Estética da Recepção

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Regina Zilberman - 3ª edição

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Estética da Recepçãoe História da Literatura

Regina Zilberman

Porto Alegre, 2015

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ReitorTelmo Rudi Frantz

Pró-Reitora de EnsinoLaura Coradini Frantz

Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e ExtensãoMárcia Santana Fernandes

Coordenadora de Graduação em LetrasAnelise Teixeira Burmeister

Coordenadoras do Programa de Pós-Graduação em LetrasRejane Pivetta de Oliveira e Dinorá Fraga

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www.uniritter.edu.br

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Estética da Recepçãoe História da Literatura

Regina Zilberman

Porto Alegre, 2015

3ª edição

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Editor Chefe da Editora UniRitterMarcelo Spalding

Conselho EditorialAnna Paula Canez, Cláudia de Souza Libânio, Gladimir de Campos Grigoletti,

Hericka Zogbi Jorge Dias, Isabel Cristina Siqueira da Silva, Josué Emílio Möller,Júlio César Caetano da Silva, Marc Antoni Deitos, Maria Luíza de Souza Moreira,

Regina da Costa da Silveira

Conselho CientíficoProf. Dr. Beatriz Daut Fischer (Unisinos), Prof. Dr. Bernardo Subercaseaux (Universidad de

Chile), Prof. Dr. Diego Rafael Canabarro (UFRGS), Prof. Dr. Elias Torres Feijó (Universidade de Santiago de Compostela), Prof. Dr. Gilberto Ferreira da Silva (Unilasalle), Prof. Dr. Günther

Richter Mros (Universidade Católica de Brasília), Prof. Dr. Jaqueline Moll (MEC), Prof. Dr. Júlio Van der Linden (UFRGS), Prof. Dr. Lucas Kerr de Oliveira (Universidade Federal da Integração, Latino-Americana), Prof. Dr. Marizilda Menezes (UNESP Bauru), Prof. Dr. Taisy Weber (UFRGS)

Revisão LinguísticaMayara Lemos

Projeto GráficoCláudia Silveira Rodrigues

Editoração EletrônicaYOYO ateliê gráfico

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Z69e Estética da recepção e história da literatura / Regina Zilberman – 3. ed. – Porto Alegre: Editora UniRitter, 2015.

166 f. ; 16x23cm.

ISBN: 978-85-5572-001-7

1. Teoria da Literatura. 2. Estética da recepção. I. Zilberman, Regina. II.Título.

CDU 82.0

Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico daBiblioteca Dr. Romeu Ritter dos Reis

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SumárioApresentação ...................................................................................................... 7

A estética da recepção no horizonte dos anos 60............................................... 13

Paralelas que se encontram em algum lugar da teoria ...................................... 23

Projetando a nova história da literatura ............................................................ 43

Da teoria à prática ............................................................................................. 59

Experiência estética ........................................................................................... 71

Hermenêutica literária ....................................................................................... 87

Helena: um caso de leitura .............................................................................. 103

Fim do percurso? Encruzilhadas ....................................................................... 133

Bibliografia comentada .................................................................................... 149

Vocabulário crítico ............................................................................................161

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Apresentação da 1ª edição

Vinte anos após Hans Robert Jauss ter exposto a conferência depois consi-derada o manifesto da Estética da Recepção, pode parecer tardia a tentativa de familiarizar o leitor brasileiro com essa vertente da Teoria da Literatura. Ou então testemunhar indiretamente que, no Brasil, o último grito sempre chega atrasado, depois de a moda ter se esgotado em seu lugar de origem.

Não é essa a perspectiva do livro que aqui começa, nem de sua apresenta-ção. Oferecer a Estética da Recepção como um novo figurino ou esperar que ela encontre seguidores e adeptos entre nós, seduzidos por suas promessas e já saturados de alguma outra corrente crítica ou filosófica, é não apenas ter uma visão frívola da Teoria da Literatura ou do intelectual brasileiro; significa também colaborar para a alienação e a dependência culturais, de que aquela frivolidade é um dos sintomas. Por outro lado, pensar que, sem essas justifica-tivas, não se explica a introdução de correntes do pensamento contemporâneo ao estudioso no campo das ideias parece, igualmente, tomar em bem pequena conta nosso ambiente cultural.

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Por isso, talvez seja mais justo e frutífero apoiar a apresentação da Estética da Recepção tão somente na relevância de suas teses, na dimensão que foram assumindo durante os anos 1970 sobretudo nas duas Alemanhas e no respeito que despertou nos países onde os livros de Jauss foram traduzidos. No Brasil, a diferença não foi tão grande quanto as afirmações anteriores parecem dar a en-tender: em 1979, Luiz Costa Lima organizou uma coletânea contendo ensaios importantes dos membros da Escola de Constança, tais como, além de Jauss, K. Stierle e W. Iser e, ainda, H. U. Gumbrecht, que então já não podia ser tão facilmente incorporado ao grupo; e isto no mesmo ano em que era lançada a tradução francesa e três anos antes das edições americanas, depois, contudo, das publicações portuguesa e espanhola do livro de Jauss (v. bibliografia ao final). Todavia, quando a antologia apareceu, outras tendências teóricas, vin-culadas sobretudo aos trabalhos de M. Bakhtin, W. Benjamin e J. Lacan, eram igualmente divulgadas, atraindo o intelectual brasileiro e, ao mesmo tempo, diversificando as opções de investigação, enquanto se encerrava o ciclo estrutu-ralista, tão marcante e quase hegemônico durante a década de 1970.

Os anos 1980, por seu turno, assinalaram-se, no Brasil, por uma ampla discussão em torno à leitura, encarada sob múltipla perspectiva, em respos-ta, de um lado, à crise de ensino, denunciada em várias instâncias, inclusive a pública, de outro, à necessidade coletiva de rever e submeter a novo crivo um passado – recente ou distante – até agora mascarado por dissimulações, falsi-dades ou enganos.

Ler assume hoje significado tanto literal, sendo, nesse caso, um problema da escola, quanto metafórico, envolvendo a sociedade (ou, ao menos, seus se-tores mais esclarecidos) que busca encontrar sua identidade pesquisando as manifestações da cultura. Sob esse duplo enfoque, uma teoria que reflete sobre o leitor, a experiência estética, as possibilidades de interpretação e, paralela-mente, suas repercussões no ensino e no meio talvez tenha o que transmitir ao estudioso, alargando o alcance de suas investigações.

Por sua vez, no âmbito exclusivo da Teoria da Literatura, a Estética da Recepção oferece um leque de sugestões sobretudo à História da Literatura, na qual Jauss ancora suas principais teses, por equivaler ao leito sobre o qual

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deve fluir a ciência literária. Suplementarmente, ela colabora com a Literatura Comparada, a Crítica Literária e o Ensino da Literatura, todos estes, campos aplicados da Teoria da Literatura, portanto, da História da Literatura, pois, como se disse e voltar-se-á a examinar, Jauss promove a integração dessas duas disciplinas. Como também essas áreas estão sendo objeto de revisão e reavalia-ção nos últimos tempos, a explicitação da metodologia recepcional talvez possa fornecer subsídios à discussão e dar consistência a seus fundamentos filosóficos.

Refletindo sobre a História, a Estética da Recepção é igualmente um acon-tecimento histórico; por isso, nosso ponto de partida é o estabelecimento de suas coordenadas temporais, a que se segue o esclarecimento de seus paren-tescos intelectuais. As teses de Jauss são expostas a partir do terceiro capítu-lo e, embora se acompanhem sua sequência e seu desdobramento através dos ensaios que foram publicados principalmente entre 1967 e 1982, o objetivo não é verificar a evolução de seu pensamento. Como se verá, o autor vai am-pliando a área de abrangência de suas ideias à medida em que novas questões vão aparecendo. Coerente com a lógica da pergunta e da resposta, base da sua metodologia, o próprio texto induz a novas interrogações que ele busca resolver alargando o campo de operação.

Esta exposição sublinha os temas relacionados à História da Literatura, por esta ocupar posição central no pensamento de Jauss; e enfatiza o trabalho deste pensador, por ele desempenhar papel de destaque no desenvolvimento da Escola de Constança. Por causa da primeira decisão, fomos obrigadas a cortar ou reduzir vários tópicos igualmente relevantes no conjunto de suas concepções; por causa da segunda, autores de grande penetração intelectual, como W. Iser e K. Stierle, não são examinados como mereceriam: do primeiro, apresentam-se apenas as ideias relativas às noções de leitor implícito e estrutura de apelo do texto; do segundo, menciona-se tão somente a orientação de suas pesquisas.

Este roteiro decorreu, ainda, de uma terceira decisão: a de esboçar a análise de um texto ficcional, Helena, de Machado de Assis, segundo a metodologia proposta por Jauss. Mesmo correndo o risco da infidelidade aos princípios des-se, a tentativa justifica-se: à primeira vista, o exemplo prático parece esclarecer melhor o significado das premissas teóricas; além disso, Jauss insiste em que

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a Hermenêutica Literária incorpore a etapa da aplicação. O exame de Helena responde a essa exigência, ao mesmo tempo testando os pressupostos que o fundamentam.

Sendo uma teoria sobre a leitura, a Estética da Recepção é, a partir daqui, lida e interpretada. Com os perigos, as consequências e o prazer que essa tarefa subentende.

Belmont, Providence e New York, nov. 86 – mar. 87Porto Alegre, fev. 2015.

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A estética da recepção no horizonte dos anos 60

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Em 1975, Hans Robert Jauss fez uma exposição durante o congresso bie-nal dos romancistas alemães em que, historiando o aparecimento da Estética da Recepção, situou o movimento no quadro dos acontecimentos políticos e intelectuais da década de 60.1 Este período caracterizou-se efetivamente por transformações que afetaram a vida universitária, em particular, e a sociedade ocidental, de modo amplo, com consequências visíveis em vários setores, um deles sendo o das investigações literárias.

Talvez o traço mais marcante dessa década tenha sido a revelação do “po-der jovem”, a juventude vindo a construir uma força política até então desco-nhecida, de um lado, por rapidamente converter seu inconformismo em revol-ta, de outro, por atuar independentemente dos partidos ou das ideologias de esquerda ou direita herdadas das gerações anteriores.2 Além disso, sua for-ma de agir provocou efeitos imediatos: mudou profundamente os padrões de

1 Cf. JAUSS, Hans Robert. Der Leser als Instanz einer neuen Geschichte der Literatur. Poetica 6 (3–4): 325-344. 1975.

2 Cf. HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ‘ideologia’. In: BENJAMIN, Walter; HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W.; HABERMAS, Jürgen. Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1975 (Col. Os Pensadores, v. XLVIII)

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comportamento e conferiu direções inusitadas à vida cultural. As consequên-cias foram, às vezes, radicais; porém, não conseguiram modificar a estrutura da sociedade capitalista que, talvez com rapidez equivalente, soube absorver o choque e impedir que a revolução cultural se alastrasse a ponto de comprome-ter os fundamentos do sistema em vigor.

A universidade foi uma das instituições mais atingidas, pois a revolta come-çou dentro de seus muros, entre os estudantes, que se revelaram líderes ativos. Os cursos foram questionados a fundo, de que resultaram novos currículos e propostas originais para a educação superior. Não por coincidência a confe-rência com que Jauss abriu o ano acadêmico de 1967 ocorreu na Universidade de Constança, principal fruto da reforma educacional na Alemanha durante a segunda metade da década,3 é conhecida como “Provocação” e começa pela recusa vigorosa dos métodos de ensino da História da Literatura, considerados tradicionais e, por isso, desinteressantes.

A análise de Jauss leva-o a denunciar a fossilização da História da Literatura, cuja metodologia estava presa a padrões herdados do Idealismo ou do Positivismo do século XIX. Somente pela superação dessas orientações se-ria possível promover uma nova Teoria da Literatura, fundada no “inesgotável reconhecimento da historicidade”4 da arte, elemento decisivo para a compre-ensão de seu significado no conjunto da vida social; não mais, portanto, na omissão da História. Indiretamente, ele está acusando as correntes a- ou anti--históricas vigentes nos estudos literários alemães, resultantes das influências diversas recebidas desde o final da guerra.

Com efeito, ele investe, nem sempre de modo direto, contra o panorama in-telectual contemporâneo seu, cujas linhas metodológicas, se eram divergentes entre si, tinham em comum o fato de a História não entrar propriamente em consideração quando se tratava da análise de um texto literário. A observação vale, por exemplo, para a obra de Ernst Robert Curtius, Literatura europeia e

3 Sobre as relações entre as revoltas estudantis e a reforma universitária, em especial a que determinou a criação da Universidade de Constança, cf. JAUSS, Hans Robert; NESSELHAUF, Herbert (Hrsg.). Gebremste Reform. Ein Kapitel deutscher Hochschulgeschichte. Universität Konstanz 1966-1976. Konstanz: Universitätsverlag Konstanz GMBH, 1977.

4 JAUSS, Der Leser... p. 325.

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Idade Média latina, publicada em 1948. O livro, que causou grande impacto nos meios universitários, propunha o estudo dos topoi presentes e constantes em textos de diferentes épocas, sem, todavia, relacioná-los ao momento his-tórico, nem refletir sobre as alterações sofridas em virtude de mudanças con-textuais, sejam estas as novas normas literárias de um certo período, sejam as diferentes expectativas do público.

A observação vale também como crítica aos estudos filológicos, ao New Criticism e à Estilística, de grande penetração na universidade alemã durante os anos 1950; e principalmente a dois manuais de ampla circulação nos meios acadêmicos na mesma época: o de Wolfgang Kaiser, Análise e interpretação da obra literária; e o de Emil Staiger, A arte da interpretação (Die Kunst der Interpretation), partidários convictos dos métodos imanentes e intratextuais quando da análise da ficção e da poesia.

Com a chegada dos anos 1960, novas propostas metodológicas se apresen-taram, sendo o Estruturalismo a que mais prestígio conquistou no meio uni-versitário. Simultânea à sua ascensão, e muitas vezes por causa dela, aconteceu a nova primazia conferida à Linguística, alçada a paradigma da ciência literária que, centrada de modo crescente na expressividade da linguagem, fornecia no-vas armas à análise imanente do texto. Na conferência, o diálogo de Jauss com o Estruturalismo é mais evidente, embora o ataque direcione-se especialmente a seu precursor, o Formalismo russo, não porque este seja, em princípio, con-trário à História, mas porque, quando tentou formular a questão, conforme pode ser acompanhado nas pesquisas de I. Tinianov, fê-lo, segundo o pales-trante, de maneira equivocada e insatisfatória.

Como nos casos anteriores, a referência de Jauss não é direta; nem mostra--se radical, pois ele conserva, principalmente nessa apresentação inaugural da Estética da Recepção, várias dívidas para com o Estruturalismo, sobretudo a ala representada pelo Círculo Linguístico de Praga e o Formalismo russo. O que não se verifica, contudo, é qualquer afinidade com a vertente francesa do movimento, então em evidência, porque nessa exacerba-se o aspecto julgado inaceitável por Jauss: a afirmação da autonomia absoluta do texto, que se so-brepõe ao sujeito por contar com uma estrutura autossuficiente, cujo sentido

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advém tão somente de sua organização interna. Devido a isso, é a estrutura o único objeto a ser descrito pelo estudioso da literatura, jamais, porém, inter-pretado, circunstância em que interfeririam os valores pessoais do crítico; e esses precisam ser evitados, para a Teoria da Literatura comportar-se efetiva-mente como uma ciência.

Sob esse aspecto, a Estética da Recepção apresenta-se como uma teoria em que a investigação muda de foco: do texto enquanto estrutura imutável, ele pas-sa para o leitor, o “Terceiro Estado”, conforme Jauss o designa,5 seguidamente marginalizado, porém não menos importante, já que é condição da vitalidade da literatura enquanto instituição social.

Essa transferência, por sua vez, explica-se historicamente: é contempo-rânea às revoltas estudantis, ao mesmo tempo representando uma resposta a elas. O sujeito da história parecia mudar, sem coincidir com a classe tradicio-nalmente qualificada de revolucionária, o proletariado, segundo a formulação marxista. O modelo de descrição do funcionamento da sociedade e da luta de classes revelava-se incapaz de explicar o fenômeno, justificando a desconfiança de Jauss para com o Marxismo, desconfiança transportada aos outros ensaios em que discute essa corrente do pensamento. Parecia ser a hora para uma subs-tituição de paradigma; que ele acredita ter acontecido, conforme um texto seu publicado um pouco mais tarde.6

Jauss e Gadamer

A meta principal da Estética da Recepção em seus começos, a saber, a re-abilitação da História, por consequência, da historicidade, da Literatura, se-gundo um ângulo distinto do materialismo dialético, é uma proposta que, se por um lado encontra sua explicação no panorama político dos anos 1960, por outro enraíza-se no ambiente intelectual do mesmo período. Em 1961, Hans Georg Gadamer, ex-professor de Jauss na Universidade de Heidelberg, publica

5 JAUSS, Der Leser... p. 325.6 Cf. JAUSS, H. R. Paradigmawechsel in der Literaturwissenschaft. Linguistische Berichte 1 : 44-56. 1969. V.

também JAUSS, Der Leser.... E JAUSS, H. R. Esthétique de la Réception et communication littéraire. Critique 37 (413): 1116 – 1180. Outubro de 1981.

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sua obra até hoje mais renomada: Verdade e método (Wahrheit und Methode), em que procura infundir nova direção à Hermenêutica, ao atribuir-lhe o papel de intérprete da História. Retomando conceitos da Fenomenologia, como o de expectativa, resgatando as noções de prejuízo e tradição, e elaborando sua própria terminologia, como a concepção de “consciência da história dos efei-tos” (Wirkungsgeschichtebewubtsein), Gadamer ofereceu ao pensamento alemão a possibilidade de uma reflexão filosófica que, prosseguindo as investigações de F. Schleiermacher e W. Dilthey, no século XIX, e de M. Heidegger, no século XX, renovava o estatuto da Hermenêutica e possibilitava a (re)visão da História sem ter de percorrer a trilha, talvez já por demais batida, do Marxismo.

Jauss, com seu programa de reabilitar metodologicamente os estudos de História da Literatura, transformando-a no fundamento para a formulação de uma Teoria da Literatura equidistante do Estruturalismo e do Marxismo, en-contra em Gadamer um de seus principais guias e modelos. Como o mestre, re-cupera a História como base do conhecimento do texto; e, igual ao outro, pesqui-sa seu caminho por uma via que permite trazer de volta o intérprete ou o leitor, sua defesa predileta na luta intelectual contra as correntes teóricas indesejadas.

Se a crítica ao Estruturalismo poderia colocar Jauss na esquerda dos es-tudos literários, a rejeição do Marxismo e os debates com os intelectuais da Alemanha Oriental impedem de situá-lo nesse polo do espectro ideológico. Henry Schmidt considera-o uma “alternativa liberal”,7 atributo que se confir-ma quando se aprofunda a análise de suas propostas metodológicas. A classi-ficação significa igualmente que, em Jauss, está presente a recusa de todo dog-matismo: sua modelagem teórica permanece sob constante vigilância e aberta às novas tendências ou às correções que se fizerem necessárias. Significa, tam-bém, a suspeita diante de sistemas fechados e fórmulas acabadas, que se revela-vam esgotadas quando a Estética da Recepção promovia sua estreia no cenário acadêmico europeu.

Também sob esse aspecto é ela um produto característico de uma década de transformações que, se não alterou radicalmente estruturas poderosas do

7 SCHMIDT, Henry J. Text – Adequate Concretizations and Real Readers: Reception Theory and its Applications. New German Critique 6 (2): 157 – 169. Primavera de 1979. p. 158.

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capitalismo ocidental, foi responsável por uma conquista básica: a noção de que os sistemas não explicam tudo, portanto, de que o novo pode emergir de lugares inesperados, exigindo que se esteja não só atento para a novidade, mas que se mantenham os sentidos em forma para perceber, compreender e interpretar da melhor maneira possível sua ocorrência. Talvez o mérito principal da Estética da Recepção resida em que traz embutida essa concepção, procurando extrair dela uma metodologia para conhecer a literatura. Nessa medida, parece ter mui-to para ensinar ao leitor, encarado como o principal elo do processo literário.

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Paralelas que se encontram em algum

lugar da teoria

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A crítica dirigida para a audiência não é um campo, mas vários, não uma simples trilha muito batida, mas uma variedade de en-cruzilhadas, pistas seguidamente divergentes que cobrem uma vasta área de paisagem da crítica segundo um padrão cuja com-plexidade desencoraja os bravos e confunde os fracos de coração.

Susan Suleiman

Assim como se situa num ponto da cadeia dos acontecimentos históricos e intelectuais da década de 1960, com projeções notáveis no decênio seguin-te, quando se assiste à disseminação, discussão e alargamento de suas teses, a Estética da Recepção se coloca em certo lugar da Teoria da Literatura, desde o qual contempla seus precursores, as influências recebidas, as linhas que simul-tânea, mas diversamente, pesquisam objeto similar, seus adversários intelectu-ais. A caracterização dos elementos comuns e divergentes significa, pois, locali-zá-la no campo do pensamento, importante para determinar a originalidade de suas ideias, as dívidas pagas a outras correntes teóricas, sua posição na história da inteligência do século XX.

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O elemento comum partilhado por essas linhas é o princípio sintetizado por Hannelore Link: “A literatura é um caso especial de comunicação”.8 Ele parece vago demais, porém é suficiente para excluir três das quatro correntes da moderna Teoria da Literatura que Peter Uwe Hohendahl opõe à Estética da Recepção:

1. A Teoria Crítica – Associada, principalmente, às pesquisas de Theodor W. Adorno nas áreas de Estética e Filosofia, a Teoria Crítica recusa-se a anali-sar o impacto da obra, considerada objeto independente dos constrangimentos sociais. Escreve Hohendahl: “O leitor, espectador ou ouvinte não aparece como uma categoria independente determinando a obra, porque Adorno nunca ques-tiona o ato hermenêutico da interpretação. A competência daquele é tomada como certa; o recebedor é sempre uma construção ideal que, assim, não pode violar o texto. Se não for esse o caso – como nas relações entre a vanguarda e a massa – então a culpa por essa incompatibilidade recai sobre o público.”9

2. O New Criticism – Em grande evidência nos Estados Unidos e na Inglaterra durante as décadas de 1930 e 40, com projeções na crítica atual, o New Criticism postula que a obra de arte literária é autônoma, cabendo considerar, quando da análise e interpretação, unicamente seus elementos internos. Hohendahl resu-me a principal divergência com a Escola de Constança: “Os estudos sobre o leitor são classificados como extrínsecos, em contraste com a abordagem intrínseca, que focaliza o fenômeno estético-literário em si mesmo.” (p. 33).

3. A Fenomenologia – Roman Ingarden, em A obra de arte literária, faz questão de acentuar que o leitor, bem como o autor, são instâncias exteriores que não interferem na natureza do texto; logo, não devem ser objetos da des-crição que se propõe neste livro.

Contudo, é importante observar que R. Ingarden utiliza o conceito de con-cretização, referindo-se à atividade do leitor, responsável pelo preenchimento dos pontos de indeterminação próprios ao estrato dos objetos apresentados. Segundo ele, essa circunstância não confere maior relevância ao destinatário,

8 LINK, Hannelore. Rezeptionsforschung. Eine Einführung in Methode und Probleme. Stuttgart: Kohlhammer, 1980. p. 15.

9 HOHENDAHL, Peter Uwe. Introduction to Reception Aesthetics. New German Critique 4 (1): 29 – 63. Inverno de 1977. p. 32. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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nem restringe a autonomia da obra. Por outro lado, fundado nessa constata-ção, Wolfgang Iser, colega de Jauss e importante elemento na constituição da constelação teórica da Estética da Recepção, sugere que o texto possui uma estrutura de apelo (Appelstruktur). Por causa desta, o leitor converte-se numa peça essencial da obra, que só pode ser compreendida enquanto uma modali-dade de comunicação.

Dessa maneira, se a Fenomenologia associada às pesquisas de Ingarden é avessa a uma Teoria da Literatura que considere o leitor um fator básico do processo artístico, seus desdobramentos vieram a se opor à origem, ainda que não contradigam as ideias principais, conforme se observa no trabalho de Iser. Eis por que Susan Suleiman inclui a Fenomenologia entre as variedades da por ela designada Crítica dirigida para a Audiência (Audience-oriented Criticism), no ensaio de abertura à coletânea The Reader in the Text.

Hohendahl cita, ainda, o Historicismo enquanto proposta que diverge da Estética da Recepção, embora a este não se possa aplicar o princípio formula-do por H. Link. Como, segundo o autor, a atualização, conceito importante para Jauss, por significar a possibilidade de a obra do passado ser percebida dentro do horizonte contemporâneo por efeito da leitura, “é blasfêmia para o Historicismo que visa à identificação (da obra) com um dado período históri-co” (p. 30), ele exclui essa corrente do campo da recepção.

