,
a dos instintos de sobrevivência, gritava para que eu respirasse. Mas outra
parte também berrava ainda mais alto para refrear qualquer impulso que
deixasse a água entrar.
A água escura me agarrava e me engolia, entrando onde era possível.
Fiz de tudo para ficar com a boca e os olhos bem fechados, por mais que
estivesse precisando mais do que nunca da minha visão para escapar
daquele pesadelo. Mesmo assim, a água não parava de entrar na minha boca
e no meu nariz de pouquinho em pouquinho. Até meus olhos e minhas
orelhas já não tinham mais como conter aquilo. A água se envolveu nos
meus braços e nas minhas pernas como um tecido pesado, puxando e
arrastando meu corpo para todos os lados. Eu me vi enterrada sob várias e
várias camadas de alguma coisa viscosa e revolta, sem ter como me libertar
daquilo.
Eu já tinha me debatido demais, relutado demais, e meu corpo estava
cada vez mais fraco pela falta de oxigênio. As batidas dos meus braços na
direção do que eu presumia ser a superfície foram ficando menos frenéticas,
como se a substância invisível em volta deles tivesse engrossado. Cheguei a
balançar a cabeça para conter meu impulso de respirar. Não!, gritei, dentro
da minha mente. Não!
Mas os instintos são uma coisa complicada também — fortes e
implacáveis.
Minha boca se abriu e eu respirei.
E como sempre, a não ser na primeira vez que vivi esse pesadelo, eu
acordei.
4
Meus olhos ainda estavam fechados e eu continuava ofegante. Desta
vez, minha boca e meu nariz puxaram lufadas histéricas de ar, e não aquela
água suja que tinha invadido meus pulmões e feito meu coração parar
naquele primeiro pesadelo.
Agora, esse ar era inútil, nulo para os meus pulmões mortos. Ainda
assim, sua presença me entorpeceu de alegria: por mais que meu coração
não estivesse batendo, o ar era um sinal de que não estava mais me
afogando.
Mesmo assim, fiquei me sentindo meio boba por ter ficado com medo.
Afinal, não é como se desse para alguém morrer duas vezes.
E eu já estava morta, disso pelo menos tinha certeza.
Levei um tempo para aceitar esse fato, talvez alguns anos — o tempo
se torna uma coisa muito imprecisa depois da morte. Anos vagando sem
rumo, confusa e assustada com tudo o que eu via e escutava. Gritando com
as pessoas que passavam por mim, implorando para que me ajudassem a
entender por que eu estava tão perdida, ou só reparassem na minha
presença. Eu conseguia me ver — de vestido branco, pés descalços e com o
cabelo castanho, agora seco, todo ondulado e grosso —, mas os outros, não.
Nunca encontrei outra pessoa como eu, nenhum outro morto, então não
tinha nem com quem me comparar.
Foram os pesadelos o que finalmente me levou a entender e aceitar a
verdade.
No começo, eu não reconhecia nada na minha existência errante que
me trouxesse memórias da minha vida, nada além da leve familiaridade que
via nas florestas e nas estradas pelas quais eu vagava.
Mas aí os pesadelos começaram.
Eu mergulhava de repente e sem nenhum aviso em períodos de
inconsciência, nos quais me afogava de novo. Foi só depois das primeiras
vezes que tive esses pesadelos que percebi o que eles realmente eram:
memórias da minha morte violenta.
Então as memórias da minha morte tinham voltado. Mas apenas
algumas memórias da minha vida vieram junto com elas: meu primeiro
nome, Amélia, mas não meu sobrenome; a idade com que morri, dezoito
anos, mas não meu aniversário; e claro, o fato de que eu parecia ter me
jogado em um rio turbulento do alto de uma ponte. Mas não o porquê disso.
Mesmo não me lembrando da minha vida e do que havia aprendido
nela, eu tinha vagas lembranças de alguns dogmas religiosos. Mas não era
nada que tivesse me preparado para este tipo específico de pós-vida. As
5
florestas poeirentas nas colinas de Oklahoma não refletiam bem a minha
concepção de paraíso, nem as constantes repetições febris do meu
afogamento.
O termo ―purgatório‖ me vinha à mente sempre que acordava de um
pesadelo. Eu revivia minha cena de angústia e depois acordava, toda
ofegante e soluçando com um choro seco, toda vez no mesmo lugar.
Independentemente do lugar onde eu estava quando perdia a consciência —
uma ferrovia abandonada, uma densa floresta de pinheiros ou um
restaurante quase vazio —, meu destino era sempre o mesmo. Ao fim de
cada pesadelo, acordava em um campo. Era sempre de dia, e eu me via
cercada por fileiras e mais fileiras de lápides. Era um cemitério. Talvez o
meu.
Nunca ficava por lá tempo o bastante para tentar descobrir.
Acho que eu poderia até procurar minha lápide. E descobrir mais
coisas sobre mim — sobre minha morte. Mas em vez disso, sempre me
levantava da grama e disparava até o portão de ferro em volta do campo,
correndo o mais rápido que minhas pernas fantasmagóricas permitiam.
E assim era minha existência: um emaranhado de perambulações sem
rumo; uma palavra ou outra dita a algum estranho que não me ouvia; e os
pesadelos e as minhas fugas apressadas do lugar onde eu acordava.
Até esse último pesadelo.
Esse pesadelo começou como todos os outros e, como sempre, acabou
com eu acordando em pânico. Mas dessa vez, quando por fim abri os olhos,
o que vi não foi um cemitério abandonado, mas sim um lugar totalmente
escuro.
Essa escuridão repentina me deixou apavorada de novo, ofegando em
desespero. Ainda mais porque depois de um breve piscar dos meus olhos
mortos, reconheci onde estava.
Eu estava flutuando no rio de novo.
No entanto, meus fôlegos agora já não sugavam a água lamacenta à
minha volta. Meu corpo continuava etéreo como antes deste pesadelo. Eu
estava só flutuando, alheia à agitação da turbulenta correnteza. Desta vez,
as coisas pareciam diferentes, por mais que aquela cena escura e revolta
fosse quase a mesma que eu via em cada um dos meus horríveis pesadelos.
Quase.
Porque desta vez, não era eu quem estava se afogando.
Era ele.
6
Dois
Minha primeira impressão sobre a cena estava errada. A água não
estava totalmente escura. Uma luz baça reluzia sobre a superfície — talvez
da lua, porque era cinzenta demais para ser do sol. Abaixo de mim, dois
fachos de uma luz amarelada mortiça pareciam despontar das profundezas
do rio.
Não, não era bem isso. Esses fachos estavam virados para cima, mas
se afastando. Olhei de relance para baixo e percebi que eles vinham de uma
coisa enorme e escura sob mim. Essa coisa — um carro, com seus faróis
cortando a escuridão — estava afundando com uma sinistra lentidão.
Balancei a cabeça. Na verdade, eu não estava nem aí para o carro;
minha atenção se focou no garoto iluminado pelos seus faróis.
Seu corpo estava na forma de um X, com os braços soltos boiando
para cima e seus pés ainda de tênis, esticados. Ele estava com a cabeça
baixa, mas pude ver que seus olhos estavam fechados.
Esse garoto não estava se debatendo, nem tentando nadar de volta
para cima, e eu de repente me dei conta de uma coisa terrível. Ele estava
inconsciente. Mas não era o tipo de inconsciência que atormenta os mortos,
e sim aquele que mata os vivos.
Se esse garoto não acordasse, ele iria se afogar.
Sem pensar em mais nada, nadei até ele o mais rápido que pude.
Quando cheguei mais perto, pude ver seu rosto por inteiro. Ele era jovem,
quase da mesma idade que eu quando morri. Seu rosto inerte parecia
tranquilo. Ele era muito bonito. Dava para ver isso bem, mesmo embaixo
d’água. Seu cabelo escuro pairava sobre sua cabeça, quase lânguido, apesar
da turbulenta correnteza. Uma ideia repentina e boba me veio à mente: seus
braços abertos pareciam asas. Asas inúteis, agora. Comecei a me perguntar,
quase sem perceber, se meus braços teriam ficado como os dele quando
morri.
7
Meus pensamentos se tornaram tão rápidos quanto intensos. Aquele
garoto não podia morrer. Eu não podia simplesmente ficar parada, vendo
sua morte. Não ali, não daquele jeito.
Fui para cima dele, tentando em desespero agarrar suas roupas e
seus membros para arrastá-lo de volta à superfície. Puxei sua camisa de
manga comprida, seu jeans e até seus cabelos escuros.
Tentei e tentei, mas não aconteceu nada, é claro. Minhas mãos mortas
inúteis não tinham como tocá-lo, como salvá-lo. Foi como quando me debati
na água na noite da minha morte — nada que eu fizesse poderia evitar o
resultado daquela cena. Eu me senti impotente, inútil, e mais ciente do que
nunca do fato de que estava morta.
Caí então no meu choro sem lágrimas e coloquei minhas duas mãos
em seu peito. Enquanto afundávamos no rio, pude ouvir uma coisa com toda
clareza: as batidas cada vez mais fracas do seu coração.
Até onde sabia, eu não tinha nenhum sentido sobrenatural. Por mais
que alguns dos meus sentidos humanos tivessem sobrevivido à minha morte
— como a visão e a audição, claro —, não conseguia sentir mais nenhum
cheiro, gosto ou toque de nada no mundo dos vivos. O que restou dos meus
sentidos não tinha enfraquecido, mas também não tinha se aguçado.
Por isso mesmo, o som do coração dele me deixou chocada. Eu não
devia estar ouvindo aquilo tão bem, mas estava. Mesmo com mais de um
palmo de água entre nós e minha audição normal, podia ouvir suas batidas
claramente como se eu tivesse colocado um estetoscópio em seu peito.
Fiquei pensando se isso tinha alguma coisa a ver com a morte.
Com estar morta. Talvez os mortos pudessem ouvir seus semelhantes
chegando, vindo de repente para o nosso mundo. Ou bem devagar, neste
caso.
Continuamos afundando, enquanto seu frágil coração batia
erraticamente rumo à morte. Cada batida ecoava mais fraca do que a
anterior, até que finalmente...
Seu coração engasgou uma vez. Depois de novo. E então não ouvi
mais nada. Uma bolhinha de ar escapou pelo canto de seus lábios e boiou
água acima.
Eu gritei. Gritei como nos primeiros instantes da minha própria
morte, revoltada e humilhada com minha própria impotência. Gritei e bati
com minhas mãos inúteis em seu peito.
Foi então que seus olhos se abriram.
8
Ele olhou de um lado para o outro, assimilando onde estava. E então
olhou para mim. Olhou bem nos meus olhos.
Fiquei paralisada. Será que ele... podia me ver?
Ele sorriu e então ergueu a mão para tocar no meu rosto. Senti sua
pele, quente contra a minha. Sem pensar em nada, pus minha mão sobre a
sua. Seu sorriso se alargou quando fiz isso.
Ele estava me vendo, sim.
Ele me viu, ele me viu, ele me viu!
Meu coração inerte e morto foi às alturas. E o dele também.
Seu coração — que eu tinha acabado de ouvir morrer — bateu, e
depois de novo. Essa nova batida ecoou fraca e irregular no começo, mas
logo depois começou a se estabilizar.
Ele olhou para o próprio peito e depois de volta para mim, com as
sobrancelhas arqueadas e um ar de surpresa ao perceber o som que vinha
ali de dentro.
Em seguida, tossiu. Esse movimento sacudiu seu corpo e fez bolhas
de ar escaparem de sua boca.
Ele começou a se debater. Enquanto isso, percebi que não estava mais
ouvindo seu coração. O som tinha sumido, pelo menos para mim. Mesmo
assim, ele estava todo agitado, lutando contra a água escura. Continuou a
tossir violentamente enquanto seus pulmões voltavam a funcionar. Em meio
à água revolta, pude ver sua expressão. Parecia irritado, em pânico e
desespero.
Reconheci aquele olhar. Eu mesma já tinha sentido aquilo. Aquele
garoto estava vivo. Estava vivo e não queria morrer.
— Nade! — gritei, de repente. — Para cima! Para fora daqui!
Ele não olhou para mim, mas começou a bater as pernas e sacudir os
braços pela água sobre sua cabeça, como se estivesse tentando se arrastar
para fora de um buraco. E ao contrário dos meus próprios esforços na noite
da minha morte, os dele surtiram efeito. Ele começou a flutuar rumo à
superfície do rio.
Nunca tinha me sentido tão aliviada. Nem mesmo depois de acordar
um milhão de vezes dos meus pesadelos. Nem mesmo depois de um milhão
daqueles fôlegos que provavam que eu não estava mais me afogando.
— Para cima! — gritei de novo, desta vez com alegria.
Ele continuou a subir pela água, sem olhar nem uma única vez para
mim ou reparar no som da minha voz enquanto o seguia sem esforço. Talvez
para ele, eu tivesse voltado a ser diferente... morta. Mas naquela hora, aquilo
9
não tinha a menor importância para mim. Ele iria se salvar. Não iria morrer
naquele abismo frio e escuro como eu. Isso já era mais do que o bastante
para me alegrar.
O garoto pareceu levar uma eternidade para chegar à superfície, mas
chegou. Sob o ar frio da noite, ele tossiu, cuspiu e ofegou, batendo seus
braços na água como se estivesse tentando alçar voo.
Flutuei até seu lado, totalmente alheia à correnteza ou ao alvoroço
criado por ele na água. Quando ele finalmente puxou um imenso fôlego de
ar, ri alto e bati uma palma. E então tapei a boca com as mãos. Eu nunca
tinha dado risada. Não desde que morri.
— Josh! Josh!
Aquela voz estranha me espantou. Alguém tinha gritado do outro lado
do rio para nós. Bom, para o garoto, pelo menos. Dei as costas para ele,
quase sem querer, e avistei um grupo de figuras na margem do rio atrás de
nós.
— Josh! — gritou uma menina. — Meu Deus, Josh! Por favor! Ajudem
o Josh, por favor!
Eu me virei para o garoto, que ainda estava tossindo e se debatendo.
— Josh? — perguntei. — Você é o Josh? — mas ele não respondeu. —
Bom, de um jeito ou de outro, sei que você está cansado. Nossa, e como sei.
Também sei que você provavelmente não deve estar me ouvindo. Mas você
precisa nadar na direção daquelas vozes. Você me entendeu?
Por um instante, ele não reagiu. Mas depois, com uma dolorosa
lentidão, começou a bater os braços. Não era o nado mais desenvolto do
mundo, mas pelo menos já foi o bastante para que ele começasse a arrastar
seu corpo pela água.
Conforme se aproximava da margem, os gritos foram ficando mais
altos. Em meio a todo o alvoroço, quase consegui ouvir um fio de uma
conversa mais racional sobre um plano para tirá-lo do rio.
Mas eu na verdade nem estava escutando as pessoas na margem. Só
estava vendo aquele garoto nadar, mais concentrada nisso do que em
qualquer outra coisa antes. Eu me peguei rezando pela primeira vez desde
minha morte. Rezando para que ele chegasse em segurança até a margem;
rezando para que ele não desistisse e se deixasse ser levado pela correnteza.
— Por favor — sussurrei enquanto o seguia. — Por favor, Deus, deixe
que ele se salve.
O garoto acabou se mostrando muito mais forte do que eu jamais
tinha sido. Durante vários minutos de angústia, ele enfrentou a correnteza
10
até, por fim, chegar perto o bastante para que alguém pudesse agarrar seu
braço e nadar a muito custo com ele de volta à margem.
Gritos de alegria e pânico eclodiram da multidão que havia se
aglomerado na grama em volta do rio e na ponte sobre nós. Um homem, o
que tinha tirado o garoto da água, o estendeu em cima de uma faixa de terra
vermelha e lamacenta. Enquanto eu saía da água e andava até a margem,
pude ver o homem passando as mãos pelo corpo do garoto, à procura de
algum sinal de vida.
O garoto se virou de lado na mesma hora, deu uma tossida e depois
começou a vomitar água. Suspiros altos de alívio irromperam da multidão.
Seus rostos estavam sendo iluminados pelos faróis dos vários carros parados
aqui e ali na grama e na ponte também. As expressões dos curiosos eram de
tensão, entusiasmo ou medo.
— Josh! Josh! — gritavam em coro.
Todos pareciam saber o nome do garoto.
Foi então que avistei o brilho multicolorido das luzes vindo dos
veículos de emergência que tinham formado sua própria aglomeração atrás
dos curiosos sobre a ponte. Depois do que pareceram ser apenas poucos
segundos, dois paramédicos uniformizados desceram até a margem do rio e
se ajoelharam ao lado do garoto, fazendo seus próprios gestos mais eficazes
com as mãos sobre ele. Menos de um minuto depois, o garoto — o meu
garoto, para ser fiel à minha repentina sensação de posse sobre ele — foi
posto em uma maca e então carregado encosta acima até uma ambulância.
A multidão avançou junto com os paramédicos, e eu o perdi de vista.
Esse deveria ter sido o fim daquele martírio. Ainda assim, não
conseguia ficar parada. Não podia ficar ali, vendo aqueles estranhos levarem
a única pessoa viva que tinha me visto. O meu menino. O meu Josh.
Determinada, abri caminho em meio à multidão. Eles não podiam me
ver, nem me sentir, é claro, mas ainda precisei de muito esforço para
encontrar uma passagem livre.
Por algum milagre, consegui. Me espremi entre duas pessoas e, de
repente, me vi ao lado da maca enquanto os paramédicos começavam a
erguer suas pernas com rodinhas para colocá-la dentro da ambulância.
Me inclinei sobre o garoto. Ele parecia pálido sob o luar, com seu rosto
magro e exausto. Por algum motivo, precisei conter um soluço de angústia.
— Josh? — gemi, confusa sobre o que fazer. Confusa sobre tudo.
11
Ele então abriu os olhos. Olhos escuros — escuros demais para que
eu identificasse sua cor à noite. Ele se virou para mim e ficou me olhando
enquanto os paramédicos o levavam embora, talvez para sempre.
— Joshua — grunhiu, rouco depois de engolir tanta água. — Me
chame de Joshua.
Em seguida, a maca foi posta dentro da ambulância, as portas se
fecharam, e ele foi embora.
Fiquei na margem do rio, imóvel. Alguns curiosos continuaram por ali
depois que a ambulância foi embora, provavelmente para discutir aquela
quase tragédia. Mal percebi quando a última pessoa foi embora e os últimos
faróis desapareceram em meio à escuridão da noite. Eu não estava dando a
menor atenção para ouvir ou ver qualquer coisa que estivesse acontecendo à
minha volta.
Na verdade, tudo o que eu estava vendo eram os olhos daquele garoto,
olhando bem para os meus. O que eu estava ouvindo era a sua voz... falando
comigo? Sim, tenho certeza de que ele estava falando comigo. Ninguém tinha
lhe pedido para se identificar enquanto o punham na ambulância. Ele não
tinha nenhum motivo para dizer seu nome a qualquer outra pessoa além de
mim. A maioria das pessoas ali parecia já saber quem ele era. Talvez elas já
o conhecessem há muito tempo. Talvez elas sentissem, como eu tinha
sentido, o quanto ele era importante.
É claro que eu sabia da importância dele agora. Eu me dei conta disso
bem no fundo do meu, agora bem desperto, âmago. Não sabia nada sobre
ele... sua idade, seu sobrenome, como seria sua voz ao falar meu nome. Mas
sabia que a minha existência tinha mudado. Para sempre.
12
Três
Dois dias se passaram.
Apesar de provavelmente não ter sido nada demais para os vivos, esse
espaço de tempo foi extraordinário para mim. Até então, nunca tinha achado
nenhum motivo para contar a passagem dos dias. O nascer e o pôr do sol
não tinham me afetado em nada, a não ser pelo fato de ficar mais escuro à
noite. Não precisava dormir, e minha solidão durante os dias não mudava
com a chegada do crepúsculo. Quando os pesadelos começaram — me
arrancando da minha existência etérea para me lançar naquele horror
inconsciente e então me jogar de volta naquele estranho cemitério —, eu
tinha perdido toda a vontade de marcar o tempo.
Até então.
Agora, não conseguia parar de contar cada minuto de solidão que
passava.
Naquela primeira noite, enquanto via a ambulância indo embora,
cheguei a pensar por um instante em segui-la a pé. Mas acabei desistindo da
ideia. Por mais que pudesse me locomover de forma quase instantânea pelo
tempo e espaço durante meus pesadelos, não tinha descoberto como fazer
isso quando estava acordada. Eu ainda caminhava como qualquer ser
humano normal e poderia levar dias até encontrar o hospital para onde a
ambulância tinha levado aquele garoto.
Nem me dei conta, até o último carro ter ido embora da margem do
rio, de que poderia ter me enfiado em algum banco de trás vazio e talvez ido
com o motorista até o hospital... mas e depois? A ideia de pegar uma carona
clandestina com algum estranho vivo só pela mínima chance de chegar ao
hospital e depois vagar pelos seus corredores à procura de outro estranho...
bom, eu me senti boba e irracional só por ter pensado nisso.
13
Mas claro, vagar pelo local onde eu tinha morrido também não me
parecia lá muito racional.
Da margem do rio, fiquei assistindo enquanto a polícia montava uma
barricada para tapar o buraco aberto na ponte acima de mim. E continuei lá
enquanto uma equipe de bombeiros, totalmente alheia à menina solitária na
margem, içava o carro lamacento do garoto para fora da água. Enquanto
tudo isso acontecia, nem questionei meu desejo de estar ali — afinal, quem
não se interessaria por aquelas coisas?
Mas depois que toda a agitação acabou, cada momento que eu
passava naquele lugar fazia me sentir cada vez mais e mais tonta.
Por um instante, tentei justificar minha necessidade de ficar ali. E me
convenci de que só precisava de um pouco de tempo para reorganizar
minhas ideias antes de voltar às minhas andanças sem rumo.
Mas, no fundo, eu sabia a verdade. Sabia muito bem por que ainda
estava ali.
Eu não queria mais andar sem rumo. Queria encontrar um local
muito específico. Queria encontrar alguém.
Alguém que quase tinha morrido (ou talvez até tivesse, não tinha como
saber) naquele rio. Alguém que, com isso, acabou mudando minha
existência para sempre.
Notei também outros sinais, fora minha relutância em ir embora, de
que algo tinha mudado. Primeiro, comecei a ter o que vim a chamar de
―flashbacks‖. Eu estava andando pelo bosque ao lado do rio, ou ao longo da
margem, e um flashback acontecia. Uma imagem — nítida, colorida, cheia de
aromas e sabores — vinha à minha mente e então sumia tão rápido quanto
tinha surgido.
Como os pesadelos, esses flashbacks apareciam de repente. Mas em
vez de medo e angústia, eles me traziam uma coisa infinitamente melhor:
fragmentos do que eu só podia concluir que eram memórias da minha vida
antes de morrer.
Nada muito significativo tinha aparecido ainda: uma fita preta
tremulando ao vento; o som de pneus derrapando no asfalto; o cheiro da
terra depois de uma tempestade de primavera. Nenhuma pessoa, nenhum
nome, nenhuma cena substancial que me desse alguma pista de quem eu
era ou por que eu tinha morrido. Os sabores e cheiros que eu vivenciava
também eram distantes. As coisas que aconteciam nos flashbacks me
lembravam mais de fantasmas dessas sensações. Mas isso já era bom o
bastante.
14
Por mais insignificantes que fossem esses momentos, eu tinha cada
vez mais a certeza de que aquelas imagens eram minhas. Minhas memórias
da vida, libertando-se da névoa com a qual a morte havia envolvido minha
mente.
E foi tudo por causa dele. Por ele ter me olhado nos olhos. Por ele ter
posto a mão na minha bochecha, com um gesto tão natural e simples como
se fôssemos feitos das mesmas coisas. De pele, sangue e ossos. Respirando,
enxergando, tocando.
A simples lembrança de sua pele contra a minha me dava arrepios. Só
que não eram arrepios fugidios e distantes — era uma sensação mesmo.
Uma sensação física de verdade. O que já era uma mudança milagrosa na
minha existência.
A primeira vez que eu senti alguma coisa foi na noite do acidente.
Enquanto estava parada na margem do rio, vendo as luzes da ambulância
sumindo ao longe, senti um formigamento estranho nas solas dos meus pés.
Fiquei olhando para baixo, confusa e assustada. De repente, me dei conta de
que podia sentir a lama entre meus dedos e a grama seca pinicando meus
pés descalços. Depois, tão rápido quanto tudo tinha começado, essa
sensação sumiu.
Isso me deixou no mínimo surpresa. Eu estava há tanto tempo
desesperada por uma sensação real, física. Queria muito sentir alguma
coisa, qualquer coisa. Mas por mais que eu pusesse a mão em qualquer
objeto ou me apertasse contra algo, não adiantava. Não sentia nada. Nada
além de uma leve pressão que só me impedia de continuar fazendo força.
Minha existência pós-vida derrubava todos os típicos estereótipos do
sobrenatural. Não conseguia atravessar paredes, nem flutuar como um
espectro de uma sala para outra. Os vivos que chegavam perto de mim não
passavam direto pelo meu corpo; em vez disso, apenas desviavam de
caminho por algum motivo, sem me dar atenção, como se fosse um
obstáculo qualquer.
A única coisa que eu conseguia sentir, que me afetava, era eu mesma.
Podia tocar no meu cabelo, no meu vestido, na minha própria pele. Mas
depois de um tempo, essa exceção deixou de me trazer qualquer conforto. Na
verdade, isso acabou virando uma grande piada de mau gosto: eu estava
presa em uma cadeia individual. Era como se eu só existisse na minha
própria dimensãozinha, sem ser vista, nem ouvida por mais ninguém, mas
com uma enlouquecedora consciência do que havia à minha volta.
15
Não tenho palavras para descrever como isso fazia eu me sentir: não
só invisível, mas sem olfato, paladar ou mesmo tato. Nem para descrever o
que senti quando me dei conta de que minhas únicas sensações físicas
ocorriam durante os pesadelos onde eu revivia minha morte. Muito menos
ainda para descrever o toque daquela mão na minha bochecha depois de
tanto tempo.
O toque em si não foi só extraordinário, mas também abriu as
comportas para uma torrente de sensações.
Durante esses dois dias após o acidente, e nos momentos mais
estranhos, comecei a sentir coisas do mundo dos vivos. Como o casco áspero
da árvore onde eu estava apoiada, ou uma gotinha de chuva que caiu
quando uma nuvem passou sobre o rio. Essas sensações surgiam e
desapareciam de uma hora para outra, fora do meu controle.
Ainda assim, descobri que tinha como controlar uma delas: o
arrepiozinho que sentia nas minhas veias sempre que pensava na pele
daquele garoto. Esse arrepio me causava uma assombrosa sensação muito
parecida com uma palpitação nos pulsos e no pescoço, então tentava replicá-
lo sempre que podia.
Estava pensando na pele dele de novo quando outro flashback
aconteceu. De repente, um cheiro me envolveu, me capturando por
completo. Fiquei paralisada no lugar onde estava, cheirando um ramo de
amoras do fim do verão que pendia de uma árvore na floresta. Eu me inclinei
para mais perto, sorvendo o aroma daquelas frutinhas azedas e passadas
sob o sol do meio-dia. Por mais que o cheiro logo tenha se esvaído e a
dormência de sempre voltado a me engolir, acabei rindo alto.
Essa foi a segunda risada do meu pós-vida, e eu queria mais. Sem
nem pensar em nada, subi correndo a encosta íngreme e coberta de grama
até a ponte.
Transpondo colinas altas com um fôlego só. Ou sem fôlego nenhum. A
“Super-menina Morta”! Ri de novo, toda empolgada assim que cheguei ao alto
da colina e comecei a correr pela grama.
No entanto, quando cheguei ao acostamento da estrada, tive um
momento de hesitação: com um pé no asfalto e o outro na grama, e meus
braços esticados como se eu fosse uma trapezista.
Estrada Ponte Alta
Essas palavras ecoaram como uma ameaça dentro na minha cabeça, e
fui tomada na mesma hora por um desejo urgente de ir embora daquele
16
lugar. Senti uma coisa estranha no fundo da minha mente, uma comichão
subindo e descendo pela minha pele.
Seria aquilo o começo de outro pesadelo? Não, parecia ser algo
totalmente novo, uma coisa que eu nunca tinha sentido antes.
Balancei a cabeça. Estava sendo ridícula. Afinal, eu estava morta. O
que poderia ser mais assustador do que eu mesma?
Forcei meu pé a sair da grama e o outro a ir mais adiante no asfalto.
Minhas pernas agora se moviam quase sozinhas. E cada passo meu ao longo
do acostamento da estrada disparava calafrios desagradáveis pela minha
espinha.
Isso é idiotice, pensei, endireitando as costas. Eu me recusava a
esgueirar pelo acostamento feito um cachorro assustado com o rabo entre as
pernas.
— Vamos! — gritei para mim mesma. Marchei adiante cheia de
determinação, ainda que sem muito jeito. Cada passo me arrepiava ainda
mais, mas não diminuí o ritmo até chegar quase à metade da ponte.
Só parei quando cheguei ao buraco aberto no parapeito de meia-altura
à minha direita. Havia uma fita amarela da polícia e alguns cavaletes de
madeira entre o buraco e a estrada, preparados para evitar que qualquer
outra coisa caísse da ponte. As bordas retorcidas do parapeito pendiam para
fora da ponte de cada lado do buraco, oscilando levemente com a brisa. O
carro do garoto — de Joshua — tinha aberto um buraco de pelo menos dois
metros no parapeito antes de mergulhar no rio.
Estremeci só de pensar no acidente e também por ouvir o som de seu
nome dentro da minha cabeça. Enquanto abraçava meu próprio corpo,
arrisquei uma olhada tímida para o chão. Marcas escuras de borracha
cortavam o asfalto onde os pneus tinham feito uma vã tentativa de impedir
que ele voasse para fora da ponte.
Foi então que ouvi o grito, um barulho medonho e escandaloso que
irrompeu atrás de mim.
Cheguei a dar um pulo de susto. Um palavrão, um que eu nem sabia
que conhecia, escapou da minha boca quando me virei na direção desse
som.
Só então percebi que aquele barulho terrível na verdade não tinha sido
um grito, e sim o som de pneus derrapando para frear de repente. A poucos
metros de mim, um carro preto havia parado, e sua porta então se abriu.
Relaxei na mesma hora. Meus instintos etéreos entraram em ação e
me dei conta de que não precisava correr, nem ter medo de nada. Porque
17
qualquer um que pudesse dirigir um carro não teria como me machucar,
nem mesmo me ver.
Mas obviamente, apesar do que gritava meu coração, meus instintos
haviam se esquecido da única exceção a essa regra.
Um garoto desceu pelo lado do motorista e bateu a porta. Pelo seu
perfil, pude ver que ele tinha lábios carnudos e um nariz fino com uma leve
curva, como se já tivesse sofrido alguma fratura, mas se recuperado bem.
Ele tinha os cabelos quase pretos e olhos grandes e escuros. Quando ele se
virou para mim, me peguei pensando, sem nem perceber, que ele agora
estava com uma cor bem mais saudável do que da última vez em que eu o
tinha visto.
— É você! É você! — gritou, apontando para mim.
Sem pensar em mais nada, me virei e saí correndo.
18
Quatro
Eu estava cheia de impulsos bobos ultimamente. Lá estava ele, o
garoto que eu andava tão interessada — bom, obcecada, na verdade —
nesses últimos dois dias. Ainda assim, saí correndo o mais rápido que pude
na direção oposta quando ele apareceu. Se eu ainda tivesse alguma gota de
adrenalina, ela teria ardido nas minhas pernas enquanto eu fugia.
Pelo visto, e como eu suspeitava, meus instintos na morte
continuavam tão fortes quanto os que tive em vida. Fantasmas nunca devem
ser vistos, por mais que queiram. Qualquer coisa que aponte para o
contrário era um bom motivo para se sair correndo, e rápido.
Ou pelo menos esse teria sido meu raciocínio se eu conseguisse
pensar direito. Mas naquele momento, a única coisa na minha cabeça foi um
pânico alucinante. O medo se espalhou pelo meu cérebro e quase bloqueou a
voz que irrompeu atrás de mim.
— Pare! Qual é? Calma! Por favor!
Foi o tom da voz o que me convenceu — baixo, e ainda meio rouco
pela água do rio que ele tinha engolido. Ao perceber essa fragilidade, senti
uma dorzinha bem no meio do meu peito. Foi só uma pontada leve e
discreta, mas totalmente incapacitante.
Derrapei com os pés no chão até parar, já quase do outro lado da
ponte. Bem devagar, me virei na direção dele.
— Obrigado — gritou, rouco, enquanto se acomodava no lugar. Pela
sua postura, parecia que estava prestes a sair correndo atrás de mim.
Ainda tensa, acenei a cabeça para ele. Após uma pausa considerável,
ele por fim perguntou:
— Bom, então... você pode voltar aqui?
Balancei a cabeça. Nem pensar.
Mesmo de longe, consegui ouvi-lo soltar um suspiro.
19
— Tu-udo bem... — ele se demorou no ―u‖, como se estivesse
aproveitando esses segundos a mais de pronúncia para enfrentar com mais
calma um frustrante enigma. — Bom... posso ir até aí então?
Franzi a testa, sem indicar nenhuma resposta. Acho que ele entendeu
minha indecisão como um sim, porque começou a vir na minha direção. Ele
estava andando visivelmente devagar e com as mãos erguidas em frente ao
corpo, no gesto universal de ―calma, não vou machucar você‖.
— Eu venho em paz — disse, abrindo um sorrisinho. Um sorriso ao
mesmo tempo seco, gentil e cauteloso.
Não tive como não sorrir de volta.
O garoto abaixou suas mãos e abriu ainda mais seu sorriso para mim.
Em seguida, a dorzinha explodiu no meu peito como uma bomba,
espalhando calor por todo o meu corpo.
Quente. Eu me senti quente por dentro. De verdade, como me senti
com o toque de sua mão debaixo d’água. Meu sorriso cresceu também.
— Esse sorriso quer dizer que posso chegar mais perto?
— Não — disse eu, baixinho.
Ele parou de andar, surpreso com as minhas palavras, ou talvez só
com o som da minha voz.
— Sério? — perguntou, depois de um instante.
— Vá para a grama — disse eu.
Ele franziu a testa, juntando suas sobrancelhas escuras.
— Por quê?
— Eu não gosto desta estrada. Quero voltar para lá — disse eu,
apontando com a cabeça para a encosta que eu tinha acabado de subir.
Ele continuou franzindo a testa, mas vi seu sorriso curvando o canto
de sua boca de novo.
— Tu-udo bem. — Ele me olhou nos olhos com um ar pensativo. A
mensagem estava clara: eu era o frustrante enigma que ele estava
enfrentando com calma.
Mas então ele sorriu, com os lábios fechados e uma covinha no
queixo, como um garotinho, e acenou a cabeça para mim. Ele enfiou as
mãos nos bolsos do jeans, virou-se de lado e começou a andar de volta até a
encosta.
Devagar. Devagar demais. Mexendo as pernas com um jeito lerdo e
exagerado. Soltei um suspiro alto.
— Dá para ir mais depressa, por favor?
Ele deu risada, ainda se afastando de mim.
20
— Você é meio mandona, sabia? Parece que você não é muito de
conversa...
Levando em conta que você é a primeira pessoa com quem eu falo em
sei lá quanto tempo desde que eu morri...
— Você nem imagina — murmurei.
Não sei se ele me ouviu, porque hesitou um pouco. Mas então
continuou andando em frente, só que sem aquele jeito lerdo forçado. Depois
que ele percorreu uns três metros, comecei a segui-lo. Mas ainda mais
devagar do que ele, tentando pensar, pensar,pensar no que eu iria fazer, ou
falar, quando ele parasse.
Por sorte, ele continuou andando e passou pelo carro preto e pelo fim
da ponte até chegar ao gramado da encosta. Estava tão preocupada com a
conversa que logo iríamos ter que nem percebi quando ele parou e se virou
para mim. Ergui a cabeça bem a tempo de parar de repente a apenas um
passo dele, ao alcance de seus braços.
Senti uma onda de pânico. Poderia ter trombado nele. Se isso tivesse
acontecido, eu o teria sentido, pele contra pele em um glorioso toque, ou
apenas não sentido nada além daquela mesma barreira mortiça e
intransponível de sempre. De qualquer jeito, ele com certeza acabaria
reparando que havia algo de errado comigo e feito exatamente o que deveria:
sair correndo para longe de mim.
— Bom... — começou ele, quase como se aquela fosse uma conversa
normal.
— Bom... — respondi, olhando para os meus pés descalços, cheia de
vergonha, medo e empolgação.
— Meu nome é Joshua.
— Imaginei mesmo.
O bom humor em sua voz me fez erguer a cabeça e por fim encarar
seus olhos. Como eu já suspeitava, seus olhos eram bem escuros, mas não
castanhos. Eles tinham um estranho tom de azul profundo — quase a cor do
céu à meia-noite. Tinha certeza de que nunca havia visto olhos daquela cor
antes, e eles causaram um efeito desconcertante em mim. Fiquei ainda mais
abalada só de olhar para eles.
De repente me lembrei com grande desconforto da minha aparência:
dos nós emaranhados nos meus cabelos; da palidez espectral da minha pele;
do meu vestido sem alça, com corpete justo e saia fina, tudo totalmente
inapropriado para a situação. Devia parecer que eu estava indo para algum
concurso de beleza no cemitério. Pela primeira vez em muito tempo, quis ter
21
um espelho perto de mim, por mais que isso não fosse lá muito útil para
alguém que não tem reflexo, nem pode trocar de roupa.
Apesar disso tudo, ele pareceu não reparar no meu desconforto. Em
vez disso, me olhou bem nos olhos e sorriu para mim, por mais que seu
rosto tivesse perdido um pouco da descontração de antes. Ele agora parecia
mais contemplativo, como se soubesse que existiam mistérios entre nós.
Questões em aberto.
— Bom... — começou ele de novo.
— Você já disse isso.
— Sim, eu sei. — Riu um pouco e abaixou a cabeça, passando uma
das mãos pelo cabelo com um ar distraído até parar com ela na nuca.
Senti aquela minha dorzinha de novo, percorrendo meu corpo como
um pulso. Aquele gesto distraído — a passada inocente de mão pelo cabelo
— tinha sido absurdamente fofo. Ele parecia tão vibrante, tão cheio de vida,
que acabei deixando escapar uma pergunta sem nem perceber.
— Você quer saber o que aconteceu, não é?
Fiquei assustada com as minhas próprias palavras, piscando feito
uma idiota. Besta, besta, besta.
— Quero, sim. Quero muito mesmo. — Ele abaixou a mão do pescoço
e me olhou com mais atenção, agora já sem mais nada daquele ar brincalhão
em seus olhos.
Droga.
— Bom, é uma questão de ponto de vista, Josh — disse eu.
— Joshua. Joshua Mayhew — me corrigiu na hora. — Mas meu nome
não importa muito agora.
Tempo. Eu precisava ganhar tempo, e rápido, então disparei a
primeira pergunta que me veio à cabeça.
— Por que tenho que chamar você de Joshua se todo mundo te chama
de Josh?
— Você não é todo mundo — rebateu ele. — Mas enfim...
Percebeu que eu estava enrolando e me trouxe de volta para o rumo
original da conversa, coisa que ficou bem clara. Não tão claro, no entanto, foi
se ele estava ou não sugerindo algum elogio com essas palavras.
— Hum... — hesitei, e então me aconteceu uma coisa que não via
desde minha morte: fiquei inquieta. Peguei a borda da minha saia e comecei
a revirar as dobrinhas. Não tinha a menor ideia do que fazer.
Nem ele, pelo visto. Ele viu meus dedos enrolando a saia e então olhou
para o meu rosto até eu finalmente conseguir encará-lo de volta.
22
— Qual é o seu nome? — sua pergunta foi tranquila, gentil. Ele não
estava tentando me levar de volta para a conversa. Ele só queria saber
mesmo.
— Amélia.
— Qual é o seu sobrenome, Amélia? — Foi tão gostoso ouvir sua voz
dizendo meu nome que acabei disparando outra resposta idiota.
— Eu não sei meu sobrenome. — Ou pelo menos nunca tive a
coragem de procurar descobrir nas lápides do cemitério.
Ele ficou sem reação, surpreso.
— Hum. E onde você mora?
— Não sei também.
Desarmada. Eu estava completamente desarmada. Essa era a única
explicação racional para a minha idiotice.
— Tu-udo bem — disse ele, com o “u” arrastado de novo, mas não de
brincadeira dessa vez.
Ele olhou para os seus tênis de lona, franzindo a testa e tentando
enfiar a ponta de um pé na grama. Colocou as mãos de volta nos bolsos e
inclinou os ombros para frente, um gesto por puro reflexo que o deixou com
um ar inocente e fofo. Após mais alguns momentos de silêncio, voltou a
olhar para mim.
— Sabe, a gente tem muita coisa para conversar. — Seus olhos sérios
e intensos se fixaram nos meus. Aquela dorzinha ardeu ainda mais no meu
peito enquanto ele continuava. — Eu queria ter vindo aqui antes para
encontrar você, mas eles não me deixaram sair do hospital. Pelo visto, meu
coração pode ter... bom, eu posso ter... morrido por um tempo. Lá na água.
Ele inclinou a cabeça de lado, claramente esperando minha reação.
Estremeci, mas não desviei os olhos. Provavelmente não pareci muito
surpresa pela sua escolha de palavras também. Afinal, eu estava lá quando
tudo aconteceu. Meu rosto deve ter respondido alguma pergunta que ele
ainda estava por fazer, porque ele acenou a cabeça de novo.
— Então... — continuou — ...depois que saí do hospital, comecei a
procurar você por aí. Mas parece que ninguém viu você naquela noite. Nem
minha família, nem meus amigos, nem os paramédicos. Não só ninguém viu
você na margem, como também ninguém viu você na água junto comigo. O
que achei estranho. Porque você estava na água junto comigo, não estava?
Mordi meu lábio inferior e respondi com um leve aceno de cabeça.
— Eu sabia que não tinha imaginado você. Bom, talvez quando eu
estava, sabe, morto — ele pronunciou essa palavra como se tivesse medo
23
dela. — Mas depois disso, não. Não quando eu nadei de volta até a tona,
nem quando consegui sair da água.
Ainda mordendo meu lábio, balancei a cabeça. Não. Você não me
imaginou. Você me viu.
— Tive que praticamente roubar o carro do meu pai para sair de casa
hoje, e aí vim para cá... para a cena do crime. E cá estava você.
— Sim — murmurei, sem ter nada de inteligente para dizer. — Cá
estou eu.
— Bom... — murmurou de volta. — A gente tem muita coisa para
conversar.
— Você já disse isso.
Ele deu risada, um som que nos deixou surpresos. Em seguida,
acenou a cabeça para mim com determinação.
— Bom, é o seguinte, Amélia. A gente não precisa conversar agora.
Mas tenho que devolver o carro para o meu pai logo, porque passei a manhã
inteira tentando achar você. Além do mais, parece que esta não é uma
conversa que você quer ter, muito menos neste lugar. Não posso dizer que
não entendo você. — Ele deu uma rápida olhada para o rombo no parapeito,
estremeceu, e em seguida se virou de volta para mim. — Então, amanhã vou
estar no Parque Robber. Sabe onde isso fica?
Por mais incrível e impossível que fosse, acenei a cabeça.
Eu conhecia esse parque. De repente percebi que sabia onde ele ficava
tão bem quanto sabia meu próprio nome, assim como para que lado o
parque ficava de onde eu estava agora. Isso me veio à mente como uma
memória, uma memória genuína que não tinha surgido e se esvaído na
minha cabeça, mas que só... estava lá.
O que esse garoto estava fazendo comigo?
— Tudo bem, ótimo. Eu vou estar sentado no banco mais vazio que
encontrar no parque. E só vou aparecer lá pelo meio-dia, porque infelizmente
já estou bem o bastante para voltar à escola amanhã. Acho que consigo
convencer meus pais a me deixarem faltar na quinta aula... apelando para a
compaixão deles, sabe como é... mas não tenho como chegar antes. Enfim,
vou estar lá no parque amanhã. E vou esperar você.
— E se eu não aparecer?
Ele encolheu os ombros.
— Vou respeitar sua decisão. Ou talvez perseguir você por aí como
venho tentando fazer desde que me deram alta no hospital. Provavelmente a
segunda opção, na verdade.
24
Eu deveria ter ficado com medo. Deveria ter fugido de novo para me
esconder por anos e anos até que Joshua ficasse velho e aquela névoa
voltasse a engolir meu cérebro.
Mas em vez disso, sorri.
Ele acenou a cabeça, sorriu também, e então passou andando por
mim de volta até seu carro.
— Até amanhã — disse, com uma leve olhada para trás.
Fiquei olhando para ele, toda confusa de novo. Mas quando ele abriu
a porta do carro, aquela dorzinha incapacitante voltou a arder no meu peito.
Pelo visto, meus impulsos ainda estavam fazendo coisas estranhas comigo,
porque a dor parecia ter incapacitado tudo no meu corpo, menos minha
boca.
— Joshua? — disse eu, com um leve tropeço na voz.
— Oi? — Ele se virou na mesma hora. Podia jurar que ele parecia
ansioso, talvez até empolgado.
— Como pareço para você? — Ele inclinou a cabeça de lado, franzindo
a testa. — Como eu pareço para você? — insisti, nervosa, com medo de que
se não falasse rápido o bastante, teria tempo para perceber o quanto eu
estava soando feito uma absoluta e completa idiota.
Joshua sorriu e então me respondeu tão baixinho que mal consegui
ouvir.
— Você é linda. Linda demais para as pessoas não terem reparado em
você naquela noite.
— Ah — foi tudo o que consegui dizer.
Ele endireitou as costas e limpou a garganta.
— Bom... hum... vou embora antes que diga qualquer outra coisa que
me faça parecer tão idiota assim de novo. Amanhã então?
Acenei a cabeça, completamente atordoada.
— Amanhã.
Joshua acenou a cabeça também. Em seguida, entrou no carro e deu
ré para sair da ponte, passando bem longe do buraco no parapeito. Com um
último movimento rápido, o carro foi embora, desaparecendo de vista ao
dobrar uma curva.
25
Cinco
As horas podem parecer anos quando você está ansiosa, esperando
alguma coisa, ainda mais quando essa é uma coisa que você deseja tanto
quanto teme.
O que eu desejava, com tanta força que quase doía, era ver o rosto de
Joshua e ouvir sua voz. Enquanto eu vagava por aí, sonhando com Joshua,
nunca imaginei que ele poderia me ver, ou falar comigo de novo, muito
menos que ele fosse querer. Fiquei surpresa com o quanto eu mesma queria
isso também. Com o quanto meu desejo de ser vista, especificamente por ele,
foi se intensificando cada vez mais e mais.
Mas revê-lo implicaria dizer a verdade para ele.
Sentada à margem do rio após Joshua ter ido embora, tive a certeza
de que não conseguiria mentir para ele no dia seguinte. Não se o meu
comportamento totalmente ridículo na ponte servisse como alguma
indicação da minha capacidade de enganá-lo. Se eu o encontrasse no
parque, e a gente se falasse, eu sem dúvida alguma acabaria contando tudo:
o que tinha visto dentro d’água, e o que eu realmente era. O que, por sua
vez, sem dúvida alguma o faria sair correndo para longe de mim.
Então, mesmo se eu fosse ao parque, provavelmente nunca mais o
veria depois. Partindo desse pressuposto, tive que me perguntar o que seria
pior: a gélida solidão da minha invisibilidade ou a ardente solidão de ser
rejeitada pelo mundo dos vivos? Eu já conhecia muito bem os terríveis
limites e angústias da primeira, mas não fazia ideia do quão torturante a
segunda poderia ser.
Seguindo essa linha de raciocínio, cheguei à conclusão do que eu faria
no dia seguinte. Não iria ao parque. Iria me esconder. Só queria proteger
meu coração morto de qualquer coisa que pudesse ser pior do que aquele
torpor.
26
Provavelmente me arrependeria disso por anos e anos. Juntei meus
braços em volta dos joelhos, com uma postura derrotada.
Foi então que uma coisa me fez virar a cabeça para cima e em seguida
dar um pulo agachada na grama. A princípio, nem entendi o que me fez
reagir assim. Quando olhei para os lados, tentando encontrar alguma pista
do que tinha acontecido, percebi que o sol já tinha quase se posto enquanto
eu estava sentada ali, sentindo pena de mim mesma. O crepúsculo lançava
um brilho intenso sobre a água, mergulhando a floresta em sombras
profundas.
Mas não foram os últimos raios de sol o que me assustou, e sim a
coisa que tanto contrastava com aquela luz ardente do fim do dia: um vento
gelado e cortante que agora açoitava minhas pernas expostas e sacudia
meus cabelos.
Eu vinha experimentando tantas sensações inesperadas ultimamente
que talvez nem devesse ter ficado tão surpresa com esse vento. Mas fiquei.
No final do verão, era estranho sentir um vento gelado assim. Pior
ainda, o vento parecia não estar afetando nada à minha volta — nem a
grama alta da margem, nem os galhos dos pinheiros ali perto. O vento estava
soprando em uma direção esquisita também. Em vez de vir da água atrás de
mim e se espalhar pelo amplo vale aberto pelo rio em meio à floresta, o vento
estava vindo direto de uma fileira de árvores bem na minha frente.
Quando percebi isso, cheguei a sentir meus pelos se arrepiando. Por
impulso, ergui o braço para apreciar esse fenômeno, encantada com o
ressurgimento desse reflexo de proteção há tanto tempo dormente.
De repente, a brisa se transformou em um vendaval, jogando meus
cabelos para cima do meu rosto e tapando minha vista. Cambaleei para trás,
perdendo o equilíbrio com tanta violência. O vento uivou alto entre as
árvores, e eu ergui as mãos para proteger meus ouvidos do som. Então, tão
de repente quanto tudo tinha começado, o vento parou. O ar voltou a ficar
completamente morto.
Eu ainda estava com as mãos nos ouvidos e, sem nem perceber, tinha
fechado os olhos com força. Eu me vi quase toda encolhida, abraçando meus
próprios joelhos.
— Oi, Amélia — disse uma voz masculina, vindo languidamente de
algum lugar em meio às árvores. Continuei encolhida e abri só um olho, me
recusando a acreditar que poderia mesmo estar ouvindo alguém falar
comigo. Alguém que não fosse Joshua. — Você me ouviu, Amélia?
27
Abri meu outro olho e me endireitei devagar, ainda com as mãos nos
ouvidos, como se elas pudessem de alguma forma me proteger da voz desse
estranho. Eu não estava conseguindo controlar minhas cordas vocais. Ele
soltou um suspiro impaciente, deixando claro que estava à espera de uma
resposta minha.
— É sério, Amélia, você está sendo muito mal-educada.
— C-como é? — consegui gaguejar.
O dono da voz estalou a língua em reprovação.
— Ainda mal-educada.
Aquele tom atravessou a gélida cobertura de medo que havia
começado a se espalhar sobre a minha pele. Senti meu rosto quente com o
calor da minha raiva, como se eu até pudesse de fato ficar vermelha de raiva.
— Você está me vendo, mas eu nem sei onde você está. Não acha
que você está sendo meio mal-educado então? — esbravejei.
Ele deu risada; um som suave que não ajudou muito a dispersar
meus calafrios.
— Ah, acho que eu poderia fazer alguma coisa para remediar isso, se
você quiser.
Os galhos das árvores bem à minha frente balançaram enquanto algo
saía de trás deles. Pude perceber que seja lá quem fosse o dono daquela voz
estava vindo devagar na minha direção, talvez para me acalmar e impedir
que eu saísse correndo dali. Não foi uma tática muito eficiente, porque senti
os repuxões do meu instinto de fuga se espalhando pelos meus músculos.
Mas antes que eu pudesse consolidar minha decisão final de fugir, o
dono dessa voz emergiu das sombras das árvores, chegando à parca luz do
sol que ainda iluminava a margem.
Percebi na mesma hora que ele não era um ser vivo, ainda que, a
princípio, não soubesse dizer bem por quê. Enquanto olhava boquiaberta
para ele — outra coisa que ele provavelmente veria como uma falta de
educação —, reparei em todos os detalhes de sua aparência. Ele parecia ter
minha idade, ou alguns poucos anos a mais talvez, mas estava com roupas
estranhas e desgrenhadas: uma camisa preta desabotoada, com as mangas
arregaçadas, mostrando braceletes metálicos em seus dois pulsos; um jeans
superjusto de cintura baixa; vários colares amontoados um por cima do
outro sobre seu peito nu. Sob seus cabelos loiro-claros que caíam em cachos
emaranhados até seus ombros, ele tinha um rosto terrivelmente pálido.
Como se alguém tivesse o esfregado até arrancar toda sua cor.
28
Apesar dessa palidez, acho que alguém poderia dizer que ele era
bonito. Até sensual.
No entanto, o contraste de seu palor contra a escuridão deixava
evidente seu ar etéreo. Sua pele parecia clara demais, indiferente demais à
parca claridade do crepúsculo. Ela emitia um brilho quase imperceptível,
sem refletir a luz do sol, ou da lua, mas sim iluminada por sua própria
natureza. Como uma fotografia em preto e branco com uma leve camada de
verniz na frente de um cenário escuro. Uma figura deslocada e etérea,
exatamente como eu.
— O que você é? — murmurei.
— Você sabe muito bem o que eu sou. Sou a mesma coisa que você. A
melhor pergunta aqui, Amélia, seria: quem sou eu? — Ele parou de se
aproximar, cruzou os braços em frente ao seu peito nu e abriu um sorriso
para mim.
Então eu estava certa. Ele era um fantasma. Um fantasma que não
estava conseguindo me cativar muito. Endireitei os ombros e ergui minha
cabeça.
— Acho que não estou muito interessada nisso, mas obrigada.
— Engraçadinha. É claro que você está interessada.
— Por que eu estaria?
— Porque esta é a primeira vez que você vê alguém como você mesma.
Precisei conter minha reação de espanto. Como ele poderia saber
disso?
Pensei por um instante em rebater dizendo que isso não tinha
importância, porque ele não era o primeiro a me ver. No entanto, algum
instinto de proteção me aconselhou a não falar do Joshua. E até a deixar
qualquer pensamento sobre ele longe da minha cabeça, se possível.
Esse outro fantasma era muito esperto — ele percebeu minha
hesitação e estreitou os olhos.
— Entendo seu espanto, Amélia. Venho observando você há anos,
sempre de longe. Você nunca me viu, nunca testemunhei nenhum encontro
seu com outro de nós. A menos que você tenha saído por aí escondida —
sorriu, mostrando um dente com um pedacinho lascado, um gesto que
poderia ter sido até charmoso, se não fosse tão sinistro.
— Mas... como você sabe meu nome? — perguntei.
— Bom... — disse ele. — É que você vive gritando seu nome para os
vivos, não é?
Senti uma ânsia de vômito.
29
Esse fantasma, essa criatura morta, vinha me observando — há anos?
Se fosse assim, todos os meus momentos particulares teriam sido expostos.
Compartilhados com ele.
Cheguei a outra rápida conclusão: se ele estava me observando desde
o começo, ele tinha me deixado vagar, totalmente perdida e sozinha pelo
mundo, durante sabe-se lá Deus quanto tempo. Tinha me deixado sem
nenhum guia, sem nenhum amigo, se divertindo com a minha humilhação e
o meu isolamento. O quão cruel alguém precisava ser para ficar observando
em silêncio o sofrimento de outra pessoa por tanto tempo?
Senti a raiva se incendiar dentro de mim, ardendo como um carvão
em brasa no meu âmago. De repente, fiquei até grata por perceber que esse
fantasma parecia não ter visto Joshua e eu juntos.
— Por que eu nunca vi você? — consegui dizer depois de algum
tempo, escolhendo com cuidado minhas palavras para revelar o mínimo
possível.
— Bom... — disse ele. — Você sempre esteve perdida demais também,
cega demais para ver que eu estava lá, às vezes bem do seu lado. A não ser
naqueles momentos estranhos, quando você de repente sumia e eu tinha
que caçar você por aí depois.
Soltei um leve suspiro de alívio. Ele não podia me seguir nos meus
pesadelos. Era estranho o quanto eu agora estava grata pela solidão que eles
me traziam. Por sorte, ele não percebeu nenhuma mudança de expressão no
meu rosto por isso, e só continuou a se explicar.
— Sabe, Amélia, foi uma grande surpresa ver você se virar para mim
hoje. Porque veja bem, o vento que você acabou de sentir... bom, é uma
espécie de anúncio sobrenatural da minha chegada. É o meu cartão de
visita, por assim dizer. — Ele sorriu, quase com orgulho. — Você sempre
esteve distraída demais para sentir esse vento, assim como para me ver. Mas
agora, isso mudou.
— Sim — disse eu, seca. — Mudou mesmo.
Ele soltou um suspiro.
— Então agora obviamente estou com um dilema — ele fez uma
pausa, aparentemente à espera de alguma participação minha na conversa.
Fiquei o encarando em silêncio, tentando conter o ódio nos meus olhos. —
Meu dilema, Amélia, é bastante complexo: o que vou fazer com você agora?
Fiz uma careta.
— Como assim?
Ele suspirou de novo, para dar mais drama ao momento.
30
— Observar suas andanças sem rumo acabou se tornando um grande
passatempo meu. Mas agora que você acordou do seu torpor, não posso
mais deixar você vagar perdida por aí. Regras são regras. Então, como eu
disse: o que é que eu vou fazer com você agora?
Contive um forte impulso de gritar que ele nunca iria
fazer nada comigo. Eu já não estava mais nem um pouco irritada por ele não
ter me despertado da névoa da morte e me explicado minha verdadeira
natureza antes. A única coisa que eu estava sentindo agora era um gosto
ruim na boca só por pensar que ele esteve tão perto de mim durante esse
tempo todo. Mas em vez de expressar esses meus pensamentos, apenas
perguntei com uma voz calma e baixa:
— Qual é o seu nome?
— Em vida, meu nome era Eli.
— E na morte? — Não consegui esconder um toque de desprezo na
minha voz.
— Pode me chamar de Eli mesmo — disse.
— Acho que tenho uma solução para o seu dilema, Eli.
— Que ótimo. Que tal contar para mim então?
— Bom, Eli, acontece que agora eu já posso sentir esse seu vento. Não
é uma coisa lá muito fácil de esconder, não é mesmo? — Abri um sorriso
meigo, mas me esforçando bastante para deixar meu desdém o menos velado
possível. — Então está bem claro que você não vai mais conseguir me
observar sem ser visto, certo?
Eli franziu a testa. Pude perceber que ele não tinha nenhuma resposta
pronta, nenhuma saída para contornar minha lógica. Soltei um grito
silencioso de triunfo por dentro. Pelo visto, não havia nenhuma brecha que o
permitisse continuar me observando às escondidas.
Após uma longa pausa, Eli suspirou e abriu um sorriso. Pode ter sido
só minha imaginação, mas seu sorriso me pareceu muito menos prepotente
do que antes.
— Sim, Amélia, você tem razão. Você sempre perceberá minhas visitas
de agora em diante.
— Ótimo. Como isso já ficou claro, gostaria que você parasse de me
fazer essas visitas de agora em diante.
Uma sombra pareceu passar sobre seu rosto.
— O que você está querendo dizer, Amélia?
31
— Estou querendo dizer que já sei o que você pode ―fazer‖ comigo, Eli
— disse eu, abrindo um enorme sorriso cínico. — O que você pode fazer é me
deixar em paz. Para sempre.
Na mesma hora, as rugas na testa de Eli se aprofundaram, erguendo
os cantos dos seus lábios até ele ficar parecendo um animal selvagem
arreganhando os dentes. Quase achei que ele ia rosnar e, por reflexo, fiz uma
careta.
Ele claramente percebeu o medo na minha reação, porque sua boca se
abriu com um grande sorriso ameaçador. Só para variar, ele não estava
parecendo nada amistoso.
— Você que sabe — murmurou e, milagrosamente, se virou para ir
embora, pisando nas agulhas caídas no chão dos pinheiros. Mas antes de
entrar na floresta, parou e se virou de volta para mim. Cruzou os braços,
com seu sorriso sinistro ainda estampado no rosto. — Eu não vou mais
seguir você, Amélia. Não adianta mais mesmo. — Eli abaixou a cabeça para
me encarar, com as pálpebras baixas sobre seu olhar ameaçador. — Mas
você virá me procurar muito em breve, disso tenho certeza. Você não faz
ideia do que nós somos... do que você é. Então eu só vou te dar uma
advertência. Uma amostra do lugar ao qual você realmente pertence. Do
lugar no qual você cedo ou tarde ficará presa, agora que despertou, se não
procurar minha ajuda.
Enquanto ele dizia essas últimas palavras, senti um frio de repente,
mais intenso e cortante do que qualquer outra coisa que eu já tinha sentido.
Ao contrário do vento que anunciava a chegada de Eli, esse frio não era
direcionado, nem passageiro. Era uma sensação que estava por toda parte à
minha volta, como se a temperatura na margem do rio tivesse caído pelo
menos uns quinze graus de uma hora para a outra. Fiquei boquiaberta com
o choque térmico, e meu bafo se condensou à minha frente.
Fiquei tão chocada com o frio que quase não percebi quando o lugar
onde eu estava começou a se transformar também. Antes que eu pudesse
entender o que estava acontecendo, a margem do rio ficou escura. Em
poucos segundos, parecia que o sol já havia sumido por completo, levando
embora com ele todas as luzes e cores.
No começo, achei que o lugar onde eu estava tinha ficado totalmente
escuro, mas na verdade não era isso. Tudo à minha volta havia ganhado um
tom cinzento frio e escuro.
Olhei de volta para Eli, que parecia estar completamente tranquilo
nesse novo ambiente, com os braços ainda cruzados casualmente. Em meio
32
a essa escuridão total, sua pele parecia ainda mais clara, ainda mais
sobrenatural.
— O quê...? Onde...?
Meus sussurros não estavam conseguindo formular perguntas
concretas. Como resposta, Eli deu uma risada sinistra, mas não disse nada.
Ele passou mais um instante me encarando antes de seus olhos
começarem ir da direita para a esquerda, como se estivesse procurando
alguma coisa ao meu lado. Por puro reflexo, me virei para tentar ver seja lá o
que parecia tê-lo distraído.
Foi então que vi: diversos vultos escuros estranhos pairando ao longo
do meu campo de visão periférica. Eles pareciam enormes mariposas, ou
sombras, se remexendo e dardejando pelo ar, fora do meu campo de visão.
Eu me virei de um lado para o outro, tentando enxergá-los direito. Mas
sempre que virava a cabeça, essas sombras se moviam junto comigo,
escapando dos meus olhos.
Dei uma volta completa, me virando de novo para Eli e para o rio. E
naquele instante, me esqueci de todas as sombras que continuavam
dançando nas bordas do meu campo de visão.
Há apenas alguns minutos, havia um rio normal ali atrás de mim,
verde e lamacento sob o sol do final do verão. Mas agora, mesmo em meio à
escuridão cinzenta daquele lugar, notei que uma mudança dramática havia
acontecido naquelas águas.
Havia alguma coisa correndo nessa versão do rio, mas com certeza
não era nada tão inocente quanto água. Dentro desse novo rio, havia agora
um líquido grosso passando por mim. Era algo mais parecido com piche,
uma substância tão imunda e escura que eu mal podia perceber qualquer
sinal de movimento em sua superfície.
Mas aquilo estava se mexendo, sim, se arrastando na direção da Ponte
Alta. Bem devagar, virei minha cabeça para a ponte, mas antes que eu
pudesse assimilar sua nova forma, minha atenção foi desviada para o que
havia embaixo dela — o lugar para onde o rio negro parecia fluir.
Ali, embaixo do que poderia ou não ser a Ponte Alta, havia agora um
enorme abismo negro. Como se fosse possível, esse buraco era ainda mais
escuro do que as margens cinzentas, mais até do que o próprio rio. A parte
de cima desse vazio tocava no teto da ponte, e sua parte inferior resvalava na
água e nas margens próximas. Olhando lá para dentro, não consegui ver
onde esse breu acabava, nem nenhum pontinho de luz em meio a toda
aquela escuridão.
33
Era a coisa mais escura naquele mundo já imerso em trevas.
Aquilo parecia quase pulsar embaixo da ponte, como se fosse uma
criatura viva, à espera de alguma coisa. Talvez de mim.
Consegui, com grande dificuldade, desviar meu rosto daquele abismo
embaixo da ponte e olhar com horror para os meus pés. Meus dedos
estavam avançando, por vontade própria, na direção do rio — sendo atraídos
por alguma força invisível até a água. Com certo esforço, consegui afastar
meus pés da borda do rio.
Eu me virei de volta para Eli, realmente assustada agora. Mais
assustada do que jamais tinha me sentido antes.
— Onde estou? — por fim consegui perguntar.
— Você quer saber mesmo? — sussurrou, com seus olhos brilhando
com o que só podia ser um deleite maligno. Acenei mecanicamente. Em
resposta, Eli virou sua cabeça de um lado para o outro, apontando para o
sombrio cenário à nossa volta. — Esta é uma parte do além, Amélia. É para
cá que os espíritos mortos devem vir. Durante seus tempos perdida, deixei
você longe deste lugar. Mas agora, só uma coisa pode impedir que você
acabe sendo aprisionada aqui para sempre.
Ergui uma sobrancelha. Tive a sensação de que já sabia qual ―coisa‖
era essa. Ele confirmou as minhas suspeitas assim que continuou.
— Sem mim, Amélia... — insistiu — ...você ficará presa aqui. Sem
mim, você passará a eternidade neste lugar, sem acesso ao mundo dos vivos.
Então agora você já sabe por que eu tenho a certeza, sem nenhuma sombra
de dúvida, de que você acabará vindo me procurar de novo. Tudo o que você
precisa fazer é me chamar da Ponte Alta... e eu sei que isso irá acontecer, e
em breve.
Apesar do pavor que dominava cada centímetro do meu corpo, eu me
irritei com as palavras de Eli. Com essa sua ideia de que eu precisava dele,
de que eu não teria como escapar deste mundo grotesco sem ele. Mesmo
naquela situação, eu ainda tinha bom-senso o suficiente para suspeitar das
suas motivações e para me lembrar de que esse jovem espectro não tinha
nem um pouco a ver com a minha concepção de anjo da guarda.
Endireitei as costas o máximo que pude e o encarei direto nos olhos.
— Vamos ver, Eli — murmurei. — Vamos ver.
Agora foi a vez de Eli erguer uma sobrancelha. Ele obviamente não
estava esperando essa pequena demonstração de coragem. Em vez de me
reprimir, no entanto, ele me deu um último aceno distraído de cabeça e se
virou de novo para então desaparecer em meio ao que antes era a floresta.
34
Se um forte vento gelado anunciava a chegada de Eli, o exato oposto
marcava sua partida. Por um longo instante, foi como se um vácuo tivesse
sugado tudo à minha volta, inclusive aquele vento gelado. Eu não senti nada
— nem o frio, nem a brisa, nem sequer eu mesma. Nunca me senti tão
entorpecida em toda a minha existência pós-vida. Engasguei, pondo as mãos
na garganta.
Em seguida, tudo passou quase tão rápido quanto tinha começado.
Os tons verdes suaves das margens reapareceram, brilhando ao meu
redor, e a brisa do final do verão voltou a aquecer gentilmente meus
pulmões. Enquanto tentava recuperar o fôlego, tombei de quatro na grama.
35
Seis
Naquela noite, não marquei as horas andando inquieta de um lado
para o outro como na anterior. Em vez disso, apenas vi o tempo passar
totalmente inerte, agachada na margem do rio, sem tirar os olhos do lugar
entre as árvores onde Eli tinha desaparecido. Continuei imóvel enquanto o
sol nascia sobre os picos das árvores. Fiquei o tempo todo com as mãos
firmes na grama, pronta para sair correndo a qualquer momento assim que
sentisse outra rajada daquele vento frio.
Por fim, a muito custo, consegui me mexer. Centímetro por
centímetro, me levantei da minha postura defensiva, sem nunca tirar os
olhos das árvores à minha frente. Arrisquei uma olhada para cima, tentando
calcular quanto tempo eu tinha passado ali em alerta contra o nada. Pisquei
com surpresa ao ver a claridade do dia.
Embora densas nuvens cinzentas estivessem cobrindo quase tudo
acima de mim, pude avistar um ou outro raio de sol furando aquela
cobertura mais ou menos no meio do céu. Já devia ser quase meio-dia.
Enquanto esperava ali, quase um dia inteiro já tinha se passado sem
a volta de Eli. Sem a volta daquele mundo sombrio e medonho que ele tinha
me mostrado.
À minha frente, a floresta continuava sendo apenas o que era: uma
floresta viva normal, com árvores vivas normais. Arrisquei outra olhada para
trás por cima do meu ombro. O rio, agora verde e lamacento de novo, corria
rápido em direção à Ponte Alta, embaixo da qual não havia mais nada além
do próprio rio.
Forcei meu corpo a relaxar e então espreguicei cada um dos meus
membros. Foi um esforço desnecessário, já que meus músculos mortos não
tinham muito como se contrair, mesmo quando eu passava várias horas em
uma mesma posição. Ainda assim, aquilo me pareceu adequado. Eu queria
sentir aquela nova determinação não só na minha mente, mas no meu corpo
— aquela determinação de nunca deixar que Eli me controlasse.
36
Essa determinação me pareceu importante — talvez até crucial —,
porque eu suspeitava de que acabaria o reencontrando. Embora Eli tivesse
prometido ficar longe de mim por um tempo, ele também disse que havia
várias coisas sobre ele e sobre as pessoas como nós que eu não sabia, nem
entendia, coisas que ele cedo ou tarde acabaria me contando. Suas palavras
claramente tiveram um tom de ameaça, ainda mais por terem sido ditas
naquele lugar terrível que ele me mostrou.
Ainda assim, por mais que eu ignorasse muitos detalhes da minha
natureza etérea, já não ignorava mais certas coisas. Não tinha dúvida de que
perceberia a aproximação de Eli da próxima vez que sentisse aquele vento
cortando minha pele. Ele não conseguiria me levar de volta para aquele lugar
sem que eu antes percebesse sua presença. Isso me trouxe um certo
conforto.
Não tinha como prometer a mim mesma que não ficaria sempre
atenta, alerta e assustada. Mas me recusava a ficar esperando na margem
daquele rio. Porque não queria continuar sendo prisioneira da névoa da
morte, ou do meu próprio medo.
E porque já era quase meio-dia, a julgar pela posição do sol.
Ontem, eu tinha decido não me encontrar de novo com Joshua.
Estava determinada a me esconder e deixar que a solidão me engolisse de
volta. No entanto, após a repentina aparição de Eli, já não tinha mais a
menor intenção de voltar a me perder naquela névoa. Agora queria ficar o
mais desperta e viva possível.
E Joshua tinha feito eu me sentir tão viva. Ele era o motivo por trás de
toda aquela mudança, daquela novidade. O motivo pelo qual eu havia
emergido da névoa.
Eu não sabia explicar isso, nem por que havia ficado vagando por aí
após minha morte, ou mesmo por que eu não sabia de nada. Mas os novos
desejos que haviam me arrebatado após aquele incidente com Joshua
continuavam os mesmos. Aliás, eles tinham ficado mais fortes, mais
intensos. Mais ainda do que da primeira vez que o vi, eu queria estar perto
dele. Queria sentir seu toque, só mais uma vez, quem sabe. Qualquer coisa,
até vê-lo fugindo de mim quando descobrisse a verdade, já valeria o risco.
Agora já podia sentir um novo propósito para o dia de hoje. Olhei para
o rio e sua margem mais uma vez, assimilando aquela cena com a água
verde e a grama amarelada do verão. Aquele era o cenário de várias
transições minhas: da vida para a morte... e talvez agora de uma volta para
algum outro tipo de vida? Talvez. Valeria a pena tentar descobrir.
37
— Adeus — disse eu em voz alta para a água.
E então comecei a correr, com meus pés descalços voando pelo barro e
pela grama, deixando o rio e a Estrada Ponte Alta bem para trás.
Cheguei ao parque quase em cima da hora. Um relógio instalado no
alto de uma enorme plataforma de madeira em frente à entrada do lugar
marcava 11h50.
Desacelerei o passo e segui em frente quase que só caminhando pela
trilha cercada de cedros que levava até a área de piquenique. Apesar de ter
acabado de correr por vários quilômetros, não estava sem fôlego, nem
mesmo despenteada. Ainda assim, comecei a ficar inquieta, alisando as
dobras invisíveis na saia do meu vestido e passando as mãos pelas grossas
ondas dos meus cabelos. Eu estava... tensa. Parece que até os mortos podem
ter ataques de nervos.
Quase dei meia-volta, sentindo minha determinação de antes se
esvair. Meu futuro estava ligado a Joshua e ao resultado da nossa conversa.
Podia sentir isso dentro de mim e agora já não entendia mais como consegui
decidir enfrentá-lo com tanta ousadia.
Mas meus pés me traíram. Ou me foram mais fiéis, dependendo do
ponto de vista. Eles continuaram me levando pela trilha, cruzando um
estacionamento e um bosque de pinheiros, alguns bancos vazios, até por fim
chegarem ao único que estava ocupado.
Joshua estava sentado, não no banco em si, mas na mesa de concreto
à sua frente. Ele estava olhando para a esquerda, na direção das árvores que
cercavam a clareira da área de piquenique. Seu rosto de perfil — com sua
mandíbula reta, seus ossos altos das bochechas e lábios carnudos — me
deixou arrepiada, me senti inundada por uma onda de desejo e medo ao
mesmo tempo. Vi suas sobrancelhas escuras se juntarem enquanto ele
continuava analisando o bosque. Talvez ele estivesse achando que eu não
iria aparecer mesmo.
— Oi, Joshua.
Por mais que eu tivesse apenas sussurrado essas palavras, sua
cabeça se virou para mim. Em seguida, um enorme sorriso radiante se abriu
em seu rosto. Ele pulou de cima da mesa e veio na minha direção com um
braço erguido como se quisesse tocar em mim.
Por instinto, dei um rápido passo atrás.
Ele parou e franziu a testa.
— Ah... desculpe. Me empolguei demais?
38
É claro que não, meu Deus. Eu só não queria que tudo acabasse antes
mesmo de começar.
— Não — disse eu em voz alta. — Só... fiquei surpresa.
Ele deu risada.
— Desculpe. Acho que acabei parecendo um labrador empolgado, todo
grande e bobo. Mas é que eu também fiquei meio surpreso, sabe?
— Por quê?
— Porque você apareceu assim, de surpresa. — Ele abriu um leve
sorriso, e a sombra de uma covinha repuxou sua bochecha.
Acabei sorrindo de volta um pouco também.
— Bom, eu sempre tento agradar.
— Então missão cumprida.
— Ah.
Boa, Amélia!, gritei, dentro da minha cabeça. A morte claramente não
tinha aprimorado meu vocabulário. O sorriso tímido de Joshua cresceu um
pouco mais, talvez como um sinal de que ele estava se divertindo com a
confusão estampada no meu rosto.
Infelizmente, essa nossa brincadeira não tinha como durar para
sempre. Ele apontou para a mesa com uma das mãos como um garçom de
um restaurante chique.
— Um banco tranquilo no parque, como prometido.
Soltei um suspiro. Pelo visto, eu não tinha mais como evitar aquele
momento.
— Sim, acho que já é hora.
As sobrancelhas de Joshua se juntaram enquanto eu passava por ele
para me sentar no banco.
— Olha, não quero fazer isso como se fosse a inquisição espanhola,
nem nada.
— Eu sei — disse eu sem rodeios.
Eu me sentei, sentindo a pressão do banco, mas não o banco em si, e
cruzei minhas mãos em cima do colo. Joshua se virou para mim, mas não se
sentou. Abaixei a cabeça, tentando me preparar para o inevitável desfecho
daquela conversa. Mas tinha uma coisa que eu precisava saber primeiro.
— Antes de começar com as explicações, posso fazer uma pergunta?
— Claro.
Ergui a cabeça e o vi pondo as mãos nos bolsos do jeans e inclinando
a cabeça para o lado. A julgar pela sua postura, ele já parecia estar bastante
perplexo com meu comportamento, então fiz minha pergunta com cuidado.
39
— Você... se jogou para fora daquela ponte de propósito?
— Hah! — exclamou, como se fosse uma risada. — Não exatamente.
Foi estranho, mas ele me pareceu quase envergonhado. Inclinei a
cabeça de lado também e ergui uma sobrancelha para encorajá-lo a
continuar. Ele riu de novo, meio tímido, e com um lindo rubor corando suas
bochechas.
— A única coisa que eu fiz de propósito foi pegar um atalho imbecil. —
Como não abaixei a sobrancelha, Joshua continuou falando. — Eu estava
seguindo uns amigos até uma festa. Por algum motivo idiota, decidi cortar
caminho pela Estrada Ponte Alta. Não tenho a menor ideia de por que eu fiz
isso. Minha família já tinha praticamente me proibido de passar por aquela
ponte, porque ela é muito perigosa mesmo. Mas enfim, quando eu estava
chegando perto da Ponte Alta, achei que tinha visto sei lá o que no rio. Eu
me distraí, e quando olhei de volta para a estrada, vi alguma coisa vindo na
minha direção... um cervo, ou um lince, não sei bem, era um bicho tão preto
que eu não tinha como saber. Eu desviei para não atropelar seja lá o que
fosse aquilo e aí meu carro rodou para fora da ponte. Devo ter batido a
cabeça do volante, porque não me lembro de mais nada do acidente depois
disso. Graças a Deus, estava com a janela aberta. Acho que foi assim que saí
do carro antes de afundar junto com ele.
— E seus amigos chegaram tão rápido lá por quê...?
Ele encolheu os ombros com um ar envergonhado.
— Porque... hã... porque a cerveja estava no meu carro.
Quando ele terminou, soltei o ar bem devagar. Fiquei contente por
estar errada quanto a pelo menos uma das minhas teorias por trás da nossa
interação: não era o suicídio o que nós tínhamos em comum, mas apenas o
fato de termos morrido naquele mesmo lugar, por mais que ele só tivesse
passado alguns instantes morto.
— Seria estranho, Joshua, se eu dissesse que fico feliz por isso?
— Por quê? Por eu gostar de cerveja?
Abri um leve sorriso.
— Não, por você não ter se jogado da ponte de propósito.
Ele deu risada.
— Então não é nem um pouco estranho. Eu dificilmente escolheria a
Ponte Alta para fazer uma coisa dessas, sabe? — brincou. Engasguei ao
ouvir isso. Vendo minha reação estranha, ele voltou a falar rápido, com um
ar quase culpado. — Desculpe. Eu... olha, não sei nem por que disse isso.
40
Não estou querendo irritar você, nem nada. Eu acho que... enfim... você não
tem por que aguentar isso. Você não tem por que me falar nada, digo.
— Na verdade, tenho sim — disse eu, sem conseguir esconder a
tristeza na minha voz. — Acho que não tenho outra escolha, se quiser voltar
a falar com você. Isso se é que você vai querer continuar falando comigo
depois.
— Por que eu não iria mais querer falar com você?
Seu tom gentil, e a mensagem em suas palavras, me fizeram encará-lo
de frente. Ao ver seus estranhos olhos azuis fixos nos meus, senti aquela
dorzinha se reacender no meu peito.
— Você não vai mais querer falar comigo porque eu vou te contar a
verdade.
— E a verdade vai fazer... o quê? Eu decidir me afastar de você? — Ele
sorriu, erguendo uma sobrancelha, claramente incrédulo.
— Mais ou menos isso — murmurei.
— Acho difícil de acreditar — disse ele, enquanto desviava os olhos de
mim por um instante para vir até o banco e finalmente se sentar ao meu
lado.
— Na verdade, você provavelmente vai achar o que eu estou prestes a
dizer bem mais difícil de acreditar. Mas é a verdade.
Ele juntou as mãos e chegou mais perto de mim, apoiando os
cotovelos nos joelhos antes de voltar a erguer seus olhos até os meus.
— Ótimo. Eu quero ouvir a verdade, Amélia.
Inexplicavelmente, minha respiração disparou. Um pulso, coisa que
eu sabia que não tinha, começou a fluir pelos meus braços e pelo meu
pescoço. Poderia jurar que até senti um calor pela proximidade de seu corpo
— um calor que ameaçou corar as minhas bochechas irremediavelmente
pálidas até então. Era o tipo de calor que poderia me levar a fazer ou falar
qualquer coisa. Palavras começaram a escapar da minha boca quase sem
que eu conseguisse pensar em nada direito.
— Você disse que me viu embaixo d’água, certo?
— Sim.
— E você foi a única pessoa que me viu?
— Sim — disse ele, todo paciente e calmo. Minha voz, no entanto, não
parava de vacilar enquanto continuava.
— Bom, acho que você me viu porque... enfim, porque você morreu.
Ele voltou a franzir a testa.
41
— Eu sei que estive morto mesmo, pelo menos por alguns segundos.
Mas não sei bem aonde você quer chegar.
— Você não conseguiu me ver antes, certo? Não antes de você...
morrer.
Quanto mais eu falava, menos eu conseguia respirar. Joshua também
parecia estar confuso com o que eu estava dizendo. Ele respondia devagar,
metodicamente, como se precisasse se agarrar à sua racionalidade para
continuar aquela conversa.
— Amélia, não consegui ver você porque estava desmaiado antes do
meu coração parar.
— Não. Bom, sim, você estava desmaiado. Mas não foi por isso que
você não conseguiu me ver. Mesmo se você estivesse consciente, não teria
conseguido me ver. Ainda não, pelo menos.
— Hã? — as rugas em sua testa se intensificaram enquanto ele se
aproximava de mim.
De repente, percebi que eu já não conseguia mais controlar o fluxo
das minhas palavras. Foi como se eu tivesse arrancado uma fita adesiva
grossa que estava cobrindo minha boca. Queria me livrar daquilo e explicar
tudo de uma vez só para poder respirar de novo.
— Eu tenho uma teoria, ou quase isso. Não tenho como ter certeza,
mas acho que ninguém pode me ver, a não ser alguém que seja... bom, como
eu. É por isso que as pessoas na margem do rio não conseguiram me ver, e é
por isso que o Eli consegue me ver. Porque ele é como eu.
— Quem é esse Eli?
Eu estava com tanta pressa para pôr a verdade para fora que quase
perdi o controle das coisas que escapavam da minha boca.
— Desculpe — grunhi. Abaixei a cabeça e pus as mãos no rosto,
fechando os olhos com força. — Isso não está fazendo sentido nenhum, não
é?
A resposta de Joshua me surpreendeu. Ele não parecia frustrado, nem
mesmo confuso. Em vez disso, sua voz agora estava empolgada, intensa.
— Amélia, estou me esforçando muito para entender tudo isso. Sei
que alguma coisa... estranha aconteceu. E está acontecendo. Acredito na
sua explicação. Só vá devagar, tudo bem?
Ergui meu rosto para encará-lo. Seus olhos estavam lindos, e sérios;
eles me lembraram do céu à noite. Tentei expulsar essa distração da minha
cabeça para conseguir me concentrar naquela conversa bizarra.
— Joshua, não tenho a menor ideia de como dizer isso...
42
— Tudo bem. Vai dar tudo certo.
Desviei meu rosto para o chão de terra vermelha à nossa frente com
um olhar vazio. Quando voltei a falar, as palavras saíram devagar.
Dolorosas.
— Acho que você me viu, e ainda pode me ver, porque nós temos
algum tipo de... sei lá... conexão mágica ou espiritual. Você é como eu. Ou
pelo menos foi por alguns instantes.
Os olhos de Joshua se estreitaram.
— O que esse ―como você‖ quer dizer...?
— Que você morreu. — A palavra ―morreu‖ pairou densa no ar entre
nós, como uma faca só esperando para cair.
A testa de Joshua se enrugou enquanto tentava entender o que eu
tinha dito, enquanto tentava seguir o confuso raciocínio que eu havia
construído. Ele podia não ter juntado todas as peças do quebra-cabeça
ainda, mas logo conseguiria. A cada segundo que passava, podia vê-lo
ligando tudo, peça por peça. Ele iria surtar a qualquer momento e me
chamar de maluca ou... pior ainda... acreditar em mim.
— Tudo bem — arriscou ele, hesitante. — Então você e eu, nós
morremos? Eu no rio aquela noite, e você em algum momento no passado?
— Sim. Naquele mesmo rio, na verdade.
— Nossa. — Ele pareceu surpreso, mas depois se recompôs. — Então
você está dizendo que essa ―conexão‖ explica por que eu fui o único que
conseguiu ver você? Isso é algum tipo de mágica, ou coisa assim? — hesitou
para dizer essas últimas palavras, como se estivesse se arriscando em
alguma nova língua estranha.
— Acho que sim. — Voltei a olhar para o meu colo.
— E essa conexão existe porque você morreu? — perguntou ele.
Apenas acenei a cabeça. — E você voltou à vida, como eu?
Um instante ou dois se passaram, e então...
— Não, Joshua. Isso, não. — Por um instante, ficamos apenas em
silêncio. Em seguida, eu o ouvi puxando o ar com um fôlego tenso. Era
agora... o grande momento. O desfecho. Terminei com um mero sussurro: —
O que acontece, Joshua... é que eu nunca voltei à vida.
No pior momento possível, fui acometida por uma daquelas novas
sensações imprevisíveis. De repente, senti uma brisa morna contra a pele
das minhas pernas e dos meus braços. O ar parecia carregado, elétrico,
como se o céu cinzento estivesse para se abrir em meio a raios e trovões e
43
uma tempestade fosse desabar à nossa volta. Arrepios subiram pelos meus
braços. Arrepios de verdade, como os que Eli havia causado em mim.
Eu não consegui erguer o rosto para olhar nos olhos de Joshua, mas
pude ouvi-lo gaguejar, soltando grunhidos de incredulidade. Em seguida, ele
ficou muito quieto e imóvel. Esse hiato durou talvez um minuto inteiro até
que ele então voltou a falar com uma calma inexplicável.
— Amélia, você está tentando me dizer que você está...?
— Morta — disse eu na mesma hora, porque me pareceu inútil tentar
adiar o inevitável.
— Morta — repetiu ele, sem qualquer emoção na voz.
Outro instante se passou e então, de repente, Joshua pulou para fora
do banco. Ele se virou para mim. Fiquei olhando para ele, com certeza de
olhos arregalados e com cara de assustada. Seu rosto, no entanto, estava
sem expressão alguma. Era como se ele estivesse usando uma máscara —
escondendo talvez medo, raiva, ceticismo, ódio? Eu não tinha a menor ideia.
Eu não tinha como aguentar. Não tinha como aguentar aquele olhar
vazio em seu rosto, um olhar que eu tinha causado com a verdade. Ele agora
achava que eu era uma louca, ou sabia que eu estava morta. Seja lá qual
fosse sua conclusão, eu com certeza perderia o pouco contato que havia
conseguido ter com ele.
Naquele instante, me senti mais sozinha do que nunca. Sozinha pelo
resto da eternidade talvez, e agora com a dolorosa consciência de tudo o que
eu jamais poderia ter.
— Sinto muito — murmurei, pedindo desculpas para ele, para mim
mesma, para sabe-se lá quem, e então tapei minha boca com a mão.
Eu estava tão distraída sentindo pena de mim mesma que quase nem
percebi uma coisa na minha bochecha. Uma coisa quente e úmida que
escorreu até o canto da minha boca. Sem desviar minha atenção de seu
rosto vazio, encostei um dedo na borda do meu olho e então o levei até meus
lábios. Senti um gosto salgado.
Uma lágrima. Meus olhos mortos haviam derramado uma lágrima.
Alguma coisa naquela lágrima solitária deve ter reanimado Joshua,
porque sua expressão vazia de repente se dissolveu. Seus olhos e sua boca
relaxaram.
— Amélia — sua voz saiu rouca e se esvaiu. Meu nome nunca soou
tão lindo.
44
Joshua esticou o braço, erguendo sua mão como se fosse acariciar
minha bochecha. Sem dar atenção a nada além daquela dor que ardia
dentro de mim, eu me inclinei para mais perto dele.
Nada poderia ter nos preparado para o momento em que sua pele
voltou a tocar na minha.
45
Sete
Não deveria ter me surpreendido. Meu mundo já tinha mudado da
primeira vez em que ele pôs a mão na minha bochecha — e não havia
nenhum motivo para não mudar de novo agora que ele tinha repetido esse
gesto.
Mesmo assim, quando sua mão tocou o meu rosto pela segunda vez,
nós dois prendemos o fôlego e nos afastamos um do outro, chocados. Meus
dedos voaram por reflexo até o ponto que ardia na minha bochecha, e ele fez
o mesmo, pondo sua mão esquerda sobre a direita.
Nossos gestos poderiam parecer tímidos, até defensivos, para alguém
que visse de fora. Mas para mim, foi exatamente o contrário.
Assim que sua pele roçou na minha, um pulso eletrizou meu corpo
todo, desde minha cabeça até a ponta dos dedos. Esse pulso fez a dor no
meu peito e os arrepios que se espalhavam pela minha espinha sempre que
ele me olhava parecerem meras cinzas mortiças. Meu coração, meu cérebro,
minha pele, enfim, meu corpo inteiro foi engolido por chamas, em um
incêndio causado por apenas aquela faísca na minha bochecha.
Eu nunca tinha sentido nada tão intenso. Nem em morte... nem em
vida. Tive certeza disso, bem no fundo do meu âmago.
Joshua ficou olhando para mim, esfregando a própria mão. Ele
continuava ofegante, como se tivesse acabado de correr uma maratona. Em
seguida, ainda sem fôlego, ele abriu um sorriso. Um sorriso enorme.
— O que... — por fim conseguiu dizer ele — ...foi isso?
— Não tenho a menor ideia — disse eu, e depois comecei a rir. — Quer
fazer de novo?
— Ah, claro — ronronou ele, e então se inclinou para pegar minha
mão do meu colo.
Como tinha acontecido com minha bochecha, nosso contato não foi
perfeito, por assim dizer. Não consegui sentir a textura de sua pele, nem a
força dos seus dedos nos meus, e sim apenas aquela velha pressão já
familiar que eu sempre sentia quando tentava tocar em alguma coisa do
mundo dos vivos. Mas não senti a dormência de sempre; aquele pulso
46
incendiário voltou a me eletrizar, tão intenso e fantástico quanto antes, sem
nenhuma gota daquela velha dormência.
Nós puxamos nossas mãos para trás ao mesmo tempo, perdendo o
fôlego de novo.
— O que... o que você sentiu? — por fim gaguejei.
— Uma ardência, parece um fogo. Da melhor maneira possível. E
você?
— A mesma coisa. É bom. — Encolhi os ombros, quase tímida. — É
muito bom.
— Nossa, estou sem fôlego — confessou ele, abrindo um sorriso.
— Também — disse eu, rindo. — O que não é pouca coisa para
alguém que na verdade não precisa respirar.
Ele parou de sorrir e inclinou sua cabeça um pouco para o lado. Me
arrependi das minhas palavras na mesma hora. Eu tinha arruinado nosso
momento feito uma idiota, nos jogando de volta ao pesado assunto em
questão. Balancei a cabeça, enfurecida comigo mesma.
É melhor parar com a brincadeira e acabar com tudo de uma
vez, pensei com amargura. Respirei fundo para me endireitar e ir direto ao
ponto.
— Bom, Joshua, acho que então é agora que você vai sair correndo e
gritando de medo noite a fora, não é? — Parei para olhar à minha volta,
vendo a clareira iluminada pelo sol daquele dia nublado. — Metaforicamente,
digo.
— Amélia, estou correndo por acaso?
Cheguei para trás, surpresa.
— Bom... não.
— E por que eu sairia correndo?
— Porque qualquer pessoa em sã consciência acharia que estou
louca... ou morta.
— Não acho que você esteja louca — disse ele com uma voz tranquila
e baixa.
— Hum... bom, então... — meu cérebro não conseguiu formular
nenhuma frase racional.
— Então... — disse ele, para terminar meus pensamentos confusos. —
Por eliminação, resta apenas uma conclusão possível.
Continuei de boca fechada e analisei seu rosto. Seus olhos azuis,
escuros como a meia-noite, estavam arregalados e um pouco surpresos. Ele
parecia tão espantado quanto eu pelo rumo da nossa conversa. Ainda assim,
47
ele parecia estar totalmente sério, talvez até... levando tudo na boa? Balancei
a cabeça, perplexa.
— Você acredita em mim?
— Acho que sim.
— Você acredita que eu estou... morta? Que eu sou um fantasma?
Joshua soltou um longo fôlego e passou a mão pelos seus cabelos
escuros.
— Sim, acho que não tenho outra opção — disse ele, encolhendo os
ombros. — Porque bom, não sei como explicar o que aconteceu no rio. Nem
como você poderia estar lá na água comigo, sem estar se afogando. Ou como
você estava lá na margem depois, já seca, aliás, mas ninguém viu você. Nem
a sensação que eu tive quando toquei em você. Enfim, a menos que você
esteja viva, mas tenha guelras, consiga ficar invisível e tenha o corpo
eletrificado.
Encolhi os ombros também.
— Sei lá. Talvez seja isso mesmo.
Ele sorriu; um gesto incrivelmente casual, levando em conta nosso
assunto.
— Então quer dizer que você não sabe se é comum ter o corpo
eletrificado entre os fantasmas?
Olhei para ele, boquiaberta. Ele estava fazendo uma piada com o fato
de eu estar morta?
— Hum... não, Joshua, não faço ideia do que é ou não comum entre
os fantasmas. Esta é a primeira vez que eu... hã...
— Que você assombra alguém? — sugeriu.
— Sim, é a primeira vez que assombro alguém — bufei.
— Então me sinto lisonjeado.
— Joshua... — disse eu, coçando a testa. — Você está encarando tudo
isso bem demais.
Ele suspirou, ainda sorrindo e se sentou ao meu lado de novo.
Arrepios, como as pequenas labaredas que eu tinha acabado de sentir,
percorreram o lado do meu corpo mais próximo dele.
— Sabe, cresci ouvindo histórias de fantasmas. Especialmente sobre
aquela ponte, que a minha avó contava. Eu nunca acreditei nessas coisas, é
claro. Mas como eu já disse antes, agora meio que não tenho outra opção,
tenho? Porque se não, sou eu quem ficou louco, e agora estou aqui, falando
com uma menina linda, eletrificada e imaginária.
48
— Juro que não sou imaginária. — Um sorriso incontrolável se abriu
no meu rosto. — Eu saberia se fosse imaginária, não é?
Ele riu, esfregando a palma da mão na perna, e então a ergueu como
se fosse fazer a mesma pergunta para o céu.
— Sei lá, vai saber? Talvez nós dois sejamos loucos. Mas prefiro
pensar que não estou aqui falando sozinho num banco de um parque.
— Bom, você provavelmente está, sabe.
— Ah... — ele franziu a testa. — Não tinha pensado nisso. — Ele olhou
para os lados e ficou aliviado ao ver que estávamos sozinhos. — Vamos ter
que tomar mais cuidado com isso da próxima vez, não é?
— Sério? — gaguejei. — Então você está pensando em conversar
comigo de novo... e em público?
— Claro — ele balançou a cabeça com um ar impaciente e então
mudou o rumo da conversa de repente. — Mas então, sou mesmo a única
pessoa que consegue ver você?
— A única pessoa viva, sim — especifiquei.
— Mas e quanto a outros mortos?
Sua pergunta, e o fato de eu não ter a menor ideia de quais regras
regiam esse tipo de coisa, me causaram um baque desconcertante. Porque
eu só conhecia uma única pessoa capaz de me dar essa resposta — Eli. Eli,
que claramente podia me ver, e que eu agora conseguia ver também. Ele
poderia me explicar todos os ―comos‖ e ―porquês‖ do que estava acontecendo
entre Joshua e eu. Mas espantei na mesma hora a ideia de falar com ele da
minha cabeça. Eu tinha jurado para mim mesma nunca deixar que a
profecia feita por Eli, de que eu o procuraria por vontade própria, se
concretizasse. Muito menos deixar que Joshua soubesse sobre Eli se eu
pudesse evitar.
— Não sei muito bem — respondi, medindo as palavras. — Não tenho
muita experiência com isso.
— Hum... — Joshua ponderou minha resposta por um instante.
Imaginei que ele poderia me fazer outra pergunta nessa mesma linha,
alguma coisa com certeza mais difícil de responder, mas ele acabou
desviando para algo totalmente diferente. — Só por curiosidade, por que você
me perguntou como eu vejo você? Ontem, quando a gente estava na ponte,
sabe?
Eu não estava preparada para essa pergunta também. Tapei minha
boca com uma das mãos.
49
— Meu Deus, Joshua, você jura que não sabe por quê? — minhas
palavras saíram abafadas e cobertas de vergonha. Mas ele ficou apenas
olhando para mim, cheio de expectativa, então suspirei e abaixei minha mão.
— Acho que é porque eu não tenho a menor ideia de como eu me pareço.
— Sério? — disse ele, piscando.
— Ah, sim...
— Você não tem reflexo?
— Não, não que eu tenha visto. Enfim, eu consigo ver algumas partes
de mim sem precisar de um espelho. — Apontei para as minhas roupas e
depois para os meus cabelos. — Mas não lembro como é o meu rosto. Acho
que eu meio que... esqueci.
— Nossa — bufou ele.
— Eu sei — disse, suspirando de novo. — É muito humilhante, não é?
Joshua não respondeu. Em vez disso, só ficou sentado ali, imóvel e em
silêncio, pensando em sabe-se lá o que. Eu estava envergonhada demais
para falar, e ele estava me olhando de um jeito tão intenso que, é claro, me
deixou ainda mais inquieta.
Por fim, ele quebrou o silêncio.
— Eu não estava mentindo ontem quando disse que você é linda.
Nossa.
— Ah... — disse eu em voz alta, descobrindo um repentino interesse
pelo tule fino na borda da minha saia. Arrisquei uma olhada rápida para ele
e o vi sorrindo para mim.
— Quer que eu continue? — perguntou.
Eu poderia jurar que ouvi um tom quase brincalhão em sua voz.
Encolhi os ombros do jeito mais casual possível, levando em conta o fato de
que eu estava ao mesmo tempo querendo dar pulos de alegria e também me
enfiar dentro de algum buraco.
— Seu cabelo é castanho-escuro e ondulado — disse, todo tranquilo,
como se estivesse catalogando o estoque de uma loja. — Você é branquinha,
mas tem algumas sardas no nariz. Seus olhos são bem verdes, como a cor
das folhas. E a sua boca... bom, a sua boca é... linda.
Se fosse possível, eu até teria ficado vermelha.
— Ah... — repeti. Essa sílaba parecia ser tudo o que eu estava
conseguindo dizer naquele momento. Joshua analisou meu rosto e, talvez
percebendo meu desconforto, sorriu.
— Agora, seu vestido já é outra história...
Torci o nariz, tentando não parecer magoada.
50
— Ah, deixa eu ver se entendi... então eu tenho uma boca linda, mas
um vestido feio? Bom, vamos fazer assim, se você conseguir encontrar os
fantasmas de uma blusinha e um shortinho jeans, juro que troco de roupa
agora mesmo!
Joshua alargou seu sorriso e balançou a cabeça.
— Não, o vestido não é feio. — Ele me deu uma rápida olhada de cima
a baixo e então completou: — Longe disso, na verdade.
— Ah... — disse eu de novo. Voltei a baixar meus olhos para o meu
vestido. Mais uma vez, quis muito que ele não me deixasse tão exposta.
Fiquei pensando em que tipo de menina eu deveria ter sido para escolher
uma roupa como essa: ousada e confiante? Ou exibida e manipuladora?
Joshua, no entanto, claramente não parecia estar incomodado com as
minhas roupas. Ele riu baixinho e se encostou para trás na mesa com os
braços cruzados. Ficamos assim por um tempo, ele com sua pose tranquila,
achando graça, e eu com meus olhos grudados mais uma vez na minha saia.
O fato de eu estar com um vestido meio ousadinho ou não era a menor das
nossas preocupações, eu sabia muito bem disso.
Por fim, Joshua se inclinou para frente de novo.
— Bom, e o que mais eu deveria saber sobre você?
Eu não conseguia tirar os olhos da minha saia.
— Bom, que tal o seguinte? Eu não consigo sentir nada que toco. A
não ser você, pelo visto.
— Como assim? Você não consegue sentir nada?
— Não. Nem este banco, nem aquelas árvores... nada. Não consigo
nem abrir portas.
— Mas e as outras pessoas? Porque enfim, você e eu claramente...
— Eu sei — interrompi. — Não sei explicar o que acabou de acontecer
entre a gente. Você é a primeira pessoa em quem tentei encostar, mas tenho
praticamente certeza de que não conseguiria tocar em mais ninguém. Não
como... bom, não como foi com você, pelo menos.
— E você imagina por quê?
Encolhi os ombros.
— Não sei. Talvez tenha a ver com o que eu já disse antes, sobre por
que você conseguiu me ver. Como você passou um tempinho morto, talvez
você agora possa ver fantasmas e meio que tocar neles. E talvez esse tipo de
conexão possa despertar os sentidos dos fantasmas também. Pelo menos um
pouco.
51
— Talvez — concordou ele e, após alguns segundos, completou: —
Bom, essa é uma coisa meio triste do pós-vida então, não é? Isso de você não
conseguir sentir nada, a não ser alguém que já morreu também.
Acenei a cabeça com vigor, ainda olhando para o meu vestido. Joshua
não disse mais nada e apenas caiu em um silêncio pensativo. Por fim, olhei
para ele, bem a tempo de ver o que imaginei ser uma rara expressão sombria
passando pelo seu rosto. Seu olhar me espantou — era como se ele
finalmente tivesse chegado ao momento crucial em que perceberia o quanto
nossa situação era uma loucura. Mas em vez disso, ele só balançou a cabeça
e abriu um sorriso cheio de cumplicidade.
— É, Amélia, parece que estar morto deve ser... um saco.
Soltei uma gargalhada surpresa.
— Pois é, Joshua. É um saco mesmo.
Nós rimos juntos. Nesse riso nosso, pude ouvir uma estranha mistura
de alívio e tensão. Em seguida, Joshua arqueou as sobrancelhas e esfregou
as mãos uma na outra.
— Então... — disse, com uma voz arrastada estranha. Ele parecia
cauteloso agora, talvez até com medo de continuar. Pelo seu tom, era como
se ele estivesse querendo me perguntar alguma coisa, mas não soubesse
bem como. Olhei em seus olhos e acenei a cabeça para encorajá-lo.
— Pode falar, Joshua, não tem problema.
Ele limpou a garganta e então soltou sua pergunta:
— Há quanto tempo você está morta?
Franzi a testa, tentando formular uma explicação que não parecesse
sinistra demais.
— Não sei isso direito também. Já faz um tempo, acho. Parece que
passei uma eternidade vagando sem rumo por aí. É bem difícil ter noção.
Acho que talvez há... alguns anos? Pelo menos.
Soltando um assovio baixinho, Joshua repetiu a palavra ―anos‖ com
um murmúrio.
— Pelo menos — reafirmei.
— E você não se lembra de nada mesmo? — perguntou ele, voltando a
parecer cético.
— Não. Bom, só do meu nome.
— Nem onde você cresceu? Nem quem eram seus pais?
— Não.
Minha voz vacilou um pouco com essa resposta. Eu nunca tinha
pensado nisso até então — no fato de que eu provavelmente já tive uma
52
família. Uma família que amei, ou que não me queria por perto? Talvez fosse
melhor que os detalhes sobre meu antigo lar, assim como as informações da
minha lápide, continuassem sendo um mistério.
Por sorte, Joshua pareceu não ver nada de estranho na minha
resposta, porque continuou a fazer perguntas. Perguntas que logo
começaram a me afastar dos meus pensamentos sombrios com uma
facilidade incrível.
Continuamos assim por um tempo, ele como entrevistador, eu como
entrevistada. Algumas das suas perguntas eram sérias e tristes (se me
lembrava da casa onde cresci), e algumas eram só malucas e engraçadas (se
já tive um iguana, porque a irmã dele sim, mas só por duas semanas, depois
os pais deles fizeram a menina se livrar do bichinho). Inevitavelmente, as
minhas respostas para essas perguntas eram sempre negativas, em maior
parte porque eu não me lembrava de nada.
Mas de um jeito estranho, cada pergunta foi me deixando menos triste
com a minha falta de memória. Comecei a pensar como se eu na verdade
não estivesse dizendo ―não‖ para tudo aquilo só porque tinha levado uma
vida deprimente de um cadáver ambulante, mas apenas como parte de um
jogo verbal que eu estava disputando com ele; como se só fosse dizer um
―sim‖ quando ele fizesse a pergunta certa.
A cada pergunta, meu sorriso crescia. Em pouco tempo, o rosto de
Joshua já refletia o meu, como se o meu entusiasmo com aquela brincadeira
fosse contagioso.
— Você lembra qual era o seu sabor favorito de sorvete?
— Não — dei risada. — Não lembro nem se gostava de sorvete.
Ele preparou sua próxima pergunta franzindo a testa e pondo uma
das mãos fechadas sob o queixo para criar um efeito dramático.
— Você se lembra de qual era o mascote da sua escola?
— Não. Nem lembro da minha escola. Enfim, parece que estar morta
tem pelo menos um lado positivo, não é?
Ele começou a rir, mas depois se endireitou de repente como se
tivesse levado um beliscão. Olhando para o relógio, ele soltou um palavrão
baixinho. Ele pulou para fora do banco e começou a correr na direção do
estacionamento. Se eu não estivesse tão confusa com essa reviravolta,
poderia até ter dado risada quando ele parou de repente e então se virou
para mim, erguendo uma dramática nuvem de poeira vermelha do chão.
— Vamos! — gritou ele, e então disparou de novo até o carro de seu
pai. Sem pensar em nada, obedeci sua ordem e saí correndo atrás dele.
53
Enquanto ele tentava abrir a porta do motorista, limpei minha
garganta atrás dele.
— Hum... Joshua? O que foi?
— Vamos chegar atrasados.
— Onde?
Ele ignorou minha pergunta.
— O horário do almoço acaba em dez minutos.
— E daí? — grunhi, meio frustrada com aquele mistério.
— E daí que a gente vai ter que violar umas quarenta e sete leis de
trânsito para chegar lá a tempo.
— Chegar lá onde? — perguntei, jogando as mãos para o alto,
totalmente perdida.
— Na aula.
Suas palavras saíram abafadas enquanto ele se abaixava para sentar
no banco do motorista. Segundos depois, ele abriu a porta do passageiro
para mim e se esticou para fora.
— Vamos! — repetiu.
— Mas... para escola? Com você?
— Claro.
Quase caí para trás de surpresa só de pensar nisso. Até senti o
impulso de argumentar contra essa ideia, ainda mais pela possibilidade de ir
a qualquer lugar em público com ele. Mas a expressão urgente em seu rosto
deixava claro que ele não estava aberto ao debate. Em seguida, também me
virei — olhei para ele, depois para a segurança familiar do bosque, e então
para ele de novo.
— Não dá tempo para ficar aí pensando, Amélia. Entre logo.
— Mas... — tentei protestar. — Nem me lembro de como é andar de
carro!
Ele sorriu, dando um tapinha no banco.
— É igual andar de bicicleta, prometo.
— Não me lembro disso também — resmunguei, mas me sentei no
banco do passageiro e deixei que ele se inclinasse por cima de mim para
fechar a porta.
54
Oito
A morte pode ter levado minhas antigas memórias de como era andar
de carro, mas não teria como levar as novas. Quanto mais Joshua avançava,
mais o meu medo inicial daquele passeio, e de o que poderia acontecer
depois, começou a se esvair.
Enquanto Joshua voava com o carro do pai pelas estradas íngremes e
sinuosas que saíam do parque, eu me inclinei para frente no banco até
quase me debruçar sobre o painel. Fiquei observando os densos bosques
verdejantes passando por nós como um panorama do lado de fora do para-
brisa.
Por mais que eu não pudesse experimentar a sensação física de estar
sentada no carro, não estava nem um pouco chateada com isso. Eu me senti
livre e mais veloz do que nunca — como se estivesse voando. Eu me segurei
na borda do banco embaixo de mim e, para a minha surpresa, senti seu
couro rústico nas pontas dos meus dedos.
— Amélia?
A voz preocupada de Joshua dissipou meus pensamentos, e a
sensação do couro se esvaiu na mesma hora.
— Oi? — Mesmo o achando lindo, mal consegui desviar a atenção da
longa estrada à nossa frente por tempo o bastante para olhá-lo de lado.
— Não quero ser chato, nem nada, mas você pode vir um pouco para
trás? Sentada desse jeito, parece que você está confiando demais na minha
direção.
Dei risada.
— Bom, não é como se eu pudesse sair voando pelo para-brisa. — Pelo
canto do meu olho, vi Joshua franzir a testa. A imagem de seu carro
afundando no rio me veio à mente. Balancei a cabeça para dispersar minha
própria estupidez. — Desculpe — murmurei. — Foi uma piada sem graça.
55
— Tudo bem — respondeu com um leve sorriso. — Mas... mesmo
assim, você está me deixando nervoso.
— Desculpe — repeti, e então me encostei no banco.
Continuei com os olhos grudados no cenário borrado que passava
voando pelas janelas. Mas como estava sendo difícil não me debruçar sobre o
painel de novo, me segurei no banco para não sair do lugar e tentei em vão
voltar a sentir a textura do couro contra os meus dedos.
Por fim, os bosques à nossa volta deram espaço a uma cidadezinha. A
estrada desembocava em uma espécie de avenida principal, cercada por
vários prédios pequenos e alguns pinheiros aqui e ali. Uma placa de madeira
ao lado da estrada dizia: Bem-vindo a Wilburton, Oklahoma!
Aquela cidadezinha me lembrava de uma foto vagamente familiar,
uma imagem que tinha visto muito tempo atrás e agora não sabia direito
onde. Será que eu já tinha passado por aqui depois de morrer? Nunca
reparei muito nos lugares por onde eu andava. Não tinha como saber, mas
essa estranha sensação de familiaridade me deixou inquieta.
Logo depois, Joshua desacelerou para entrar em outra rua, essa mais
cercada de pinheiros. Quando as árvores rarearam, avistei um conjunto de
prédios baixos. Enquanto Joshua chegava a um estacionamento, avistei
alguns alunos andando de um lado para o outro, ou entrando nos corredores
entre os prédios.
— Pronto — disse Joshua, suspirando aliviado. Estacionou o carro,
tirou o cinto e então se virou até o banco de trás para pegar sua mochila.
Continuei focada nos prédios de tijolos à nossa frente, assimilando
aquela cena de telhados brancos retos, bancos roxo-escuros no gramado,
uma placa de metal esmaecida que dizia ―DIGGERS CAMPEÃO!‖ em letras de
forma. Alguma coisa naqueles prédios mexeu comigo — alguma coisa que
não entendi bem o que era...
— O bom e velho Colégio Wilburton. Vamos lá?
A proximidade da voz de Joshua me fez pular no meu banco. Ele
estava ao meu lado, mas fora do carro, segurando a porta do passageiro
aberta com uma das mãos, e a alça de sua mochila em seu ombro direito
com a outra. Eu estava tão distraída que nem percebi que ele tinha descido
do carro, nem aberto minha porta.
— Hum...
Comecei a torcer a barra do meu vestido, já nervosa de novo. Antes de
conhecer Joshua, um possível contato com o mundo dos vivos teria me
deixado triste. Agora, só por ele conseguir me ver (e sinceramente, pelo
56
próprio Joshua), essa minha tristeza havia se encolhido em uma parte
remota do meu cérebro.
Ainda assim, a imagem daqueles prédios, e a inquietante sensação
que eles me causavam, me deixaram com um pouco de medo. E mais do que
um pouco colada no meu banco.
— Vamos, Amélia. Você está me fazendo parecer um doido aqui,
parado com a porta aberta para um carro vazio — suas palavras poderiam
ter parecido ríspidas, mas seu tom foi de brincadeira. Mesmo sabendo que
minha indecisão o faria chegar atrasado à aula, ele apenas sorriu e me
estendeu a mão.
Pelo visto, minha coragem era um pouco maior do que eu imaginava,
porque peguei sua mão e desci do carro. Na mesma hora, um pulso
incendiário subiu pelo meu braço.
— Ah! — gritei e então soltei sua mão. Enquanto se inclinava para
fechar a minha porta, ele conseguiu parecer espantado e dar risada ao
mesmo tempo.
— Depois, tem mais — ele riu. — Mas agora, vamos para a aula.
Venha comigo.
Ele me deu uma piscadinha e então passou apressado por mim. Um
sorriso — meio sem jeito e meio empolgado — se abriu no meu rosto, e então
o segui até um dos prédios menores. Enquanto a gente andava, ele
continuou falando sem abrir muito a boca e sem olhar direto para mim, acho
que para não parecer que estava falando sozinho.
— Tudo bem com você?
— Sim, acho que sim — disse eu, falando baixo como ele, por mais
que não precisasse. — Este lugar me parece tão... familiar. É como se eu me
lembrasse desta escola, mas não sei por que, nem de quando.
— Hum. Isso pode ser... interessante. — Ele ficou em silêncio por um
instante e então, com um tom inseguro, sussurrou: — Mas tudo bem então?
Porque, enfim, meio que forcei você a vir aqui, né?
Ele me pareceu tão genuinamente preocupado que precisei conter
uma risada. Pelo visto, ele não tinha pensado em me perguntar se eu queria
estar ali até o último segundo possível.
— Acho que vou ficar bem — disse eu em voz alta, e em seguida,
enquanto olhava para as suas costas, largas e fortes sob sua camiseta cinza
levinha, acabei pondo para fora meu pensamento seguinte. — Bom, tanto faz
para onde a gente está indo, só quero ficar perto de você mesmo.
57
Ao ouvir minhas palavras, Joshua parou de repente com uma das
mãos na porta que estava para abrir. Enquanto olhava para suas costas,
mordi meu lábio inferior por frustração. Eu era mesmo tão idiota assim a
ponto de dizer uma coisa dessas sem nem ter como ver a reação dele?
Vi a mão de Joshua ficando tensa na maçaneta e então me preparei
para o pior: iria dizer que minha simples presença ali era um perigo, como
eu já desconfiava; iria me dar uma bronca por ter tocado nele em público e
pedir para eu esperar do lado de fora... ou só ir embora de uma vez.
Mas, é claro, estava errada de novo. Em vez de se afastar de mim,
Joshua esticou uma das mãos para trás, ainda virado para frente, e apertou
a minha. Em seguida, abriu a porta e entrou na sala de aula enquanto o
sinal ecoava pelo gramado atrás de nós. Eu o vi abrir e fechar a mão que ele
tinha usado para me tocar, talvez em resposta ao mesmo fogo que eu estava
sentindo arder nos meus dedos. Respirei fundo e entrei na classe antes que
ele fechasse a porta.
Acho que eu não estava preparada para essa mudança de cenário,
porque fiquei surpresa com a repentina penumbra da sala. A verdade é que
eu não tinha muita experiência com salas de aula mal iluminadas desde
minha morte, e fiquei pensando meio distraída se minhas pupilas iriam se
expandir no escuro ou não.
Uma tossida alta de Joshua me despertou desse pensamento na
mesma hora.
Essa tosse foi claramente um aviso, porque uma senhora estava bem
na minha frente, com sua cara a poucos centímetros da minha. Seu rosto
envelhecido combinava com seus cabelos ralos, e com o tom amarelado de
seus olhos.
Que estavam olhando bem para os meus.
Em desespero, olhei para Joshua, que estava paralisado em frente à
primeira fileira de mesas. Eu me virei de volta para a mulher, sentindo todos
os meus músculos tensos. Será que ela também já tinha morrido e agora
podia me enxergar, como Joshua? Ou outro fantasma maligno, como Eli?
No entanto, uma segunda olhada em seu rosto me esclareceu tudo.
Seus olhos não estavam focados nos meus, mas sim em Joshua, atrás de
mim. Ela estreitou a vista, talvez sem conseguir ver muito bem comigo à sua
frente, mas sem me enxergar de verdade. Ela estava vendo através de mim,
como alguém veria alguma coisa através de um leve fio de fumaça: distraída,
mas sem perceber ou se importar. Quando ela por fim falou, suas palavras
confirmaram minhas suspeitas.
58
— Senhor Mayhew, o seu breve encontro com a morte por acaso o deu
permissão para entrar quando bem quiser na minha aula sem pedir licença?
— Não, senhora Wolters. Não cheguei antes do sinal?
Ela franziu a testa, permitindo que suas rugas repuxassem sua boca
com uma melancólica expressão carrancuda.
— O sinal marca o começo da aula, não o limite para sua entrada.
Agora, sente-se.
— Sim, senhora — resmungou. Com a cabeça abaixada, Joshua
entrou às pressas entre as carteiras e se sentou em uma que estava vazia;
que era seu lugar, presumo.
Um garoto ruivo e gordinho sentado na mesa ao lado deu um tapinha
nas costas de Joshua e sussurrou:
— Você devia ter matado a sexta aula também, cara.
Joshua acenou a cabeça com um ar tenso.
Sem olhar de novo para mim — ou através de mim, na verdade —, a
senhora Wolters foi para trás de sua própria mesa. Olhei para Joshua e
passei a mão na testa, dizendo, “Ufa”, só com os lábios. Ele me abriu um
leve sorriso de alívio e então começou a tirar alguns livros da mochila.
Nesse momento, percebi que estava diante de uma sala cheia de vivos.
De repente, me lembrei do típico pesadelo adolescente: aparecer pelada na
frente de uma classe com todos os seus colegas. Claro, eu não estava sem
roupa, e aquelas pessoas não eram bem meus colegas, mais ainda assim, me
senti terrivelmente exposta. Tive a desagradável sensação de que aqueles
alunos estavam todos me encarando, por mais que a maioria parecesse estar
só entediada enquanto via a professora começar a escrever na lousa atrás de
mim.
Só então me dei conta de que nunca tinha estado em nenhum lugar
com tantas pessoas vivas ao mesmo tempo desde minha morte. Ver tantas
pessoas assim, respirando, cheias de vida e com o coração batendo, fez com
que eu ficasse assustada. Fez com que eu me encolhesse para me proteger.
Olhei para Joshua. Ele estava olhando à sua volta pela classe com
uma expressão de espanto também. Depois de analisar cada um dos colegas,
ele se virou para mim e disse, “Nossa”, só com os lábios. Franzi a testa,
confusa. Bem de leve, ele virou a cabeça em um círculo, apontando para
toda a classe, e então acenou com um ar de cumplicidade para mim.
Entendi. Ele estava chegando à conclusão de que era mesmo a única
pessoa que podia me ver. No parque, ele me ouviu e acreditou na minha
59
história... emteoria. Mas aqui, essa teoria tinha sido posta à prova. Uma
prova que confirmou que eu era invisível... que eu era um fantasma.
Acenei a cabeça. E para reiterar sua repentina descoberta, falei em voz
alta:
— Que estranho, né?
Ninguém além do próprio Joshua olhou para mim. “Nossa”, repetiu
ele baixinho, e sorriu.
Aquele sorriso falou por si só, me dizendo exatamente o que ele
achava sobre os poderes de sua nova amiga, o que disparou aquela dorzinha
quente no meu peito, uma sensação bem-vinda em meio à minha
insegurança; aquele sorriso foi todo o reconforto de que eu precisava.
Já mais confiante, sorri de volta. Pus uma das mãos em frente à
cintura e fiz uma reverência para aquela plateia entediada e alheia à minha
presença, e então bati palmas, como se estivesse os agradecendo pela
atenção dispensada.
Uma breve memória me veio à mente: minha própria voz, gritando
para estranhos que não podiam me ver, logo após minha morte. Alguma
coisa nessa lembrança angustiante, comparada a este momento de agora,
me deixou, não sei bem como, com a cabeça leve e quase eufórica. Comecei a
andar de um lado para o outro na frente da classe, com os braços atrás das
costas feito um general.
— Vocês devem estar se perguntando por que convoquei todos vocês
aqui hoje — entoei com minha voz mais séria.
Joshua bufou e balançou a cabeça.
— Sua louca — disse em voz alta.
— Como é, senhor Mayhew?
A voz aguda da senhora Wolters atravessou a sala enquanto se virava
da lousa para trás. Joshua engasgou e tossiu, tentando em desespero
consertar seu equívoco.
Infelizmente, alguns de seus colegas, incluindo o gordinho ruivo ao
seu lado, confundiram as palavras de Joshua com uma provocação
intencional à professora. Começaram a rir, entrando na suposta brincadeira.
A senhora Wolters, acreditando ser alvo de alguma piada que não tinha
ouvido, se endireitou na frente da sala, rígida como o pedaço de giz que ela
tinha na mão, e com um olhar enfurecido.
— Senhor Mayhew, como você parece dominar tão bem essa matéria,
por favor, venha aqui até a lousa e nos diga qual é a ordem desta equação
diferencial — disse ela, praticamente cuspindo suas palavras.
60
Joshua disparou um olhar de pânico para mim. Ficou dolorosamente
claro pelo seu rosto que ele não era nenhum especialista em equações
diferenciais.
— Ai, meu Deus — grunhi. — Desculpe. Sou uma idiota.
Ele balançou a cabeça de leve, tentando me dizer que não, apesar da
encrenca que eu tinha acabado de arrumar. Ele se levantou da carteira e se
arrastou até a lousa, sem mal olhar para a senhora Wolters enquanto pegava
o giz de sua mão magra.
Corri até seu lado, agitando minhas mãos em desespero. Olhei para o
complexo problema de matemática à sua frente e vi apenas um emaranhado
de números, letras e símbolos. Ah, não, pensei, enquanto me esforçava para
manter meus olhos focados enquanto examinava aquela equação. Só de ver
todos aqueles d’s, 3’s, x’s e y’s, já senti minha respiração acelerar como a de
Joshua.
Ele ficou olhando para a equação na lousa também, com uma
expressão totalmente perdida. Ele parecia ser muito inteligente... mas talvez
não tanto. Não para algo assim de surpresa. Não para enfrentar esse
monstruoso problema.
— Droga — disse eu em voz alta. Não sabia o que fazer. Pelo canto do
olho, pude ver a senhora Wolters sorrindo para Joshua, que tinha encostado
o giz na lousa logo abaixo do problema e agora estava com ele parado ali. A
expressão presunçosa da professora me enfureceu. Eu me virei de volta para
o problema e o analisei com atenção, determinada a fazer alguma coisa,
qualquer coisa.
Nada... nada... nada.
E então...
— Três! — gritei. — Joshua, a derivativa mais alta é d3/dy3... a
terceira! Então a ordem é três!
Ele me olhou de lado com uma sobrancelha erguida, e então rabiscou
o número 3 na lousa. O espectro de um sorriso se abriu em seu rosto
enquanto ele se virava para a senhora Wolters, mas sem alterar sua voz
tímida.
— Acho que a ordem é três.
A senhora Wolters ficou boquiaberta como um peixe. Quando Joshua
esticou sua mão para devolver o giz, ela o pegou com um olhar distante e o
guardou no bolso.
— Bom... hum...
61
Enquanto ela gaguejava na frente da classe, Joshua voltou para o seu
lugar, desfilando cheio de pompa. Eu o segui, espremida ao seu lado no
corredor estreito. Nós passamos por um garoto loiro sentado em uma
carteira na frente da de Joshua, que ergueu sua mão, e Joshua fez o mesmo
para dar um “toca aí!” nele.
Aproveitando esse momento como uma distração, ergueu sua outra
mão quase sem que eu percebesse e roçou seus dedos nos meus. A labareda
que senti na minha mão já foi um belo agradecimento.
62
Nove
Ao fim da aula, Joshua me levou de volta ao Parque Robber e me
guiou até nosso banco. Depois de se sentar, ele se encostou na borda da
mesa de concreto e apoiou os dois cotovelos para trás. Fiquei sentada em
silêncio ao seu lado, com uma perna embaixo do corpo e a outra erguida
junto ao peito, com meu braço em volta. Passamos algum tempo sem dizer
nada, talvez porque eu estava pensando em tudo, menos nele naquele
momento. Em maior parte, só tentei ignorar os sorrisos incrédulos que ele às
vezes abria para mim.
Tive a sensação de que sabia no que ele estava pensando e, para
minha grande vergonha, vi que estava certa quando ele por fim disse alguma
coisa.
— Então, Amélia... você se lembra de quando foi que você virou um
gênio da matemática?
Fixei meus olhos nas árvores do bosque e me esforcei ao máximo para
encolher os ombros do jeito mais casual que pude.
— Eu não era... não sou nenhum gênio. Acho que só estudava
bastante. Como você mesmo deve fazer agora.
Joshua deu risada.
— Estudo bastante sim. Minha média ponderada é nove e meio... ou
pelo menos era, até a senhora Wolters me ferrar. Mas que falsa modéstia
toda é essa aí?
Soltei uma bufada petulante e me virei com uma cara feia para ele.
Ele sorriu, fingindo um ar de inocência, talvez contente por ter conseguido
me provocar e fazer com que eu finalmente olhasse para ele.
— Humf! — Me virei de volta para as árvores, rápido o bastante para
que meu cabelo voasse junto para cima do meu rosto. Passamos mais alguns
instantes sentados ali quase em silêncio, a não ser pelas risadinhas de
Joshua. Ele começou a dar todo um espetáculo de tossidas dramáticas,
como se precisasse disso para disfarçar o riso.
63
Essa foi a gota d’água. Joguei as mãos para o alto em protesto.
— Não foi falsa modéstia, tá? — esbravejei. — Não sei se eu sou tão
esperta. Claro, pelo visto entendo bem de equações diferenciais. Mas não sei
como, nem por quê. Enfim, talvez meu vocabulário seja tosco... ou eu não
saiba nada de geografia... sei lá — minha voz se esvaiu, perdendo toda a
energia no final da minha frase já confusa.
Joshua começou a rir abertamente.
— Você fica muito bonitinha irritada, sabia?
— Argh! — resmunguei, retorcendo o nariz de raiva. Bom, pelo menos
com um pouco de raiva. — Não precisa ser condescendente assim comigo,
Joshua.
Mais risos.
— Viu só? Seu vocabulário é ótimo. ―Condescendente‖ tem cinco
sílabas!
Por mais que não quisesse, dei risada também.
Logo acabei perdoando sua provocação. Mas pelo resto da tarde, fiz de
tudo para que quase toda a nossa conversa fosse focada nele, escapando de
suas perguntas para tirar o máximo que podia sobre Joshua.
Descobri que ele tinha acabado de fazer dezoito anos em agosto
(estávamos em setembro, e numa segunda-feira — eu estava adorando essa
minha nova capacidade de perceber o tempo, talvez por ser novidade para
mim) e que Joshua morava com seus pais, sua avó e a irmã de dezesseis
anos, Jillian.
Apertei Joshua para saber o que ele fazia para se divertir, e a muito
custo confessou que jogava beisebol no time da escola. Quando insisti nesse
assunto, ele me falou sobre suas habilidades atléticas com modéstia. Mas
pude perceber o orgulho em sua voz quando especulou que talvez pudesse
garantir sua faculdade com uma bolsa de estudos esportiva, junto com suas
boas notas.
— Não é bem a coisa que mais gosto no mundo — disse Joshua. —
Mas adoro beisebol. E é claro que jogar no time da faculdade também pode
me ajudar nos meus planos de ser jornalista de esportes. Além do mais,
acho que meus pais não estão muito a fim de bancar duas faculdades ao
mesmo tempo.
— A Jillian quer fazer faculdade também?
— É bom que queira — disse ele, quase resmungando. Até me inclinei
para trás, surpresa pelo olhar protetor em seu rosto. Ergui uma
sobrancelha, exigindo alguma explicação. Joshua veio para frente, apoiou
64
um cotovelo no joelho e ficou gesticulando pelo ar com sua mão livre
enquanto falava. — Acontece que a Jillian... bom, a Jillian anda meio chata
esses tempos. Ela é tão inteligente quanto eu, talvez até mais. Ela é quase
igual a você em matemática. — Ele então me abriu um rápido sorriso
manhoso, o que me fez baixar meus olhos para minha perna cruzada, em
uma vã tentativa de esconder minha vergonha pelo elogio. — Mas é que para
ela é muito importante... se enturmar com os outros, ou alguma coisa assim.
— Mas para você não?
Não tive como evitar a pergunta. Joshua não pareceu se ofender,
porque só deu risada.
— Não, para mim, não. Eu até me dou bem com as pessoas na escola,
o que é irônico. Mas na verdade, só faço o que eu quero, sem dar a mínima
para o que os outros vão pensar.
— Tipo falar com uma menina morta invisível?
— Exatamente — Joshua sorriu, mas depois repuxou o canto da boca
com um ar pensativo. — Sabe, isso na verdade pode até ter alguma coisa a
ver com a Ruth.
— Hã?
— Minha vó Ruth. Era ela quem me contava as histórias de fantasmas
sobre a ponte quando eu era criança. Ela adora essas coisas de se
comunicar com espíritos e tudo mais... ela e um grupo de outras
senhorinhas daqui.
Achei aquilo estranho.
— Como assim, tipo um grupo espírita?
Joshua franziu a testa. Ficou evidente que a obsessão de sua avó por
fantasmas nunca tinha parecido muito relevante para ele até então. Pensou
no assunto por um instante e então balançou a cabeça, ainda que sem lá
muita segurança.
— Acho que não — disse. — Mas eu sei que elas acreditam em muitas
coisas estranhas, sim. Acho que sempre achei que fosse tudo pura
baboseira... até hoje, pelo menos.
Joshua me encarou com um olhar avaliador, e eu abaixei a cabeça de
novo. Entendi muito bem a mensagem: eu era uma dessas coisas estranhas.
Hesitante, perguntei:
— Será que ela encrencaria comigo? Por eu... existir?
Joshua balançou a cabeça de novo, parecendo um pouco mais
confiante.
65
— Imagina. Por mais que ela acredite em fantasmas, não é como se ela
conseguisse ver você. Além do mais, acho que ela provavelmente só ficaria
empolgada ao saber que comprovei todas as teorias dela se eu contasse tudo
sobre você.
Meu riso dessa vez saiu mais agudo, deixando transparecer a
apreensão que de repente havia me acometido pelo assunto.
— Bom, só me prometa que você não vai fazer a brincadeira do copo
com ela tão cedo, tá?
Joshua deve ter percebido minha ansiedade, porque riu também e
então se apoiou com calma na mesa de concreto. Mas ele tinha razão quanto
à sua avó, claro; minha presença naquela aula hoje, ignorada por todos além
dele mesmo, comprovava isso. Mesmo assim, aquele me pareceu um bom
momento para mudar de assunto, então disparei outra saraivada de
perguntas sobre sua vida.
Continuamos conversando por tempo o bastante para que as nuvens
cinzentas se dissipassem por completo no céu e o azul que veio depois
ganhasse tons de rosa e roxo. Enquanto o céu mudava, Joshua falou um
pouco sobre seus amigos, mas mais sobre as coisas de que gostava: filmes
de terror que eu nunca tinha visto e bandas que eu nunca tinha ouvido (que
surpresa, né? Mesmo porque, eu já estava morta há um bom tempo), mas
também falou de literatura. Quando ele comentou o quanto gostava de
Ernest Hemingway, uma resposta saltou de imediato para fora da minha
boca antes que eu tivesse tempo de pensar em qualquer coisa.
— Nossa, odeio o estilo do Hemingway.
— Hã? Mas achei que você não se lembrasse de nada...
— Não mesmo. Não lembro — hesitei. — Mas... eu acho... ou melhor,
lembro, sim, que não gosto do Hemingway.
Como uma reação ao simples nome desse autor, tive outro daqueles
estranhos flashbacks. De repente, uma imagem surgiu clara e nítida na
minha mente: um livro fino de capa mole entre as minhas mãos, uma
coleção de vários contos que eu estava lendo sentada com as pernas
cruzadas na grama. O sol do verão iluminava essa memória, mais brilhante
do que o de agora que se punha sobre Joshua e eu.
Relutei para despertar desse devaneio e, quando consegui, Joshua
estava olhando para mim com uma cara cheia de expectativa, quase ansiosa.
Continuei, franzindo a testa pelo esforço para me lembrar dos detalhes desse
flashback.
66
— Eu me lembro... me lembro mesmo de ler um conto... alguma coisa
com uma mulher e um homem tendo uma conversa horrível enquanto ele
está morrendo num safári. Enfim, me lembro de pensar, ―isso aqui não é
para mim‖.
Passamos um instante em silêncio, e então ele soltou um fôlego
pesado.
— Acho que vou ter que discordar do seu gosto literário, mas... enfim,
que coisa estranha, Amélia.
— Pois é — fiz uma pausa e então completei, admirada: — Nem me
fale...
Joshua deu risada e esticou a mão em um gesto distraído para passar
os dedos pelas costas da minha mão, que estava sobre o banco. Aquela
queimação repentina na minha pele me pareceu tão familiar agora — não
menos fantástica do que antes, mas um pouco mais esperada. E muito bem-
vinda.
Estremeci com esse toque e, sem explicação alguma, minha vista
começou a ficar turva. No começo, achei que aquele arrepio tinha feito
alguma coisa com meus olhos, mas logo percebi que a mudança na minha
visão não teve nada a ver com isso.
A julgar pela repentina mudança do ambiente à minha volta, eu
estava tendo outro flashback. Esse flashback, que veio tão pouco depois do
outro, parecia ter me jogado em algum lugar à noite.
Agora estava ajoelhada na grama, arqueada sobre alguma coisa fria de
metal. Um pequeno telescópio, acho, em cima das pernas curtas de um
tripé. Mas não consegui me concentrar muito bem no telescópio, porque meu
rosto estava virado para a noite lá no alto.
Acima de mim, o céu era daquele tipo que você só consegue encontrar
em lugares quase sem nenhuma luz artificial por perto. Eu podia ver as
estrelas — todas ao mesmo tempo, ao que parecia. Milhões delas espalhadas
pelo céu, reluzindo e cintilando em meio à escuridão. Quis abrir a boca em
fascinação pela extrema beleza daquilo, mas não consegui; pelo visto, ao
reviver aquela memória, não tinha controle sobre nada.
Quando decidi simplesmente aproveitar aquela vista por seja lá
quanto tempo aquilo fosse durar, de repente me espantei com um barulho
atrás de mim.