Este, porém, tem condições de acolher muitos outros hóspedes além dos membros da Escola de Constança. Em sua resenha, S. Suleiman, elencando as tendências da crítica que lidam com o recebedor enquanto peça importante da teoria, alude: à Retórica, à Semiologia e ao Estruturalismo, na medida em que se preocupam com o processo de decodificação do texto pelo destinatário; à Psicanálise e à Hermenêutica, por lidarem com a questão da interpretação; e à Sociologia da Literatura que, mesmo num autor à primeira vista alheio ao tópico, como Lucien Goldmann, analisa a interação da obra com o público.

De certo modo, nessas correntes do pensamento está presente o princípio de que a literatura constitui um caso especial de comunicação, em oposição às teses relacionadas por Hohendahl. Todavia, nem sempre o leitor, o processo da leitura ou a experiência estética são considerados elementos centrais para o

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conhecimento e a interpretação da obra literária. Esses são igualmente crité-rios para melhor delimitar o campo da recepção, levando a uma gradual apro-ximação dele. Um deles está presente, por exemplo, na Poética, de Aristóteles, para quem a catarse, enquanto experiência vivida pelo espectador ou ouvinte, é condição fundamental para definir a qualidade de uma obra, assegurando a superioridade da tragédia sobre a epopeia e justificando um ou outro faux pas de Eurípedes. Isso pode tornar Aristóteles um precursor remoto da Estética da Recepção, segundo comenta Harald Weinrich; ou, por outro raciocínio, coloca Jauss, que recupera o conceito de catarse para a Teoria da Literatura, importante por permitir-lhe analisar as relações entre a arte de vanguarda e espectador contemporâneo e melhor fundamentar sua polêmica com Adorno, na tradição do pensamento aristotélico.

Porém, aqueles elementos estão ausentes de O que é a literatura, de Jean Paul Sartre, que propõe uma sociologia do leitor, ao discutir as relações entre o romancista e a sociedade burguesa, desdobrada posteriormente por historia-dores da literatura como Arnold Hauser, na História social da literatura e da arte, ou Ian Watt, em A ascensão do romance. E do ensaio de Arthur Nisin, La littérature et le lecteur (A literatura e o leitor), que, apesar do título, atribuiu ao leitor apenas a responsabilidade pela animação do texto, cuja permanência no tempo está assegurada por sempre possibilitar sua presentificação ou leitura. Por esses aspectos, os autores citados são excluídos do campo teórico que se busca delimitar.

Tomando, pois, como critérios diretores a noção geral de literatura como forma de comunicação e os conceitos especiais de leitor enquanto entidade coletiva a quem o texto se dirige, leitura como o ato resultante dessa troca e experiência estética como seu efeito no destinatário, três grandes campos inte-lectuais se apresentam, que, ao lado das teses dos professores da Universidade de Constança, compõem o ramo da Teoria da Literatura centralmente preocu-pado com as questões relativas à recepção.

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A Sociologia da Leitura

A Sociologia da Leitura aparece inicialmente como um segmento da Sociologia do Saber, quando o pesquisador alemão L. L. Schücking publica, em 1923, o livro Die Sociologie der literarischen Geschmacksbildung. A obra, cujo título poderia ser traduzido por A Sociologia da formação do gosto literário, foi reeditada em 1931 e, em 1944, publicada na Inglaterra, com o nome mais sim-ples de The Sociology of Literary Taste (A Sociologia do Gosto Literário), com o qual se popularizou.

Seu objetivo é estudar o público enquanto fator ativo do processo literário, já que as mudanças de gosto e preferências interferem não apenas na circula-ção, e, portanto, na fama, dos textos, mas também em sua produção. Conforme explica o pesquisador, os criadores por muito tempo sofreram a influência dos interesses dos grupos no poder que os sustentavam financeiramente. Com as mudanças ocorridas depois do século XVIII, uma delas sendo a consolidação do público burguês, dá-se a emancipação do escritor; porém, este não pode fugir demasiadamente do gosto dominante, que é sobretudo o da camada diri-gente. Além disto, a sociedade dispõe de mecanismos que facilitam ou inibem a difusão de uma obra ou de um autor; analisa então as agências formadoras do gosto, relacionadas, acima de tudo, à crítica literária e à escola, concluindo que esta desempenha o papel mais determinante.

Lançado no início dos anos 20, quando a Teoria da Literatura ensaiava as primeiras rupturas com os modelos idealista e positivista herdados do século XIX, o livro de Schücking tem índole premonitória: antecipa pesquisas socio-lógicas desenvolvidas mais tarde na Inglaterra, onde fertilizou os trabalhos de Robert Altick, Richard Hoggart e Q. D. Leavis, voltados ao estudo das leituras populares e à literatura de massa. Também colabora com o rompimento dos modelos presentes: investigando as preferências do público e sua intervenção no processo criativo do artista, contestou a crença de que a arte é uma entidade autônoma e indiferente aos fenômenos sociais e históricos. Por isso, sua crítica mais aguda é ao conceito de espírito de época, definido por Hegel como uma unidade que a arte pode expressar fielmente. Segundo Schücking, não existe o

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espírito de época, porque não há essa unidade; nem a arte poderia manifestá-lo, porque ela mesma se segmenta em resposta às aspirações dos grupos diferentes a que se destina. Nas suas palavras, “não há isto de um espírito de época, e sim, pode-se dizer, uma série de espíritos de época. Sempre será preciso distinguir grupos inteiramente diferentes, com ideais diversos de vida e sociedade. Com qual desses grupos se relaciona mais estreitamente a arte predominante de-pende de várias circunstâncias, e é necessário viver nas nuvens para atribuí-lo a fatores puramente ideais”.10

Sem dúvida a perspectiva de Schücking é redutora, conforme aponta Hohendahl, ao fazer a história da literatura desaguar na história das mudan-ças de gosto. Todavia, seu estudo inaugurou um campo de investigações em que o público era pensado como elemento ativo; e, criticando o reducionismo idealista, cooperou para a formulação de uma história da literatura fundada na concretude dos fatos sociais.

Conforme se adiantou, o livro de Schücking se associou às pesquisas de orientação sociológica promovidas na Inglaterra, de que resultaram estudos sobre a formação do público leitor, as preferências de camadas populares e a li-teratura de massa. Temas similares aparecem nos trabalhos de Robert Escarpit e do grupo vinculado a ele, conhecido como Escola de Bordéus.

Escarpit identifica seus estudos à Sociologia da Literatura, título da obra que escreveu em 1958. Diferenciando sua perspectiva das demais interessa-das no mesmo tópico, como a Sociologia da Literatura praticada na União Soviética, que encara a obra como testemunho político e ideológico, e a de G. Lukács e de seu discípulo, Lucien Goldmann, que compreendem a ficção como modo de representar as estruturas sociais, o autor delimita sua área de atuação: o consumo de textos, isto é, o momento em que eles se convertem em leitura.

Com esse fim, o autor investiga, principalmente, os mecanismos de dis-tribuição e circulação do suporte da literatura: o livro. Assim, considera a si-tuação social do escritor, identifica os diferentes circuitos percorridos pelos textos e examina por que a cultura se biparte em erudita e de massa. Em outras

10 SCHÜCKING, L. L. The Sociology of Literary Taste. Chicago: The University of Chicago Press, 1966. p. 8.

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publicações, discute tópicos relacionados a esses: as políticas de popularização do livro e da leitura, a interferência do mercado na produção e na difusão de uma obra, o tempo de permanência de uma criação artística no horizonte do consumo do presente ou a duração do prestígio de um autor.

Em suas análises prevalece a ótica empírica, sendo o patrimônio literá-rio considerado vivo enquanto efetivamente absorvido por seus virtuais des-tinatários. Escarpit não interpreta textos, nem emite juízos de valor; como Schücking, seu enfoque sociológico não procura encontrar contrapartida na Estética, o que restringe sua contribuição à Teoria da Literatura. Todavia, a Sociologia da Leitura não tem sua importância diminuída por essa causa; suas pesquisas permitem compreender o fato literário no cotidiano de sua existên-cia, caracterizado por sua circulação e consumo. Sob esse aspecto, o leitor de-sempenha papel relevante no conjunto de suas ideias, pertencendo de direito ao campo intelectual aqui descrito.11

O Estruturalismo Tcheco

Fundado em 1926 e estreando suas teses em 1929, durante o I Congresso de Filosofia Eslava, o Círculo Linguístico de Praga trabalhou, no início, à sombra do Formalismo russo, de quem herdou ideias e colaboradores, como Roman Jakobson, Sergei Karcevsky e Piotr Bogatyrev.12 Na metade da década seguinte, o grupo deu um salto na direção da Semiótica, com o que foi paulati-namente superando os vínculos com o movimento precedente.13 Porém, como este, de certa maneira, já apelava à ação do destinatário enquanto sujeito da percepção para dar suporte a seus princípios básicos, o Estruturalismo tcheco contou, desde o começo, com uma teoria sobre a atividade do leitor – embora

11 Apresentamos a Sociologia da Leitura em relação a seus pesquisadores pioneiros. Atualmente, diversifica-se nas vertentes que propõem novas alternativas metodológicas, como fazem Pierre Bourdieu, Jacques Dubois e Jacques Leenhardt, entre outros, ou investigam a História da Leitura, conduzida por, entre outros, Roger Chartier, Robert Darnton e Rolf Engelsing.

12 Cf. STEINER, Peter. The Roots of Structuralist Aesthetics. In: STEINER, Peter (ed.) The Prague School. Select Writings, 1929-1946. Austin: University of Texas Press, 1982.

13 Cf. MATEJKA, Ladislav. Literary History in a Semiotic Framework: Prague School Contribution. In: STEINER, Peter; CERVENKA, Miroslav; VROON, R. (ed.). The Structure of the Literary Process. Studies dedicated to the Memory of Felix Vodicka. Amsterdam & Philadelphia: John Benjamin Publishing Co., 1982.

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esse substantivo raramente apareça – e sobre as transformações históricas por que passa a literatura.

Com efeito, seja na sua fase inicial, quando os ensaios de Victor Chklovsky procuravam sacudir o modelo dominante na Poética e Estética ensinado nas universidades de Moscou e São Petesburgo, na condição de ponta de lança te-órico do Futurismo; seja nos anos 1920, sob a liderança menos agressiva de Iuri Tinianov, o Formalismo elaborou alguns conceitos que descrevem o fato literário na sua relação com o leitor. É o que ocorre à noção de estranhamen-to, concebida como o efeito necessariamente provocado pela arte, quando esta possui qualidade. Vale dizer, um bom produto artístico mobiliza vários arti-fícios, visando motivar um choque no destinatário: somente quando se dá de modo tenso a relação entre o sujeito da percepção e o objeto estético, este pode ser considerado de valor.

Nesse sentido, o Formalismo representa uma mudança importante na con-cepção vigente de valor estético. Este deixa de ser visto na perspectiva subs-tancialista, enquanto transfiguração de uma ideia universal; torna-se elemento móvel, porque a arte precisa manter-se em permanente renovação para alcançar o desejado efeito de estranhamento. E resulta unicamente da mobilização dos elementos formais de que a obra se compõe, convocando a Teoria a preocupar-se apenas com a natureza da literatura e a romper com as ciências de que até então vinha dependendo, como a História, a Filosofia ou a Psicologia, por exemplo.

Acreditando que compete à arte desautomatizar os processos perceptivos do indivíduo, mergulhado num mundo de objetos que, por serem vistos dia-riamente, acabam ignorados, o Formalismo russo legitima os projetos da van-guarda de seu tempo. Simultaneamente, não tem meios de fazer as pesquisas prosperarem sem reconhecer como companheiro de viagem o leitor (ou, mais amplamente, o recebedor, já que as teses de V. Chklovsky não visam apenas à leitura, mas ao sistema geral das artes). E sem elaborar uma teoria da evolução literária, tarefa assumida por I. Tinianov nos ensaios sobre esse tema e sobre a paródia, encarada não como um gênero literário, mas como o processo mesmo de desfiguramento das formas canônicas, portanto, de desautomatização.

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A evolução literária constitui-se, segundo ele, de sucessivas desfamiliariza-ções, impedindo que os gêneros poéticos e ficcionais cristalizem-se em formas fixas. Pelo contrário, estão em mutação constante, ao se oporem uns aos outros como maneira de se individualizarem. Com essa conclusão, Tinianov procura conferir autonomia à história da literatura, até então, segundo ele, uma colô-nia ocupada por disciplinas vizinhas. Porém, não evita seu esvaziamento, ao reduzi-la à evolução, conforme lembra Jauss, e ao dualismo do princípio de automatização e desautomatização.

O caráter original de várias teses formalistas não esconde o fato de que, em alguns aspectos, elas parecem simplórias. Se, de um lado, reconhecem que a obra de arte é uma forma de comunicação destinada à percepção de um sujeito, de outro, este é reduzido a um papel passivo, encarado como espaço onde se re-alizam de modo surpreendente os artifícios artísticos não familiares. Quando afirmam ter a História da Literatura um funcionamento autônomo, conferin-do-lhe a independência de que vinha se ressentindo desde o século XIX, não conseguem fazer o caminho de volta, rearticulando os intercâmbios da litera-tura com a sociedade e a ideologia.

Quando o Círculo Linguístico de Praga começa a desenvolver suas pesqui-sas, ele assume algumas convicções do Formalismo, como a oposição entre a linguagem estandartizada da comunicação pragmática e a linguagem poética caracterizada pelos artifícios visando ao estranhamento do destinatário. Nas Teses de 1929, definem a expressão poética enquanto um ato individual a ser avaliado quando contrastado ao background da tradição artística e da lingua-gem comunicativa, o que significa o endosso dos princípios formalistas rela-tivos à percepção estética e à evolução da literatura. Porém, já nessa fase os membros do Círculo se preocupam com o aspecto semântico das formas de comunicação linguística, concebidas como resultado da estrutura: esta é um modo de organização da linguagem, cujos “elementos individuais não podem ser compreendidos fora de suas conexões com o todo”, mas que ali estão para manifestar um sentido.14

14 Theses presented to the First Congress of Slavic Philologists in Prague, 1929. In: STEINER, Peter (ed.). op. cit. p. 16.

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Essa conclusão faculta a Jan Mukarovsky, num renomado ensaio de 1934, postular a natureza sígnica da obra de arte: na condição de signo, ela é comu-nicativa, o que desde logo pressupõe o recebedor. Porém, diferencia-se dos sig-nos empregados na linguagem prática do cotidiano, por tratar-se de um signo autônomo, cuja significação advém da articulação de suas partes, prescindindo da referência a uma situação externa.

Esta duplicidade – a circunstância de ser concomitantemente signo au-tônomo e comunicativo – converte-o em signo estético; como tal, desempe-nha uma função estética, diversa da função prática exercida usualmente pela linguagem verbal. Porém, o signo estético assim se revela se o espectador o perceber enquanto objeto estético, o que determina, agora por outra via de raciocínio, o reconhecimento da importância de sua atividade perceptiva. É o recebedor que transforma a obra, até então mero artefato, em objeto estético, ao decodificar os significados transmitidos por ela. Em outras palavras, a obra de arte é um signo, porque a significação é um aspecto fundamental de sua natureza, mas ela só se concretiza quando percebida por uma consciência, a do sujeito estético.

Ao contrário do Formalismo, que introduz o sujeito da percepção no siste-ma teórico porque necessita dele enquanto sintoma de que as convenções foram desestabilizadas pela arte de vanguarda, a Estética estrutural de Mukarovsky concebe o recebedor como uma consciência ativa, com papel determinante, ao facultar a passagem da obra da condição de coisa inerte à de objeto significa-tivo. Além disso, Mukarovsky entende o recebedor não como um indivíduo particular, e sim enquanto consciência coletiva, categoria que, segundo M. Cervenka, “é – ao lado da categoria de função – o mais importante elo de li-gação para a passagem da visão imanente da obra de arte para a sociológica.”15 Poder-se-ia acrescentar: para a resolução do problema relativo à formulação de uma nova história da literatura, vinculada à recepção, de que se encarrega, no início dos anos 40, Felix Vodicka, seguidor de Mukarovsky.

15 CERVENKA, Miroslav. Die Grundkategorien des Prager literaturwissenschaftlichen Strukturalismus. In: ZMEGAE, Viktor; SKREB, Zdenko (Hrsg.). Zur Kritik literaturwissenschaftlicher Methodologie. Frankfurt: Athenäum, 1973. p. 157.

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Este sabe que a percepção da obra de arte não se dá de modo direto, como acreditaram os formalistas, interpondo-se entre o sujeito e o objeto estético um código que possibilita a concretização do segundo pelo primeiro. A cons-ciência estética participa, portanto, da criação artística e, como esta, passa por transformações, porque mudam as normas literárias. Eis outra categoria im-portante no pensamento de Mukarovsky, correspondendo ao código vigente ou, mais especificamente no campo literário, à poética dominante, que atua como mediadora quando da percepção da obra por um indivíduo.

As normas são elementos de estabilização do sistema e incluem não so-mente critérios literários, mas ideológicos, morais, sociais, etc. Por seu turno, sua estabilidade é precária, porque nenhuma criação artística a aceita por in-teiro: conforme a lição formalista, um artista necessariamente elabora proce-dimentos originais que rompem com certas normas, embora jamais venham a aboli-las por inteiro.

Da dialética entre aceitação e ruptura das normas constrói-se a evolução da arte e da literatura, cuja história se confunde com o conjunto de normas consolidadas no tempo. Também por esse aspecto o conceito de norma é es-tabilizador, pois ela coincide com a tradição acumulada; mas trata-se de uma estabilidade relativa, estando sob permanente contestação, as violações perpe-tradas pelos artistas.

O conceito de norma é importante por várias razões: indica o caráter cole-tivo da percepção estética, de modo que se configura como um horizonte que pode ser ou é efetivamente reconstituído pela História da Literatura; mostra que a literatura é um fenômeno contínuo e, ao mesmo tempo, em permanente transformação, pois a norma existe para ser violada; e é a condição de exis-tência da estrutura artística, ao agregar e integrar os diferentes elementos a compor o texto.

Sob todos esses ângulos, a norma mostra-se um elo de ligação – o inter-mediário entre o sujeito e o objeto estético, a obra individual e a História, os fatores estruturais de um texto. Contudo, não é o elemento determinante do valor artístico; este se distingue por oposição, correspondendo ao que, em cada texto em particular, nega as normas vigentes.

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A concepção de valor, de certa maneira, desdobra teses formalistas, por equivaler à subversão das convenções dominantes. Entretanto, Mukarovsky vai mais adiante: elabora um conceito em que o valor não se confunde com qualquer substância, nem é fixo no tempo. É uma espécie de vazio ou possibilidade pre-enchida por cada obra, quando ela contesta a rotina literária; e permanece na si-tuação de negatividade, embora possa se individualizar em criações específicas.

À dialética aceitação/ruptura, própria à História, sobrepõe-se outra, entre norma e valor, fundamento da Estética. Ambas são a matéria de uma ciência da literatura, estando presentes também quando Felix Vodicka propõe a ela-boração de uma nova História da Literatura, apoiada na noção de repercussão ou recepção.

Vodicka parte do conceito de concretização, entendido numa acepção di-ferente de Ingarden, que, no início das atividades do Círculo Linguístico de Praga, foi um de seus membros. Para Ingarden, a concretização corresponde à realização, por parte do leitor, dos aspectos esquematizados, resultantes do modo nem sempre plenamente determinado, mas jamais imperfeito ou in-completo, como o mundo ficcional se apresenta a ele. O linguista pensa que a concretização depende antes do código introjetado pelo recebedor, sendo, pois, uma categoria semiótica e estando sujeita a mudanças, por variar entre épocas, classes, situações diferentes. As formas de concretização de uma obra num certo período da história determinam sua recepção, que, assim, pode ser reconstituída, se se tiver acesso às reações do público. A crítica literária ou as poéticas de uma época consistem no material que responde pelos tipos de con-cretização, e este, pelas normas estéticas vigentes.

Para Vodicka, essa reconstituição é a principal tarefa da História da Literatura, voltada, agora, a investigar o impacto das obras sobre o público. A mudança de enfoque é notável, já que o eixo fundamental deixa de ser a relação autor-época-criação, transportando-se à relação desta, independentemente do período de seu aparecimento, com a audiência. Ao transferir-se da esfera da produção à do consumo, o autor subverte também a concepção de História, já que a visão linear, herança do Positivismo do século XIX, não pode ser susten-tada: se as obras vão e vêm no tempo, em resposta a necessidades distintas do

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público de cada época, então parece imprescindível assumir uma perspectiva dialética que dê conta do problema com eficácia.

O Estruturalismo tcheco, rico em sugestões a respeito da concepção do recebedor enquanto personagem indispensável do processo de constituição do objeto estético e foco a partir do qual cabe revisar a História da Literatura, quase se converteu por sua própria conta numa estética da recepção. Como tal, exerce evidente influência sobre os primeiros textos de Jauss voltados ao tópico. Além disto, soube refletir sobre a questão do recebedor desde a perspectiva estética, e não unicamente empírica, elaborando uma teoria sobre o valor e a História. Seu impacto sobre a ciência literária ocidental, a partir dos anos 1960, quando se traduziram suas teses para o inglês, francês e alemão, não foi negligenciável, razão por que vários dos conceitos aqui expostos reaparecem nas páginas subsequentes.

O Reader-Response Criticism

Ao contrário das linhas antes descritas, cujo aparecimento deu-se na déca-da de 1920, precedendo e/ou influenciando a Estética da Recepção, o Reader-Response Criticism é coetâneo dessa e compartilha com ela algumas de suas te-ses e integrantes, como Wolfgang Iser. Jane Tompkins, na coletânea dedicada ao grupo, situa suas origens nos anos 1920 e 30, associando-o ao New Criticism. No entanto, pode-se considerá-lo uma reação a este último, dividindo com o Desconstrutivismo, na mesma ocasião, o desejo de romper com a metodologia imanente de descrição do texto literário.

Esse é um dos aspectos a caracterizar os críticos que podem ser reunidos sob o teto do Reader-Response Criticism, denominação vaga que congrega pós--estruturalistas, como Jonathan Culler, e partidários da abordagem psicana-lítica, como Norman Holland, pensadores menos ou mais arrojados, como, respectivamente, Gerald Prince e Stanley Fish, e, enfim, norte-americanos na grande maioria, mas também europeus, como Iser, seguidamente associado ao grupo. Jane Tompkins procura definir o princípio comum aos trabalhos desses ensaístas, assegurando a existência de uma comunidade intelectual

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relativamente homogênea: “Um poema não pode ser entendido independen-temente de seus resultados. Seus ‘efeitos’, psicológicos ou outros, são essenciais para qualquer descrição acurada de seu sentido, já que este não tem existência efetiva fora de sua realização na mente de um leitor.”16

Se a recusa da metodologia do New Criticism constitui um dos denomina-dores comuns, para tanto, procurando examinar a obra na medida da respos-ta do leitor, outro é a influência do Estruturalismo, que leva Gerald Prince e Michael Riffaterre a tentarem estabelecer, cada um por seu turno, uma tipo-logia do leitor. Este, chamado de narratário por Prince, a fim de colocá-lo em oposição simétrica ao narrador e em posição contígua ao destinatário, é uma presença basicamente textual. Nem Prince, nem Riffaterre, que elabora uma criatura puramente teórica classificada de arquileitor, pensam o leitor real ou o público consumidor da literatura, de maneira que suas investigações dão-se ainda no âmbito exclusivo do texto.

É quando o Reader-Response Criticism mergulha nas águas do Pós-Estruturalimo, como acontece nos ensaios de J. Culler, que se desloca do do-mínio descritivo, relacionando os leitores implicados no tecido textual, para o interpretativo. Culler, seguindo a lição de Roland Barthes e o pensamento francês do final dos anos 1960 e início dos 70, estuda os modos como o texto veicula sentidos, isto é, como pode ser absorvido e compreendido pelo leitor. Este, todavia, não é uma entidade autônoma, e sim um produto do próprio tex-to que, se não se impõe autonomamente ao destinatário, também não se deixa dobrar aos arbítrios dele.

Por essa razão, o Reader-Response Criticism não representa uma ruptura radical com o New Criticism. Segundo J. Tompkins, a certeza de ser o poema uma manifestação superior e autossuficiente de linguagem permanece de pé,17 convicção também apontada por Marie Louise Pratt, para quem a relação en-tre os dois movimentos não apresenta solução de continuidade.18

16 TOMPKINS, Jane P. An Introduction to Reader-Response Criticism. In: TOMPKINS, Jane P. (ed.). Reader-Response Criticism. From Formalism to Post-Structuralism. Baltimore & London: The Johns Hopkins University Press, 1980. p. IX.