— Foco, Amélia — alertou uma voz de mulher. — Você não vai ganhar
seus pontos extras de ciências se nem pelo menos tentar fazer esse seu
trabalho.
67
Por conta própria, a versão de mim mesma dentro dessa memória
soltou um suspiro.
— Tá, tudo bem, mãe. E se eu não estudasse em casa, as aulas já
teriam acabado umas seis horas atrás.
Minha mente disparou. Aquela era minha mãe? Eu estava falando com
minha mãe?
Queria tanto que aquela mulher continuasse falando, que esse
flashback não acabasse, que quase senti uma dor física quando essa cena se
esvaiu, tremeluzindo e se perdendo à minha volta até a luz do fim da tarde
inundar meus olhos de volta.
Agora eu estava livre para abrir a boca o quanto quisesse.
Puxei um fôlego tenso, coisa que deve ter assustado Joshua, porque
ele se virou para mim na mesma hora.
— Amélia? — disse. — Tudo bem? O que aconteceu?
Balancei a cabeça.
— Eu... não sei direito. Acho que só me lembrei de alguma outra
coisa.
— Do quê?
Por um brevíssimo segundo, pensei até em mentir para ele. Senti um
impulso inexplicável de guardar aquela memória só para mim, de protegê-la
como se fosse um segredo. Mas ao olhar para os seus olhos azuis-escuros
como a meia-noite, isso passou. Não queria esconder nada dele; aliás, nem
sei se conseguiria.
— Da minha mãe — respondi. — Eu me lembrei da minha mãe, acho.
Ele se encostou com um baque contra a mesa de piquenique,
claramente espantado.
— Como assim? Você viu sua mãe?
— Não, só ouvi a voz dela.
— Hum... — disse ele, olhando com um ar pensativo para as árvores.
— Acho que ainda não entendi bem como essas suas ―memórias‖ funcionam,
Amélia.
— Nem eu — murmurei, abaixando meus olhos para o banco.
Enquanto me concentrava nas rachaduras e imperfeições no concreto,
tentei me lembrar do que tinha ouvido: o tom da voz da minha mãe, o sabor
de suas palavras. Será que nós estávamos brigando naquela memória? Será
que ela estava brava comigo, ou eu com ela?
Quando ergui a cabeça e olhei para Joshua, percebi que ele tinha se
virado de volta para mim e estava esperando alguma resposta a mais.
68
Soltei um suspiro e encolhi os ombros.
— Sinceramente, Joshua, não tenho a menor ideia de como estou me
lembrando de todas essas coisas. Nem por quê. Acho que talvez tenha algo
meio a ver com você, na verdade.
Joshua pareceu se espantar.
— Comigo? Por quê?
— Esses flashbacks com lembranças... nunca tive isso antes de
conhecer você. E agora eles estão acontecendo cada vez mais e mais. Tive
dois agora mesmo, enquanto a gente se falava... então acho que talvez você
tenha liberado essas memórias de dentro de mim de algum jeito.
Joshua refletiu por um instante sobre o que eu tinha dito e então
abriu um enorme sorriso.
— Bom, mas isso é uma coisa boa, não é?
Mordi meu lábio, franzindo a testa.
— É, acho que sim. É só muita coisa para assimilar de uma vez, sabe?
— Claro... — murmurou Joshua. No entanto, percebi pelo brilho em
seus olhos que ele não estava pensando na confusão de tudo aquilo para
mim; ele parecia... empolgado. E muito, aliás. Ele confirmou minhas
suspeitas com um aceno enfático de cabeça. — Mas mesmo assim, Amélia,
você precisa admitir que isso é bem legal.
— Legal? — rebati, erguendo uma sobrancelha.
— Sim, sabe... legal. Irado. Muito louco. Etcetera e tal.
Não consegui não dar risada.
— Joshua Mayhew, o grande otimista?
Joshua sorriu.
— Lógico. Mas então a gente precisa comemorar.
— Como?
Abrindo um sorriso ainda maior, Joshua não me respondeu. Em vez
disso, se levantou e virou para mim.
— Bom, preciso ir para casa jantar, porque já estou pelo menos uma
hora atrasado.
— Ah — disse eu, franzindo a testa.
Eu tinha me esquecido totalmente de que ele cedo ou tarde precisaria
voltar para casa. Ou até mesmo comer. Ele precisava fazer aquelas coisas, e
teria que me deixar ali sozinha para isso, é claro. A dor no meu peito voltou
a arder com a ideia de vê-lo indo embora, mas tentei não deixar que isso
transparecesse na minha voz.
69
— Acho que... então a gente se vê amanhã? Para comemorar e tal? —
disse eu.
Uma expressão estranha passou pelo rosto de Joshua, algo que não
consegui entender. Como já tinha feito durante nossa conversa ontem —
nossa, foi só ontem mesmo que a gente se falou pela primeira vez? —,
Joshua passou uma das mãos pelos cabelos até a nuca.
Após um desconfortável instante de silêncio, entendi o que estava
acontecendo: Joshua estava tímido, talvez até envergonhado. Quem diria? O
bravo e confiante Joshua Mayhew parecia estar nervoso mesmo com alguma
coisa. Ele ficou um tempo olhando para mim, e depois deve ter conseguido
arrumar a coragem que precisava para me fazer uma hesitante pergunta:
— Bom, na verdade... você não quer ir lá em casa comigo hoje para
conhecer minha família?
Pisquei os olhos, surpresa. Era óbvio que eu não estava nem um
pouco a fim de ―conhecer‖ a avó de Joshua, por mais que ela não pudesse
me ver. Pouco a pouco, comecei a ensaiar uma resposta.
— Joshua... bom, gostaria muito. Mas não é meio... cedo para isso?
Ainda mais por eles nem terem como me ver.
Joshua abaixou a cabeça, mas não antes que eu pudesse ver seu
rosto corado.
— É, acho que você tem razão. É meio cedo... — murmurou, deixando
sua voz se esvair no final da frase. Suas sobrancelhas se juntaram enquanto
um pequeno sorriso encabulado repuxava seus lábios. Uma cara que caía
muito bem nele, na verdade.
Eu me abaixei um pouco para observar seu rosto por mais um
instante. Ele não parecia estar conseguindo me encarar e, por algum motivo,
esse desconforto fez a dorzinha no meu peito arder de um jeito muito
gostoso. Respirei fundo em silêncio para tomar coragem e então perguntei:
— Você está preocupado com o que eu vou achar da sua família?
— Bom, se fosse o contrário, não faria muito sentido, né?
— Não — disse eu. — Não faria. Mas você está preocupado que eu... o
quê? Que eu não vá gostar deles?
— Não, você não me parece ser assim. Só queria ver o que você achava
mesmo. Eu... eu só acho que isso pode ser importante.
Ele disse isso como se fosse uma confissão, como se essas palavras
tivessem entrelinhas. Ele não precisou explicar o que havia nelas, no
entanto. Eu estava sentindo a mesma coisa.
70
— Bom — disse eu, abrindo um sorriso contente. — Vamos lá ver o
que acho então.
71
Dez
Quando Joshua deixou a avenida principal para entrar em uma trilha
de cascalho, o sol finalmente já havia se posto. O céu — pelo menos a parte
que eu podia ver entre os galhos dos enormes pinheiros — havia sido tomado
por um degradê que ia de um azul-escuro no leste até um rosa com toques
de roxo no oeste.
De repente, me senti grata pelas sombras cada vez mais pesadas à
nossa volta; elas ofereciam um disfarce ideal para o meu crescente
desconforto. Era como se eu fosse fazer algum tipo de prova. Não que eu
estivesse com medo de conhecer a família de Joshua em si; até sua avó
supersticiosa não estava me preocupando muito na verdade.
Mas Joshua sem dúvida estaria de olho em mim, analisando minhas
reações a tudo o que eu visse. Mas mais do que isso, eu sabia que ele não
poderia se comunicar comigo com sua família por perto. Sem olhares de
lado, sem sussurros, sem bilhetes. Ele precisaria de muito cuidado para
lidar com a minha presença, agindo como se eu sequer estivesse lá.
Então, no fundo, eu provavelmente iria passar as próximas horas em
meio à intimidade de uma família, mas ainda assim, basicamente sozinha.
Antes que eu tivesse tempo para me lamentar mais, o carro virou uma
esquina e uma enorme casa despontou à nossa frente. Não sei bem o que eu
estava esperando. Talvez uma casinha modesta em um rancho, típica de
Oklahoma, ou uma daquelas novas monstruosidades de pedras e tijolos que
estavam começando a pipocar por toda parte naquela região. Mas todas as
imagens que eu tinha na cabeça, e as preocupações que vinham me
assolando, evaporaram assim que avistei aquela linda casa antiga ao longe.
Era uma casa verde de madeira, com varandas de parapeitos brancos
em volta do primeiro e do segundo andar. Em todos os cantos e cumeeiras,
em cada espacinho livre, havia janelas: enormes janelas salientes
emolduradas entre cortinas; janelinhas redondas que ofereciam uma mera
72
tentadora fração da vista lá fora; janelas com vitrais repletos de cores. De
cada janela, brilhava uma luz quente que contrastava com todo charme, com
o crepúsculo que agora descia sobre a casa. Mesmo em meio àquela
agradável penumbra, consegui ver os contornos do jardim pelo qual Joshua
estava passando; roseiras, ramos de glicínia e arbustos floridos
emaranhados em um esplendoroso caos em torno da casa e dos choupos à
sua volta.
Era uma casa de conto de fadas.
Nem me dei o trabalho de fechar a boca enquanto Joshua estacionava
atrás da casa. Depois de bater sua porta, ele veio abrir a minha. Quando ele
me estendeu sua mão, eu a peguei, tanto para me apoiar, quanto para sentir
sua pele. Em geral, meu corpo inteiro se concentraria no contato entre as
nossas mãos. Agora, no entanto, minha atenção estava focada em outra
coisa.
Eu não deveria ter me surpreendido ao perceber que a parte dos
fundos da casa de Joshua era ainda mais linda do que sua fachada. Mas
meu queixo caiu mais um pouco ainda quando vi o quintal que se estendia à
minha frente.
Os pinheiros e cedros, tão comuns na região sudeste de Oklahoma,
tinham sido podados para formar uma espécie de muro em volta da casa. No
quintal, enormes bordos e choupos se espalhavam com seus galhos
entrelaçados, formando uma espécie de cobertura sobre o gramado. Através
de suas folhas, era possível avistar apenas alguns fragmentos do céu escuro
lá no alto.
Um caminho de pedra serpenteava pela grama e em volta de cada uma
dessas árvores. Mas esse não era um quintal qualquer. Essas pedras, que
pareciam ser de vários tons de azul e cinza no escuro, se ramificavam por
todos os lados em trilhas sinuosas, quase labirínticas. Algumas trilhas
passeavam pelo gramado e depois se reencontravam, enquanto outras iam
até escadinhas que davam acesso a plataformas com parapeitos de ferro. Em
certos lugares, essas trilhas se transformavam em pontes cobertas, sob
densas abóbadas de ramos floridos. Embaixo das partes elevadas, um
caudaloso rio de hera e flores emergia do chão.
Na outra ponta do quintal, ficava um belvedere de madeira, entre um
círculo de ciprestes altos. A cena inteira era iluminada por enormes
luminárias brancas penduradas em grossos cabos elétricos estendidos entre
cada uma das árvores. A luz das lâmpadas quase escondia o tênue brilho de
73
centenas de vaga-lumes do fim do verão que pairavam no escuro entre as
árvores em volta do quintal.
— Meu Deus — soltei em voz alta.
— Pois é... — concordou Joshua. — Minha mãe é dona de uma
empresa de paisagismo. Ela tem talento para a coisa, né?
— Diria que sim. — Joshua se virou para mim com um leve sorriso,
mas então franziu um pouco a testa, olhou para mim e juntou as
sobrancelhas. — O que foi? — perguntei, sentindo uma forte onda de
desconforto me invadir. — Por que você está me olhando assim?
— Sabia que você meio que brilha no escuro?
— Ah, isso. — Olhei para a minha mão, ainda entre a dele, e então
para o seu rosto de novo.
A luz das luminárias acima de nós iluminava partes do rosto de
Joshua, enquanto as sombras da noite encobriam as outras. Minha pele, no
entanto, continuava com a mesma aparência, inalterada pelo cair da noite.
Essa era uma coisa com a qual já estava acostumada, e que me fez
reconhecer Eli na mesma hora como um fantasma: o aspecto mortiço e
opaco da nossa pele em meio ao escuro. Para mim, Eli parecia uma imagem
em preto e branco na frente de outra tridimensional. Mas para Joshua, eu
parecia brilhar.
Encolhi os ombros.
— Acho que é uma coisa de fantasma. É sinistro?
— Um pouco — confessou, mas com um sorriso. Soltei um suspiro,
grata mais uma vez pela sua aparentemente infinita capacidade para aceitar
todas as coisas estranhas em mim. Mas nem tive a chance de expressar
minha gratidão, porque o som de uma porta batendo fez com que nós dois
virássemos nossas cabeças para a casa de Joshua.
Havia agora uma figura baixinha na plataforma mais alta do quintal.
Pela sua silhueta, vi que era uma mulher. Contra as luzes fortes que
emanavam das janelas da casa, ela estava iluminada por trás, com seu rosto
encoberto entre sombras. Pela sua postura — com as mãos na cintura e as
costas erguidas —, dava para ver que, seja lá quem fosse ela, era alguém que
não estava muito contente.
Soltei a mão de Joshua na mesma hora e encolhi os ombros, me
sentindo de repente como uma criança pega pela mãe de um amiguinho
fazendo alguma bobagem. Quando a mulher falou, no entanto, eu soube que
não era eu a criança prestes a levar uma bronca.
74
— Joshua Christopher Mayhew! — a voz da mulher era aguda e
delicada, mas agora parecia tensa de preocupação. — Será que preciso
perguntar se você tem alguma boa explicação para chegar em casa assim tão
tarde?
— Não, mãe — grunhiu Joshua, olhando para os próprios tênis.
— E será que preciso te dizer que a gente já estava quase ligando para
a polícia, achando que você tinha desaparecido?
— Não é tão tarde assim — resmungou Joshua, tão baixinho que a
mulher na varanda nem o ouviu. Em seguida, ele disse mais alto: — Tudo
bem, mãe. Desculpe.
Ele então suspirou e começou a se arrastar até a varanda. Eu o segui,
de cabeça baixa.
— Ela é sempre assim? — sussurrei, por mais que a mãe de Joshua
não pudesse me ouvir e ele não pudesse me responder.
Ele me surpreendeu sussurrando de volta entre seus dentes cerrados:
— Minha vó é pior ainda... ela parece um pit bull. E dos bravos.
Engoli seco e balancei a cabeça. Como se eu precisasse ainda de mais
motivos para ter medo da velha Ruth Mayhew.
Acho que a mãe de Joshua não ouviu essa descrição pouco lisonjeira
de Ruth, porque sem dizer mais nada se virou e marchou de volta para
dentro, depois de abrir com força uma portinha de tela, que depois ficou
quicando contra o batente.
Joshua me olhou com um ar tímido antes de subir na varanda e ir até
a porta. Eu o segui às pressas, como se também tivesse recebido aquela
ordem para entrar logo em casa. Joshua pegou a portinha de tela enquanto
ainda quicava e a segurou aberta. Em seguida, se virou para mim.
— Minha mãe se chama Rebecca e o meu pai, Jeremiah, aliás —
sussurrou, enquanto eu o alcançava.
Dei uma risadinha tensa.
— Ah, tudo bem. Só para eu já saber, por mais que eles estejam
ocupados demais gritando com você e não possam me ouvir, né?
Joshua revirou os olhos, mas me abriu um sorriso rápido. Em
seguida, passou pela porta e fez um gesto para que eu entrasse também.
Engolindo seco, cruzei a soleira e deixei que ele fechasse a porta atrás de
nós.
Assim que entramos, eu o segui a vários passos de distância por um
corredor escuro. Ao ver sua silhueta à minha frente, senti uma onda quase
incontrolável de nervosismo por um instante. Eu já tinha até aberto a boca
75
para dizer, “olha, obrigada, mas talvez seja melhor deixar isso para outra
hora”, quando nós passamos por uma arcada e nos deparamos com outra
cena fantástica.
Era a cozinha dos Mayhew, toda iluminada e aconchegante. Todas as
paredes eram feitas de madeira avermelhada, e potes e utensílios cobriam
cada centímetro de sua imensa bancada. No meio desse enorme espaço,
havia uma pequena ilha de madeira em cima da qual ficavam vários potes e
panelas, todos pendurados em vigas rebaixadas do teto.
A cozinha parecia se estender por todo o comprimento da casa, indo
das janelas salientes na fachada à nossa frente até outra enorme com uma
floreira à nossa esquerda. Embaixo dessa janela, um homem e uma menina
estavam rindo diante de uma pia cheia de pratos.
Jeremiah e Jillian Mayhew, imaginei.
Atrás deles, a mãe de Joshua tinha acabado de chegar à ilha central,
onde então começou a arrumar os pratos empilhados ali em cima. Por um
instante, seus lustrosos cabelos escuros cobriram seu rosto; mas quando ela
se virou na direção das risadas, pude ver seus lindos traços e belos olhos
castanhos, que reluziram de alegria por um momento antes de se focarem
em Joshua, quando então se estreitaram.
— Bom, meu filho pródigo — disse. — Qual seria um bom castigo para
você por ter perdido o jantar e dado um susto na sua mãe menos de uma
semana depois de bater o carro?
A voz de Rebecca Mayhew chamou a atenção de Jeremiah e Jillian,
que se viraram para trás. Pelo canto do meu olho, pude ver Joshua inquieto
pela situação. Abri um rápido sorriso de incentivo para ele e então voltei a
me concentrar em sua família.
Embora Jeremiah tivesse cabelos castanhos em vez de pretos, seus
olhos azuis-escuros eram iguaizinhos aos de Joshua. Apesar dos pelo menos
vinte anos de diferença entre um e outro, os dois poderiam ser irmãos; eles
tinham os mesmos ossos altos nas bochechas e a pele bronzeada, o mesmo
sorriso largo. O sorriso de Jeremiah foi muito claro: seja lá quem quisesse
punir Joshua aquela noite, não contaria com seu apoio. Pelo menos não de
verdade.
No entanto, a julgar pela sua expressão, Jillian obviamente parecia
estar tão irritada quanto sua mãe. Ela jogou seus longos cabelos escuros
para trás com as duas mãos e fechou a cara.
Ela e a mãe tinham rostos fortes. Jillian, no entanto, tinha traços
mais retos, menos delicados. Não que Jillian não fosse bonita — ela era. Mas
76
alguma coisa no jeito com que ela repuxou a boca e inclinou a cabeça de
lado a deu um ar manhoso, como se sempre tivesse algum comentário ácido
na ponta da língua.
— É, Josh — resmungou ela. — Que gentil da sua parte chegar bem a
tempo para terminar de lavar a louça.
Joshua abriu a boca para protestar, mas outra voz, essa mais velha, o
interrompeu.
— Acho que esse poderia ser um bom castigo para ele: arrumar essa
cozinha toda sozinho.
Joshua e eu nos viramos ao mesmo tempo para quem disse isso. Era
uma senhora de idade, vindo de uma mesa de jantar encostada em um canto
nos fundos da cozinha que eu não havia notado antes. Como ela estava com
a cabeça baixa, olhando para uma pequena pilha de envelopes em suas
mãos, não pude ver seu rosto.
Ainda concentrada nas cartas, ela soltou um suspiro pesado e então
balançou a cabeça. Seus cabelos, que desciam até o queixo, balançaram um
pouco com esse movimento. Seus fios — de um branco brilhante, quase
translúcido — pareciam reluzir sob a luz da cozinha.
Finalmente, depois de mais alguns passos, ela olhou para Joshua. Na
mesma hora, percebi de quem Joshua e Jeremiah tinham puxado aqueles
olhos tão diferentes. Os olhos Ruth Mayhew, azuis-escuros como a meia-
noite, reluziam em seu rosto pálido e oval, sobre seus traços intensos e
queixo proeminente. Quando ela juntou suas sobrancelhas, rugas profundas
se formaram em volta da boca e da testa. Mas em vez de fazê-la parecer uma
velhinha frágil e vulnerável, essa expressão a deu um ar forte.
No meio da cozinha, os singulares olhos de Ruth se focaram nos
meus, e ela ficou paralisada.
— Joshua? — perguntou com um tom hesitante. — Quem é que está
aí com...?
Ela não terminou sua pergunta, mas se inclinou para frente, olhando
para o espaço ao lado de Joshua. O lugar onde eu estava.
Nesse momento, fiquei paralisada também.
Tive a instantânea e desconcertante certeza de que a avó de Joshua
iria perguntar a ele quem estava ao seu lado. Mas isso era impossível. Só
Joshua e Eli podiam me ver. Eu tinha comprovado isso hoje mesmo naquela
sala de aula. Mesmo assim, senti um impulso de sair correndo; e antes que
eu pudesse raciocinar melhor, sussurrei:
— Joshua, talvez seja melhor eu voltar outra...
77
A frase ainda nem tinha acabado de sair da minha boca quando Ruth
se endireitou, erguendo as costas de novo. Seus olhos se focaram nos meus.
Sua mão direita, que estava segurando as cartas, caiu solta ao lado de seu
corpo, espalhando os envelopes com um barulhento farfalhar pelo chão da
cozinha. Ainda virada para mim, ela puxou um fôlego intenso.
E só com esse fôlego, ela já me disse tudo o que eu precisava saber.
Ruth me ouviu. Ela me viu. Não havia nenhuma outra explicação para
aquela sua repentina mudança de comportamento. Ruth podia me ouvir e
me ver tão bem quanto Joshua. Ao me dar conta disso, não consegui mais
me mexer. Sequer piscar.
Pelo canto da minha vista, disparei um olhar arrependido para o
corredor escuro que dava para a cozinha. Se eu pelo menos tivesse pensado
em me esconder, talvez até me arrastar para baixo do carro de Joshua, antes
que aquela mulher tivesse me visto.
Olhei para Joshua e o vi empalidecer. Seus olhos dardejaram várias
vezes entre sua avó e eu.
— Vó... — perguntou ele com uma voz trêmula — ...o que foi?
Joshua estava falando diretamente com ela, então seria de se esperar
que Ruth se virasse para o neto enquanto respondia. No entanto, seus olhos
continuaram fixos nos meus. E ela não os tirou de mim enquanto falava.
— Quem é essa? — disse essas palavras com cuidado, pronunciando
suas consoantes de um jeito como se fossem agulhadas em mim a cada som
pungente. Tentei em vão me esconder entre os armários enquanto Joshua a
respondia.
— Quem é quem? — disse ele, dando risada, mas ansioso demais,
como se já soubesse bem demais o porquê daquela pergunta. Seus olhos se
viraram para os meus por um brevíssimo momento antes de se
reconcentrarem em Ruth. — A senhora está bem, vó?
Ao ouvir o riso nervoso do neto, Ruth finalmente tirou seus olhos dos
meus. Ela se virou para Joshua com uma expressão no mínimo enfurecida.
— Não banque o cínico comigo, Joshua. Por que você achou que seria
uma boa ideia trazer alguma coisa da Ponte Alta para dentro da nossa casa?
— Vó, eu não...
— Shiu! — o interrompeu Ruth na mesma hora. Joshua franziu a
testa, mas ela continuou, com seus olhos estreitos dardejando na minha
direção de tempos em tempos. — Não venha me dizer que não, porque estou
vendo muito bem que sim. Disse para você ficar longe daquela ponte... venho
dizendo isso desde que você era pequeno. Mas você foi lá, bateu seu carro e
78
agora traz isso aí para dentro da nossa casa? Justo depois de eu ter me
esforçado tanto para proteger você desse tipo de coisa?
Seus olhos se focaram totalmente nos meus durante essa última
frase. Eu não tive como não estremecer e então comecei a recuar, voltando
na direção do corredor.
— O que é isso, vó? — Joshua riu de novo, mas parecia já ter
desistido de esconder a tensão em seu riso. — Todas as histórias que a
senhora me contou sobre aquela ponte são só... histórias.
— É verdade, mãe — disse o pai de Joshua atrás de nós, parecendo
bastante nervoso com o comportamento de Ruth também. — A senhora sabe
que eles só inventam essas histórias para que as crianças não cheguem
perto daquela ponte, que é um perigo mesmo.
Virei para trás e vi o pai de Joshua olhando para o resto de sua
família. Como ele, Rebeca e Jillian também estavam concentradas em Ruth,
confusas. Como se estivessem com medo de que sua matriarca — o “pit
bull” da família, como Joshua havia dito — estivesse ficando maluca,
levando o seu hobby paranormal meio longe demais.
Ruth, no entanto, balançou a cabeça, com suas bochechas ganhando
agora um violento tom avermelhado de fúria.
— Não fale besteira, Jeremiah. O que sei é que aquela ponte tem um
histórico péssimo. O tipo de histórico que pode transformar as energias de
um lugar. Essas energias podem atrair certas... coisas.
— Vó, a senhora sabe que não acredito em...
Ela riu com um ar melancólico, interrompendo Joshua de novo.
— Joshua — ela apenas suspirou o nome do neto, com seus olhos
agora focados nos dele de novo. — Tenho certeza de que você acredita sim.
Ou que pelo menos agora, você acredita.
Um leve gemido escapou sem querer dos meus lábios.
Tapei minha boca na mesma hora. Ruth, no entanto, nem olhou para
mim. Em vez disso, ela apenas continuou concentrada em seu neto.
Talvez ela não tivesse me ouvido. Talvez eu só estivesse ansiosa
demais, imaginando que ela tinha me visto. Imaginando que era de mim que
ela estava falando quando comentou sobre essas tais ―certas coisas‖
associadas à Ponte Alta.
Talvez. Mas isso já não me parecia mais muito provável.
E eu não queria me arriscar. Na verdade, de repente me senti acuada.
Uma vontade de sair correndo começou a arder nas minhas pernas. Disparei
79
mais um olhar melancólico para Joshua antes de me arrastar com vários
passos para trás.
Joshua seguiu meus movimentos pelo canto do olho.
— Não...! — tentou protestar ele, mas então juntou seus lábios e abriu
outro sorriso amarelo para sua avó.
— Desculpe — murmurei, já na entrada do corredor. — Mas acho que
é melhor dar o fora daqui.
Ele franziu a testa, ainda fitando sua avó, que continuava a encará-lo.
Fiquei olhando de um para o outro, enquanto mordia o canto do meu lábio.
Por fim, acabei parando em Joshua. Olhei para baixo e vi sua mão mais
próxima de mim, que ele estava abrindo e fechando, como tinha feito antes
de entrar para sua aula de matemática naquela tarde.
Apesar do medo, esse gesto me fez sorrir. Aquilo me fortaleceu, ainda
que só um pouco.
Tomei um fôlego e então disse:
— Me encontre na sua escola amanhã, tá? Na hora do almoço, no
estacionamento, pode ser? — Joshua me respondeu com um levíssimo aceno
de cabeça, e então abri um sorriso. Mas foi um sorriso que logo se encolheu
quando os olhos de Ruth se voltaram para os meus. Se eu não soubesse,
chegaria até achar que aquela encarada poderia me matar de novo. — Me
ajude a sair daqui, Joshua — sussurrei, como se meu tom baixinho de
alguma forma pudesse me esconder de Ruth. Me virei e saí às pressas pelo
corredor antes de descobrir se eu estava certa ou não.
Chegando ao final do corredor, quase gritei de frustração. Dei de cara
com a portinha de tela, que eu nunca conseguiria abrir com minhas mãos
espectrais. Quase desmaiei de gratidão quando um braço passou por mim e
empurrou a porta que se abriu o bastante para que eu pudesse sair. Corri
até a varanda e me virei com um largo sorriso de alívio no rosto.
— Obrigada, Joshua, juro que...
Mas essas palavras morreram entre os meus lábios.
Ruth estava olhando para mim do outro lado da porta, com sua mão
ainda firme no batente, parada a poucos centímetros de mim.
Ela estava sozinha no corredor.
Eu não conseguia tirar meus olhos dos de Ruth. Enquanto a
encarava, minha visão borrou, e pude jurar que minha cabeça chegou
a doer.
80
Por fim, com um angustiante esforço, consegui desviar meus olhos.
Comecei a dar passos descoordenados e cambaleantes pela varanda e então
escada abaixo.
Achei ter ouvido alguma coisa atrás de mim — um suave murmúrio,
quase como uma oração entoada. Mas não olhei para trás. Em vez disso,
disparei pelo quintal até a entrada, louca para fugir. Antes que eu pudesse
escapar, no entanto, o som da voz de Ruth me paralisou mais uma última
vez.
Ruth apenas sussurrou. Mas desta vez, alto o bastante para que eu a
ouvisse, mesmo do outro lado do quintal. O mero som de sua voz ardeu com
frieza e crueldade na minha nuca.
— Você não era quem eu esperava... — sibilou ela para as sombras —
...mas seja lá quem você for, vá embora. E não volte mais.
Meu primeiro impulso foi o de me jogar no chão, me encolher na
posição fetal e rezar para ter um dos meus pesadelos. Para simplesmente
desaparecer dali.
Meu impulso seguinte foi o de gritar, ―Sim, senhora. Sem problema,
senhora”, e obedecer na mesma hora suas ordens.
Meu impulso final me pareceu um pouco menos familiar. Um pouco
estranho para mim, ou pelo menos para a pessoa que eu havia me tornado
após a morte. Seguindo esse meu último impulso, a única coisa que fiz em
resposta a isso foi me endireitar da melhor forma que pude e virar a cabeça
para trás.
Em seguida, após essa parca demonstração de confiança, segui pelo
menos em partes as instruções de Ruth e saí correndo em meio à escuridão
da noite.
81
Onze
Nem sei por quanto tempo fiquei andando depois que saí da casa de
Joshua. Uma hora, talvez quatro — quem vai saber? Eu só sabia que a noite
tinha escurecido mais, ganhando um tom negro sinistro. Ao contrário do que
eu tinha visto no meu último flashback, o céu acima de mim estava sem
estrela nenhuma. A única luz vinha de uma lua mortiça. Um mero espectro,
tão baço e fraco que parecia até deslocado no meio do céu. Como se aquele
não fosse seu lugar.
Como eu, pensei, cheia de amargor. Aqui também não é o meu lugar.
Bom, talvez aqui fosse o meu lugar, neste trecho deserto de uma
estrada pelo qual eu estava andando agora. Mas com certeza meu lugar não
era na casa que eu tinha acabado de visitar. A casa da qual eu tinha
acabado de ser expulsa sem nenhuma cerimônia.
Ao me lembrar dos olhos enfurecidos e da voz fria de Ruth, fiquei
pensando, Será que ela tinha razão? Eu não era o que ela “esperava” de um
fantasma. Então... será que eu era algo ainda pior? Será que eu era mesmo
alguma “coisa” sinistra da Ponte Alta, como Eli? Uma força maligna na vida de
Joshua, que só o salvou para poder assombrá-lo?
Eu com certeza não me sentia maligna.
Mas não tinha como ter certeza se isso significava alguma coisa. Não
sabia nada sobre mim, nada sobre minha própria natureza. Aqueles
flashbacks estavam começando a me dar algumas informações, mas muito
devagar e de pouco em pouco. Tudo bem, então eu tinha estudado em casa
com minha mãe, com quem eu obviamente brigava bastante, sabia resolver
equações diferenciais e tinha coragem o suficiente para usar vestidos
ousados como este com o qual eu provavelmente irei passar o resto da
eternidade. Esses detalhes, no entanto, não diziam nada sobre mim, não
deixavam claro se eu era ou não uma boa pessoa.
82
Até onde sabia, eu poderia ter passado a vida inteira chutando
cachorrinhos ou roubando calcinhas em lojas de departamento por aí.
Ou até coisa pior, é claro. Muito, muito pior.
Talvez alguma coisa que fiz em vida, ou até durante a morte, me
fizesse merecer o pós-vida que Eli insistia estar à minha espera. Será que eu
tinha sido uma pessoa cruel? Será que tive uma vida tão terrível que acabei
me matando?
Eu não tinha a menor ideia.
Senti uma onda repentina de frustração. Os flashbacks eram tão
desconexos, tão vazios, sem nenhum detalhe importante. Talvez nunca
chegasse a descobrir quem eu tinha sido ou em que poderia me tornar.
Soltei uma bufada de irritação e comecei a bater os pés com mais força
enquanto andava pela estrada.
Acho que eu não estava prestando atenção por onde andava porque
quase tropecei nos meus próprios pés. Só depois de me reequilibrar que
percebi onde estava, o que me irritou ainda mais.
Em meio à minha distração, tinha voltado para o lugar que mais
odiava: a Ponte Alta.
Eu estava bem na entrada da ponte. Suas estruturas de metal
despontavam acima de mim, reluzindo sob o luar amarelado, como uma
piscadela maligna.
— Ah, mas que maravilha! — gritei.
Minha voz soou infantil, ecoando nas vigas da ponte de volta para
mim. Ainda no meu clima petulante, ergui a perna para chutar uma pedra
até o acostamento da estrada.
Mas antes que conseguisse dar esse chute, uma rajada de ar frio
acertou minhas costas de repente, me causando um arrepio que foi do meu
pescoço até meus pés. Logo em seguida, uma voz suave e familiar irrompeu
atrás de mim.
— Sabe, Amélia, você pode até tentar. Mas essa pedra nunca vai sair
do chão.
Fechei os olhos, me esforçando para não estremecer — por mais
apropriado que isso pudesse me parecer —, e então me virei para trás,
conseguindo abrir um leve sorriso irônico.
— Eli.
Essa palavra foi meu único cumprimento. O canto dos lábios de Eli se
repuxou com um ar de quem estava se divertindo.
— Ao que devo esse prazer, Amélia?
83
Franzi a testa.
— Como assim?
— Bom, claramente... — disse ele, se inclinando para frente e
arqueando as sobrancelhas — ...você queria alguma coisa. Ou então não
estaria aqui.
— E por que você acha isso?
— Você me procurou. Até agora, eu venho cumprindo minha
promessa de deixar você em paz. — Em seguida, ele apontou com um braço
para as estruturas metálicas e a estrada à nossa volta. — Mas foi você quem
voltou para a ponte, como eu bem disse que faria.
— Acredite em mim, não foi por querer — disse eu, fechando a cara.
— Tudo bem, Amélia. — Ele começou a se virar para a encosta. Em
seguida, ele olhou para mim e, após um instante de reflexão, apontou com a
cabeça para o rio. — Não quer descer comigo? Nós podemos conversar
melhor lá embaixo.
Tentei não dar risada dessa sugestão.
— Ah, não, obrigada, Eli. Acho que já deixei bem claro que não gosto
muito de sair por aí com você para lugares escuros.
Eli balançou a cabeça.
— Mas você quer conversar, não quer?
— Com você? Por que iria querer isso?
— Vi sua cara antes de me materializar. Você teve uma noite ruim —
disse, como se tivesse certeza disso.
— E daí?
Fui defensiva, e por um bom motivo. Não tinha a menor intenção de
deixar que Eli ficasse sabendo por que minha noite tinha sido ruim. Ele não
podia saber de onde eu tinha acabado de sair — não podia nem saber da
existência de Joshua, aliás.
— E daí... — disse Eli — ...que talvez você queira saber por que está
tão frustrada desde que despertou da névoa da morte. Ou por que não
consegue entender qual é o seu lugar.
Fiquei sem reação.
— Como você...? — arrisquei, mas então balancei a cabeça. Eli não
tinha como saber no que eu estava pensando antes de aparecer. Foi só um
palpite. Um palpite certeiro. Apenas encolhi os ombros. — Você tem razão.
Seria ótimo saber tudo isso. Mas você está louco se acha que vou fazer seja
lá o que você quer só para descobrir essas coisas.
Para a minha surpresa, Eli deu risada.
84
— Tudo bem, Amélia. Então que tal se eu te der uma... como posso
dizer... amostra grátis?
— Como assim?
— Eu posso te contar alguns detalhes sobre o pós-vida em troca
apenas de um pouco da sua companhia.
Ergui uma sobrancelha, cética.
— E qual é a pegadinha?
— Nenhuma... por enquanto.
— Por enquanto?
— Bom — ele soltou um suspiro. — Espero que você reflita sobre o
que eu te disser hoje e entenda isso como motivo o bastante para voltar para
mim depois... dessa vez em definitivo.
— E se eu não quiser?
— Aí poderemos lidar com esse problema quando for necessário.
Mordi meu lábio, confusa com a tentadora proposta de Eli. Não
achava que podia, e nem queria, confiar nele. Mas também não tinha como
resistir àquela oferta de informação, não agora. Eu queria saber quem eu
era, e o que iria acontecer comigo. Ou melhor, euprecisava saber. Acenei a
cabeça com o máximo de determinação que pude, por mais que ainda
estivesse meio desconfiada.
— Tudo bem, Eli. Vamos lá.
Eli pareceu surpreso com a minha decisão repentina. Ainda assim,
um sorriso contente logo se abriu em seu rosto. Ele esfregou as mãos uma
na outra.
— Excelente.
Sem esperar que eu dissesse nada, ele se virou e desceu a encosta.
Respirei fundo para tomar coragem e o segui.
Com cuidado, desci bem devagar pela grama da encosta. Eli estava me
esperando no final da descida, com as pernas abertas plantadas firmes no
chão e os braços cruzados. Parei a vários metros de distância dele e espelhei
sua postura.
— Bom, e aí? — disse eu.
Eli sorriu, ignorando minha pergunta.
— Como está a temperatura, Amélia?
— Hã?
Franzi a testa. Apesar do meu interesse pelo que Eli tinha para dizer,
não queria cair em nenhum de seus truques. Então acabei me sentindo
muito boba — para não dizer irritada — quando o cenário à nossa volta
85
mudou de repente. Sem nenhum aviso, tudo ganhou um tom cinza e escuro
como carvão; e um vento gelado açoitou minha pele.
Perdi o fôlego ao olhar à minha volta. As árvores e o rio haviam se
transformado de novo em carvão e piche. Eli havia nos levado de volta para o
mesmo lugar de ontem; o terrível submundo no qual eu supostamente
estava condenada a passar a eternidade. Mesmo depois de um dia inteiro,
nada havia acontecido para melhorar a aparência daquele lugar.
Minha voz saiu tímida e vacilante quando protestei.
— Você não tinha dito que a gente só ia conversar?
— Relaxe, Amélia — disse Eli. — Vou cumprir minha promessa. Só
queria estar onde me sinto mais confortável.
Olhei para cima e para trás dele. O abismo negro sob a ponte e
aqueles vultos estranhos que pairavam pelo ar ainda não tinham aparecido.
Abracei meu próprio corpo, tentando me proteger do frio.
— Tá, tudo bem. Mas fale logo e me deixe ir embora. Este lugar me dá
calafrios.
— Bom — disse ele. — Por que não começamos por este lugar aqui
então? Você gostaria de saber onde está?
Acenei a cabeça, hesitante.
— Este lugar aqui é uma parte do pós-vida, como já disse.
— Isso não é muito confortante — murmurei, assimilando toda aquela
sombria escuridão cinzenta com uma passada de olhos.
Eli balançou a cabeça.
— Não é tão ruim quanto você pensa, Amélia. Sinceramente.
Fixando seus olhos nos meus, Eli ergueu uma das mãos e estalou os
dedos. Na mesma hora, o submundo se iluminou como se Eli tivesse
acionado algum tipo de interruptor sobrenatural.
Meu queixo caiu.
Com apenas essa fração de luz, um cenário inteiro apareceu à minha
volta. Tudo continuava tendo apenas tons de cinza. Mas foi a cena em si, e
não suas cores, o que chamou minha atenção.
À primeira vista, esse submundo lembrava muito a margem do rio de
onde tínhamos acabado de sair. Mas as vagas formas escuras como carvão
que eu tinha visto ontem, agora me pareciam mais familiares: um campo de
grama alta, árvores enormes e tufos desgrenhados de flores selvagens ainda
se espalhavam à nossa volta. No entanto, cada uma dessas plantas
cinzentas tinha diferenças tênues, mas significativas daquelas do mundo
real.
86
Aqui, os galhos das árvores eram sinistros e retorcidos, como garras e
ganchos, e as flores selvagens e a grama se engalfinhavam como se
estivessem no meio de uma violenta batalha. E por mais que as plantas
sugerissem que nós estávamos no final do verão aqui também, cada
superfície brilhava e reluzia, coberta por uma fina camada de gelo.
Depois de iluminado, este submundo agora parecia muito algum tipo
de terra das maravilhas sinistra. Como uma versão negativa superexposta do
mundo dos vivos: frio, escuro e macabro. Mas também incrivelmente lindo.
— É sempre assim por aqui? — perguntei, espantada.
— Não — respondeu Eli com um tom baixo e respeitoso. — É sempre
cinzento e frio. Mas posso aumentar ou diminuir a iluminação, se eu quiser.
— Então você manda neste mundo?
Eli riu alto, me despertando do feitiço que aquele lugar tinha lançado
sobre mim.
— Você está me perguntando se eu sou Deus, Amélia?
— Não era bem em Deus que eu estava pensando — murmurei baixo
demais para que Eli ouvisse.
— Não, não sou a entidade de maior poder por aqui — disse. — Mas
trabalho, sim, para eles.
Tirei meus olhos daquelas árvores incríveis e me virei para Eli.
— Eles? Como assim?
Eli se acomodou onde estava.
— Bom... — disse. — Acho melhor começar explicando o meu
trabalho. — Eu ergui as sobrancelhas, e ele soltou um suspiro. — E sou o...
guardião, por assim dizer, deste pedaço do além. Eu fui contratado para
cuidar dele. Para cultivá-lo.
— Cultivar? Para cuidar das plantas, você diz?
Por algum motivo, os olhos de Eli reluziam com malícia.
— Das plantas e de... outras coisas. Escute... — ordenou, colocando a
mão em volta da orelha.
Obedeci por impulso, fechando bem a boca e me concentrando na
quietude à minha volta. A princípio, não ouvi nada, a não ser talvez o
estranho eco do silêncio, como o som que você escuta quando coloca uma
concha do mar na orelha.
Em seguida, apenas um pouco acima do silêncio, eu os ouvi. Fracos
no começo, mas ficando cada vez mais intensos.
Sussurros. Um coro de sussurros.
87
— Quem...? — tentei dizer, mas Eli pôs o dedo em frente aos lábios,
me pedindo silêncio.
Os sussurros continuaram, abafados e constantes. Eu não tinha como
ter certeza, mas depois de mais alguns segundos, eles começaram a me
parecer... desesperados. Frenéticos.
Alguma coisa naquilo me assustou.
— Que vozes são essas, Eli? — perguntei, trêmula. — Me responda.
Agora.
— Acho que você já sabe.
— São pessoas? — murmurei.
— Bom... — disse, com um sorriso malicioso. — É o que elas
costumavam ser.
Engoli seco, sentindo um enjoo estranho.
— Qual é exatamente o seu trabalho aqui, Eli? Sério.
Ele suspirou como se estivesse aliviado por eu finalmente ter feito
uma pergunta importante.
— Eu não sou só um guardião, mas também uma espécie de
recrutador. Fui escolhido para trazer certas almas recém-mortas para este
lugar. Algumas das vozes que você ouviu são de trabalhos meus... almas que
recebi a ordem de trazer para cá.
— Outros fantasmas?
Eli acenou a cabeça.
— Acho que você até viu alguns deles ontem, na verdade.
Eu me lembrei dos vultos que tinha visto de relance. Olhei assustada
para os dois lados de Eli, mas vi apenas a margem vazia do rio.
— Onde eles estão agora?
— Pedi que eles nos deixassem a sós um pouco para que a gente
pudesse conversar — Eli apontou com a cabeça para a estranha fileira de
árvores atrás dele. — Costumam ficar por ali até eu precisar deles.
— Você é... o chefe deles, ou alguma coisa assim?
Eli encolheu os ombros, mas com um ar orgulhoso. Quase satisfeito.
— Eu os recruto para os meus mestres. Em troca, meus mestres me
dão poder sobre este lugar. Essas almas me obedecem e me ajudam com o
que preciso. Em missões importantes, elas podem ser muito úteis.
Tentei não estremecer, pensando no que seria uma ―missão
importante‖ para Eli.
— E esses seus ―mestres‖, os que te deram esse trabalho... eles
também estão entre aquelas árvores?
88
Ele riu como se eu tivesse dito algo ridículo.
— Não, é claro que não, Amélia. Este reino é meu. Já ali, no entanto...
— ele não terminou a frase, mas olhou por cima do meu ombro. Segui seu
olhar até um ponto onde o rio se arrastava sob a Ponte Alta. O espaço onde
aquele buraco negro tinha aparecido ontem.
Alguns detalhes se encaixaram na minha mente, e eu soltei um
grunhido.
— Então você aprisiona pessoas neste mundo? Sob as ordens de seja
lá quem vive naquele... buraco do inferno?
— Sim, mas só porque este é o lugar dessas almas. E aquela
escuridão ali não é o inferno. É só um dos lugares onde as forças maiores
ficam quando não estão me dando instruções.
Eli pareceu estar sendo sincero. Ainda assim, balancei a cabeça com
força para rebater suas palavras. Nenhuma alma merecia ficar naquela
floresta escura, aprisionada para sempre, sem poder alternar entre os
mundos como Eli e eu claramente éramos capazes. Independente das ordens
de seja lá quem, ou o quê.
Enquanto eu tentava imaginar como devia ser ficar presa dentro
daquela floresta escura ou, que Deus me livre, em algum lugar entre as
trevas daquele abismo sob a ponte, um pensamento me veio à mente. Um
pensamento aterrador.
Ergui meus olhos novamente até os de Eli, investigando suas
profundezas azul-claras.
— Mas e eu, Eli? E quanto à minha alma?
O canto de seus lábios se repuxou para cima.
— Ah, agora sim chegamos ao verdadeiro xis da questão. Não foi por
isso que a gente veio aqui na verdade? Para discutir sua natureza?
— Sim, mas... — insisti. — O que minha natureza tem a ver com este
lugar?
Ele apontou para trás com um dos braços.
— Você não está se perguntando por que eu ainda não transformei
você em uma daquelas sombras? Por que deixei você vagar por aí, muito
mais tempo do que em geral permitiria que qualquer alma ficasse no mundo
dos vivos?
Tentei em vão evitar um arrepio.
— Tudo bem, tá certo. Por quê?
— Porque você é especial, Amélia. — Ele começou vir lentamente na
minha direção.
89
— Ah, é? — Tentei manter minha voz o mais casual possível,
enquanto andava para trás, para longe dele. — Por que sou especial?
— Graças à generosidade dos meus mestres... — disse, ainda
avançando até mim — ...posso ficar com uma alma recém-morta para mim.
Como uma... espécie de aprendiz. E quando eu vi você, quando eu comecei a
observar você, logo percebi que você seria perfeita.
— Por quê?
— Porque você me pertence, Amélia. Seu espírito é como o meu.
As palavras de Eli ecoaram pelo meu cérebro, repetindo meus medos
de antes. Então eu era mesmo um ser maligno? Tudo dentro de mim relutou
contra essa sugestão. Não podia acreditar naquilo. Simplesmente não podia.
— Não — insisti, balançando a cabeça de novo. — Não é verdade. Aqui
não é meu lugar.
— Ah, é sim. — Com alguns passos rápidos, Eli chegou à minha frente
e então se inclinou e pôs as mãos ao lado dos meus ombros, pairando sobre
minha pele, mas sem tocar em mim. — O seu destino é me ajudar no
trabalho... soube disso assim que vi você. — Ele voltou a encolher os
ombros, mas esse gesto me pareceu muito menos casual dessa vez. —
Você precisa me ajudar, Amélia. Porque senão, minha única escolha será
prender você aqui, sem nunca mais poder voltar pro mundo dos vivos. A
menos que seja obedecendo minhas ordens, como aqueles espectros que me
servem ali. — Ele virou sua cabeça de novo para a floresta com um ar
enfático.
Raiva e pavor borbulharam dentro de mim.
— Não! — gritei na cara dele. — Não vou ajudar você a trazer ninguém
para este lugar. Não vou mesmo.
Sem nem esperar sua reação — que com certeza seria desagradável —,
me virei para sair correndo. Mas nem sabia para onde fugir, claro, sem ter a
menor ideia de como me situar naquele mundo. Olhei à minha volta à
procura de alguma coisa para me orientar, debatendo os braços de um lado
para o outro.
Em seguida, alguma coisa resvalou na minha mão — as pontas dos
dedos de Eli, talvez. Seja lá o que tivesse tocado na minha pele, me causou
um frio brutal, enchendo minhas veias com o que parecia ser água gelada.
Esse frio me atacou com tanta brutalidade, tanta violência, que comecei a
perder a visão.
Ouvi Eli gritar:
— Amélia! Espere!
90
E então, a água escura dos meus pesadelos voltou a me envolver por
completo.
91
Doze
Levantei de repente, quase sem fôlego.
Eu não conseguia processar nenhum pensamento racional, só puxar o
ar desesperadamente. Mas logo depois, meus instintos me lembraram de me
proteger contra qualquer ameaça próxima.
Como Eli, ou seus ―mestres‖.
Após uma rápida olhada à minha volta, não encontrei nenhum sinal
de Eli. Ainda assim, meu coração disparou. Estava sentada em um campo
cheio de lápides, com cada uma delas projetando suas sombras contra o
chão sob o sol forte. Não havia dúvida alguma sobre que lugar era aquele.
Eu estava no mesmo cemitério em que sempre acordava depois dos meus
pesadelos.
Soltei um suspiro e fechei os olhos. Esse pesadelo — o meu primeiro
desde conhecer Joshua — tinha sido diferente dos outros. Dessa vez,
enquanto me debatia na água, tinha ouvido coisas. Vozes, como os
sussurros desesperados daquele submundo medonho. Mas no meu
pesadelo, essas vozes pareciam mais agitadas. Quase em frenesi.
Balancei a cabeça. Apesar das vozes, esse pesadelo tinha me causado
os mesmos efeitos de sempre. Tinha perdido um tempo valioso me debatendo
naquele rio idiota. Ao abrir os olhos, percebi o quanto o dia estava
ensolarado — algo muito bem-vindo após todo aquele breu gelado — e rezei
para ainda ter tempo de me encontrar com Joshua como prometido.
Consegui me levantar e então estiquei cada tendão do meu corpo, por mais
que isso nem fosse necessário.
— Rápido, Amélia — disse eu em voz alta para mim mesma. — Não há
tempo a perder.
Em seguida, saí correndo o mais rápido que pude na direção da escola
de Joshua.
92
Soltei um imenso suspiro de alívio quando finalmente cheguei ao
estacionamento do Colégio Wilburton, que ainda estava lotado de carros.
Passei costurando entre as fileiras de veículos para ter uma visão melhor da
escola em si. Em frente aos prédios baixos, alunos andavam de um lado para
o outro, aguardando o horário do almoço terminar, espero.
Olhei então para os carros, procurando o de Joshua. Havia vários
sedans pretos como o dele no estacionamento, mas logo encontrei um que
me pareceu mais familiar. Fui até lá o mais depressa que pude, enquanto
dava uma rápida checada no meu vestido. Quando consegui ter mais ou
menos a certeza de que não estava parecendo uma louca que acabou de
acordar em um cemitério, parei ao lado da janela do motorista do carro de
Joshua, com as mãos atrás das costas.
Joshua estava sentado dentro do carro, com a cabeça apoiada nos
braços em cima do volante. Depois de apenas alguns segundos, ele ergueu
os olhos. O sol do meio-dia iluminou seu rosto e, por um instante, cheguei a
piscar de surpresa.
Ele estava horrível, ou pelo menos o mais horrível que alguém como
Joshua podia ficar. Estava com o cabelo todo desgrenhado, olheiras enormes
e a barba por fazer. Mas assim que aqueles olhos azuis como a meia-noite
viram os meus, ele sorriu, e não tive como não soltar um suspiro de alegria.
— Espera — disse Joshua, só com os lábios, e então se inclinou até o
lado do passageiro. Ouvi um estalo metálico enquanto ele abria a porta e
então contornei o carro por trás e entrei. Joshua puxou a porta para fechá-la
logo depois.
Ainda inclinado por cima de mim e com sua boca perigosamente perto
da minha orelha, murmurou:
— Oi, Amélia.
— Oi, Joshua — murmurei de volta, com as mãos firmes no meu colo
e não em volta do seu pescoço, onde elas queriam estar.
Joshua se encostou de volta no banco e tentou em vão conter um
bocejo. Isso me fez sorrir e me ajudou a concentrar naquilo que
precisávamos discutir. Aproveitando sua aparência exausta, decidi começar
pelo óbvio.
— Hã... Joshua? Você não percebeu que sua camiseta está do avesso?
Ele olhou para sua camiseta cinza.
— Hum. Mas que coisa...
Com um rápido movimento, Joshua tirou sua camiseta por cima da
cabeça e a virou do lado certo. Pude ver seu peito e seu abdome expostos e,
93
de repente, percebi que já não me lembrava mais de como respirar. O que
não seria um problema, claro, a não ser pelo fato de que também comecei a
engasgar. Joshua viu meu desconforto pelo canto do olho, sorrindo
enquanto vestia a camiseta de volta.
Tentei desesperadamente me recompor. Por fim, consegui me acalmar
o bastante para dizer:
— Bom, estou vendo que é melhor a gente conversar sobre a sua noite
primeiro.
Joshua deu risada e coçou a barba rala em seu queixo.
— Tudo bem, eu primeiro então. — Ele esticou as pernas e depois me
olhou de um jeito meio estranho, como se estivesse me avaliando. — A
minha noite foi... interessante.
— Por quê?
— Bom, minha família teve um longo debate sobre a saúde mental da
vó Ruth, o que é meio irônico, porque eu era o único ali que sabia muito bem
que ela não estava maluca coisa nenhuma.
Fiz uma careta.
— Desculpe.
— Imagine — disse ele com um sorriso melancólico. — Não foi nada
comparado ao longo sermão que precisei ouvir da vó Ruth depois que ela
conseguiu convencer todo mundo que estava em sã consciência.
— Ela te deu um sermão por ter chegado tarde para jantar? —
perguntei, na vã esperança de não ouvir a resposta que já esperava.
O sorriso de Joshua ganhou um ar gentil, mas sua expressão deixou
claro o que ele estava para dizer:
— Não, Amélia. Ela me deu um sermão sobre você.
Puxei um fôlego tenso. Calma, disse eu para mim mesma. Fique
calma.
Com a minha voz mais tranquila possível, perguntei:
— Ah, é? E o que foi que ela disse?
Joshua deu uma risada amarga.
— Bom, aquilo que alguém da família sempre diz, né? ―Fique longe
daquela menina, ela é encrenca‖. Claro, nesse caso, a ―encrenca‖ significa
uma coisa um pouco mais estranha do que uma menina que fuma ou usa
piercings demais.
Fiz outra careta.
94
— Nem me fale... — olhei para a maçaneta do carro, por mais que não
tivesse como usá-la. — Se você abrir a porta para mim, eu posso só descer e
parar de bagunçar sua vida...
— Amélia — o tom de Joshua me fez virar de volta. Ele me abriu outro
sorriso gentil. — Por que você não ouve a história inteira antes de sair
correndo?
Ainda hesitante, eu me acomodei de volta no meu banco.
— Tudo bem. Pode ser. Por enquanto.
Ele virou seu corpo para mim, expondo sua exaustão, e então fechou
os olhos para falar.
— Por uma questão de tempo, vou contar só o principal. A primeira
coisa, você até já ouviu: a vó Ruth acha que a Ponte Alta e aquele rio têm
energias malignas.
— E têm mesmo — murmurei. Joshua abriu um olho, e então
completei: —Explico isso melhor depois.
Ele acenou a cabeça e fechou os olhos de novo.
— Pelo que a vó Ruth disse, depois que meu pai nasceu, ela
basicamente ficou insistindo para que minha família se mudasse para cá só
para poder vigiar aquele rio... para proteger as pessoas de seja lá o que
controla aquele lugar. Supostamente, várias pessoas já fizeram isso,
inclusive amigas dela e suas famílias. Porque aquela é uma área muito
―espiritualmente carregada‖... palavras da própria vó Ruth, juro. — Joshua
bufou enquanto balançava a cabeça. Após uma longa pausa, ele continuou.
— Bom, essa é a segunda coisa e também o verdadeiro motivo pelo qual as
amigas da Ruth sempre foram tão estranhas; elas na verdade são um grupo
de... sei lá... caçadoras de fantasmas. Parece que a missão delas é ficar de
vigia para banir qualquer espírito ―perdido‖. E exorcizar esses espíritos. Elas
vêm caçando certos fantasmas perdidos há anos. Tipo um cara de quem a vó
Ruth me falou. Mas aí, quando você apareceu lá em casa... bom, dá para
imaginar o quanto ela pirou, né?
Eu me acomodei no meu banco, chocada.
Será que os espíritos ―encontrados‖ na verdade eram as almas que Eli
havia aprisionado no submundo? E então será que Eli era um espírito
―perdido‖, capaz de alternar entre mundos?
Eli só podia ser o fantasma que elas estavam caçando. Mas... então
elas agora iriam vir atrás de mim também?
Será que eu também era um espírito perdido?
Balançando minha cabeça com um riso fraco, perguntei:
95
— Pelo menos não foi bom saber que sua vó na verdade não é louca?
O canto da boca de Joshua se ergueu, mas pouco.
— Não muito, Amélia. Não levando em conta a terceira coisa que
tenho para dizer. Pelo visto, as Bruxas de Wilburton querem que eu entre
para o grupo delas.
— Como assim? — disparei.
— A vó Ruth disse que isso está no meu sangue. Que é meu destino,
sei lá. Venho de uma longa linhagem de ―videntes‖, e não tem nada que eu
possa fazer contra isso.
— Videntes?
— Isso. Pessoas que podem ver seres sobrenaturais. Fantasmas
perdidos, em especial. A vó Ruth me disse que provavelmente sempre fui
capaz de perceber essas forças, mas sem entender o que estava sentindo. É
por isso que ela me contou todas aquelas histórias de fantasmas quando eu
era criança... foi tipo um treinamento. Mas o único jeito de começar a ver os
fantasmas de verdade é passar por algum evento que serve como um
―gatilho‖. Alguma coisa que force você a ter uma certa consciência do mundo
espiritual.
— Tipo ver uma menina morta logo depois do seu coração parar de
bater?
— Exatamente como ver uma menina morta logo depois do seu
coração parar de bater. — Ele soltou um suspiro e esfregou a testa. — A vó
Ruth disse até que eu só atraí você porque... sei lá... tenho uma
predisposição genética para exorcizar você. Para ela, ser um vidente
implica fazer alguma coisa com esse ―dom‖, em vez de só aproveitar as
partes boas, como venho fazendo. Em outras palavras, um vidente precisa
usar seu dom da visão contra os fantasmas. E pelo visto, é isso o que eu
deveria fazer com você.
Um silêncio pesado caiu entre nós. Sem nenhum motivo, meus olhos
se fixaram no painel do carro. Após alguns segundos procurando sinais
invisíveis naquele revestimento de couro, acordei. Quando por fim me virei
para Joshua, seus olhos ainda estavam fechados, e seu corpo ainda imóvel.
— Bom — murmurei. — Então isso quer dizer que você não vai mais
querer minha ajuda nas suas aulas de cálculo?
Os olhos de Joshua se abriram e se fixaram nos meus. Aquele azul-
escuro me deixou meio atordoada, ainda mais quando percebi que ele não
iria rir da minha piada idiota.
96
— Essa era a quarta coisa — disse. — Enfim, minha vó foi bem clara
ao dizer que eu não deveria andar com você. — Apesar do tom tranquilo de
sua voz, fiquei inquieta. Eu não queria ouvir o que ele estava prestes a me
dizer, não queria mesmo. No entanto, Joshua me surpreendeu com um
sorriso enquanto continuava. — Mas vou ser sincero com você, Amélia, não
estou nem um pouco a fim de entrar para um grupo de bruxas.
Assimilei suas palavras pouco a pouco e senti um sorriso se abrindo
no meu rosto.
— E eu aqui achando que elas já tinham ganhado você. — Joshua só
deu risada, mas quis insistir no assunto. — Bom, só para deixar tudo claro:
então você não vai se tornar um vidente para me caçar e exorcizar?
— Acho que não tenho como deixar de ser um vidente — disse. —
Parece que isso faz parte de quem eu sou agora. Mas quanto à parte de
exorcizar fantasmas... não, muito obrigado.
Aquela dorzinha no meu peito voltou a arder pela primeira vez depois
de horas. Antes que eu pudesse me empolgar demais, no entanto, precisava
me garantir de mais uma coisa.
— Bom, só para deixar tudo, enfim, ainda mais claro... — insisti. —
Você não vai aceitar essa sua herança como um exorcista por quê...?
Joshua abriu um sorriso seco e gentil como da primeira vez que me
viu na Ponte Alta.
— Porque não posso caçar e ficar com você ao mesmo tempo, né?
— Ficar comigo? — murmurei.
Joshua não disse nada, apenas me estendeu a mão.
Passei um instante só olhando para o seu braço estendido, sem saber
o que fazer. Essa era uma ideia tão assustadora e empolgante — segurar sua
mão, tocá-lo por mais do que alguns breves segundos. Ainda meio trêmula,
arrisquei esticar minha mão e deixá-la cair sobre a sua.
Um fogo pulsante voltou a percorrer minhas veias. Joshua e eu
reagimos como da primeira vez que nos tocamos: ofegando, sorrindo e
tentando nos afastar instintivamente pelo choque. Mas nós dois refreamos
esse impulso e só continuamos apertando a mão um do outro com força.
No começo, ele só segurou minha mão normalmente, de um jeito
quase formal. Depois, bem devagar, ele virou nossas mãos para cima até
ficarem erguidas, com uma palma voltada para a outra. Com um leve
movimento do pulso, Joshua entrelaçou seus dedos nos meus. Então deixei
que eles passassem entre os meus para se fechar contra as costas da minha
mão.
97
Assim que nossas mãos se entrelaçaram, o arrepio que percorria
minha pele se transformou um pouco. Agora, em vez irradiar da minha mão
para o resto do meu corpo, aquela leve ardência me engoliu por
inteiro, menos a mão que estava tocando na dele. Senti essa minha palma
ser coberta por uma série de pontadinhas — como o formigamento de um
membro dormente. Como se minha mão estivesse acordando.
A analogia se encaixou ainda melhor quando as pontadas passaram e
foram substituídas por outra coisa totalmente distinta.
De repente, eu o senti. Não uma pressão mortiça, ou mesmo aquela
deliciosa quentura, mas ele mesmo. Eu senti o calor de sua mão e a textura
de sua pele contra a minha. Eu o senti de verdade, como naquela noite no
rio, quando ele se tornou temporariamente um espírito como eu.
Joshua também deve ter sentido o mesmo, porque seus olhos se
ergueram na mesma hora das nossas mãos para o meu rosto.
— Você sentiu isso?
Ele parecia espantado e confuso. Acenei a cabeça, com meus olhos
fixos nos seus. Quando tentei responder, minha voz saiu hesitante.
— Joshua... como eu já disse, não conseguia sentir nada desde que
morri. Não desse jeito. A primeira vez que senti alguma coisa assim foi
quando você caiu lá no rio. E desde que a gente se viu, comecei a sentir
coisas estranhas, a ter sensações estranhas. Só que elas passavam rápido.
Mas isso... isso aqui parece que não vai acabar nunca.
Ergui nossas mãos entrelaçadas para enfatizar minhas palavras. Ao
fazer isso, senti o peso de seu braço e a pele áspera de sua palma roçando
na minha.
Sem soltar sua mão, Joshua chegou mais perto de mim.
— Então talvez eu esteja mesmo fazendo a escolha certa —
murmurou.
Por impulso, sem pensar em nada, arqueei meu corpo contra ele, me
curvando até nossos rostos ficarem a poucos centímetros um do outro. Essa
nossa proximidade disparou um novo tipo de arrepio pelo meu corpo, um
arrepio que com certeza não tinha uma origem meramente sobrenatural. Na
verdade, aquilo parecia ser a coisa mais natural do mundo: uma simples
atração humana.
Apesar da nossa proximidade, ou talvez por causa dela, a expressão
de Joshua ficou séria, e sua voz, intensa.
— Isso aqui não é nada mau — sussurrou, apontando com a cabeça
para as nossas mãos.
98
— Os arrepios ou só tocar em mim em geral?
— As duas coisas. — Em seguida, com sua mão livre, apontou para
frente e para trás entre o pouco espaço que havia entre nós. — Acho que seja
lá o que estiver rolando aqui significa alguma coisa. Alguma coisa maior do
que só o fato de eu ter morrido do mesmo jeito e no mesmo lugar que você.
Maior do que você ser um fantasma e eu um vidente. Você não acha?
Meu cérebro estava tão disparado que quase não consegui responder.
— Ah... talvez.
Ele sorriu, chegando tão perto que nossos lábios poderiam se tocar
com o menor movimento de qualquer um de nós.
— Talvez o quê? — perguntou.
— Talvez sim? — soltei eu, imaginando a sensação de seus lábios
contra os meus. O quanto aquilo iria arder em mim? Quanto tempo eu
levaria para sentir seus lábios em si por baixo de toda a queimação? Tentei
acalmar meu fôlego e me preparar para aquele momento que eu tanto
desejava.
Mas claro, não teria como me preparar para que aquele momento
fosse interrompido por uma forte batida na janela do carro de Joshua.
99
Treze
Ao ouvir o som da batida na janela, ficamos paralisados, com nossos
lábios a um mero fôlego de distância.
— Quem é? — perguntou Joshua através de seus dentes cerrados.
Sem mexer minha cabeça, tentei olhar para trás dele.
— É uma menina — murmurei.
Joshua soltou sua mão da minha, dando uma leve apertada nos meus
dedos antes de se virar para a nossa invasora. Ele abaixou a janela do
motorista e então deu risada.
— Como posso ajudar, minha irmã? — perguntou para a invasora.
— Para começar, você poderia parar de me fazer passar vergonha —
esbravejou a garota.
Era Jillian, claro. Eu me inclinei à direita para tentar vê-la melhor,
mas só consegui ver suas mãozinhas irritadas firmes em sua cintura fina.
— Ah, perdão, Jillian — respondeu Joshua, fingindo estar
horrorizado. — Sério. Você sabe que a sua popularidade é a coisa mais
importante da minha vida.
— Para de me encher, Josh — rebateu Jillian. — Como se já não
bastasse você ter vindo para a escola feito um mendigo, agora você ainda
quer passar o almoço falando sozinho dentro do carro?
— Eu estava treinando para aula de debate.
Ela bufou com desdém.
— Você nem faz aula de debate. E enfim, você não almoça sozinho
desde... nunca. Então as pessoas estão começando a comentar.
— E por que eu me importaria...?
As mãozinhas de Jillian voaram para o alto e se juntaram como se ela
fosse rezar.
100
— Porque sua irmã mais nova quer ser a rainha da escola na festa de
formatura mais do que tudo na vida, e ela nunca vai conseguir isso se você
não conquistar alguns votos para ela!
Joshua soltou um grunhido e se acomodou no banco. Sem se deixar
abalar, Jillian se abaixou para enfiar a cabeça dentro do carro pela janela
aberta. Ela não perdeu sua carinha nojenta de sempre nem quando forçou
seus lábios para fazer um biquinho pidão.
Para a sorte dela, Joshua acabou cedendo. Ao ver aquele rostinho
triste, ele soltou uma risada genuína. Jillian riu também, e seu rosto todo
mudou. Seus traços fortes se suavizaram, e seus olhos castanhos brilharam.
Ela era linda quando sorria.
— Tudo bem — aceitou Joshua. — Vou me socializar. Mas só porque
seu futuro depende disso.
Jillian bufou mais uma vez, mas percebeu que seria melhor não
continuar brigando. Ela se endireitou, pôs as mãos na cintura de novo e
ficou esperando enquanto Joshua fechava a janela.
Assim que fechou a janela, Joshua se virou de volta para mim.
— Você vem para a aula? — sussurrou.
Hesitei por um instante e então sussurrei de volta:
— Bom, alguém precisa impedir que você bombe em cálculo.
Joshua abriu sua porta e desceu do carro, empurrou Jillian para
passar e veio até o meu lado. Com uma rápida olhada para sua irmã, talvez
para ver se ela estava prestando atenção, Joshua abriu minha porta e se
abaixou para pegar sua mochila aos meus pés. Eu então levantei e me
espremi para sair pelo estreito espaço entre seu corpo e a porta, tomando
cuidado para não encostar nele.
Pelo visto, ele não sentiu a necessidade de ser tão cuidadoso comigo
quanto eu estava sendo com ele. Enquanto eu passava, Joshua roçou seus
dedos de leve pela minha panturrilha. Uma onda instantânea de calor se
espalhou pela parte de trás da minha perna.
— Ei! — gritei. Ouvi Joshua dar uma risadinha enquanto fechava a
porta atrás de mim. Comecei a olhar feio para ele, ou pelo menos tentei,
quando Jilliannos interrompeu de novo.
— Joshua, que barulho foi esse?
Joshua ficou paralisado, com uma das mãos ainda na maçaneta da
porta. Com todo cuidado, eu me virei devagar para trás até conseguir ver o
rosto de Jillian por cima do carro. Ela parecia séria agora, com uma
expressão confusa repuxando os cantos de sua boca.
101
— Você está falando da minha risada? — perguntou Joshua.
— Não, foi alguma coisa mais aguda. Tipo uma voz de menina.
Joshua e eu nos espantamos, mas ele se recuperou mais rápido.
— Será que não foi só alguém chamando você lá do gramado? —
sugeriu.
Ela balançou a cabeça, com uma ruga insistente se formando entre
suas sobrancelhas.
— Não, Joshua, foi bem aqui. Do lado do carro.
— Tá, tudo bem — Joshua ergueu suas mãos e deu uma risada
nervosa e defensiva. — Mas olha, você sabe que meninas que ouvem vozes
nunca são eleitas para rainha da escola, né?
A expressão de Jillian se suavizou. Pelo visto, a ideia de parecer louca
era mais assustadora para ela do que uma voz misteriosa. Ela balançou a
cabeça de novo, talvez para afastar seja lá o que ela tinha imaginado ouvir, e
abriu um sorriso.
— Sei lá... talvez ser psicótica esteja na moda daqui dois anos.
— Vamos torcer então, para o seu bem.
Jillian revirou os olhos e apontou com o dedão para a escola.
— Vá lá se socializar, Josh. Agora.
Ele a respondeu com um aceno de desdém, mas Jillian parecia já
estar calma o bastante para voltar até o gramado em frente à escola. Assim
que ela se afastou o bastante, me virei para Joshua.
— Uma voz de menina? — sussurrei. — Será que ela me ouviu?
As sobrancelhas de Joshua se juntaram com um ar pensativo. Depois
de ver sua irmã se afastar um pouco mais, ele virou os olhos para mim e
disse, “ela também?”, só com os lábios.
— Talvez — disse eu, também seguindo a figura de Jillian enquanto
ela caminhava de volta até um grupo de meninas no gramado. Antes de se
misturar às outras, Jillian deu uma última olhada por cima do ombro para o
irmão. Ela parecia brava, mas também intrigada — como se não soubesse
direito o que tinha acabado de ouvir.
— Talvez sim, talvez não — sussurrou Joshua, e então pendurou sua
mochila no ombro. — Vamos para a aula?
Acenei a cabeça e então o segui de perto pelo estacionamento,
mordiscando meu lábio inferior. Eu não conseguia esquecer aquela cara
confusa e intrigada de Jillian. Quais seriam as implicações se ela também
pudesse perceber minha presença? Eu adorava isso em Joshua, mas não
precisava de uma nova Ruth para me atrapalhar — não agora.
102
Estava tão perdida entre os meus pensamentos que quase não percebi
algo passando bem do meu lado. Só tive o tempo de gritar, “Joshua!”, antes
de uma coisa grande e barulhenta o acertar pelas costas.
Levei um segundo para perceber que essa figura desembestada era o
garoto ruivo e gordinho da aula de cálculo de Joshua, o que disse que ele
deveria ter matado a última aula ontem também. Agora pude ver que ele na
verdade não tinha trombado com Joshua, apenas posto um de seus braços
grossos em volta do pescoço de Joshua enquanto o puxava com um mata-
leão de brincadeira.
— Fala aí, cara! Sempre soube que você era um gênio, mas poxa! Sua
jogada na aula da Wolters ontem foi épica!
Joshua tentou rir, mas seu riso saiu parecendo mais um engasgo.
Com o rosto já meio rosado, Joshua começou a dar tapinhas no braço do
outro garoto.
— O’Reilly, meu velho, vamos soltar esse braço.
— Ah... — com uma velocidade surpreendente, esse garoto, O’Reilly,
soltou Joshua e lhe deu alguns tapinhas meio sem jeito nas costas. — Mal
aí, cara.
— Relaxe — bufou Joshua com a voz rouca.
— Mas e aí... — disse O’Reilly enquanto pegava a mochila que ele
tinha derrubado do ombro de Joshua. — Você ainda vai ficar preso lá na
biblioteca na sétima aula?
— Sim, o médico disse que eu só vou poder voltar a treinar lá pelo
Natal. Pelo problema que me deu no coração, sabe?
— Claro... porque você, tipo, morreu, né?
As palavras de O’Reilly poderiam até ter sido ofensivas se não fossem
tão ingênuas. Quando ele entregou a mochila de volta para Joshua, seus
olhos castanhos estavam arregalados, cheios só de uma grande preocupação
com seu amigo. Gostei dele na mesma hora.
— Pois é. Porque eu morri. — Joshua riu e me deu uma olhadinha de
lado antes de continuar. — Mas relaxe... já vou ter melhorado até a
temporada de beisebol.
— É bom mesmo, cara. Preciso do meu campista central em forma. Se
você der para trás, eu mesmo vou jogar você de volta naquele rio, hein?
— Ah, claro, com um jogador morto e outro preso por homicídio, aí
sim a gente vai ganhar o campeonato regional! — disse alguém.
103
Essa voz suave e estranha me surpreendeu, olhei para trás do corpo
imenso de O’Reilly à procura de sua origem. Parado logo ali, estava o outro
menino que eu tinha visto ontem na aula da senhora Wolters.
Esse segundo garoto tinha mais ou menos a mesma altura e
constituição de Joshua, mas tinha cabelos loiros bagunçados e olhos
castanho-escuros. Quando O’Reilly se inclinou para um soquinho em seu
ombro, ele apenas sorriu e curvou o corpo à frente para se defender. Esse
gesto o deu um ar tímido, e me afeiçoei por ele na mesma hora também.
Joshua se virou para o garoto, erguendo uma das mãos para
cumprimentá-lo.
— E aí, Scott, meu velho, como é que vai?
Scott abriu um sorriso ainda maior.
— Tudo tranquilo, Mayhew. Como você está hoje?
— Ótimo. Melhor do que nunca. — Não tenho certeza, mas acho que vi
a mão livre de Joshua apontar um pouco para mim.
— Legal, cara — disse Scott, acenando a cabeça.
Como se a declaração de Joshua sobre sua saúde fosse algum tipo de
código secreto, os três saíram andando juntos pelo gramado sem dizer mais
nada. Então os segui, meio intrigada com a conversa.
Nós já estávamos quase na porta da classe da senhora Wolters
quando risadinhas irromperam atrás de nós. Na mesma hora, O’Reilly e
Scott pararam de andar e se viraram. Joshua, no entanto, soltou um suspiro
pesaroso antes de fazer o mesmo.
Eu me virei também e vi um grupo de meninas adolescentes
amontoadas, todas usando suas blusinhas com a barriga de fora e saias
de cheerleader. No meio delas, estava Jillian, cercada pelo que parecia ser
seu grupo de amigas. Mas ao contrário das outras, ela parecia estar
emburrada. De repente, fiquei com a impressão de que ela tinha vindo ali
forçada pelas outras.
— Oi, meninas — disse O’Reilly para elas, erguendo as sobrancelhas
para fazer charme. Infelizmente, elas o ignoraram por completo e só deram
atenção a uma única coisa: o belo garoto de cabelos escuros ao meu lado.
— Não vai faltar hoje, Josh? — disse uma das meninas atrás das
outras. Ao mesmo tempo, todas elas começaram a remexer seus cílios e jogar
seus cabelos de um lado para o outro.
Joshua inclinou a cabeça de lado e sorriu.
— Hoje não. Decidi agraciar todo mundo aqui com a minha presença.
104
Jillian bufou e, como sempre, revirou os olhos. Mas a maioria das
suas amigas claramente não compartilhava de seu desdém; todas deram
risadinhas como se Joshua tivesse feito a piada mais hilária do mundo.
Algumas até ficaram com seus trejeitos mais agitados, como passarinhos
exibidos em algum bizarro ritual de acasalamento.
Alheia à irritação no rosto de Jillian, e no meu também, uma menina
se desgarrou do bando. Assim que se afastou das outras, ela ergueu os
ombros, que ainda ficaram vários centímetros abaixo dos meus, e abriu um
sorriso reluzente para Joshua.
— Josh... — ronronou ela com uma voz rouca e mais forte do que eu
esperava. Como suas amigas, ela não parava de jogar uma mecha loira de
cabelo de um lado para o outro. Mas nela, esse gesto parecia bem menos
infantil, e seus olhos azuis-claros tinham um brilho de malícia. — Pode me
falar... aJillian está pegando no seu pé de novo?
— Bom, ela está tentando.
Para o meu imenso alívio, Joshua disse isso olhando para Jillian, e
não para a sua amiga bonitinha. A garota, no entanto, não se abalou. Ela
veio para frente, abandonando as outras sem nem olhar para trás.
— Se precisar de alguém para proteger você dessa chata, é só me
avisar. — Suas palavras saíram encharcadas de segundas intenções e
enfatizadas pelo jeito sugestivo como ela estava se inclinando na direção de
Joshua.
Quando ele se esquivou para escapar dela, senti uma estranha
mistura de emoções. Primeiro, quis pular nos braços de Joshua e enchê-lo
de beijos em agradecimento — uma recompensa pelo seu aparente
desinteresse por ela. Depois, fiquei querendo ser concreta o bastante para
me jogar em cima dessa fulaninha e arrancar seus belos cabelinhos.
Balancei a cabeça, chocada comigo mesma. Que tipo de pessoa eu era
para pensar uma coisa tão horrível assim? Esse impulso me deixou inquieta
e me relembrou dos meus medos sobre minha verdadeira natureza. A
natureza que Eli insistia tanto em dizer que me condenaria.
Por sorte, Joshua balançou sua cabeça também em resposta à oferta
da garota.
— Obrigado, Kaylen — disse ele. — Mas já tenho meus próprios
guarda-costas.
Ele apontou para O’Reilly e então para Scott. Os garotos, no entanto,
não pareciam estar lá muito interessados no cargo. Pelo visto, eles
adorariam deixar que aquela menina os protegesse seja lá como fosse.
105
Kaylen apenas encolheu os ombros.
— Você que sabe — disse ela com um sorriso, sem se afastar nenhum
centímetro de Joshua. Jillian soltou um suspiro e revirou os olhos de novo,
mal tentando esconder sua irritação.
— Vamos embora, Kaylen.
Por fim, depois de mais alguns suspiros e olhares maliciosos, elas
saíram andando. Kaylen, é claro, pareceu ser a mais relutante de todas. Ela
continuou olhando para trás na direção dos garotos, assim como Jillian, por
mais que eu pudesse jurar que seus olhos na verdade estavam voltados para
o lugar onde eu estava. Mesmo me sentindo meio boba por fazer isso, me
escondi atrás de O’Reilly até Jillian sumir de vista.
Assim que as meninas foram embora, O’Reilly e Scott soltaram fôlegos
pesados que pelo visto estavam segurando durante toda a ceninha de
Kaylen.
— Cara, a KaylenPatton é uma gata — disse O’Reilly com um tom
quase de adoração.
Hesitante, me virei para ver se Joshua também iria proclamar sua
própria reverência a ela. Sem tirar os olhos dos meus, Joshua encolheu os
ombros.
— Já vi coisa melhor por aí, caras. Muito melhor.
Feito uma idiota, soltei uma risadinha e agarrei a borda do meu
vestido para conter o impulso de erguer a mão e jogar meu cabelo de lado
também.
Eu me sentei na borda da carteira de Joshua, tentando não distraí-lo
de uma aula especialmente chata sobre números inteiros. Pouco depois, a
senhora Wolters deu um tempo para todos estudarem.
Quase na mesma hora que a sala ficou em silêncio, Joshua me passou
um bilhete por cima da mesa. Em um pedaço de uma folha de caderno, ele
tinha escrito com letras grandes e bonitas: Tenho um plano genial. Quer
saber qual é?
Dei risada, mas por impulso tapei minha boca para abafar o som. Sem
nem olhar para mim, Joshua abriu um sorriso e escreveu na margem do
papel: Você sabe que ninguém consegue te ouvir, né?
— Não tenha tanta certeza — sussurrei, me lembrando da expressão
de Jillian na hora do almoço. Mas depois balancei a cabeça para dispersar
meu próprio ridículo e, com uma voz mais alta, disse: — Tá, tudo bem. Qual
é o seu plano genial?
106
Joshua arrancou outra página de seu caderno e começou a escrever
sem parar. Assim que terminou, ele empurrou o papel para mim e então
fingiu voltar sua atenção para o livro de cálculo, mas continuou concentrado
em mim pelo canto do olho enquanto eu lia.
Tudo bem, — dizia seu bilhete — meu plano tem a ver com uma teoria
que bolei ontem à noite. A gente sabe que você morreu no rio, e você ainda
está por aqui. Então talvez você seja desta área. Você disse que se lembrava
destes prédios, não foi? Talvez você até já tenha sido matriculada aqui, antes
ou depois de estudar em casa. Então pensei o seguinte: minha sala de
estudos fica na biblioteca, onde estão os anuários antigos. A gente pode dar
uma olhada em um por um, começando pelos mais novos, e ver se consegue
encontrar sua foto.
Ao ler essas últimas palavras, tive uma sensação muito estranha,
como se estivesse perdendo o chão.
— Mas você não tem que, sei lá, estudar na sala de estudos?
Joshua olhou diretamente para mim por um instante e então voltou a
escrever.
Você acha má ideia?
Parei para pensar um pouco. O que tinha me assustado tanto naquela
sugestão? Afinal, isso poderia revelar algum fragmento de informação sobre
minha vida. Poderia me trazer respostas para tantas das perguntas que
vinham me atormentando nesses últimos dias. Quem eu havia sido? Quem
eu poderia me tornar? Alguma coisa que talvez pudesse combater o que Eli e
Ruth tinham visto em mim.
Mas esse era o problema também. Porque assim que eu soubesse de
tudo isso, assim que eu juntasse as peças faltantes do quebra-cabeça da
minha identidade, eu me tornaria real. Eu passaria a ser uma pessoa real,
com uma história real. Uma história que tinha chegado ao fim.
Talvez fosse justamente por isso que eu nunca tinha tentado
encontrar minha lápide naquele cemitério. Porque com essas informações,
eu finalmente saberia, em vez de apenas intuir, com toda a certeza que eu
estava morta.
E Joshua perceberia isso também. Essa era uma situação para a qual
eu não sabia muito bem se nenhum de nós estava realmente preparado.
— Joshua — arrisquei com a voz baixa. — Você acredita... ou melhor,
você sabe que estou morta, né? Que não estou viva? E que nunca vou voltar
à vida?
107
Enquanto olhava para mim, todo aquele bom humor e o ar tranquilo e
confiante de seu rosto se esvaíram. Sua expressão se atenuou, com um jeito
ao mesmo tempo triste e carinhoso. Ele acenou a cabeça para mim bem
devagar.
Continuei olhando para ele. Eu não tinha a menor ideia do que fazer
agora. Com meus dentes cravados na pele macia do meu lábio, repuxei
minha boca de lado, frustrada. Por sua vez, Joshua me abriu um leve sorriso
de lábios fechados.
Eu não estava imaginando a esperança que vi naquele sorriso, no qual
quase pude ler seus pensamentos: sim, ele sabia que eu estava morta, mas
ainda esperava que isso pudesse não ser um problema. Ou talvez ele
achasse que poderia encontrar alguma solução para mim. Para nós.
Aquela dor incapacitante ardeu no meu peito de novo. Ela me disse,
da forma mais silenciosa possível, o que eu deveria fazer agora. O que eu
sabia que sempre deveria fazer toda vez que Joshua me sugerisse alguma
coisa assustadora ou inesperada.
Soltei um suspiro pesado.
— Tudo bem. Vamos para a biblioteca. Vamos tentar encontrar minha
foto.
Agora foi a vez de Joshua franzir a testa. “Certeza?”, disse só com os
lábios.
Comecei a responder, “Não, não sei se quero saber quem sou”. Mas
então preferi não ser totalmente sincera, e revelei apenas uma parte do que
estava se passando pela minha cabeça.
— Enquanto você estiver comigo, não tenho o que temer.
108
Catorze
Depois que a aula da senhora Wolters acabou e os outros alunos
foram para suas próximas matérias, Joshua e eu atravessamos o gramado
vazio atrás da escola.
Durante o caminho, Joshua não parou de resvalar sua mão na minha,
disparando arrepios que subiam e desciam pelo meu braço. Apesar do meu
entusiasmo pelo contato, fui andando sem pressa de propósito até o prédio
principal da escola, sabendo que atrás daquela porta, ficava a biblioteca.
— Olha... — disse Joshua, interrompendo meus pensamentos. — A
gente não precisa fazer isso se você não quiser.
Ele não alterou sua expressão, com um ar calmo. Mas eu sabia que
não era bem assim.
Eu só conhecia Joshua há três dias, mas já o entendia bem o bastante
para conseguir perceber o tom de hesitação em sua voz. Eu podia ver todos
os seus pensamentos dançando em seus olhos: ao contrário de mim,
ele queria ir até a biblioteca. Ele queria aquela empolgação de descobrir
alguma coisa nova sobre mim, de remontar meu passado junto comigo.
E ele tinha razão em querer isso, eu sabia muito bem.
Na noite passada, depois de falar com Eli, percebi que a minha
verdadeira ―natureza‖ — o tipo de pessoa que fui, tanto antes quanto depois
de morrer — tinha um papel crucial na definição de como eu iria passar meu
pós-vida. Então eu precisava descobrir tudo o que fosse possível sobre mim
mesma antes de trombar com Eli ou Ruth de novo. Na verdade, para ser bem
sincera, eu sabia bem o quanto essa nossa missão era essencial.
Mas também não é só por isso que eu iria me empolgar tanto quanto
Joshua, claro. Enquanto ele andava ao meu lado, eu o vi todo inquieto,
animado com a nossa missão. O brilho em seus olhos e a alegria com que ele
balançava os braços contrastavam com a minha própria aparência, que
devia estar emanando um ar mais funesto.
109
Apesar do meu incômodo, foi difícil não me sentir um pouco
lisonjeada pelo comportamento de Joshua. Reprimi um suspiro antes de
estampar um sorriso alegre no meu rosto.
— Não, Joshua, estou pronta. Vamos lá.
Acho que ele estava empolgado demais para perceber a tensão na
minha voz, porque pareceu ficar totalmente satisfeito com a minha péssima
mentira. Com o rosto inteiro iluminado, ele parou de andar e então chegou
mais perto de mim.
— Sério? Porque eu tive outra ideia. Se o lance dos anuários der certo,
sabe?
— Ah, é? Que ideia?
— Bom, digamos que a gente ache a sua foto. Nesse caso, também
vamos descobrir o seu sobrenome. Aí a gente só precisa procurar na lista
telefônica para encontrar sua família. Não é como se Wilburton fosse uma
cidade muito grande. Se não for nada muito comum, as chances de alguém
com o mesmo sobrenome ser seu parente são bem altas, certo?
Quando ele terminou sua fala empolgada, engoli seco. Essa ideia dava
outra dimensão aos nossos planos para aquela tarde — um novo nível de
nervosismo e medo.
— Vamos... hã... vamos dar um passo de cada vez, tá? — soltei uma
risada trêmula.
— Claro. Claro, você tem razão. Um passo de cada vez.
Ele não conseguiu me enganar de novo. Apesar de parecer estar
falando sério, ele franziu a testa enquanto acenava a cabeça, com seus olhos
ainda brilhando, contente com sua nova ideia. Nem tentei esconder meu
suspiro dessa vez enquanto ele se apressava em direção à porta.
Entramos na escola e cruzamos os corredores — que me pareciam
bem familiares, como já havia acontecido com os prédios por fora antes —
antes de chegarmos a uma porta dupla. Pelas suas janelas de vidro, avistei
fileiras e mais fileiras de estantes cheias de livros. Agarrei a borda da minha
saia e comecei a revirar o tecido loucamente.
Com uma das mãos encostada na porta, Joshua olhou para mim.
Mesmo parecendo estar um pouco menos empolgado agora, sua expressão
continuava determinada. Querendo ou não, ele iria entrar naquela sala.
— Pronta? — perguntou.
Não.
— Claro — gemi em voz alta.
110
Ele acenou a cabeça e empurrou uma das portas. Tentei limpar a
garganta com vergonha do meu gemido idiota e me recompus um pouco, e
então o segui biblioteca adentro.
A recepção tinha uma mesa comprida na entrada, toda coberta de
livros devolvidos e vários cartazes motivacionais colados em volta. Um deles
dizia VOCÊ CONSEGUE!,o que me deixou com um olhar de raiva na cara.
Joshua andou determinado até os fundos da biblioteca, e eu o segui
logo atrás enquanto ele trançava em meio às fileiras de estantes. Por fim,
Joshua parou entre a última estante e a parede de trás da biblioteca.
Nós estávamos na seção de referência a julgar pela grande quantidade
de volumes esquecidos de dicionários e enciclopédias ali. Sem dar atenção a
isso, Joshua se concentrou em algumas prateleiras mais baixas. Ele se
agachou e então começou a passar seu indicador por uma longa fileira de
livros finos, todos com capas pretas ou roxas. Estremeci.
Eram anuários.
Pouco depois, Joshua pareceu encontrar os livros que estávamos
procurando. Começou a puxar vários deles, lendo suas lombadas antes de
colocá-los de volta no lugar ou guardá-los na dobra do outro braço. Quando
por fim se levantou, ele estava com uns dez anuários do Colégio Wilburton.
Eu me inclinei de lado para ler suas lombadas. Impressas ali com tons
diferentes de tinta metalizada, estavam várias datas, indo dos anos 1990 até
o meio dos anos 2000. Eu me endireitei de volta e olhei para Joshua,
aterrorizada.
Joshua, no entanto, parecia estar muito sério enquanto carregava a
pilha de anuários até uma mesa. Ele separou os livros em duas pilhas,
puxou uma cadeira para mim e então se sentou em outra. Eu me acomodei
na minha e juntei as mãos em cima do colo, sem saber direito o que fazer.
Ele empurrou uma das pilhas para perto de mim e depois puxou a
outra. Ele abriu o primeiro anuário da sua pilha e folheou as páginas até
chegar à primeira delas com as fotos dos alunos. Pondo o dedo na página,
ele começou a analisar os pequenos retratos, comparando cada rosto com o
nome correspondente impresso perto das margens.
Depois de alguns minutos assim, dei uma tossida. Ele olhou para
mim, ainda franzindo a testa, todo concentrado. E então enrugou ainda mais
o cenho e inclinou a cabeça de lado.
— Por que você não está procurando nos seus livros? — sussurrou.
Respondi com minha voz normal, por mais que minhas palavras estivessem
saindo encharcadas de vergonha.
111
— Porque eu não consigo abrir os livros, Joshua.
— Hã?
Olhei para baixo e comecei a cutucar meu vestido com uma unha.
— Já te falei... você é a única coisa no mundo dos vivos que consigo
sentir ou tocar. Não consigo nem abrir portas, lembra? Então como é que eu
vou folhear um livro?
Encolhi os ombros, tímida, mas Joshua pôs um dedo embaixo do meu
queixo e ergueu minha cabeça, segurando-a para me olhar nos olhos.
Quando o vi, ele ainda estava franzindo a testa.
— Ah — Joshua agora parecia envergonhado também. — Acho que só
não pensei direito. Desculpe.
Encolhi os ombros de novo, desta vez abrindo um leve sorriso.
— Não tem problema.
Ele balançou a cabeça, sem se deixar enganar, mas voltou ao anuário
sem dizer mais nada. Ele empurrou o livro para mais perto de mim sobre a
mesa e se inclinou enquanto virava as páginas, claramente querendo que eu
procurasse junto com ele. Dei uma risadinha. Pelo visto, nem as minhas
deficiências causadas pela morte me livrariam de investigar aqueles anuários
com ele.
Ficamos sentados lá, vendo página após página de livro após livro,
mas sempre em vão. Nós fomos pegando os livros aleatoriamente, indo e
voltando entre os anos 2000 e 1990. Nem me dei o trabalho de comentar o
quanto esse processo era pouco eficiente com Joshua, porque cada virada de
página fazia meu estômago se revirar de nervosismo.
Em um dado momento, Joshua olhou para o relógio com um ar
impaciente. Já eram quase 2h40, faltando só quinze minutos para o fim das
aulas. Enquanto ele fazia isso, pude ver uma emoção tomar seu rosto por
inteiro: frustração com o aparente fracasso de seu plano genial. Ele pegou
um dos últimos livros da pilha, já com menos cuidado do que os outros, e o
jogou em cima da mesa, aberto na primeira página.
Foi então que aconteceu.
Essa primeira página era igual a de todos os outros anuários. Ela
tinha um desenho de um homem com uma cartola (o mascote da escola, ao
que parecia) e os anos 1998 e 1999. Nada fora do comum.
A segunda página, no entanto, era bem diferente. Essa página tinha
uma foto colorida grande de uma menina. Embaixo dessa foto, havia uma
legenda, onde estava escrito:
112
Em carinhosa memória a Amélia Elizabeth Ashley
30/04/1981 — 30/04/1999
Parei de respirar. E depois comecei a engasgar.
Eu me levantei com um pulo. A cadeira onde eu estava sentada voou
para trás com um rangido alto antes de se estatelar contra a parede da
biblioteca.
Minha cabeça se virou na direção desse som. Fiquei olhando para a
cadeira, boquiaberta. Ela me parecia bem comum — com um assento de
plástico vermelho sobre pernas finas de metal. Era só uma cadeira velha
qualquer. Mas aquela também era a primeira coisa do mundo dos vivos,
depois de Joshua, em que eu tinha conseguido tocar desde a minha morte.
Só de pensar na minha morte, já desviei meus olhos de volta para a
foto no anuário. Para a menina naquela página, e seu nome logo abaixo.
A cadeira teria que esperar.
Aquela imagem me deixou apavorada. O que eu mais queria no
mundo era conseguir desviar meus olhos dela. Mas estava hipnotizada.
Vi aquela menina na foto me encarando com um sorriso minúsculo
nos lábios. Um sorriso que se curvava só um pouco nos cantos; uma
expressão contente, mas hesitante, como se ela tivesse ouvido alguma coisa
engraçada, mas não soubesse bem se podia rir. Seus olhos — de um tom
verde-floresta brilhante que combinava com seu vestido — reluziam de
alegria. Seus cabelos castanhos e ondulados desciam até abaixo dos ombros,
emoldurando seu rosto fino e oval marcado por um leve rubor que não
conseguia esconder as sardinhas que se espalhavam pelas suas bochechas e
na ponta do nariz.
Ela parecia ser tímida e meiga, mas também intensa. E cheia de vida.
Uma gota caiu do meu queixo em cima da página, formando uma
manchinha escura redonda no pescoço da menina. Limpei a bochecha com a
mão, percebendo por reflexo que aquilo tinha sido uma lágrima — uma
lágrima minha.
— Sou eu nessa foto, não é?
Não consegui olhar para Joshua, nem tirar meus olhos da foto
enquanto falava. Só sussurrei, como se algum som muito alto pudesse
desfazer aquele feitiço que havia caído sobre nós. O silêncio foi tudo o que eu
tive como resposta. Até que então...
— Eu disse que você era linda.
113
Eu me virei para aquela voz tão gentil. Na verdade, só minha cabeça
se mexeu, porque meu corpo parecia estar ancorado junto à mesa. Só então
percebi que estava segurando na borda da mesa com as duas mãos, com
meus dedos brancos de tanta pressão contra a madeira. Sob minhas digitais,
pude sentir a superfície lisa da madeira rompendo a barreira da minha
dormência. Essa sensação física repentina não me surpreendeu nem um
pouco; na verdade, estava até chocada por não ter despedaçado aquela mesa
com a minha força.
Mas eu não era a única em choque por ali. Joshua estava me
encarando; alegria, descrença e mais um punhado de outras emoções
passaram pelo seu rosto. Mas por mais drásticas que fossem as suas
mudanças de expressão, todas me diziam a mesma coisa.
Ele sabia. Acima de qualquer dúvida, de qualquer desejo, de qualquer
esperança. Ele sabia que eu era Amélia Elizabeth Ashley. E que estava
morta.
Eu não disse nada. Não consegui.
Joshua se levantou lentamente da cadeira. Ergueu suas mãos em
frente ao corpo em um gesto de rendição. Isso me lembrou do jeito como ele
tinha se aproximado de mim três dias atrás, na Estrada Ponte Alta. Como se
ele esperasse que eu fosse sair correndo a qualquer segundo.
Ainda se movendo com todo cuidado, Joshua pôs suas mãos de cada
lado do meu rosto, mas sem tocar em mim. Olhou bem nos meus olhos e
ergueu suas sobrancelhas, me alertando sobre o seu próximo movimento, ou
talvez pedindo minha permissão para isso.
Mesmo sem eu dizer nada, ele deve ter entendido algum
consentimento da minha parte. Ele pôs as mãos nas minhas bochechas,
pegando meu rosto com carinho. Fiquei completamente parada, mesmo
quando comecei a sentir como se suas mãos fossem deixar marcas de
queimadura na minha pele. Joshua chegou mais perto e, bem de levezinho,
encostou seus lábios na minha testa, logo acima das minhas sobrancelhas.
Seu beijo disparou uma descarga elétrica pelo meu corpo inteiro. Foi a
coisa mais intensa que eu já havia sentido até então — uma violenta onda de
choque que percorreu minha espinha e todos os meus membros. Fiquei
boquiaberta com a força de tudo aquilo e puxei um fôlego que quase pareceu
um grito.
Reagindo a esse som, Joshua tentou afastar seu rosto para ver se eu
estava bem, mas agarrei suas mãos com as minhas, segurando-as sobre
114
minhas bochechas. Fechei os olhos e tentei acalmar meu fôlego errático.
Balancei a cabeça, balbuciando, “não”, pedindo para ele não se mexer.
Ele me atendeu e ficou junto a mim, segurando um lado do meu rosto
com sua mão esquerda enquanto acariciava minha bochecha com os dedos
da direita. Por fim, minha respiração começou a desacelerar, saindo um
pouco menos frenética do que antes. Após alguns segundos, soltei suas
mãos e acenei a cabeça para deixar claro que já estava melhor. Bom, longe
de estar bem. Mas melhor.
Joshua passou seus dedos pela minha bochecha uma última vez e
então abaixou suas mãos. Senti seu corpo se afastando do meu, mesmo sem
abrir os olhos. Pude ouvi-lo mexendo em alguma coisa um pouco atrás de
mim. Bem devagar, abri um olho, depois o outro. Virei minha cabeça para
espiar minha foto, que continuava a me encarar com toda inocência em cima
da mesa.
Eu ainda estava olhando para a foto quando Joshua chegou por trás
de mim e pôs uma coisa na mesa ao lado da minha foto. Era uma lista
telefônica.
— Para achar os Ashleys? — minha voz saiu rouca e fraca, como se eu
estivesse há horas sem usá-la, em vez de apenas alguns poucos instantes.
— Só se você quiser — sussurrou Joshua.
— Pode abrir — disse eu, sem tirar os olhos da mesa.
Joshua passou por mim e se apoiou em cima da mesa. Ele foi virando
as páginas fininhas da lista até chegar àquela que queria. Ele desceu com o
dedo pela lista de nomes com A e então parou, deixando seu indicador no
meio da página. Eu me inclinei por cima de seu ombro para ver o que ele
estava me mostrando. Sobre seu dedo, uma linha chamou minha atenção.
Junto a um número de telefone e um endereço, havia um nome. Um
nome muito familiar.
Ashley, E.
Fiquei olhando para aquela linha por uma eternidade. Fiquei olhando
para ela até o sinal tocar, marcando o fim das aulas. Fiquei olhando para ela
enquanto os outros alunos pegavam suas coisas e deixavam Joshua e eu
sozinhos no fundo da biblioteca.
Por fim, consegui me mexer.
— E. Ashley... essa deve ser a minha mãe, Elizabeth. Não sei por que
a inicial do meu pai não está aí também. O nome dele é Todd. Todd Ashley.
Minha voz saiu seca, sem emoção alguma. Ainda assim, comecei a
tremer um pouco.
115
A imagem daquele nome impresso sem seu devido par dançou pela
minha cabeça. E então, em meio a esses nomes, começaram a surgir
lampejos de outras imagens mais borradas. Os rostos daqueles nomes. Os
rostos da minha família.
Rostos esquecidos. Perdidos há tanto tempo. Ainda assim, como meus
lampejos de memória, aqui estavam — ganhando formas e cores de novo na
minha mente.
Pus os braços em volta do meu corpo, me abraçando com força.
Joshua chegou mais perto, quase tocando em mim, mas sem encostar.
Ficamos assim por algum tempo — podem ter sido tanto dez minutos,
quanto dez horas — até eu, de repente, começar a me sentir... mais leve.
E com essa leveza, veio uma estranhíssima, quase inexplicável, onda
de alívio.
Não sei como isso foi possível, mas Joshua pareceu sentir essa
mudança em mim. Dessa vez, foi ele quem quebrou o silêncio.
— Então, Amélia Elizabeth Ashley — disse baixinho. Com cuidado. —
Você quer rever sua família... hoje?
Minha resposta sussurrada me chocou, especialmente por ser a
verdade.
— Sim. Quero sim.
116
Quize
Joshua disse que a gente levaria pelo menos vinte minutos para ir da
escola até o primeiro endereço que ele tinha anotado em uma folha de seu
caderno. Pegou um celular minúsculo. (Eu já devia ter visto celulares antes
quando era viva, tenho certeza, mas nenhum que coubesse na palma da mão
de alguém assim.) Com esse aparelhinho quase invisível, ligou para a mãe
dele e avisou que chegaria tarde em casa. Resolvido isso, Joshua ligou o
carro e seguiu viagem em silêncio, olhando com um ar preocupado para mim
de vez em quando. Tenho certeza de que ele percebeu que eu estava perdida
demais nos meus próprios pensamentos para dizer qualquer coisa.
Mas na verdade, o que eu tinha na cabeça não eram bem
pensamentos, mas sim lembranças de imagens e sons, meros
acompanhamentos para as nebulosas memórias há tanto tempo enterradas
da minha família. Memórias de pessoas que tinham desaparecido por
completo da minha mente até uma hora atrás. Pessoas que eu veria, pela
primeira vez após mais de uma década, dentro de alguns minutos.
Primeiro, para a minha angústia, vi o rosto do meu pai. Uma névoa
estranha nublava grande parte da memória, obscurecendo o cenário e as
outras pessoas à sua volta. Mas no centro dessa cena, nitidamente, sem
dúvida alguma, estava meu pai. Pude ver seus olhos verdes enrugados nos
cantos enquanto ele passava uma das mãos pelos seus cabelos loiros já
rareando na cabeça. Em seguida, a imagem passou a ser de uma mulher.
Minha mãe. Ela estava sentada em uma poltrona velha, a que ficava na
nossa sala de estar talvez, olhando para o meu pai. Não, não era bem para o
meu pai, e sim para o pequeno copo com um líquido cor de âmbar em sua
mão. O papai gostava de beber no Natal, coisa que minha mãe não aprovava.
Pouco depois, essas imagens se borraram junto à paisagem que
passava voando pelas janelas do carro. Isso começou a me deixar tonta,
enjoada. Foi uma sensação estranha, levando em conta que fantasmas não
117
conseguem passar mal. Eu me inclinei um pouco para frente, apoiando os
cotovelos nos joelhos e esfregando as têmporas com as pontas dos dedos.
— Amélia? Tudo bem?
Sem tirar as mãos da cabeça, olhei para Joshua entre meus dedos.
Enquanto tentava se focar na estrada, ele também não parava de olhar de
lado para mim com uma cara preocupada, tomando cuidado para não cair
com o carro em algum barranco.
Soltei um suspiro e me encostei de volta no meu banco.
— Não, não estou bem, não — respondi com um sorriso fraco. — Só
não paro de... lembrar das coisas. De pessoas, na verdade. Da minha
família. Então estou apavorada, é claro.
— Pois é, também estou um pouco.
Franzi a testa. Joshua tinha me parecido muito confiante até então —
confiante de que tentar descobrir meu nome e encontrar minha família tinha
sido a escolha certa. Mas agora, sua confiança parecia abalada.
— Por que você estaria com medo, Joshua?
— Bom, acho que estou mais nervoso na verdade — disse. — Por você.
Acenei a cabeça, rindo baixinho.
— Você ficaria bravo se eu dissesse que fico feliz por ouvir isso?
Joshua deu risada também.
— Nem um pouco. A gente meio que está nisso tudo juntos, não é?
— Acho que sim — disse eu, abrindo um leve sorriso.
— Mas então... — continuou Joshua. — Você quer conversar? Sei lá,
só para a gente se distrair. Pode até ser sobre coisas sérias, se você quiser.
Pensei sobre sua sugestão. Na verdade, seria bom mesmo me distrair
um pouco das minhas memórias. Nem que fosse falando sobre essas
próprias lembranças. Pelo menos não estaria tendo que lidar sozinha com
isso dentro da minha cabeça.
— Sim — disse eu. — Acho que é uma boa ideia.
Joshua acenou a cabeça. Ele me lançou um rápido olhar preocupado,
como quando quis me perguntar uma coisa, mas não sabia se isso poderia
me ofender.
— O que está passando nessa sua cabeça, senhor Mayhew? — disse,
tentando esconder a tensão e o nervosismo na minha voz com um tom de
brincadeira.
— Bom, eu só estava pensando no quanto isso é meio chato.
— O que é chato? — perguntei, sorrindo.
— Você ter morrido no seu aniversário.
118
Meu sorriso se esvaiu.
— Ah, isso.
Joshua respondeu apenas erguendo uma sobrancelha. Percebi pela
sua expressão que ele não estava querendo me pressionar a dizer nada. Ele
só não sabia mesmo o que dizer.
— Bom, parece — disse eu, sem esperar que Joshua encontrasse suas
próximas palavras.
— Parece o quê?
— Parece que eu morri no meu aniversário. Mas não me lembro da
minha morte.
— Mas você está começando a se lembrar de outras coisas? Tipo da
sua família?
— Sim, mais ou menos. Mas não da minha morte. Bom, a não ser de
eu morrendo mesmo. Mas não me lembro por que, nem como caí na água
para me afogar. — Estremeci um pouco e então continuei: — Talvez seja por
eu ser um fantasma. Talvez não tenha mesmo como me lembrar de muitos
detalhes da minha morte.
— Mas você quer mesmo se lembrar do resto?
— Olha, não sei direito. Vamos ver... — tentei encontrar a melhor
analogia possível para a situação, mas só consegui pensar em uma muito
boba. — Acho que é mais ou menos como quando você bate o carro, quebra
a perna, ou qualquer outra coisa assim, e aí não quer olhar com medo de
passar mal, mas sente uma curiosidade enorme ao mesmo tempo.
Joshua ficou calado por um instante. Ele franziu a testa e então se
virou para mim com um ar circunspecto.
— Será que é um problema psicológico? — perguntou. — Em vez de
paranormal, sabe?
— Hã? — Franzi a testa também, inclinando minha cabeça de lado.
— Bom, talvez você esteja criando um bloqueio subconsciente para
essas memórias. Porque enfim, outras memórias estão voltando, mas essas
não.
Remexi minha boca, refletindo sobre essa sugestão. Após alguns
segundos, acenei a cabeça.
— É possível, sim.
Ele olhou para mim de novo, ainda com um ar preocupado. Quando
ele falou, sua voz saiu hesitante.
— Mas você acha que você... hã... se matou?
119
Abaixei a cabeça. É claro que ele ia fazer essa pergunta. Em voz alta,
eu disse:
— Sempre achei que sim, sabe. Minha morte me parecia ser bem
deprimente, então não seria lá um grande exagero imaginar que talvez
minha vida tivesse sido também. Mas agora, desde que eu conheci você, já
não tenho mais tanta certeza. Sei que caí da ponte. Só não sei se me joguei.
Joshua me surpreendeu pegando minha mão do meu colo e
entrelaçando seus dedos nos meus.
— Talvez não tenha mesmo. Aliás... aposto que não. Não é a sua cara.
Nem um pouco.
Ergui a cabeça e abri um sorriso pequeno, mas crescente. A dorzinha
no meu peito irradiou deliciosos arcos de calor, como a brandura que eu
agora estava sentindo na minha mão.
Tudo bem, talvez Joshua estivesse errado. Mas e daí? Eu poderia ter
me matado, ou não. Era bem provável que nós nunca fôssemos descobrir.
Mas Joshua acreditava que não. Ele acreditava que eu era melhor do que
isso, em vida e agora. Essa sua fé na pessoa que eu era despertou alguma
coisa dentro de mim, alguma coisa que insistia que talvez, ao menos talvez,
eu não tivesse feito nada para merecer minha morte.
Antes que eu pudesse dizer isso a Joshua, ele olhou de repente para
fora pela minha janela e franziu a testa. Ele desacelerou antes de entrar em
uma ruazinha.
Ao perceber o que estava acontecendo, olhei para Joshua, sentindo
uma nova onda de terror. Eu me recusei a olhar para fora do carro por um
segundo que fosse e continuei com os olhos colados em seu rosto sério. Por
um brevíssimo momento, cheguei a desejar ser engolida de novo pela névoa
da morte. Só para ter um pouco de paz, um pouco de tranquilidade para me
preparar para o que estava por vir. No entanto, a voz de Joshua me forçou a
me concentrar.
— Chegamos.
Para a minha surpresa, seus olhos estavam cheios de pânico também.
Engoli seco, apertando sua mão com ainda mais força. Ele apertou a minha
de volta para deixar claro que não se importaria se a gente ficasse sentado
ali a tarde inteira, só olhando um para o outro em vez de para a casa atrás
de nós.
Mas a gente não poderia ficar assim para sempre.
120
Com uma dolorosa hesitação quase insuportável, soltei a mão de
Joshua e me virei no meu banco até conseguir olhar para fora pela janela do
passageiro.
Atrás de um belo gramado, havia uma casinha de madeira, com
menos de cem metros quadrados de área e mais de cinquenta anos de idade.
A tinta branca da fachada já tinha começado a descascar há muito tempo, e
o telhado se arqueava sob as memórias do peso de meio século de neve.
Atrás da casa, um terreno de grama alta se estendia até se misturar à densa
mata em volta do quintal.
Essa era a casa dos meus pais. A minha casa.
Dois sulcos paralelos na terra demarcavam uma entrada ao lado da
casa. Era o mais próximo que havia ali de uma garagem, que agora estava
desocupada.
— Eles não estão em casa.
Essas palavras saíram da minha boca antes que eu pudesse pensar
em seu significado.
Fiquei atônita, surpresa com a tranquilidade desse meu comentário.
Fazia muitos anos que eu não via aquela casinha surrada, muito menos o
carro dos meus pais parado ali fora. Ainda assim, me lembrava exatamente
de como era aquela casa quando estava vazia.
A voz de Joshua quase me fez pular do meu banco.
— Quer descer para ver melhor?
Acenei a cabeça sem olhar para ele. Não tirei meus olhos da casa nem
quando Joshua desceu do carro, abriu minha porta e me ajudou a
atravessar o gramado. Atordoada, cruzei o jardim de mão dada com ele. Foi
só quando ele colocou um pé na varanda da frente que puxei sua mão,
forçando-o a parar.
— O que você vai dizer? — perguntei. — Se tiver alguém aí, sabe?
— Eu estava pensando nisso mesmo. O que você acha? Que sou um
vendedor ambulante?
— Mas você não tem nada para vender! — rebati.
— Que estou arrecadando fundos para o time de beisebol então?
— É melhor. Um pouco, pelo menos.
Ainda meio hesitantes, fomos até a porta da frente. Quando soltou da
minha mão, Joshua se virou para mim e abriu seu sorriso mais carinhoso
que, infelizmente, parecia velar quase tanto medo quanto eu mesma estava
sentindo. Em seguida, ele ergueu sua mão direita e bateu na porta.
121
A porta se abriu na mesma hora com o toque de Joshua. Nós dois
ficamos surpresos e demos um passo atrás.
Do outro lado da porta, um corredor escuro estreito ia até o fundo da
casa. Levamos alguns segundos para perceber que o lugar estava vazio e que
ninguém tinha aberto aquela porta por dentro. Ela já devia estar
entreaberta. As batidas de Joshua apenas a empurraram para trás.
Tive um breve lampejo — uma imagem daquela porta se abrindo com
a mão de uma mulher.
— Minha mãe vivia fazendo isso — sussurrei, acenando a cabeça. —
Ela sempre esquecia a porta aberta quando saía para algum lugar.
— O que a gente faz? — sussurrou Joshua de volta.
— Vamos entrar.
Passei por Joshua, me espremendo entre o batente e a porta
entreaberta até que já fosse tarde demais para ele ou eu desistirmos daquele
plano. Depois que entramos, ele fechou a porta, e então deixei que meus
olhos se ajustassem à penumbra do lugar.
Nós estávamos no único corredor da casa, que dava acesso a vários
cômodos. Bem à minha direita, ficava a sala, abarrotada com móveis de
segunda mão e uma tevê velha. A entrada para outro cômodo mal podia ser
vista ao fundo, à direita. Do outro lado, havia uma cozinha minúscula, ao
lado do que parecia ser um banheiro ainda menor. Eu me virei um pouco
para esquerda e me deparei com uma porta ao meu lado, essa fechada.
Mesmo tentando fingir que aquilo não era nada, tive que conter meu
espanto com a torrente de familiaridade que aquela casa estava me trazendo:
os rangidos das tábuas de madeira sob os pés de Joshua; o “plic, plic,
plic” da torneira pingando na cozinha nos fundos da casa; a visão de uma
letra A cor-de-rosa de papel esmaecido colada no meio da porta fechada à
minha esquerda.
Não consegui me segurar. Um gemido escapou da minha boca
enquanto eu punha a mão no coração. Uma dor voltou a pulsar no meu
peito, mas de um jeito nada agradável, diferente daquela que sentia com
Joshua. Era uma dor terrível. Ardeu contra os meus pulmões até me ouvir
começando a perder o fôlego.
Logo depois, Joshua me pegou pela cintura e me puxou contra seu
peito. A gente nunca tinha ficado tão perto um do outro assim antes, mas
não consegui desviar nem um pingo da minha atenção para aproveitar esse
momento.
122
— A gente pode ir embora — murmurou Joshua contra os meus
cabelos. — A gente pode ir embora agora mesmo.
Balancei a cabeça.
— Não — minha voz saiu baixa e rouca. — Ainda não.
Pude sentir Joshua acenando a cabeça enquanto me puxava ainda
mais para perto. Ficamos assim até eu acalmar minha respiração. Assim que
me tranquilizei, Joshua me soltou. Ele me olhou de cima abaixo, dando
atenção em especial ao meu rosto.
— Sabe... — disse eu, com uma risada trêmula. — Talvez eu tenha
sido asmática em vida. Deve ser por isso que vivo perdendo o fôlego.
Joshua só balançou a cabeça para a minha tentativa fracassada de
fazer uma piada.
— Não quer ir embora mesmo? — disse ele. Juntei os lábios em uma
linha tensa e balancei a cabeça. — Bom... o que você quer ver primeiro
então? — perguntou ele.
Pensei por um instante e então virei minha cabeça para a porta à
minha esquerda.
— Será que a gente pode entrar no meu quarto?
— Tu-udo bem.
Como sempre fazia quando tentava abordar algo com cuidado, Joshua
estendeu seu U. Ele ainda parecia preocupado, ainda incerto se eu estava
mesmo pronta para tudo aquilo. Tentei manter uma expressão tranquila e
parecer preparada para qualquer coisa. Ao ver isso (mas obviamente sem
acreditar muito), Joshua esticou a mão ao meu lado para girar a maçaneta
do meu antigo quarto.
A porta se abriu, liberando uma coisa que eu não esperava.
Uma leve brisa quente roçou minha pele. Pude sentir aquilo — sentir
seu movimento e seu calor. Pude sentir o cheiro daquele ar, mofado depois
de sabe-se lá quanto tempo preso naquele quarto, mas com um leve toque de
perfume. Era um vago aroma de frutas... talvez de pêssegos, ou nectarinas.
Essas sensações se esvaíram tão rápido quanto surgiram, me
deixando entorpecida. Mas eu tinha sentido tudo aquilo, o que importava era
isso. Fechei os olhos por um instante para saborear o momento.
Quando os reabri, fiquei surpresa ao ver que eu já tinha atravessado a
porta. Eu me virei e vi Joshua hesitante do lado de fora. Sorri para ele e fiz
um gesto com a mão para que ele entrasse.
O quarto era minúsculo, mal tendo espaço para nós. Espremida junto
a uma parede, havia uma cômoda velha e, contra a outra, ficava uma cama
123
de solteiro, coberta de travesseiros roxos e verdes. Em cima da cama, um
punhado de estrelas douradas de papel pendia do teto, penduradas em
barbantes. Elas combinavam com as cortinas, que alguém havia fechado,
inutilizando um pequeno telescópio encostado ali junto à janela.
Mesmo sob a penumbra, pude ver a única coleção que eu já tive na
vida: meus livros. Pilhas de livros, espalhadas pelo chão quase até a altura
da minha cintura e ocupando cada centímetro livre do meu minúsculo
quarto. Eu tinha encontrado esses livros em sebos, cestas de descontos,
vendas de bibliotecas. Cada um deles tinha sido lido, relido e então colocado
com todo carinho no alto de uma daquelas pilhas.
Pus a mão no coração de novo. Desta vez, não foi falta de ar ou um
aperto o que senti. Senti... uma tristeza, sim. Uma profunda tristeza. Mas
também fiquei contente por rever aquilo. Por saber que eu tinha existido.
Que eu ainda existia, pelo menos de alguma forma.
Abri um leve sorriso e me virei para Joshua. Apontei com a cabeça de
volta para o corredor, indicando que era hora de sair daquele quarto. Ele
entendeu minha mensagem e deu meia volta logo depois — ansioso, acho,
para se afastar daquelas imagens. Eu sei como é, pensei enquanto saía atrás
dele.
Antes de deixar o quarto, no entanto, dei uma última olhada para trás
por cima do ombro. Só para guardar aquele espaço minúsculo na minha
mente.
Foi então que reparei em uma grossa camada de poeira sobre tudo,
um filme amarronzado e transparente cobrindo as estrelas, a cômoda, os
livros. Parei no lugar, franzindo a testa para a cena.
Mesmo não tendo mudado nada naquele quarto, pelo visto meus pais
também não entravam lá há um bom tempo.
Por algum motivo, isso me entristeceu ainda mais. Não pela minha
mãe não se espremer todo dia dentro de um templo abarrotado em minha
memória com um espanador em punho, mas porque meus pais tinham
mantido aquele quarto intacto e trancado, como se aquilo fosse uma tumba
cheia de memórias dolorosas demais para se chegar perto.
E provavelmente era essa a verdade mesmo.
Balancei a cabeça, saindo do quarto para o corredor sem olhar mais
para trás.
— Feche a porta, por favor — pedi para Joshua com uma voz rouca.
Ele me atendeu sem dizer nada, só puxando a porta atrás de mim e
trancando minha tumba de novo. Estremeci ao ouvir a porta batendo.
124
Joshua parou ao meu lado. Olhei para ele com uma expressão
taciturna, abalada demais para sequer tentar sorrir.
— Foi tão difícil assim? — perguntou. Só acenei a cabeça. — Se serve
de consolo, acho que você tem quase tantos livros quanto eu.
— Tinha — disse eu. — Eu tinha quase tantos livros quanto você.
Ele franziu a testa.
— Você pode ficar com todos os meus livros, Amélia.
— Ah, seria legal, pena que não consigo virar as páginas, né? —
Joshua abaixou a cabeça, e eu me senti envergonhada na mesma hora.
Baixei a cabeça também, olhei em seus olhos, e abri um leve sorriso. — Mas
enfim, Joshua, por mais que eu esteja meio mal agora, fico muito feliz em
ouvir isso.
— Espero que sim — disse ele com um tímido sorriso em resposta.
Puxei um fôlego imenso, erguendo os ombros e então os deixando cair
de volta no lugar. Eu me senti exausta, estranhamente abatida. Mesmo
assim, ainda tinham coisas ali que eu queria ver.
— Tudo bem se a gente der uma olhadinha rápida na sala? Acho
que... minha mãe guardava várias fotos lá.
— Claro — Joshua estendeu o braço, abrindo caminho, e então passei
por ele e fui até a sala. Analisei a cena até encontrar: a prateleirazinha que
minha mãe havia instalado na parede dos fundos.
Atravessamos o labirinto de cadeiras e poltronas até chegar à frente
da prateleira. Ela ainda estava entulhada com as mesmas fotos, todas em
molduras baratas de plástico ou madeira. Alguns elementos novos
decoravam aquele espaço, mas os que mais me chamaram a atenção foram
duas fotos grandes que agora ocupavam parte da prateleira.
Reconheci a foto da esquerda na mesma hora. Era o meu retrato do
último ano do colégio, o que Joshua e eu tínhamos encontrado no anuário
aquela tarde. Meu antigo rosto vivo estava ali, nos encarando, dentro de uma
bela moldura de madeira. Para o meu horror, alguém tinha colocado fitas
pretas largas em volta do meu porta-retrato. A fita da esquerda trazia meu
nome em letras prateadas metálicas, e a da direita tinha as datas do meu
nascimento e da minha morte. Com isso, aquela linda foto havia sido
transformada em uma espécie de lembrança macabra que alguém poderia
usar como um enfeite em cima de um túmulo.
No entanto, não foi essa desconcertante imagem o que mais me
horrorizou. Na verdade, foi a outra foto na prateleira, a que estava bem à
minha direita.
125
A foto em si não me assustou. Sob quaisquer outras circunstâncias,
ela teria me feito sorrir. Era uma foto do meu pai, mais ou menos de quando
ele tinha se casado com a minha mãe. Naquela época, ele ainda tinha belos
cabelos. Sua pele bronzeada era mais lisa do que eu lembrava, mas seus
olhos verdes ainda se enrugavam nos cantos como resultado de um imenso
sorriso.
Ainda assim, apesar do tom feliz dessa foto, comecei a tremer sem
parar.
Porque como o meu retrato logo ao lado, a foto do meu pai também
estava entre fitas pretas.
A fita à esquerda da foto do meu pai trazia o nome Todd Allen Ashley.
As letras reluziam à minha frente com o mesmo tom prateado que cercava
meu próprio retrato. Não consegui ler a fita da direita muito bem, e nem
queria. Mas seja lá quais fossem os números impressos naquela fita, eu
sabia o que eles simbolizavam: uma data de nascimento... e outra de morte.
No começo, os fragmentos individuais do que vi ali não faziam sentido.
Mas quanto mais eu olhava para aquela foto, mais detalhes emergiam com
uma aterrorizante clareza. Assim que tudo por fim se encaixou, o meu
mundo desabou sobre mim.
Mas não fiquei com medo. Eu queria isso. Queria a escuridão, o nada.
Queria um pesadelo agora mesmo. Queria deixar que aquele rio me sugasse,
para me afogar ou me prender naquele submundo terrível de Eli.
Queria qualquer coisa menos estar ali.
Mas por mais que eu quisesse, não caí na velha escuridão. Fiquei só
inerte naquela sala entulhada onde minha mãe provavelmente se sentava
sozinha toda noite. Sem nenhuma filha com quem brigar, sem nenhum
marido para conversar.
Porque eu estava morta.
E meu pai também.
Tapei a boca com a mão para conter um soluço de choro. Joshua
tentou me pegar, mas eu me afastei e balancei a cabeça.
Como se estivesse lendo meus pensamentos, Joshua sussurrou:
— Não é culpa sua, Amélia.
— É sim. Sei que é.
— Como? — insistiu.
— Olhe só para este lugar! — Apontei para a cena ao meu redor, para
aquela sala cheia de móveis velhos e para o meu quarto que agora era uma
126
tumba logo ao lado. — Tudo virou um caos depois que eu morri. Está tudo
um caos.
— Eu sei, e é terrível — a voz de Joshua saiu mais suave, mas ainda
insistente. — Terrível mesmo. Sinto muito, Amélia. Mas... às vezes esse tipo
de coisa acontece. E o importante é que a culpa não foi sua.
As palavras de Joshua não surtiram nenhum efeito — eu não
conseguia parar de tremer.
— Eu não estava aqui, Joshua. Eu não estava aqui quando...
quando... — engasguei no meio da frase. Joshua veio até mim com os braços
abertos, mas expulsei o resto das palavras da minha boca antes que ele
pudesse tocar em mim. Na verdade, eu quase as cuspi no chão. — Eu não
estava aqui quando meu pai morreu. Agora, minha mãe está sozinha, e
sabe-se lá onde meu pai pode estar. Ele pode estar perdido, como eu estava.
Ou até... em algum lugar pior — estremeci ao me lembrar do mundo sombrio
de Eli e daquelas pobres almas presas. — E não posso fazer nada agora.
Meus olhos arderam. Não fiquei surpresa quando uma lágrima
conseguiu descer pela minha bochecha. Mas me espantei quando uma
torrente inteira de lágrimas desabou logo depois.
Olhei para Joshua, boquiaberta, provavelmente com uma expressão
medonha de choque no rosto. Enxuguei minhas bochechas em desespero e
olhei para as minhas mãos, que estavam ficando encharcadas.
— Eu... eu nunca chorei — gaguejei, olhando para ele. — Não assim.
Joshua pegou meus braços e praticamente me puxou para perto dele.
— Pode fazer o que você quiser, Amélia. Por mim, tudo bem — sua voz
saiu rouca, intensa pela emoção.
Fiquei chocada de novo ao perceber o que o som de sua voz fazia com
meu corpo, por mais desolada que minha mente pudesse estar. De repente,
meus braços se lançaram com ardor em volta do seu pescoço. Com o mesmo
ardor, ele colocou seus braços em volta da minha cintura e me puxou para
mais perto dele num piscar de olhos. Agora já não havia mais nenhum
espaço entre nós. Nossos corpos estavam curvados um contra o outro e,
quando ele se aconchegou mais perto ainda de mim, achei até que eu iria
parar de respirar.
Eu estava sentindo tudo: a pressão de seus braços em volta de mim, a
força de seus dedos na minha cintura, o calor de seu hálito contra a minha
pele. Tudo o que eu sabia sobre mim mesma e a minha relação com o
mundo dos vivos me dizia que isso seria impossível. Mas nada disso
127
importava agora. O que importava era estar me sentindo viva. Estar
sentindo tudo.
Joshua olhou para mim, e pude sentir o calor de seus olhos azuis-
escuros em cada centímetro do meu corpo. Quando enrolei meus dedos
entre os cabelos na sua nuca, ele gemeu. Assim que esse som escapou de
seus lábios, nem precisamos pensar em mais nada. Nós nos inclinamos um
contra o outro e então nossos lábios se tocaram.
O beijo desabou sobre mim, com onda após onda de puro fogo. Aquela
dor explodiu no meu peito como uma bomba atômica, incinerando tudo em
seu caminho. Deixei que aquilo me queimasse e me consumisse.
Enquanto Joshua abria a boca e a roçava contra a minha, senti seus
lábios — senti sua carne macia e quente.
Naquele momento, me tornei uma bomba atômica. Uma brilhante bola
de fogo alaranjada. O ponto exato onde um fósforo aceso cai em uma poça de
querosene.
Em seguida, senti um frio. Um frio terrível.
Abri meus olhos e perdi o fôlego. Comecei a engasgar e a me abraçar,
buscando em vão algo em que me ancorar. Algo que me ajudasse a sair dali.
Porque de repente, me vi de volta à água negra do rio. Estava me
afogando de novo.
128
Dezesseis
Quando aquela sufocante água negra por fim desapareceu, acordei,
tossindo e cuspindo sob o sol da manhã. Eu me vi de joelhos, caída de
quatro e agarrada à terra no chão como se fosse um colete salva-vidas. O
que, em certo sentido, até era verdade.
Fiquei uma eternidade assim, curvada e olhando para o chão. Meus
cabelos pendiam como grossas cortinas de cada lado do meu rosto,
tampando toda minha vista, a não ser pela grama seca e a terra vermelha
embaixo de mim.
Em seguida, virei minha cabeça apenas alguns milímetros para a
direita. Através dos meus cabelos, pude ver de relance o que havia à minha
volta.
O campo. As árvores. As lápides.
Então me sentei sobre meus calcanhares descalços e me abracei. Só
depois de me garantir essa parca proteção, joguei meus cabelos de lado para
conseguir analisar melhor meus arredores.
Eu tinha tido outro pesadelo, o pior de todos até então.
Tudo começou como sempre: com eu me debatendo e engasgando em
pânico. Mas depois de me acalmar, após o choque inicial da água, ouvi vozes
estranhas de novo, gemidos roucos que me lembraram muito do submundo
de Eli. Mas dessa vez, além das vozes, ouvi risadas. Gargalhadas enfurecidas
e violentas que vinham do que parecia ser uma festa.
Quando ergui a cabeça para procurar a origem desse som, me deparei
com uma multidão de figuras em cima de mim, na Ponte Alta. Assistindo ao
meu suplício. Antes que eu pudesse ver seus rostos, afundei de novo na
água. Foi só então que acordei naquele cemitério.
Quem eram aquelas pessoas na ponte? E por que elas estavam me
vendo com tanta histeria?
129
Essas eram perguntas que eu não tinha como responder. E é claro,
isso levantou ainda mais questões sobre por que eu sequer consegui ver
aquelas figuras. Será que eu havia as ouvido e visto porque estava mais
atenta agora? Ou talvez fosse por algo a ver com o que Joshua disse: eu
poderia estar reprimindo as memórias da minha morte, e agora elas estavam
ressurgindo com detalhes ainda vagos, mas dolorosos.
Muito obrigada, meus pesadelos, pensei, amarga, por serem sempre tão
divertidos.
E isso, é claro, me levou a outro pensamento. Um padrão parecia
estar se formando entre os meus pesadelos, em especial quanto à forma
como eles começavam. Talvez tivesse algo a ver com o meu estado de
espírito. Afinal, o último tinha começado quando Eli me irritou aquela noite
dizendo que eu não tinha outra escolha a não ser me juntar a ele naquele
submundo. E este de agora começou com o beijo de Joshua.
Não, pensei, balançando a cabeça. Não foi pelo meu primeiro beijo
com ele. Na verdade, foi quando achei que ia explodir — com a angústia pela
perda do meu pai e ao perceber a solidão da minha mãe; com o meu desejo,
deflagrado pela sensação dos lábios de Joshua nos meus.
Pensando nos lábios de Joshua, peguei impulso contra o chão e me
levantei com um pulo. Eu poderia me preocupar com meus pesadelos depois.
Agora, tinha problemas mais importantes para resolver. Como o fato de que
já havia se passado um dia inteiro desde meu beijo com Joshua, o que devia
tê-lo deixado bem confuso quanto ao meu paradeiro. Sem nem olhar de novo
para aquele lugar horrível, saí correndo.
Talvez meia hora depois — não tenho certeza —, cheguei ao
estacionamento do Colégio Wilburton. Eu estava ofegante, não pelo esforço
de correr, mas pelo medo de que eu tivesse chegado tarde demais para
encontrá-lo ali.
Por sorte, uma rápida olhada pelo lugar me mostrou que não. Do
outro lado do gramado, os alunos estavam reunidos em grupinhos enquanto
almoçavam, dando risada e curtindo o sol. Passei às pressas por eles,
analisando cada rosto enquanto andava.
Sem encontrar o que queria, não tive opção a não ser esperar do lado
de fora do refeitório, batendo o pé e remexendo os dedos até alguém por fim
abrir a porta. Dei uma olhada por cima nos alunos que estavam entrando e
saindo, sem sucesso de novo, então me espremi entre eles antes que a porta
se fechasse. Assim que entrei, examinei a sala inteira já impaciente e depois
comecei a andar entre as mesas.
130
Estava tão concentrada na minha busca que nem o vi até quase
trombar bem no peito dele. Nós dois paramos de repente antes do impacto, a
poucos centímetros um do outro.
Uma leve onda de seu cheiro — doce, almiscarado, quente — quebrou
sobre mim e então se esvaiu. Ergui a cabeça, lentamente, até encontrar seus
olhos.
Eu tinha achado Joshua.
Senti uma explosão de alegria. Joshua, no entanto, não me pareceu
tão feliz assim. Aliás, ele só me encarou com uma expressão vazia, com seus
olhos azul-escuros indecifráveis.
— Joshua... — comecei, mas outra voz me interrompeu.
— O que é que foi, cara?
— Nada — disse Joshua para O’Reilly sem olhar para trás.
— Você está na frente da porta, gatão — disse uma garota, a tal de
Kaylen, acho, do meio da turma atrás de Joshua.
Mas Joshua não se mexeu. Ele só ficou me encarando, estático, sem
sair do lugar. Por fim, ele saiu andando, ainda com seus olhos nos meus,
mas se virando um pouco para trás.
— Acabei de lembrar... — disse ele para os amigos. — Deixei uma
coisa no carro.
— Então será que, tipo, você pode ir lá pegar? — resmungou Jillian. —
Porque os seus problemas não servem como desculpa para o resto da gente
chegar atrasado.
— Nem para mim, na verdade. Pergunte para a senhora Wolters. —
Ele se virou por inteiro para a turma atrás dele e abriu seu sorriso largo de
sempre. Mas quando ele se voltou para mim, seu sorriso sumiu e seus olhos
finalmente brilharam com alguma emoção de verdade. Ele encolheu os
ombros e passou por mim, saindo do refeitório.
Senti um frio terrível. Pior até do que aquele ar gelado que cortou
minha pele no submundo. Foi fácil reconhecer a emoção que havia
incendiado os olhos de Joshua, mesmo sem nunca ter visto nada parecido
antes.