17 Cf. TOMPKINS, Jane P. The Reader in History: the Changing Shape of Literary Response. In: TOMPKINS, Jane P. (ed.). op. cit.

18 Cf. PRATT, Marie Louise. Interpretative Strategies/Strategic Interpretation. On Anglo-American Reader

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O rompimento se acharia antes nas proposições de Louise Rosenblatt, cujas pesquisas sobre as relações entre o texto e o leitor iniciaram ao final dos anos 1930, e de Stanley Fish, o enfant terrible da crítica norte-americana da década de 1970.

Rosenblatt, numa exposição publicada em 1981, resume sua tese principal: ela compreende a leitura como transação (transaction) entre o texto e o leitor. Trata-se de um processo de mão dupla, segundo o qual “o texto guia e constran-ge, mas é também aberto, exigindo a contribuição do leitor. Este deve recorrer seletivamente à sua experiência e sensibilidade para obter os símbolos verbais a partir dos sinais do texto e dar substância a esses símbolos, organizando-os num sentido que é visto como correspondendo ao texto.”19 Assim, o significado da obra depende totalmente dos sentidos que o leitor deposita nela. Também seu caráter estético depende do destinatário: se este não o vivencia como obra de arte e busca aí outro tipo de experiência (uma informação, por exemplo), o texto perde sua qualidade artística. Para L. Rosenblatt, “é o leitor que deve adotar predominantemente um ou outro (estético ou não-estético) modelo de atividade durante a transação com o texto”,20 do que advém sua classificação.

Relativismo similar encontra-se em Stanley Fish, que, num ensaio publi-cado em 1970, propõe o que denomina Estilística Afetiva (Affective Stylistics). Seu objetivo é elaborar um método “que toma o leitor, enquanto uma presença ativamente mediadora, totalmente em consideração.”21 Ao invés de descrever a significação congelada do texto, Fish busca examinar como o destinatário dá à obra um sentido, entendido como “o que está acontecendo entre as palavras e a mente do leitor.” (p. 28).

Negando que o sentido seja o resultado da leitura de uma obra, Fish en-tende-o como aquilo que o leitor elabora enquanto está lendo. O sentido é,

Response Criticism. In: ARAC, Jonathan (ed.). Postmodernism and Politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986.

19 ROSENBLATT, Louise M. On the aesthetic as the Basic Model of the Reading Process. In: GARVIN, Harry (ed.). Theories of Reading, Looking and Listening. Lewisburg: Bucknell University Press; London and Toronto: Associated University Press, 1981. p. 19.

20 ROSENBLATT, On the aesthetic. p. 20,21 FISH, Stanley. Literature in the Reader: Affective Stylistics. In: . Is there a Text in this Class? The Authority

of Interpretative Communities. Cambridge, Ma & London: Harvard University Press, 1980. p. 23. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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nas suas palavras, um evento, isto é, um processo a ocorrer durante a leitura, subordinado às transformações por que passam as operações mentais do leitor. O texto confunde-se à experiência que proporciona e a que o leitor carrega consigo, perdendo toda a objetividade. Em relação a isto, Fish é enfático, afir-mando ser a objetividade do texto uma ilusão (p. 43).

Privilegiando a experiência de leitura, Fish abole as tipologias que opõem textos literários e não literários, já que suas observações valem para qualquer tipo de material verbal impresso e apto a ser consumido. Além disto, não tem em vista a descrição do texto, e sim a experiência produzida por ele, um pro-cesso que, nas suas palavras, “não tem ponto final.” (p. 67).

Tanto Louise Rosenblatt, como Stanley Fish resgatam a figura do leitor: ele não é uma construção do texto ou um produto seu. Poder-se-ia mesmo afirmar que inverteram a proposição: o texto – isto é, sua natureza (literário ou não) e sentido – é que se mostra produto do leitor. Por outro lado, a ênfase na experiência ou na transação individual aproxima as teses do relativismo que dificulta a compreensão dos fenômenos históricos. Em outras palavras, a insis-tência na comunicação entre cada texto e cada leitor parece reduzir o diálogo apenas aos dois. No entanto, certas interpretações vingaram no tempo e foram depois contestadas, obras subiram e desceram na gangorra dos juízos literá-rios. Como avaliar esta tradição que é a História da Literatura com sua cauda de críticas, valorações, classificações?

S. Fish discute o tópico em outro ensaio, cujo tema são as interpretações acumuladas em séculos de leitura e análise da obra do poeta inglês John Milton. Verificando que os estudos sobre esse autor têm a sua própria história, já que variam embora a obra de referência se mantenha a mesma, Fish conclui serem as comunidades interpretativas (Interpretative Communities) as responsáveis pela estabilidade das interpretações. Essas comunidades estabelecem estraté-gias de interpretação que acabam por orientar a leitura, mesmo a de um texto ainda não conhecido. Conforme escreve, “estas estratégias existem antes do ato de ler e, portanto, determinam a forma do que é lido em vez do contrário.”22

22 FISH, Stanley. Interpreting the Variorum. In: ___. op. cit. p. 171.

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Fish está se referindo ao fato de que, no domínio das Letras, as convenções, transmitidas por aparelhos como a escola, acabam dirigindo o modo como o texto é lido e compreendido. Como as convenções são aceitas pela comunidade, as interpretações suscitadas por elas são igualmente acatadas e respeitadas. Caso contrário e a reação é unânime, as convenções mudam; ou, então, o des-contente muda de comunidade interpretativa, cria a sua ou acomoda-se a que estiver mais próxima de suas convicções.

A solução parece inteligente; mas, para Marie Louise Pratt, Fish compor-ta-se como Pilatos, lavando as mãos de qualquer responsabilidade. Para ela, “o que está sendo proposto como crítica no novo programa de Fish não é algo totalitário, nem poder sem responsabilidade, e sim algo parecido mais à autori-dade sem poder ou responsabilidade, um espaço para ser um expert (um ____ é) sem ser o Chefe, um espaço em que, como Fish continua tentando argumen-tar, tudo é um jogo, o que significa que, ao contrário da realidade, quando tudo está terminado, a gente se levanta e vai para casa, contudo, recebendo misterio-samente um cheque ao sair.”.23

Noutra formulação, Fish não explica o principal: como as interpretações se impõem umas sobre as outras ou como as mudanças acontecem. No fundo, estão presentes relações de poder, infelizmente deixadas em aberto. A con-clusão de Pratt amplia as observações de William E. Cain,24 para quem Fish avizinha-se a um tópico de natureza política, sem enfrentá-lo e deixando seu leitor insatisfeito.

Ainda assim, é nos ensaios de Fish e Rosenblatt que o leitor aparece como entidade real, de carne e osso, cujas experiências são objeto de consideração e dados fundamentais para o conhecimento da natureza do texto. Neles en-contra-se também a ruptura com a noção de autossuficiência da obra literária, resíduo idealista de que o Reader-Response Criticism não se libertou. Apesar dos limites, com aqueles estudiosos uma crítica voltada ao leitor deixa de ser aspiração e parece converter-se em realidade.

23 PRATT, Interpretative... p. 47.24 Cf. CAIN, William E. Constraints and Politics of the Literary Theory of Stanley Fish. In: GARVIN, Harry

(ed.). op. cit.

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Projetando a nova história da literatura

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A forma cientificamente sancionada de História da Literatura é o pior meio que se pode pensar para tornar visível a historicidade da literatura.

Hans Robert Jauss

A entrada da Estética da Recepção no palco da Teoria da Literatura é as-sinalada pela conferência ministrada por Jauss, na Universidade de Constança, em 13 de abril de 1967, quando ela completava seu primeiro ano de atividade e iniciava novo período letivo. Desde o título original (“O que é e com que fim se estuda História da Literatura”) ao que veio a ter depois (“A História da Literatura como provocação da ciência literária”) e passando pelo foco dado ao problema, o autor parece ter a intenção de polemizar com as concepções vigentes de História da Literatura. Investe contra seu ensino e propõe outros caminhos, assumindo uma atitude radical que confere ao texto a marca da rup-tura e baliza o começo de uma nova era.

Sob esse ângulo, a conferência de 1967 tem caráter inaugural; por outro lado, trata-se de uma síntese: da trajetória intelectual do autor que vinha se de-dicando ao estudo da literatura medieval desde a perspectiva da relação desta

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tanto com sua época de aparecimento, quanto com a posição histórica do in-térprete;25 e do percurso dos grupos que renovavam a ciência literária nos anos 1960, autores das reformas educacional e intelectual promovidas na ocasião.

Em Constança, procurou-se desenvolver uma experiência pedagógica ori-ginal e inovadora; foi onde também se estimularam as traduções e, por con-sequência, o resgate dos textos dos formalistas russos e estruturalistas tche-cos. E entre seus professores formou-se o grupo que organizou os encontros interdisciplinares sobre Poética e Hermenêutica, responsável pela atualização da Estética e da Teoria da Literatura alemãs, ao reunir as contribuições de Gadamer às novas investigações no campo da linguagem.

Hans R. Jauss não foi apenas o expositor de uma conferência que teve re-percussões significativas; ele esteve envolvido com esses fatos na condição de professor numa universidade que capitaneou a reforma curricular do ensino superior e na situação de um dos participantes dos colóquios bienais sobre Poética e Hermenêutica. A Estética da Recepção é o fruto do encontro des-sas linhas, que simultaneamente representa. Parte de uma crítica aguda a uma instituição vigente, mas em decomposição: o ensino da História da Literatura, cujo descrédito flagrante é lamentado por Jauss. Todavia, ele não deseja enter-rá-la em definitivo, e sim reabilitá-la sob novo estatuto.

Os métodos da História da Literatura

Após a introdução provocativa, o conferencista indica que vigoram dois modelos de História da Literatura: o primeiro, mais atual, “ordena seu material segundo tendências gerais, gêneros e o ‘resto’, para, em seguida, tratar as obras individuais dentro dessas rubricas em sucessão cronológica.”26 O outro, que segue o padrão da Antiguidade, encarnado pelas Vidas paralelas, de Plutarco,

25 Nos ensaios sobre a literatura medieval, Jauss faz questão de indicar os pontos de contato entre o trabalho com essa produção e os objetivos da Estética da Recepção. Cf. JAUSS, Hans Robert. Littérature mediévale et experien-ce esthetique. Actualité des Questions de littérature de Robert Guiette. Poétique 31: 322 – 336. Setembro de 1977 E: ___. The Alterity and Modernity of Medieval Literature. New Literary History X (2): 181 – 229. Inverno de 1979.

26 JAUSS, Hans Robert. Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft. In:___ Literaturgeschichte als Provokation. 4. ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1974. p. 146. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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“ordena seu material de modo linear segundo o paradigma de grandes auto-res e valoriza-os conforme o esquema de ‘vida e obra’.” (p. 146). Em ambos, o problema é similar: não se trata de história, e sim de uma moldura para uma História, em que a historicidade da literatura desaparece. Além disso, falta a perspectiva estética, de que o historiador se abstém, abrigando-se sob o teto do “cânone seguro das ‘obras-primas’.” (p. 147).27

A seguir, examina a Filosofia da História do século XIX, na busca de uma explicação para a insatisfação deixada pela História da Literatura. Ela foi res-ponsável pelas histórias nacionais da arte, que, como afirma em outro ensaio, transferiu para suas fileiras o encadeamento fornecido pela História geral, que, por sua vez, toma como referência o que uma nação veio a ser depois.28

Também o Positivismo influenciou a História da Literatura, a que foi aplicado o princípio da explicação causal, com os seguintes resultados: “deu relevância apenas aos fatores determinantes externos, conferiu importância excessiva à investigação das fontes e dissolveu a propriedade específica da obra de arte numa rede de ‘influências’ que podiam ser aumentadas à vontade.” (p. 153). O Idealismo, como o da Estética de Benedetto Croce, não representou uma opção melhor, já que preferiu suprimir a História.

Resultou disso o impasse entre a História e a Estética, em que a presença de uma implicava a ausência da outra. Esse problema transportou-se aos su-cessores das duas correntes: “Da tendência positivista e da idealista saíram a sociologia da literatura e o método imanente. Ambos aprofundaram o abismo entre a história e a poesia” (p. 154).

O Marxismo, de um lado, e o Formalismo, de outro, apresentam as mes-mas dificuldades. O primeiro é alvo de séria contestação por parte de Jauss, que o acusa de não conceber a história da arte como um processo independente. Além disto, ao afirmar a função reprodutora da arte, ele estaria repetindo o conceito platônico de imitatio naturae, de que não se libertou. Por isso, embora

27 Cf. a respeito da crítica à Historiografia da Literatura e em geral, também: JAUSS, Hans Robert. Geschichte der Kunst und Historie. In: JAUSS, H. R. Literaturgeschichte... pp. 208-51.

28 JAUSS, Geschichte... pp. 209-10. A desconfiança para com as histórias nacionais da literatura aparece também in: JAUSS, Hans Robert. Goethes und Valérys Faust: Zur Hermeneutik von Frage und Antwort. Comparative Literature 28 (3): 201 – 232. Verão de 1976.

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elaboradas à época do Modernismo, as teses marxistas foram incapazes de per-ceber o caráter concomitantemente inovador e formador daquela arte, que não podia ser explicada pela noção limitante de mímese.

Seu objetivo é alterar esse quadro, propondo uma história da arte fundada em outros princípios, que incluem a perspectiva do sujeito reprodutor, a do consumidor e sua interação mútua. Apenas esse enfoque tem meios de superar a abordagem exclusivamente mimética, ao considerar dialeticamente a função da arte, ao mesmo tempo formadora e modificadora da percepção.

A última afirmação deixa-o muito perto dos formalistas, já que, ao invocar a presença do recebedor na elaboração da nova História da Literatura, aborda a questão pelo ângulo da percepção do objeto estético e das modificações por que passa, tema predileto dos teóricos russos. Porém, Jauss confessa-se insa-tisfeito com o programa de Tinianov, baseado na separação entre a literatura, considerada objeto autônomo de investigação, e a vida prática. Ao contrário do Marxismo, que submeteu a arte à infraestrutura econômica, os formalistas a liberaram a ponto de esquecerem a História.

Jauss reconhece uma contribuição importante do pensamento de Tinianov: a ruptura com o conceito de evolução tomada como fenômeno linear, gradual e contínuo, substituindo essa noção, própria à Historiografia tradicional, pela de “processo como mudanças bruscas, revoltas de novas escolas e conflitos entre gêneros rivais.” (p. 166). Adverte, porém: “Compreender a obra de arte na sua história, isto é, dentro da História da Literatura definida como sucessão de sistemas, ainda não equivale a ver a obra de arte na história, isto é, no horizonte histórico de sua origem, função social e ação no tempo.” (p. 167).

Além disso, julga ilusório o projeto elaborado por Tinianov, que acredita ser possível pensar a relação da série literária com as séries vizinhas, a histó-rica sendo uma delas e a social, outra: “Se, por um lado, a evolução histórica pode ser concebida como mudança histórica de sistemas e, por outro, a histó-ria pragmática como encadeamento progressivo de estudos sociais, ao colocar a ‘sucessão literária’ e a ‘sucessão não literária’ numa conexão que abarque a relação entre literatura e história, não se obriga a literatura, abandonando seu caráter artístico, a ter uma mera função de reprodução ou ilustração?” (p. 167).

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Cabe localizar a solução do impasse em outra instância, cujo ponto de par-tida, segundo Jauss, depende do reconhecimento e da incorporação da dimen-são de recepção e efeito da literatura. Somente esta sintetiza os dois aspectos imprescindíveis à História da Literatura, dando conta tanto do caráter esté-tico, quanto do papel social da arte, pois ambos se concretizam na relação da obra com o leitor. Para tanto, porém, cumpre formular um novo conceito de leitor, diverso, de um lado, da perspectiva marxista, que o vê como parte do mundo apresentado, de outro, do Formalismo, que necessita dele “como sujeito da percepção que, seguindo as indicações do texto, tem apenas de distinguir a forma ou descobrir o procedimento.” (p. 168).

A Estética da Recepção tem meios de resolver o problema, porque seu pressuposto é o de que “a vida histórica da obra literária não pode ser concebi-da sem a participação ativa de seu destinatário.” (p. 169). Com isso, recupera a historicidade da literatura, nascida de seus intercâmbios com o público; e che-ga a esse resultado por restabelecer a relação, rompida pelo Historicismo, entre o passado e o presente, condição imprescindível para a reconciliação entre os aspectos estético e histórico de um texto. Com tal propósito e a segurança de ter sanado as dificuldades da História da Literatura, responsáveis por sua de-cadência, Jauss passa a enumerar seus princípios teóricos.

Quatro premissas

Jauss divide em sete teses seu projeto de reformulação da História da Literatura, que, assim, passaria da posição de sucursal à de matriz de uma nova ciência literária. As quatro primeiras têm caráter de premissas, oferecendo as linhas mestras da metodologia explicitada nas três últimas.

A primeira postula que a natureza eminentemente histórica da literatura se manifesta durante o processo de recepção e efeito de uma obra, isto é, quan-do esta se mostra apta à leitura. A relação dialógica entre o leitor e o texto – este é o fato primordial da História da Literatura, e não o rol elaborado depois de concluídos os eventos artísticos de um período. A possibilidade de a obra se atualizar como resultado da leitura é o sintoma de que está viva; porém, como

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as leituras diferem a cada época, a obra mostra-se mutável, contrária à sua fixa-ção numa essência sempre igual e alheia ao tempo.

Historicidade coincide com atualização, e esta aponta para o indivíduo capaz de efetivá-la: o leitor. Jauss altera o foco a partir do qual se analisam os fenômenos literários; mas, ao mesmo tempo, vê-se perante um conceito de leitor que arrisca defini-lo enquanto subjetividade variável, dependente de suas experiências pessoais. O perigo é desembocar no impressionismo, mas o autor o evita, ao formular a segunda tese.

Examinando a experiência literária do leitor, Jauss adverte que, para des-crevê-la, não é necessário recorrer à psicologia. Sua análise volta-se à “recepção e o efeito de uma obra no sistema objetivo de expectativas que, para cada obra, no momento histórico de seu aparecimento, decorre da compreensão prévia do gênero, da forma e da temática de obras anteriormente conhecidas e da oposi-ção entre linguagem poética e linguagem prática.” (p. 173-4).

Como se vê, os elementos necessários para medir a recepção de um texto encontram-se no interior do sistema literário. Em vez de lidar com o leitor real, indivíduo com suas idiossincrasias e particularidades, Jauss busca determinar seu virtual “saber prévio” (p. 174). Para tanto, ele não interroga as pessoas, que só poderiam fornecer poucas informações, se questionadas hoje, menos ainda em épocas anteriores. Sua consulta é dirigida às próprias obras; pois, na medida em que participam de um processo de comunicação e precisam ser compreendidas, elas apropriam-se de elementos do código vigente. Por mais inovadora que seja, cada obra “não se apresenta como novidade absoluta num vazio informativo”, se não que “predispõe seu público por meio de indicações, sinais evidentes ou indiretos, marcas conhecidas ou avisos implícitos” (p. 175). Dados retirados da poética do gênero são também sintomas seguros dos mo-dos como ela espera se relacionar com o público. Logo, a obra pré-determina a recepção, oferecendo orientações a seu destinatário. Segundo Jauss, ela evoca o “horizonte de expectativas e as regras do jogo” familiares ao leitor, “que são imediatamente alteradas, corrigidas, transformadas ou também apenas repro-duzidas.” (p. 175).

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Recorrendo à noção de horizonte, emprestada de Hans Georg Gadamer, que, por sua vez, a achara nos escritos de E. Husserl, Jauss parece ter encontra-do o parâmetro objetivo para medir as possibilidades de recepção. Cada leitor pode reagir individualmente a um texto, mas a recepção é um fato social – uma medida comum localizada entre essas reações particulares; esse é o horizonte que marca os limites dentro dos quais uma obra é compreendida em seu tempo e que, sendo “trans-subjetivo”, “condiciona a ação do texto” (p. 176).

Nesse ponto, Jauss não está sendo totalmente fiel ao pensamento de Gadamer. Este entende o horizonte como a perspectiva que abarca e encerra o que pode ser visto a partir de um certo ponto. Jauss, por sua vez, e princi-palmente nessa conferência, assimila ao horizonte as características do código estético, conforme os estruturalistas tchecos o caracterizaram. Por isso, afirma, ainda na segunda tese, que as obras retomam o horizonte para, depois, contrari-á-lo, usando os exemplos de romances efetivamente renovadores à época de seu aparecimento, como D. Quixote, de Cervantes, e Jacques, o fatalista, de Diderot.

A reconstituição do horizonte é matéria para a terceira tese, sendo que a concretização dessa tarefa possibilita determinar o caráter artístico de uma obra “no modo e no grau de sua ação sobre um certo público.” (p. 177). Por seu intermédio, Jauss espera resolver o problema aludido quando da crítica às his-tórias da literatura: estas eram unilaterais, porque ou examinavam as relações das obras com a época, não dando conta de sua natureza artística; ou centra-vam-se nesta, esquecendo-se de confrontá-la a seu contexto histórico e social.

Jauss acredita que o valor decorre da percepção estética que a obra é capaz de suscitar. Aqui ele está outra vez bastante próximo de formalistas e estrutu-ralistas, porque concorda em que só é boa a criação que contraria a percepção usual do sujeito. Situa o valor num elemento móvel: a distância estética, equi-valente ao intervalo entre a obra e o horizonte de expectativas do público, que pode ser maior ou menor, mudar com o tempo, desaparecer. E torna-o mensu-rável, pois “a distância estética pode ser historicamente objetivada no espectro das reações do público e do juízo da crítica” (p. 177).

De um lado, a noção de valor é, tal como no Estruturalismo, avessa à postu-ra idealista que o deposita num conceito universal fora do tempo e da História;

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de outro, Jauss não escapa a uma fórmula simplista, segundo a qual quanto maior a distância, maior a arte. Isso lhe permite opor a arte autêntica à por ele chamada “arte culinária” ou de mera diversão (p. 178), como a literatura de massa, alheia ao experimentalismo. Também não deixa de resvalar para o ma-niqueísmo comum à abordagem dos produtos da indústria cultural, nesse pon-to solidarizando-se à posição de Adorno e dos teóricos da Escola de Frankfurt, tão combatidos em vários outros aspectos. E, mais significativamente, reitera a visão, nesse caso, idealista, de arte autêntica ou superior, de reminiscência, certamente à revelia do autor, platônica. Em ensaios subsequentes, Jauss re-formula a noção de distância estética, porém a maior parte das características aqui definidas permanecem.

A quarta tese é mais comprometida com a Hermenêutica e começa pro-curando examinar melhor as relações do texto com a época de seu apareci-mento. Afinal, ele não se depara apenas com um código artístico consolidado, que contraria enquanto afirma sua identidade e originalidade. Ele responde a necessidades do público com o qual dialoga, sem o qual sua presença não se jus-tifica. Assim, a reconstituição do horizonte de expectativas diante do qual foi criada e recebida uma obra possibilita chegar às perguntas a que respondeu, o que significa descobrir como o leitor da época pode recebê-la e compreendê-la, recuperando o processo de comunicação que se instalou.

A reconstituição do horizonte se faz necessária por fornecer as primeiras indicações relativamente a essa troca entre o texto e o público; mas ela oportu-niza também a recuperação da história da recepção de que ele foi objeto, fazen-do aparecer “a diferença hermenêutica entre a inteligência passada e atual de uma obra” (p. 183) e estabelecendo as ligações entre os dois pontos. Valendo-se de outra categoria de Gadamer, relativa à lógica da pergunta e da resposta como fundamento do método heurístico, Jauss pode mostrar como as compre-ensões variam no tempo. Por responder a novas questões em épocas distintas o texto explicita sua historicidade, concomitantemente contrariando a ideia de estar possuído por um “presente atemporal” (p. 183), com um sentido fixado para sempre.

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Para as obras mais antigas, essa reconstituição permite entender a razão de sua importância histórica. Contrapondo o texto ao “background das obras cujo conhecimento o autor pressupunha explícita ou implicitamente no público contemporâneo” (p. 184), é possível verificar que função ele desempenhou e, principalmente, o que contradisse ou questionou na ocasião. Além disso, o tra-balho de reconstrução do passado impede que os juízos do crítico interfiram na avaliação da obra: esta é considerada na relação com o horizonte dentro do qual apareceu, e não a partir das preferências e critérios pessoais de quem a estuda.

Por sua vez, essa é uma tarefa hermenêutica, porque coincide com a recu-peração da pergunta do público por meio da análise da resposta, que é o texto. Jauss cita uma frase de R. G. Collingwood que corrobora seu programa de ação: “compreende-se o texto, quando se compreendeu a pergunta a que ele dá a resposta.” (p. 185). Todavia, escudado em Gadamer, adverte: “a pergun-ta reconstituída não pode estar no horizonte original, porque este horizonte histórico já foi englobado pelo horizonte da nossa atualidade” (p. 185). A “fu-são de horizontes”, e Jauss novamente emprega uma noção cara a seu mestre, já ocorreu, sendo agora parte integrante da compreensão. Jauss cita Gadamer diretamente: “compreender (é) sempre proceder ao processo de fusão dos hori-zontes aparentemente independentes um do outro.” (p. 185).

Assim, se se resgata a pergunta original, recupera-se também a tradição em que o diálogo entre a obra e a audiência se transformou, por ser alvo de recep-ções sucessivas. Não se trata, pois, de tentar imitar a perspectiva do passado, objetivo na realidade impraticável; nem o contrário, de modernizar o signifi-cado do texto, o que o falsearia. Acontece que esse foi incorporando as inter-pretações e as recepções acumuladas no tempo, equivalentes à “história dos efeitos” (Wirkungsgeschichte), aplicando-se aí outro conceito de Gadamer, ou ao potencial de significados que, nesse percurso, foram trazidos à luz.

Programa de ação

Considerando essas teses, Jauss esclarece seu programa metodológico, que investiga a literatura sob tríplice aspecto: o diacrônico, relativo à recepção das

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obras literárias ao longo do tempo (tese 5); o sincrônico, que mostra o sistema de relações da literatura numa dada época e a sucessão desses sistemas (tese 6); e, por último, o relacionamento entre a literatura e a vida prática (tese 7).

A quinta tese explicita o primeiro dos caminhos: para situar uma obra na “sucessão histórica”, é preciso levar em conta a experiência literária que propi-ciou, ou seja, a história dos efeitos, mencionada acima. Uma obra não perde seu poder de ação ao transpor o período em que apareceu; muitas vezes, sua importância cresce ou diminui no tempo, determinando a revisão das épo-cas passadas em relação à percepção suscitada por ela no presente. Jauss dá o exemplo da arte barroca, que, após as vanguardas modernistas, adquiriu novo significado (o livro de W. Benjamin sobre a tragédia do século XVII é um bom exemplo; outro são as conferências de García Lorca sobre a poesia de Gôngora). Portanto, o novo é uma qualidade móvel, com sentido estético e também his-tórico, quando provoca o resgate de períodos passados. Igualmente a noção de História é afetada, porque deixa de ser vista como progresso e evolução, segun-do a ótica linear e teleológica herdada dos positivistas. Pelo contrário, ela se faz de avanços e recuos, reavaliações e retomadas de outras épocas, obrigando a História da Literatura a manter-se atenta e a repensar sua metodologia, que não pode mais limitar-se ao alinhamento unidirecional e unidimensional dos fatos artísticos.

Conforme a segunda das vias propostas, a tarefa subsequente da Estética da Recepção corresponde ao estabelecimento do sistema de relações próprio à lite-ratura de um dado momento histórico e à articulação entre as fases. A literatura, compreendida do ponto de vista da produção, compõe-se de “uma multiplicida-de heterogênea do não simultâneo” (p. 197), as diferentes obras escritas em pe-ríodos distintos do tempo, constituindo a matéria que a História da Literatura arrola, divide e organiza em sequência. Todavia, esta operação não altera o fato básico: para o público, ela aparece como simultaneidade: “esta multiplicidade de manifestações literárias – desde o ponto de vista da Estética da Recepção – volta a constituir para o público, que as percebe como obras de sua atualidade e rela-ciona-as umas com as outras, a unidade de um horizonte, comum e gerador de significados, expectativas, recordações e antecipações literárias.” (p. 197).

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Por isso, é preciso proceder à análise do simultâneo, bem como das mu-danças, comparando os cortes e descobrindo os pontos de intersecção, a fim de definir que obras têm caráter articulador, acionando “o processo da ‘evolução literária’ em seus momentos formadores e nas rupturas.” (p. 199). Essas obras, postas em destaque, são as que provocam efeitos, sendo encaradas, pois, tam-bém desde a perspectiva de sua recepção.

A última tese procura examinar as relações da literatura com a sociedade. Evitando a posição marxista, que entende a primeira como reflexo da segunda, Jauss enfatiza a função que exerce, de cunho formador: a literatura pré-forma a compre-ensão de mundo do leitor, repercutindo então em seu comportamento social.

Coerente com as posições anteriores, Jauss pensa que a arte não existe para confirmar o conhecido, e sim para contrariar expectativas. Partindo desse pressuposto de procedência formalista, ele amplia uma pista deixada em aber-to pelos russos: se assim é, então a literatura pode levar o leitor a uma nova percepção de seu universo. Nas suas palavras, “a relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto no terreno sensorial como estímulo à percepção estéti-ca, como também no terreno ético enquanto exortação à reflexão moral. A nova obra literária é acolhida e julgada tanto contra o background de outras formas artísticas, como ante o background da experiência cotidiana da vida” (p. 203).

A última tese parece fugir aos objetivos de uma História da Literatura. Porém, cumpre lembrar que o autor compreende a História da Literatura como o fundamento para uma nova ciência literária; consequentemente, esta também precisa examinar seu objeto desde o ângulo da ação que provoca. Por isso, sua conclusão é coerente com o projeto geral, caracterizado pela seguinte aspiração:

O intervalo entre literatura e história, conhecimento estético e co-nhecimento histórico, pode ser ultrapassado, quando a História da Literatura não se limitar a descrever de novo o processo da his-tória geral através do espelho de suas obras e descobrir, no curso da ‘evolução literária’, em seu sentido próprio, aquela função edu-cativa e social, que correspondia à literatura quando esta concor-ria com outras artes e poderes sociais para emancipar o homem de suas ataduras naturais, religiosas e sociais. (p. 207).

O texto provocador da Estética da Recepção e de uma nova História da Literatura apresenta-se rico de intenções, caracterizando a globalidade e a

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abrangência do projeto. Porém, depende, para sua concretização, de pesquisas que confirmem sua viabilidade, providenciadas por Jauss em ensaios posterio-res. Estes permitem compreender e avaliar o alcance metodológico das teses de 1967, bem como resolver alguns problemas evidenciados na exposição inaugural.

Essa exposição ressente-se sobretudo da influência da então recente des-coberta do Formalismo russo e do Estruturalismo tcheco. Graças a ela, Jauss assume os méritos e os problemas dos conceitos adotados: supera a acepção es-sencialista de valor e enfatiza, na dinâmica da história da literatura, o papel do público, que procura descrever como elemento ativo e determinante. Porém, formula um conceito de qualidade duvidosa, o de distância estética, que reduz o impacto da obra de arte a uma medida quantitativa e fixa. Provavelmente, Jauss percebeu a inconsistência dessa categoria, procurando conferir-lhe mais solidez pela interpenetração com conceitos provenientes da Hermenêutica. Porém, como observou um de seus críticos,29 isso não impede a separação das águas, mantendo-se de um lado o conjunto de ideias formalistas e estruturalis-tas, de outro as de origem na Hermenêutica.

Relativamente ao projeto da Estética da Recepção propriamente, algumas noções se confundem, como as de recepção e efeito, este significando às vezes impacto da obra na sociedade e na história, às vezes resposta do leitor. Nos en-saios subsequentes, em que ele se volta de modo crescente para a Hermenêutica, as fronteiras conceituais ficam mais nítidas. Além disto, um setor permaneceu insuficientemente descrito: o da experiência do leitor, que deveria ser, supõe-se, a matéria central de uma estética voltada à análise da recepção. Jauss percebe a lacuna, que procura sanar; antes disso, entretanto, busca comprovar que seu programa se destina sobretudo ao campo aplicado, com teses visando dar a conhecer melhor os produtos artísticos coletados pela História da Literatura.

29 Cf. BÜRGER, Peter. Vermittlung – Rezeption – Funktion. Ästhetische Theorie und Methodologie der Literaturwissenschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1979.

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Da teoria à prática

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Se por tradição entendemos o processo histórico da práxis artís-tica, então ele deve ser pensado como um movimento que começa com a recepção, que apreende o passado, trá-lo de volta a si e dá ao que ela assim transformou em presente, traduziu ou “transmitiu”, o sentido novo que implica seu esclarecimento pela atualidade.

Hans Robert Jauss

A leitura de um ensaio como o antes resumido pode dar a entender que Jauss produz um trabalho predominantemente teórico. Todavia, poucos textos seus têm a característica da conferência, que lida com categorias gerais, e não com a análise específica de criações literárias. Com efeito, ele se apoia princi-palmente no estudo de temas com limite definido, para ampliar e aprofundar as teses sobre História da Literatura. E, conforme afirmou mais de uma vez, foram as análises da literatura medieval que lhe forneceram as indicações con-ceituais organizadas mais tarde.

Por isso, pode-se encontrar seu método de trabalho antecipado num ensaio publicado em 1965 e reunido, em 1970, ao livro no qual também se acha a ver-são final da palestra apresentada e editada em 1967. Com o título de “Tradição literária e consciência atual da modernidade”, trata dos sentidos abrigados por

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este último substantivo ao longo do tempo. Parte da circunstância de ele se re-ferir à arte contemporânea desde que Baudelaire o elevou à condição de “lema programático da nova estética”,30 em 1859, embora Chateaubriant já o tenha empregado dez anos antes, em 1849.

Jauss chama a atenção para o fato de o adjetivo moderno ter origem remo-ta, assinalando que o debate entre antigos e modernos começa na Antiguidade. A coincidência temporal pode dar a entender que se trata de uma constante li-terária, impressão que deseja enfaticamente contrariar, pois, segundo ele, o re-torno de temas semelhantes em épocas diferentes não os faz iguais. Conforme escreve, “o sentido de modernus não se esgota no significado atemporal do to-pos literário” (p. 14), afirmação que resume duas de suas intenções: posiciona-o contra as tendências da História da Literatura que, por estarem fundadas em noções universais, acabam contraditoriamente neutralizando a historicidade da obra de arte com que lidam; e sugere outro método de trabalho, baseado no exame do modo como os conceitos se modificam no tempo, sendo, pois, indi-cadores da mutabilidade dos fenômenos.

Porém, a escolha do termo que consiste no assunto do ensaio não é oca-sional: moderno e modernidade são palavras muito caras à estética da Escola de Frankfurt, estando presentes (nem sempre, como seria de se esperar, com sentido idêntico) nos textos de Walter Benjamin e Theodor Adorno, ambos em grande evidência por ocasião do aparecimento do texto de Jauss, e de Jürgen Habermas, então em fase ascendente no panorama intelectual alemão.

Para Curtius, a presença de um tópico formulado dentro da cultura da Antiguidade num autor europeu da Idade Média ou Moderna aproxima os dois e ratifica que ambos pertencem a uma mesma tradição, tornada, assim, a-histórica. O motivo da rosa, por exemplo, aparece na poesia medieval, barro-ca e contemporânea; essa coincidência coloca os versos comuns numa mesma cadeia, permitindo uma abordagem que reconhece as semelhanças e ignora não apenas as relações de cada poeta com seu tempo, mas também a dos poetas

30 JAUSS, Hans Robert. Literarische Tradition und gegenwärtiges Bewubtsein. In:___ Literaturgeschichte.... p. 11. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram. Este estudo foi publicado originalmente in: STEFFEN, H. (Hrsg.). Aspekte der Modernität. Göttingen: Vandenhoek und Ruprecht, 1965.

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de períodos posteriores com o patrimônio do passado. Jauss não aceita essa concepção, cujas projeções são mais patentes na Literatura Comparada.31 Seu exame da palavra moderno é, sob esse aspecto, exemplar: ele verifica seu senti-do no século V d. C., quando “tem apenas o significado técnico da fronteira da atualidade” (p. 16), equivalendo ao “agora”, e não ao “novo”, e as mudanças por que passou. Na Idade Média, representa o positivo e o desejado, justificando a modernização dos textos clássicos; na Renascença, transforma-se no oposto, já que o Humanismo elegera a Antiguidade como paradigma; e no final do século XVII, durante a Querela dos Antigos e Modernos, os “modernes” é que se consideravam “anciens”, pois compreendiam a História desde uma metáfora biológica: a humanidade – ou a sociedade –, tal como o ser humano, experi-mentou a juventude (a Antiguidade), a maturidade (a Renascença) e, a época deles, achava-se na velhice.

Essa concepção de História foi depois combatida e é hoje ignorada; porém, vigorou para a geração de Charles Perrault, encetando uma forma de entender o tempo com consequências marcantes para o pensamento contemporâneo. Jauss situa, nesse momento de passagem, o aparecimento da visão histórica do tempo, que atribui a cada período uma particularidade e procura verificar sua própria po-sição, concebida como a mais elevada e superior, nessa cadeia de acontecimentos.

Todavia, a noção de moderno não estaciona nesse ponto: retomada pelos românticos, é empregada para contradizer a herança iluminista e desmentir o Classicismo, cujos princípios são frontalmente rejeitados. A revisão histórica retorna a Baudelaire, para quem a modernidade é o sintoma mesmo da tran-sitoriedade, portanto, da historicidade, da arte. Eis por que, segundo Jauss, a estética de Baudelaire segue uma “tendência antiplatônica” (p. 57), que abre caminho para o novo cânone, característico da arte atual.

A resenha de Jauss não apenas contesta a Historiografia tradicional, que tem dificuldades para perceber como cada época compreendeu os aconteci-mentos passados, e as teses de Curtius, para quem a História não conta. Ele deseja, igualmente, evitar os caminhos escolhidos pela Escola de Frankfurt,

31 Cf. JAUSS, Goethes und Valérys...

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indicando como esta acaba por tornar o conceito de modernidade, eminente-mente histórico, uma essência ideal e imutável, um valor absoluto, usado para medir a qualidade das criações artísticas. A acepção de modernidade emprega-da por Adorno e Benjamin também é histórica, fruto das novas circunstâncias e, como tal, precisa se alinhar às precursoras, enquanto parte de uma cadeia de eventos dentro da qual não é melhor, nem pior, superior, nem inferior.

Embora nesse ensaio Jauss não discuta diretamente as ideias de Adorno, a rejeição, com argumentos colocados no posfácio do ensaio aqui resumido, da interpretação dada por Benjamin ao conceito de moderno em Baudelaire, numa época em que se supunha uma identidade de pensamento entre os dois teóricos,32 sugere serem aquelas um dos alvos do trabalho. Este, por outro lado, é igualmente revelador de seu sistema de investigação, e, enquanto tal, reapa-rece posteriormente em textos de destinação variada. Talvez esse tipo de pes-quisa seja uma das marcas registradas de Jauss, permitindo conferir a visão relativista que tem da História. Para ele, não há um ponto de observação privi-legiado: todos, incluindo o próprio ensaísta, pertencem ao encadeamento tem-poral, de onde examinam o presente e o passado. Jauss responsabiliza-se pela descrição do processo global; porém, como bom discípulo da Hermenêutica e de Gadamer, sabe que sua posição também deve ser objeto de reflexão e inser-ção na História.

A relação do sujeito com seu tempo não é pensada, contudo, na perspecti-va pessoal. Ele a investiga em outro estudo pertencente ao livro de 1970, cujo tema é a constatação do final de um período artístico pelos escritores que par-ticipam dele. Jauss analisa agora os escritos de H. Heine e Stendhal, artistas separados por várias circunstâncias, mas próximos neste aspecto: foram capa-zes de perceber o esgotamento da estética romântica e dirigir a literatura para um novo modelo de representação da realidade, apontando para as tendências peculiares ao Modernismo.

De novo, ele se mostra preocupado com a questão da modernidade, procu-rando situar seu aparecimento dentro de um quadro histórico definido. Nesse

32 Sobre as relações entre Adorno e Benjamin e a recepção deste por aquele, v. KOTHE, Flávio R. Adorno & Benjamin: confrontos. São Paulo: Ática, 1978.

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sentido, talvez o próprio Jauss estivesse reagindo aos acontecimentos dos anos 1960, quando se agudizam as reflexões sobre a natureza do Modernismo, sen-tindo-se pouco confortável com as teses que absolutizavam a modernidade na condição de categoria definitiva para se pensar a arte. Essas teses eram verifi-cáveis mesmo em correntes adversárias, como, de um lado, o Estruturalismo (o do Círculo Linguístico de Praga, cuja produção teórica estava sendo tradu-zida na ocasião) e o Pós-Estruturalismo (do grupo parisiense Tel Quel) e, de outro, os herdeiros de Hegel e Marx, como os já citados Adorno, Benjamin e Habermas. No entanto, talvez estivesse reagindo ainda a outro acontecimento do período, na oportunidade de difícil conscientização: a década assistia ao es-gotamento das experiências modernistas, objeto agora da consideração univer-sitária, porém não mais projeto principal dos artistas. Jauss, como os outros, experimentava o final de um período artístico; mas talvez se possa afirmar que ele e os demais, ao contrário dos autores estudados no ensaio, não detectaram tão claramente o fenômeno que transcorria ante seus olhos. Provavelmente, tenha faltado a todos o que deu como particularidade no momento histórico--literário examinado:

A ruptura com a primazia de uma estética clássico-humanista, o retorno à ‘prosa da vida’, associado à dúvida quanto próprio di-reito de existência da poesia, a criação de novas formas literárias entre a poesia e o jornalismo, porém, sobretudo, a abertura da arte à história atual e ao movimento da época.33

Resgate de Ifigênia

Nos estudos até agora resumidos, faltam as análises de textos literários, que, por sua vez, podem ser representadas pelo ensaio dedicado à tragédia de Goethe, Ifigênia em Táuride, exemplar das várias das propostas formuladas antes.

O ponto de partida desse trabalho revela de imediato seu compromisso com o enfoque recepcional: deseja entender por que Ifigênia, outrora o “evan-gelho do Humanismo alemão”,34 converteu-se em leitura escolar e obrigatória,

33 JAUSS, H. R. Der Ende der Kunstperiode – Aspekte der literarischen Revolution bei Heine, Hugo und Stendhal. In: . Literaturgeschichte.... p. 142-3.

34 JAUSS, H. R. Racines und Goethes Iphigenie. Mit einem Nachwort über die Partialität der Rezeptionsästhetik

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considerada desinteressante. Conclui ter mudado o modo de recepção e con-sumo de certo produto artístico; e procura verificar que condições históricas e estéticas determinaram essa situação, examinando a trajetória percorrida pela obra no tempo. Dois outros pressupostos reforçam essas premissas metodoló-gicas: sabe que o texto em pauta perdeu a atualidade; mas não deseja resgatar seu “sentido original” (p. 2), porque descrê desse princípio; prefere antes re-cuperar as interpretações originais, mais informativas sobre a circulação do texto, e constatar quais sentidos atribuídos à tragédia se propagaram, pois per-mitem entender a tradição acumulada pela obra.

O resultado da investigação coincide com a reconstituição do “horizonte da pergunta e da resposta” (p. 4), objetivo principal da Estética da Recepção. Alcançado esse patamar, é possível compreender as mudanças por que passou a interpretação da obra e provocou a substituição das suas imagens, até chegar a uma situação que não mais satisfaz, como a denunciada na abertura do ensaio. Revê então a história da percepção de Ifigênia e percebe uma alteração significa-tiva: ao longo do tempo, converteu-se em representante do classicismo estético e, como tal, foi sufocada uma importante função desempenhada por ela à época de seu aparecimento – a de negação, propondo novos padrões de percepção e motivando a modificação do horizonte. A respeito, Jauss afirma que “a negativi-dade original da obra foi transformada em valor consagrado e confiável.” (p. 4).

Jauss não procura reconstruir o sentido primeiro do drama enquanto sig-nificação única e imutável; visa, antes, recuperar o impacto causado por ela quando surgiu e verificar as mutações por que passou. Ao mesmo tempo, afir-mando ter Ifigênia representado, no início, a negação de um sistema de valores, num evidente transplante ao Iluminismo de conceitos estruturalistas, espera ter descoberto possibilidades de significação até então inéditas ou reprimidas; por isso, conclui ser possível libertar a obra do “classicismo arcaizante que a envolve” (p. 8). No entanto, adverte contra os perigos de se acreditar que essa ação de resgate coincida com a reconstituição do conteúdo primordial, a ser evitada: “Na tentativa de redescobrir uma atualidade histórica passada por trás

Methode. Neue Hefte für Philosophie 4: 01 – 46. 1973. p. 1. Este ensaio foi republicado, sem alterações, in: WARNING, Rainer (Hrsg.). Rezeptionsästhetik. Theorie und Praxis. München: Fink, 1975.

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da recepção posterior que a encobre, não se deve esperar que a concretização inicial da obra já inclua aquela significação a ser outra vez atualizada.” (p. 9). Com efeito, as recepções estão condicionadas tanto à estrutura formal e te-mática do texto, quanto às disposições variadas do público, fator a legitimar mesmo as interpretações de que o texto hoje precisa se livrar.

O passo seguinte é a recuperação da atualidade da tragédia de Goethe. Todavia, coerente com a rejeição das análises imanentes, Jauss procura ver a obra como resposta a uma situação, estabelecendo seu diálogo com outra Ifigênia, a de Racine. Nesta, examina os elementos de tensão e ruptura, decor-rentes da leitura do mito clássico feita pelo dramaturgo francês, vale dizer, sua associação com o modelo consagrado de Eurípedes.

Racine, mergulhado no racionalismo do século XVII e jansenista, não po-deria endossar o politeísmo do mito primitivo; por isso, dessacraliza a intriga, transformando seu tema no conflito entre o arbítrio divino e a impotência hu-mana. Goethe, um iluminista, ou seja, experimentando outra modalidade de racionalismo, já não podia aceitar a versão de Racine, em que persiste a ação de um Deus primitivo restringindo a liberdade individual. Por isso, o texto assume um sentido emancipador: Ifigênia, escreve Jauss, mostra “a passagem do homem da dependência mítica à liberdade subjetiva e à maturidade.” (p. 20).

O resgate do texto, sua “salvação” (p. 28), como também designa o processo em curso, coincide com a apresentação do sentido emancipador ali contido. Este, todavia, teria sido sufocado pela recepção do século XIX, que o transformou em modelo de Beleza atemporal; o mesmo fato explicaria por que deixou de ser atraente às novas gerações. Entretanto, Jauss não entende o resgate como uma regressão ao início da história da obra; ele julga ultrapassada a forma da tragédia e, como esta é um dado fixo, não pode ser reatualizada. Sugere outra medida, mais radical: o sacrifício dessa forma, como condição de revitalizar o elemento interessante do texto para as plateias contemporâneas. Nas suas palavras, “para evitar que esta Ifigênia continue relegada às ‘peças do passado’ (Walser), seria necessário abrir mão da harmonia clássica e reintroduzir aí o conflito camuflado entre a humanidade e a realidade histórica, com o que a forma clássica fechada é implodida” (p. 26); só assim ela pode ser novamente encenada. Mais adiante, ele

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reitera: “A salvação de Ifigênia só pode acontecer ao preço do abandono da forma clássica fechada, possível sua tradução num novo presente desde que apresenta-da a insatisfação deixada pela solução de Goethe.” (p. 28).

A solução parece radical, mas é coerente com o pensamento de Jauss nesse momento, quando ele está refletindo sobre a natureza produtiva – poética – da experiência estética. Além disto, está em consonância com o princípio de que a obra de arte não consiste num valor imutável: sua temporalidade expressa-se na aptidão a oferecer novas respostas ao público, e é atrás delas que vai o pro-cedimento analítico do ensaísta.

Se, por esse lado, seu programa de ação parece bastante inovador, embora inquietante por romper com a atitude sacralizadora perante os objetos de arte, de outro, ele não deixa de sugerir que sua interpretação é melhor que as ante-riores. Jauss já foi criticado a esse respeito,35 e sua defesa nunca é suficiente-mente convincente. Essa constatação, se relativiza a metodologia proposta, não a diminui, pois estabelece parâmetros inusitados e mais largos para o exame de criações literárias. Talvez aí esteja uma das contribuições mais originais da Estética da Recepção, cuja validade pode ser medida pela análise de um roman-ce brasileiro: Helena, de Machado de Assis, estudado em capítulo posterior.

35 Cf. as atas do Colóquio ocorrido em Berkeley em 27 de fevereiro de 1983. In: JAUSS, Hans Robert. The Dialogical und the Dialetical Neveu de Rameu: How Diderot adopted Socrates and Hegel adopted Diderot. Berkeley: The Center for Hermeneutical Studies in Hellenistic and Modern Culture, 1983.