Era raiva. Joshua estava furioso.
Toda trêmula, encontrei um espaço vazio entre alguns dos alunos que
estavam saindo pela porta e os segui. Chegando ao lado de fora, olhei para
os lados, procurando Joshua. Eu o avistei, já bem à frente dos seus amigos,
e avançando a passos largos em direção ao estacionamento da escola.
131
Por fim, consegui abrir caminho em meio à multidão e corri para
alcançar Joshua. Mas uma breve olhada para os músculos tensos em seu
pescoço me fez hesitar. Parei alguns metros atrás dele, com um pé na
calçada e o outro pairando sobre o asfalto.
Joshua chegou ao seu carro, abriu a porta do passageiro e então
começou a fingir que estava procurando seja lá o que teria esquecido lá. Ele
se levantou, me lançou um olhar de lado e apontou com a cabeça para a
porta aberta. Os dois gestos emanaram um ar claramente irritado.
Engoli seco ao pôr o pé no asfalto. Passei por ele e me arrastei para
dentro do carro. Joshua bateu minha porta e, assim que entrou no carro,
fechou a sua também. Estremeci só com o barulho.
Joshua nem olhou para mim. Ele só ficou sentado lá, com as mãos
firmes no volante e seus olhos colados no painel. Um silêncio pesado caiu
entre nós, parecendo sugar todo o ar de dentro do carro, me esmagando
como um vácuo. Seria melhor ouvir infinitas batidas de porta do que isso.
— Eu tive um pesadelo... — comecei, sem jeito.
— Foi por isso que você sumiu do nada? — disparou ele, me
interrompendo sem tirar seus olhos do painel.
— O que foi que eu fiz? — perguntei.
— Você sumiu. Logo depois de eu te beijar. Ou de você me beijar.
Tanto faz. A gente estava se beijando, mas quando abri os olhos, você tinha
sumido.
— Joshua, eu... eu não sabia que tinha sido assim — gaguejei. — Que
eu sumi desse jeito. Só sei que estava beijando você e de repente tive um
pesadelo. Acordei menos de uma hora atrás e vim correndo direto para cá.
Ele finalmente se virou para mim, com a cara fechada.
— Como assim teve um ―pesadelo‖? Você teve um sonho ruim, é isso?
— Não exatamente. — Olhei em seus olhos enquanto explicava. —
Toda vez que tenho um pesadelo, na verdade não durmo. Só perco a
consciência e, pelo visto, sumo de seja lá onde estiver antes do pesadelo
começar. É como se eu apagasse e aí, quando menos percebo, já estou me
afogando de novo. Só chamo isso de pesadelo porque depois eu acordo.
Joshua ficou em silêncio por um bom tempo. Quando por fim falou,
suas palavras ainda soaram céticas. Mas ouvi outra nuance em sua voz
também... um quê de mágoa.
— Mas você só acordou uma hora atrás? — perguntou. — Já faz quase
um dia inteiro desde que você sumiu. Como isso é possível?
Fiz de tudo para respirar normalmente. Com calma.
132
— É como falei, às vezes só apago do nada. Depois, acordo em algum
outro lugar, e pelo visto, um bom tempo mais tarde.
— Então... na verdade você não fugiu de mim?
Agora, o tom de mágoa em sua voz foi bem claro. Percebi então que
toda a sua raiva devia estar escondendo um simples fato: meu sumiço
repentino o havia chateado. E muito.
Ainda assim, joguei as mãos para o alto, irritada pela sua teimosia em
não acreditar em mim.
— Por que iria fugir de você, Joshua?
— Porque beijei você.
— Mas eu beijei você também — disse e então acenei a cabeça. — Eu
também queria.
Joshua franziu a testa, mas quando falou, sua voz saiu bem mais
calma.
— Tem certeza, Amélia?
Acenei a cabeça com vigor.
— Sim! Sim, certeza absolutíssima! É só que... bom, fiquei muito
abalada com o lance dos meus pais e acho que acabei me perdendo. Porque
enfim, sou um fantasma. Você sabe.
— Na verdade... — disse ele, hesitante. — Eu até achei mesmo que
tivesse alguma coisa a ver com isso. Sei lá, que você podia ter ficado com
medo de que eu fosse te exorcizar.
Fiquei espantada.
— Q-quê? Você estava pensando em fazer isso?
— Não! — Ele balançou a cabeça, parecendo surpreso. — Claro que
não. Só pensei que talvez você tivesse ficado com medo disso.
— Bom, agora estou — rebati.
— Relaxe — disse ele, agora determinado. — Não faria isso, de jeito
nenhum. Ninguém conseguiria nem me forçar a isso.
Soltei uma bufada de frustração.
— Bom, é que a gente tem alguns problemas para resolver, né?
Joshua deu uma risadinha amarga.
— Eu sei, e não são poucos.
— Tipo os pesadelos — comentei. — E também o fato de que
tecnicamente você precisa me exorcizar.
Isso sem falar de Eli, pensei comigo mesma. Ou de não ter como ajudar
minha mãe, nem salvar meu pai das trevas. Também não sei o que vai
133
acontecer quando você envelhecer e eu não, ou quando sua avó finalmente
decidir vir atrás de mim...
Por enquanto, preferia guardar essas coisas só para mim. Em voz alta
eu disse apenas:
— Só queria poder voltar à vida para que tudo fosse mais fácil para a
gente. Queria mesmo.
Joshua me pareceu estar pensando mais ou menos a mesma coisa.
Ele franziu a testa e então passou a mão pelo cabelo e a desceu até a nuca.
— Isso vai ser complicado, né? — perguntou.
Acenei a cabeça.
— Parece que sim. Sei lá, não tenho a menor ideia de como isso
funciona. Os pesadelos, ou essa história toda de ―eu e você, um vidente e um
fantasma‖. Só não sei quais são as... regras.
Essa última palavra escapou da minha boca, caindo como uma pluma
dos meus lábios. Ela pairou no ar sob o peso de algo maior, algo que tinha
acabado de me ocorrer.
Duas pessoas — bom, uma pessoa e um espírito — conheciam essas
regras e poderiam me ajudar. Poderiam nos ajudar.
Enquanto eu formulava meu plano, fixei meus olhos em um ponto
invisível do lado de fora do carro. Comecei a falar metodicamente para me
desviar do caminho sombrio que a nossa conversa tinha tomado.
— É o seguinte, Joshua. Acho que conheço alguém que poderia
explicar o que está rolando. Alguém que poderia nos ajudar de verdade a
entender como eu... funciono, acho. Mas preciso ir a um lugar esta tarde
para ver se essa minha ideia é mesmo viável. Então será que você pode me
encontrar lá depois da escola? E confiar em mim se eu disser que vou estar
lá?
— Acho que sim.
— Ótimo — disse eu. Mordi meu lábio inferior e acenei a cabeça,
determinada. — Então, você sabe onde a sua vó está agora?
Não demorou muito para eu conseguir chegar à maior igreja da
cidade, nem para que alguém abrisse uma das portas para eu poder entrar.
Como Joshua havia falado, a igreja estava lotada de pessoas se preparando
para a missa de quarta-feira à noite.
Encontrar Ruth dentro da igreja também foi fácil: ela estava na frente
da capela, comandando uma pequena tropa de mulheres com uma voz firme.
Sempre que balançava a cabeça — para rejeitar a sugestão de alguém abaixo
134
dela na hierarquia da igreja, imagino —, ela me lembrava de Jillian, e era
difícil não achar isso engraçado.
Mas qualquer traço de sorriso desapareceu do meu rosto assim que
Ruth se virou e me viu. Ao fixar seus olhos nos meus, ela parou no meio de
uma ordem e soltou um grunhido abafado em protesto. Em seguida, sem
tirar seus olhos de mim ou terminar sua frase, Ruth abriu caminho entre
suas assistentes e veio marchando pelo corredor central da igreja.
Ela só desviou seus olhos gelados dos meus quando passou batendo
os pés por mim e esbravejou:
— Fora daqui! Já!
Segui Ruth para fora pela porta dupla da igreja até o pé da escadaria
da frente, onde ela ficou me esperando, de costas para mim.
— Ruth... digo, senhora Mayhew... — arrisquei, mantendo uma voz
calma. Confiante. — Sei que a senhora não quer falar comigo, mas...
— Você não deveria chegar perto de um lugar sagrado — me
interrompeu Ruth, virando-se para mim, mas seu olhar não se concentrou
no meu, e sim na igreja, como se fosse aquele prédio, e não um fantasma
adolescente, quem tinha falado com ela. — Você não é digna de estar aqui,
muito menos de existir.
De repente, eu já não estava mais com medo, nem submissa. Estava
irritada. Tão irritada, aliás, que até me esqueci o que com certeza havia
aprendido em vida sobre respeitar os mais velhos.
— Bom, não é como se eu tivesse me desintegrado numa pilha de sal
quando cruzei aquelas portas — esbravejei. — Então acho que algum ser
divino aqui não se incomoda com a minha presença.
Ruth balançou a cabeça com um ar teimoso.
— Se você está morta e ainda vaga por este mundo, você é uma
abominação.
Tentei não gritar, mas não consegui.
— Uma abominação? Como assim?! Você não sabe nada sobre mim.
— O que sei já me basta — disse ela. — Sei que você ainda vaga por
aqui e que é bem provável que você tenha vindo daquela ponte.
Nisso ela tinha razão. Só consegui gaguejar:
— Bom, sim... mas...
— Não me interessa. Mesmo que você não seja um espírito maligno
agora, você, na melhor das hipóteses, é um receptáculo vazio que o mal cedo
ou tarde irá preencher... e usar. Tenho certeza de que ele está atrás de
você... o rapaz que assombra aquele lugar. O que eu venho perseguindo há
135
tantos anos. E agora que você está aqui também, nosso trabalho só ficou
ainda mais complicado.
Eu me lembrei dos alertas de Eli sobre minha natureza — e meu
futuro — na mesma hora. Em seguida, me dei conta de outra coisa. Como eu
já tinha suspeitado quando Joshua me descreveu os videntes, Ruth e suas
amigas sabiam sobre Eli, pelo menos um pouco. Elas vinham o caçando há
anos, aparentemente sem sucesso.
— Como você sabe tanto sobre fantasmas, e sobre a Ponte Alta? —
perguntei.
— Porque venho estudando o sobrenatural pela maior parte da minha
vida e vigiando aquela ponte há décadas. Sei o que acontece com as poucas
almas que continuam neste mundo. Sei o que acontece com as almas que
assombram a Ponte Alta. Elas viram escravas daquele lugar, como aquele
rapaz que estamos caçando há tanto tempo.
— Mas eu não assombro a Ponte Alta — protestei sem muitas forças.
Ruth por fim olhou nos meus olhos e me abriu um gélido sorriso.
— Você está assombrando meu neto. Isso já basta para mim.
Então devia ser disso que ela estava falando aquela noite na casa de
Joshua quando disse que eu não era quem ela esperava: por mais que eu
fosse um fantasma errante, não era o ―rapaz‖ que ela vinha tentando pegar.
Ainda assim, Ruth obviamente estava disposta a me tratar da mesma forma
que Eli. Como se eu fosse algum espírito maligno e perigoso.
Mantive minha cabeça erguida até onde pude, por mais que agora
estivesse tremendo.
— Ele gosta de mim também, sabe. Não estou assombrando o Joshua
à força.
— Isso não importa. Ele logo entenderá seu papel como vidente, e
então fará a escolha certa.
Ruth acenou a cabeça, como se quisesse enfatizar a inevitabilidade
daquela conclusão. Mas alguma coisa em suas palavras me deixou intrigada.
Inclinei minha cabeça de lado, pensativa.
— Deixa só eu ver se entendi direito todas as regras: os videntes
podem escolher se vão ou não participar dessa batalha?
Ela desprezou minhas palavras com um gesto de mão.
— Isso na verdade nem importa, porque todo vidente sempre cumpriu
sua função depois de passar pelo evento que ativa seu dom.
— Até agora, a senhora diz — ressaltei.
136
Ruth hesitou, claramente surpresa. Mas ela se recuperou rápido e
então balançou a cabeça.
— Joshua ainda não fez sua escolha. Ele nunca faria isso sem me
consultar primeiro.
— Não tenha tanta certeza — respondi, tranquila, mas com uma
certeza da qual nem Ruth teria como duvidar. Por mais bravo que Joshua
tivesse ficado (e talvez ainda pudesse estar) comigo, acreditei quando ele
prometeu que não usaria seu dom contra mim. Ruth olhou para mim como
se acreditasse nisso também agora.
Ela ficou olhando para um ponto atrás de mim, encarando o nada.
Pensando. E então, mais para si mesma do que para mim, ela começou a
murmurar:
— Eu estava dando tempo ao Joshua. Esperando o momento certo
para contar a ele sobre seu dom. Mas talvez isso tenha sido um erro...
Ela não terminou a frase, e então aproveitei sua distração para insistir
no assunto.
— Se o Joshua fez uma escolha que a senhora não imaginava, por que
não posso fazer o mesmo? Por que eu posso escolher não ser um espírito
maligno?
Juntando seus lábios com uma expressão presunçosa, Ruth se
empertigou toda no lugar.
— O Joshua pode negar o quanto quiser sua natureza, mas cedo ou
tarde vai perceber o que é certo. É isso é o que ele tem que fazer.
Ergui uma sobrancelha.
— Então a senhora está dizendo que nenhum de nós tem livre
arbítrio?
Ruth estreitou seus olhos que, apesar de bonitos, de repente me
pareceram ameaçadores.
— O Joshua é livre para cometer seus erros... — disse ela — ...por
enquanto. Mas não quero que você pense, nem por um segundo sequer, que
nós vamos dar a você essa mesma oportunidade.
Senti um calafrio sinistro subir pela minha espinha.
— O que a senhora está querendo dizer? — murmurei.
— Estou dizendo que é melhor você ficar alerta, porque seus dias no
mundo dos vivos estão contados. Nós temos planos para você, e namorar
meu neto não está entre eles.
O calafrio sinistro escapou da minha espinha e se transformou em
uma tremedeira completa, ameaçando quebrar meus dentes. Precisei me
137
esforçar para conseguir manter uma expressão fria e tranquila e meus
braços ao lado do corpo em vez de me abraçar em busca de proteção. Tinha
que ir embora dali antes que acabasse mostrando a Ruth o quanto ela me
apavorava.
— Bom, obrigada pelo aviso — murmurei, praticamente pulando dos
últimos degraus da escada.
Saí de perto de Ruth o mais rápido que pude, procurando o caminho
mais curto em meio ao estacionamento da igreja até o bosque ali em volta.
Eu mal tinha chegado perto das árvores quando Ruth gritou comigo.
— Nós vamos acabar com você daqui dois dias, quando a lua estiver
minguante e os nossos feitiços de banimento estiverem mais fortes. Então,
esteja preparada.
De repente, tive a sensação de levar uma pontada no crânio. Por puro
reflexo, arqueei meus ombros e curvei o pescoço em desespero. Virei minha
cabeça de um lado para o outro, tentando em vão me livrar daquela dor.
E então, como um aterrador acompanhamento para a dor nas minhas
têmporas, uma série de imagens borradas inundou minha mente. Elas
passaram a uma velocidade tão atordoante pela minha frente que eu mal
conseguia perceber seus detalhes. Essas imagens relampejaram pela minha
mente com tanta brutalidade que acabei sentindo uma ânsia de vômito
muito real nas minhas entranhas.
A força dessa sensação foi tão desorientadora que cambaleei,
tropeçando nos meus próprios pés e caindo de quatro no chão. Minhas mãos
bateram com força contra o chão do estacionamento e, de repente, pude
sentir as pontas afiadas das pedrinhas de cascalho. Elas cortaram a pele das
minhas palmas e dos meus joelhos, atravessando minha dormência
fantasmagórica da pior maneira possível.
Logo depois, a dor passou — tão rápido que quase fiquei na dúvida se
tinha mesmo sentido aquilo. Ainda curvada, balancei a cabeça, confusa. Mal
tive tempo para me perguntar o que poderia ter causado aquela dor antes de
ouvir uma risada suave de mulher atrás de mim.
Naquele instante, soube exatamente o que tinha me atingido.
Enquanto me esforçava para me levantar do cascalho que eu já não
podia mais sentir, fingi não ter ouvido os avisos de Ruth, nem sentido aquela
brutal dor de cabeça. Pelo menos por fora. Em vez disso, saí correndo na
direção do bosque, esperando até me ver entre as árvores para só então me
entregar a uma violenta tremedeira de medo.
138
Dezessete
Muito tempo depois de Ruth ter voltado para dentro da igreja, ainda
fiquei andando de um lado para o outro em meio às árvores na borda do
estacionamento. Era bem provável que ela ainda pudesse me ver pela janela
se quisesse, mas eu não estava pensando racionalmente o bastante para me
importar.
Na verdade, durante um bom tempo, não consegui pensar em nada,
só sentir o embrulho espectral do medo no meu estômago e ouvir minha
própria respiração descontrolada. Mas por fim, me acalmei o bastante para
tentar fazer meu cérebro funcionar de novo.
Assim que me livrei daquele terror paralisante, no entanto, não tive
como não imaginar todos os possíveis futuros que eu tinha à minha espera:
um exorcismo — algo com certeza nada agradável — nas mãos das senhoras
da Igreja Batista de Wilburton; ficar presa para sempre na floresta escura do
submundo, como cortesia de um fantasma de calça colada; ou então
trabalhar como uma espécie de ceifadora para esse tal fantasma e seus
mestres malignos.
E é claro, a pior coisa em cada uma dessas possibilidades era que
Joshua não fazia parte de nenhuma delas.
— Estou perdida — disse eu em voz alta, soltando uma risadinha
histérica.
— Por que você está dizendo isso?
Ao ouvir essa voz de repente, eu me virei, erguendo as mãos em um
reflexo defensivo. Mas uma rápida olhada para aqueles cabelos escuros e
olhos azuis profundos logo fez toda a minha fúria, ainda que não o meu
medo, evaporar.
— Joshua, desculpe. — Abaixei os braços, derrotada. — Achei que
teria como ajudar, mas só acabei deixando tudo um milhão de vezes pior.
— Tudo bem, Amélia. Vai dar tudo certo — disse ele baixinho,
tranquilo.
139
— Como? — perguntei, com aquele tonzinho histérico voltando
sorrateiramente à minha voz. — Como é que vai dar tudo certo? Como você
sabe que não sou um espírito maligno que precisa ser destruído? Nem eu sei
disso, e eu sou eu!
— Porque sei, só isso.
Joshua ficou ali, com um pé no asfalto do estacionamento e o outro
na borda da grama que dava para o bosque. Com seus braços cruzados em
frente ao peito e um ar tranquilo, ele não parecia nem um pouco
preocupado. Quando ele me abriu um sorriso reconfortante, a dor no meu
peito ardeu um pouco. Mas tive que ignorá-la, pelo menos por enquanto.
— Você não tem ideia do quanto isso é importante para mim, Joshua,
sério. Mas mesmo com o que a gente descobriu sobre a minha casa e a
minha família, ainda sei muito pouco sobre mim mesma... pouco demais
para saber qual é o meu lugar ou o que mereço.
— Como assim, ―merece‖?
Abaixei a cabeça entre minhas mãos.
— Bom, sua vó basicamente acabou de me dizer que mereço ir para
o... inferno, acho. E que se eu não fosse, ela e as amigas dela iam vir atrás
de mim. Daqui a dois dias.
— Espera aí... como assim?
Soltei um suspiro, ainda sem olhar para Joshua.
— A Ruth e o grupinho dela vão vir me exorcizar daqui a dois dias.
— Não vão, não — rebateu Joshua. Ergui a cabeça na mesma hora.
Antes que eu pudesse perguntar como ele pretendia impedi-las, Joshua veio
para frente, diminuindo a distância entre nós. Ele se inclinou até mim, me
encarando com aqueles seus lindos olhos de cor tão diferente. — Venha
comigo — murmurou. — Agora.
Tentei me concentrar, tentei ignorar a intensidade em seus olhos.
— Para onde? Por quê?
— Para a minha casa. Vamos tentar entender algumas coisas sobre
você.
— Mas a Ruth disse que...
— Dane-se o que a Ruth disse — rebateu. — Moro naquela casa
também e, para mim, você será sempre bem-vinda. Mais do que bem-vinda,
aliás.
— Ah.
140
Várias emoções estavam se digladiando dentro de mim: medo, raiva,
incerteza. Mas agora, uma trêmula labareda de alegria havia eclodido entre
elas. Joshua tinha esse efeito em mim.
— E então... — disse ele, estendendo sua mão. — Quer vir para casa
comigo?
Abri um sorriso e estendi minha mão para pegar a dele.
Durante o trajeto, contei sobre minha conversa com Ruth com todos
os detalhes. Terminei a história bem quando chegamos à entrada da casa de
Joshua, e ele então desligou o motor. Ele ficou olhando em silêncio para o
jardim da frente.
Em seguida, franzindo a testa, apoiou um braço no volante e se virou
para mim.
— Acho que eu deveria pedir desculpas pela minha vó ter sido tão...
— Preocupada com você? — sugeri, antes que Joshua pudesse dizer
algo de que pudesse se arrepender.
Joshua apenas sorriu, percebendo na mesma hora meus esforços
diplomáticos.
— Preocupada — concordou, rindo. — Claro. — Ele se inclinou para
abrir minha porta e então voltou, parando por um instante ao meu lado. —
Você me promete uma coisa? — perguntou Joshua, ainda bem perto de mim.
Apenas acenei a cabeça, atordoada demais por estar tão perto dele assim
para dizer qualquer coisa com o mínimo de coerência. — Me prometa que a
gente só vai curtir hoje aqui, tá? E sem se preocupar com a vó Ruth, pode
ser?
— Ela não vai facilitar isso muito para a gente, né? — respondi,
fazendo uma careta.
Joshua balançou a cabeça.
— Ela vai ficar quase a noite inteira na igreja. Depois que a gente
passar pela minha família, vamos ficar só eu e você juntos.
Fiquei com o rosto quente só de cogitar essa ideia. Mas não perdi mais
do que um segundo pensando em como uma menina morta poderia sentir
um calorão desses. Sinceramente, por que eu iria ligar para isso se estava
prestes a passar uma noite inteira com ele?
— Vamos lá — consegui dizer. Joshua acenou a cabeça e, logo depois,
descemos do carro e cruzamos o jardim até a varanda dos fundos. Chegando
à entrada, Joshua foi a frente até a porta e a abriu para mim.
141
Enquanto eu passava, ele encostou a mão na parte de trás da minha
cintura para me guiar. O mero toque de sua mão causou um violento
furacão dentro de mim, mas só tive mais alguns passos para curtir essa
sensação. Poucos segundos depois, chegamos à cozinha da casa.
Como da última vez, a cozinha estava movimentada. Para o meu
grande alívio, Ruth ainda não tinha voltado para o jantar, como Joshua
havia previsto.
À nossa esquerda, o pai de Joshua e Jillianestavam rindo enquanto
preparavam uma salada. À nossa direita, a mãe de Joshua estava com uma
panela nas mãos, colocando o que parecia ser uma quantidade enorme de
macarrão dentro de uma tigela. Ela pôs a panela de lado e passou a mão
pelos cabelos, um gesto que eu conhecia muito bem de seu filho. Depois, ela
foi até a bancada e começou a separar uma pequena pilha de pratos para
levá-los até a mesa de jantar.
— Só três pratos hoje, mãe — disse Joshua para mostrar que estava
ali.
— Hã? — a mãe de Joshua pareceu curiosa, mas não ofendida pelo
comentário. — Não vai comer com a gente?
— Tenho muita lição de casa — disse Joshua, encolhendo os ombros,
e então me deu uma piscadela de lado.
— Mas eu não vou ter que lavar a louça sozinha depois, né? —
resmungou Jillian, olhando primeiro para sua mãe, que não a deu atenção, e
depois para as costas de seu pai. Quando os dois ignoraram suas súplicas,
Jillian fez uma careta para Joshua e então se virou de volta para a salada,
puxando as folhinhas soltas, toda irritada.
Joshua ignorou sua irmã e atravessou a cozinha para dar um tapinha
no braço do pai.
— Sabe... — disse Joshua em tom de brincadeira. — O bom é que já
inventaram uma coisa mágica chamada ―lava-louças‖. Ouvi dizer que é
revolucionário.
— Pois é — seu pai riu. — O nome dela é Jillian.
— Não tem graça — protestou Jillian, ainda olhando para a salada.
Com a palma da mão, ela empurrou a bacia para longe sobre a mesa. Ela se
virou para sua família, abrindo a boca para soltar o que só poderia ser outro
comentário petulante.
No entanto, ela a fechou com um estalo alto na mesma hora quando
seus olhos se fixaram no lugar onde eu estava — no lugar que deveria
parecer vazio para ela.
142
Como com Ruth ontem, seus olhos não se concentraram em mim. Não
exatamente. Mas ela estava olhando na minha direção, como se estivesse
tentando, com certa dificuldade, ver através de uma cortina de fumaça.
Ainda sem o poderoso dom da visão de sua avó, o olhar de Jillian não tinha
como me enxergar... nem me atingir. Mas isso me deixou nervosa e me fez
olhar pela cozinha com medo de que Ruth pudesse aparecer ali a qualquer
momento.
Como Joshua tinha prometido, no entanto, Ruth não chegou de
surpresa, berrando ameaças e me fazendo tombar de joelhos com aquela dor
lacerante. Até que por fim, Jillian desistiu de olhar na minha direção. Ela se
virou de volta para seu irmão, com apenas um leve ar desconcertado no
rosto.
— Nada nessa casa é justo — reclamou. Joshua começou a dar
risada, o que sem dúvida teria irritado Jillian ainda mais, se uma ordem
firme da mãe dos dois não tivesse silenciado todos na cozinha.
— Chega!
Todo mundo, inclusive eu, se virou para a bancada onde Rebecca
Mayhew ainda estava. Ela acenou a cabeça, primeiro para Jillian, depois
para Joshua.
— Você aí, termine a salada. E você, vá estudar logo para evitar mais
encrenca antes que eu faça você subir à força.
Com um grunhido de protesto, Jillian se virou de volta para a mesa e
começou a remexer nas folhas, toda enfezada, resmungando alguma coisa
sobre injustiças. Joshua deu um rápido aceno para sua mãe e então abaixou
a cabeça, como se estivesse tentando se esquivar da sua cara de reprovação.
Atrás de nós, ouvi seu pai conter uma risada.
Quando Rebecca se virou para encarar o marido, Joshua aproveitou o
momento para chamar minha atenção. Ele apontou com a cabeça para a
arcada do outro lado da cozinha. Entendi seu gesto como uma indicação de
que deveríamos sair dali.
Com o máximo de graça que consegui evocar, passei entre Jillian e
seu pai, tomando cuidado para não tocar em nenhum dos dois. Quase sem
pensar, parei ao lado de Jillian, esperando... não sei bem o quê. Quando
seus olhos não se voltaram na minha direção, fui até a arcada pela qual
Joshua já tinha passado e então me virei para dar uma última olhada na
cozinha.
Rebecca tinha acabado de pôr a mesa, passando a mão sem parar
pelos seus lindos cabelos. Jeremiah estava ao lado do balcão, olhando para
143
sua filha com uma paciência incrível enquanto sua filha terminava a salada.
Quando ela começou a resmungar de novo, ele só pegou um pedacinho de
alface da tigela e jogou nela. Jillian olhou para ele, toda indignada, mas logo
depois se acalmou. Ela abriu um sorrisinho e, sem desviar seus olhos, pegou
o pedaço de alface de seu ombro e o jogou de volta nele.
Sorri para todos eles e então me despedi com um breve aceno por
puro impulso.
Naquele momento, senti uma vontade tão grande estar ali com eles
que até doeu. A não ser pela presença sempre ameaçadora de Ruth, aquela
família representava uma coisa que eu desejava, uma coisa que eu
claramente tinha perdido.
Uma família.
Imaginei minha própria mãe, sentada sozinha naquela casa
minúscula; imaginei meu pai, vagando perdido pelo submundo. Enquanto
eu continuava ali, observando os Mayhews, uma névoa melancólica começou
a me envolver. Meus pensamentos então se tornaram tão repentinos quanto
sombrios.
Se Eli conseguir o que quer, pensei, você nunca mais poderá ver essas
pessoas a menos que esteja tentando arruinar suas vidas após a morte. E se
Ruth tiver razão, você tem menos de quarenta e oito horas para ficar com
Joshua. Então, menina fantasma, é melhor nem perder tempo sonhando em
fazer parte dessa família; você não conseguiu nem salvar a sua própria.
Balancei a cabeça com força, como se isso pudesse dispersar meus
pensamentos amargos. Eu não queria pensar nisso hoje, como também
tinha prometido para Joshua. Então, só me virei e passei pela arcada,
ansiosa para que o rosto de Joshua melhorasse um pouco o meu humor.
Como eu esperava, Joshua estava ali, encostado em uma parede entre
a passagem e a escada. Com um sorriso alegre, ele se desencostou da parede
e chegou mais perto de mim. Fiquei quieta e parada, por mais que a parte
racional do meu cérebro soubesse que não era preciso.
Agora a nem um passo de mim, Joshua chegou para frente, bem perto
do meu rosto, e então ficou ali por um instante. Após dez segundos de uma
deliciosa tensão, Joshua se inclinou de lado.
Mesmo não conseguindo sentir sua respiração na minha orelha, fechei
meus olhos e fingi que podia sentir seu hálito quente e aveludado na minha
pele. Pela primeira vez naquele dia, senti um arrepio de alegria.
— Você ficaria ofendida... — sussurrou —, ...se eu te convidasse para
subir até meu quarto comigo?
144
Abri os olhos e tentei não engasgar. Eu não sabia nada sobre minha
vida, mas tinha certeza que nenhum garoto tinha me convidado para o seu
quarto desde que morri. Mas é claro, há uma primeira vez para tudo. Então
respondi com a voz mais firme que pude.
— Imagine, claro que não. Quero subir, sim. Mas só desta vez. Não vá
achando que vai ser sempre assim.
— Não apostaria nisso se fosse você — Joshua se afastou e disparou
um sorriso malicioso para mim.
Revirei os olhos, mas pensando comigo mesma, Não fique de boca
aberta. Não dê nenhuma risadinha. Só finja que não é nada.
— Vamos lá, Joshua. — Soltei um suspiro, me esforçando ao máximo
para projetar uma aura de tranquilidade.
Ele deu risada e se virou para subir a escada. Nem toda a
―tranquilidade‖ que tentei passar foi o bastante para evitar que eu sentisse
outro arrepio enquanto o seguia.
145
Dezoito
Meu primeiro passo dentro do quarto de Joshua me transformou em
uma massa atordoada e pulsante de nervosismo. Mesmo com a porta
entreaberta, o quarto inteiro estava totalmente escuro a não ser pelo meu
sinistro brilho. Então, enquanto Joshua tateava entre as suas coisas,
escondi minhas mãos inquietas atrás das costas e rezei para que o meu
desconforto não ficasse visível ali no escuro.
Ouvi um clique e então a penumbra de uma lâmpada iluminou a sala.
Joshua estava do outro lado do quarto, com sua mão em uma pequena
luminária de vidro que parecia um antigo lampião de minerador. Ele olhou
para mim com um sorriso ansioso, mas sua expressão logo ganhou um ar
mais descontraído quando viu minha postura. Eu estava com as mãos quase
coladas atrás do corpo, balançando de leve para frente e para trás na ponta
dos pés.
Abri um sorriso tenso para ele. Um sorriso bem pouco convincente,
imagino.
— Tudo bem com você? — perguntou.
— Tudo. — Por algum motivo, minha resposta saiu parecendo um
gemido agudo. Por puro instinto, comecei a tossir para abafar esse som, e
Joshua caiu na gargalhada.
— Olha, Amélia, não estou acreditando muito em você.
— É só que... bom, é a minha primeira vez no quarto de um garoto. —
Em seguida, encolhi os ombros, tentando me justificar. — Eu acho...
Ele deu risada de novo e, com alguns poucos passos, atravessou o
quarto e me abraçou. Pegou minhas mãos, que ainda estavam atrás das
minhas costas, e me puxou para mais perto dele até ficarmos colados um no
outro.
Agora estávamos tão juntinhos quanto na vez em que nos beijamos.
Talvez até mais. Meu corpo todo parecia estar prestes a explodir, incendiado
146
por um fogo delicioso e incontrolável. Minha respiração acelerou até ficar
quase ofegante; e então, uma coisa totalmente inesperada aconteceu.
Respirei fundo e então fiquei quase tonta com uma repentina
sensação física de verdade.
Um cheiro. Um cheiro fantástico — doce e almiscarado — me invadiu.
Não era um aroma delicado, mas agradável mesmo assim. E vagamente
familiar.
Levei um momento até perceber que esse cheiro era o mesmo que eu
tinha sentido naquela tarde quando quase trombei com Joshua no refeitório.
Olhei para ele, encantada. Fiquei surpresa ao ver um sorriso tímido
como resposta. Com todo carinho, desenlaçou suas mãos das minhas e me
soltou.
Na mesma hora, o cheiro desapareceu. Respirei fundo de novo. Nada.
Só o vazio. Um vácuo. Expirei devagar, tentando guardar a memória daquele
aroma e ao mesmo tempo não deixar que meu fôlego saísse parecendo o
suspiro de decepção que estava ameaçando se tornar.
Por sorte, Joshua não notou. Ele se apoiou em um poste da cama e
então cruzou seus braços de novo. Mais uma vez, ele pareceu ansioso, talvez
esperando um comentário meu sobre seu quarto.
Juntei minhas mãos, com menos força desta vez, e comecei a olhar à
minha volta.
Como seria de se esperar em uma casa antiga assim, o quarto de
Joshua era pequeno, mas confortável. A maior parte do espaço era dominada
por sua cama escura de quatro postes. À minha frente, havia uma grande
janela voltada para o sul, com uma vista para a noite lá fora. Logo abaixo
dessa janela, ficava uma bancada larga de descanso, coberta com
aconchegantes almofadas azuis.
Vi também a coisa mais marcante do quarto: várias estantes de
madeira escura cheias de livros que cobriam as paredes. Elas ocupavam
todo o perímetro do quarto a ponto de ser impossível ver um centímetro
sequer da parede, a não ser em cima da cama e uma bordinha estreita em
volta da janela.
Apesar da quantidade de móveis ali dentro, o quarto parecia
estranhamente desentulhado. A única bagunça de verdade estava nas
estantes, que estavam literalmente transbordando, cheias de livros
enfileirados, com outros em cima dessas fileiras e mais outros ainda na
frente. Livros com capas de couro junto com outros de capa mole. Livros de
147
páginas gastas e já muito lidas ao lado de livros novinhos em folha. Uma
biblioteca inteira dentro do quarto de um garoto adolescente.
Fui até a estante mais próxima de mim e me virei para Joshua,
erguendo as sobrancelhas. Ele continuou só me observando em silêncio,
mas com um leve sorriso repuxando seus lábios. Sua cara serviu como uma
permissão para que eu passasse meus dedos pelas lombadas de alguns
volumes.
— Você tem muito mais livros do que eu tinha, Joshua.
Ele encolheu os ombros com um ar modesto.
— Só alguns.
— Eu conheço esses livros — murmurei, encantada. — Vários deles.
— Imaginei que sim.
Alguma coisa em seu tom fez com que me virasse de volta para ele.
Sua expressão havia se acalmado, especialmente seus olhos. O jeito que ele
estava olhando para mim agora... me deixou desconfortável e feliz ao mesmo
tempo. Não consegui pensar em nenhuma palavra para descrever como eu
estava me sentindo. Extasiada, talvez fosse a mais próxima.
Antes que eu pudesse perguntar no que ele estava pensando, Joshua
limpou a garganta e se acomodou melhor contra o poste da cama. Ele
descruzou os braços e enfiou uma de suas mãos no bolso do jeans enquanto
passava a outra pelos seus cabelos; sua clássica pose de desconforto. Essa
visão foi totalmente encantadora, assim como o rubor que de repente
dominou suas bochechas.
— E aí, o que você achou? — apontou com uma das mãos para o
quarto. Eu, por minha vez, abri um sorriso enorme e consegui arrumar
coragem o bastante para fazer uma confissão:
— Antes de dar minha opinião, só queria dizer que... bom, o seu
quarto nem se compara, na verdade.
— Não se compara com o quê? — perguntou, franzindo a testa.
Abaixei a cabeça e soltei um suspiro. Em seguida, olhei bem em seus lindos
olhos para responder.
— Com você — disse com uma voz firme surpreendente, até para os
meus ouvidos.
O rosto de Joshua foi tomado de novo por aquele olhar intenso. Vários
instantes se passaram, um mais tenso do que outro sob aquela atmosfera
carregada. Em seguida, ele ergueu seu braço bem devagar e me estendeu
sua mão. Estiquei a minha também e peguei a dele.
148
A sensação de seu toque incendiou minha pele. Desta vez, o calor se
espalhou mais rápido, como se cada novo toque intensificasse o efeito. E
desta vez, esses arrepios incendiários chegaram a lugares estranhos da
minha pele, a lugares que aceleraram minha respiração até ficar audível.
Joshua deve ter sentido algo parecido, porque fechou seus olhos e soltou um
gemido baixinho.
Essa foi a gota d’água para mim. Agarrei sua mão com força, quase
com violência, querendo que aqueles arrepios passassem. Após apenas
alguns segundos, comecei a sentir sua pele de verdade, áspera e quente
contra a minha.
Fechei meus olhos também. Ainda o segurando, soltei minha mão da
sua e a subi pelo seu braço até o ombro. Comecei a puxá-lo para mais perto
de mim até chegar a poucos centímetros do seu corpo. Por fim, repousei
minhas mãos em seu peito. E assim que perdi o contato com sua pele, voltei
a sentir apenas a dormência de sempre. Mas desta vez, valeu a pena, só por
ficar tão pertinho assim dele de novo. Continuei com os olhos fechados,
mesmo quando ele colou seu corpo ainda mais no meu.
— Amélia? — sussurrou, mexendo seus lábios bem ao lado da minha
orelha. — Posso perguntar uma coisa?
— Sim — disse, quase gaguejando.
Pode me perguntar qualquer coisa. Qualquer coisa!, gritei dentro da
minha cabeça. Eu quero beijar você de novo, sim. Não estou nem aí para os
riscos.
Joshua fez uma breve pausa e então...
— Você quer ouvir música?
Não era bem isso que eu estava esperando. Puxei a cabeça para trás e
olhei para ele. Joshua estava com um sorriso malicioso no rosto, como se
tivesse lido minha mente e evitado de propósito a pergunta que eu queria
que ele tivesse feito. Fechei a cara um pouco.
— Seu chato — murmurei. O sorriso de Joshua apenas cresceu. Eu já
estava quase dando um tapinha no peito dele por me provocar, mas então
reparei que sua respiração estava tão acelerada quanto a minha. Soltei um
suspiro. Enquanto ele continuasse se mostrando pelo menos um pouco
desnorteado com o nosso contato, acho que eu poderia perdoá-lo.
Tirei minhas mãos com todo cuidado de seu peito e me afastei.
Quando já estávamos a mais do que alguns centímetros um do outro, dei um
show de espreguiçadas e bocejos exagerados. Tentei parecer bem entediada,
149
toda indiferente. Joshua, é claro, não se deixou enganar, porque riu
baixinho da minha performance.
— Então a gente finalmente vai ser divertir um pouco? Ouvindo
música, né?
Joshua se sentou na cama e então deu um tapinha no lugar ao seu
lado sobre a colcha azul. Fiquei meio empolgada com a ideia de me sentar...
em sua cama... junto com ele, e então tentei ir até lá com o máximo de calma
possível. Nem imagino quanto eu estragaria todo o clima se escorregasse por
acidente de cima da cama e caísse no chão.
— Na verdade... — disse Joshua. — A música faz parte do meu plano
infalível.
Ergui uma sobrancelha.
— Seu ―plano infalível‖?
Ele acenou a cabeça e seu rosto se iluminou, todo empolgado. Ele
puxou uma das pernas para baixo do corpo e se virou mais para mim.
— A gente precisa saber mais sobre sua personalidade, certo? —
disse. Acenei a cabeça e então continuou. — Bom, o que poderia revelar
mais sobre sua personalidade do que seu gosto musical?
Repuxei o canto da minha boca, meio cética.
— Isso não parece meio simples demais?
Joshua balançou a cabeça, ainda sorrindo.
— Na verdade, não. A não ser que a gente encontre uma máquina do
tempo e volte pra 1999, nunca vamos ter como descobrir quem
você era. Então talvez seja melhor só descobrir quem você é agora. Afinal,
não é isso o que mais importa de qualquer jeito?
Pisquei os olhos, surpresa.
— Olha... bom, essa pode mesmo ser uma ideia genial, Joshua.
Ele encolheu os ombros de novo.
— Não é só porque eu não sei resolver equações diferenciais que sou
um inútil também!
Dei risada e então espelhei sua postura, cruzando minhas duas
pernas sob meu corpo.
— Mas e aí? Como a gente vai fazer?
— Bom, vou dar uma de DJ e você vai me dizendo do que gosta.
— Entendi — disse com um aceno firme, refreando arrepiozinhos de
empolgação.
150
— Sei lá... talvez você reconheça alguma coisa. Desde que a gente não
descubra que você curte death metal, acho que dá para descartar a hipótese
de você ser uma satanista em potencial.
— Tá bom, só não me julgue se eu curtir! — disse, rindo.
Ele deu risada e então se inclinou até seu criado-mudo para mexer em
alguma coisa. Estiquei o pescoço para ver melhor o que era. Parecia ser uma
caixinha de plástico com uma tela brilhante em cima de um pequeno
aparelho de som.
— Que coisa é essa?
Joshua parou o que estava fazendo sem soltar daquela caixinha e
então me olhou com um ar intrigado por cima do ombro.
— Você nunca viu um MP3 player antes?
— Um o quê? — um tom defensivo irrompeu na minha voz. — Morri
em 1999, lembra?
— Tudo bem — Joshua me abriu um sorriso reconfortante e voltou a
mexer no aparelhinho. — Não lembro se essas coisas faziam muito sucesso
nessa época.
— Provavelmente não entre meninas pobres de Oklahoma —
resmunguei. Joshua apenas acenou a cabeça, distraído demais com o que
estava fazendo para responder em voz alta.
O aparelho fez uns zunidinhos sob as mãos de Joshua e então as
notas cristalinas de uma música ecoaram pelo quarto. Concluí que aquilo
estava vindo dos alto-falantes e do ―MP sei lá o quê player”.
— Me diga o que você acha — murmurou Joshua enquanto se
encostava em seu travesseiro.
A música começou com uma guitarra tranquila, dedilhando uma
melodia triste. Em seguida, a voz de um jovem entrou no ritmo, com um
sotaque sulista e meio arrastado. Enquanto ele cantava, batidas de uma
bateria e uma guitarra mais intensa se fundiram com sua voz. A canção foi
ganhando corpo até eclodir em uma explosão de melancolia: como os
lamentos de alguém triste, mas também enfurecido ao mesmo tempo. Por
fim, a música foi chegando ao final, e eu soltei um leve suspiro.
— Nunca ouviu essa? — perguntou Joshua.
— Não, nunca. Mas gostei.
— É uma das minhas favoritas. — Joshua ficou com uma expressão
estranha enquanto me via ouvir aqueles últimos acordes. Parecia estar
quase orgulhoso por a gente ter o mesmo gosto. Abri um leve sorriso ao
pensar nisso.
151
— O que mais você tem aí? — perguntei.
— Vamos ver... — ele mexeu no aparelhinho de novo até encontrar
algo interessante. — Isso é do começo dos anos 2000. A Jillian gosta de ouvir
essa quando a gente sai de carro. É o que ela chama de ―clássico‖, o que é
meio irônico, se você parar para pensar.
As caixas de som retumbaram com um baixo. Depois de algumas
batidas fortes de bateria, a voz de uma garota entrou com uma melodia
quase inaudível sob os outros instrumentos. Ela não era a melhor cantora
do mundo, mas tinha uma voz rouca que alguém poderia até chamar de
sexy. Torci o nariz cada vez que ela saía do tom.
— Não — disse eu após algumas repetições do refrão. — Não conheço
e não gostei.
— Graças a Deus — bufou Joshua, pulando para o final da música
para o meu alívio.
— Pior que death metal, né? — comentei com um sorrisinho
brincalhão.
— Pois é. — Ele deu risada. — Se você tivesse gostado disso, acho que
eu poderia até acabar entrando para a campanha exorcista da vó Ruth.
— Engraçadinho — disse eu, enquanto Joshua tentava encontrar
alguma outra coisa em seu MP3 player para a gente ouvir.
— Vamos lá. Esta é do final dos anos 90. É de uma banda de rock que
eu ouvia quando era criança. Gosto muito dessa música, mas era novo
demais na época para lembrar se ela fez sucesso ou não. — Joshua deu mais
um clique no aparelhinho e então se virou de volta para me observar.
Essa começou mais ou menos como a primeira, com alguns acordes
repetidos de guitarra. Logo depois, a bateria e a voz de um homem — mais
velho do que o da outra, mas com o mesmo tom arrastado — entraram na
música. Quando o homem cantou mais alto, a guitarra o acompanhou. A
melodia foi ficando intensa e alegre. Com isso, me lembrei de como tinha me
sentido no carro de Joshua enquanto íamos até sua escola. Livre, como se
estivesse voando.
Em seguida, aquilo me lembrou de outra coisa.
Lá pela metade da música, bem no clímax, o cenário à minha volta
começou a reluzir e então se transformou.
Quando a imagem se estabilizou, eu já não estava mais no quarto de
Joshua. Estava em algum outro quarto, de frente para uma janela aberta
com vista para um quintal iluminado pelo sol. Minhas mãos estavam
apoiadas em um batente de madeira, sentindo a textura rústica das lascas
152
de sua tinta branca descascando. Uma brisa morna que vinha de fora
banhou meu rosto, com um leve arzinho frio, prometendo o outono que
estava por vir, mas ainda cálida pelo fim do verão. Em algum lugar atrás de
mim, um rádio estava tocando a mesma música que eu tinha acabado de
ouvir no quarto de Joshua. Enquanto o homem entoava sua alegre canção,
abri um sorriso, balançando ao som da melodia. Livre, como se estivesse
voando.
De repente, essa memória se esvaiu.
Vestígios da luz desse flashback continuaram dançando pelos meus
olhos, criando manchas escuras estranhas, como se eu tivesse olhado direto
para o sol. Levei alguns segundos para conseguir voltar a ver direito — a ver
Joshua me observando com um ar ansioso. Quando meus olhos voltaram ao
normal, um sorriso começou a se abrir no meu rosto.
— Conheço essa! — exclamei. — Conheço essa música! Já ouvi uma
vez, dentro de uma casa... da minha, acho.
— Legal! — comemorou Joshua, batendo as mãos nos joelhos. Em
seguida, se inclinou mais para perto de mim e sussurrou: — Sabe, acho que
uma menina que gosta tanto das mesmas músicas que eu não pode ser tão
má assim.
— Vamos torcer para que não — murmurei em resposta.
— Não preciso torcer. Tenho certeza.
Eu estava só brincando — nós estávamos brincando — , mas então
percebi que acreditava do fundo do meu coração no que ele tinha acabado de
dizer.
Eu não era má. Ruth estava errada. Eli estava errado.
Não que eu tivesse muitas provas: só uns acordes de guitarra,
algumas memórias desconexas e um punhado de momentos com aquele
garoto. Mas então tive essa mesma certeza. Acreditei.
Me concentrei melhor em Joshua. Mesmo não tendo como saber no
que eu estava pensando, ele olhou bem nos meus olhos. Depois de mais
alguns segundos desse silêncio ensurdecedor, Joshua abaixou a cabeça e
ficou olhando para sua colcha. Ele começou a parecer nervoso, puxando um
fio solto do seu jeans. Sentindo essa mesma tensão, fiquei remexendo na
minha saia.
Mas nesse silêncio, percebi algumas mudanças sutis. Eu não
conseguia falar com Joshua, mas era como se tivéssemos acabado de
compartilhar um momento muito íntimo. Mais íntimo do que qualquer coisa
pela qual já tínhamos passado até então.
153
Joshua limpou a garganta e se virou para mexer em seu aparelhinho
de novo, talvez em uma tentativa de aliviar a tensão. Ele pôs para tocar uma
música que reconheci quase na mesma hora: uma suave melodia de violino.
Vivaldi. Abri um leve sorriso enquanto Joshua se virava para se acomodar
na cama de novo.
— Gostei dessa.
— Pois é, imaginei, porque gosto muito também. — Ele me abriu um
sorriso tímido. — É legal para dormir.
Ao ouvir isso, franzi a testa e esbocei levantar da cama.
— É para eu ir embora...?
— Não — disse Joshua, estendendo a mão para mim. — Fique aqui.
Converse comigo.
Fiquei mais do que feliz em aceitar seu convite. Me acomodei melhor
em cima da colcha e puxei minhas pernas embaixo do meu corpo.
Passamos horas conversando, sentados juntinhos na cama, parando
apenas quando ouvíamos alguém de sua família passar pela porta. Ao longo
da conversa, começamos a mudar de posição. Em um certo momento, ele
tirou os tênis e se esticou inteiro na cama. Eu me deitei ao seu lado, apoiada
em cima do meu cotovelo, enquanto suas pálpebras começavam lentamente
a pesar. Por fim, já bem depois das duas da manhã, Joshua se virou para
desligar sua luminária na mesinha ao lado da cama e então encostou a
cabeça no travesseiro e fechou os olhos.
Eu ainda podia ver seu rosto no escuro, só o bastante para observá-lo
quase caindo no sono. Antes que Joshua apagasse de vez, queria perguntar
uma última coisa para ele.
— Joshua? — sussurrei.
— Hum...?
— Você nunca me explicou por que preciso chamar você de Joshua se
todo mundo chama você de Josh.
— Não? — sua resposta saiu abafada, em grande parte porque,
enquanto falava, ele se virou de lado para mim. Só precisaria chegar um
pouquinho mais perto para se encostar em mim, para incendiar toda a
minha pele de novo.
Balancei a cabeça, me esforçando para não pensar naquilo.
— Não, não explicou.
Por sorte, Joshua já estava quase dormindo, porque claramente não
percebeu o tom agudo ridículo com o qual minha voz saiu. Dei uma bronca
154
em mim mesma dentro da minha cabeça, me mandando parar de agir feito
uma idiota sempre que ele chegava perto de mim.
A resposta murmurada de Joshua dispersou meus pensamentos.
— As pessoas que mais gosto no mundo... elas me chamam de
Joshua.
— Então... sou uma dessas pessoas? De quem você mais gosta?
Aquele tonzinho agudo idiota voltou a se manifestar nesse meu
sussurro ansioso.
— Aham... — um leve sorriso repuxou os lábios de Joshua. Ainda de
olhos fechados, ele pôs um braço em volta da minha cintura. Não senti nada
além de uma pressão fraca, mas... ainda assim, nossa! Joshua estava com
seu braço em volta de mim. Na cama.
Dei uma tossida para melhorar minha voz e então me preparei para
disparar a pergunta mais idiota que eu poderia fazer.
— Hã... tenho mais uma pergunta. Uma meio estranha.
— Pode falar — disse ele, sem abrir os olhos.
— É bem estranha mesmo — alertei.
Ele grunhiu e abriu um olho para mim. Ergueu uma sobrancelha com
um ar sonolento, como se estivesse cansado demais até para fazer só isso.
Soltei um suspiro e fiz logo a pergunta.
— Só queria saber... você sente o meu cheiro?
— Hã? — Ele abriu os dois olhos agora, ainda que não muito.
— É que... eu não sinto o cheiro de nada em geral — gaguejei,
envergonhada. — E eu, hã... senti seu cheiro hoje. Duas vezes.
— Sério? — Ergueu a sobrancelha de novo. — E como é?
— É gostoso.
— Hum... sabe de uma coisa estranha? — bocejou, fechando os olhos
de novo. — Não sinto seu cheiro quase também. Só de vez em quando.
— E como é? — repeti sua pergunta, tentando manter o tom tranquilo
enquanto rezava para não feder a ectoplasma, árvores mortas ou qualquer
coisa assim.
— É gostoso — murmurou. — Docinho. Tipo pêssego, ou nectarina.
No escuro e com os olhos fechados, Joshua não conseguiu ver o
enorme sorriso que se abriu no meu rosto.
— Que legal — sussurrei antes de me acomodar ao seu lado, ainda
aconchegada sob seu braço.
155
Dezenove
Enquanto a noite se transformava em manhã, e Joshua continuava
dormindo, voltei a pensar, ainda que contra minha própria vontade, em Eli.
Levei Ruth bem a sério quando ela disse que iria ―acabar comigo‖. Ela
e suas amigas — outras videntes, sem dúvidas — queriam pôr um fim no
meu pós-vida e eu sabia disso. Então precisava encontrar um jeito de me
defender delas, e rápido. Mas eu estava com a estranha sensação de que não
conseguiria fazer nada até descobrir mais informações sobre a minha
natureza espectral. Precisava entender como os fantasmas interagiam com o
mundo dos vivos. Precisava entender meus pesadelos, e talvez minha própria
morte. Precisava saber se Eli tinha aprisionado meu pai no submundo junto
com aquelas outras almas desesperadas.
Como Ruth não tinha me explicado nada ontem, me restava uma
única outra fonte. Por mais que eu odiasse admitir, e apesar de todo o
cuidado que eu precisaria ter ao abordá-lo, Eli devia ter as respostas para
algumas das minhas perguntas mais urgentes. As que
eu precisava responder antes que Ruth e suas amigas tornassem essa tarefa
simplesmente impossível.
Quanto mais pensava nisso, mais se firmava minha determinação.
Quando já estava quase amanhecendo, cheguei perto do ouvido de Joshua.
— Joshua? — sussurrei.
— Hum...?
Ao ver seu rosto tão tranquilo, decidi arriscar uma abordagem mais
carinhosa.
— Joshua, querido, preciso fazer uma coisa hoje.
— Hum...?
— Preciso descobrir mais algumas coisas. Não sei quanto tempo
essa... coisa... vai levar, mas acho que é importante. A gente não tem como
enfrentar os outros videntes se não souber tudo o possível, não é?
156
— Claro — grunhiu. Apesar disso, no entanto, ele claramente ainda
estava dormindo.
— Que bom que você concorda — sussurrei, sorrindo. — Você pode
me encontrar aqui, hoje à noite, mais ou menos quando estiver
escurecendo?
— Aham...
Meu sorriso cresceu enquanto ele franzia a testa. Com esse gesto,
pareceu ter levado a promessa a sério, mesmo dormindo. Passei mais um
instante olhando para ele e então cheguei mais perto. Com todo cuidado, dei
um beijo em sua testa, bem acima das sobrancelhas.
O calor desse leve toque se espalhou pelos meus lábios,
transformando-os em dois carvões em brasa. Fechei os olhos por um
instante, me deliciando com essa sensação. Em seguida, levantei da cama.
Atravessei o quarto e parei na porta, que Joshua tinha deixado aberta, e
então olhei para ele.
— Até mais — sussurrei. Mordi meu lábio e, em um instante da mais
pura impulsividade, complementei: — Aliás... acho que eu... tipo... amo você.
— Também — murmurou Joshua, todo grogue. — Amo.
Ele estava dormindo, e essas palavras não significavam nada, sabia
muito bem. Mas isso não me impediu de abafar um gritinho de alegria
enquanto saía do quarto. Precisei me esforçar para não descer a escada
pulando até a cozinha.
Foi só quando cheguei à porta da cozinha que meu humor afundou.
Na verdade, ―afundou‖ seria uma expressão meio delicada demais. Acho que
―mergulhou‖ seria a palavra mais adequada à situação.
Porque curvada sobre uma revista em cima da bancada, folheando as
páginas tranquilamente, estava Ruth.
Quando entrei na cozinha, a cabeça de Ruth continuou abaixada,
enquanto os raios brilhantes do começo da manhã iluminavam seu cabelo.
Ela parecia não ter reparado em mim. Minha esperança era que se eu
conseguisse atravessar a cozinha na ponta dos pés até o corredor dos
fundos, talvez pudesse passar despercebida. Mas não fiquei nada surpresa
quando a voz de Ruth me deteve.
— Sabe... — disse ela, sem tirar os olhos da revista. — Achei que tinha
deixado bem clara minha opinião sobre sua amizade com meu neto. — Mordi
meu lábio inferior com força, sem dizer nada. — Mas mesmo assim... —
continuou Ruth sem esperar qualquer resposta. — Aqui está você.
157
Ela virou a última página para fechar a revista e então por fim ergueu
a cabeça, concentrando seus gélidos olhos em mim. Por um instante, não fiz
nada. Não reagi. E então, bem devagar, acenei a cabeça.
— Sim. Aqui estou.
Ruth soltou um suspiro.
— Posso saber por quê?
Armei minha cara com o que eu esperava ser uma expressão firme.
— Porque fui convidada, Ruth.
— Não pelas pessoas que importam.
— Não tenho medo de você — disse eu, me dando um gigantesco
parabéns por dentro por não ter gaguejado.
Ruth se levantou na mesma hora, com as mãos firmes na borda da
bancada e um sorriso seco nos lábios.
— Mas deveria ter — sussurrou.
De repente, senti uma violenta dor de cabeça, parecida com a que
tinha sentido ontem em frente à igreja.
Parecida, mas não idêntica. Porque dessa vez foi muito, muito pior.
Minha cabeça quase explodiu, e uma dor brutal desceu pelo meu
pescoço e se espalhou atrás dos meus olhos, que fechei com força para me
defender, mas esse esforço não me trouxe nenhum alívio. Depois de mais
alguns segundos, não aguentei e acabei caindo de joelhos, com as duas
mãos nas têmporas, como se eu pudesse conter aquela dor à força.
A dor de cabeça continuou a piorar enquanto me encolhia, explodindo
em clarões ofuscantes de luz atrás dos meus olhos. Esses clarões pulsavam
como luzes estroboscópicas no meu cérebro, um após o outro até que então,
de repente, eles se transformaram.
Em vez de clarões de luz, comecei a ver imagens, passando de novo
em rápida sucessão sob minhas pálpebras, como uma espécie de montagem,
indo tão rápido de uma imagem para outra que mal conseguia ver seus
detalhes: as rugas no canto dos olhos do meu pai; um campo de grama alta
balançando ao vento; um fio do cabelo escuro da minha mãe; o brilho de um
raio reluzindo contra alguma coisa de metal. As imagens continuaram a
passar zunindo pela minha cabeça até eu não conseguir entender mais
nada.
— Pare... — gemi, cravando os dedos com força entre os meus cabelos,
me causando dor também.
158
Para o meu espanto, a dor de cabeça passou na mesma hora. As
imagens desapareceram e a dor evaporou de repente, como se nunca
tivessem sequer me atingido.
Sem tirar minhas mãos da cabeça, abri os olhos e me virei para Ruth.
Ela ainda estava me encarando com seu sorriso tenso, mas agora, seus
olhos escuros reluziam com uma energia potente e maliciosa.
— Sua vida acabou de passar diante dos seus olhos, minha querida?
Isso é só um gostinho do que está à sua espera amanhã à noite —
sussurrou. Ruth apontou com sua cabeça para o corredor atrás de mim. —
Sua presença não será mais permitida nesta casa. Agora, suma daqui.
Nem precisei ouvir mais nada. Eu me levantei em desespero, quase
caindo no chão, e fugi às pressas pelo corredor.
Tive um breve momento de pânico, sem saber como iria sair daquela
casa sem a ajuda de ninguém. No entanto, ao olhar para o pé da porta dos
fundos, me dei conta de que essa ajuda já tinha sido providenciada.
No chão, apoiado de pé entre a porta e o batente, estava um livro
enorme. A julgar pela sua capa surrada de couro, devia ser um livro antigo e
provavelmente valioso. Havia uma coroa de ervas e flores secas enrolada à
sua volta para fechá-lo. Em letras douradas, pude ler de relance as palavras
A BÍBLIA SAGRADA rabiscadas na capa.
Obra de Ruth, sem dúvida. Algum tipo de talismã de proteção contra
qualquer coisa sinistra que eu pudesse ter planejado. E do jeito que estava
agora — encostado contra a porta, deixando só o espaço suficiente para
alguém passar —, aquele livro também passava uma mensagem bem clara.
Suma daqui, menina morta.
— Seu pedido é uma ordem, Ruth — murmurei, trêmula, e então
escapei pela abertura.
Cheguei à margem do rio e fiquei andando de um lado para o outro,
sem querer chegar perto demais da água, mas também sem querer ficar
muito longe também. A área em si estava vazia a não ser por mim e alguns
poucos grilos que trilavam aqui e ali.
— Estou aqui — gritei para o alto, ouvindo minha voz ecoar contra a
superfície do rio. — Você disse que eu iria voltar para conversar, e você tinha
razão. Então vamos conversar logo.
Fui respondida apenas pelo farfalhar das folhas. Soltei um suspiro e
comecei a marchar com mais força de um lado para o outro.
159
— Oi? Tem alguém aí? Vou ter que fazer uma dança da chuva ou
alguma coisa assim?
— Só se você quiser que chova.
Um ar gelado caiu sobre mim como uma onda, subindo pelo meu
corpo até por fim chegar à pele mais sensível dos meus ombros e do meu
pescoço. Quase estremeci, mas minha vontade de mostrar uma postura
confiante a Eli foi maior, então tentei manter meu rosto sem expressão
alguma, apesar de tudo, enquanto me virava.
Eli estava ao lado do rio, onde até instantes atrás, não havia nada
além de grama e barro. Ele cruzou os braços — espelhando a posição que eu
sem querer havia assumido assim que ele surgiu — e se inclinou para frente
com um sorriso conspiratório.
— Oi, Amélia.
— Oi, Eli — respondi com um tom claramente menos descontraído.
— E então... — disse, mal contendo a diversão em sua voz. — O que
eu posso fazer por você nesta bela manhã?
Ao ver seu sorriso presunçoso, perdi minha última gota de confiança.
Mas me forcei a limpar a garganta e endireitar as costas antes de falar.
— Tenho algumas perguntas para você.
— Como quais?
A curiosidade genuína em seu tom, que em geral era todo arrogante,
me surpreendeu. Será que nem ia ser tão difícil quanto eu imaginava? Essa
reviravolta inesperada me desnorteou, e então disparei a primeira pergunta
que veio à minha mente.
— Como você chegou aqui tão rápido? Não tinha ninguém aqui até
segundos atrás.
Eli encolheu os ombros.
— Eu só me materializei.
— Você o quê?
Ele pôs as mãos nos bolsos de seu jeans apertado e chegou mais perto
de mim.
— Você nunca reparou no que acontece quando fica muito nervosa ou
empolgada? Que você pode viajar pelo tempo e pelo espaço à vontade?
Franzi a testa.
— Hum... não exatamente.
Ele parou a um só passo de mim, fazendo “tsc, tsc”.
— Você deveria tentar reparar mais nessas coisas, Amélia.
160
Fechei um pouco a cara. Lá estava aquele tom arrogante que eu já
conhecia tão bem.
— Por que você não tenta ser um pouco menos metido, Eli? Porque
senão, vou embora.
Ele fez “tsc, tsc” de novo.
— Você não me chamou aqui?
— Sim, mas também posso mandar você embora.
— Não duvido disso. — Em seguida, seu sorriso se esvaiu, e ele
inclinou sua cabeça para me encarar com uma expressão um tanto
intrigada. — Sabe, estou bem interessado mesmo em ver do que você é
capaz.
— Como assim?
— Bom — disse ele. — Todos nós temos poderes... e quando digo
―nós‖, estou falando dos mortos. Você não é nenhuma exceção, tenho
certeza.
— Poderes? Tipo conseguir viajar pelo tempo e pelo espaço à vontade?
Ele acenou a cabeça.
— Sim, esse é um dos poderes mais comuns. Mas na verdade, Amélia,
isso não deveria ser nenhuma novidade para você. Já vi várias
desmaterializações suas, sempre que você sumia.
Pisquei os olhos, totalmente surpresa. Do que diabos ele estava
falando? Nunca tinha me ―desmaterializado‖, ou seja lá do que ele estivesse
falando.
Mas em seguida, de repente me toquei.
Os pesadelos.
Será que meus pesadelos na verdade seriam desmaterializações? Algo
talvez até controlável por meio de emoções extremas? Essa poderia ser uma
das respostas que eu procurava então.
Olhei para Eli, sem conseguir esconder minha empolgação.
— O que mais a gente pode fazer?
Amaldiçoei na mesma hora minha própria estupidez.
Ao ver o brilho em meus olhos, Eli sorriu. E então, naquele instante,
algo ficou muito claro em seu rosto: ele sabia que estava por cima. Eu queria
seu conhecimento, desesperadamente, e então dependia dele. Pelo menos
por enquanto.
— Se você quiser mesmo que eu responda suas perguntas... — disse
ele com aquele tonzinho arrogante ainda em sua voz — ...minha ajuda
obviamente virá sob certas condições.
161
— Obviamente.
Eli acenou a cabeça, e de repente senti que esse gesto havia selado
algum tipo de acordo. Um que eu não sabia bem se queria mesmo fazer. Mas
já era tarde demais. Eli juntou as mãos atrás das costas e se virou para sair
caminhando em direção ao bosque.
— Calma — gritei, apesar dos meus receios. — Achei que a gente
tinha um... trato?
Eli riu alto, mas não parou de andar.
— É claro que temos. E esse trato acabou de ganhar uma cláusula de
mobilidade. Então é melhor me acompanhar.
Enquanto Eli entrava entre as árvores, a margem do rio escureceu na
mesma hora atrás dele. Aparentemente sem nenhum comando seu, o lugar
se transformou no submundo. Mas, por enquanto, as figuras negras
esvoaçantes e as almas angustiadas ainda não apareceram, deixando só um
gélido cenário reluzente à minha volta.
Lancei um olhar hesitante por cima do ombro para o rio escuro como
piche que se arrastava até a ponte. A princípio, achei que aquele buraco
negro não estava visível hoje. No entanto, ao olhar melhor agora, vi um
pontinho de escuridão surgir embaixo da ponte e então começar a crescer,
com suas bordas negras se desdobrando para todos os lados. Por fim, o
abismo parou de se expandir, mas mesmo parado, aquilo pulsava e se
remexia como uma criatura agachada, pronta para atacar. Depois de uma
última temerosa olhada para trás, estremeci, e então me virei para frente de
novo.
— Amélia Elizabeth Ashley — sussurrei para mim mesma. — Você é
uma idiota.
E então, segui a figura mais sinistra que já tinha visto para dentro
daquela floresta escura e sombria do submundo.
162
Vinte
Quer ouvir uma história, Amélia?
Já estávamos andando em meio àquele bosque coberto de gelo há pelo
menos vinte minutos, trilhando um caminho torto e aparentemente errático
entre as árvores. O cenário foi ficando cada vez mais estranho — arbustos
congelados e espinhentos como garras arranhavam meus calcanhares; um
musgo quase roxo cobria todas as superfícies expostas; e enormes flocos
borralhentos, que poderiam ser tanto neve, quanto de cinzas, começaram a
pairar à nossa volta — no entanto, Eli ainda não tinha dito para onde
estávamos indo.