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Experiência estética

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A atitude de prazer, que a arte provoca e possibilita, é a experiên-cia estética primordial. Ela não pode ser suprimida; pelo contrá-rio, deve voltar a ser objeto da reflexão teórica, quando se trata hoje de defender a função social da arte e da ciência que a serve contra os que – letrados ou iletrados – suspeitam dela.

Hans Robert Jauss

Na conferência sobre a História da Literatura, como provocação para a ciência literária, H. R. Jauss propõe uma inversão metodológica na abordagem dos fatos artísticos: sugere que o foco deve recair sobre o leitor ou a recepção, e não exclusivamente sobre o autor e a produção. Seu conceito de leitor baseia-se em duas categorias: a de horizonte de expectativa, misto dos códigos vigentes e da soma de experiências sociais acumuladas; e a de emancipação, entendida como finalidade e efeito alcançado pela arte, que libera seu destinatário das percepções usuais e confere-lhe nova visão da realidade.

É lícito concluir que, embora a Estética da Recepção tenha se disseminado amplamente nos estudos literários durante os anos 1970, o leitor não subiu muito de cotação após o projeto de Jauss, pois continuou sendo considerado uma função do texto. Por outro lado, a ênfase dada à potencialidade emanci-patória da obra de arte, nesse e no ensaio sobre Ifigênia, é sinal do empenho em

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conferir ao leitor um lugar mais ativo e à literatura uma importância social que ultrapasse o papel reprodutor, atribuído a ela pelos enfoques marxista e/ou da sociologia da literatura.

Emancipação é, nessa medida, um bom começo, sendo também o problema comum vivenciado pelo texto e pelo leitor: no estudo sobre Ifigênia, vê-se como Jauss está interessado em salvar a tragédia, liberando-a dos constrangimentos que a converteram num clássico ultrapassado, para devolver-lhe sua inclinação original: a de emancipar seu destinatário. Sobre esse princípio ele funda as investigações ulteriores sobre a experiência estética, através das quais avança na direção da descrição do lugar do leitor na Teoria da Literatura, antecipada, na apresentação anterior, como uma das metas principais de sua provocação.

Esse princípio aparece no posfácio ao estudo sobre Ifigênia, quando Jauss, sintetizando os propósitos da Estética da Recepção, retorna ao tópico da últi-ma tese, referente à função social da literatura, entendida a partir do relacio-namento dessa com o leitor. Sua premissa é a de que a arte, não sendo mera-mente reprodução ou reflexo dos eventos sociais, desempenha um papel ativo: ela faz história, porque participa do processo de “pré-formação e motivação do comportamento social.”36 Como se comunica com o leitor, passa-lhe normas, que, enquanto tais, são padrões de atuação. Porque a recepção representa um envolvimento intelectual, sensorial e emotivo com uma obra, o leitor tende a se identificar com essas normas, transformadas, assim, em modelos de ação.

A função social da arte advém da possibilidade de influenciar o destina-tário, quando veicula normas ou quando as cria. No primeiro caso, pode re-produzir padrões vigentes; mas, como, ao fazê-lo, reforça-os (é o exemplo da literatura de massa), mesmo nessa circunstância ela ultrapassa a condição de reflexo. Além disso, a arte pode se antecipar à sociedade, como ocorre à produ-ção contemporânea, caracteristicamente inovadora, rompendo com o código consagrado. Por consequência, coloca-se à frente da sociedade e exerce com mais vigor seu caráter emancipatório. Ao se adiantar aos modelos coletiva-mente aceitos, assume natureza utópica, apresentando não o que é, mas o que poderia ser ou ter sido.

36 JAUSS, Racines und Goethes... p. 43.

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A postura é reconhecidamente iluminista, o que é admitido por Jauss em vários ensaios, seja quando enfatiza a função emancipadora e, sob este aspecto, exemplar, da literatura e da História da Literatura,37 seja quando se filia à tra-dição da estética de Kant, em oposição à de Hegel.38 Por sua vez, é desdobrada segundo uma dupla perspectiva: através da descrição de como, na prática, a lite-ratura veicula, cria ou destrói normas; e do exame da experiência estética, procu-rando verificar a importância da identificação, elevada ao status de condição pri-meira para o exercício da função comunicativa por parte de um produto artístico.

Os padrões de interação

As relações entre a literatura e as normas sociais são analisadas num ensaio publicado, originalmente, na coletânea organizada em 1975 por R. Warning e reeditado como parte do livro Experiência estética e Hermenêutica Literária (Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik). Seu objeto é a poesia líri-ca, com o intento não apenas de concretizar premissas antecipadas em ensaios anteriores, mas também de provar que a lírica pode ser matéria da sociologia li-terária, outra maneira de dizer que essa deve ultrapassar a perspectiva miméti-ca dominante. Por último, espera ser o estudo útil à Sociologia, “que apreciará a oferta vinda do campo da práxis estética, qual seja, a transmissão, elaboração e legitimação das normas sociais por meio da literatura.”.39

Essas normas podem se encontrar no texto não como uma informação a ser decodificada, e sim como um padrão de interação, isto é, na situação de regras que envolvem o leitor e dizem o que lhe compete fazer. Nessa circuns-tância, a obra literária, mesmo não programaticamente, oferece indicações de ação que correspondem ou não a comportamentos já existentes. No primeiro caso, elas reforçam e legitimam modelos em vigor ou possibilitam a aceitação de normas recentemente aparecidas, atuando sobre o indivíduo mais por in-fluenciá-lo indiretamente que por transmitir-lhe uma mensagem.

37 Cf. JAUSS, Geschichte der Kunst...; também JAUSS, Racines und Goethes....38 Cf. JAUSS, H. R. Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik. München: Fink, 1977.39 JAUSS, Hans Robert. La Douceur du Foyer: Lyrik des Jahres 1857 als Muster der Vermittlung sozialer Normen.

In: WARNING, Rainer (Hrsg.). Rezeptionsästhetik – Theorie und Praxis. München: Fink, 1975. p. 401. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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Jauss testa a validade da hipótese examinando a produção poética editada em 1857, constatando que, no mesmo ano em que eram publicadas as obras revolucionárias (e objeto de ação da Justiça) Madame Bovary, de G. Flaubert, e As flores do mal, de Ch. Baudelaire, a poesia voltava-se à manifestação de um tema de orientação burguesa e doméstica: o da douceur du foyer, a doçura do lar.

Quatro aspectos são analisados: o padrão situacional básico, que reforça os papéis familiares (pai, mãe e filho), o espaço interior e o final do dia, após o trabalho fora; o padrão normativo básico, segundo o qual um paradigma de comportamento, de tipo doméstico, é comunicado; a presença de um subu-niverso, caracterizado por seu fechamento no lar, idealizado e valorizado; e a função de legitimação, que é também ideológica, por ser produto de um “inte-resse inconfesso” (p. 417).

Portanto, os poemas publicados naquele ano veiculam um padrão de in-teração que, idealizando uma situação característica à burguesia francesa do período de Luís Napoleão, tem um sentido normativo. Eles, de certa maneira, induzem o leitor a repetir o modelo representado ou a, caso esse já se confun-da com seu cotidiano, valorizá-lo sobremaneira. Essa função é também social, mas não reprodutiva, já que a realidade mostra-se mais ampla que o mundo transparente nos textos.

De um lado, a pesquisa permite-lhe descrever os modos de intercâmbio entre a literatura e a audiência, desdobrada em termos de influências mútuas, já que o poema retransmite o comportamento burguês ao leitor dessa classe social num nível idealizado e superior. De outro, o resultado do levantamento coincide com a recuperação de um horizonte de expectativas, contra o qual Baudelaire e Flaubert se chocaram quando publicaram livros que contradiziam ou desmentiam essas imagens. Assim, o trabalho responde a um duplo interesse metodológico: dá continuidade aos estudos relativos à História da Literatura; e inaugura vias de investigação, caracterizadas pela tentativa de compreender a natureza das relações entre a obra e o leitor e da experiência estética. Esse ca-minho demanda novas especulações, anunciadas outra vez numa conferência.

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Experiência estética e vanguarda

A conferência, apresentada em 1972, em Constança, versa sobre a experi-ência estética, objeto de novo esforço de resgate e tema de trabalho que ocupa o autor durante a década de 1970. Sua intenção é salvar a experiência estética de seus detratores e recuperar a validade do prazer decorrente, negada pelas recentes Teorias da Literatura, como condição de compreender o sentido e a importância social da arte. Jauss não acredita que o significado de uma cria-ção artística possa ser alcançado sem ter sido vivenciado esteticamente: não há conhecimento sem prazer, nem a recíproca, levando-o a formular um par de conceitos que acompanham suas reflexões posteriores: os de fruição compre-ensiva (verstehendes Genieben) e compreensão fruidora (geniebendes Verstehen), processos que ocorrem simultaneamente e indicam como só se pode gostar do que se entende e compreender o que se aprecia.

Ao mesmo tempo, só pelo resgate e pela valorização da experiência estéti-ca, é possível justificar a presença social e a continuidade histórica da arte. Para Jauss, o desprestígio do prazer estético determina a rejeição da arte por inteiro, conduta implícita em teorias que se recusam a aceitar a validade da experiência do leitor ou que a discriminam, encarando-a tão somente como efeito da indús-tria cultural e dos produtos destinados ao consumo.

Aqui, Jauss está atacando as teorias contemporâneas que veem de modo negativo a experiência estética; mas está também fazendo a autocrítica de suas primeiras teses. Com efeito, tanto na Kleine Apologie der ästhetischen Erfahrung (Pequena apologia da experiência estética), como na versão ampliada que veio a constituir o primeiro volume de Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik (Experiência estética e Hermenêutica Literária), ele confessa que, por um tempo, compartilhou a noção de que a experiência estética não poderia causar prazer. Entretanto, sua oposição mais contundente é a Adorno, cuja estética da negatividade rejeita a função comunicacional da arte, qualificada de sintoma de sua massificação, e valoriza apenas o experimentalismo.

Jauss não se considera avesso à vanguarda; e, em nenhum dos ensaios, ma-nifesta qualquer simpatia para com a literatura de massa ou a arte popular.

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Recusa, isto sim, a crença de que a criação experimental não deseja comuni-car-se com o público; ou de que este não sinta prazer perante obras originais e avançadas. Seu objetivo não é pensar outros caminhos para a arte contempo-rânea, mas contradizer a interpretação dada ao relacionamento entre o sujeito e o objeto estético. Supor que este desempenha uma atividade exclusivamente negativa, porque o oposto corresponderia a produzir uma arte de consumo, a serviço da classe dominante, não é propor uma estética revolucionária. Pelo contrário, trata-se antes de restaurar a estética burguesa, que Adorno imagina combater, pela revitalização de um posicionamento elitista que proclama a ne-cessidade da arte pela arte.

O fato de reafirmar a validade da experiência estética enquanto simul-taneamente prazer e conhecimento não impede Jauss de atribuir-lhe função transgressora. Essa nota é importante e alinha-o a formalistas e estruturalistas tchecos, já citados, e ao próprio Adorno. O que os diferencia é a interferência motivada por essa premissa: para Adorno, isso significa a permanente negati-vidade de uma obra perante o sistema, ao qual pertence o público, o que, se de um lado afiança a autonomia da criação artística, de outro impede qualquer contato entre sujeito e objeto. Para Jauss, a circunstância de a obra contrariar um “sistema de respostas” ou um código atua como um estímulo para que se intensifique o processo de comunicação: a obra se livra de uma engrenagem opressora e, na medida em que recebida, apreciada e compreendida pelo seu destinatário, convida-o a participar desse universo de liberdade. De novo o conceito de emancipação se faz presente, dessa vez para servir de avalista para a natureza simultaneamente comunicativa e liberadora da criação artística.

Caracterizando a experiência estética, Jauss explica por que é lícito pensá-la como propiciadora da emancipação do sujeito: em primeiro lugar, liberta o ser humano dos constrangimentos e da rotina cotidiana; estabelece uma distância entre ele e a realidade convertida em espetáculo; pode preceder a experiência, implicando então a incorporação de novas normas, fundamentais para a atua-ção na e compreensão da vida prática; e, enfim, é concomitantemente antecipa-ção utópica, quando projeta vivências futuras, e reconhecimento retrospectivo, ao preservar o passado e permitir a redescoberta de acontecimentos enterrados.

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Poiesis, aisthesis e katharsis

A natureza eminentemente liberadora da arte, fundindo os papéis trans-gressor e comunicativo, se explicita pela experiência estética, composta por três atividades simultâneas e complementares – a poiesis, a aisthesis e a katharsis – cuja concretização depende da principal reação de que é capaz o leitor: a iden-tificação. São esses os aspectos principais da experiência, cuja caracterização exige de Jauss uma intensa atividade ensaística.

Sua primeira formulação aparece na segunda tese da Pequena Apologia: “A liberação pela experiência estética pode se realizar em três planos: a consciên-cia produtora cria um mundo como sua própria obra; a consciência receptora compreende a possibilidade de renovar sua percepção de mundo; enfim – aqui a experiência subjetiva abre-se à experiência intersubjetiva – a reflexão estética se compromete com um julgamento exigido pela obra, ou identifica-se às nor-mas de ação, esboçadas ou a serem definidas.”40

O primeiro plano é o da poiesis e corresponde ao prazer de se sentir coautor da obra. Revisando a história da noção de poiesis no pensamento ocidental, Jauss conclui que ela se tornou praticamente uma exigência nas criações do sé-culo XX, cujo experimentalismo determina a participação crescente do leitor no seu processo de produção. Afirmando que a arte de vanguarda depende, de certa maneira, da resposta do público, ele oferece nova interpretação à perspec-tiva com que Adorno vê a questão: não se trata de afirmar a incompatibilidade entre o sujeito e o objeto estético, e sim aceitar o fato de que, quanto mais o artista inova, mais ele espera contar com a participação do público. Invertendo a proposição de Adorno, Jauss soma mais um ponto para sua argumentação: sem precisar rejeitar o experimentalismo da vanguarda, vale-se dele para com-provar a tese relativa à função comunicacional da arte.

O segundo plano parece mais relacionado à experiência estética enquan-to tal, dizendo respeito ao efeito, provocado pela obra de arte, de renovação da percepção do mundo circundante. Adotando essa posição, Jauss não deseja

40 JAUSS, Hans Robert. Kleine Apologie der ästhetischen Erfahrung. Konstanz: Verlag der Universität Konstanz, 1972. p. 13. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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descobrir um novo sentido para a aisthesis, procurando, pelo contrário, assi-milar a ele as interpretações vigentes. Concorda com Aristóteles, para quem o prazer estético decorre do reconhecimento diante do imitado; e afirma que en-globa as noções de “pura visibilidade”, de K. Fielder, “estranhamento” ou visão renovada, de V. Chklovsky, “contemplação desinteressada”, de M. Geiger, e de experiência da “densidade do ser”, de J. P. Sartre.

Por sua vez, como a poiesis, também a aisthesis justifica a orientação da arte contemporânea. Atribuindo a ela a finalidade de renovar a percepção, já que “sempre foi uma das funções da arte descobrir novos modos de experiência na realidade mutável ou propor alternativas para ela”,41 Jauss concorda em que só criações altamente experimentais, como as do século XX, podem acordar o sujeito de sua alienação numa sociedade reificada. Como a percepção diária está por demais viciada, o espelhamento realista confundir-se-ia com o déjà vu e perderia o efeito; por isso, cumpre investir no diferente, que não precisa coin-cidir necessariamente com o novo; pode ser o que permaneceu escondido ou reprimido, conforme faz Proust, cuja obra romanesca funda-se na recordação.

Portanto, com a vanguarda, a arte recupera seu papel cognitivo, que se amalgama às funções comunicativa ou produtiva, formando um conjunto des-tinado a produzir a experiência estética, durante a qual emerge a visão renova-da e mais completa da realidade. Jauss resume a importância desse plano:

Neste processo, a experiência estética no nível da aisthesis assu-miu uma tarefa perante a alienação crescente da existência social que até então nunca lhe tinha sido atribuída na história da arte: contrapor à experiência fragmentada e à linguagem utilitária da ‘indústria cultural’ a função linguisticamente crítica e criativa da percepção estética; e diante do pluralismo dos papéis sociais e perspectivas científicas, preservar a experiência de mundo aos olhos dos outros e, assim, salvaguardar um horizonte comum que a arte pode manter quando o todo cosmológico desaparece. (p. 136).

Ao procurar reabilitar a importância e a validade da experiência esté-tica, Jauss não se preocupa em criar novas acepções para os conceitos, nem quer contrariar as conclusões da Teoria da Literatura relativamente ao

41 JAUSS, Ästhetische Erfahrung... p. 100. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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experimentalismo da vanguarda. Seu intento é antes usar os mesmos argu-mentos dos adversários do prazer estético para provar a força e significação desse. Por isso, suas afirmações não parecem originais, e nem têm essa finalida-de: trilha um caminho conhecido para mostrar que ele vai dar em outro ponto.

Todavia, quando trabalha o plano da catarse, tradicionalmente o conceito mesmo de experiência estética, suas ideias percorrem vias inesperadas e de-sembocam numa descrição bastante instigadora da identificação, importante para a compreensão e para a análise dos mecanismos de circulação da literatura na sociedade.

Katharsis e identificação

Na Pequena Apologia, ele define a katharsis como a concretização de um processo de identificação que leva o espectador a assumir novas normas de comportamento social, retomando ideias expostas anteriormente. Mais tarde, esse conceito se alarga: coincide com o prazer afetivo resultante da recepção de uma obra verbal e que motiva “tanto uma transformação de suas (do recebe-dor) convicções, quanto a liberação de sua mente” (p. 137). A catarse constitui a experiência comunicativa básica da arte, explicitando sua função social, ao inaugurar ou legitimar normas, ao mesmo tempo que corresponde ao ideal da arte autônoma, pois liberta o espectador dos interesses práticos e dos compro-missos cotidianos, oferecendo-lhe uma visão mais ampla dos eventos e estimu-lando-o a julgá-los.

A definição de catarse mostra-a como, basicamente, mobilizadora: o espec-tador não apenas sente prazer, mas também é motivado à ação. Essa caracterís-tica acentua a função comunicativa da arte verbal, que, por seu turno, depende do processo vivido pelo recebedor: o de identificação. Esta é provocada pela experiência estética e leva o sujeito à adoção de um modelo.

Porque a arte produz a identificação entre o espectador e os elementos – o tema, os heróis ou ambos – ali apresentados, ela pode agir como transmissora de normas. Isso não a torna pedagógica, nem Jauss está privilegiando os gê-neros didáticos: o fato de veicular normas não a torna educativa. Além disso,

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como se viu, a arte tende a romper com as normas conhecidas e antecipar ou-tras, liberando o espectador dos constrangimentos do código dominante. Esse é seu ângulo criador, enfatizado pelo ensaísta em vários estudos. Por fim, ele procura examinar a questão sob o ponto de vista do recebedor, para quem a identificação estética não coincide com “a adoção passiva de um padrão ideali-zado de comportamento”. Pelo contrário, ele “pode percorrer uma escala intei-ra de atitudes como o espanto, a admiração, o choque, a compaixão, a simpatia, o choro ou o riso simpatético, o distanciamento e a reflexão” (p. 138), reações, por sua vez, que não dependem do arbítrio pessoal, e sim das sugestões emiti-das pela obra, sobretudo pela caracterização do herói, como propõe a seguir.

O resgate da experiência estética, cujo desdobramento passa pelos três mo-mentos descritos, conclui com a relevância conferida ao processo de identifica-ção. Em primeiro lugar, por esse corresponder à efetiva realização da função comunicativa da arte, dependendo das reações provocadas pela obra e das res-postas produtivas do sujeito estético. Depois, por lhe permitir a reflexão sobre dois tópicos controversos, um deles explicitado no início da discussão do tema, o outro deixado em incubação, porém exigindo detalhamento.

Um deles já foi referido: como a obra, sendo comunicativa, não deixa de recusar padrões dominantes e exercer papel emancipador, Jauss pode contra-dizer a visão negativista de Adorno, sem se opor às tendências experimentais da produção artística contemporânea. Além disso, passa a dispor de um ins-trumental teórico para condenar a indústria cultural, posição mantida desde os primeiros escritos, com argumentos paralelos aos de Adorno: a cultura de massa não executa a função liberadora mencionada; porém, lida igualmente com as respostas do público, a que, todavia, conduz a uma direção diferente, pelo visto, menos recomendável.

Fundado no conceito de identificação, Jauss pode se desviar das teses de Adorno, sem ter de adotar concepção diversa a respeito da arte da vanguarda, a cultura de massa, a relação entre ambas e de ambas com o público. Acredita na superioridade da primeira sobre a segunda; mas atribui sua qualidade ao tipo de processo que desencadeia: se, nas duas situações, induzem à identificação, as modalidades desta divergem, bem como seus efeitos, o da arte sendo mais

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criativo e produzindo conhecimento, o da cultura de massa sendo repetitivo e facilitando a manipulação do leitor.

A última tese da Pequena Apologia resume a importância conferida à iden-tificação, que, com o respaldo da experiência estética, é também o critério para a adoção de outro posicionamento perante a arte de hoje e do passado:

A experiência estética é amputada de suas funções primárias, se for limitada às categorias de emancipação e afirmação, inovação e reprodução e se não se estabelecer o equilíbrio entre a negativida-de constitutiva da arte e a identificação enquanto contrapartida estético-recepcional daquela. (p. 51).

Assim como as teses da “Provocação” levaram-no à revisão da História da Literatura, os conceitos de experiência estética e identificação determinam um novo enfoque das categorias da Teoria da Literatura. Jauss não pode aceitar as premissas tradicionais dessa, porque estão submetidas à estética da represen-tação. Se a Estética da Recepção deseja apresentar-se como pensamento alter-nativo, precisa conter, igualmente, as peças de reposição, facultando a substi-tuição integral de um conjunto de ideias por outro.

Tipologia do herói

Seu ponto de partida é a categoria de herói, cuja discussão enceta na expo-sição apresentada no sexto colóquio do grupo Poetik und Hermeneutik, ocor-rido em 1972, com anais publicados em 1975. Posteriormente, ele desdobrou os conceitos então emitidos, reunindo-os ao estudo sobre a experiência estética e a Hermenêutica Literária.

No primeiro texto, confirma o objetivo teórico: deseja transferir “as tipo-logias tradicionais do herói de categorias de apresentação para categorias de recepção”, em decorrência da mudança de enfoque: “o que nos interessa não são os vários tipos por meio dos quais o herói literário foi apresentado ao longo da história, mas antes os vários níveis de recepção através dos quais o espectador, o ouvinte ou o leitor, em períodos anteriores ou ainda hoje, pode se identificar

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com ele.”.42

A escolha do herói não é aleatória; conforme escreve em Experiência esté-tica e Hermenêutica Literária, o herói tipifica “o padrão comunicativo de uma identificação esteticamente mediada.” (p. 214). Os heróis se definem, portanto, não apenas por suas ações, mas pelas respostas desencadeadas no público, ra-zão pela qual vêm a constituir o fio teórico escolhido pelo Autor.

Como no estudo sobre a poesia, Jauss privilegia os padrões de integração, situados, agora, não nas normas transmitidas, e sim nas reações provocadas pelo comportamento das personagens. Estas podem motivar as seguintes mo-dalidades de identificação:

– a associativa, quando a representação se torna uma espécie de jogo, con-forme exemplifica a proposta do Living Theatre, presença marcante na cena internacional no final dos anos 1960;

– a admirativa, produzida pelo herói que corporifica um ideal e “dis-põe o indivíduo na direção do reconhecimento e adoção de modelos” (p. 232), como o de Werther, de Goethe, de grande influência duran-te o Romantismo europeu e sul-americano, ou dos heróis clássicos da epopeia;

– a simpatética, desencadeada pelo herói quando este se confunde com o “homem comum”;

– a catártica, própria à tragédia, tendo, pois, um fundo liberador, confor-me a lição de Aristóteles; é também a mais típica da experiência estética, por ser o espectador “capaz de destacar-se do imediato de sua identifica-ção, refletindo sobre o representado e analisando-o.” (p. 245);

– a irônica, compreendida como “um nível de recepção estética em que uma identificação esperável é apresentada ao espectador ou leitor só para ser, a seguir, ironizada ou completamente recusada.” (p. 250). Por isso, ela leva seu destinatário à reflexão e é determinada por obras como o Romance de Renart, Jacques, o fatalista ou a ficção do pós-guerra.

Embora coloque essas respostas em pé de igualdade, Jauss deixa

42 JAUSS, Hans Robert. Levels of Identification of Hero and Audience. New Literary History 5 (2): 283 – 317. Inverno de 1974. p. 284.

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transparecer sua preferência pelas duas últimas; uma, por equivaler mais com-pletamente à sua concepção de experiência estética, outra, por ser a reação decorrente de preferências literárias manifestadas em outros escritos, como o populário medieval citado e o romance de Diderot, um de seus prediletos, a se julgar por sua produção ensaística.

Por outro lado, as categorias descritas não dão conta de todas as possibili-dades de identificação, porque não esgotam a análise dos gêneros literários co-nhecidos. Na primeira versão de Experiência estética e Hermenêutica Literária, Jauss examina também as reações motivadas pelos heróis cômicos, capítulo eliminado da edição final da obra, lançada em 1982.

Ao contrário das análises anteriores, quando Jauss procura rever as relações do texto com a História e as mudanças de recepção, a descrição dos modelos comunicativos determinados pelos heróis privilegia o aspecto sincrônico. Ele deseja verificar como o espectador responde às personagens do passado e do presente enquanto se desenrola o processo de identificação. Porém, percebe-se logo que não se dirige aos leitores, preferindo ir ao texto na busca do diálogo propiciado pela obra. Pode-se argumentar que, mais uma vez, Jauss escamoteia o leitor, a não ser quando o leitor é ele mesmo. Todavia, seu projeto não tem outro objetivo: frisa, seguidamente, que seu procedimento metodológico é su-gerido pela Hermenêutica Literária e, como tal, visa evidenciar o intercâmbio da obra com o leitor a partir da lógica da pergunta e da resposta embutida no texto, não no destinatário.

A delimitação dessa Hermenêutica Literária começa nos seus primeiros ensaios; mas assume importância crescente nos últimos anos, razão por que vem exposta em capítulo próprio.

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Hermenêutica literária

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A história das interpretações de uma obra de arte é uma troca de experiências ou, se quisermos, um jogo de perguntas e respostas.

Hans Robert Jauss

Na segunda versão, agora completa, de seu projeto teórico mais ambicioso, Jauss procura examinar não apenas a experiência estética, como também a her-menêutica literária, cuja viabilidade científica deseja implantar. No entanto, embora o título da obra ligue uma à outra através da conjunção e, a análise dos dois temas não é simultânea, e sim consecutiva: a primeira ocupa uma parte de suas reflexões, vindo a público quando lançou a primeira versão do livro; en-quanto que a hermenêutica literária apresenta-se de modo orgânico, sobretudo no volume dedicado a esses tópicos.

A separação, útil para a explicitação das ideias de Jauss a propósito de cada um dos temas, não significa que os entenda de modo estanque. Alguns princí-pios da Hermenêutica Literária embasam a descrição da experiência estética; e a Hermenêutica, a ciência geral da interpretação, fornece-lhe conceitos fun-damentais para a revisão teórica da literatura. Sua presença em primeiro pla-no nos ensaios de Jauss é, pois, consequência do desdobramento de pesquisas

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precedentes. Mesmo assim, ele abre a nova versão de Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik com uma alegoria: a narração, escrita no século V d.C. por Marcianus Capella, do casamento de Hermes com Filologia, visando justi-ficar a justaposição dos assuntos em que seu livro se divide.

Como se observou, alguns conceitos da Hermenêutica, extraídos da obra de Gadamer, Verdade e método, aparecem na conferência de 1967: o de hori-zonte de expectativas, na segunda tese, explica como ter acesso ao mundo do leitor; a lógica da pergunta e da resposta, na quarta tese, ajuda a compreender o diálogo entre o texto e sua época, e entre o texto do passado e o leitor do presente, do que resulta a fusão de horizontes, conceito também emprestado de Gadamer. Igualmente, formulação sua é o princípio ou a consciência da história dos efeitos, empregado na sexta tese, segundo a qual as repercussões da obra do passado atuam sobre o sujeito, determinando sua interpretação.

A noção de emancipação, que permite a Jauss ampliar o significado do va-lor estético, entendendo-o não apenas como rompimento de um código impos-to de normas, mas também como projeto de liberação, tem componentes da Hermenêutica e das ideias de Gadamer. Além disso, o princípio da pergunta e da resposta, definido, metodologicamente, como dialético e, filosoficamente, como horizonte, é talvez sua principal arma teórica, acompanhando-o em qua-se todos os ensaios, por possibilitar a explicitação tanto do processo de inter-pretação dos textos, como a natureza dialógica da literatura.

Efeito e recepção

Entretanto, a presença ou a reapropriação desses conceitos, ainda que fundamentais, não bastam para caracterizar o estatuto da Hermenêutica Literária, tarefa empreendida de maneira sistemática desde a primeira edição do livro citado e em ensaios subsequentes; nem para articulá-la à experiência estética, sem o que não pertenceria com legitimidade à Teoria da Literatura que, orientada agora para a recepção, precisa conter também uma metodologia compatível com as novas premissas.

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Em vista disso, não se pode entender a Hermenêutica Literária fora do quadro da experiência propiciada pela obra de arte, quando acontece o efeito estético. Este, conforme se viu, compõe-se de dois fenômenos simultâneos: a compreensão fruidora e a fruição compreensiva. O prazer estético conta de antemão com um componente intelectual, a ser descrito por uma abordagem de tipo hermenêutico.

Todavia, cumpre distinguir entre duas modalidades de relacionamento en-tre o texto e o leitor: de um lado, ao ser consumida, a obra provoca determinado efeito (Wirkung) sobre o destinatário; de outro, ela passa por um processo his-tórico, sendo ao longo do tempo recebida e interpretada de maneiras diferentes – esta é sua recepção (Rezeption). Essa especificação é importante, pois, por intermédio dela, Jauss procura esclarecer as diferenças entre a pesquisa que de-senvolve e a de seu colega de universidade, Wolfgang Iser, sem criar atrito entre as distintas orientações das investigações respectivas. Reconhece a originalida-de e a importância heurística do trabalho de Iser, diverso do que desenvolve; mas, ao mesmo tempo, dá a entender que o projeto dele é englobado pelo seu.

W. Iser examina o que classifica como estrutura de apelo do texto (Appelstruktur der Texte). Apoiado nas conclusões de R. Ingarden, para quem o mundo imaginário representado numa obra mostra-se de modo esquema-tizado, portanto, incompleto e com pontos de indeterminações ou lacunas, Iser tem condições de confirmar um dos principais postulados da Estética da Recepção: a obra literária é comunicativa desde sua estrutura; logo, depende do leitor para a constituição de seu sentido.43 Este não corresponde a nenhum conteúdo universal, perene e imutável a ser extraído por um leitor competente; pelo contrário, pode mudar, se o público, a sociedade e a época forem outros.

Essas afirmações colocam Iser à beira do relativismo, porém, nesse ponto, ele recua: na realidade, as reações do leitor são predeterminadas pelas estrutu-ras de apelo. Estas precisam do leitor para adquirir sentido – Iser retomando aqui a Estética de Mukarovsky quando indica ser o sujeito o responsável pela passagem do artefato artístico à condição de obra de arte. Porém, elas projetam

43 Cf. ISER, Wolfgang. Die Appelstruktur der Texte; e . Der Leservorgang. In: WARNING, Rainer. op. cit. V. também ISER, Wolfgang. Der Akt des Lesens. München: Fink, 1976

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o sentido a ser ali depositado, provocando os efeitos que coincidem com a con-cretização desejada.

Iser emprega a noção de concretização, encontrada tanto nos escritos de Ingarden, quanto nos de Vodicka, segundo uma ótica que, paradoxalmente, parece não contradizer nenhum dos dois. Como Vodicka, acredita que a con-cretização depende dos códigos introjetados pelo recebedor; mas não desmen-te Ingarden, concordando em que as orientações dadas pelo texto se impõem ao leitor, cujas predisposições não têm força o suficiente para alterar ou afetar a estrutura básica (e, nesse caso, imutável) de uma obra de arte.

O conceito de leitor implícito, este o título de um livro seu,44 representa, dessa maneira, uma conquista da Estética da Recepção; porém, tem seus limi-tes metodológicos, pois não ultrapassa o modelo da análise imanente com a qual parece desejar romper. Mesmo assim, é com ele que Jauss opera, embutin-do-o à sua visão da História da Literatura e da Hermenêutica Literária.

Na conferência de 1967, anterior à publicação do texto de Iser, a diferen-ça entre o leitor implícito e o leitor explícito não é mencionada, começando a aparecer em escritos posteriores. No estudo sobre Ifigênia, o autor indica que está empregando a terminologia de Iser e Vodicka, ao referir-se às noções res-pectivas de efeito e concretização, por lhe permitirem acentuar que “o sentido da obra de arte não deve ser entendido mais como substância atemporal, e sim como totalidade que se constrói historicamente.”.45

No retrospecto de 1975, enfatiza a importância de se diferenciarem duas espécies de concretização: a do horizonte implícito de expectativas, proposto pela obra, portanto de cunho intraliterário; e a “análise das expectativas, nor-mas e papéis extraliterários, originários da experiência existencial e que pré-o-rientam o interesse estético das distintas camadas de leitores.”.46 De um lado, situa-se o efeito, condicionado pela obra que transmite orientações prévias e, de certo modo, imutáveis, porque o texto conserva-se o mesmo, ao leitor; de

44 ISER, Wolfgang. Der Implizite Leser. Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett. München: Fink, 1972.

45 JAUSS, Racines und Goethes... p. 3.46 JAUSS, Der Leser... p. 328. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se

encontram.

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outro, a recepção, condicionada pelo leitor, que contribui com suas vivências pessoais e códigos coletivos para dar vida à obra e dialogar com ela. Sobre essa base, de mão dupla, acontece a fusão dos horizontes, equivalente à concretiza-ção do sentido.

Ao primeiro plano corresponde o leitor implícito, de certo modo uma cria-ção ficcional, já que prefigurado pelo texto; ao segundo, o leitor explícito, in-cluindo elementos de ordem “histórica, social e até biográfica” (p. 339). Um depende das estruturas objetivas da obra, o outro, das “condições subjetivas e condicionamentos sociais.” (p. 339). Ambos são igualmente importantes, po-rém cabe:

a) considerá-los separadamente para maior eficiência metodológica: “Contrastar o papel do leitor explícito e o do leitor implícito – em outras palavras, o código de um leitor historicamente determinado e o de seu pa-pel literário predeterminado – é um pré-requisito indispensável para uma análise hermenêutica da experiência de leitura.” (p. 339).b) Dar preferência à reconstituição do leitor implícito: “Tão logo recons-truímos o papel do leitor implícito num texto, podemos, com muito mais segurança, definir as estruturas de pré-compreensão e, com isso, também as projeções ideológicas de determinadas camadas de leitores enquanto um segundo código distinto do primeiro.” (p. 339).Jauss se refere a essas tarefas quando retoma a questão na abertura da pri-

meira edição de seu livro sobre a experiência estética e a hermenêutica literária. Esta, entretanto, não estaria completa sem a inclusão de um outro processo, o de aplicação, indicada agora pelo autor e correspondendo à atividade de “medir o efeito atual de uma obra de arte pela contraposição à história anterior de sua experiência e formar o juízo estético a partir de duas instâncias, a do efeito e a da recepção.”.47

47 JAUSS, Ästhetische Erfahrung... p. 9.

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Compreensão, interpretação e aplicação

Assim sendo, também a Hermenêutica Literária comporta três etapas: a compreensão, a interpretação e a aplicação. Inicialmente, Jauss não emprega essa terminologia, adotada mais tarde por: apresentar melhor articulação con-ceitual; considerar a recepção o conjunto das três fases, incorporando, pois, o plano de efeito, descrito por Iser; e mostrar-se mais fiel à Hermenêutica pro-priamente dita. Utiliza-a, ao examinar poemas de Baudelaire e Thèophile de Vian a partir da reconstituição de seu horizonte original.

Ainda aqui, porém, Jauss não parece muito seguro a respeito do modo de integrar a última etapa a seu projeto de constituição da Hermenêutica Literária. Se a aplicação é facilmente compreensível nos casos da Teologia e da Jurisprudência, quando a interpretação do texto faculta a transferência de seu sentido a uma situação específica, o mesmo não parece tão nítido no caso da literatura. Os escritos seguintes traduzem a busca de uma melhor solução e os resultados obtidos.

Um dos colóquios do grupo Poetik und Hermeneutik versou sobre esse tema. Congregando juristas, teólogos, filósofos e críticos literários, procurou examinar as contribuições das hermenêuticas particulares para a Hermenêutica geral; e sobretudo para a consolidação da Hermenêutica Literária, já que, ao contrário das outras disciplinas, de tradição sólida, essa se encontra ainda em vias de organização.

A exposição teórica de Jauss enfrentou o tema; denominada “Para a deli-mitação e definição de uma Hermenêutica Literária”, trouxe à tona as ques-tões consideradas fundamentais para a estabilização dessa disciplina. Ele usa como medida o processo hermenêutico, unidade constituída de três atividades intelectuais: a compreensão, a interpretação e a aplicação. Ao mesmo tempo, apoiado nas ideias de Peter Szondi, acentua a particularidade da Hermenêutica Literária: a ela compete refletir sobre as propriedades estéticas da obra de arte, aspecto que não pertence à ordem de preocupações das demais hermenêuticas.

Todavia, as reflexões não partem desse ponto, e sim das relações do proces-so hermenêutico com a obra literária. Reconhecendo as etapas mencionadas,

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chama a atenção para a interpenetração que acontece entre os diferentes mo-mentos: “na compreensão já está o início da interpretação e a interpretação é, portanto, a forma explícita da compreensão.”.48 Como a compreensão deflagra o processo inteiro, a explicitação deste começa por aí, fundamentada na lógica da pergunta e da resposta.

Na “Provocação”, Jauss já recorrera à lógica da pergunta e da resposta, para de-terminar o relacionamento do texto com o momento histórico. Semelhantemente a Gadamer, acredita que a compreensão equivale a “compreender algo como res-posta” (p. 462), afirmação na qual subjaz uma proposição metodológica: se o tex-to corresponde à resposta, compreendê-lo significa chegar às perguntas a que res-pondeu. Jauss transfere a ideia para o plano histórico, atribuindo à Hermenêutica Literária a tarefa de dar a compreender as obras do passado:

A Hermenêutica Literária conhece essa relação de pergunta e resposta a partir de sua prática interpretativa, quando se trata de compreender um texto do passado na sua alteridade, ou seja: recuperar a pergunta para a qual ele, inicialmente, foi a resposta, reconstruindo, a partir daí, o horizonte existencial de perguntas e respostas, dentro do qual a obra originalmente se inseriu. (p. 468).

Esse gesto hermenêutico faz com que o texto, até então mudo, volte a fa-lar, ou seja, resgata o diálogo original a que ele se propunha. Eis por que a Hermenêutica Literária, correspondendo ao questionamento do texto pelo intérprete, depende da experiência estética, quando se efetiva o intercâmbio produtivo entre o sujeito e o objeto estético. Assim, não há solução de continui-dade entre os dois momentos; por essa razão, Jauss pode afirmar que a tarefa hermenêutica, fundada na compreensão, começa pela percepção estética, cujas possibilidades amplia de maneira crescente. E insistir no caráter dialógico do processo, aspecto a que se refere com assiduidade e que consiste no tema da última parte de Experiência estética e Hermenêutica Literária.

A compreensão, decorrente da percepção estética, é também o ponto de partida do processo de leitura, composto de três momentos sucessivos. A fase

48 JAUSS, Hans Robert. Zur Abgrenzung und Bestimmung einer literarischen Hermeneutik. In: FUHRMANN, Manfred; JAUSS, Hans Robert; PANNENBERG, Wolfahrt (Hrsg.). Text und Applikation. Theologie, Jurisprudenz und Literaturwissenschaft im hermeneutischen Gespräch. München: Fink, 1981. p. 462. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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seguinte, posterior à da leitura compreensiva, é a da leitura retrospectiva, quando se dá a interpretação, que “sempre pressupõe de antemão a percepção estética enquanto pré-compreensão”, pois apenas podem ser concretizadas sig-nificações que “apareceram ou poderiam ter aparecido ao intérprete como pos-síveis no horizonte de sua leitura anterior” (p. 475). Por outro lado, enquanto a percepção estética é progressiva e acompanha a partitura do texto, à interpre-tação é lícito voltar do fim para o começo ou do todo ao particular, razão pela qual pode ser chamada de retrospectiva.

O terceiro momento é o da leitura histórica, que recupera a recepção de que a obra foi alvo ao longo do tempo. Hermeneuticamente, corresponde à etapa da aplicação, dependendo também da compreensão estética, pois só esta explica a importância de uma obra na História. Por sua vez, como “também a compreensão e interpretação estética necessitam de função controladora da lei-tura de reconstrução histórica”, que “possibilita a compreensão do texto na sua alteridade” (p. 478), a aplicação revela-se como etapa tão importante quanto as demais e parte do processo dialógico próprio à Hermenêutica Literária.

Pela mesma razão, a leitura reconstrutiva leva a “procurar as perguntas – na maioria das vezes não expressamente articuladas – para as quais o texto foi uma resposta na época.” (p. 478). Isso significa interpretar o texto literá-rio enquanto resposta tanto para expectativas de tipo formal, quanto para as questões de sentido, decorrentes de seu posicionamento diante do mundo e as vivências históricas de seus primeiros leitores.

A etapa da aplicação é indispensável, porque durante a leitura reconstruti-va o intérprete verifica seu lugar na cadeia temporal. Essa circunstância reforça outra propriedade da Hermenêutica Literária, justificando por que é urgente a consolidação de sua atividade no terreno das ciências humanas: ela possibilita – e depende disso – ao crítico ou ao historiador examinar seus próprios pré--juízos, segundo um permanente vaivém que delimita a ambição totalitária e abarcante da interpretação. Essa é outra faceta de sua função de controle, assim demarcada num texto posterior:

A tarefa hermenêutica comporta dois pontos cruciais. De um lado, se a reconstrução da inserção do autor não deve consistir

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mais na instância última da compreensão, de outro, ela conserva ao mesmo tempo função de controle. Por outro lado, a experiên-cia de leitura do leitor do passado deve ser superposta à leitura atual do leitor de uma época posterior, para que se possa esgotar durante a interpretação a diferença entre o horizonte passado e presente da leitura.49

Jauss espera que, pelo exercício da Hermenêutica Literária, o intérprete, no questionamento do texto, deixe-se também interrogar. A importância desse aspecto não é negligenciável, levando Odo Marquard, no colóquio citado, a atribuir a superioridade da Hermenêutica Literária ao fato de que, ao con-trário das disciplinas vizinhas, ela pode incluir o sujeito da interpretação no processo de questionamento, balizando suas pretensões e limites.50

Proposta metodológica

Não é durante o colóquio citado que Jauss apresenta provas práticas de sua proposta metodológica, e sim numa versão posterior e mais completa do en-saio. Mais uma vez o processo é divido em três etapas: a primeira corresponde ao horizonte progressivo da experiência estética, quando reconstitui a apreen-são do texto através da leitura – “a percepção estética é acompanhada in actu e descrita como efeito das estruturas poéticas, como também das ainda abertas estruturas significativas do texto”;51 a segunda, ao “horizonte retrospectivo da compreensão interpretativa”.52

Ela só começa a operar após a conclusão da primeira fase da leitura, ao fim da qual o leitor pode reconhecer a forma do texto, “mas não necessariamente já todo seu significado como uma totalidade.” (p. 837). Após essa compreen-são, é preciso voltar ao início, “para, desde o conjunto da forma já apreendida, iluminar os detalhes ainda obscuros, esclarecer a série de conjeturas dentro do

49 JAUSS, Hans Robert. Einleitung: Horizontstruktur und Dialogizität. In: . Ästhetische Erfahrung und lit-erarische Hermeneutik. Frankfurt: Suhrkamp, 1984. p. 688.

50 MARQUARD, Odo. Frage nach der Frage, auf die Hermeneutik die Antwort ist. In: FUHRMANN, Manfred; JAUSS, Hans Robert; PANNENBERG, Wolfahrt (Hrsg.). op. cit.

51 JAUSS, Horizontstruktur... p. 702.52 JAUSS, Hans Robert. Der poetische Text im Horizontwandel der Lektüre (am Beispiel von Baudelaires zweiten

Spleen-Gedicht). In: ___. Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik. Frankfurt: Suhrkamp, 1984. p. 836. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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contexto e procurar aspectos do sentido que ainda ficaram em aberto na sua coerência de conjunto significativo.” (p. 837).

Só então se realiza a leitura reconstrutiva, exemplificada pela análise de um poema de Baudelaire. Jauss enfatiza a diferença entre as etapas anteriores e esta, quando intervém no conhecimento histórico que localiza o texto na épo-ca, as mudanças por que passou e provocou, o modo como foi assimilado a uma linha de tempo. Nas suas palavras, esta é sua intenção:

Queremos tornar consciente a distância no tempo, ignorada du-rante a primeira e a segunda leitura e, por meio do confronto ex-presso entre o horizonte de compreensão passado e o atual, deixar claro como o significado do poema se desdobrou historicamente pela interação de efeito e recepção – até as perguntas que orien-tam a nossa interpretação para as quais o texto, a seu tempo, ainda não foi necessariamente a resposta.53

Jauss procede à reconstrução do horizonte, verificando quais normas fo-ram rompidas por Baudelaire. Chega às concretizações possibilitadas pelo tex-to, caracterizadas pelo modo negativo com que o receberam. Persegue então as interpretações motivadas, ao longo do tempo, pelo poema, entre as quais se acha a sua, que vão conformando a tradição a condicionar a circulação social da obra. Em outras palavras, que formam a história de seus efeitos, cuja des-crição é a condição para se elucidar os próprios pré-juízos. Como ele escreve, é quando “se esclarece a própria pré-compreensão, que condiciona o horizonte de interpretação do crítico. Pode-se então verificar se aquela compreendeu o texto de modo original ou se reproduziu o trabalho dos precursores.”.54

Se, diante de Ifigênia, de Goethe, Jauss revisa a recepção do texto para, de-pois, propor sua interpretação da obra, na análise do “Spleen II”, de Baudelaire, percorre o caminho inverso: da compreensão primeira, que é pessoal, chega à recepção, que é coletiva. Por seu turno, esta não tem caráter aleatório, pelo con-trário, acompanha determinado padrão, conforme escreve em outra circuns-tância: “A história da recepção de uma obra literária não é a soma arbitrária de

53 Utilizamos aqui a tradução dada ao trecho in: JAUSS, Hans Robert. O texto poético na mudança do horizonte de leitura. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984. V. 2, p. 335. Na versão original, esse excerto encontra-se nas pp. 846-7.

54 JAUSS, Horizontstruktur... p. 703.

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todas as interpretações subjetivas; pelo contrário, existe uma espécie de lógica histórica, onde entram apenas as interpretações que eu chamaria de concreti-zações, pois elas são aceitas publicamente como formadoras de normas.”.55

Esse segundo trajeto parece mais coerente com os princípios da Estética da Recepção, porque, em vez de relativizar a obra, relativiza as interpretações dadas a ela e impede que se suponha ser certo arranjo intelectual melhor que outro. Todavia, há um risco a ser evitado, pois a afirmação feita por último pode dar a entender que a Estética da Recepção consiste numa nova forma de impressionismo.

A citação precedente já procurava prevenir contra o subjetivismo; e no en-saio sobre Baudelaire, Jauss chama a atenção para a possibilidade de o crítico errar, não por ser considerado ultrapassado – uma interpretação peculiar a certa época equivale à concretização, vale dizer, ao horizonte possível de sua compreensão naquelas circunstâncias, decorrente dos problemas e experiên-cias do período –, e sim quando o intérprete aborda o texto de modo equivoca-do. E, conforme adverte em ensaio bastante anterior, é esse mesmo horizonte que protege as interpretações novas contra o excesso de arbitrariedade:

A estrutura aberta, caracterizada pelas indeterminações, permite sempre novas interpretações; por outro lado, a transmissão his-tórica dessas está limitada contra a simples arbitrariedade pelo horizonte de condições de pergunta e resposta.56

Outro exemplo do exercício da hermenêutica Literária é a análise do ro-mance Le Neveu de Rameau, de Diderot. Embora não se mantenha rigoro-samente fiel à sequência compreensão-interpretação-aplicação, pois, como no estudo sobre Ifigênia, termina, talvez à revelia, por privilegiar sua posição, o trabalho é representativo do método. Coerente com os princípios básicos, ele não examina o significado da obra enquanto um conteúdo cristalizado no tex-to, procurando vê-la como proposta de recuperação do diálogo socrático. Este é adotado por Diderot por lhe oportunizar a implosão do sistema filosófico então vigente e restaurar o caráter contrastante – dialógico – das ideias e dos

55 JAUSS, The Dialogical.... p. 53.56 JAUSS, Geschichte der Kunst... p. 241.

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discursos. A seguir, examina como Hegel retoma Diderot, a partir de quem for-mula a noção de dialética enquanto representação da história. Robert Holub, debatedor no colóquio onde a exposição foi originalmente apresentada, resume a análise, julgando-a representativa do procedimento metodológico de Jauss:

A comunicação do Professor Jauss provê uma ótima ilustração dessa abordagem. Pois seu ensaio reúne uma sequência de exce-lentes observações sobre dois leitores: primeiro, Diderot lendo o diário socrático, depois Hegel lendo Diderot. Se acrescentamos Jauss lendo Diderot e Hegel, e seus leitores lendo Jauss lendo es-ses dois autores, então podemos ter uma ideia das possibilidades infinitas que tal perspectiva nos abre. (p. 40).