Na verdade, Eli não tinha dito nem uma palavra sequer durante essa
caminhada, nem mesmo em resposta às minhas perguntas iniciais.
Enquanto eu observava suas costas — sempre viradas para mim e um metro
e meio à minha frente — , fui ficando cada vez mais irritada. Soltei alguns
suspiros de incômodo e até fiz um ou outro “aham”. Ainda assim, minha
performance não arrancou nem um pio de Eli.
Por isso mesmo, quando ele por fim se pronunciou, cheguei a dar um
pulinho de surpresa. Levei um instante até me recompor o bastante para
responder sua pergunta, mas quando consegui, minhas palavras saíram
abertamente carregadas de impaciência.
— Depende, Eli. Essa história é relevante?
— O que seria relevante para você? — rebateu Eli.
Soltei um suspiro tão alto que pareceu mais um grunhido. Eli parou
de andar e se virou para mim. Ele pôs as mãos nos bolsos e me encarou nos
olhos só por um instante. Em seguida, desceu seu olhar até meus pés e
então voltou a erguê-lo lentamente, analisando meu corpo, me fazendo
remexer de desconforto.
— Tudo bem, me conte a história — disse, seca. — Quem sabe assim
você para de ser tão inconveniente.
163
Ele ergueu a cabeça com um gesto rápido e então me olhou bem nos
olhos.
— Ah, mil perdões. Eu estava sendo inconveniente? — ainda olhando
feio para ele, repuxei o canto da boca com um ar de reprovação. — Tudo
bem. — Voltou a me analisar, mas dessa vez, com um ar menos malicioso.
Em seguida, acenou a cabeça para mim. — Bom, como deixei você
incomodada, que tal se me desculpar te contando uma coisa sobre mim?
— Só se isso tiver alguma coisa a ver com o que quero saber.
Um sorriso repuxou seus lábios, e ele então se virou para continuar
andando em frente pelo bosque. Hesitei um pouco, ainda incerta, antes de
começar a segui-lo de novo.
— Eli? — disse.
Ele continuou calado por um instante e então respondeu:
— Você nunca se perguntou por que estou vestido assim? Com o que
eu trabalhava?
Analisei as costas de sua camisa preta esvoaçante.
— Bom, pelo visto, parece que você não era um contador.
Quando lançou um rápido olhar para trás sobre seu ombro, Eli
pareceu estar rindo.
— Nisso você tem razão. Enfim, se eu soubesse o que iria acontecer
comigo na noite em que morri, teria posto uma calça mais confortável. Ou
pelo menos abotoado a camisa. — Levando em conta a minha própria roupa,
nem podia dizer nada. Limpei um floco cinzento que tinha caído na minha
saia, que não era bem de cinza, mas sim de neve mesmo, acho, e então
acenei a cabeça para Eli. — Mas quando você acaba de sair de um show em
1975... — continuou — ...a última coisa que passa pela sua cabeça é trocar
de roupa, isso posso te garantir.
— Você morreu depois de ver um show?
— Na verdade, Amélia, morri antes de fazer um show.
Cambaleei um pouco de surpresa e então parei por completo.
— Como é que é?
Eli parou também. Depois de se virar para mim, ele me abriu um
sorriso convencido.
— Quando vivo, eu era vocalista de uma banda de rock. A gente
estava indo muito bem, aliás. Começando a ganhar fãs... e até negociando
com uma gravadora.
164
Só meus olhos se mexeram, analisando as roupas de Eli de novo:
aquela calça superjusta, o cabelo desgrenhado, os vários colares sobre seu
peito nu.
— Então... você era um roqueiro famoso?
— Eu estava a caminho de me tornar um roqueiro famoso. Eu até já
tinha minhas próprias groupies. — Seu sorriso se alargou. — A gente chegou
a ser contratado para um show bem grande na Cidade de Oklahoma, mas
nosso ônibus acabou quebrando aqui em Wilburton antes de chegar lá.
— Nossa — disse, impressionada, ainda que a contragosto. Fiz uma
pausa e então disse: — Bom, imagino que você nunca tenha chegado a fazer
esse show.
Eli não disse nada, só ergueu uma sobrancelha, confirmando meu
palpite. Nesse instante, sua fachada orgulhosa vacilou. Não tenho bem
certeza, mas acho que foi a primeira vez vi Eli com um ar melancólico, como
se estivesse chateado mesmo pela fama e a fortuna que poderiam ter sido
suas.
— Mas e aí... o que aconteceu? — perguntei.
Eli fez uma careta ao relembrar o corrido.
— Nosso motorista insistiu em cortar caminho no meio da noite,
passando por uma ponte velha e vagabunda. — Franziu ainda mais a testa,
como se estivesse tentando se lembrar de tudo. — E enfim, quando o ônibus
enguiçou no meio da ponte, a gente decidiu descer para ajudar o sujeito com
o motor. Mas a gente não tinha muito o que fazer. Todo mundo já tinha
bebido muito, é claro, e usado algumas outras coisinhas também. Não
demorou muito para a gente... ficar bem louco. Até que alguém teve a
brilhante ideia de pular do alto da ponte.
— Você o quê? — perguntei, surpresa. — Você pulou do alto daquela
ponte?
Eli riu alto, em um estranho contraste com sua história.
— Bom, Amélia — disse. — Obviamente não saí voando. E esse foi o
desagradável desfecho da minha vida, por assim dizer.
Passamos mais alguns instantes em silêncio enquanto nós dois
assimilávamos suas palavras. Minha repulsa por Eli diminuiu um pouco
graças a essa última revelação: ele tinha morrido no mesmo lugar terrível
que eu. E agora, nós dois estávamos presos entre o mundo dos vivos e seja
lá o que existisse fora deste limbo escuro e gelado.
Franzindo a testa, olhei para o musgo congelado sob meus pés.
165
— Sabe, Eli, não me lembro de muita coisa. Mas vou ser sincera com
você... não me lembro mesmo de nenhuma história sobre algum roqueiro que
morreu pulando daquela ponte.
Eli bufou com um ar orgulhoso, e eu ergui a cabeça. Pelo canto
repuxado de sua boca, notei que eu o tinha ofendido.
— Como disse, Amélia, eu estava a caminho de me tornar um roqueiro
famoso — explicou, falando rápido. — Quando morri, poucas pessoas me
conheciam ou eram minhas fãs. Mas é uma coisa que ia acontecer... tenho
certeza.
Por algum motivo estranho, fiquei me sentindo meio culpada por ter
ferido seu orgulho, pelo menos nesse assunto. A história da vida de Eli era a
única coisa que o fazia parecer... bom, humano.
— Desculpa, Eli, sério — disse com um levíssimo sorriso. — Aposto
que você ia estourar mesmo. Ficar superfamoso e tudo. — Quando ele
pareceu se acalmar um pouco, voltei a pressioná-lo. — Mas continue, Eli. Me
conte o que aconteceu depois que você morreu.
Ele soltou um suspiro e voltou a concentrar seus olhos nos meus.
— Acredite se quiser, os primeiros anos do meu pós-vida foram muito
menos tranquilos do que os seus. Esses anos foram meu castigo, tenho
certeza. Morri com raiva... não do mundo, mas de mim mesmo, por ter
perdido todo aquele sucesso. Todo aquele poder. Eu queria atacar os vivos
em vez de pedir a ajuda deles, como você fez. Acho que acabei virando uma
assombração. Descobri que se eu usasse minhas emoções mais fortes, podia
afetar o mundo dos vivos. Mexer nas coisas até. Conseguia quebrar janelas,
derrubar luminárias. Enfim, infernizar as pessoas em geral.
— Quem diria, né? — murmurei.
— Pare de me interromper — rebateu Eli, mas com um leve sorriso. —
Passei uns anos assim. Até eles virem atrás de mim, claro. — Alguma coisa
no jeito como ele disse ―eles‖ me deu um calafrio. — Não sei o que viram em
mim para achar que eu era digno — continuou Eli, sem perceber meu
desconforto. — Mas um belo dia, enquanto estava andando de um lado para
o outro pelo rio, eles apareceram para mim. Me explicaram todas as coisas o
que eu sempre quis saber; minha natureza enquanto um fantasma, meus
poderes e o meu objetivo. Eles me disseram que eu era especial... talvez até
essencial para a missão deles. Como já disse antes, eles me contrataram
para um trabalho muito importante e me deram controle sobre este lugar.
Eles fizeram com que eu voltasse a serpoderoso. — Apontou com um gesto
166
grandioso para as árvores tortas e reluzentes à sua volta e para o céu escuro
e mortiço sobre nós, e então estremeci.
— Um campo gelado só para você?
— O frio faz parte do mundo deles, Amélia. E do nosso.
— Do seu — o corrigi com cuidado.
— Nisso, você está errada — rebateu.
— Ah, é? E quanto ao que exatamente estou errada?
— Quanto à solidão deste lugar. Ele foi feito para ser compartilhado,
sabe.
— Com quem?
— Meus mestres sempre quiseram que dois fantasmas trabalhassem
juntos, trazendo almas para este mundo.
— Dois fantasmas? — ergui uma sobrancelha e olhei com um ar
preocupado para o bosque à nossa volta, onde não havia mais ninguém. Eli
queria que me juntasse a ele, é claro, mas só então me dei conta de que ele
devia estar cuidando desse trabalho há muito tempo sem ajuda nenhuma.
Um olhar estranho iluminou o rosto de Eli, um que não consegui
entender muito bem. Várias emoções poderiam explicar sua expressão:
hostilidade, arrogância... e talvez até um pouco de medo. Antes que eu
pudesse concluir se era uma dessas opções ou todas ao mesmo tempo, Eli
me deu uma resposta seca:
— Tive um mentor antes. E agora não tenho mais.
Ele virou seu rosto para que eu não pudesse ver sua expressão direito.
Estava claro que ele queria mudar de assunto, e logo. Pisquei os olhos,
surpresa com sua reação.
— Hum... e onde está esse seu mentor agora, Eli?
Com seu rosto ainda virado, Eli encolheu os ombros.
— Foi embora. Só isso.
Percebi que essa história era mais complicada... muito mais. De
repente, senti um impulso irrefreável de descobrir o que tinha acontecido
com o antigo mentor de Eli. Meu palpite era que não devia ter sido nada
muito agradável. Abri a boca para insistir no assunto, mas Eli me deteve
com um aceno em negativa.
— Não vou falar sobre meu tempo de aprendiz, Amélia, então é melhor
nem perguntar. Estou mais interessado em ter meu próprio aprendiz.
— Ah, e eu sou a principal candidata no momento, é isso? — repuxei
a boca com um ar de desprezo para mostrar bem a Eli o que eu achava
dessa honra.
167
— Na verdade... — disse Eli, me lançando outro olhar estranho —
...você não foi a primeira assistente que escolhi entre as almas que trouxe
para este mundo.
— Hã? — rebati. — De quem você está falando?
Seu rosto então se alterou, perdendo seu ar presunçoso para ganhar
outra expressão, uma que não consegui identificar a princípio. Em seguida,
percebi... era tristeza. Seu olhar não era irônico, nem de desprezo, ou mesmo
de raiva. Apenas triste.
Ele foi lentamente até um galho baixo de uma árvore — um que
descia, se virava para o lado e então voltava a subir contra o ar cinzento
como um J torto — e então se sentou nele como se fosse um banco
improvisado. Eli tirou as mãos dos bolsos e as colocou sobre os joelhos.
Quando voltou a falar, seus olhos não saíram de um ponto fixo no musgo
sob seus pés.
— Da Melissa — disse esse nome com uma voz terna e melancólica,
como se cada uma de suas três sílabas fosse muito preciosa.
— Quem é Melissa?
— Ela é... foi... meu primeiro gostinho verdadeiro de vida depois da
morte.
Eli ergueu a cabeça de repente e então me encarou. Pude ver seus
olhos brilhando com uma intensidade quase brutal. Me senti hipnotizada
pelo poder daquele olhar. Eli não piscou nem quando cruzei minhas pernas
sob meu corpo e me sentei no chão coberto de musgo à sua frente.
— Foi a melhor noite da minha morte — murmurou Eli, ainda me
encarando com firmeza. — Estava na ponte, me preparando para colher uma
alma. Seria a mesma coisa de sempre. Eu só precisava esperar que ela
caísse lá do alto.
Soltei um leve som de engasgo, mas Eli pareceu não me ouvir.
— Enquanto eu esperava, fiquei observando-a — continuou. — Ela era
linda. Tinha um cabelo castanho brilhante que pairava em volta do rosto
como uma auréola. Ela parecia um anjo em chamas. Tentei tocar nela, mas
não consegui, é claro. Estava morto, e ela ainda estava viva. Parte da minha
missão era ficar ouvindo, esperando até seu coração bater pela última vez e
então tirar sua alma do rio e levá-la para as trevas. Mas pouco antes de cair
da ponte, olhei nos olhos dela. Eles eram verdes, brilhantes como os seus.
Ela olhou bem para mim, e pude jurar que ela me viu, mesmo antes de
morrer. Naquele instante, ela me conquistou. Na mesma hora,
completamente.
168
Eli fez uma pausa, analisando meu rosto — à procura de não sei bem
o quê. Em seguida, ele voltou a olhar para o chão, com aquele quê distante
de nostalgia em seus olhos enquanto falava.
— Precisava ficar com ela. Simplesmente precisava. Depois que ela
morreu, eu a tirei do rio e implorei aos meus mestres para ficar com ela
como minha assistente. Para minha surpresa, eles aceitaram. Como eu a
despertei logo depois da morte, ela nunca esteve perdida naquela névoa
como você e eu. Ela não perdeu suas memórias da vida e parecia estar mais
do que disposta a dividir isso comigo. Ela me contou que se chamava
Melissa e que estávamos em 1987. Quando viva, Melissa tinha sido
estudante. Ela estava fazendo enfermagem em uma faculdadezinha perto da
estrada. E mesmo tendo passado por uma morte violenta, ela ainda me
parecia... alegre. Às vezes até bem feliz. Ela era tudo o que eu queria numa
companheira; inteligente, bonita, intensa. Eu me apaixonei por ela na
mesma hora. Mas talvez pela sua própria natureza, a Melissa logo começou a
ficar infeliz com a nossa existência. Ao contrário do que fiz com você, não
expliquei para ela exatamente qual era o meu trabalho. Mas ela não
demorou muito para entender no que consistia minha missão, nem para
expressar sua repulsa por isso. Ela passou algumas semanas tentando me
convencer a abandonar meu trabalho... a abrir mão do meu poder e libertar
todos os meus servos. Mas quando percebeu que essa abordagem não iria
funcionar, ela começou a passar vários dias sumida, desaparecendo e depois
voltando sem dizer o que tinha feito. Até que então, numa certa manhã de
outono, menos de um ano após sua morte, ela apareceu... diferente. A pele
dela ainda emanava um brilho como a nossa, mas um brilho agora mais
intenso, mais quente. Como fogo de verdade...
Eli não terminou, franzindo a testa enquanto olhava para o musgo que
vinha revirando entre seus sapatos com um ar distraído. Pequenas fagulhas
de gelo subiam pelo ar com os movimentos de seus pés. Esperei quase um
minuto para que Eli continuasse, mas minha impaciência por fim acabou
superando minha compaixão.
— E aí, o que ela disse para você? — cutuquei.
Ele balançou a cabeça.
— Ela me disse que eu não podia prender as almas nas trevas para
sempre. Ela disse que os mortos deveriam decidir sozinhos seus destinos.
Ela me disse que, ao trazer essas almas à força para este mundo para me
servir, eu não as estava ajudando em nada. E que o certo seria deixar que os
169
recém-mortos vagassem a esmo, porque só depois de despertarem da névoa,
eles deveriam escolher em qual dos pós-mundos iriam ficar.
— Pós-mundos? — rebati. — Que outros mundos existem?
Eli encolheu os ombros, mas não me enganou com sua tranquilidade
forçada.
— A Melissa me disse que conheceu um lugar... diferente. Melhor. Ela
me chamou para ir com ela, mas eu não quis. Tenho coisas demais a perder
por aqui. Sou importante demais. Sou respeitado aqui.
Aquele brilho orgulhoso voltou a iluminar seus olhos, cintilando com
uma intensidade quase insuportável. Foi muito fácil ler os pensamentos em
seus olhos: Eli era obcecado por este lugar. Faria qualquer coisa que seus
mestres pedissem, capturaria e comandaria qualquer alma, só para não
abrir mão de seu suposto poder.
— O que aconteceu com a Melissa depois disso? — perguntei com
cuidado.
Eli me olhou com desprezo.
— Ela desapareceu de vez. Nunca mais a vi desde então. Mas não que
eu quisesse.
Cuspiu essas últimas palavras, com seus lábios repuxados, cheios de
desdém. Ele agora parecia uma criatura selvagem, quase bestial. Mas pude
ver emoções humanas se esgueirando nos cantos de sua boca e de seus
olhos. Enterrados embaixo daquele olhar de repulsa, havia um quê de
desamparo e uma profunda e intensa solidão.
Perdida entre os meus pensamentos, passei meus dedos em círculos
pelo estranho musgo sob mim. A história de Eli tinha tantos detalhes
importantes. Tantas coisas que explicavam melhor o que eu era, e o tipo de
escolhas que eu tinha.
Mas um outro aspecto de sua história me entristeceu — a parte que
não tinha absolutamente nada a ver comigo. Porque por mais que eu o
odiasse, não tinha como ignorar uma parte muito importante de sua
narrativa: apesar da paixão de Eli por este mundo e seus poderes sombrios,
ele não queria ficar sozinho.
Ao ver a tristeza em seu rosto, voltei a sentir pena dele. Senti uma
compaixão muito estranha e um impulso para ajudá-lo, para melhorar seu
humor, então fiz a única pergunta em que consegui pensar para mudar o
rumo da conversa.
— Você meio que deu a entender que acabou superando o assunto
quando a Melissa sumiu da última vez. Mas e depois, o que você fez?
170
Seus olhos se voltaram para os meus, e o espectro de seu velho
sorriso malicioso repuxou os cantos dos seus lábios.
— Bom, encontrei uma nova bela assistente.
— Que sou eu, é isso?
Eli acenou a cabeça devagar, ainda sorrindo.
— Como foi isso? Você me achou depois que morri e decidiu que eu ia
ser sua assistente?
— Não, Amélia. — Seu sorriso cresceu, ganhando um ar estranho,
meio bestial. — Escolhi você antes de você morrer.
171
Vinte e Um
Senti minha visão se estreitar até um mero pontinho escuro e então
se expandir de volta para o meu grande desconforto.
— Você estava lá quando morri?
Eli se levantou de repente, pulando do galho em minha direção. Seus
olhos ardiam com intensidade, cheios daquele seu fervor de novo. Começou
a disparar um turbilhão atordoante de palavras.
— Estava sim, Amélia. Eu estava lá quando você morreu, mas não
acordei você como fiz com a Melissa. E também não levei você para as trevas
como faço com todas as outras almas. Você não entende o que isso significa?
Não entende o que eu fiz por você? Deixei que você escapasse por um tempo.
Permiti que você tivesse sua liberdade. E você agora me deve por isso.
Eli tentou pegar minha mão, mas me esquivei. Eu não conseguia
pensar, não conseguia respirar. Ainda assim, de algum jeito, soltei algumas
palavras pelos meus lábios.
— Como assim, você ―estava lá‖? Há quanto... quanto tempo você
estava lá?
— Como com a Melissa, eu estava lá antes mesmo de você cair —
disse com um sorriso carinhoso que me deu um calafrio. — Vi você cair na
água e perder a consciência. Vi seus olhos se abrirem e vi você se debater
contra a corrente. E depois ouvi seu coração parar. Mas depois dessa última
batida, fui embora. Não podia deixar que você me visse. Tive que sair dali
para que sua morte tivesse sentido.
— Sentido? Que sentido? — fiquei olhando para ele, confusa e
horrorizada.
— Obviamente, fiz algo de errado com a Melissa, ou então ainda
estaria com ela. Eu tinha que agir de outro jeito no seu caso para não perder
você. Se eu acordasse você na mesma hora, como fiz com a Melissa, você
poderia não dar o devido valor à minha misericórdia ao deixar que você seja
172
minha assistente. Você ainda se lembraria da sua vida, e talvez até sentisse
falta desse tempo. Então você precisava ficar perdida na névoa para
agradecer de verdade quando eu despertasse você dela.
O rosto de Joshua passou de novo pela minha mente.
— Mas não foi você quem me despertou — murmurei.
Eli abriu um largo sorriso, com uma expressão empolgada de repente.
— Não, não mesmo. E nem precisei. Você fez isso sozinha — explicou
Eli. Eu só balancei a cabeça, confusa. — Eu estava na Ponte Alta semana
passada, esperando para ceifar mais uma alma — continuou. — Foi então
que vi você no rio embaixo de mim. E quando um carro estava vindo, você
começou a se debater, distraindo o motorista para que eu o pudesse
espantar e fazer com que ele caísse na água.
Quase engasguei.
Joshua. Eli estava falando de Joshua, e do seu acidente de carro.
— Você... você fez o quê? — por fim consegui perguntar.
— Não, o que nós fizemos. Juntos — disse Eli com um brilho
empolgado em seus olhos. — Como uma dupla. Mas enfim, a gente não teve
muito sucesso, claro, porque vi o garoto sair vivo da água. Mas mesmo
assim, vi você ir atrás dele, ainda tentando ceifar sua alma.
Eli parecia extasiado, como se estivesse orgulhoso de mim por sua
interpretação equivocada do ocorrido.
— Você é muito talentosa, Amélia. Sua distração foi perfeita.
Minha cabeça girou, e então tive a desagradável sensação de que
poderia desmaiar se não conseguisse me recompor.
Então... como assim? Eli achava que eu tinha distraído Joshua de
propósito para ele cair da Ponte Alta, enquanto na verdade estava só
revivendo minha morte no rio? E depois, quando fiz de tudo para encorajar
Joshua a sair da água com vida, Eli achou que eu no fundo estava
mostrando sinais de um dom nato para o mal?
Precisei me esforçar para me ater ao detalhe mais importante dessa
revelação: durante esse tempo todo, o verdadeiro observador — o verdadeiro
vilão — tinha sido o próprio Eli.
A ideia de que Eli teve um papel ativo no acidente de Joshua me fez
repensar minha própria morte, inserindo agora a figura de Eli sobre as
águas verde-escuras daquele rio, vendo eu me debater e me afogar, com seu
sorriso arrogante no rosto. Talvez até com uma multidão de vultos escuros
ao longe, o observando enquanto me esperava morrer.
173
Essa nova imagem fez minha morte parecer ainda mais terrível, como
se isso fosse sequer possível. Mas na verdade nem deveria ter ficado
surpresa, levando em conta o que ele acabou de me contar sobre seu papel
na morte de Melissa.
— Você disse que... v-viu minha morte também — gaguejei, engolindo
uma imensa onda de raiva que ameaçava transbordar para fora de mim. Não
tive outra escolha. Esse seria o único jeito de conseguir mais informações
sobre minha morte da única pessoa, ou criatura, que a testemunhou. —
Pulei da ponte, igual a você? Ou caí, como a Melissa?
Ele ergueu uma de suas pálidas sobrancelhas.
— Você não lembra?
Apenas balancei a cabeça.
De repente, Eli se sentou de volta no galho da árvore. O ar fanático se
esvaiu de seus olhos, e aquele sorriso malicioso de sempre voltou ao seu
rosto. Então entendi que expressão era aquela: a cara de alguém que achava
estar com o jogo ganho.
— Talvez eu conte para você algum dia como foi — disse, e então se
inclinou para frente e passou seus dedos magros pelo ar sobre a minha
bochecha. — Mas quero que isso continue sendo um mistério por enquanto.
Só para você entender o quanto precisa de mim.
Estremeci e então me afastei como se ele tivesse tentado me tocar um
ferro em brasa.
— Nunca vou ―precisar‖ de você de novo, Eli — grunhi.
O sorriso de Eli desapareceu.
— Como assim, Amélia? Temos que ficar juntos. É o nosso destino.
— Nós. Não. Vamos. Ficar. Juntos — pronunciei cada palavra com
cuidado, uma a uma, para ele entender muito bem o que eu estava dizendo.
— Mas eu... salvei você — disparou.
Essa simples palavra, ―salvei‖, implodiu os últimos resquícios de
autocontrole que vinham contendo minha fúria. Apoiei minhas mãos no
chão para me empurrar e levantei com um pulo.
— Me salvou?! — gritei. — Você não me salvou coisa nenhuma! Você
fez exatamente o contrário, aliás. Sei muito bem que você poderia ter me
ajudado. Você poderia ter feito alguma coisa antes do meu coração parar.
Mas não fez nada. Só me deixou morrer — esbravejei. Eli tentou se explicar,
mas continuei falando, enfurecida, aos berros. — Não estou nem aí se isso
fazia parte da sua ―missão‖. Porque não foi só isso o que você fez comigo.
Mesmo depois do seu papel nojento na minha morte, você não parou por aí.
174
Você ficou esperando esse tempo todo, enquanto eu vagava perdida e
assustada pelo mundo, pronto para me atacar. E tudo isso só porque seus
mestres disseram que você podia ficar comigo?
— Amélia, eu...
— E aposto que você não tentou ―salvar‖ meu pai, não é? — disparei, o
interrompendo com um grunhido, sentindo minha raiva crescer. — Aposto
que você o jogou naquela floresta com o resto das suas vítimas.
Eli teve a audácia de parecer confuso.
— Seu pai?
— Ah, me poupe — disse, rindo. — Você não tem mais como se fazer
de inocente. E não estou nem aí para os grandes planos que você tinha para
o nosso futuro. Ou melhor... para o meu futuro. Seja lá quais forem os seus
planos, eles não têm nada a ver com omeu futuro.
— Seu futuro é ficar comigo — grunhiu, agora sem carinho nenhum
em sua voz.
— Não. Não é mesmo.
Agora foi a vez de Eli se levantar com um pulo.
— Você é minha! — gritou na minha cara. Ele tentou me agarrar com
sua mão, que não parava de tremer, mas dei dois rápidos passos para trás.
Nem olhei para ele uma última vez antes de me virar sobre meus
calcanhares descalços e sair correndo pelo bosque. Não sabia para onde
meus pés iriam me levar, e nem me importava. Só queria que eles
disparassem sobre aquele musgo roxo gelado o mais rápido possível.
Infelizmente, por mais rápido ou longe que eu corresse, o tenebroso
cenário à minha volta não mudava nunca. Eu não parava de passar pelo que
pareciam ser os mesmos arbustos retorcidos, as mesmas árvores reluzentes
cobertas de gelo.
Enquanto corria, vi outras coisas também: vultos escuros em meio à
floresta, dardejando entre os troncos e galhos como animais selvagens me
seguindo. Talvez eu tenha ficado tão assustada que comecei a ter
alucinações, mas poderia jurar que esses vultos tinham rostos. Rostos
humanos, que me observavam enquanto eu corria pela floresta, mas sem
tentar me deter.
Seriam as almas perdidas, só esperando uma ordem de Eli para me
atacar? Será que meu pai estava entre elas, me observando também? Uma
parte de mim queria parar e tentar encontrá-lo, mas outra não deixava que
minhas pernas parassem de correr, me lançando à frente em pânico.
175
Em seguida, quando eu já estava prestes a ser dominada pelo medo, o
ambiente cinzento ao meu redor começou a reluzir e se transformar. Como
uma imensa cortina sobre um cenário de teatro, aquele lúgubre submundo
começou a tremular e cair até eu me ver parada, toda ofegante, no meio de
um bosque iluminado pelo sol do mundo dos vivos.
Alguma coisa uns cem metros à minha frente chamou minha atenção.
Estreitei os olhos e me dei conta de que era o rio, reluzindo com um tom
alaranjado que devia ser pelo sol do fim da tarde.
Comecei a correr de novo, como se minha própria existência
dependesse disso. Quando cheguei ao topo da encosta sobre o rio e pisei no
asfalto da Estada Ponte Alta, parei só por tempo o bastante para fazer uma
oração.
— Por favor, meu Deus — implorei em voz alta. — Se o senhor gostar
um pouquinho que seja de mim, por favor, me mostre o caminho de volta
para a casa do Joshua. Preciso muito da sua ajuda.
Acenei a cabeça para dizer amém e saí correndo de novo pela estrada.
Meu senso de direção ainda iria acabar me matando. Pelo menos
metaforicamente.
Ao cair da noite, eu já tinha errado o caminho tantas vezes que a
minha confiança evaporava cada vez mais a cada centímetro que o sol descia
no horizonte.
Por fim, no final do que parecia ser a centésima rua pela qual passei,
avistei a varanda da frente de uma casa inconfundível. Corri pela entrada até
o quintal, sentindo meus pés voarem sobre o cascalho. Mas assim que
cheguei ao gramado, encontrei o quintal da casa vazio e escuro. Todas as
luminárias, agora apagadas, pareciam cinzentas em meio à noite. Nenhuma
luz iluminava as janelas dos fundos, e Joshua não estava me esperando sob
a penumbra na varanda. Eu me encostei no tronco de um dos choupos,
exausta e derrotada.
— Amélia?
A voz murmurada veio de algum lugar nos fundos do quintal, longe da
varanda.
— Joshua? — sussurrei. Ouvi um leve clique, e então um pequeno
círculo de luz apareceu uns quinze metros atrás da casa. Dentro desse
círculo, estava Joshua, parado na entrada do belvedere que eu tinha visto da
primeira vez que ele me trouxe ali.
176
Sem ouvir mais nada, saí correndo pelo quintal, subi pulando a
escadinha do belvedere e me joguei em seus braços, tudo isso antes mesmo
que Joshua pudesse se mexer.
Depois de um segundo de hesitação, ele me puxou para mais perto,
pondo uma das mãos na minha nuca e enlaçando seus dedos entre os meus
cabelos. Como quando nos beijamos, consegui sentir tudo: seu braço em
volta da minha cintura, seus dedos tocando a minha pele.
— Graças a Deus que você chegou. Está tarde. Estava preocupado...
— murmurou. Joshua abaixou a cabeça contra o meu pescoço e roçou os
lábios logo abaixo da minha mandíbula, espalhando um incêndio pela minha
pele.
— Desculpe. Desculpe — ofeguei. — É que demorei uma eternidade
para fazer o que eu precisava e depois não conseguia mais encontrar sua
casa. Acho que passei por um milhão de outras erradas até chegar aqui —
expliquei. Joshua deu risada; um som rouco e baixinho que reverberou na
base da minha garganta. — Você não está bravo comigo por eu meio que ter
sumido de novo, né? — perguntei, meio hesitante.
Joshua balançou a cabeça, roçando a ponta de seu nariz na pele
sensível do meu pescoço.
— Não. É claro que não. Desculpe por aquele dia, sério. Fui muito
estúpido. Se eu tivesse parado para pensar no que você é e em como são as
coisas para você...
— Não! — o interrompi. — Não é assim! A culpa foi minha também.
Eu poderia ter...
E então foi a vez de ele me interromper, chegando seus lábios à minha
orelha.
— Vamos só combinar de fazer alguma coisa legal um para o outro
para compensar, pode ser? — sussurrou.
— Ah, por mim, tudo bem — sussurrei em resposta.
Joshua subiu e desceu seus dedos lentamente pelas minhas costas, e
eu o abracei com mais força, me deliciando com os arrepios que pareciam ter
se espalhando por cada centímetro da minha pele. Essa sensação abafou
todos os outros pensamentos na minha cabeça, o que até me impediu de
terminar o que tentei dizer:
— Sabe, tenho tanto para contar sobre o meu dia hoje...
— Quero escutar tudo, quero mesmo — disse, todo intenso, recuando
a cabeça para me olhar nos olhos.
177
Dessa posição — ele com uma das mãos ainda enlaçada entre os
meus cabelos e a outra em volta da minha cintura, eu com meus dois braços
em volta do seu pescoço, e os nossos corpos juntos um do outro —, nossos
lábios estavam a meros centímetros de distância.
Nós dois devemos ter percebido isso juntos, porque começamos a
tremer ao mesmo tempo. A respiração de Joshua acelerou, e eu a senti,
quente e suave, contra os meus lábios. Nossos olhos ainda estavam fixos
uns nos outros, e eu comecei a ficar meio atordoada.
— Eu... eu ainda quero beijar você — sussurrou ele com uma voz
rouca.
— Eu também
— Posso...? A gente pode...?
— Acho que sim — acenei a cabeça. — Só preciso me concentrar
bastante para não sumir.
Os dedos de Joshua se enlaçaram com mais força entre os meus
cabelos, e ele puxou meu rosto para mais perto do seu.
— Se concentre então — murmurou, e em seguida encostou seus
lábios nos meus.
Assim como antes, nosso beijo ameaçou derreter todas as partes do
meu corpo. Ondas de chamas ardentes desabrocharam como pétalas dentro
do meu cérebro.
Mas desta vez, não foi só na minha paixão que me concentrei. Quando
senti a escuridão começando a borrar os cantos da minha vista e uma leve
fisgada em uma partezinha dentro de mim, relutei o máximo que pude e me
ancorei no presente, me segurando em Joshua e me focando na sensação de
sua boca contra a minha.
Não desapareci. Não afundei na água. Em vez disso, apenas beijei
Joshua de volta, com mais vontade do que poderia jamais imaginar. Abri
meus lábios e passeei com eles pelos de Joshua, respirando fundo, quase
sentindo seu gosto.
Por fim, tivemos que parar para respirar. Ainda relutantes, nos
afastamos um do outro, mas continuamos com nossos corpos colados.
— Isso foi incrível — ofegou Joshua.
Mesmo se eu quisesse dizer qualquer coisa, seria impossível. Só
consegui murmurar:
— Sim, foi...
— Lindo — disparou uma voz atrás de nós.
178
Ainda abraçados, Joshua e eu nos viramos para um mesmo ponto em
meio às árvores. Quem disse isso continuava invisível, escondido entre a
escuridão.
— Quem foi que...? — começou a dizer Joshua, mas eu já sabia a
resposta.
— Eli — disse, seca.
— Quem é Eli? — perguntou Joshua, se virando para mim.
— A coisa que eu tinha que fazer hoje.
— Ah, então sou uma coisa, é? — Eli saiu do meio das sombras, com
sua pele emanando um brilho estranho sob o escuro da noite.
— Já é mais do que um elogio para você — disse eu entre meus dentes
cerrados. — E você sabe muito bem.
— Não sei de nada disso — rebateu.
— Como você me seguiu sem eu perceber?
— Só precisei manter uma boa distância. E aí, no momento certo, eu
me materializei.
— Já disse para você me deixar em paz.
— Não vou, nem agora, nem nunca, obedecer a ordens suas. —
Enquanto Eli avançava, a palidez mortiça de sua pele deixava rastros de luz
pela escuridão à sua volta.
— Amélia, estou vendo o que acho que estou vendo? — perguntou
Joshua, franzindo a testa. — Esse é... outro fantasma?
Os olhos de Eli se voltaram para os meus.
— Esse garoto... ele não pode me ver, pode?
Encolhi os ombros, irritada.
— Ele é um vidente, Eli. É isso o que eles fazem.
— Bom, então o faça parar.
Eu não poderia ter ficado mais orgulhosa quando Joshua ergueu seus
ombros e encarou Eli com firmeza.
— Eu posso ver você, sim. Mas independente de seja lá quem você for,
não gostei do jeito que você está falando com a Amélia. Então dê o fora da
minha casa.
Eli bufou.
— Da sua casa? Que engraçado. Você não quis dizer ―da casa dos
seus pais‖, garoto?
— Vá embora. Antes que eu faça você ir à força — grunhiu Joshua.
179
— E como você pretende fazer isso? Estou morto. Você não pode nem
tocar em mim. — Eli abriu um sorriso malicioso, juntando as mãos atrás das
costas.
— Você está vendo esta menina linda nos meus braços? — disse
Joshua baixinho, com um tom ameaçador. — Ela está morta também. Mas
dá para ver que estou tocando nela, não é?
Pela primeira vez, a expressão de Eli realmente me assustou. Linhas
severas cruzaram seu rosto, estreitando seus olhos e repuxando seus lábios
com um sorriso agressivo. Nesse instante, ele pareceu um morto mesmo.
Uma criatura morta maligna que de repente focou seus olhos nos meus.
— Amélia, tenho que admitir que estou impressionado. Você esteve se
fazendo de inocente esse tempo todo enquanto tentava roubar o que é meu?
— Do que você está falando, Eli?
Ainda com aquele sorriso tenebroso, Eli apontou com a cabeça para
Joshua.
— Achei que a gente estava trabalhando juntos quando você o fez cair
daquela ponte. Achei que tinha sido essa ação conjunta o que por fim
despertou você. Mas agora ele está aqui, e bem vivo, com você. Então... você
quer ficar com ele só para você, é isso?
A capacidade que Eli tinha de sempre pensar o pior de mim era
impressionante. Ele agora estava achando que eu queria ser dona de
Joshua, como Eli queria ser meu dono? Até parece. Fechei a cara só de
pensar nisso e abri a boca para dizer isso a ele.
No entanto, foi Joshua quem respondeu Eli primeiro.
— O que a Amélia quer não é da sua conta, porque você vai embora
daqui. Agora. E eu não vou repetir.
— Por favor, entenda, garoto... — disse Eli, sem olhar para Joshua —
...o que eu vou falar agora não é para você. Vou até fingir que você nem está
aqui de agora em diante. — A voz de Eli ficou mais baixa, ganhando um tom
gélido enquanto falava comigo. — Amélia, você sabe o que eu quero. E você
nem imagina do que sou capaz. Meu poder de me materializar não é o único
truque que tenho. Nossa natureza tem lados sombrios, lados que você ainda
não compreende. Eu disse a você que controlo os mortos, mas posso fazer
muito mais do que isso. Tenho várias formas de... atacar... um ser vivo
também. — Seus olhos se desviraram por um instante para Joshua e então
se voltaram para mim. — Ainda mais um vivo capaz de ver os mortos. Tenho
certeza de que alguém assim poderia me ser muito útil. Uma belíssima
adição para o meu pequeno exército.
180
Um som gutural emergiu da minha garganta. Com um pouco mais de
força, esse som poderia facilmente ter saído como um rosnado.
Aturdido, Joshua olhou para mim, mas Eli apenas deu risada.
— Amélia, Amélia. Presenciei seu segundo nascimento... você acha
que um barulhinho desses vai me assustar? — Ele ergueu uma sobrancelha,
mas depois sua expressão se tranquilizou de repente. As estranhas rugas
bestiais em volta de sua boca e de seus olhos se atenuaram, e seu sorriso
relaxado de sempre voltou ao seu rosto. — Então... — disse Eli, pondo as
mãos nos bolsos. — Pense no que eu disse. Você só tem uma única forma de
passar seu futuro. Isso, é claro, se você quiser que esse garoto tenha algum
futuro. — Comecei a rosnar, mas Eli me interrompeu. — Quero que você me
encontre amanhã, ao anoitecer. No seu cemitério.
Ele me deu uma última piscadela sinistra e então desapareceu,
deixando apenas a escuridão da noite para trás.
181
Vinte e Dois
Joshua estava arqueado sobre sua caneca de café — com o restinho
do bule que ele tinha entrado às escondidas em casa para preparar, várias
horas depois de sua família ter ido para cama. Nenhum de nós dois estava
muito a fim de dormir esta noite, mas ao contrário de mim, Joshua não
tinha o luxo de nunca sentir sono. Ele teria que se virar à base de cafeína.
— Não, Amélia... — murmurou com a boca colada na caneca e então
esfregou seus olhos exaustos. Balançou a cabeça com o máximo de firmeza
que alguém poderia demonstrar às quatro e meia da manhã. — Ainda acho
essa uma péssima ideia.
— Você tem alguma melhor? — rebati, mas me arrependi na mesma
hora do meu tom e então passei a mão pelo seu braço com carinho para me
redimir. — Desculpe, Joshua, sério. Mas eu não vejo nenhuma outra opção.
Sendo sincera, parecia que nós estávamos sem nenhuma opção em
vários sentidos.
Para começar, em vez de estarmos deitadinhos juntos na cama de
Joshua, nós estávamos sentados e encolhidos na escadinha do belvedere no
quintal. Depois que Eli desapareceu, Joshua e eu quisemos entrar na casa,
mas alguma coisa me detinha sempre que eu tentava. Uma rápida olhada no
chão revelou o motivo: havia agora um fio de um pó cinzento e
esbranquiçado em volta de todas as entradas da casa, provavelmente
deixado ali por Ruth hoje mais cedo, que impedia minha entrada como uma
parede invisível. Mesmo quando Joshua varreu o pó, a barreira mágica
continuou intacta. Como se eu precisasse de ainda mais um lembrete
incômodo — e talvez definitivo — do exorcismo que me aguardava aquela
noite.
Infelizmente, Eli agora era um problema maior do que Ruth para mim,
porque eu não duvidava nem um pouco da sinceridade de suas ameaças
contra Joshua. Expliquei tudo para Joshua: a obsessão de Eli em ser meu
182
dono, sua insistência de que meu destino era me voltar para o mal e servi-lo,
e até seu papel no acidente quase fatal de Joshua.
Joshua, no entanto, continuava irredutível.
— Como você pode dizer que se encontrar com aquele cara, sozinha,
num cemitério, é nossa única opção? — insistiu. — E como você pode sequer
cogitar a ideia de dar a ele o que ele quer?
— O que mais você quer que eu faça? — grunhi enquanto me deitava
de lado nos degraus do belvedere. Fiquei olhando para Joshua, que tinha se
encostado em um poste de madeira. — Você sabe que o Eli nunca vai deixar
a gente em paz até eu falar com ele de novo.
— E daí? Ele que tente se meter com a gente.
— Joshua, isso é muito corajoso da sua parte e tudo mais, mas acho
que é melhor a gente não arrumar encrenca com um espírito que pode
desaparecer do nada quando bem quer, não é? Só Deus sabe do que ele é
capaz.
— Ah, ele desaparece. Que sinistro, né? — bufou Joshua com desdém.
Mas mesmo sob todo o sarcasmo de Joshua, pude sentir uma leve
hesitação. Aproveitei para insistir no assunto.
— Sim, ele desaparece. Quando bem quer. Essa é uma coisa que não
consigo fazer ainda. E não acho que ele estava mentindo quando disse que
tinha ainda mais truques na manga.
De repente, Joshua pareceu alerta. Ele veio para frente e me pegou
pela cintura, me puxando para mais perto dele. Quando nossos joelhos
estavam quase se tocando, ele parou de me puxar, mas continuou com suas
mãos em volta da minha cintura.
— Então, Amélia! — exclamou. — Você não entende? É por isso que
você não pode ir lá sozinha se encontrar com ele. A gente não tem a menor
ideia do que ele pode fazer com você. Como você mesma disse, até a minha
vó e as amigas dela não conseguiram impedir que ele atacasse outras
pessoas antes. Então por que você acha que com você seria diferente?
A preocupação de Joshua me emocionou, muito mais do que o deixei
perceber. Mas apesar do seu carinho, apesar do meu iminente exorcismo
prometido por Ruth, ainda precisava encerrar essa disputa com Eli;
precisava fazer alguma coisa com ele antes que Joshua fosse afetado. Então
continuei com a minha expressão determinada, firme.
— Não vou mais discutir isso. Vou lá para o cemitério. E pronto,
acabou.
Joshua soltou um suspiro alto e fechou os olhos.
183
— Amélia, Amélia, que menina teimosa você é. — Ele suspirou de
novo. — Mas se você vai até lá, então você não vai sozinha.
Arregalei os olhos e me soltei de seus braços. Joshua caiu um pouco
para frente, cansado demais para reagir a tempo ao meu gesto. Ele se
endireitou e me fez uma cara feia. Só o ignorei e balancei a cabeça,
determinada.
— Nem pensar — disse eu. — Você não vai lá comigo. Nós já
resolvemos isso, Joshua.
— Mas...
— Nada de mas — o interrompi. — Não vou mudar de ideia, Joshua,
desculpe. O Eli está interessando em mim. Só em mim. Ele quer me amar,
ou ser meu dono, ou sei lá o quê... mas eu não acho que ele tenha como me
machucar de verdade. Ou pelo menos não muito, imagino. Mas ele não
hesitaria em machucar você só para me atingir. Então você não pode estar
lá. Ponto final.
— Você tem razão — murmurou Joshua. — Eu sei que você tem
razão. — Ele franziu a testa e ficou olhando para o próprio colo.
Sua resignação me pegou de surpresa, o que me deixou um tanto sem
reação. Mas quando Joshua voltou a olhar para mim, percebi que ele não
tinha desistido. Longe disso. Seus olhos não mostravam nada além da mais
absoluta determinação.
— Você tem razão, Amélia — repetiu com um ar decidido. — E é por
isso mesmo que eu vou fazer seja lá o que for preciso para garantir que
nenhum de nós vá lá ver aquele cara.
Joshua juntou as mãos atrás da minha cintura. Não consegui sentir
seus braços, mas pude vê-los se fechando à minha volta. Seu abraço me
prendeu, e seu olhar decidido deixou sua mensagem bem clara: ele estava
disposto a fazer tudo o que fosse humanamente possível para que eu ficasse
com ele, e longe daquele cemitério.
Então eu teria que recorrer a táticas inumanas.
Abri um leve sorriso para ele.
— Você pode me prometer uma coisa? — perguntei baixinho.
— Só se não se tiver a ver com você tentar ir naquele cemitério.
Balancei a cabeça, ainda sorrindo.
— Joshua, por favor. Só me escute. Preciso que você me prometa uma
coisa. Se você não me vir mais, preciso que você me prometa que não vai
tentar me encontrar, pode ser?
184
— Amélia, o que você...? — começou a dizer com uma voz angustiada,
mas eu o detive com um forte beijo.
Esse beijo foi totalmente diferente dos nossos primeiros dois. Agora o
beijei com força, roçando meus lábios contra os deles com uma intensidade
que camuflava meu desespero. Joshua ficou tão surpreso com esse ataque
que não teve outra reação a não ser me beijar de volta. E é claro, sua reação
me fez beijá-lo com ainda mais vontade.
E então, sem nenhum aviso, me afastei, fechando bem os olhos. Antes
que Joshua pudesse me puxar de volta, me concentrei em pensamentos
difíceis.
Pensei na minha mãe, solitária dentro daquela casinha velha. Pensei
no rosto do meu pai — um rosto que eu nunca mais veria, em qualquer um
dos pós-mundos. E pensei em Joshua. Não nas coisas boas dos últimos
dias, mas sim na eternidade, como só alguém na minha situação conseguiria
compreender. Pensei na eternidade, em uma eternidade sem ele.
Além de todos esses pensamentos tristes, me concentrei em uma
imagem: no cemitério onde eu sempre acordava depois dos meus pesadelos.
Fechei meus olhos com mais força, queimando essa imagem na parte de trás
das minhas pálpebras.
E de repente, parei de sentir a pressão dos braços de Joshua à minha
volta.
Meus olhos se abriram na mesma hora.
A princípio, não consegui sentir, nem ver nada. Tudo estava parado e
escuro. Em seguida, meus olhos começaram a se ajustar dolorosamente ao
novo cenário à minha volta.
Seja lá onde eu estivesse agora, não era um lugar totalmente escuro,
como imaginei. Esse novo lugar era só muito, muito mal-iluminado.
Um pássaro grasnou em algum lugar à minha direita, e minha cabeça
se virou na direção do som. Com esse movimento, notei que estava cercada
por várias formas escuras. Quando meus olhos se ajustaram mais, pude ver
melhor a estrutura delas. As mais altas eram árvores, que pendiam até o
chão. Já as baixas eram mais variadas: algumas delas, apesar de largas na
base, se estreitavam como obeliscos na parte de cima, enquanto outras
formavam meias-luas atarracadas sobre a grama. De um jeito ou de outro,
pude ver que todas essas formas menores eram lápides, sem dúvida alguma.
Tinha conseguido.
Eu havia me materializado no cemitério, algumas horas antes do
amanhecer.
185
Um vento gelado cortante me acertou em cheio, açoitando minhas
bochechas e levantando meu cabelo pelos ares. Quando a ventania se
acalmou, uma voz seca emergiu da escuridão.
— Você chegou cedo, Amélia Ashley.
— Bom — disse, trêmula, me esforçando ao máximo para soar calma e
manter a cabeça erguida. — O que posso dizer? Sou uma menina pontual. —
Em seguida, fiz uma pausa e franzi a testa. — Espera aí... você acabou de
dizer meu sobrenome, não foi?
Eli saiu da sombra de uma árvore, agora visível sob a penumbra.
— Disse sim, Amélia — respondeu. — Agora, como sei seu
sobrenome? E como sei que este é o cemitério onde você acorda depois das
suas desmaterializações acidentais?
Senti um frio no estômago.
Na minha pressa para ir embora logo, e também poupar Joshua, não
tinha pensado nesse detalhe na hora. No seu cemitério, disse Eli. Ele não
tinha como saber que aquele era meu cemitério. A não ser que...
— Você mentiu de novo para mim, não foi? Você sabe mais da minha
vida do que me disse.
— Só um pouquinho.
— O quanto é um pouquinho? — insisti.
— Bom, por que você não se vira e dá uma olhada na lápide que está
praticamente atrás de você? Isso deve explicar algumas coisas.
Não queria tirar os olhos de Eli. Não queria perdê-lo de vista, sabendo
que ele devia ter alguma outra surpresa nada desagradável planejada para
mim. Ainda assim, minha cabeça parecia estar sendo movida por outras
forças. Ela se virou lentamente até eu ficar olhando para uma faixa de grama
e terra no chão logo atrás de mim.
Nunca me dispus a ficar tempo o bastante naquele cemitério para
analisar suas lápides ou procurar meu próprio túmulo. Só pressupunha que
tinha sido enterrada ali, uma coisa que sempre foi motivo o bastante para
me fazer sair correndo daquele lugar sempre que eu acordava.
Também pressupunha que, se por acaso encontrasse meu túmulo, ele
provavelmente estaria abandonado. Não sei por que eu achava isso. Mas ao
longo dos vários anos desde a minha morte, acabei me esquecendo dos meus
pais e de seu amor por mim. Na minha cabeça solitária e deprimida, fazia
todo o sentido achar que seja lá quem eu tivesse deixado para trás não se
lembraria mais de mim, nem do meu túmulo.
186
Mas a pequena faixa bem cuidada de terra que eu estava vendo me
mostrou que essa minha última pressuposição estava errada. Apesar disso
— apesar de todo o carinho claramente dedicado a esse túmulo —, essa cena
partiu meu coração em um milhão de pedaços.
Atrás de mim, havia uma placa de concreto no chão. Sim, de concreto,
imagino, porque os meus pais não teriam como pagar por coisa muito
melhor. Alguém tinha cortado com todo cuidado a grama em volta da placa e
tirado as folhas mortas de cima. Um vaso de cerâmica com margaridas de
seda enfeitava a base da lápide.
Letras de forma simples identificavam a placa. Além do epitáfio, o que
havia escrito ali era muito parecido com a inscrição do meu anuário:
AMÉLIA ELIZABETH ASHLEY
30/04/1981 — 30/04/1999
FILHA ETERNAMENTE AMADA
Ao ver essas palavras, só consegui imaginar o rosto do meu pai
enquanto ele escolhia essa placa em uma casa funerária, e as mãos da
minha mãe, pegando aquelas.
Pelo visto, meu coração morto e inerte ainda doía por tristeza. E como.
Enxuguei uma única lágrima que desceu pela minha bochecha e me virei
para Eli. Até seu rosto desagradável seria uma visão melhor do que a
dolorosa cena dos últimos presentes que meus pais haviam me deixado.
Ao me olhar nos olhos, Eli acenou a cabeça com um ar sinistro.
— Então, Amélia Ashley, entendeu agora como sei seu sobrenome?
— Como você encontrou isso aqui? — perguntei.
— Eu estava passeando por aqui coisa de um mês atrás, andando um
pouco e pensando. E para minha surpresa, adivinha quem apareceu aqui do
nada? Minha pequena Amélia, engasgando e tossindo bem em cima desse
túmulo. Você deve ter se materializado aqui sem querer. Mas ao fazer isso,
você resolveu um grande mistério: para onde a Amélia vai quando
desaparece? Depois de me responder esse enigma, você saiu correndo, sem
me ver, nem me sentir.
Acenei a cabeça com um ar distante, processando essa informação.
Então Eli tinha me visto acordar de um pesadelo. Isso explicava por que ele
sabia que este era o ―meu‖ cemitério e como ele tinha descoberto meu
sobrenome. Mesmo assim, ainda restava uma questão.
— Mas por que você estava aqui para começo de conversa, Eli?
187
Eli franziu bem a testa.
— Você pode até ficar surpresa, Amélia, mas também não gosto deste
lugar. Assim como você, volto para cá de tempos em tempos, por motivos
que nem eu mesmo entendo direito — disse. Juntei minhas sobrancelhas
com uma expressão confusa. Em resposta, Eli estendeu sua mão. — Venha.
Vou te mostrar — disse. Fiquei olhando, hesitante, para sua mão estendida.
Eli soltou um suspiro impaciente e remexeu seus dedos para mim. — Relaxe,
não é uma cobra, Amélia. Não vou te machucar.
— Não, mas bem que poderia.
Eli suspirou de novo e abaixou sua mão.
— Tudo bem. Você pode pelo menos só vir comigo, então?
Pensei por um instante nesse pedido e então me levantei, tentando
evitar a ideia de que eu estava em cima do meu próprio túmulo, e de que
cheguei a pisar na minha própria lápide enquanto seguia Eli cemitério
adentro.
Eli andou lentamente pela grama por um tempo até chegar a uma
lápide velha e surrada. Ele parou à sua frente e ficou olhando para o túmulo,
sem expressão alguma no rosto.
— É por isso... — disse, apontando para a lápide — ...que eu venho
para cá.
As inscrições na lápide eram simples e genéricas, talvez de propósito.
Lia-se apenas:
ELI ROWLAND
1956 — 11/07/1975
SUBINDO A ESCADA PARA O CÉU
— Nossa... — murmurei.
Eli bufou, concordando com o meu espanto.
— Meus colegas de banda obviamente não se lembravam do meu
aniversário. Acho que eles nem avisaram minha família que morri. Mas a
referência à StairwaytoHeaven do Led Zeppelin até que é bem legal, não é?
— É bonito. — Eu me virei para ele. — Então... a gente foi enterrado
no mesmo cemitério?
Ele acenou a cabeça, e então um minúsculo sorriso se abriu em seu
rosto. Quando ele voltou a falar, seu tom havia perdido um pouco daquele
tom de amargura.
— Mais uma prova de que o nosso destino é ficar juntos, não acha?
188
— Se fosse assim, Eli, acho que eu poderia ficar com qualquer um
deste cemitério, não é?
Eli deu uma risada sinistra, mas depois se virou de volta para sua
lápide sem dizer mais nada. Ele nem olhou para mim quando saí de perto
dele.
Segui caminho em meio ao mato, voltando à área relativamente bem
cuidada onde ficava a minha própria placa de concreto. Chegando lá, me
ajoelhei em frente à minha lápide e apoiei as mãos na grama. A terra ali
parecia bem firme sob meu peso. Aquele túmulo não era nenhum sonho,
nenhum pesadelo.
Tive então um pensamento repentino e perturbador: o que haveria
agora naquele túmulo, sete palmos abaixo das minhas mãos? Não sabia,
mas já podia imaginar. Uma imagem grotesca veio à minha mente, quase
vomitei. Virei meu rosto contra o ombro para não precisar mais ver aquela
faixa de grama, que agora me parecia tão repulsiva.
Infelizmente, percebi tarde demais que não deveria ter me virado. Ao
fazer isso, outra lápide entrou no meu campo de visão: a que ficava logo ao
lado da minha.
O sol do início da manhã havia começado a despontar no horizonte,
iluminando por trás a lápide vizinha com seus suaves raios cor-de-rosa.
Essa luz era quase forte o bastante para encobrir o túmulo entre sombras e
esconder suas inscrições. Mas apenas quase.
Em uma lápide alta, que era só um pouco melhor do que a minha, a
seguinte inscrição me encarava:
TODD ALLEN ASHLEY
05/06/1960 — 29/03/2006
IREMOS NOS REENCONTRAR
Todo o ar simplesmente sumiu dos meus pulmões. Enquanto estava
ali, tentando recuperar o fôlego — com as mãos firmes no chão e os olhos
fixos no epitáfio do meu pai —, a leve melodia de uma canção ecoou nos
meus ouvidos. Fechei os olhos e imaginei a cena que parecia ter sempre
acompanhado aquela música.
Meu pai e minha mãe, em um de seus dias felizes. Um daqueles dias
em que as preocupações com dinheiro ou com o trabalho não os
incomodavam tanto, e eles se lembravam da importância um do outro.
Nesses dias, meu pai entrava na nossa minúscula cozinha e pegava minha
189
mãe no colo. Mesmo que ela estivesse coberta de farinha do nosso jantar, ou
de sabão da louça. Ela enganchava os braços em volta do pescoço do meu
pai e encostava a cabeça em seu ombro enquanto ele cantava uma música
antiga para ela, uma que prometia um reencontro, algum dia, em algum
lugar.
A música ecoou tão alto na minha cabeça que nem ouvi Eli chegar por
trás de mim.
— Você não precisa mais ficar triste pela sua morte, Amélia — a voz
de Eli abafou a música bem na hora do clímax. — Estou aqui para ficar com
você agora — completou ele, pondo a mão no meu ombro.
Afastei a mão de Eli, talvez com mais força do que o necessário.
— Não estou triste pela minha morte, Eli. Estou triste por isto aqui. —
Apontei para o túmulo do meu pai, com o dedo esticado em um gesto
acusatório, como se a culpa de todo o meu sofrimento fosse daquela lápide.
— Ah... e quem é esse?
— Meu pai — murmurei.
— Essa lápide? — Eli se abaixou para ler a inscrição. — Todd Ashley?
Esse é o seu pai?
— S-sim.
Minha voz se partiu enquanto eu falava. Coloquei a mão na boca em
um esforço de conter a torrente que estava por vir, mas já era tarde demais.
Meus soluços ofegantes de angustia cortaram o ar da manhã, arrancando de
mim não só meu fôlego, mas uma violenta tempestade de lágrimas.
Desmoronei em frente ao túmulo do meu pai. Continuei com as mãos
apoiadas na grama e encostei a cabeça nelas. Deixei as lágrimas caírem do
meu rosto em cima das minhas mãos e depois no chão.
— Você está... chorando — exclamou Eli, espantado.
— Sim — gemi, mas depois soltei uma risadinha bizarra. Eu me
levantei um pouco para me sentar, enxugando em vão minhas bochechas e
meu queixo. — Eu meio que faço isso de vez em quando.
Eli me pegou pela cintura e, antes que eu percebesse o que estava
acontecendo, me levantou e me virou para ele.
— Você nunca mais vai chorar de novo. Não enquanto estiver comigo.
Seus dedos se embrenharam entre o pano do meu vestido. Com um
fôlego profundo — para ganhar coragem, talvez —, ele me puxou e encostou
seus lábios nos meus.
Sua boca abafou meu grito de protesto. Eu o empurrei com tudo pelo
peito, mas isso só o fez me segurar com ainda mais força.
190
Enquanto ele continuava me beijando, gritei de novo, mas não em
protesto. Dessa vez, foi de medo.
Porque enquanto Eli forçava sua boca contra a minha, senti uma
violenta ardência, como se alguma coisa tivesse rasgado a pele delicada do
meu lábio inferior. Os cantos dos meus olhos se enrugaram de dor.
Quando Eli se afastou um pouco em uma tentativa de pôr a mão na
minha bochecha, por fim consegui me libertar. Ao me soltar de seus braços,
acabei dando vários passos para trás sobre o meu próprio túmulo. Mesmo
sem a pressão da boca de Eli na minha, meu lábio inferior continuou
latejando de dor. Minha língua procurou um ponto mais macio no meu lábio
e então, nem sei como, senti um gosto férreo.
— O que você fez comigo? — ofeguei, erguendo meus dedos até a boca,
mas sem tocar no meu lábio ainda.
Eli teve pelo menos a decência de parecer confuso.
— Tenho quase certeza de que só te dei um beijo, Amélia.
Passei as costas da minha mão na boca e então olhei. Sobre a minha
pele, havia agora um rastro de alguma coisa vermelha e brilhante.
Sangue.
— O s-seus dentes — gaguejei. — Acho que você me cortou. Eu...
estou sangrando.
Eli balançou a cabeça, sem entender.
— Não. Não, isso é impossível.
— Ah, é? — disse, passando a mão de novo na boca onde ainda podia
sentir um inchaço morno de sangue. — Então o que é isto aqui na minha
boca?
— Não sei. Mas seja lá o que for, você está errada — protestou Eli. —
Nunca machucaria você, Amélia. Não assim. Além do mais, nem teria como,
mesmo se quisesse... nós dois estamos mortos.
— Tanto faz — disse eu, quase gritando. — Você nunca mais vai me
beijar de novo.
— Ah, acho que vou sim, Amélia. Nosso destino é ficar juntos.
— Pare de dizer isso! — esbravejei.
— Digo o que eu bem quiser. Você está destinada a me servir, lembra?
Dei risada e balancei a cabeça.
— Ah, lembro, sim, Eli. E obrigada por me relembrar de que eu não
deveria ter confiado em você, nem por um segundo sequer.
A boca de Eli se repuxou como se ele tivesse sentido um gosto azedo.
191
— E em quem você confia, Amélia Ashley? Naquele garoto? Naquele
garoto vivo?
Ergui meus ombros.
— Isso não é da sua conta, Eli Rowland.
A careta de Eli ganhou um sorriso desdenhoso.
— E o que exatamente você acha que vai fazer com ele? Levar uma
vida longa e feliz?
— Vou fazer o que eu bem quiser com ele — gritei, mas Eli apenas riu
de mim, um som cruel que arrepiou minha pele.
— Você está se esquecendo de um detalhe muito importante, Amélia
— disse. — Você não pode dividir seu futuro com aquele garoto porque você
não tem futuro. Ele vai envelhecer, mas você vai continuar a mesma, morta
para sempre... inalterada. Sem futuro nenhum.
— Eu não preciso ouvir esse tipo de coisa — disparei. — E não vou
mesmo, aliás.
Eu me virei para sair dali, para ir a qualquer outro lugar, e rápido. No
entanto, antes que eu pudesse sair correndo, Eli me pegou pelo pulso e me
virou de volta para ele.
Na mesma hora, senti uma violenta ardência no meu pulso onde os
dedos de Eli haviam me pegado. Olhei para o meu braço e quase perdi o
fôlego. Embaixo dos dedos de Eli, marcas rosadas tinham aparecido na
minha pele: queimaduras, causadas pela sua pegada forte demais.
Como Eli disse, isso era impossível. Ainda assim, enquanto eu tentava
me soltar, as marcas sob seus dedos na minha pele foram ficando mais
brilhantes, mais inflamadas.
— Eli, meu braço! — olhei para ele em pânico. Eli, no entanto, não
pareceu me ouvir. Seus olhos, reluzentes e frenéticos, se fixaram nos meus.
Tentei em vão me soltar enquanto atacava seus dedos com minha mão livre.
— Pare! — gritei. — Você está me machucando!
Eli ignorou minha ordem e me puxou para ainda mais perto.
— Mas talvez eu também esteja me esquecendo de uma coisa, Amélia.
Afinal, sua morte não foi um dos motivos pelos quais você veio me ver? Você
não queria saber mais sobre sua morte? — Aquele seu sorriso malicioso de
sempre se transformou em algo mais sombrio, mais selvagem. — Bom,
minha querida, vamos realizar esse seu desejo.
— Não! Me solte! — gritei enquanto perdia o cabo de guerra com meu
braço. Eli por fim conseguiu me puxar para perto dele, com seu rosto a
apenas alguns centímetros do meu.
192
— Tarde demais, Amélia. Já é tarde demais.
— Por favor! — gritei, perdendo o fôlego e sentindo a pressão de seus
dedos nos ossos do meu pulso.
— Não implore assim. É deselegante — sussurrou Eli. Em seguida, ele
me puxou para ainda mais perto, forçando seu corpo contra o meu. —
Agora, vou te dizer uma coisa muito importante, mas depois preciso ir para o
meu segundo compromisso de hoje. Não tenho muito tempo, então escute
bem: você não caiu daquela ponte.
— Não... — gemi. — Eu caí. Sei que caí. Eu não pulei.
— Cale a boca! — rebateu Eli. — Você não caiu. E nem pulou também.
— Q-quê? — balancei a cabeça, sem conseguir pensar direito, sem
conseguir entender.
Eli se inclinou até encostar seus lábios frios na minha orelha. Bem
baixo, quase até demais para que eu conseguisse ouvir, ele sussurrou:
— Você foi empurrada.
E então, de repente, Eli soltou meu braço.
Eu ainda estava tentando me desvencilhar, então voei para trás com o
impulso. Caí no chão, olhando em desespero para o rosto macabro de Eli.
A última coisa que ouvi, antes da minha visão se apagar, foi o baque
alto da minha cabeça contra minha própria lápide.
193
Vinte e Três
Foi como em todas as outras vezes.
Abri os olhos em meio àquela água terrível de sempre, que se revirava
e borbulhava à minha volta, talvez pela corrente do rio ou pela minha
própria agitação, não sei bem. A água turvava minha visão, engolia meus
membros cada vez mais fracos e avançava contra meus lábios, tentando
abri-los para me invadir.
Meus pulmões ardiam pela falta de ar, e meus braços doíam de tanto
se debater. Manchas escuras — um efeito da falta de oxigênio — começaram
a dançar pela minha vista.
Outro pesadelo. Eu estava em outro pesadelo.
A parte racional do meu cérebro percebeu isso e sussurrou com calma
para a outra que esse horror logo chegaria ao fim, que eu sempre acordava
no final dessa cena grotesca, ainda que como uma garota morta. Sabia pelo
menos que se parasse de relutar, o pesadelo cedo ou tarde acabaria e eu
acordaria no cemitério.
E assim que eu acordasse, poderia voltar para Joshua. Só de pensar
em seu nome, já ganhei novas esperanças. Foi isso o que me deu motivos
para desistir de relutar, por mais que essa decisão fosse contra o meu um
tanto irônico instinto de sobrevivência.
Parei então de me debater. Soltei meus braços e minhas pernas.
Deixei a corrente me puxar, deixei a água me envolver e me arrastar. Fechei
os olhos só para não precisar assistir a essa parte do pesadelo, e abri a boca,
esperando sentir o inevitável ar do meu cemitério.
No entanto, em vez de ar, fui invadida por água quando abri a boca.
Engasguei, engolindo mais água sem querer. Abri os olhos, mas ainda vi
aquele rio escuro ao meu redor, e não o cemitério ensolarado de sempre.
Alguma coisa estava muito errada.
194
Nunca tinha engasgado antes. Em nenhum outro pesadelo, a água
tinha chegado a entrar de fato nos meus pulmões. Eu sempre acordava logo
antes de morrer. Sempre.
Mas agora não, pelo visto.
Meus pulmões berraram porque a água causou uma dor muito pior do
que a falta de ar. Meu corpo inteiro começou a se debater como uma
resposta frenética à ardência no meu peito, sacudindo meus braços e
agitando minhas pernas como uma tesoura abaixo de mim.
Eu me debati, me debati e então...