Com efeito, a Hermenêutica Literária, enquanto permanente releitura da História, parece suprimir o centro, pois retira o intérprete desse lugar privile-giado e não o substitui – melhor: não deseja substituir – por ninguém. Se for permitida a imagem, troca o círculo hermenêutico pela espiral das infinitas interpretações. Sob esse aspecto, configura-se como novidade metodológica, já que, se pode apresentar restrições (uma delas sendo a dúvida se, no fundo, Jauss não recoloca um sujeito – ele mesmo – nesse centro que parece querer su-primir), oferece igualmente opções instigantes à Teoria da Literatura. O exame de um texto a partir das sugestões até aqui resumidas pode oportunizar o es-clarecimento das ideias expostas e a verificação das contribuições e dos limites que particularizam a Estética da Recepção.

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Helena: um caso de leitura

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Uma obra antiga não sobrevive na tradição histórica da experiên-cia estética por questões eternas, nem por respostas permanentes, mas em razão de uma tensão mais ou menos aberta entre questão e respostas, problema e solução, que pode suscitar uma compreen-são nova e determinar a retomada do diálogo do presente com o passado.

Hans Robert Jauss

Dividida em 28 capítulos, a ação de Helena avança de modo linear: começa com a morte do Conselheiro Vale e a abertura de seu testamento e conclui com a morte da protagonista, o desespero de Estácio e o beijo de Camargo em Eugênia, sua filha. Entre um ponto e outro, transcorrem os 10 meses vivi-dos por Helena no Andaraí, em companhia do irmão, da tia, D. Úrsula, e dos amigos que os visitam, entre os mais íntimos contando-se Camargo e família, Mendonça, por um tempo noivo da heroína, e o padre Melchior, o conselheiro religioso e sentimental da maioria das personagens.

Esse desenvolvimento linear não se dá sem conflitos, que, por seu turno, se desdobram num crescente de dificuldades. O primeiro núcleo de problemas refere-se ao anúncio da existência dessa filha ilegítima do Conselheiro Vale,

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assunto ventilado por Camargo e sobre o qual Estácio ouvira falar, sua chegada a Andaraí e conquista da família: o irmão a aceita antes de conhecê-la, porém, D. Úrsula resiste por mais tempo.

O assunto do segundo grupo de conflitos é mais complexo: Camargo per-cebe a crescente influência da moça e a possibilidade de ela atrapalhar os planos relativos ao matrimônio de Estácio com Eugênia; ao mesmo tempo, Helena, que aparentemente deveria sentir-se bem no novo lar, confessa a Estácio ser “uma pobre alma lançada num turbilhão”.57 Mais ainda: o rapaz vai protelando o pedido de casamento e parece querer encerrar-se dentro de casa, entre seus parentes. Esse emaranhado de sentimentos não pode ser solucionado por si mesmo: intervêm duas personagens; uma diretamente interessada, que age de modo malévolo – Camargo ameaça Helena de tornar público seus passeios matutinos, se ela não empurrar Estácio na direção do enlace com Eugênia; a outra tem bons propósitos: Melchior conclui não ser normal, ou ao menos ade-quada, a atitude de Estácio e induz Helena a casar com Mendonça, cujo cerco à moça era evidente a todos.

O duplo casamento parece uma boa saída para os dilemas amorosos, oca-sionados por sentimentos clandestinos e condenados pela sociedade. Todavia, até esse momento, esses são apenas sugeridos. A crise eclode e a verdade se revela quando Estácio é noticiado da união programada entre a irmã e o ami-go. Para esse problema, o do amor do jovem pela protagonista, não há solução possível que satisfaça a moral e os bons costumes. A única alternativa é neu-tralizá-lo, confrontando-o a uma carga igual e contrária que anule sua potência negativa. Essa vem por meio de Salvador, de nome tão conveniente: ele desvela a real filiação de Helena e sua sorte social, desaparecendo a seguir. A moça, suficientemente enredada em seus problemas individuais – inautenticidade da situação, ilegitimidade da origem, impossibilidade de realização amorosa e, por causa de tudo isso, incapacidade de ser feliz – não resiste aos dois úl-timos golpes: a revelação e o desaparecimento de Salvador abatem-na, e ela

57 ASSIS, Machado de. Helena. (Edições críticas de obras de Machado de Assis, v. 2). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975. p. 91. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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escolhe a própria aniquilação. Se sua morte não pode ser considerada legal ou moralmente um suicídio, destino vetado pelos valores católicos dominantes no livro, é inegável que, embora triste, parece ser a melhor opção para os conflitos que, nos capítulos finais, afloram com evidente nitidez. Eis por que a antecipa Melchior, cujos vínculos com a Igreja e o ilibado comportamento atestam o final decente e recomendável da novela.

O falecimento de Helena reconduz a ação ao início: não apenas porque o enredo começa e termina com a morte, mas também porque, com o desapa-recimento dela, tudo retorna à situação anterior à abertura do testamento do Conselheiro. Estácio é de novo filho único, está na posse integral de sua fortu-na (divisão profundamente lamentada por Camargo e não totalmente aprovada por D. Úrsula) e pode casar com a prometida da infância, a desfrutável Eugênia. Não que os efeitos dos acontecimentos não se façam sentir; de fato, tudo está mudado após a passagem de Helena. Ainda assim, há o retorno ao início, não só porque se recupera a situação por onde a narrativa começou; também por-que esta induz ao retrospecto, o leitor sendo levado a rever a trajetória ficcional na busca de pistas que provocaram a sorte tão lastimável das personagens.

O retrospecto

O texto motiva o retrospecto, obrigando o leitor a interpretar os aconteci-mentos. Não basta acompanhar a linearidade cronológica com que os eventos são apresentados: os enigmas são plantados durante esse percurso e precisam ser reexaminados, a fim de se alcançarem o sentido e a coerência do relato.

Esse fato, determinante do vaivém da leitura, tem, de imediato, certa im-portância, na medida em que Helena foi publicada, originalmente, sob a for-ma de folhetim no jornal O Globo, saindo com regularidade entre agosto e novembro de 1876, só depois, mas no mesmo ano, sendo editada em livro, pela Garnier. Apesar da destinação primeira, é possível pensar que Machado de Assis programou o texto desde o início para aquela última forma: não só porque, quando começou a lançá-la em capítulos em O Globo, já estava com o contrato assinado com a editora, mas também porque a narrativa parece

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apresentar um esquema definido e organizado desde a página de abertura. A ação não avança desconsiderando o que foi apresentado antes; pelo contrário, as pistas dispostas durante o percurso são retomadas e explicadas, deixados em aberto apenas pequenos detalhes. Machado redigiu a intriga com planeja-mento e determinação, não largando ao sabor das circunstâncias a resolução da sorte de seus protagonistas. Traçou antes o destino deles, não se comovendo com a retórica sentimental com que ele mesmo os caracteriza.

Os enigmas plantados ao longo do enredo têm dupla finalidade: despertam o interesse do leitor, estando colocados em momentos estratégicos. Exemplo disso é a confissão de Helena, que diz ter a alma num turbilhão e ativa a curio-sidade de Estácio numa cena localizada logo após o passeio a cavalo feito pelos dois, quando tudo parecia correr a contento, com a jovem diariamente subindo de cotação na família, na casa e no círculo de relações dos Vale. A alusão aos passeios de Helena, feita por Camargo, é outra dessas iscas lançadas para cha-mar a atenção do destinatário e estimulá-lo a prosseguir a leitura, num ponto em que tudo parecia calmo, com o narrador sem ter muito mais a contar.

Contudo, aqueles motivam principalmente o retrospecto, fazendo ver os acontecimentos de modo diferente. A introdução da casa de bandeira azul mostra isso: ela aparece quando do primeiro passeio de Helena, ainda na com-panhia de Estácio. A chegada ao sítio parece casual, embora a moça se revele na ocasião boa cavaleira, quando, na véspera, tinha convidado o irmão a ensi-nar-lhe equitação. Aparenta também ser sem segundas intenções o desenho da mesma casa, entregue a Estácio no dia de seu aniversário. Pelo retrospecto, ve-rifica-se ser falsa a casualidade: Helena planejara visitar Salvador, e a bandeira azul era o sinal combinado entre os dois. Esse tipo de revisão, portanto, não se faz necessário apenas para compreender os acontecimentos; ele leva a encará--los de maneira diversa, de que resulta uma modalidade de desvelamento.

Aqui a novela joga outra vez com o leitor: se a ele sugere-se que volte para trás e reconsidere os fatos, obrigando-o ao citado ir e vir, vale lembrar que esta é a atitude temida por Helena. Suas alegações, quando deseja abandonar a famí-lia, apoiam-se nesta ideia: revistas, suas ações apresentaram caráter maligno, sendo irrelevante constatar se, previamente, já continham a intenção negativa

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creditada à jovem. Para ela, se as pessoas – próximas ou distantes – concluírem que ela agiu de má fé, essa afirmação adquirirá foros de verdade, não havendo meios de desmenti-la.

O retrospecto é, por si mesmo, contraditório: indesejado pela protagonista, moça de caráter confessadamente irrepreensível e foco da simpatia da obra, é induzido pelo narrador, que, com cuidado, dissemina mistérios pela intriga, si-multaneamente sugerindo que se volte a eles para melhor entender a ação apre-sentada. Estabelece-se o atrito entre a personagem e o enredo, colocando-se no meio o alvo concomitantemente evitado e concretizado: o desmascaramento.

Desmascaramento é talvez o termo que vincula os principais atores: Helena, embora alegue inocência, teme-o acima de tudo, pois a revelação de sua identidade coincidirá com a atribuição de cálculo e o interesse às suas ati-tudes. Embora seu destino seja decidido sempre em instâncias superiores – o abandono de Salvador por Ângela, a adoção do Conselheiro, a aceitação dos termos do testamento após a insistência do pai – é ela quem sofre as conse-quências e precisa se justificar. Por mais que as ações enumeradas sejam ate-nuantes, permanece um resíduo pelo qual é responsável: prestou-se à farsa, aceitou as condições, agiu de forma dúbia, querendo ou não seduziu Estácio. Além disso, as testemunhas que poderiam defendê-la morreram (Ângela e o Conselheiro) ou desapareceram (Salvador). Não dispõe de nenhum álibi, e ou-tros depoimentos favoráveis procederiam dos diretamente interessados, como Estácio e D. Úrsula, carecendo de força legal. Fica, assim, entregue a si mesma e à sua parcela de culpa.

Entretanto, o problema não diz respeito apenas à heroína. Nela é apresen-tado sob lente de aumento um dilema a afligir outros jovens: Eugênia, embora sua frivolidade impeça-a de compreender a natureza de sua condição social (e dispõe do atenuante não negligenciável de ser filha de um dileto amigo do Conselheiro), e Mendonça. É por meio dele, antes de ser via Helena, que apa-rece o drama crucial das personagens. Também o companheiro de Estácio precisa provar que seu afeto por Helena é puro e bem-intencionado, embora o casamento de ambos – ele, de boa família, mas pobre e sem futuro fora do funcionalismo público; ela, rica, mas de origem espúria ainda que reconhecida

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pelo pai – não possa ser mais conveniente aos olhos dos demais e deles mesmos.A história manipula essa ambivalência: todos agem com a maior correção,

todavia, suas ações não resistem ao crivo da análise retrospectiva. Precisam parecer imaculados ao extremo, e só esse exagero compensa o risco da des-confiança. E ainda assim esta os submete, porque é parte de dentro do próprio enredo, e nem Mendonça escapa, pois dele é antecipado que só um bom casa-mento o salvaria do trabalho e da mediocridade do Rio de Janeiro.

No entanto, se sobre eles pende a ameaça de desmascaramento, ninguém deveria experimentar esse problema mais agudamente que Estácio. Se o jo-vem, rico e talentoso filho do Conselheiro Vale, com fundas raízes na tradição patriarcal luso-brasileira, não precisa temer por seu passado, nem pelo futuro, antecipado pela carreira política que começa a trilhar, por outro lado, ele oculta a paixão mais condenável: a atração por Helena, de natureza incestuosa, mas-carada por um temperamento doméstico e um coração generoso.

É mais fino o processo de ocultação dos sentimentos interiores de Estácio, uma vez que agora o narrador lida com questões mais complexas. A conveniên-cia social podia ser debatida, ainda que de modo ameno (e, frise-se, a seu favor), porque não se desviava de seus principais mandamentos; mas era impróprio e pouco agradável revelar um amor incestuoso. Por isso, enquanto que Helena está consciente de tudo, escondendo de todos, mas não de si mesma, as chaves mais importantes do enredo, Estácio não somente atua de modo inconsciente, como não quer admitir a natureza de seu afeto, reprimindo-o para o ciúme possessivo com que trata o affair sentimental da irmã e de Mendonça.

O mascaramento é duplo – Estácio, como Helena, esconde a verdade do leitor; mas, ao contrário dela, esconde-a também de si mesmo. É necessária a intervenção de uma instância superior, papel atribuído a Melchior, para ela ser extraída com todas as palavras. Só então o leitor tem confirmada suas descon-fianças; mas, chegando a esse estágio, ele pode desconfiar de tudo, de modo que nova ocultação se faz necessária. Mais uma vez a morte de Helena mostra-se oportuna, pois, com ela, ficam sepultados os segredos – e, mais importante, as suspeitas que deterioram a pureza das intenções e dos sentimentos, a integri-dade das pessoas, a harmonia e a regularidade do universo doméstico.

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A oscilação, não resolvida, entre encobrimento e revelação, a primeira vivi-da na atualidade e a outra constituindo uma sombra a ameaçar o passado, per-mite a Machado analisar a índole das regras sociais, que existem para manter a aparência de normalidade e probidez a ser transmitida pelo comportamento das pessoas.

Leis sociais e aparência

As leis são encaradas desde uma dupla perspectiva: de um lado, regulam a vida familiar, condenando a atração incestuosa que talvez fosse mais poderosa dentro da estrutura patriarcal da sociedade carioca, fechada, imóvel e funda-da na dominação de um grande senhor sobre o clã de parentes, agregados e serventes.58 Machado trabalha-a em níveis diferentes, fiel à sua propensão a desdobrar processos no interior da narrativa, num jogo de espelhos que inten-sifica e difunde a imagem refletida. O mais evidente e menos complexo quando se descobre a verdade diz respeito ao par Estácio-Helena: conforme Melchior denuncia, o rapaz ama a irmã, mas o fato é desculpável, por decorrer prova-velmente da falta de convivência dos dois durante a infância. A justificativa é dispensável, pois, como eles não são irmãos, o incesto mostra-se aparente. O escândalo é contornado, mas, até a verdade aparecer, desafia-se o leitor a engo-lir a situação, agradável ao sentimentalismo romântico, insuportável, porém, do ponto de vista das convenções.

Num segundo plano dá-se a relação Camargo-Eugênia, já salientada pela crítica.59 Camargo, que é também o vilão da intriga, embora, no fundo, não prejudique ninguém, tem um amor possessivo pela filha, através de quem dese-ja triunfar socialmente. A causa da paixão é, ao mesmo tempo, sua atenuante, com o que Machado resguarda mais uma vez as aparências.

58 Não quer dizer que a obra de Machado espelhe um fato social, pois nem ela tem caráter de documento, nem o escritor pretende criar dentro dos parâmetros do realismo fotográfico, condenado por ele em sua crítica literária e teatral. Porém, o tema povoou seu imaginário, comparecendo em vários contos e nas novelas em que a trama amo-rosa parte de uma paixão entre jovens criados juntos, dentro da mesma casa ou em casas vizinhas, como mostram A mão e a luva, Iaiá Garcia, Casa Velha e Dom Casmurro.

59 Cf. CALDWELL, Helen. Machado de Assis. The Brazilian Master and his Novels. Berkeley, Los Angeles; London: University of California Press, 1970.

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Todavia, no terceiro nível, a relação incestuosa é menos evidente e, simul-taneamente, mais daninha: Helena e Salvador mantêm um relacionamento de amantes, encontrando-se às escondidas e às expensas dos prejuízos que as visitas dela possam lhe carrear. Relativamente a Salvador, Helena age como Electra, cultuando o pai que fora traído pela mãe; e por ele se sacrifica, morren-do ao perdê-lo. Eis outro dos agravantes que a condenam à morte, sendo que, de novo, não conta com uma desculpa à altura do crime.

De outro lado, as leis sociais regulam o casamento; vale dizer, têm como objeto a outra faceta do amor. Tema legalmente mais autorizado e ideologica-mente de trânsito mais fácil, nem por isso é menos problemático. Em linhas gerais, Helena apresenta vários enamorados que não podem casar entre si, já que o afeto mais profundo e autêntico, entre a heroína e Estácio, sofre dupla interdição: a do incesto, já referida; e a da diferença social, quando a moça é devolvida à sua classe de origem. O casal ideal está separado de modo irre-versível; restam os casais possíveis: Estácio e Eugênia; Helena e Mendonça. Mesmo aqui, e apesar de contarem com o reconhecimento da instituição mais respeitada do romance, a Igreja, representada por Melchior, há evidente assi-metria: Estácio é muito mais rico que Eugênia; Mendonça é muito mais pobre que Helena. E, se esse ainda oferece a compensação de ser de “boa família”, ao contrário da noiva, de origem obscura, Eugênia, da sua parte, traz um dote medíocre, de que Camargo está alerta.

Além disso, como o “grande amor” está ausente dessas ligações, o interesse que as alimenta e justifica fica mais explícito. Arrumados os pares com a in-tenção de mostrá-los em equilíbrio, eles acabam por acentuar as distinções. E revelar não haver noiva à altura de Estácio, a não ser que Helena fosse mesmo a sua irmã. Nesse caso, a identidade interior – de sentimentos, virtudes e aspi-rações – corresponderia à igualdade exterior; porém, essa solução determina-ria o retorno do incesto enquanto ameaça, agora mais real, porque legitimada. Estácio só poderia se apaixonar por Helena, a única em situação de oferecer--lhe um amor desinteressado, a “alma gêmea” apta a unir-se à sua. Quando a encontra, descobre que as relações são mais complexas, não podendo susten-tar-se apenas no plano espiritual. A última revelação, contudo, é camuflada

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pelo romance, para tanto, mostrando-se de novo providencial a eliminação de Helena, pela mesma razão sugerida pelo representante da Providência divina, o Padre Melchior.

Lidando com a oscilação entre encobrimento e revelação, Helena chega à beira de um tema que poria em causa a organização da sociedade, suas leis e instituições. Diante do abismo que se abre, o romance recua: ainda assim, não deixa de questionar a aparência, fazendo-o por meio do modelo narrativo, de tipo prospectivo/retrospectivo, e do comportamento das personagens, segui-damente preocupadas com o que os outros vão pensar e recebendo a confir-mação de que essa atitude se justifica.60 A última instância da dialética entre ocultação e desmascaramento é trabalhada ao nível do discurso narrativo.

No discurso narrativo, predomina o que se poderia chamar de retórica da aparência, segundo a qual o narrador só apresenta o mundo interior dos pro-tagonistas para confirmar que as atitudes deles são corretas, vale dizer, quan-do correspondem ao que gostariam de aparentar. A cena seguinte à proposta de casamento de Helena, feita por Mendonça, é elucidativa: o rapaz está em vias de ser denunciado como oportunista por Estácio e mais toda a sociedade carioca. O narrador vem então em seu socorro, tendo a participação intensa no evento, a fim de abonar e salvaguardar a sinceridade e a nobreza do seu comportamento.

Nesse ponto, o narrador está sendo conivente com as aparências, pois suas palavras visam impedir que se faça mau juízo do rapaz; ou que venha à luz o caráter conveniente do matrimônio para as duas partes. Em outras palavras, quando se expõe a interioridade de Mendonça aos olhos do leitor, quer enco-brir a evidência de que consórcios como o de Mendonça e Helena faziam parte do mercado amoroso da época, segundo o qual cada um dos parceiros entrava com sua cota, comprando ou vendendo o corpo que lhe faltava.

60 Uma cena à primeira vista injustificada é reveladora desse problema: após ter seu pedido de casamento aceito por Helena, Mendonça vai ao teatro, onde vê a noiva com a tia, D. Úrsula. Os dois não se falam, nem a cena é referida mais adiante. É durante seu transcorrer que um amigo de Mendonça a chama de “andorinha viajante” (p. 156), alcu-nha relativa a seus passeios matinais. A passagem parece inconsequente, mas mostra que, num local pequeno, como o Rio de Janeiro em 1850, todos sabiam da vida alheia e que julgavam as pessoas de modo malévolo e cínico, como Helena temia. A propósito, v. a análise do boato em Machado de Assis, feita por Helen Caldwell no livro citado.

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O ponto de vista dá novas nuances à questão: dita uma obra em que o narrador trabalha de modo onisciente, Helena é, de fato, um texto em que o foco emana principalmente de Estácio. São poucas as cenas em que o leitor tem acesso ao que Estácio não vê: a explicação para o comportamento inicialmente hostil de D. Úrsula, o diálogo entre Helena e Camargo na festa pelo aniver-sário de Estácio, o quadro doméstico em casa de Camargo, após o pedido de casamento de Eugênia.

Da sua parte, Estácio é um indivíduo cego (não percebe seu amor por Helena, que reprime e desloca para o ciúme) e enganado – por seu pai, que o faz admitir uma irmã com quem divide a casa, a herança e os sentimentos; pela irmã, que não lhe confessa sua verdadeira origem e acaba por seduzi-lo, sem advertir-lhe para o perigo que corre. A ele se contrapõem dois homens mais velhos, que enxergam melhor e assumem caráter profético: Camargo, que logo prevê os prejuízos que o testamento trará; e Melchior, que, desde cedo, entende a atração mútua experimentada pelos dois jovens e, na cena da revelação, iden-tifica-se ao adivinho Tirésias, jogando a verdade no rosto do rapaz.

A associação ao paradigma mítico de Édipo, a que o tema do incesto induz e a semelhança entre Melchior e Tirésias acentua, é confirmada pelo próprio texto nas palavras do padre: “São irmãos e amam-se. A poesia trágica pode fazer do assunto uma ação teatral; mas o que a moral e a religião reprovam, não deve achar guarida na alma de um homem honesto e cristão.” (p. 196). O afeto de Estácio pela mãe é também um tênue indício no começo da história, bem como seu amor por Helena. Porém, sua cegueira – ou a impossibilidade de enxergar – é que o coloca mais perto do herói grego, de que o adverte o re-ligioso no episódio citado. Este indica, igualmente, como Machado percebeu a proximidade com o mito clássico e procurou refreá-la, ao confessar os traços comuns e as diferenças entre as duas obras.

Nem por isso deixou de explorar o paradoxo da situação narrativa: Estácio, que vê pouco e é facilmente enganável (a começar por si mesmo), é quem apre-senta a história. Ele não pode ter acesso à interioridade de Helena, durante todo o enredo deixada encoberta ao leitor. Só assim o narrador pode sustentar o mistério, pois invadir a intimidade da moça, que está cônscia de suas origens

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e da índole de seus sentimentos, seria antecipar as revelações guardadas para o final, quando ela perde o controle da situação.

Por sua vez, como o narrador não adianta nenhuma informação além daquelas retidas por Estácio, este reproduz no texto a visão que o leitor tem estando fora dele. Embora disponha de uma situação mais confortável, o lei-tor sabe tanto quanto o protagonista; mas, como se identifica com a sorte de Helena, a vítima trágica das circunstâncias, sofre em dobro: por Estácio, igno-rante e infeliz, e por ela, que sente na pele, e paga por eles, o erro dos outros.