Não sei como, comecei a subir. Em poucos segundos, minha cabeça
emergiu da água.
Senti o vento e gotas pesadas crivando minha pele. A chuva vinha de
todos os lados, caindo sobre mim em uma torrente e respingando na água do
rio de volta contra o meu rosto.
Meu corpo começou a reagir de novo. Tossi duas vezes e cuspi um
pouco da água dos meus pulmões. Minhas mãos bateram sem força na
superfície do rio em uma inútil batalha para me manter boiando.
Enquanto me debatia, tive uma sensação estranhíssima nos pulsos,
embaixo da mandíbula e no peito: uma batida pesada que reverberava pelo
meu corpo todo. Sem saber lá muito bem o que eu estava fazendo, pus uma
das minhas mãos sobre o meu coração.
Só então, com a mão firme contra o peito, me dei conta do que era
aquilo: meu coração estava batendo. Era uma pulsação, correndo pelos
meus pulsos e pelo meu pescoço.
Eu estava viva.
Abri a boca para gritar — de medo, de alegria. E para pedir socorro. Se
eu estivesse mesmo viva, precisava de ajuda, e rápido.
Mas outro som abafou meu grito: risos, altos e ensandecidos, vindo de
algum lugar acima de mim. Vozes distintas se misturavam a essas
gargalhadas frenéticas, entre um grito ou outro.
Mesmo sendo muito parecidas, todas essas vozes me soavam muito
familiares. De quem elas eram? De onde elas vinham?
Estreitei os olhos sob a chuva. Bem acima de mim, consegui avistar os
contornos da Ponte Alta e de uma multidão de figuras em sua borda.
Você não se lembra dessa cena, Amélia? Não é tudo tão terrivelmente
familiar?, sussurrou uma voz aveludada — uma versão mais sombria da
minha — dentro da minha cabeça. Franzi a testa enquanto continuava a
tossir, cuspindo mais água. O que estava acontecendo?
195
Olhei de volta para a ponte e as figuras em cima dela.
— Socorro! — implorei. Minha súplica saiu como um frágil gemido que
mal conseguiu chegar à ponte.
Ao ouvir minha voz, uma das figuras se afastou do bando. Ela virou
sua cabeça e seus olhos se fixaram nos meus. Mesmo embaixo da chuva,
pude ver que essa figura era de um garoto.
Talvez eu não tenha conseguido ver seu rosto direito, mas naquele
momento, pude identificar com facilidade sua mandíbula quadrada, seu
nariz retinho perfeito e seus cabelos loiros curtos.
Porque eu conhecia aquele garoto que estava olhando para mim da
Ponte Alta.
Na verdade, só o conheci um pouco antes da minha morte. Só no meu
último ano do colégio, quando praticamente forcei minha mãe a deixar que
eu estudasse no Colégio Wilburton. O garoto que agora olhando para mim
teria se formado comigo, se eu tivesse chegado a me formar.
Eu me lembrei dele. Eu me lembrei de tudo sobre Doug Davidson.
Doug, o menino mais popular do colégio. O que tinha mais amigos, o
carro mais rápido e os pais mais ricos. O que tinha virado meu amigo assim
que pisei no Colégio Wilburton. O que tinha... o que tinha...
Eu estava me esforçando para vasculhar minha memória, tentando
lembrar, quando outra figura se aproximou dele na borda da ponte e pôs o
braço em volta do pescoço de Doug. Quando ela se inclinou para frente,
pude ver seu rosto.
Era Serena Taylor.
Serena sempre foi minha melhor amiga, desde criança. A menina que
eu tinha conhecido nas infinitas partidas de futebol no quintal de casa,
forçadas pelos nossos pais em uma tentativa de que a gente se socializasse.
A menina que havia me ensinado a passar batom, beber escondida as
garrafas de bebidas do armário do meu pai, e como convencer meu pai a
deixar que eu estudasse num colégio público pouco depois de ela ter se
matriculado lá também. A menina que era tão loira e linda quanto o próprio
Doug e que tentou fazer todo o tipo de coisa para conquistá-lo assim que eu
a apresentei a ele, inclusive forçá-lo a ajudá-la a organizar uma festa.
A festa que eles tinham dado juntos para o meu aniversário de dezoito
anos.
O dia em que morri.
Minha cabeça se voltou para Doug e Serena de novo. Os dois estavam
debruçados sobre o parapeito da ponte, com seus rostos à mostra agora.
196
Mesmo de longe e embaixo da chuva, pude ver que havia algo de errado com
eles. Seus olhos azuis quase idênticos pareciam escuros demais, desfocados
demais.
Comecei a tremer não sei por quê. Ao ver aqueles rostos conhecidos —
que não deviam mais parecer ter dezoito anos a esta altura, não é? —, senti
uma tontura.
Naquele instante, Serena gritou para mim. Sua voz aguda cortou o ar
da noite, toda arrastada e bêbada, completamente fora de controle.
— Amélia! Amélia. Feliz aniversário, menina!
Ela ergueu um braço e, abrindo um sorriso absurdamente largo, me
fez um aceno frenético.
Antes que eu pudesse responder, ou gritar alguma coisa tipo,
―Socorro, pelo amor de Deus!‖, tive um flashback repentino e incontrolável.
Foi muito parecido com os outros flashbacks que eu vinha tendo
desde que conheci Joshua — imagens e sons do passado, memórias das
quais tinha esquecido quando morri, voltaram com tudo à minha mente.
De repente, me vi de frente para o meu armário no corredor todo
iluminado do Colégio Wilburton. Colado na porta, havia um cartãozinho
enfeitado com bexigas desenhadas. Nem precisei abri-lo para saber quem o
tinha posto ali. E nem fiquei muito surpresa quando a autora do cartão deu
um gritinho para me cumprimentar atrás de mim.
— Feliz aniversário, minha amiga!
Com um largo sorriso, me virei.
— Serena, você já chegou atrasada umas noventa vezes neste
semestre. Você não acha que já deveria estar na sua sala a esta hora?
Ela sorriu de volta para mim e então soprou uma mecha loira de cima
do seu olho com uma bufada.
— Não no aniversário da minha melhor amiga. — Ela se apoiou contra
os armários, batendo nas portas com uma sacola de papel que estava na sua
mão.
— O que tem nessa sacola aí? — perguntei. — E que sobretudo é
esse?
Com sua mão livre, Serena puxou o cinto de seu sobretudo cáqui, que
se abriu. Por baixo, ela estava usando um vestido rosa que ficava no tênue
limite entre o sensual e o vulgar. Seu corpete bem justinho era decotado um
pouco baixo demais para o meu gosto, e a saia meio curta demais.
— Nossa, que gata! — exclamei.
197
— Que bom que você gostou. — Ela me jogou a sacola, e eu a peguei
no meio do ar. — Aí tem um vestido para você usar hoje à noite. Espero que
você goste de tomara que caia.
— Serena, não posso...
— Ah, pode sim — resmungou se fingindo de irritada.
— Tudo bem, tudo bem. — Dei risada. — Mas como assim, ―hoje à
noite‖?
— Você não achou mesmo que ia escapar de uma das minhas famosas
festas, não é? Ainda mais no seu aniversário de dezoito anos. É tipo,
obrigatório.
Grunhi, mais para concordar do que para reclamar.
— Tudo bem. Quando e onde?
Ela me abriu um sorriso malicioso — um sorriso que, por algum
motivo estranho, me deixou desconfortável.
— Não posso falar, Amélia querida. Mas às oito vou te pegar e te levar
para a melhor festa do ano. Depois de convencer sua mãe a deixar você
voltar bem tarde para casa, é claro.
— Isso só vai me render mais uma daquelas nossas brigas épicas.
Serena, no entanto, apenas encolheu os ombros, indiferente ao meu
drama familiar.
Dei risada de novo, mas me sentindo mais hesitante dessa vez.
— É sério, Serena. Preciso saber onde vai ser essa festa.
Ela balançou a cabeça e piscou para mim.
— Não. Agora, fique quietinha aí para eu poder ir encontrar o Doug e
ver se ele aprova o meu vestido também.
De repente, o flashback avançou para várias horas depois. Imagens
borradas passaram à minha volta até minha visão clarear de novo, então me
vi na frente de uma multidão enorme.
Uma multidão imensa, aliás. Havia dezenas de pessoas à minha volta,
sorrindo, dando risada e se amontoando em volta do que parecia ser um
pequeno barril de cerveja. Vi que alguns ali eram meus amigos de quando
estudava em casa e outros do Colégio Wilburton. Mas nunca tinha visto a
maioria das pessoas naquela festa antes.
— Serena — disse, entre meus dentes cerrados. — Quem são essas
pessoas?
Serena pulou para o meu lado, hiperativa e provavelmente já meio
alta. Ela me entregou seu copo, e eu virei um gole nervoso.
198
— São amigos — disse Serena, dando uma risadinha. — Ou melhor, o
Colégio Wilburton inteiro. Então... são amigos em potencial, né?
— Isso é coisa do Doug? — perguntei, enquanto devolvia o copo para
ela e começava a alisar dobras imaginárias no meu vestido branco.
O traje escolhido por Serena para o meu aniversário na verdade nem
me surpreendeu. Era um vestido absolutamente lindo — sem alça e justinho
na parte de cima, com camadas de um tule todo delicado embaixo —, mas
também totalmente inapropriado. Fiquei vermelha de vergonha ao olhar para
ele. Eu devia estar parecendo alguém que estava indo para algum baile de
formatura.
Um braço forte se apoiou no meu ombro, me fazendo soltar um grito
de surpresa.
— Mas é claro — disse Doug, me puxando mais para perto. Deu uma
olhadinha de lado para mim. — Aliás, belo vestido.
Encolhi os ombros para me soltar de seu braço.
— Aposto que você gostou mais do da Serena.
— Pode ser — disse, e então me empurrou para se aproximar dela.
Segundos depois, eles já tinham dado os braços e sumiram em meio à
multidão, me deixando sozinha ali, com o meu lindo, mas embaraçoso
vestido, na minha própria festa de aniversário. Olhei para a multidão, à
procura de algum amigo, mas não tive sucesso.
Um estrondo me distraiu, e olhei para o alto. Acima de mim, a noite
parecia escura e limpa, mas sabia que não era bem assim; nuvens pesadas e
cinzentas haviam passado o dia todo ameaçando desabar uma tempestade.
Agora, raios cortavam o céu com clarões ofuscantes que se refletiam nas
vigas metálicas da Ponte Alta.
Eu odiava aquela ponte, odiava mesmo. Ela era muito frágil e velha e
já tinha sido cenário de acidentes e suicídios demais para o meu gosto. Mas
eu podia imaginar por que Serena havia escolhido aquele lugar para dar a
minha festa: graças à sua má reputação, a estrada era praticamente
abandonada, o que a tornava um local perfeito para festas épicas. Aliás, eu
devia ser a única pessoa de Wilburton que não gostava da ideia de encher a
cara na Ponte Alta. E continuava não gostando.
Ficar pensando nisso, no entanto, não iria melhorar muito o meu
humor. Então olhei para os rostos à minha volta, à procura de alguém para
conversar.
Mas todo mundo me ignorou totalmente. Bom, todo mundo menos
uma pessoa. Um garoto, bem à minha frente, no meio da multidão e apenas
199
parcialmente visível, chamou minha atenção. Ele pareceu ficar espantado
por um instante, como se algo em mim tivesse o surpreendido, mas depois
sorriu e me fez um leve aceno de cabeça. Esse gesto deveria ter me deixado
feliz, mas na verdade me irritou. Não sei bem o porquê, já que o menino era
muito bonito: ele tinha uma estranha pele brilhante, longos cabelos loiros,
olhos azuis-claros e estava com uma camisa preta, aberta com um ar todo
provocador sobre seu peito nu para revelar um amontoado de colares. Mas
alguma coisa em seu sorriso tinha um quê de malícia.
Eu me inclinei de lado até uma garota que me pareceu vagamente
familiar e gritei por cima de todo o barulho:
— Oi! Está vendo aquele menino todo roqueirinho ali? Você sabe quem
ele é?
— Quem? — berrou ela.
Quando me virei para apontar na direção dele, não consegui mais vê-
lo em meio àquele mar de rostos. Será que ele tinha saído do lugar?
Franzi a testa e comecei a abrir caminho entre a multidão, de repente
determinada não sei bem por que a encontrá-lo. As pessoas iam e vinham à
minha volta, às vezes bloqueando minha passagem, às vezes me empurrando
para frente. Analisei cada um dos convidados, mas não consegui encontrar o
roqueirinho, nem Doug ou Serena. Enquanto me espremia ponte à frente,
gotas de chuva começaram a cair do céu, fracas no começo, mas que depois
começaram a engrossar.
— Que maravilha — murmurei, enxugando um pingo grosso no canto
do meu olho direito. Mas por mais que eu passasse a mão, esse pingo não
saía. Irritada, virei minha cabeça com toda força para a direita.
Foi então que eu os vi. Eles deviam estar na borda da minha visão
periférica, quase fora de vista: vultos escuros pairando em meio à multidão,
rodando em volta da cabeça das pessoas. Essas formas negras e espectrais
se moviam como um líquido, ondulando e serpenteando de um lado para o
outro. Ainda assim, elas pareciam densas, quase como nuvens, ou...
— Fumaça! — gritei, me espremendo contra um garoto que estava
especialmente bêbado.
Continuei gritando essa mesma palavra e abrindo caminho entre as
pessoas, mas a multidão respondia aos meus gritos apenas com gargalhadas
e olhares vazios, como se não pudessem ver que eu estava ali, muito menos
os vultos estranhos pairando sobre suas cabeças.
200
Comecei a entrar em pânico. Senti uma descarga de adrenalina e
então tentei me espremer em meio à densa massa de corpos alheios à minha
presença.
De repente, meus braços escaparam da multidão. Minhas mãos se
debateram no ar por um instante até encontrarem alguma coisa sólida: uma
superfície lisa, fria e molhada de metal. Eu me agarrei a ela e a usei para me
arrastar para fora daquela muralha de corpos.
Olhei para baixo e vi minhas mãos firmes na borda do parapeito de
metal da estrada, uma estrutura frágil feita para impedir que os carros
caíssem no rio lá embaixo.
Com a multidão se remexendo atrás de mim, me abracei ao parapeito
em uma tentativa de escapar da massa. Mas sinceramente, escapar para
onde? Arrisquei olhar para baixo, para o rio.
O rio pareceu saltar contra mim, caudaloso após três semanas das
fortes chuvas de primavera de Oklahoma. Nunca tinha visto aquelas águas
tão altas assim, ou tão turbulentas com a violenta corrente. Uma espuma
parecia contornar as bordas do rio, como um cão raivoso babando. Essa
cena me causou um profundo calafrio cortante na espinha.
Mas...
E se eu simplesmente... pulasse?
Eu me debrucei mais sobre o parapeito, olhando para a água. Claro,
eu estava a vários metros de altura, e o rio parecia mais perigoso do que
nunca. Mas será que eu conseguiria escapar da festa se me inclinasse só um
pouquinho mais para frente...?
Quase perdi o fôlego e me afastei do parapeito, balançando a cabeça
de medo. O que diabos tinha me dado aquela ideia? O que me fez achar que
eu poderia simplesmente pular e sair nadando? De onde aquela ideia tão
obviamente perigosa tinha vindo?
Naquele instante, senti um impulso mais forte do que qualquer outra
coisa na minha vida: eu queria ir embora daquele lugar. Para longe daquela
multidão de estranhos e daquela fumaça bizarra que pairava —
aparentemente sem origem alguma — sobre todos. Para longe daquele rio.
Olhei de volta para a multidão, desesperada à procura de alguém que
eu conhecesse. Alguém que pudesse me tirar dali.
Foi então que o avistei de novo. O roqueirinho. Ele me viu de trás de
um bando de rostos, agora com um inconfundível sorriso malicioso no rosto.
Não sei como, mas na mesma hora, tive a certeza de que ele pôde ver o medo
nos meus olhos. E de que ele estava gostando.
201
Antes que eu pudesse gritar para ele me deixar em paz, outro rosto
apareceu à sua frente. Quando Serena me abriu um largo sorriso, quase
desmaiei de alívio. Ela passou entre os outros convidados, abrindo caminho
até chegar à minha frente.
— Serena, graças a Deus...
— Amélia! — me interrompeu com um gritinho todo alegre, e então
lançou os braços em volta do meu pescoço para um forte abraço.
O movimento foi violento demais e quase me derrubou por cima do
parapeito. Consegui me segurar na borda metálica curva, me agarrando em
desespero à sua superfície lisa.
— Serena, cuidado! — gritei.
Na mesma hora, ela me soltou, e eu consegui me apoiar no parapeito
de novo. Mas em vez de ver se eu estava bem ou sequer me acalmar, Serena
só se virou de volta para a multidão em festa na ponte.
— Oi, pessoal, escuta aqui! — disse ela, arrastando cada palavra.
Nunca a tinha visto tão bêbada assim. — Vocês sabiam que hoje a Amélia
está fazendo dezoito anos?
Em resposta, a multidão inteira se virou para nós. O resultado disso
foi perturbador, como se centenas de olhos tivessem se focado ao mesmo
tempo em mim. Então consegui avistar os olhos azuis de Doug a uns seis
metros de mim. Os olhos do roqueirinho também reapareceram, emanando
um leve brilho, perto dos de Doug. Acima de todos ali, ainda pairavam os
vultos escuros, circulando em cima e em volta de cada pessoa.
De repente, todos voltaram a falar, mas desta vez, dizendo uma única
palavra. Uma mesma palavra, sendo repetida várias e várias vezes por uma
centena de vozes diferentes.
Meu nome.
Ainda olhando para as pessoas, Serena se apoiou de costas em mim, e
seu peso me empurrou ainda mais contra o parapeito. Meus pés chegaram a
sair do asfalto e balançaram um pouco pelo ar.
Isso deveria ter me apavorado. No entanto, quando Serena se virou de
volta para mim, fiquei espantada ao ver seus olhos.
Eles estavam desfocados, como os de qualquer pessoa bêbada
estariam. Eu já tinha visto os olhos de Serena turvos pela bebida antes,
várias vezes, aliás. Mas seja lá o que estivesse enevoando seus olhos agora,
com certeza não era o álcool. Seus olhos estavam arregalados e vazios
demais, com suas pupilas tão dilatadas que restava agora apenas um fino
círculo branco à sua volta.
202
Serena parecia estar possuída.
Quando ela se inclinou para perto de mim, eu recuei. Mas minha
reação não deteve Serena. Ela se aproximou de mim, me empurrando mais e
mais sobre o parapeito até eu ficar em paralelo ao rio. Em seguida, Serena
me pegou pelos ombros e, com um sussurro rouco, disse:
— Feliz aniversário, amiga.
Com um estranho sorriso largo até demais, ela soltou meus ombros.
Esse foi o movimento fatal.
Meu parco equilíbrio sobre o parapeito se perdeu. Rolei para trás e
pairei pelo que pareceu ser uma eternidade sobre a borda. Em seguida, caí,
rolando por cima da estrutura metálica. Ouvi a água agitada borbulhando lá
embaixo, enquanto o rio avançava contra mim. Um pouco antes de cair na
água, escutei um coro de gritos acima de mim.
Naquele momento, o flashback acabou.
Por um instante, quase me esqueci de que aquilo era só um flashback.
Mas a memória perdeu o foco e se esvaiu. Voltei a me ver no rio, olhando
para a ponte lá no alto.
Percebi então uma coisa terrível. Não sabia como, nem por que, mas
quando esse último flashback acabou, não me vi de volta ao presente na
relativa segurança do meu cemitério. Em vez disso, eu ainda estava me
debatendo no rio, ainda passando pelo que no começo achei ser só mais um
dos pesadelos de sempre.
Então, o flashback não tinha acabado. Na verdade não. Porque eu
ainda estava lá, em certo sentido. Ainda estava no rio, na noite do meu
aniversário de dezoito anos. De repente, percebi que Doug e Serena ainda
estavam olhando para mim, com seus olhos arregalados.
— Doug, ela viu a gente! — gritou Serena. — A Amélia viu a gente!
Doug não respondeu aos gritos de Serena, nem tirou os olhos de mim.
Ele apenas abriu um sorriso ensandecido e, como Serena já tinha feito no
flashback de antes, acenou para mim.
Eu ainda podia ver aquelas mesmas sombra escuras, dançando em
volta dos meus amigos. Eu sabia o que elas eram agora. Elas só podiam ser
as almas aprisionadas do submundo. Os servos de Eli. Os espectros que
estavam por trás de toda esta noite.
— Doug, Serena, por favor! Eu não consigo...
Minha voz saiu ainda mais fraca do que no outro flashback. Pude
sentir meu corpo perdendo a batalha contra a corrente. Estava fragilizada
203
demais para sair nadando daquela água turbulenta agora, sabia muito bem
disso. Eu precisaria da ajuda dos meus amigos.
Uma ajuda que talvez eles não estivessem dispostos a me oferecer.
Doug e Serena pareciam duas estátuas, totalmente inertes em cima da
ponte.
— Por favor — gritei mais uma vez, o mais alto que pude.
Ao ouvir minha voz cheia de angústia, Serena se virou para a multidão
de convidados atrás dela e gritou para eles, erguendo sua voz com um berro
histérico por cima de todas as risadas.
— Ei, pessoal! Vamos cantar ―parabéns‖!
Balancei a cabeça, exausta. Queria gritar para aquelas pessoas. Para
implorar que elas não ouvissem Serena. Para dizer que elas estavam todas
sendo controladas por espíritos sombrios que as levaram à loucura e as
deixaram fora de si. No entanto, minha voz, assim como meus braços,
parecia prestes a entrar em colapso. Então, só me virei para Serena e
implorei em silêncio com meus olhos.
Serena olhou de volta para mim com um repentino ar determinado.
Soltei um imenso suspiro de alívio. Sua expressão só podia significar uma
coisa: ela tinha decidido chamar socorro. A polícia, uma ambulância, talvez
até meus pais. Enfim, tanto faz, eu não estava nem aí, desde que alguém me
tirasse daquela água.
Mas quando Serena finalmente falou, sua voz saiu calma, calorosa,
sem nenhuma urgência.
— Essa é para você, Amélia, minha querida! — disse, e então se virou
para a multidão. — Todo mundo pronto, pessoal? Vamos lá!
Um uníssono de vozes irrompeu da ponte, como um coral.
— Parabéns pra você, nesta data querida...
— Não! — gritei, tentando relutar de novo contra as ondas.
Mas é claro, meu grito não saiu mais forte do que um sussurro rouco,
e meus esforços não foram nada em comparação ao controle que a corrente
agora tinha sobre meu corpo. Eu não estava mais conseguindo boiar direito,
muito menos escapar da força da correnteza.
Com uma clareza angustiante, entendi o que estava acontecendo. As
pessoas na ponte em cima de mim estavam enlouquecidas demais, bêbadas
demais, para me ajudar. Nunca conseguiria recobrar minhas forças. E
continuaria a perder mais e mais energia na minha batalha contra o rio.
Essa cena só tinha um único desfecho possível.
204
Não!, gritei dentro da minha cabeça. Isso não precisa acontecer de
novo. Posso mudar essa situação. Não preciso morrer desta vez! Não mesmo!
— Socorro! — gritei em voz alta, mas já quase totalmente sem forças,
então o grito ecoou só na minha mente. Minha cabeça afundou e ficou
embaixo da água por alguns segundos. Quando a corrente me empurrou de
volta até a superfície, arquejei em pânico.
Mas meu arquejo não durou muito, porque a correnteza me puxou de
volta para baixo quase que na mesma hora. Quando afundei, ainda estava
tentando respirar, então acabei engolindo água. A corrente me fez girar e por
fim me levou para o outro lado da ponte, antes de me erguer para fora da
água de novo.
Tossindo e cuspindo, olhei para o alto da ponte, agora do outro lado
de onde eu tinha caído. Pude ver de relance as silhuetas borradas pela
chuva de Doug e Serena correndo até o parapeito atrás de mim. Tentei
erguer a mão até eles, mas não consegui nem tirar meu braço da água.
Só então percebi que Serena estava me estendendo alguma coisa. Era
sua mão, esticada mais uma vez sobre o parapeito até mim. Ela me deu
outro aceno, toda alegre, agitando seu braço com um ar alegre sob a chuva
pesada.
Seu enorme sorriso foi a última coisa que vi antes da minha cabeça
afundar de novo pela terceira e última vez. Não consegui ver mais nada
depois disso.
205
Vinte e Qyatro
Acordei, ainda ofegante e tossindo. Meus dedos se remexeram
freneticamente à procura de algum apoio à minha volta.
No começo, não consegui sentir nada, o que só me aterrorizou ainda
mais. Mas então, senti a pressão mortiça de alguma coisa embaixo de mim
— uma coisa sólida. Virei a cabeça o máximo que pude para a direita e vi
algo meio amarelado e sujo a poucos centímetros do meu rosto. Estreitei os
olhos, focalizando melhor a cena. Pude ver então fios marrom-escuros entre
esse amarelo. Levei um instante para me dar conta de que os fios marrons
eram meus cabelos, espalhados pela grama seca e amarelada embaixo da
minha cabeça.
Acima de mim, tudo o que podia ver eram as estrelas. Eu me levantei
e olhei à minha volta. Bem longe, ao oeste, o céu estava com um leve tom de
violeta, onde o sol tinha acabado de se pôr entre as montanhas. Do outro
lado, a noite já havia começado a escurecer, ganhando profundos tons de
roxo e azul.
Ainda assim, mesmo sob a escuridão, reconheci as curvas e contornos
de lápides familiares à minha volta. Eu estava no meu cemitério de novo.
Ergui a mão e toquei com cuidado na parte de trás da minha cabeça,
no ponto onde ela tinha batido contra minha lápide. Nada. Nenhum sinal de
sangue ressecado, nem qualquer ferimento, mas por algum motivo, minha
cabeça ainda latejava um pouco. Coloquei a mão no peito, logo acima do
coração. Não senti nenhuma batida. Nenhuma pulsação.
Estava morta de novo. Pela primeira vez, isso na verdade me deixou
até feliz.
Ainda sentada, me virei para a minha lápide. Mesmo sob a penumbra
da noite, pude ver uma enorme rachadura que agora a cortava bem no meio.
Por mais que ela não tivesse me machucado, eu com certeza lhe causei um
belo estrago.
206
Bom, o papai sempre disse que eu tinha a cabeça dura.
Ao pensar no meu pai, olhei na mesma hora para sua lápide. Ela
ainda estava intacta, e então, não sei bem por que, soltei um suspiro de
alívio.
Em seguida, ergui a cabeça de novo à procura da próxima ameaça
mais perigosa do meu pós-vida. No entanto, uma breve olhada pelo cemitério
me mostrou que Eli Rowland havia sumido.
Olhei para o meu braço, onde um leve hematoma parecia ter se
formado em volta de onde Eli tinha me agarrado. Com cuidado, toquei no
meu lábio inferior e notei um corte enorme. Nenhum dos dois ferimentos
doía. Ainda assim, por mais impossível que fosse, eles eram muito reais.
Soltei outro suspiro e me sentei no chão, puxando minhas pernas
junto ao peito e laçando os braços em volta delas. Eu tinha que sair daquele
lugar, e logo. Mas antes, precisava pensar.
Vamos por partes: agora me lembrava da minha morte, é claro. De
cada terrível detalhe. E sabia onde meus pesadelos começavam. Era sempre
no momento em que eu caí no rio, no momento em que o rio sugou minhas
energias, antes de eu voltar à superfície só por tempo o bastante para ver
meus amigos — controlados por alguma força sombria, e claramente maligna
— assistindo à minha morte.
De certa forma, meus pesadelos vinham sendo até piedosos. O
universo, o destino ou até minha própria mente tinham me forçado a reviver
minha morte várias vezes, mas não tinham, ao menos até agora, me feito
passar pela pior parte de tudo.
Essas novas memórias perturbadoras trouxeram outra coisa à tona
também.
Eli esteve lá, observando tudo, só esperando com uma alegria
maligna. O roqueirinho, com seu sorriso malicioso e olhar frio. Serena não
me empurrou, nem Eli, é claro. Mas Eli com certeza teve algo a ver com
minha queda. Ele estava controlando aqueles vultos escuros (tão iguais
àqueles do submundo que só poderiam ser os mesmos) que pairavam em
volta das pessoas e as possuíram, evitando que elas me ajudassem.
Enquanto esfregava meu pulso, distraída, fiquei pensando no que Eli
tinha feito: será que ele tinha me irritado tanto, me deixado tão enfurecida,
que acabei me transportando de volta justo para a memória de que ele
estava falando?
Se fosse isso mesmo, a potência dessa materialização forçada tinha
me dado outra ideia. Eu claramente era capaz de viajar pelo tempo e pelo
207
espaço, por mais que ainda não tivesse um controle total sobre isso. Mas
também estava certa de que eu tinha outros poderes ainda desconhecidos. E
agora, acreditava na alegação de Eli de que os fantasmas eram capazes de
coisas extraordinárias, em especial sob o efeito de emoções muito intensas.
Meus ferimentos eram uma prova clara disso.
Lembrei então da cadeira que tinha sido empurrada para trás quando
me levantei rápido demais na biblioteca do Colégio Wilburton. Isso aconteceu
logo depois de eu ter visto minha foto no anuário, logo depois de uma forte
descarga emocional.
Isso sem falar nos meus vários anos de materializações após meus
pesadelos, ou na rachadura na minha lápide.
Pelo visto, Eli não era o único com esse tipo de poder. Eu também
conseguia me materializar e afetar objetos físicos. Mas do que mais eu era
capaz? De que outras formas eu podia influenciar o mundo dos espectros e o
mundo dos vivos?
Essas perguntas me lembraram da melhor parte do mundo dos vivos
que eu já tinha experimentado até agora.
Joshua.
Se eu fosse capaz de influenciar os dois mundos, talvez pudesse
proteger Joshua de Eli. E se eu pudesse impedir Eli de tocar em mim — de
me machucar ou me irritar a ponto de fazer com que me desmaterializasse
sem querer —, talvez tivesse alguma chance contra ele. Será que eu era
capaz de atacá-lo? De machucá-lo de verdade, de fazê-lo sangrar, como ele
tinha feito comigo? Nem que fosse só o bastante para impedir que ele
chegasse perto de Joshua.
Talvez, se eu me concentrasse o bastante, poderia fazer... alguma
coisa. Seja lá o que essa coisa pudesse ser.
— Amélia!
Esse grito inesperado me fez dar um pulo e cair agachada no chão, me
segurando à grama e rosnando na direção da voz. A simples ideia, a mera
insinuação, de que Eli poderia ter reaparecido foi o bastante para me deixar
totalmente enfurecida.
E eu também devia estar parecendo uma maluca quando Joshua, e
não Eli, veio correndo até mim, porque ao me ver com aquela postura
agressiva, ele parou de repente.
— Amélia? — perguntou de novo, mais tímido dessa vez.
208
Me acalmei um pouco e me ajoelhei no chão. Estava me sentindo
humilhada, apavorada, confusa. Os olhos de Joshua também estavam
arregalados de medo.
— Você está aqui de verdade? — sussurrou. — Não estou ficando
louco, estou? Não estou, tipo, só imaginando você, não é?
— Não — disse, me soltando para estender um braço para ele. — Você
não está ficando louco. Sou tão real quanto um fantasma pode ser.
Joshua me surpreendeu dando um pulo na minha direção. Ele caiu de
joelhos e então me puxou para um abraço com uma velocidade atordoante.
— Meu Deus, Amélia — murmurou contra os meus cabelos. — Será
que tenho como ficar muito bravo com você e totalmente aliviado ao mesmo
tempo?
— Acho que sim — dei risada, abraçando-o com força. Aconcheguei
meu rosto contra sua camiseta azul-clara e suspirei. — Desculpe, Joshua.
Desculpe mesmo. Enfim, estou contente por ter feito tudo sozinha, mas não
estou nem um pouco contente com o jeitoque fiz isso.
— Mas o que foi que você fez?
— Eu me materializei no cemitério. Me encontrei com Eli, e algumas
coisas aconteceram... coisas ruins, inclusive um pesadelo... e aí acordei.
Peço desculpa mesmo por não ter te explicado o que eu ia fazer. Só não
queria que você viesse atrás de mim se desse certo, para que você não se
machucasse. Mas pelo visto, você me seguiu, porque enfim, aqui está você, e
eu também...
Joshua interrompeu meu tagarelar com uma risada tensa.
— Você tem ideia de quantos cemitérios existem em Wilburton? Não
são poucos...
— Ai, nossa, me desculpe — gemi de novo.
Joshua pegou meu rosto com suas duas mãos e o ergueu com
carinho, mas também firmeza até nossos olhos se encontrarem.
— Amélia, nunca mais faça isso, tá? A não ser que você queira me
matar também.
— Desculpe — repeti mais uma vez. Em seguida, balancei a cabeça. —
Estou sempre pedindo desculpa, não é?
— Se você prometer que vai pelo menos me avisar quando for fazer
alguma coisa assim de novo, não vai ter pelo que se desculpar.
Ergui uma das mãos em um gesto de juramento.
— Prometo. Sempre, sempre vou avisar você antes de fazer alguma
coisa idiota de agora em diante.
209
Joshua acenou a cabeça, parecendo um pouco mais calmo.
— Tudo bem. Agora me prometa outra coisa: você nunca mais vai falar
com Eli sozinha.
— Que tal se nenhum de nós nunca mais nunca mais falar com ele?
Joshua pareceu surpreso.
— Bom, por mim, seria ótimo. Mas como a gente vai fazer isso?
— Descobri algumas coisas hoje — disse eu. — Tenho muito para te
contar. Mas antes, acho que tenho alguns poderes também, como os do Eli.
Não sei bem quais ainda, mas acho que se eu ficar irritada o bastante, tenho
como usar isso contra ele.
Joshua arqueou uma sobrancelha.
— Então você acha que ele vai aparecer de novo?
— Com certeza, mas sei lá quando...
Não terminei minha frase e então franzi a testa e olhei para a grama,
pensativa. Ao relembrar minha conversa com Eli no começo daquela manhã,
algo me pareceu estranho. Só então me dei conta do que Eli tinha falado logo
antes do meu empurrão para fora da Ponte Alta. Que ele tinha outro
compromisso ainda hoje.
Uma canção de repente invadiu minha cabeça, abafada e distante.
Iremos nos reencontrar...
Senti um arrepio sinistro percorrer minha pele, mas não teve nada a
ver com Joshua.
— Joshua, o Eli não passou na sua casa hoje, passou?
— Não que eu saiba.
— Tem certeza?
Ele deu risada.
— Tenho sim, claro.
— Você falou com o resto da sua família? — insisti.
Joshua ficou sério na mesma hora.
— Bom, não, mas...
— Quanto tempo fiquei sumida? — o interrompi.
— O dia inteiro. Ainda é sexta-feira. Mas agora já é de noite.
— Onde está o resto da sua família?
— Minha mãe e meu pai saíram juntos. E a Jillian aproveitou isso
para sair também.
— Para onde ela foi?
— A Jillian voltou para casa toda empolgada com uma festa que ia
rolar hoje à noite. Ela me zoou por eu não querer ir... não quis, porque achei
210
que ia passar a noite inteira procurando você... e aí ela chamou todas
aquelas amigas babacas dela lá em casa para se arrumarem. Acho que eu
devia ter ido atrás delas para saber onde era a festa, mas eu estava mais
preocupado com você.
Essa história me incomodou, especialmente a parte da festa. Ergui a
cabeça na mesma hora e voltei a olhar nos olhos de Joshua.
— Eu... acho que a gente devia ir atrás da Jillian — disse. — E é
melhor a gente correr.
Ainda sem entender minha preocupação, Joshua deu risada.
— Acho que a Jillian não ia gostar muito se eu aparecesse nessa festa
assim, sabe.
— Eu sei, mas... — disse, mordendo meu lábio, enquanto debatia
comigo mesma dentro da minha cabeça. Por fim, acenei a cabeça. — Joshua,
na noite em que morri, eu estava numa festa na Ponte Alta que fizeram para
o meu aniversário. Essa festa... bom, tenho quase certeza que foi por causa
dessa festa que morri. E foi tudo obra do Eli e dos servos dele.
Pude praticamente ouvir os pensamentos de Joshua se conectando.
— O que exatamente isso significa agora? — perguntou baixinho.
— Não faço ideia. Talvez nada. Mas estou com um pressentimento
estranho sobre isso. E se o Eli tentasse atacar a gente de outro jeito? Sei lá,
talvez com essa festa. O que ele poderia fazer com as pessoas lá?
— Você acha mesmo que ele faria isso?
— Não sei... nada me parece impossível a esta altura.
De repente, um barulhinho eletrônico interrompeu as minhas
preocupações. Joshua pareceu ficar surpreso com o barulho também,
porque se levantou rapidamente e se atrapalhou todo comigo em seus
braços.
O barulho trilou de novo, insistente, então ele pôs a mão dentro do
bolso e pegou o celular. Abriu o aparelhinho e começou a apertar alguns
botões.
— É uma mensagem da Jillian, me convidando para a festa.
— Uma mensagem?
— É tipo um e-mail, mas pelo telefone — murmurou, claramente não
muito interessado em me explicar novidades tecnológicas no momento. Mas
não me incomodei. Nem fiquei surpresa quando, depois de ler a mensagem
seu rosto ficou todo sério, e ele me soltou.
211
— Onde é essa festa? — perguntei, fechando os olhos de medo. Senti
uma dor estranha de repente nas minhas têmporas, como se já fosse uma
resposta aos meus temores.
— Na Estrada Ponte Alta.
O mundo inteiro parou. Nada tinha saído do lugar, nada tinha
mudado, mas me senti como se estivesse bem no meio de uma explosão
nuclear.
Ele fechou a cara ainda mais antes de olhar para mim. Foi fácil
entender as emoções em seus olhos: incerteza, claro, mas também um medo
profundo e crescente.
Continuamos olhando um para o outro, ambos ainda paralisados. Em
poucos segundos, uma enxurrada de pensamentos passou pela minha
cabeça. Será que Joshua sabia dirigir rápido? Será que Eli tinha alguma
coisa a ver com isso? E se tivesse, o que nós poderíamos fazer para detê-lo?
Minha cabeça começou a latejar forte agora. Só a voz de Joshua
conseguiu me tirar daquele transe.
— Quer ir numa festa comigo, Amélia? — sussurrou, com um quê de
pânico na voz.
— Acho que seria uma boa — sussurrei de volta. Sem dizer mais
nada, saímos correndo até a entrada do cemitério.
— Eu dirijo — disse Joshua para mim.
— Então é melhor você...
Um clarão flamejante a menos de quinze metros de nós interrompeu
minha frase e nos fez parar de repente.
212
Vinte e Cinco
Por um instante, achei que alguma coisa dentro do cemitério — talvez
uma árvore — tivesse pegado fogo, mas então percebi que os sons que
acompanhavam aquele clarão não eram apenas o sibilar de labaredas. Eram
murmúrios humanos.
Cânticos.
O brilho das chamas era forte e o sol já tinha quase se posto, então
tive que estreitar os olhos para ver melhor as silhuetas das figuras que
estavam entoando esses cânticos logo em frente à cerca de ferro do
cemitério. Mas quando olhei para o céu escuro, para a lua minguante lá no
alto, todas as peças começaram a se encaixar...
— Joshua, o exorcismo! — exclamei. — Era para ser esta noite.
Na minha pressa para dar um jeito em Eli, tinha me esquecido
totalmente do exorcismo. Mas Ruth e os outros videntes, não. Eles
provavelmente deviam ter seguido Joshua até ali, sabendo que ele os levaria
direto até mim.
O latejar nas minhas têmporas agora pulsava no mesmo ritmo
daquelas vozes; a dor devia ter começado junto com os cânticos, antes que
eu mesma percebesse.
Joshua grunhiu e pegou minha mão para me arrastar pelo cemitério
até uma pequena colina, perto dos portões. Lá no alto, havia umas dez
pessoas reunidas, homens e mulheres. Fora Ruth, cada uma das outras
estava segurando uma tocha acesa, em volta do que parecia ser um círculo
de um pó cinzento — idêntico àquele que havia em frente às portas da casa
de Joshua — sobre a grama. No meio dessas pessoas, pude ver um pequeno
objeto retangular no chão. A bíblia amarrada com ervas de Ruth,
provavelmente.
Todos os videntes estavam concentrados no centro desse círculo
improvisado, menos Ruth, que estava mais ao lado, olhando para Joshua e
eu.
213
Joshua deu um aceno seco de cabeça para sua avó.
— Tochas, vó Ruth? Será que usar umas lanternas não teria sido um
pouco mais prático?
O canto da boca de Ruth se repuxou de irritação.
— As tochas dão um toque mais cerimonial, Joshua.
Ao ouvir a conversa, os outros videntes finalmente olharam na nossa
direção. Fiquei surpresa com seus rostos: a maioria daquelas pessoas era
mais velha, mas outras eram jovens, mais ou menos da idade de Joshua e
eu. Mas apenas algumas — em geral as mais velhas — estavam olhando
direto para mim. Como Jillian tinha feito no estacionamento da escola e
depois na cozinha de sua casa, os videntes mais jovens pareciam estar
olhando para onde eu estava, mas sem conseguir ver nada muito bem.
— Por que nem todos eles estão olhando para mim? — consegui
sussurrar, por mais que todo o meu corpo, inclusive minhas cordas vocais,
parecesse estar paralisado.
— Nem todos eles passaram pelo evento que ativa seu dom — explicou
Ruth, voltando seus olhos penetrantes contra mim. — Alguns deles não
podem ver você... ainda.
— Então não deixe que isso aconteça — pediu Joshua.
Agradeci a Deus por isso, porque acho que não teria forças para dizer
mais nada. Não sabia se aquele grupo de videntes tinha poder o bastante
para me expulsar deste mundo, mas sabia que essa dor de cabeça (ainda
não tão debilitante, mas cada vez pior) não era um bom sinal. Seja lá o que
os videntes pretendiam fazer comigo, com certeza não era nada que eu fosse
querer.
Assim como não queria que esta fosse minha última noite no mundo
dos vivos. Minha última noite com Joshua.
No entanto, Ruth balançou a cabeça, negando seu pedido.
— Nem pensar. Se ela está vagando entre nós, perdida entre um
mundo e outro, ela só pode ser maligna. E não podemos correr o risco de
que ela se junte àquele outro espírito para atacar mais pessoas naquela
ponte.
Joshua se inclinou para frente, me puxando sem querer junto com
ele.
— Vocês estão atrás do fantasma errado, é sério — gritou. Ruth
balançou a cabeça, mas Joshua a cortou: — Não, me escute, vó Ruth. A
Amélia não tem nada a ver com as mortes na Ponte Alta. Na verdade, ela foi
214
uma vítima do cara que vocês estão caçando... o tal de Eli. Eu sei. Eu já vi
esse cara, e ele é muito sinistro.
Ruth deu um passo hesitante atrás, como se as palavras de seu neto a
tivessem deixado confusa. Joshua se aproveitou do momento e avançou,
enfiando sua mão livre no bolso. Ele pegou seu celular, o abriu e então o
segurou bem na frente de Ruth.
A princípio, ela até tentou ignorá-lo, mas logo depois seus olhos foram
atraídos pela tela iluminada do celular. Ela franziu a testa, ainda olhando
para o aparelho.
— O que isso, Joshua? — perguntou.
— É uma mensagem de texto da Jillian — disse, erguendo o celular
para mais perto de Ruth ainda. — Ela e os nossos amigos estão numa festa
lá na Ponte Alta, e a gente tem quase certeza de que é o Eli quem está por
trás de tudo isso.
— Como você sabe?
— Sabendo, oras — quase gritou, já perdendo a paciência. Cada
segundo perdido poderia custar a vida de sua irmã, e Joshua sabia muito
bem disso.
Ruth ainda parecia não estar acreditando, com sua boca repuxada
com um ar cético. Mas em seus olhos... percebi um quê de dúvida. Uma
hesitação que ficava clara sempre que ela desviava seu olhar para mim.
— Ruth — disse, baixinho, dando um passo adiante com a mão de
Joshua ainda firme na minha. A dor nas minhas têmporas piorou quando
cheguei mais perto dela, mas continuei em frente. — Ruth, sei que você não
confia em mim e, no fundo, nem tenho como culpar você por isso. Mas você
tem razão quanto a uma coisa: esse tal Eli Rowland não presta mesmo. Ele
controla aquele rio, e depois do que ele me mostrou sobre minha morte hoje
à tarde, tenho quase certeza de que ele está por trás da festa desta noite. —
Eu ainda podia ver um quê de incerteza nos olhos de Ruth, então me inclinei
para mais perto ainda. — Por favor — murmurei. — Deixe essa história de
exorcismo de lado por enquanto. Pelo menos até eu conseguir dar um jeito
no Eli e ter certeza de que a Jillian está bem.
Ruth olhou para o seu grupo de videntes, que estavam todos nos
observando atentamente, e então se virou de volta para nós.
— Por favor — repeti.
Bem devagar, quase sem se mover, Ruth acenou a cabeça para mim.
215
— Posso segurá-los um pouco — sussurrou. — Não estou prometendo
nada definido, um dia, duas semanas, enfim, mas você precisa garantir a
segurança da minha neta. Porque se não...
Ruth não terminou a frase, mas eu não precisava ouvir mais nada. Se
eu não salvasse Jillian, nada poderia me salvar. Mordi meu lábio, acenando
a cabeça também.
Eu me virei para Joshua, que ainda estava pálido, com medo.
— Joshua? — disse. Por fim, ele acordou e desviou seu olhar de sua
avó para mim. Quando percebi que ele estava concentrado nos meus olhos,
apertei sua mão com força, disparando uma corrente de fogo que subiu e
desceu pelos nossos braços. — Joshua, a gente tem que ir — ordenei. —
Agora!
Essas palavras foram o bastante para motivar Joshua. Ele soltou
minha mão e saiu correndo até seu carro, tirando suas chaves do bolso. Já
estava quase abrindo a porta quando percebeu que eu não estava atrás dele.
Só então ele se virou para mim.
— Amélia?
— Pode ir sem mim. Consigo chegar lá muito mais rápido se me
materializar só.
— Boa ideia — Joshua acenou a cabeça. — Faça o que você puder. Eu
vou bem rápido.
Sua expressão me disse que ele estava aturdido demais para
perguntar o que exatamente eu poderia fazer quando chegasse antes dele ao
rio. Em seguida, entrou no carro e ligou o motor.
Enquanto saía derrapando pela entrada de cascalho, me virei de volta
para Ruth.
Ela continuou parada, ainda me observando. Seus olhos se desviaram
rapidamente na direção dos videntes, que estavam todos esperando ansiosos
— quase enraivecidos, ao que parecia — pela sua decisão. Quando Ruth
voltou a se concentrar em mim, pude ver diversas emoções se digladiando
em seus olhos: a preocupação com Jillian; a frustração pelo impasse em que
ela estava; e é claro, um ódio profundo.
De mim.
Todo esse seu ódio me irritou, especialmente porque aquela dor de
cabeça ainda latejava nas minhas têmporas, ameaçando se transformar em
mais uma daquelas terríveis e incapacitantes séries de imagens. Estava
prestes a arriscar minha existência, meu próprio pós-vida, só para salvar
216
sua neta, então acho que um pouco de gratidão, ou pelo menos uma breve
trégua, não seria pedir demais.
No entanto, apesar da minha irritação, minhas emoções não estavam
fortes o bastante ainda. Precisaria ficar muito mais agitada para conseguir
me desmaterializar.
Então, em vez de pensar em Ruth, me lembrei de Serena Taylor e
Doug Davidson. Meus melhores amigos em vida. As duas pessoas, de fora da
minha família, que mais amei no mundo. Imaginei seus rostos insanos e
possuídos na noite em que morri: distorções medonhas das boas pessoas
que eles na verdade eram. Fantoches, manipulados com uma crueldade
indiscriminada por Eli em seu joguinho à procura de almas. Nem Eli, nem
seus mestres sombrios, jamais chegaram a cogitar que nossas próprias
vontades deveriam definir nossos futuros.
O que explicava a minha falta de futuro no momento.
Essa ideia me deixou irritada na mesma hora. E muito. Minha raiva
começou a borbulhar em algum lugar dentro do meu estômago, ameaçando
chegar à minha garganta e sair como um rosnado. A força dessa emoção me
deixou atordoada. Estiquei os braços, mas não encontrei nada em que me
apoiar.
Enquanto tateava pelo nada, senti de repente algo passando pela
minha palma: era o ar — frio, como uma brisa vinda de um rio gelado —, se
agitando com os movimentos do meu braço.
Abri os olhos e vi minha mão. Ela ainda estava se debatendo, em meio
apenas à escuridão e pairando vários metros acima do asfalto. Lá embaixo,
fora do meu alcance, o asfalto acabou, sendo substituído por grama. Mas
não era a grama de fora do cemitério, e sim uma mais densa e grossa que
descia sobre uma encosta íngreme até um corpo de água. Até um rio.
A Estrada Ponte Alta — era onde eu estava agora.
Eu poderia ter passado algum tempo contente com essa minha
segunda materialização e maravilhada com o fato de que a minha dor de
cabeça tinha passado de repente, mas minha atenção foi chamada por um
coro de vozes. Minha cabeça se virou na direção delas.
Uma enorme multidão — todos alunos do Colégio Wilburton, ao que
parecia, pelas suas camisetas e casacos roxos — estava ocupando a Estrada
Ponte Alta. Alguém tinha parado o carro no meio da ponte, com as portas
abertas, de onde saía uma música alta. Logo ao lado do carro, pude ver a
forma metálica reluzente de um barril de cerveja.
217
Uma cena bastante normal. Só uma festa de estudantes em uma
sexta-feira à noite, cheia de pessoas se divertindo. Mas essa era uma festa
que estava acontecendo em cima da boca do que eu agora tinha a certeza
que era uma gélida sucursal sem fundo do inferno.
Passei pela massa de corpos, analisando os rostos de cada estudante,
mas sem encontrar nada fora do comum. A não ser pelo efeito da cerveja,
todos me pareciam relativamente normais: nenhum olhar vazio e possuído,
nenhuma gargalhada demoníaca. Será que eu tinha exagerado? Talvez essas
pessoas não estivessem correndo nenhum perigo a não ser o de acordar com
uma bela ressaca.
Mais adiante, entre eu e o parapeito reconstruído da ponte, avistei
alguns rostos conhecidos. O’Reilly estava ao lado do barril, com um braço
em volta de Kaylen, tomando cerveja de seu copo enquanto apontava para
Scott e Jillian. Kaylen parecia estar um pouco entediada, mas Scott não
parava de lançar olhares para Jillian, que ficava vermelha sempre que seus
olhos se encontravam.
Soltei um suspiro de alívio, em maior parte porque eles não pareciam
possuídos. Talvez eu tivesse exagerado mesmo.
— Tudo tranquilo no fronte oeste — murmurei, balançando a cabeça
para a minha própria paranoia boba. Mas então um sussurro familiar, tão
perto do meu ouvido que quase me pareceu uma gélida carícia, me fez gritar.
— Ah, talvez nem tudo, Amélia.
218
Vinte e Seis
Eu já deveria estar preparada para isso desde quando vi todas
aquelas pessoas na ponte. Deveria ter feito a conexão e confiado nos meus
instintos.
Porque Eli nunca me deixaria escapar tão fácil assim. Não depois da
nossa discussão de hoje no nosso cemitério. Ele queria outro confronto
comigo e, como já tinha feito antes, usou todos os fantoches que pôde para
me provocar.
— Oi, Eli — sussurrei.
A uma desconfortável curta distância de mim, Eli me contornou até
ficar bem de frente para mim. Ele sorriu, claramente cheio de si.
— Bela festa — disse eu. — Parece até que já vi isso antes.
O sorriso de Eli cresceu.
— Ah, então você lembra?
— Sim. Agora lembro.
Enquanto eu falava, dei alguns passos cuidadosos bem devagar na
direção de Jillian e seus amigos, tentando contornar Eli para ficar entre eles.
A cada passo, rezava para Eli não perceber nada até que eu chegasse perto o
bastante para fazer... sei lá o que.
Eli continuou sorrindo, ainda alheio aos meus movimentos. Ele
provavelmente achou que eu estava só tentando evitá-lo, e até certo ponto,
estava mesmo. Mas então, seus olhos se desviaram para os meus pés. Parei
de andar, mas já era tarde demais. Eli percebeu meus movimentos, e seu
rosto se fechou.
— Pare — ordenou.
— Por quê? — perguntei, tentando parecer valente.
Eli me abriu outro sorriso.
— Porque sim, oras.
219
O brilho presunçoso em seus olhos me fez querer arrancar à força
aquele sorriso de seu rosto. Tentei endireitar minha espinha e ignorar os
calafrios que subiam e desciam por ela.
— Não tenho medo de você, Eli.
— Bom, mas deveria, Amélia. — Ele apontou com a cabeça para
alguma coisa atrás de mim. Sem perdê-lo de vista, olhei por cima do meu
ombro para Jillian e seus amigos.
Fiquei horrorizada ao perceber que, durante esses meus poucos
segundos de distração, toda a cena tinha mudado. O’Reilly ainda estava com
seu braço em volta de Kaylen, mas as expressões em seus rostos tinham
passado por uma dramática alteração. Os dois agora estavam com sorrisos
idiotas na cara e com os olhos estranhamente vidrados e vazios. Até os
olhares meigos de Scott para Jillian agora tinham um vago quê de
psicopatia.
De todas as pessoas nesse pequeno grupo, apenas Jillian permanecia
inalterada. Ela estava nervosa, olhando de um amigo para o outro,
claramente perturbada pelos seus repentinos ataques histéricos de riso. À
sua volta, a festa inteira tinha ficado mais frenética, mais descontrolada. Ela
se deu conta disso, assim como eu na noite da minha morte.
Em seguida, em meio à festa, avistei alguns novos convidados: os
vultos negros sem forma haviam chegado, pairando e se esgueirando entre
as pessoas como fumaça. Sempre que uma dessas almas negras passava por
alguém, a pessoa ficava toda rígida e então começava a rir mais alto, com
um ar mais perdido.
Eu me virei por inteiro para Eli. Por mais que já soubesse a resposta,
perguntei:
— Quem é a sua próxima vítima?
— Bom, Amélia, é ninguém menos do que a irmãzinha caçula do seu
amigo.
— Por que você acha que ela é irmã do Joshua? — perguntei com
desdém, mas o despeito na minha voz acabou saindo hesitante demais. Nada
convincente. Eli sorriu em resposta.
— Porque andei de olho na casa do irmão dela a tarde inteira. E não é
que acabei chegando a uma candidata perfeita para convidar a uma festa?
Depois de alguns sussurros nos ouvidos de certos jovens e algumas
promessas aos meus mestres, prontinho... estava preparada a grande festa
do ano — Eli apontou cheio de pompa para a turba à nossa volta. — Eu
poderia ter escolhido provocar um suicídio, como fiz com a Melissa, ou
220
causado um acidente de carro, como fiz com seu namoradinho, mas levando
em conta o público em questão, achei que seria melhor só repetir uma velha
estratégia. A mesma que usei mais de uma década atrás quando estava
precisando achar uma nova assistente.
Perdi o ar, e quase até gritei, ao ouvir as coisas que Eli tinha acabado
de me revelar: ele tinha matado Melissa de propósito, e atraído meus amigos
para uma festa naquela ponte para fazer que um deles morresse. Ou que eu
morresse? Será que ele tinha orquestrado aquela festa toda há mais de dez
anos pensando só em mim?
— Você deveria saber, Eli... — disse com uma voz ainda trêmula,
tentando distrair não só Eli, como eu mesma também — ...que a
JillianMayhew é uma vidente, como o irmão dela. Eles são exorcistas natos,
e a família deles vem mandando fantasmas para o inferno há várias
gerações.
Eli bufou, inabalado.
— Isso não me assusta, Amélia. Aquela menina claramente não está
me vendo agora.
— Mas ela vai ver, sim... — insisti — ...se você continuar com esse seu
plano hoje. E a vó dela, que também é vidente, é bem linha-dura, confie em
mim.
Eli apenas sorriu, sem ligar para as minhas ameaças. Sem ligar para
os videntes que o vinham caçando sem sucesso há tanto tempo. Quando
seus olhos se desviaram rapidamente para a multidão atrás de mim, fiz o
mesmo. Quando vi as expressões cada vez mais vidradas nos rostos
daquelas pessoas e ouvi suas gargalhadas histéricas, percebi que me restava
muito pouco tempo. Eu precisava pensar, pensar, pensar em algum jeito
para deter Eli.
— Que tal uma troca? — gritei de repente.
Por fim, Eli olhou de volta para mim, perdendo seu sorriso.
— Uma troca, Amélia?
Dei uma rápida olhada em Jillian e a vi sendo prensada contra o
parapeito por O’Reilly, com Kaylen e Scott rindo e se abaixando para segurar
suas pernas. Qualquer um poderia confundir essa cena com uma
brincadeira inofensiva entre amigos.
Mas eu sabia que não era bem assim.
O’Reilly estava segurando Jillian, mas parecia forçá-la
para frente, como se em vez de impedir que Jillian caísse para trás, na
verdade quisesse que ela não escorregasse do parapeito de volta para a
221
estrada. A mesma coisa estava acontecendo com Kaylen e Scott, que
pareciam estar tentando prensar as pernas de Jillian contra o parapeito, em
vez de segurá-las. Enquanto isso, Jillian estava com seus dedos tensos,
cravados nos braços de O’Reilly.
— Gente — disse ela com uma revirada aparentemente casual de
olhos. — Estou curtindo muito a festa e tal, mas sério, isso parou de ter
graça há uns vinte segundos.
Seus amigos apenas deram risada e a forçaram ainda mais contra o
parapeito.
Eu me virei de volta para Eli.
— Sim, uma troca — disse, agora desesperada. — Eu, por eles. A
minha vida pela deles — Eli ficou sem reação, claramente surpreso pela
minha disposição em negociar. — Mas você tem que me responder uma
pergunta antes — completei, às pressas.
— Bom... acho que eu poderia fazer isso, sim — disparou. Em
seguida, seu rosto ficou mais sério, quase agressivo. — Desde que você
cumpra sua parte do acordo, é claro.
— Claro — concordei, acenando a cabeça.
— E isso significa ficar comigo. Pela eternidade.
— Sim, sim — disse, impaciente. — Por seja lá quanto a eternidade
durar.
Eli ficou sem reação de novo. Em seguida, um largo sorriso começou a
se abrir em seu rosto, um sorriso com um leve toque de incredulidade.
— Qual é a sua pergunta, Amélia?
Hesitei por um momento, sabendo que agora não era a melhor hora
para discutir esse tipo de coisa, mas eu não tive como evitar.
— Por que eu? — perguntei.
Eli inclinou sua cabeça de lado, confuso.
— Como assim?
— Por que você matou justo eu? O que eu tinha de tão... especial para
que você me quisesse tanto como sua assistente? Enfim, fora você ter
achado que eu estava tentando matar o Joshua.
Para a minha surpresa, Eli deu risada.
— Eu simplesmente soube que nós tínhamos sido feitos um para o
outro. Tive essa certeza assim que vi seus olhos verdes do outro lado da
ponte na festa do seu aniversário. Nem sabia que você era a convidada de
honra até começar a pôr meu exército atrás de você. Só percebi que seus
olhos eram iguais aos dela. Aos da Melissa.
222
Meu queixo caiu de espanto.
Meus olhos?
Minha morte, meu pós-vida, meus confrontos com Ruth e Eli — então
isso não tinha nada a ver com minha suposta natureza maligna? Toda essa
tragédia tinha começado só por causa dos meus olhos?
Balancei a cabeça, desnorteada, me esforçando para me lembrar do
meu objetivo ali. Para me lembrar da minha promessa de ajudar Jillian.
— Ah... — por fim consegui dizer.
— Mas enfim, o que fez você tomar essa decisão? — perguntou Eli,
sem perceber o quanto tinha me abalado. — Não que eu esteja
decepcionado.
Encolhi os ombros do jeito mais casual possível, dadas as
circunstâncias, e me esforcei para conseguir falar de novo.
— Bom, se você parar de agir assim, se você desistir de atacar a
família do Joshua, talvez eu possa ver você de um jeito melhor. Talvez eu
consiga aprender a sentir que nós fomos feitos um para o outro mesmo.
Afinal, você está morto, eu estou morta. Por mais estranho que seja, isso
meio que faz sentido, não faz?
— É claro que faz — disse Eli. — Mas e quanto àquele garoto vivo?
— O que tem ele? — rebati, tentando fingir um sorriso.
— Bom, se eu deixar essa garota ir embora, se eu deixar que ela e o
irmão vivam em paz, é claro que você precisa me prometer que nunca mais
irá falar com ele. Mesmo depois que ele morrer, quando ele se tornar um
fantasma como nós. Você pode me prometer isso, Amélia?
— E-eu... prometo.
Além de gaguejar, minha voz falhou durante o ―prometo‖. Por puro
impulso, fiz uma careta ao ouvir esse som. Os olhos de Eli se estreitaram
com um ar ameaçador. Ele claramente se deu conta de que eu estava
blefando, e a raiva começou a fervilhar em seu rosto. Sem dizer mais nada,
Eli apontou seu braço para o grupo de pessoas em volta de JillianMayhew.
De repente, suas gargalhadas ganharam um tom bestial, como uivos
de animais em ataque. Os vultos negros amorfos começaram a se aglomerar
em volta deles, se debatendo freneticamente. Em resposta, os amigos de
Jillian começaram a sacudir seus braços, balançando-a para trás e para
frente contra o parapeito. Seus olhos se arregalaram de pânico, e sua boca
se abriu para soltar um grito mudo.
— Parem com isso! — gritei. Pulei para cima de Eli, agarrando seu
braço estendido, e cravei minhas unhas em sua pele morta.
223
Por um momento de silêncio, Eli ficou olhando para o seu braço e
para as pequenas meias-luas de sangue que minhas unhas tinham
arrancado. Nós dois sabíamos que ele não devia — que ele não tinha como —
sangrar. Ainda assim, eu o feri, como ele mesmo tinha feito comigo no
cemitério.
— O que foi isso? — disparou Eli enquanto um rangido estranho
começava a ecoar embaixo de nós. Parecia um barulho de metal raspando
contra metal, rangendo ao ser dobrado.
Eli soltou seu braço de mim, e nós dois olhamos com espanto para a
estrada sob nossos pés. No chão, formando um ziguezague no asfalto grosso
entre nós, havia agora uma rachadura fina. Ela ia de um lado ao outro da
estrada, como se alguma força colossal tivesse rachado a própria ponte.
— Amélia, o que foi que você fez...? — murmurou Eli, mas o som de
pneus cantando cortou sua frase. Todos nós, Eli, Jillian e eu, nos viramos
na direção desse barulho.
A princípio, tudo o que vi foram as imagens negativas de dois faróis,
dois pontos escuros de luz contra a parte de dentro das minhas pálpebras.
Enquanto piscava para me livrar delas, a porta de um carro se abriu, e eu
ouvi uma voz maravilhosamente familiar.
— Pare agora mesmo, Eli, ou juro que vou matar você de novo.
— Joshua! — gritei ao mesmo tempo queJillian. Eu me virei para Eli
com um sorriso triunfante.
Eli olhou para Joshua atrás de mim.
— Esse é o seu príncipe num cavalo branco então? — perguntou
baixinho, com um tom ameaçador.
— Sim — sussurrei, empolgada de repente. Agarrei Eli pela sua
camisa aberta. — Por favor, Eli. Eu amo o Joshua. Amo mesmo. E eu não
acho que você seja mau também. Você está só... perdido. Então prove que eu
tenho razão e deixe a Jillian em paz. Deixe todo mundo em
paz. Faça eu gostar de você, Eli.
Por um inacreditável instante, Eli titubeou. Pude ver uma guerra de
emoções em seu rosto, uma batalha entre sua sede de poder e seu desejo de
alguma outra coisa...
— Amélia — sussurrou, erguendo a mão para acariciar minha
bochecha. Mas assim que seus dedos tocaram na minha pele, eu me afastei.
Eli grunhiu, de raiva, mas também — tenho certeza — de mágoa.
— Eu não aguento mais isso — murmurou para si mesmo.
224
De repente, todo mundo ali se endireitou e parou onde estava. Todos
ficaram completamente inertes, com os olhos arregalados agora imóveis,
vazios. Em seguida, todos começaram a se revirar, tendo convulsões.
Logo em seguida, os espectros se afastaram das pessoas como se a
força de seus movimentos involuntários tivesse assustado os espíritos. Elas
se debatiam tanto que pareciam estar entrando em ebulição, ondulando
como o ar sobre o asfalto quente em um dia de verão.
Pelo que vi, todas as pessoas vivas estavam tendo convulsões, sem
nenhuma exceção. O que significava que...
Minha cabeça se virou para Jillian e seus amigos bem a tempo de ver
O’Reilly tombar feito um marionete ao ter suas cordinhas cortadas. Seus
dois braços caíram ao lado do corpo, inclusive o que estava, até agora, sendo
uma das únicas coisas a manter Jillian de pé. Quando as convulsões de
Kaylen e Scott jogaram os dois para trás, as pernas de Jillian também
perderam esse tênue apoio.
Depois disso, tudo pareceu acontecer em câmera lenta.
Os olhos de Jillian se desviaram por um instante na direção de seu
irmão, que ainda estava abrindo caminho em meio à multidão que não
parava de se debater, e então se voltaram para os seus amigos. Jillian
ergueu seus braços como uma trapezista enquanto seu corpo pendia mais
para trás.
Ela soltou um único grito, que chegou abafado e distante aos meus
ouvidos, como o berro de Joshua atrás de mim. Mas eu ouvi com toda
clareza o som seguinte, que cortou o grito e Jillian.
Um baque alto, seguido por um zumbido reverberante, enquanto a
cabeça de Jillian batia contra uma das vigas de apoio que sustentavam a
ponte.
Na mesma hora, a boca de Jillian ficou mole e seus olhos se reviraram
até ficarem totalmente brancos. Sua cabeça escorregou da viga, deixando
uma mancha vermelho-escura para trás no metal. Durante menos de um
segundo, o corpo inteiro de Jillian relaxou. Parecia tranquila. Linda. Em
seguida, sem nenhum outro ruído, ela tombou por cima do parapeito contra
as trevas lá embaixo.
Capítulo
VINTE E SETE
225
Corri até o parapeito, mas já era tarde demais. Antes mesmo de
firmar minhas mãos no metal, ouvi um baque alto contra a água embaixo da
ponte. Logo depois, Joshua chegou com tudo ao parapeito ao meu lado, e
nós nos inclinamos juntos para olhar. Apenas um círculo de espuma branca
nos dava alguma indicação de onde Jillian tinha caído.
Joshua soltou um grito de angústia. Por baixo desse grito, ouvi um
murmúrio tímido de um garoto atrás de nós.
— O q-que aconteceu? Mayhew? — gemeu O’Reilly. — Cara... acho
que vou vomitar.
Eu o ignorei e puxei Joshua de cima do parapeito, onde ele tinha
começado a subir.
— Não, Joshua, pare! Você vai se machucar!
— Tanto faz! — gritou, tentando tirar minha mão de seu ombro.
— Mas aí como você vai ajudar a Jillian? — supliquei. Ele me deu um
brevíssimo olhar. A angústia em seus olhos me comoveu. — Desça pela
encosta — comandei. — É melhor você entrar na água lá por baixo, aí você
pode nadar até ela. Eu vou pular daqui mesmo para ver o que posso fazer.
— Não. Você também não vai pular.
— Não tenho como morrer, Joshua! — gritei, sacudindo-o. — Agora
desça logo, antes que seja tarde demais.
Ele se remexeu por um instante como se fosse gritar de novo. Mas em
seguida, ele se virou e saiu correndo. Eu o vi pegando seu celular,
provavelmente para chamar ajuda enquanto corria. Foi só quando ele sumiu
de vista encosta abaixo que me virei de volta para a multidão.
O’Reilly agora estava com o rosto meio esverdeado, prostrado de
quatro no chão. O pobre rapaz parecia estar sem fôlego. Ao seu lado, Kaylen
e Scott estavam ofegantes, com a mão nos rins.
— Caramba, O’Reilly — grunhiu Scott. — O que foi que rolou? Por que
estou assim?
Olhei por cima de suas costas arqueadas para Eli. A julgar pela sua
expressão, as coisas não estavam mais correndo conforme seus planos. Ele
parecia ter se entrincheirado entre a multidão de pessoas passando mal,
olhando de um lado para o outro enquanto tentava pensar no que fazer.
Meus lábios se repuxaram de asco.
— Depois cuido de você — grunhi. Em seguida, dei as costas para ele
e me curvei por cima do parapeito de metal de novo. Lá embaixo, avistei a
silhueta de Joshua na margem escura do rio, enquanto ele tirava seus tênis
às pressas.
226
Assim que ele conseguiu, entrou na água. Quando chegou a uma
profundidade suficiente, começou a nadar com toda força contra a corrente,
indo até onde Jillian tinha caído.
Agora era a minha vez. Não deveria ser muito difícil. Eu só precisaria
usar as vigas de metal para subir no parapeito e depois mergulhar.
Mole, mole.
Mas em vez disso, comecei a tremer. Não tinha como mentir para mim
mesma: a ideia de pular da Ponte Alta me apavorava, independentemente
das circunstâncias. Olhei por cima do parapeito mais uma vez para a água
escura lá embaixo, que parecia rodopiar em estranhos círculos nauseantes,
se aproximando e depois se afastando de mim.
Tive uma vertigem. Uma sensação forte e debilitante.
Fiquei ofegante e vim para trás, soltando do parapeito. Fechei os olhos
e tentei forçar minha respiração de volta ao normal. Eu precisava fazer
alguma coisa, eu precisava. Mas pelo visto, Não iria conseguir pular daquela
ponte. Não tinha como mergulhar naquele rio onde, em outro mundo, uma
força sombria e maligna me esperava; onde, em outra existência, eu tinha
morrido.
Foi então que tive uma ideia. Tinha um jeito muito mais fácil de fazer
aquilo, um que não exigia que eu pulasse da Ponte Alta de novo. Eu podia
descer até Jillian em um piscar de olhos se desejasse isso com força o
bastante.
Eu podia me materializar.
Repeti essa palavra na minha cabeça enquanto pensava no rosto de
Jillian. Para a minha imensa surpresa, deu certo, e muito mais rápido do
que antes. Alguns segundos depois, abri meus olhos em meio àquela
escuridão esverdeada tão familiar.
Dessa vez, não entrei em pânico ao ver aquela água revolta à minha
volta. Graças a Deus, a essa altura eu já sabia navegar bem pelo rio, porque
dessa vez eu tinha um objetivo bem claro ali. Eu me virei de um lado para o
outro, procurando Jillian.
Por fim, avistei uma figura borrada flutuando a vários palmos de mim,
com seus braços finos e longos cabelos pairando na água. Jillian. Ela
lembrava seu irmão flutuando ali, inconsciente e com um sinistro ar
tranquilo. Um fio escuro do que só podia ser sangue subia pela água acima
dela.
Virei minha cabeça à procura de Joshua. Sabia por experiência
própria que não teria como fazer nada por ela, e até me perguntei por que eu
227
não tinha pensado melhor nisso antes, quando disse a Joshua que poderia
chegar ali primeiro.
— Joshua? — gritei, com minha voz espectral perfeitamente clara,
inalterada pela água.
Ninguém respondeu. Quando olhei de volta para Jillian, vi sua cabeça
oscilando de leve com a corrente. Isso a fez soltar algumas bolhinhas, que
escaparam de seus lábios até a superfície. Franzi a testa, sem saber o que
fazer.
Em seguida, ouvi um tênue barulho. Um tum, tum, tum, a alguns
palmos de mim. Uma batida rítmica, constante e viva.
A batida do coração de Jillian.
Se eu estava ouvindo seu coração, isso só podia significar uma coisa:
JillianMayhew estava para morrer, e em breve.
— Joshua! — gritei, me virando em desespero pela água de novo.
Depois de alguns giros, eu o avistei, mas então percebi que ele não teria
como ajudar muito.
Ele estava dentro da água, mas bem acima de nós, e com a cabeça
para fora da água, então não teria como ouvir meus gritos. O pior, no
entanto, era que ele estava nadando na direção errada, indo para longe de
nós, rio acima.
A corrente devia ter arrastado Jillian pelo menos uns seis metros para
longe do lugar onde ela tinha caído — do lugar para onde Joshua estava
nadando agora. Se continuasse naquela direção, ele nunca iria nos
encontrar. Não a tempo de salvar Jillian, dadas as batidas audíveis de seu
coração.
Nadei a curta distância até Jillian e comecei a tateá-la, tentando em
vão agarrar as dobras de sua jaqueta. Ao perceber que não ia conseguir, me
estiquei na direção do capuz atrás de seu pescoço e rezei para que a minha
habilidade de tocar em seu irmão se manifestasse com ela agora.
Mas não funcionou. Minhas mãos não agarraram nada. Senti apenas
a leve pressão de suas roupas, mas não elas em si. Era como se Jillian
estivesse cercada por um campo de força invisível contra as minhas mãos
mortas. Por mais que eu pudesse tocar em Joshua, ou atacar Eli, não tinha
como interagir com Jillian.
Eu não tinha como ajudá-la.
Essa conclusão me devastou. Fiquei com vontade de jogar minha
cabeça para trás e gritar em meio àquela água escura. Uivar de angústia
pela minha própria impotência.
228
— Por favor! — gritei em meio à escuridão. — Por favor, me ajude.
Eu... eu não sei o que fazer. Por favor, me ajude.
Jillian afundou um pouco mais na água enquanto seu coração
continuava a bater, agora com um ritmo claramente mais lento, mas cada
vez mais alto para os meus ouvidos espectrais. Cobri meu rosto, tapando
meus olhos com as mãos em uma tentativa covarde de impedir que eles
vissem Jillian morrendo.
Nesse instante, alguma coisa — ou alguém — atendeu às minhas
súplicas.
No começo, nem vi nada; eu estava envolvida demais na minha
própria angústia, perdida demais no meu próprio sofrimento. Mas um brilho
vermelho começou a cintilar em frente aos meus olhos, luminoso e
insistente, chamando minha atenção. Tirei minhas mãos do rosto e vi com
espanto a pequena luz que parecia ter se formado entre elas.
Era um brilho que se movia como uma labareda, pulsando e
tremeluzindo sobre minha pele. Parecia que eu estava com uma chama
dançando nas minhas palmas. Isso não fazia nenhum sentido, é claro.
Mesmo assim, a luz continuou a dançar, se espalhando até as pontas dos
meus dedos e pelos meus braços. Pouco depois, meus braços inteiros
ficaram vermelhos e alaranjados, crepitando como fogo embaixo da água.
O que estava acontecendo? Será que o meu pânico pela situação de
Jillian finalmente tinha chegado à superfície da minha pele, todo brilhante e
agora visível de repente?
Podia ser. Mas eu não estava só com medo. Estava frustrada, triste, e
até esperançosa de que ainda pudesse ajudar Jillian. Um turbilhão de
emoções estava ardendo dentro de mim. Era tudo muito forte. Doloroso.
Mas essa luz flamejante, não. Ela não ardia nem um pouco. Apenas
brilhava.
Virei minhas mãos para cima e depois para baixo, observando a luz se
espalhar e subir pelos meus cotovelos até meus ombros. Ergui uma das
minhas pernas e vi o brilho sobre ela também. Em pouco tempo, pude ver
meu corpo todo irradiando aquela luz.
Eu havia me tornado um ponto luminoso no meio do rio escuro.
E então, como se por um milagre, Joshua apareceu, nadando ao meu
lado. Por um brevíssimo instante, ele olhou para mim. Seus olhos, mais
arregalados do que nunca, reluziram com o reflexo dos meus tons vermelhos
e alaranjados. Ele fez um gesto para trás e para frente, entre seus olhos e
meu brilho; ao que parecia, ele tinha avistado minha luz da superfície e
229
então desceu nadando até nós. Seu rosto agora estava tomado por uma
expressão de espanto e, talvez, um pouco de medo.
Em seguida, Joshua deixou isso de lado com um rápido aceno de
cabeça. Nenhum de nós precisava de qualquer lembrete do motivo pelo qual
estávamos ali naquele rio de novo. O brilho da minha pele podia ficar para
depois.
Joshua enganchou um braço em volta da cintura de sua irmã. Ele
então pegou minha mão e começou a puxar nós duas até a superfície.
Apertei sua mão com força antes de me soltar; sem mim, eles conseguiriam
subir mais rápido. Fui atrás deles, tentando empurrar Jillian como fosse
possível, mesmo sabendo que meus esforços seriam inúteis.
Depois do que pareceram ser horas, por mais que devam ter sido
apenas alguns segundos, Joshua por fim ergueu Jillian para fora da água.
Só depois disso, o próprio Joshua emergiu, tossindo e ofegante. Ele abraçou
a irmã enquanto batia as pernas para boiar. Infelizmente, apesar de viva, ela
agora era praticamente um peso morto para ele. Sua cabeça tombou solta
contra o ombro do irmão, enquanto, já quase sem vida, seu coração agora
batia cada vez mais devagar.
— Joshua! — gritei sobre a balbúrdia das águas. — Estou ouvindo o
coração dela.
— Que bom! — gritou ele.
— Não, Joshua. Se estou ouvindo o coração dela, isso não é um bom
sinal.
— Por quê?
— Eu ouvi seu coração também logo antes de parar. Foi assim que
soube que você estava morrendo.
Joshua não disse nada, mas começou a nadar com mais ímpeto ainda
até a margem.
Sem poder fazer nada, fiquei vendo seu esforço, tanto para levar sua
irmã até a margem, como para manter sua cabeça acima da água, enquanto
as vacilantes batidas do coração de Jillian iam ficando cada vez mais altas
para mim.
Eu ainda estava as ouvindo quando nossos pés tocaram no leito do rio
e nós começamos a correr até a margem; as batidas ficaram tão altas que
mal percebi os gritos das pessoas na ponte enquanto elas começavam a ir
embora correndo daquela desastrosa festa.
Mesmo não tendo como ouvir o coração de Jillian, Joshua também
ignorou o alvoroço na ponte. Ele deitou Jillian na margem e então se jogou
230
no chão ao seu lado. Eu me ajoelhei junto a ele na lama, ainda ouvindo
aquelas batidas altas, apavorada.
As batidas só pararam quando as pálpebras de Jillian começaram a se
abrir.
Uma onda de alegria me invadiu em resposta a esse pequeno sinal de
vida. Eu me virei para Joshua, querendo comemorar, mas a voz fraca de
Jillian me deteve.
— Quem é você? — sussurrou. Olhei para Jillian e, para a minha
surpresa, ela olhou de volta para mim. Seus olhos castanhos estavam fixos
nos meus.
Fiquei boquiaberta. Olhei para Joshua, mas ele parecia não ter ouvido
nada. Ele checou a pulsação de Jillian e então se abaixou para ouvir sua
respiração, passando a mão pelos seus cabelos esparramados sobre a lama.
Assim que ele fez isso, os olhos de Jillian se fecharam, e as batidas de seu
coração ficaram mais erráticas.
Minha cabeça começou a girar. Se ela me viu... se ela está me vendo
agora...
— Joshua! — gritei. — Você precisa fazer alguma coisa e rápido. Acho
que ela não está muito bem.
— Meu Deus — grunhiu Joshua. Ele olhou para a estrada lá em cima,
onde nenhum veículo de emergência havia aparecido ainda. Em seguida, ele
se curvou sobre o corpo inerte de Jillian. — Eu antes sabia fazer respiração
boca a boca, só não sei se ainda lembro. — Ele puxou a cabeça de Jillian
para trás e começou a murmurar. — Como era mesmo? Sopra e depois
massageia o peito, ou é o contrário? O que eu faço primeiro? O que eu
faço primeiro?
Ao ver Joshua pôr suas mãos sobre o peito de Jillian, claramente sem
a menor ideia de como salvá-la, senti um aperto forte e dolorido no meu
próprio peito. Ignorei essa sensação e decidi fazer a única coisa que veio à
minha mente. Firmei minhas mãos na lama e cheguei mais perto do ouvido
de Jillian.
— Jillian — sussurrei. — Eu sei que você não me conhece, mas eu
amo o seu irmão, e sei que você gosta dele também. Então... será que dava
para você acordar? Será que dava para pelo menos você tentar, por favor?
Depois de um bom tempo, ela não disse nada. Eu já estava quase
desistindo, e até abaixei a cabeça, me preparando para o inevitável e
impossível trabalho de consolar Joshua, quando Jillian me respondeu aos
sussurros.
231
— Pode ser. Já que você pediu com tanta educação.
Apesar de toda a situação, uma risadinha escapou dos meus lábios.
— Graças a Deus. Porque acho que seria uma baita falta de educação
você morrer.
Um leve sorriso repuxou os lábios de Jillian. Em seguida, ela tossiu.
Foi um esforço quase nulo, que mal abriu seus lábios. Mas acho que
Joshua o ouviu, ou pelo menos sentiu sua vibração, porque se afastou do
corpo de Jillian e ficou olhando para ela.
— Jillian? — perguntou.
Em resposta, ela tossiu de novo. Dessa vez, a tosse saiu mais forte,
alta e clara, e ecoou pela margem do rio. As costas de Jillian se arquearam
com a força do engasgo, e suas mãos se cravaram na lama abaixo dela.
Tossiu uma terceira vez, virou de lado e começou a vomitar a água do rio.
— Isso! — gritou Joshua. Ele pôs uma das mãos nas costas de Jillian
e estendeu a outra para mim. Eu me agarrei a ele, enlaçando meus dedos
entre os seus e enganchando meu braço livre à sua volta. Encostei minha
testa em seu ombro e senti seu corpo estremecer com uma risada.
Nossas gargalhadas começaram a sair em rompantes que beiravam a
histeria. Nem imagino o que Jillian deve ter achado que era aquele barulho
todo saindo de seu irmão, ou se ela sequer podia ouvir aquilo direito. A
pobre garota encharcada continuou a tossir e, milagrosamente, percebi que
não estava mais escutando as batidas do seu coração.
Joguei minha cabeça o máximo que pude para trás.
— Obrigada! — gritei para o céu escuro. — Muito obrigada...
O som de outra voz, bem acima de mim, interrompeu meus
agradecimentos.
— Viu só, Amélia? Ela está viva, como prometi. Agora podemos fazer
nossa troca... a sua vida pela dela.
Minha cabeça se virou na direção da voz. Pude ver Eli, parado na
ponte agora vazia, falando comigo. Exigindo minha alma.
Embora a margem do rio ficasse longe demais da ponte para que eu
pudesse ver o rosto de Eli com clareza, não foi difícil identificar sua
expressão. Não precisei de nenhum binóculo para ver a petulância em seu
sorriso medonho.
Por mais que Eli tivesse duvidado de si mesmo antes, isso claramente
havia passado. Aliás, ele parecia mais cheio de si do que nunca. Como se
Jillian só tivesse sobrevivido por um gesto de sua própria generosidade.
Como se ele mesmo não tivesse participado em nada do incidente que quase
232
a matou. Como se ele não tivesse possuído uma imensa multidão de
inocentes só para tentar me capturar.
Não sei por que, mas não conseguia tirar os olhos do rosto convencido
de Eli. O asco que sentia por ele me hipnotizou. Soltei meus braços do
pescoço de Joshua e me levantei lentamente.
Eu tinha uma vaga noção de que aquele estranho brilho na minha
pele havia se apagado em algum momento entre a hora em que Joshua
encontrou Jillian na água e quando eu a vi voltar à vida na margem.
Ainda assim, quando me levantei para me concentrar em Eli, aquela
luz radiante voltou a brilhar. Ela pareceu emergir da minha própria pele,
eclodindo em tons intensos de vermelho, laranja e amarelo. Nunca tinha
visto cores tão fortes, nem tão lindas antes. Talvez minhas luzes tivessem
parecido mais fracas ou obscurecidas dentro da água. Ou talvez nunca
tivesse me sentido tão irritada assim antes... tão defensiva.
Seja lá qual fosse o caso, meu corpo agora estava iluminando toda a
margem do rio.
— Amélia? — disse Joshua atrás de mim. Ele obviamente estava
vendo meu brilho de novo, porque sua voz se partiu com um quê de medo ao
dizer meu nome.
Quis me virar para ele e dizer, Não se preocupe, querido. Tenho certeza
de que arder feito uma tocha humana deve ser normal para os mortos. Mas
antes que eu pudesse fazer isso, Eli falou com Joshua primeiro.
— Não ouse falar diretamente com ela, garoto — rosnou Eli. — Ela é
uma serva deste lugar agora, e ela é minha.
E essa foi a gota d’água.
Ao ouvir essa palavra — ―minha‖ —, o mundo inteiro explodiu à
minha volta.
233
Vinte e Oito
Achei que tinha incendiado todos eles, incinerando os vivos e os
mortos em uma última explosão implacável.
Do meu ponto de vista, a explosão lembrou a imagem que eu tinha do
inferno: fogo ardendo para todos os lados, encobrindo minha visão. Eu não
conseguia ver nada além de ondas alaranjadas brilhantes, e tive uma
estranha sensação de que chamas estavam saindo dos meus olhos e das
pontas dos meus dedos. Por instinto, fechei as mãos e os olhos com força.
Fiquei assim por um instante, rezando, implorando para que tudo
ficasse bem.
Com meus olhos ainda fechados, relaxei minhas mãos e afastei
lentamente meus dedos uns dos outros. Em seguida, abri os olhos e olhei
para a minha mão.
Finalmente voltei a enxergar, mas para o meu espanto, o fogo ainda
estava lá, brilhando sobre a minha pele, mais reluzente do que nunca. Mas a
explosão não tinha incinerado nada. Tudo parecia estar igual a antes:
nenhuma árvore queimada, nenhum metal retorcido, nenhuma labareda
dançando ao vento.
Eu era a única que parecia estar em chamas, como antes. Pelo visto,
na verdade não havia acontecido nenhuma explosão.
O lugar onde eu estava era a única coisa que tinha mudado desde a
pseudoexplosão. Em vez de estar na margem do rio ao lado de Joshua e
Jillian, eu agora estava de volta à ponte — materializada ali, imagino, pela
força do brilho na minha pele.
Meus olhos se viraram na mesma hora para a direita, na direção da
margem do rio abaixo de mim. Para o meu infinito alívio, Joshua ainda
estava agachado na lama, ileso, e com Jillian em seus braços. Talvez ele a
tivesse apoiado assim para ela poder tossir melhor a perigosa água para fora
de seus pulmões. Independentemente do motivo disso, Joshua parecia ter se
234
esquecido momentaneamente de sua missão. Ele estava embasbacado e
boquiaberto, olhando para a ponte. Para mim.
Pelo canto do olho, pude ver outra figura embasbacada e boquiaberta
a alguns passos de mim na estrada. Só depois de ter certeza de que Joshua
e Jillian estavam em segurança, consegui me virar e olhar direto para Eli
Rowland.
Seus cabelos loiros tremulavam com a brisa, e seu rosto já pálido
havia ganhado um tom ainda mais intenso de branco. Embora parecesse
espantado — ou até aturdido pelo brilho da minha pele —, ele ainda estava
com sua expressão presunçosa de antes. Como se tivesse a plena certeza de
que, apesar dessa minha nova habilidade, ele ainda seria meu dono. A visão
de seu rosto horrível me fez querer rosnar, urrar para ele feito um animal.
Precisei de todo meu autocontrole para me conter.
Dei as costas para ele e vi o resto da estrada deserta. À minha frente,
duas marcas recentes de pneus cruzavam o asfalto. Atrás de mim, o rastro
de borracha queimada desviava para perto do carro de Joshua e depois
seguia adiante pela estrada escura.
Pelo visto, durante os poucos minutos de caos que eu tinha
testemunhado lá de baixo, o dono do carro com o som alto tinha fugido do
local, como o resto dos alunos do Colégio Wilburton.
Balancei a cabeça ao ver aquelas marcas. Eu não podia culpar
ninguém por ter fugido, muito menos O’Reilly, Scott e Kaylen. Eu não
achava que eles iriam conseguir, nem querer, se lembrar de nada por um
bom tempo.
Eles não deviam ter se envolvido nesse perverso jogo sobrenatural.
Assim como Jillian, que provavelmente carregaria para sempre uma
pavorosa memória desta noite.
Isso sem falar em Joshua, com quem eu mais tinha me preocupado
durante tudo aquilo. A última — e para mim, a mais importante — pessoa
viva no mundo que iria sofrer muito, caso os planos de Eli tivessem acabado
de um jeito mais sinistro.
Eu sabia que todo aquele pânico e aquela imensa tragédia em
potencial só tinham acontecido porque Eli Rowland estava atrás de mim.
Eli só pararia depois de se tornar meu dono. Ainda agora, Eli estava
com aquele brilho nos olhos — catalisado não só pela necessidade de
obedecer às ordens de seus mestres, mas também pela sua insana e
implacável necessidade de me dominar. De me possuir.
235
E graças a uma simples semelhança com sua antiga namorada morta,
havia me tornado o objeto de sua obsessão. Uma Obsessão que poderia
durar para sempre, se eu não agisse rápido. Essa consciência ardeu dentro
de mim, muito mais forte do que qualquer fogo no mundo.
Dei uma última olhada para o rosto de Joshua entre as sombras. Ele
estava com seu celular na orelha de novo. E ainda com Jillian em seus
braços, de poucos em poucos segundos, ele olhava com um ar preocupado
para ela e depois para mim.
Quando os olhos de Joshua se focaram nos meus mesmo de tão longe,
meus vagos planos se consolidaram. Eu precisava dar um jeito em Eli
imediatamente, se quisesse passar meu pós-vida em paz. Precisava fazer que
Eli tivesse mais medo de mim do que agora. Mais medo do que ele tinha de
qualquer outra coisa neste mundo. Só assim eu teria alguma chance de
existir sem sua constante e ameaçadora interferência.
Eli só aumentou ainda mais minha determinação quando por fim se
pronunciou.
— Seja lá o que for isso, Amélia... — disse, apontando para o meu
brilho — ...acho que poderia ser algo muito útil para mim.
Eu me virei de volta para ele. Mas Eli não me olhou direto nos olhos,
porque estava ocupado demais observando meu brilho. Analisando-o com
toda atenção.
— Ah, você acha mesmo, é? — perguntei baixinho.
— É claro. — Eli acenou a cabeça, e eu quase pude ver as ideias se
formando em sua cabeça. — Você vai ser a melhor de todas as minhas
assistentes. Imagine só do que essa sua luz será capaz... quantas novas
almas isso me ajudará a capturar, como mariposas sendo atraídas por uma
chama.
Inclinei minha cabeça de lado.
— E se eu não quiser servir você?
Ele finalmente me olhou nos olhos. Um sorriso incrédulo começou a
se abrir lentamente em seu rosto.
— Se você ―não quiser?‖ — repetiu. — Você ainda acha que tem
alguma escolha aqui?
Fechei meus lábios com força, refreando a fúria dentro de mim. Foi só
quando consegui me acalmar um pouco que o respondi:
— Todo mundo tem escolhas, Eli. E não me importo em ter que repetir
isso quantas vezes for preciso: eu também tenho uma escolha. Mesmo
estando morta.
236
Eli balançou a cabeça.
— É isso o que venho tentando te explicar esse tempo
todo: eu escolhi você. Isso já basta.
Balancei a cabeça.
— Não basta, não. Porque não escolhi você.
Ele rosnou e, de repente, a multidão de vultos escuros se reuniu à sua
volta. Eles pareceram surgir do meio do nada, apenas se manifestando ali.
Os vultos se moviam sem parar, dardejando o tempo todo pelo ar, então não
tive como reconhecer suas formas quase humanas, muito menos seus
rostos.
Eli nem olhou para eles, mas seu sorriso cresceu.
— Tem certeza que quer brigar, Amélia? — sussurrou com um tom
ameaçador.
Engoli seco e cerrei meus punhos ao lado do meu corpo.
— Tenho sim.
Eli acenou a cabeça de novo. Não para mim, reparei, mas para os
vultos escuros à sua volta. Em resposta, os espectros avançaram, me
cercando com uma velocidade que eu nunca tinha imaginado. Eles se
amontoaram ao meu redor, se aglomerando até bloquearem quase toda a
luz, e então começaram a chegar mais e mais perto de mim.
Agora cercada pelos vultos, virei minha cabeça para um lado e depois
para o outro, à procura de alguma brecha entre eles. Algum raio de luz que
fosse. Meus braços, estendidos para os lados, se debateram junto comigo.
Quando uma das almas negras se esticou para me pegar, soltei um grito.
Mas a alma não conseguiu me pegar. Assim que ela tentou se envolver
como uma cobra em volta do meu braço, o brilho da minha pele cresceu e se
intensificou. Minha luz brilhou forte contra o espectro, cortando as sombras
escuras à sua volta e revelando sua forma quase humana. O espectro se
afastou por um instante, dardejando enfurecido para fora do alcance da luz.
Em seguida, como se fosse um contra-ataque, os outros espectros vieram
todos ao mesmo tempo para cima de mim.
Antes que eu pudesse reagir, antes que eu pudesse sequer gritar, o
brilho explodiu à minha volta. Em vez dos tons quentes de laranja e amarelo
de antes, a luz agora reluziu com um branco tão intenso e puro que precisei
cobrir meus olhos. Essa era uma luz diferente de qualquer outra que eu já
tinha visto antes, mais forte e ardente do que o brilho que a minha pele em
geral emanava no escuro; esse novo brilho era glorioso e aterrorizante ao
mesmo tempo.
237
Por fim, a luz se atenuou o bastante para que eu pudesse abaixar
minha mão a tempo de ver os espectros se dispersando, voando para trás
pela estrada e para longe daquela luminosidade branca protetora que reluzia
à minha volta.
Assim que eles sumiram, eu finalmente pude ver Eli, parado no
mesmo lugar de antes. Ele estava de braços cruzados, tranquilo, e com uma
expressão que beirava o tédio. Esperando que seus servos terminassem seu
trabalho sujo, sem dúvida alguma.
Mas quando ele viu seus espectros se dispersando e fugindo para o
outro lado da ponte, sua expressão mudou. Ele franziu a testa para eles,
fechando a cara mais e mais enquanto cada um deles desaparecia. Só depois
que o último vulto negro deixou a ponte, Eli olhou para mim. Seu rosto
agora mostrava um ar bestial. Violento.
Ao olhar em seus olhos cheios de fúria, senti a sombra de um sorriso
sarcástico repuxar meus lábios.
— O que mais você tem na manga, Eli? — murmurei.
Em seguida, rosnando como uma criatura selvagem, Eli pulou para
cima de mim.
238
Vinte e Nove
Eu devia ter ficado com medo. E fiquei. Mas em vez de me acovardar,
ou mesmo pular para bater de frente com Eli, só fechei os olhos.
Eu podia não entender a origem da luz sobrenatural à minha volta ou
como controlá-la, mas sabia de uma coisa que com certeza poderia deter Eli.
Então, com os olhos bem fechados, imaginei uma série de imagens: a cadeira
da biblioteca voando para trás, para longe de mim; a rachadura que agora
cortava minha lápide. Imaginei a ponte, se curvando com a força da minha
raiva.
Em seguida, imaginei a ponte se partindo ao meio.
Ao ouvir um rangido metálico sob mim, abri os olhos. Olhei para baixo
e vi a fissura na ponte se alargando. Acima de mim, os cabos de metal entre
as vigas começaram a se debater de um lado para o outro, e a ponte rangeu
de novo, urrando sob a força do movimento.
Voltei minha atenção para a estrada, abrindo os braços e firmando os
pés no chão.
Eli, no entanto, foi pego de surpresa. Quando a ponte em si começou
a balançar, ele perdeu o equilíbrio no meio de seu ataque e caiu de joelhos.
Fixei meus olhos em Eli, ainda me concentrando enquanto via a estrada
rachar e estremecer à sua volta. Fiz um minúsculo gesto com a cabeça e
então um buraco enorme se abriu no asfalto, através do qual pude ver de
relance a água do rio lá embaixo.
Eli tentou se levantar, mas não conseguiu. Enquanto ele tentava se
equilibrar sobre a estrada que não parava de tremer, seus olhos se focaram
nos meus. Finalmente, vi em seu o rosto aquilo que eu queria: medo.
Em seguida, no meu momento de maior poder, o cenário à nossa volta
foi engolido por uma escuridão total. Aquele breu pairou no ar, pesado e
denso, antes de se iluminar um pouco, revelando as cores familiares da
floresta do submundo abaixo de mim.
239
Na ponte, por outro lado, as coisas estavam bem diferentes do que eu
poderia imaginar. Nunca tinha visto a Ponte Alta em sua versão do
submundo tão de perto assim, e essa foi uma cena que me chocou à
primeira vista. Sobre a ponte, bem em cima daquele buraco negro medonho,
as cores do submundo tinham um quê quase violento e selvagem. Tons de
vermelho-sangue contra outros de preto lustrosos; toques de roxo como
hematomas sobre matizes densos de cinza. O lugar era incrível, lindo. Mas
também terrivelmente sombrio. Como um enorme animal ferido.
A estrutura dessa ponte do submundo parecia muito mais precária
também. Suas vigas se curvavam umas contra as outras de um jeito
estranho e sua superfície era toda cortada por profundas e irreparáveis
rachaduras. Seja lá o que eu tivesse feito no mundo dos vivos devia ter
afetado esta ponte também.
Franzi a testa, já pronta para transformar aquele lugar em uma pilha
reluzente de destroços, quando um sibilar ao longe me fez erguer a cabeça
na direção das vigas tortas. Bem acima de mim, dois vultos escuros estavam
pairando ali em volta, dardejando ao redor da estrutura da ponte. Seus
movimentos cortavam a escuridão com um leve assobio.
A princípio, achei que deviam ser apenas outras almas a serviço de
Eli, sendo forçadas a me enfrentar. Mas quando olhei melhor, percebi que
elas não eram negras, e sim de um tom vermelho-escuro profundo como
sangue. Elas também se moviam com muita habilidade, soltas demais, como
se ao contrário dos servos de Eli, tivessem vontade própria.
Olhei para Eli, tentando ver sua reação a essas criaturas, e fiquei
surpresa. Ele agora parecia estar ainda mais aterrorizado do que antes. Ele
chegou a se encolher, e até escondeu a cabeça sob os braços quando, com
um leve zunido, os vultos ganharam forma e pousaram um de cada lado dele
na superfície rachada da ponte.
Agora, no lugar dos dois vultos, havia duas pessoas. Ou o que pelo
menos pareciam ser duas pessoas.
Ambas as figuras estavam com roupas escuras: um homem, com um
belo terno preto, e uma mulher, com um lindo vestido preto. Os dois tinham
cabelos loiro-claros: os dele eram curtos, e os dela, longos e soltos sobre
seus ombros pálidos. Algo neles emanava um quê funesto. Era uma visão
sinistra, com certeza, mas não mais do que qualquer outra coisa que eu já
tinha visto aquela noite.
No entanto, foram seus olhos — sombrios e etéreos — que me fizeram
ficar boquiaberta e dar um passo involuntário para trás no asfalto rachado.
240
Aqueles olhos perturbadores, negros e sem pupilas, me analisaram por mais
um instante, e então, ao mesmo tempo, as duas figuras sorriram.
— Ah, mas que coisinha interessante, não? — comentou o homem.
— Eli... — ronronou a mulher, sem tirar os olhos de mim — ...onde
você andou escondendo esse tesouro?
Eli continuou de cabeça baixa enquanto lhe respondia.
— Eu estava tentando capturar essa jovem para a senhora, juro,
mas...
— Pare de inventar desculpas — o interrompeu a mulher, com sua voz
firme de repente. — Você está me dizendo que ela ainda não está sob seu
controle então?
A mulher se virou para ele e, mesmo sem poder vê-la com sua cabeça
abaixada, Eli tremeu.
— Eu ainda... ela não... — gaguejou, mas sem conseguir terminar sua
explicação.
— Acho que é exatamente isso o que Eli está nos dizendo, minha
querida — disse o homem, ainda olhando para mim. — O que significa que,
como aconteceu com seus antecessores, Eli acabou perdendo sua utilidade
para nós.
O homem apontou com sua cabeça para a mulher.
— Pode levá-lo embora.
Ao ouvir essa ordem, a mulher voltou a sorrir. Até eu estremeci com
essa cena. Apesar do seu rosto gélido e lindo, ela parecia estar morta de
verdade. Mais morta do que Eli e eu.
Eli ergueu a cabeça, e seus olhos se desviaram brevemente para mim.
Ao vê-los totalmente em pânico, senti um aperto no peito. Apesar de tudo
que ele tinha feito aquela noite, apesar de tudo que ele já tinha feito comigo
antes, de repente senti pena de Eli.
— Não...! — gritei, mas já era tarde demais.
Com um rápido movimento, a mulher se fundiu de volta em um vulto
negro-avermelhado e engoliu Eli. Antes que outra palavra pudesse escapar
dos meus lábios, eles saíram voando e sumiram pelo outro lado da ponte do
submundo. Durante alguns segundos, ouvi um grito angustiado e bestial.
Percebi então, com espanto, que esse era o som de Eli berrando de horror.
Em seguida, seu urro foi cortado abruptamente.
Eu me virei de volta para o homem.
— Para onde vocês o estão levando? — disparei com um tom firme,
apesar do perigo que claramente estava enfrentando.
241
O homem ergueu suas sobrancelhas com um leve ar de surpresa.
— Para a nossa casa, é claro.
— Sua ―casa‖? — Meus olhos se desviaram por um instante para a
borda da ponte, como se eu pudesse ver aquele buraco negro através de sua
superfície rachada.
Enquanto eu fazia isso, o homem não tirou os olhos de mim. Quando
me virei de volta, ele inclinou sua cabeça de lado e continuou me analisando,
mesmo enquanto falava.
— Estou falando do lugar de onde eu e a minha companheira vivemos,
é claro — disse ele. — A entrada para lá fica logo embaixo desta ponte.
— Por que lá? — perguntei, ainda sem saber o que tinha me dado toda
aquela coragem. — Por que viver nas trevas?
O homem riu, mas sem sorrir.
— Seria difícil nos imaginar vivendo aqui, com aquelas patéticas
criaturas das sombras. Ou com os vivos, em seu mundo. Além do mais, nós
preferimos ficar entre seres como nós mesmos.
Tentei não tremer ao imaginar o tipo de ser que escolheria viver
naquela escuridão medonha. Apesar de conseguir manter minha fachada
tranquila, precisei engolir o medo que estava começando a crescer dentro de
mim.
— E o que vocês vão fazer com Eli na sua casa?
— Vamos aplicar algumas medidas punitivas. — Ele suspirou
enquanto balançava a cabeça em uma mistura de irritação e tédio. — Já
tivemos que fazer esse tipo de coisa antes com os outros. É uma pena que
tenhamos que fazer o mesmo com Eli agora.
Bom, isso explicava o que havia acontecido com o antigo mentor de
Eli, e por que ele foi tão cauteloso com esse assunto ontem, na floresta. Não
que essa descoberta pudesse me trazer algum conforto, ainda mais levando
em conta que, a julgar pela frieza no rosto daquele homem sinistro, a
piedade não devia ser nem de longe seu forte.
O homem continuou me analisando por mais um instante, e então,
com um genuíno tom de curiosidade, me perguntou:
— Você por caso se importa com ele?
Parte do meu cérebro estava ensandecida, gritando para eu parar de
agir feito uma maluca e sair correndo dali. Mas outra me fez endireitar os
ombros e responder.
— Me importo, sim. Eu me importo com todo mundo que vocês
machucaram. Todo mundo que vocês aprisionaram aqui. Inclusive o Eli.
242
O canto da boca do homem se repuxou com um sorriso.
— Mas que... interessante. Qual é o seu nome, menina?
Balancei a cabeça, sentindo minha coragem vacilar um pouco.
— Isso não importa. O que importa é que você precisa libertar todas
as almas deste lugar, inclusive o Eli... e o meu pai.
Ele ergueu as sobrancelhas de novo.
— Por que você acha que seu pai está aqui?
— Eu... eu não sei direito. Mas se você libertar todas elas,
provavelmente vou descobrir.
O homem deu risada, mas seu riso foi seco demais para mostrar
qualquer traço de humor.
— Que tal eu fazer uma coisa melhor? Que tal eu lhe oferecer um
trabalho?
— Como assim, o que Eli fazia para vocês? — perguntei, aturdida.
Ele acenou a cabeça.
— A julgar por aquela sua luz e pela redecoração que você fez neste
lugar, acho que você poderia ser muito valiosa para nós. Além do mais, essa
vaga agora está aberta mesmo.
Precisei me segurar para não dizer o que eu realmente queria que ele
fizesse com aquela proposta e apenas perguntei:
— No que consiste exatamente esse trabalho?
— Nós precisamos de um intermediário para construir o nosso
mundo, uma alma humana que ainda não tenha encontrado seu rumo. Uma
alma que ainda possa transitar entre os mundos e influenciar os vivos...
para fazê-los se juntar a nós, de um jeito ou de outro.
Franzi a testa, examinando os suaves contornos de seu rosto
inumano.
— Por que vocês mesmos não fazem isso? Por que vocês precisam do
Eli, ou de mim?
— Nós não sentimos a menor necessidade de deixar nossa casa para
cuidar desse trabalho... nós temos tudo o que precisamos lá. Todo o tipo de
conforto. — Ele me abriu um leve sorriso sinistro e então continuou. — Não
precisamos nos dar o trabalho de vir até aqui, a não ser em situações muito
extraordinárias. Como para punir alguém. Ou capturar uma alma.
Ao dizer a palavra ―capturar‖, ele inclinou sua cabeça, me analisando
de novo. Tentando definir quem eu era e que utilidade eu poderia ter para
ele, sem dúvida alguma.
243
Tentei esconder minha repulsa pela ideia de servir alguém assim. Não,
ele não era alguém, e sim alguma coisa. Algum demônio, tenho certeza.
Eu tinha que fugir dali. Imediatamente.
No entanto, por mais que essas criaturas sombrias não estivessem
interessadas em me seguir para fora de seu mundo, eu também não tinha a
menor ideia de como ir embora. Algo me dizia que esse homem — esse ser —
não me deixaria simplesmente sair andando para procurar uma saída.
Tentando ganhar tempo, tentando pensar em alguma solução para
esse impasse, perguntei então com a voz trêmula:
— Por que vocês precisam construir um mundo então? Se já têm tudo
o que precisam na... sua casa?
O homem me abriu um sorriso desdenhoso.
— Você não acha mesmo que é assim que o pós-vida funciona, acha?
Foi isso o que você aprendeu sobre todo o jogo cósmico das coisas? Que o
céu e o inferno ficam simplesmente parados, só esperando?
Ao ouvir essas duas palavras, tão carregadas de significados e mitos,
finalmente estremeci. Tive a certeza de que não estava sobre uma das
entradas para o céu agora.
— Então o que vocês querem fazer? — perguntei. — Ganhar o jogo?
— Sim — disse, abrindo mais e mais seu sorriso até seus dentes
aparecerem, afiados e brilhantes, como um monte de facas. — O meu lado
quer ganhar. E você vai nos ajudar nisso.
Seus olhos reluziram de repente, tomados por um brilho frio e vazio,
enquanto analisavam meu corpo. Esse seu olhar me deu um arrepio — um
arrepio de verdade que espalhou calafrios pelos meus braços.
Como se tivesse sentido o perigo que eu corria, minha luz incandesceu
de repente, crescendo junto com o meu medo, brilhando contra o homem,
como se quisesse me proteger. Vi seu brilho ser refletido nas profundezas de
seus olhos negros, e reluzir nas pontas de seus dentes.
O submundo inteiro deve ter percebido meu medo, porque a estrada
abaixo de nós começou a ranger, como se fosse se partir ao meio, logo atrás
do lugar onde o homem estava. Ao contrário de Eli, esse homem sombrio não
pareceu se amedrontar com isso. Seus olhos se desviaram até o asfalto
trincado, e então de volta para a luz que me protegia dele. Quando voltou a
me encarar, ele parecia satisfeito — ou melhor, extasiado — com o que eu
tinha acabado de fazer.
Ele deu um passo na minha direção, e depois outro. Seus olhos se
arregalaram, tomados por uma empolgação ensandecida, e ele ergueu uma
244
de suas mãos pálidas até mim. Para me pegar e me puxar para as trevas
junto com ele, sem dúvida. Para me aprisionar ali para sempre.
Meus olhos se desviaram para as árvores na borda da floresta do
submundo, onde meu pai poderia estar preso, andando de um lado para o
outro junto com todas as outras almas condenadas. Essa visão deteve meu
olhar por um breve segundo de angústia, e então fechei os olhos com força.
— Preciso me desmaterializar — sussurrei em desespero.
A ponte rangeu embaixo dos meus pés de novo. Em seguida, por baixo
desse rangido, ouvi um leve zunido de ar passando por mim.
Meus olhos se abriram de repente. A princípio, tudo o que vi foi uma
ofuscante luz branca. Quando o brilho diminuiu, no entanto, pude ver os
leves contornos do cenário à minha volta. Minha visão foi ficando cada vez
mais clara, e comecei a olhar em desespero de um lado para o outro. Mas
não encontrei mais nenhum homem demoníaco, nenhum submundo
reluzente. Apenas as vigas de metal retorcidas e o asfalto revirado da Ponte
Alta de verdade.
Olhei para o ponto escuro onde aquele homem sinistro estava até
agora há pouco. Não confiava naquela escuridão; ainda não acreditava que
aquele lugar estava vazio. Mas quando me dei conta de que ele tinha sumido
— sumido de verdade —, suspirei. Ao som do meu suspiro, o brilho à minha
volta se apagou com um leve pop.
— Hum... — murmurei, erguendo os braços e olhando para o meu
corpo. — Que coisa...
Não havia nenhuma marca em mim. Nenhuma brasa, nenhuma
queimadura, nem qualquer mancha de cinzas no meu vestido branco.
Será que eu sou flamável, ou inflamável então? Ou será que é a mesma
coisa?
Apesar de todo o horror daquela noite, ouvi uma risadinha histérica
escapar dos meus lábios.
No entanto, o alarido repentino de uma sirene interrompeu minhas
divagações. Esse barulho me lembrou de onde eu queria estar, e com certeza
não era naquela ponte. Fechei os olhos e os reabri rapidamente, me
deparando com Joshua e Jillian aos meus pés. O som da sirene ainda
ecoava, agora acima de mim.
Pelo visto, essa tinha sido minha materialização mais fácil até agora.
Joshua não tinha me visto chegar, então me ajoelhei ao seu lado e pus
minha mão de leve nas suas costas. Ao sentir meu toque, ele se virou com
uma das mãos fechadas. A agressividade em sua reação me assustou, e
245
quase dei um passo atrás. Mas antes que eu pudesse me mexer, os olhos de
Joshua brilharam ao me reconhecer. Ele pegou minha mão e me puxou.
Com sua outra mão ainda segurando a de Jillian, Joshua pôs seu braço livre
em volta do meu ombro. Eu me aconcheguei nele, fechando os olhos e
encostando minha cabeça em seu peito.
— Não tenho a menor ideia do que aconteceu aqui — disse Joshua. —
E quero que você me explique tudo. Mas não temos muito tempo para
conversar, os paramédicos já estão chegando.
Abri meus olhos e me virei para o alto da encosta. A ambulância tinha
parado em frente à ponte rachada, e um grupo de paramédicos estava
descendo com cuidado a íngreme colina até o rio.
— Ainda bem que eles chegaram — disse, olhando para o rosto branco
de Jillian. Joshua devia tê-la estendido na margem de novo, porque ela
estava deitada mais uma vez na lama, pálida e de olhos fechados.
— Pois é. Ela vai ficar bem, acho — Joshua olhou para sua irmã,
franzindo bem a testa. Mas então ele riu de repente e se virou para mim. —
Acho que ela vai acordar de muito, muito mau humor.
Ri com ele, mas nossa descontração pareceu um tanto inapropriada.
Joshua deve ter sentido isso também, porque seu rosto voltou a ficar sério.
— Tudo bem com você, Amélia? — perguntou, tentando olhar nos
meus olhos.
— Tudo. — Dei um suspiro e, não sei bem por que, encostei meu rosto
de volta em seu peito e me abracei com mais força a ele. Talvez tenha sido o
som de sua voz forte o que por fim derrubou as minhas defesas, ou talvez só
o fato de estar parando para descansar pela primeira vez naquela noite. De
um jeito ou de outro, só sei que me senti completamente exausta de repente.
Joshua tirou seu braço do meu ombro para pôr a mão na minha nuca,
onde então passou seus dedos pelos meus cabelos. Pensei então, e não pela
primeira vez, no quanto eu adorava aquilo. Um leve sorriso se abriu no meu
rosto, e suspirei de novo.
— A gente não precisa falar sobre isso agora — murmurou Joshua. —
Mas pelo menos uma coisa preciso perguntar... você... salvou a gente?
— Acho que ―salvar‖ talvez não seja a melhor palavra — disse,
aconchegando meu rosto ainda mais em seu peito. — Só dei um jeito de...
espantar nossa ameaça, talvez.
— Então você espantou o Eli?
Abri um sorriso determinado, por mais que Joshua não pudesse ver
meu rosto.
246
— Eu, não. Mas ele foi espantado, sim. E de uma vez por todas, acho.
— Ótimo.
O som que ouvimos em seguida nos pegou de surpresa. Uma voz fraca
— rouca de exaustão e por ter engolido água demais — irrompeu da margem
do rio abaixo de nós.
— Amélia?
Olhei para Jillian. Ela tinha se erguido alguns centímetros, apoiada
sobre seus cotovelos, e agora estava olhando diretamente para mim. Seus
olhos castanhos — quase ardentes no escuro — se focaram nos meus. A
intensidade em seu rosto pareceu me hipnotizar.
— Oi — sussurrei, mais por impulso do que qualquer outra coisa.
— Ele já foi embora?
— Sim, o O’Reilly já foi embora.
— Não, não o O’Reilly. Aquele cara loiro.
Fiquei surpresa. Jillian estava falando de Eli. Como ela sabia dele? Ela
nem o tinha visto, ou tinha?
— Ah, s-sim... — gaguejei. — Também já foi embora.
— Então... obrigada.
Ela me deu um leve aceno e, em seguida, fechou seus olhos e deitou
sua cabeça de volta no chão lamacento.
247
Epílogo
– Eu pararia de insistir se você parasse de ser tão estúpida.
— Bom, não precisaria ser estúpida se você parasse com essa sua
maluquice bizarra.
Soltei um suspiro profundo, apoiei as costas na parede e estendi meus
dedos à minha frente, à procura de alguma sujeira invisível nas minhas
unhas. Eu já tinha escutado essa briga tantas vezes nas últimas duas
semanas que já sabia todas as frases de cada lado dessa discussão ridícula
de cor.
Ainda assim, Joshua e Jillian pareciam dispostos a repetir tudo pelo
menos mais uma vez.
Enquanto eu esperava no alto da escada — mais do que pronta para
pôr logo um fim nessa baboseira sem sentido e ir embora —, Joshua estava
de frente para o quarto de Jillian, com sua mão apoiada firme no batente da
porta.
— Olha — esbravejou ele. — Depois de tudo o que a Amélia lhe fez,
você está sendo... muito sem educação.
Jillian apenas abriu um sorriso seco para o irmão e cruzou os braços.
— Até onde sei, Josh, você foi o único que me ajudou, e não vou
mostrar minha gratidão fingindo que acredito numa amiga imaginária sua.
— Ah, pelo amor de...! — Joshua soltou do batente e jogou as duas
mãos para o alto. — A Amélia não é imaginária! Você mesma viu que ela
existia, na noite em que ela salvou você. Você falou com ela, Jillian. E você
pode ver que ela existe agora mesmo, como eu.
Joshua apontou para mim. Os olhos de Jillian seguiram o gesto do
braço do irmão até o meu rosto. Tive só um microssegundo para sorrir antes
que os olhos de Jillian se desviassem de novo.
— Não, não tem ninguém aí — entoou ela, como se estivesse
cantarolando.
248
Soltei um grunhido e revirei os olhos.
— Joshua, não adianta. Assim como não adiantou ontem, nem
anteontem, nem...
— Adianta, sim, porque a Jillian vai sair com a gente hoje.
— Não sei quantas vezes vou ter que repetir isso — disse Jillian, entre
seus dentes cerrados. — Eu não vou perder minha noite de sexta com você e
a Gasparzinha, sua namoradinha camarada.
Joshua abriu a boca, provavelmente para gritar de novo, mas o
interrompi.
— Olha, Joshua, está na cara que ela não vai mudar de ideia hoje de
novo, então será que dá, por favor, por favor, para a gente ir embora?
— Pois é, Josh, vê se escuta essa sua amiga imaginária e dá o fora
daqui — disparou Jillian.
Joshua se empolgou na mesma hora e começou gritar e bater a mão
na porta, todo triunfante.
— Ahá! — berrou ele. — Eu sabia! Você consegue ouvir a Amélia, sua
mentirosa!
Jillian ficou boquiaberta feito um peixe. Ela olhou bem para mim de
novo por um instante. Em seguida, balançou a cabeça com força, como se
isso pudesse me tornar invisível para ela de novo. Ela pegou a porta, fazendo
uma última careta, e então a bateu na cara de Joshua.
Mesmo com a porta fechada, Joshua continuou dando risada. Ele se
virou para mim com um sorriso enorme no rosto.
— Viu? Eu disse que ela ia admitir.
— Amor... — disse, revirando os olhos de novo — ...ela não admitiu
nada que você já não saiba. Além do mais, a Jillian é uma vidente plena
agora, queira ela ou não. E eu tenho bastante certeza de que ela não vai
começar a fazer umas camisetas, tipo, ―Exorcismo Não!‖, quando a Ruth
decidir encerrar nosso acordo de paz. Por mais que a Ruth tenha me deixado
entrar aqui de novo.
— Tanto faz — insistiu. — A Jillian e a vó Ruth vão gostar de você.
Cedo ou tarde.
Apesar das minhas fortes dúvidas, acabei dando risada.
— Ai, Joshua, como você é otimista...
— Claro, porque meus planos sempre dão certo. Você vai ver.
— Falando em planos misteriosos... — disse eu, enganchando meu
braço no de Joshua. Seu sorriso cresceu enquanto ele me puxava mais para
perto e me guiava escada abaixo.
249
— Já falei... é surpresa.
— Como assim, você vai tentar me trazer de volta à vida por acaso? —
disse, fingindo um tom de esperança. Bom, pelo menos tentei fingir.
Joshua, no entanto, só deu risada.
— Só me dê um tempo, Amélia. Só me dê um tempo.
Balancei a cabeça.
— Joshua, as pessoas normais só fazem surpresas assim no
aniversário umas das outras, e a gente sabe muito bem que essa é uma
coisa que eu não tenho mais.
— Tudo bem. Então em vez de te dar um presente, que tal eu só pedir
para você destruir uma propriedade pública de novo?
Fiz uma careta e me remexi contra ele, incomodada.
— Olha, já disse que não gosto de falar sobre isso.
Os olhos de Joshua reluziram com um brilho malicioso.
— Só estou falando que a prefeitura provavelmente vai levar anos para
reformar a Ponte Alta.
— Por mim, podiam nem reformar — murmurei. Em seguida, abri um
sorriso e encolhi os ombros. — Enfim, já disse, não vou mais falar sobre
isso. Ponto final. Fim de papo. Pronto, acabou.
Só não havia dito que tinham também vários outros assuntos que eu
vinha tentando evitar. Como a nem tão velada hostilidade de Ruth contra a
minha presença à noite em sua casa; a eminente iniciação de Jillian na
comunidade de videntes de Wilburton, o que para mim seria inevitável; ou a
quase insuportável preocupação que eu sentia pelo meu pai quando pensava
em onde, e por quem, sua alma poderia estar aprisionada.
E é claro que eu também não estava exatamente pronta para discutir
todas as dificuldades do meu relacionamento com o próprio Joshua. Afinal,
nós éramos um casal que envolvia um vidente e um alvo em potencial para
um exorcismo. Um garoto cheio de vida, e uma menina morta.
Nossa compatibilidade não era lá muito óbvia, nem simples.
Alheio aos pensamentos sombrios que me atormentavam, Joshua me
deu outro sorriso cheio de malícia. Nós chegamos à porta da cozinha, e ele
então me empurrou para fora de brincadeira.
Pouco depois, já estava bem acomodada em seu novo carro — uma
caminhonete usada, preta e reluzente —, enquanto ele nos levava a algum
destino não revelado. Às suas ordens, tive que ficar encostada no meu banco
(depois de resmungar em protesto por uns bons cinco minutos) e com as
mãos tampando os olhos. Sempre que eu tentava espiar por entre os dedos,
250
Joshua me pegava no flagra e me ameaçava, dizendo que ia me fazer passar
o resto da viagem ouvindo as músicas de hip-hop de Jillian.
Por fim, Joshua parou a caminhonete. Ficamos sentados ali em
silêncio por um momento, e um ar tenso começou a cair entre nós. Podia
sentir o nervosismo que irradiava de Joshua como as vibrações de um
diapasão.
— Joshua? Você está muito quieto.
— Acho que só estou nervoso pela surpresa. Espero que goste, mas
não quero que fique triste.
— Triste? — perguntei. — Por que eu ficaria...?
Não terminei minha frase, deixando a pergunta no ar. Fiz isso porque
esse mesmo ar estava me trazendo um cheiro familiar, mas há muito tempo
esquecido.
Madressilva.
Seja lá onde Joshua tivesse parado a caminhonete, eu não deveria
estar sentindo esse cheiro. Nós agora estávamos no frio do outono, e as
primeiras geadas já tinham destruído a maior parte das flores de Oklahoma.
Ainda assim, senti aquele perfume, forte, floral e adocicado.
A família de Joshua não tinha pés de madressilva no quintal, e eu
também não me lembrava de ter passado por nenhum deles durante as
andanças do meu pós-vida. Mas reconheci aquele cheiro na mesma hora, em
maior parte porque a cerca da casa onde cresci era toda coberta dessas
flores com suas pétalas cor de âmbar.
Virei minha cabeça para a janela do passageiro e tirei as mãos dos
olhos. Então me vi de frente para a casinha de madeira onde tinha passado
meus primeiros — e únicos — dezoito anos de vida. Os ramos de madressilva
em volta da casa não estavam floridos agora, mas suas flores haviam
desabrochado ali durante tantos anos que seu cheiro devia ter se
impregnado no ar ali em volta.
— É a minha casa? — sussurrei.
— Tive uma ideia — explicou Joshua. — Um jeito de você talvez ver
sua mãe. Nem que só um pouco. Você acha que iria gostar?
Olhei com mais atenção para a casa. Havia um carro sedan carcomido
de ferrugem parado na entrada. A janela da frente tremeluzia com a luz da
tevê, alternando entre tons de amarelo e azul sob a penumbra do
crepúsculo.
Pensei na sugestão de Joshua por mais um instante e então acenei a
cabeça.
251
Joshua desceu da caminhonete, veio até o meu lado e abriu a porta,
fingindo pegar alguma coisa dentro do carro caso a minha mãe estivesse nos
vendo. Desci, sem tirar os olhos da fachada daquela casinha.
Joshua e eu não falamos nada enquanto cruzávamos o pequeno
jardim. Chegamos à varanda, onde só os passos de Joshua ressoaram contra
as tábuas de madeira. Joshua ergueu uma das mãos e, enquanto acenava a
cabeça para me confortar, bateu na porta.
Ouvi uma movimentação dentro da casa, e minha cabeça começou a
girar. Alguns segundos depois, quando a porta se abriu, até achei que ia
desmaiar.
Lá estava ela na porta, iluminada por trás pela luz do corredor.
Elizabeth Louise Ashley. Liz, para os amigos. Mamãe, para mim.
Ela tinha envelhecido muito, bem mais do que eu imaginava. Ainda
assim, sob suas novas rugas, e dos últimos dez anos de tristeza, a beleza de
minha mãe ainda brilhava a olhos vistos.
Seus longos cabelos escuros reluziam, presos em um rabo de cavalo,
com apenas alguns fios brancos no meio. Seus olhos grandes e castanhos —
ainda contornados por seus cílios grossos — se focaram no jovem em sua
varanda antes de ela o abrir um sorriso largo e gentil.
— Pois não, posso ajudar? — disse ela com sua linda voz, a mesma
voz perfeita que tinha me lido todas as histórias de ninar que eu sabia. A
mesma voz que ela se esforçou para não erguer durante cada uma das
nossas brigas idiotas — brigas que eu queria, mais do que tudo agora,
nunca ter provocado.
— Mamãe — gemi, sem conseguir conter minha boca antes que essa
palavra escapasse.
Pelo canto do olho, pude ver Joshua fechar sua mão que estava mais
perto de mim. Percebi que ele estava querendo me confortar, e o amei ainda
mais por isso, mesmo que ele não pudesse dar vazão a esse seu impulso
agora.
Em vez de pegar minha mão, Joshua limpou a garganta e respondeu a
minha mãe.
— Sim, senhora. Estou aqui em nome do grupo de jovens da igreja.
Nós estamos... hã... distribuindo bíblias de porta em porta.
Ergui uma sobrancelha para Joshua. Para a minha surpresa, ele
sacou uma pequena bíblia verde do bolso de seu casaco e a entregou para a
minha mãe. Tenho que admitir, esse menino estava sempre bem preparado,
com o Novo Testamento na manga e tudo.
252
Minha mãe sorriu, tão surpresa quanto eu, mas estendeu a mão e
pegou a bíblia de Joshua. Ela olhou para o livro, e seu sorriso esmaeceu. Em
seguida, ela passou um dedo pela capa.
— Sabe... — disse ela, ainda olhando para o tomo. — Minha filha
também tinha uma bíblia pequenininha dessas. Da mesma cor e tudo.
Isso deixou Joshua calado. Nem eu sabia o que dizer. Engoli seco,
sentindo um nó estranho na minha garganta.
Minha mãe deve ter sentido o desconforto de Joshua, porque
finalmente levantou a cabeça e olhou para ele. Por um instante, achei ter
visto um brilho de lágrimas nas bordas de seus olhos, mas ela virou a
cabeça, e as sombras cobriram seu rosto.
— Desculpe. Não sei bem... por que disse isso.
— Imagine, senhora — disse Joshua. — Tenho certeza de que sua
filha é fantástica.
— Era — disse minha mãe baixinho. — Mas sim, ela era. Era
fantástica.
Uma pontada de culpa se revirou dentro de mim. O nó na minha
garganta se apertou mais, e me esforcei para não engasgar. Mas o soluço
que contive ainda estava ameaçando transbordar pelos meus olhos na forma
de lágrimas.
Alheia a esse meu drama na sua frente, minha mãe virou a cabeça por
cima do seu ombro para dentro da casa. Um facho de luz iluminou seu
rosto, e pude dar uma última encantadora olhada para ela. Quando ela se
virou de volta para Joshua, seu rosto voltou a se perder sob as sombras.
— Sabe, meu jovem... — começou a dizer ela.
— Joshua. Joshua Mayhew — disse ele, e então fez uma leve careta.
Talvez ele estivesse pensando em dar um nome falso, por mais que não
houvesse nenhuma necessidade. Afinal, ela nunca teria como saber da
conexão entre Joshua e eu.
— Bom, Joshua... — continuou minha mãe. — São só oito da noite
ainda. Eu fiz um chá. Você não quer entrar um pouco?
Os olhos de Joshua se desviaram para mim, mas eu balancei a
cabeça. Por mais que uma parte de mim quisesse muito ficar sentada ao
lado dela por horas, ouvindo sua voz e tentando sentir seu perfume, outra
parte não estava nem um pouco interessada. Devia ser alguma parte de mim
mais preocupada com minha autopreservação. Eu iria voltar depois, sabia,
mas não tinha mais como ficar ali agora. Eu estava achando que se a gente
ficasse mais muito tempo ali, eu ia acabar tendo um colapso nervoso.
253
— Não, obrigado, senhora — disse Joshua, balançando a cabeça. —
Foi muito gentil da sua parte me convidar. Mas é melhor eu ir... preciso
distribuir o resto das bíblias.
— Claro — disse minha mãe, acenando a cabeça. Mesmo em meio às
sombras, pude ver seu leve sorriso. — Foi um prazer, Joshua Mayhew —
disse ela, estendendo sua mão livre. — Sua visita foi breve, mas muito
agradável.
Joshua riu baixinho. Com uma versão menor de seu sorriso de
sempre, apertou a mão de minha mãe.
— Foi um prazer também, senhora Ashley.
Em seguida, ele ficou pálido e soltou sua mão. Eu quase pude ouvir os
gritos de desespero em sua cabeça: ela não tinha se apresentado, então ele
não tinha como saber seu nome. Como ele iria explicar isso? Como?
Minha mãe, no entanto, não se incomodou com isso. Na verdade, não
disse mais nada. Só ergueu uma sobrancelha e abriu aquele seu meio-
sorriso de sempre antes de se virar para fechar a porta.
— Eu li na caixa de cartas... — começou a dizer Joshua, sem muito
jeito. Mas minha mãe já tinha fechado a porta, deixando Joshua sozinho
com o mistério de como esse jovem de dezoito anos poderia saber seu
sobrenome.
Joshua e eu fomos embora em silêncio, mas ele não nos levou para
casa.
Nem precisei perguntar para onde estávamos indo quando ele entrou
em uma estrada íngreme entre pinheiros. Por mais que ele nunca tivesse
pegado aquele caminho antes e a noite agora estivesse bem escura e densa à
nossa volta, soube por instinto qual seria o nosso destino.
Depois de subir pelas sinuosas curvas da estrada que passava pelo
Parque Robber, Joshua parou sua caminhonete ao lado de uma pequena
clareira. Ele deixou o motor ligado, mas desligou os faróis e então desceu
para abrir minha porta. Fiquei esperando de lado enquanto ele se inclinava
para dentro de novo para mexer em seu MP3 player que ele tinha ligado ao
som da caminhonete.
Minha música favorita — a que ele tinha me mostrado e que eu
adorava pelos seus lentos acordes de guitarra — pairou porta afora. Joshua
se afastou da caminhonete e, sem dizer nenhuma palavra, pegou minha
mão. Ele me levou até o meio da clareira, à direita do nosso banco favorito
do parque. Em seguida, me puxou para mais perto. Coloquei meus braços
254
em volta de seu pescoço, ele pôs os seus em volta da minha cintura, e nós
começamos a dançar ao som da música.
Pouco depois, a canção acabou e outra favorita minha começou.
Fiquei achando que Joshua tinha preparado essa lista de músicas só para
mim, mas preferi não dizer nada. Seria mais romântico deixar o mistério no
ar.
Por fim, soltei um suspiro e olhei em seus olhos, que pareciam quase
negros no escuro.
— Obrigada por esta noite — murmurei.
— Você não... não ficou triste, nem chateada comigo?
— Estou triste, sim, claro. Mas estou feliz também. Por vários motivos.
Por ter visto minha mãe. E também... bom, por você.
— Por mim?
— Sim, por você. Você vive me dando os melhores presentes, por mais
que eu nem sempre perceba na hora. Como hoje. Ou quando você me levou
para ver a minha casa daquela primeira vez. Ou quando você me despertou.
— Soltei um braço do pescoço de Joshua e pus a mão em sua bochecha. —
Depois de tudo isso, Joshua, como posso me chatear com você?
Ele riu baixinho, tirando minha mão de sua bochecha para pôr meu
braço em volta de seu pescoço.
— Bom, ainda não te dei sua última surpresa, Amélia.
— A vida? — perguntei, com um sorriso tímido.
Joshua sorriu também — um sorriso largo e charmoso,
completamente perfeito — antes de chegar mais perto de mim.
— Não — sussurrou, balançando a cabeça. — Isto aqui.
Em seguida, tocou seus lábios nos meus.
Apertei meus braços em volta de seu pescoço e o beijei de volta com
todas as minhas forças. Um fogo ardente se alastrou por mim, embora fosse
algo muito menos violento e brutal do que a luz que eu conseguia emanar
sozinha.
Mas esse fogo era melhor. Muito, muito melhor.
Enquanto Joshua e eu nos beijávamos, fiz uma lista das coisas que eu
não tinha: um coração batendo no meu peito, é claro, mas também uma
família com quem eu pudesse conversar, incluindo meu pai ainda perdido e
minha mãe solitária; um futuro — um futuro livre de espíritos malignos e
exorcistas vingativos, um futuro que eu pudesse dividir com esse garoto nos
meus braços.
255
Em seguida, fiz uma lista das coisas que eu tinha: uma existência,
perdida há muito tempo, mas que agora poderia aproveitar de novo; talvez
um ou outro cheirinho de madressilva, ou do perfume de Joshua.
E também, é claro, o próprio Joshua.
Ao revisar tudo isso, me dei conta de que, se me fosse dada a opção,
sempre escolheria ficar com os itens da segunda lista.
Sem pensar. Num piscar de olhos.
Eu sempre escolheria a eternidade, se essa eternidade fosse com ele.
Fim.
256
Esta obra foi formatada e digitada pelo grupo de MV, de forma a propiciar ao
leitor o acesso à obra, incentivando-o à aquisição da obra literária física ou em formato ebook. O grupo é ausente de qualquer forma de obtenção de lucro, direto ou indireto. O Grupo tem como meta a formatação de ebooks achados na internet, apenas para melhor visualização em tela, ausentes qualquer forma de obtenção de lucro, direto ou indireto. No intuito de preservar os direitos autorais e contratuais de autores e editoras, o grupos, sem prévio aviso e quando julgar necessário poderá cancelar o acesso e retirar o link de download do livro cuja publicação for veiculada por editoras brasileiras.
O leitor e usuário ficam cientes de que o download da presente obra destina-se tão somente ao uso pessoal e privado, e que deverá abster-se da postagem ou hospedagem do mesmo em qualquer rede social, blog, sites e, bem como abster-se de tornar público ou noticiar o trabalho do grupo, sem a prévia e expressa autorização do mesmo. O leitor e usuário, ao acessar a obra disponibilizada, também responderão individualmente pela correta e lícita utilização da mesma, eximindo-se os grupos citados no começo de qualquer parceria, coautoria ou coparticipação em eventual delito cometido por aquele que, por ato ou omissão, tentar ou concretamente utilizar da presente obra literária para obtenção de lucro direto ou indireto, nos termos do art. 184 do código penal e lei 9.610/1998.