Leitor e sociedade

A situação do leitor apresenta algumas particularidades: da perspectiva do conhecimento, aparenta-se a Estácio; da emoção, a Helena, com quem compar-tilha o sofrimento e a infelicidade. Dividido entre os dois protagonistas, não é nenhum deles, o que lhe possibilita maior distanciamento. Por causa dessa eventualidade, tem meios de julgar os acontecimentos; e, conforme se observou, é induzido a isso, já que a narrativa atua prospectiva e retrospectivamente ao mesmo tempo. O leitor, fora dos eventos, pode pesar os fatos e avaliá-los, hipóte-se que amedronta Helena e que, também por esta via, explica sua morte precoce.

Não apenas por esse ângulo o leitor identificar-se-ia com Helena ou Estácio. Considerando o público com que Machado contaria em qualquer das versões da novela, o leitor pertenceria ao grupo socialmente elevado (como o de Estácio) ou a um setor intermediário, ainda ralo, composto da classe média ou de brancos livres que sabiam ler e trabalhavam como dependentes ou agre-gados da alta burguesia.

O espectro social dos leitores era bastante reduzido, e Machado, de certa ma-neira, o reproduz na obra. Porém, essa reprodução é relativa, pois a ação ficcional passa-se entre 1850-1851, os fatos mais remotos retrocedendo às décadas de 20 e 30, respectivamente quando o Conselheiro casou e nasceu Estácio; Ângela e Salvador fugiram e nasceu Helena, enquanto que o texto, na forma de folhetim e, depois, livro, saiu em 1876. Uma geração separa a data de produção da obra e a dos eventos fictícios, distância temporal ainda rara nos escritos de Machado.

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Talvez tanto a distância, quanto o ano durante o qual transcorre a ação, te-nham sua razão de ser, já que os historiadores com notável unanimidade acen-tuam a importância de 1850 para a trajetória do Segundo Império. Nesse ano, pressionado pelo governo inglês, o Brasil obrigou-se a, definitivamente, proibir o tráfico de escravos africanos. Na ocasião, o país assistia ao crescimento da importância do café na pauta de exportações, substituindo o açúcar e os de-mais artigos agrícolas em que se fundava a economia desde o período colonial. Também as fazendas produtoras de café dependiam do braço escravo; todavia, muitas delas vão aos poucos se organizar sobre bases mais dinâmicas e adequa-das às necessidades do capitalismo moderno, estimulando muito lentamente uma política de imigração de trabalhadores europeus brancos. Isso ajudará a suportar mais facilmente, primeiro, a escassez de escravos no mercado, mais adiante, a completa abolição do regime servil.

Estes acontecimentos – proibição do comércio de africanos, reduzindo-o ao tráfico interno que importará pretos do Nordeste, onde a cultura do açúcar, derrotada pelos cafeicultores e privada de braços, decairá mais rapidamente; a mudança de polo econômico, aproximando-o geograficamente da capital do país –, somados a outros, como o início da modernização do Rio de Janeiro e os primeiros passos na direção da industrialização, modificam bastante a socieda-de carioca. Entre o Rio de Janeiro de Helena-personagem e o de Helena-livro, as transformações são significativas: a velha sociedade patriarcal, de fortes componentes coloniais, era substituída por uma formação social mais diversi-ficada, na qual, à tradicional oligarquia rural, acrescentavam-se uma burguesia endinheirada à custa dos negócios de importação e exportação ou dos novos empreendimentos financeiros, uma classe intelectual mais ativa, que reivin-dicava mudanças políticas, e um grupo intermediário, mas não menos impor-tante, em que se misturavam imigrantes, funcionários públicos, comerciantes, jornalistas, professores, etc.

A realidade ficcional de Helena não é bem essa: ali representa-se uma so-ciedade rigidamente dividida e hierarquizada, com opções muito restritas de trabalho, ascensão e realização pessoal. De certa maneira, todos são vítimas dessa estratificação e estreiteza, pois mesmo Estácio perde sua oportunidade

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de ser feliz. Sob esse aspecto, o livro esboça uma crítica sutil; ao mesmo tempo, antecipa o final desse mundo, já que sua superação está em vias de acontecer quando a narrativa principia.

Talvez essa seja a razão de ele começar e terminar com uma morte que, se reconduz os acontecimentos ao início, confere-lhes agora faceta diversa. Do início para o final, realiza-se um rito de passagem, sendo Helena o objeto de sacrifício. Essa circunstância indica que algo mudou, pois um ritual prepara a atualidade para o que está por vir. Desse modo, se ao final a ação retorna ao ponto de partida, sabe-se que este não é mais o mesmo, tendo-se rompido o ciclo da estagnação, o meio mostrando-se apto a acolher a emergência do novo.

Por sua vez, o responsável em última instância por esse sacrifício é o Conselheiro, síntese completa do velho mundo colonial, conforme sua descri-ção, na primeira página do romance, sugere:

O Conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado, ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relações adqui-ridas, cabedais, educação e tradições de família. Seu pai fora ma-gistrado no tempo colonial, e figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado materno, descendia de uma das mais distintas famílias paulistas. (p. 53).

Ao longo do livro, a noção de que os filhos pagam pelos erros dos pais é rei-terada com alguma insistência. A cena, já mencionada, entre Estácio e o Padre, representa-a bem, o rapaz indiretamente acusando o pai por causar-lhe os pro-blemas sentimentais insolúveis que enfrenta. Por essa razão, Helen Caldwell aproxima o jovem a outro paradigma mítico, vendo-o como reencarnação de Orestes. Helena, porém, não é menos vítima: primeiramente, da irresponsabi-lidade de Salvador e Ângela; depois, do testamento do Conselheiro que, ao cau-sar-lhe a imolação futura, associa a moça a outro modelo da mitologia: Ifigênia, irmã de Orestes e Electra, sobrinhos da Helena grega de quem herda o nome.

A heroína é, portanto, a vítima principal do enredo enquanto objeto do referido rito de passagem. Por extensão, é vítima do processo de mudança em vias de acontecer. Todavia, sacrifica-se em prol de uma ordem arcaica, sendo o sacrificador, o Conselheiro, representante dessa; além disso, seus valores são os que ela deseja conservar. Logo, não age na direção da transformação, nem ao

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menos contesta o sistema vigente dentro do qual não encontra lugar. Revela-se personagem altamente conservadora, ao lutar pela manutenção das aparências; porém, não poderia ser muito diferente, pois estas lhe davam alguma dignida-de e asseguravam o respeito próprio e alheio.

Sob esse ângulo, a imagem da mudança transmitida pelo livro tem conota-ções contraditórias: a pessoa que pode ser seu agente é expurgada da sociedade; o responsável por sua supressão, o Conselheiro, encarna a velha ordem. Se esta apresenta-se em vias de substituição, a que vem em seu lugar parece conservar os valores do passado e não desejar subvertê-los.

É também digno de atenção o fato de a História contemporânea à ação fictícia não ser mencionada na narrativa: não há qualquer referência aos even-tos que agitavam a vida carioca em 1850 e direcionavam o país para nova fase de sua vida. O mundo do Andaraí parece não enxergar esses acontecimentos, circunstância que amplia a cegueira de Estácio, indicando ao leitor que, se de-pender do herói, igualmente encolhera seu raio de visão.

Vale observar como se opera essa repartição: a História encaminhava-se para a superação da organização social herdada da colônia; dentro do univer-so fechado da narrativa, a marcha daquela não é percebida, nem mencionada. Talvez por, no fundo, não haver diferença substancial; ou porque o autor tives-se preferido optar pelos valores tradicionais,61 ainda quando vitimavam pesso-as tão qualificadas como Helena.

É ela quem corre na direção mais diametralmente oposta à da História. Esta, coincidindo com a modernização da sociedade, determinará a relativa emancipação da mulher. Helena, porém, ainda não conta com essa opção: ou permanece na dependência dos Vale ou se prostitui, como sua mãe, que fez ambas as escolhas. A possibilidade de emancipação começava a se esboçar para a leitora de Helena, mas era ainda remota: a mudança não tinha chegado ao ponto de converter a mulher em força de trabalho fora do lar e do casamento. Apenas poderia ser cogitada, e pode-se supor que Machado tenha desejado li-dar com esse intervalo. Nem Helena, nem a leitora tinham chances diferentes,

61 Cf. a respeito SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

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mas o autor não aspirava à completa assimilação entre protagonista e destina-tário. Foi observado como o narrador empurra o leitor a fazer o retrospecto e ver mais que os atores; se não proceder assim, restringe-se ao ponto de vista de Estácio, através de quem se apresenta o enredo na sua linearidade. Disso advém o distanciamento, produzido em várias instâncias – a leitura retrospec-tiva, a modulação do processo de identificação, deixando o leitor a meio cami-nho entre Estácio e Helena, a hipótese de que ele disporia do conhecimento histórico não mencionado, preenchendo também esta lacuna – e destinado a alcançar determinado efeito: o alargamento do horizonte da pura represen-tação ficcional, aumentando as possibilidades de compreensão do mundo ali traduzido. Devido a essa separação, estabelece-se um pequeno intervalo dentro do qual o assunto poderia ser objeto de consideração intelectual. Não ainda de ação – apenas de reflexão, remotamente de indignação, com mais probabilida-de de lamento e piedade pela falta de sorte da moça.

Machado lida com a distância, mas mostra-se também – outra maneira de dizer que as alterações não foram profundas – quão pequena era ela: para a protagonista e para si mesmo, que também não contradizia as convenções do romance romântico, sua estrutura narrativa linear, o discurso derramado e o moralismo da solução. Não que deixe de inovar; mas, ao fazê-lo, tem de recorrer a sutilezas e artifícios, suficientes, por outro lado, para obrigar o leitor a repensar o relato e o destino das personagens. Contudo, não vai mais adiante; se quisesse avançar e assumir outros riscos, teria de exigir mais da heroína, for-çando-a a tomar decisões que fraturassem o universo fechado em que se encer-rara. Mas deixa de fazê-lo não só porque, como ela, pode ser considerado mora-lista e conservador: é que, igualmente, seu público não suportaria o confronto com uma Helena emancipada. Impossibilidade histórica, não foi ela cogitada como utopia – transformando-se em modelo futuro para a mulher brasileira –, nem como criatura trágica – consciente de seus limites, mas assumindo-os com radicalidade ou revolta, como as paradigmáticas Ifigênia e Electra de quem se avizinha. Pelo contrário, Helena recua, refugiando-se no único lugar que pen-sou ter-lhe sobrado: o do ideal, que só pode manter se se aniquilar.

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Essa decisão tornou o final melodramático e inverossímil: Helena luta e, ao mesmo tempo, se deixa abater, abrindo mão da oportunidade de ser um padrão de identificação e revelar alternativas de conduta. E, se o leitor é levado a refletir sobre o assunto, fica ele concomitantemente impedido de questionar os fundamentos das instituições sociais. O livro escolhe o meio termo e per-manece neste ponto. Sua sorte futura é igualmente reveladora dessas opções, emanando desde então o sentimento de transitoriedade com que a crítica cris-talizou sua imagem.

A recepção

O estudo e a reflexão sobre a qualidade e a importância da obra de Machado de Assis não poderia preceder a profissionalização da crítica brasileira. Esta, até o início da década de 1880, vinha sendo exercida em grande parte pelos es-critores ou por homens de Letras que trabalhavam em jornais e se responsabi-lizavam pelas colunas ou notícias literárias. Machado de Assis, no período em que trabalhou como redator no Diário do Rio de Janeiro, e, antes, como parte da equipe de efêmeras revistas como O Espelho ou O Futuro, desempenhou simul-taneamente a função de crítico, cronista e repórter, acompanhando e relatando o movimento cultural da época, quando o Romantismo estava no auge.

Todavia, a profissionalização dessa atividade coube à geração de Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo que, se não era mais nova que a de Machado, chegou mais tarde ao Rio de Janeiro e sofreu a influência, sobre-tudo os dois primeiros, das concepções ventiladas pela Escola de Recife, cujo chefe, Tobias Barreto, seguia o preceito cientificista emanado do Positivismo, Determinismo e Naturalismo, em vias de deitar raízes no pensamento brasileiro.

A institucionalização da crítica dependeu da soma de dois acontecimentos. O primeiro foi a mudança de concepção sobre a atividade crítica, classifica-da como um fazer científico, fundado em princípios e fiel a uma metodolo-gia – isto é, a uma técnica independente do crítico e de validade para além de suas impressões e valores pessoais. O caráter científico da crítica dava-lhe autonomia e universalidade, elevando seu estatuto e delimitando uma área de

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ação. Por isso, o crítico podia ser considerado um profissional e um técnico: um expert, dono de uma competência específica, seguidor de uma ortodoxia e diverso do leitor vulgar que, por faltarem-lhe os instrumentos, era incapaz de reelaborar sua compreensão da obra num discurso válido e digno de ser levado a sério, permanecendo preso às suas emoções imediatas.

O segundo acontecimento relaciona-se às mudanças das condições de tra-balho intelectual, experimentadas desde a década de 1870 e que tomam feição crescentemente moderna após a proclamação da República. O crítico não po-deria ser um profissional com todo o aparato antes descrito, se lhe faltassem os veículos. O aparecimento de revistas, o aumento do número de jornais e a diver-sificação do público leitor, fatos observáveis na última década do século passado, forneciam os meios de o crítico desenvolver sua atividade, facultando ao especia-lista o desempenho de seu papel de um modo relativamente próximo ao seu ideal.

A recuperação da Revista Brasileira, por José Veríssimo, em 1895, é repre-sentativa das novas condições de produção intelectual. Não apenas se tratava de um meio apropriado para a comunicação com o público, como se apresen-tava com a aparência desejada: era especializada, destinada a uma audiência específica, que encarava a literatura como objeto elevado, e não mero passa-tempo. A presença da Revista Brasileira, ao final do século, é sintoma do novo status da crítica; e também da diversificação do público e possibilidade de se estabelecer novo diálogo com esses leitores diferenciados, mediados por um veículo próprio e um discurso técnico, para quem a literatura era alvo de con-sideração científica.

Talvez tenha sido a obra de Machado de Assis a que se revelou mais apro-priada à nova situação. Quando esta se mostrava madura para acolher a nova crítica, Machado tinha vários livros publicados, entre os quais se contavam Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, sua trajetória intelectual já percorrera escolas diferentes, desde a poesia de influência hugoana e condorei-ra até a indianista, desde o romance folhetinesco até a prosa paródica ou rea-lista e, talvez o mais importante, apresentava consistência temática e estilística – fatores convidativos para quem dispunha de instrumental novo e refinado, mas se ressentia da falta de uma produção artística à altura.

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Por sua vez, o fato de a crítica só ter meios de interpretar Machado quando a obra dele ia avançada repercute sobre o modo de a encarar. Também a cir-cunstância de predominar o foco evolucionista, originário do Positivismo, teve efeitos determinados e ainda dominantes na recepção daquele escritor.

Esses ângulos evidenciam-se no estudo que Araripe Júnior lhe dedica no número de reinauguração da Revista Brasileira. Desde o começo, ressalta como o escritor foi se modificando ao longo de sua biografia literária, seguindo uma evolução que correspondeu a um paulatino aperfeiçoamento. A imagem retira-da da Botânica é representativa dessa noção de crescimento contínuo e unifor-me: “ele ensaiou-se no conto, e é nesse terreno que gradualmente vê-se despon-tar o broto, de onde rebentaram mais tarde as concepções que hão de afirmar, no futuro, a sua passagem pelas letras brasileiras.”.62

A evolução do artista corresponde à sua trajetória intelectual; sob esse ângulo, “o autor do Quincas Borba foi sucessivamente crítico, poeta arcaico, poeta romântico, romancista de salão e contista; e, por último, afirmou-se es-critor humorista de primeira ordem.” (p. 8). Por outro lado, permite inseri-lo numa História cultural, que ele acompanha e reproduz em última instância. Machado, enquanto se transforma, marcha ao lado das diferentes gerações da literatura brasileira, que, de certo modo, amalgama em sua obra:

Foi assim que Machado de Assis assistiu aos adventos do india-nismo de José de Alencar, do neo-romantismo e das tentativas dramáticas de Quintino Bocaiúva e Pinheiro Guimarães, da esco-la condoreira de Tobias e Castro Alves, do naturalismo personifi-cado na geração que despontou em 1878, com José do Patrocínio, Tomás Filho, A. Celso Júnior, Assis Brasil, Lúcio de Mendonça, V. de Magalhães, e do parnasianismo representado por O. Bilac, Raimundo Correia e outros. (p. 8-9).

É curiosa a descrição de Araripe, pois, sob certo aspecto, transforma a obra analisada numa colagem de informações diversas que comprometem sua iden-tidade. Essa característica aparece também na afirmação que pretende enfeixar as peculiaridades da obra de Machado:

62 ARARIPE JÚNIOR. Machado de Assis. In: ___. Obra crítica. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1963. V. 3. p. 6. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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Em síntese, Machado de Assis significa um poeta clássico-ro-mântico que, em caminho, matizando a sua imaginação com a variedade das cores e dos aspectos das opostas paisagens que foi atravessando, descobriu a existência, em sua alma, de uma região excêntrica e nela firmou as tendas de seu estilo. (p. 9).

Araripe não resiste à imagem retórica, tendo esgotado as classificações pos-síveis para descrever as facetas diversas do conjunto da obra. Faltando uma ca-tegoria específica, já que Machado parece conter um pouco de cada uma, recor-re a uma figura de estilo que informa pouco. Ela denuncia, porém, o dilema do crítico entre reconhecer a originalidade da criação machadiana, examinando-a por si mesma, ou encaixá-la a um padrão previamente existente utilizado pela História da Literatura. Ele não pode se limitar ao primeiro, pois recairia num modelo analítico superado, que dispensa o conhecimento teórico; mas preferir o segundo apagaria a identidade da obra em questão, não mais se justificando sua abordagem. Ele escolhe o caminho intermediário: fixa a ideia de que a obra evoluiu, portanto, não fugiu à História, podendo mesmo ser lida e rotulada a partir dessa; e sugere que, se o artista foi se transformando, é porque passou por fases diversas, a posterior melhor que a anterior, razão pela qual esta pode se explicar por aquela, o passado pelo vir-a-ser do futuro.

Todavia, Araripe não deixa de ver Machado como escritor empurrado pela História, mudando sua escrita por se expor a influências diversas: primeiro, a de Castilhos e do Romantismo, depois, a do folhetim de Octave Feuillet, enfim a da literatura inglesa, especialmente a de Sterne, descoberta que fortaleceu seu verdadeiro talento e ação inusitada na literatura brasileira e nas letras la-tinas, avessas por natureza ao humorismo peculiar aos povos anglo-saxônicos.

Encarando a obra como totalidade homogênea, sem cortes, nem conflitos, Araripe só persegue o fio cronológico, a que caracteriza como aperfeiçoamento e confere índole evolutiva. O escritor desdobra sua carreira segundo um ro-teiro ascensional, sem grandes rupturas, mas, ao mesmo tempo, exposto a in-fluências que, igual a setas, indicam o rumo a ser seguido. Como este reflete a História da Literatura, atuando secundariamente sobre ela, o percurso em crescendo significa pouco, pois identifica cada fase em relação ao artista in-fluente, e não em vista dos resultados particulares alcançados.

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O ensaio publicado por Magalhães de Azeredo, em 1897, reforça a noção de que Araripe traduzia o modo como o meio intelectual brasileiro compreen-dia a obra machadiana. Também Azeredo enfoca seu mestre a partir da mol-dura da História da Literatura, usando seus recortes para encaixar a evolução da poesia de Machado:

Poeta, rimando sonhos nas manhãs de adolescência, ele aparece em momento de transição, entre os Ultrarromânticos ululantes ou possessos, fracos herdeiros daquela forte geração que abriu o século, e os parnasianos da Musa impassível, dispostos a lavrar o verso como matéria dispersa e fria.63

A perspectiva evolucionista retorna, caracterizando o gradualismo com que a arte de Machado se desenvolveu no tempo, até atingir a maturidade de que as Memórias póstumas de Brás Cubas são o sinal:

Também foi gradualmente que na prosa se desenvolveu a sua ín-dole de maravilhoso humorista, que no Brás Cubas atinge o sumo grau de originalidade e independência. Os germes de tal pendor apenas se lhe adivinham nos primeiros contos e romances pela preocupação psicológica e moralística; mas ainda os caracteres humanos lhe fornecem antes recursos dramáticos para o enredo e o desenlace da ação, que estímulos para o exercício de sua magis-tral ironia. (p. 181).

Mesmo Sílvio Romero, que ataca com violência inusitada e, segundo os comentários da época, vingativa, o escritor, reitera a ótica que se tornava do-minante. Divide a obra de Machado em três fases, equivalendo às três déca-das até então percorridas por ele, e vê entre essas uma articulação na direção do progresso constante. Compreende o momento atual do novelista como a grande fase da maturidade; e estabelece entre as “maneiras” antiga e nova uma continuidade, asseguradora da unidade da obra.64

63 AZEREDO, Carlos Magalhães de. Machado de Assis. In: . Homens e livros. Rio de Janeiro e Paris: Garnier, 1902. p. 179. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

64 O ensaio de Sílvio Romero foi publicado em 1897, cf. ROMERO, Sylvio. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Laemmert, 1897. Em 1936, Nelson Romero promoveu uma edição condensada do livro, eliminando a maior parte das referências a Tobias Barreto, com quem Machado é desfavoravelmente comparado. Cf. ROMERO, Sylvio. Machado de Assis. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. Uma terceira versão, ainda mais resumida e igual-mente patrocinada por Nelson Romero, encontra-se na História da Literatura Brasileira, de Sílvio Romero, a partir de sua terceira edição.

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Romero, como os demais, compreende o passado em relação à atualidade; e, embora analise as obras individuais, como Falenas e Americanas, não evita o foco evolucionista, mais forte nele que nos anteriores, pois associa as fases aos períodos da vida do autor. Porém, não submete os livros ao fluxo da História, nem o oposto, pois um dos objetivos de sua crítica parece ser o de atestar a irrelevância do artista para o percurso da literatura brasileira. Descartado o mérito, ele sai fora da moldura temporal até então privilegiada, de modo que a ausência do relacionamento é ainda sintomática de seu emprego enquanto critério de avaliação.

A polêmica suscitada por Sílvio Romero levou a crítica brasileira a se con-centrar na obra propriamente dita de Machado de Assis. Respondendo àquele, os defensores desse – Magalhães de Azeredo ou Lafayette Rodrigues – vol-tam-se às peculiaridades da prosa e da poesia e destacam as virtudes de seu es-tilo e pensamento, cujo pessimismo assume tonalidades de filosofia. Lafayette vê em Machado a representação de um patamar de urbanidade e civilização que Romero, um “bárbaro”, não poderia reconhecer, nem sequer identificar ou entender. E Azeredo justifica as fases diferentes do escritor como “maneiras (distintas) do mesmo temperamento.”.65

Consolida-se, assim, o modo de descrever a obra já encontrado em Araripe: a segmentação em fases, a articulação entre elas, sem “solução de continuidade” conforme pensam Azeredo e também Romero, o aperfeiçoamento crescente que representa a passagem de uma a outra. Porém, é José Veríssimo quem dá o toque final a essa imagem, aceita pelo próprio Machado, conforme indicam sua correspondência e as apresentações às novas edições dos primeiros romances.

Revisão da obra inicial

A análise de Iaiá Garcia, quando do lançamento da segunda edição do li-vro, reforça e dá consistência às ideias circulantes sobre a criação machadiana.

65 AZEREDO, Carlos de Magalhães. Machado de Assis e Sylvio Romero. In . op. cit. p. 210. V. também PEREIRA, Lafayette Rodrigues (Labieno). Vindiciae. O Sr. Sylvio Romero Critico e Philosopho. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.

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Saudando o aparecimento do romance, José Veríssimo atribui-lhe uma quali-dade suplementar: “tem esse livro delicioso e honesto o picante de ser da pri-meira maneira do autor.”.66 Esta, por sua vez, não difere da segunda em termos de oposição, e sim a precede, antecipando em ponto menor os valores que, de-pois, alcançam a plenitude:

Todo o Sr. Machado de Assis está efetivamente nas suas primei-ras obras; de fato ele não mudou, apenas evolveu. O mais indi-vidual, o mais pessoal, o mais ‘ele’ dos nossos escritores, todo o germe dessa individualidade que devia atingir em Brás Cubas, em Quincas Borba, nos Papéis avulsos e em Várias histórias o máximo de virtuosidade, acha-se nos seus primeiros poemas e nos seus pri-meiros contos. (p. 157).

Eis por que a segunda maneira não é mais que “o desenvolvimento lógico, natural, espontâneo da primeira, ou antes não é senão a primeira com o roma-nesco de menos e as tendências críticas de mais.” (p. 157). Veríssimo não está fugindo à regra de seu tempo, apenas a legitima aos olhos do próprio Machado e de seu público na condição de seu crítico mais credenciado. Ao mesmo tem-po, ratifica a noção evolutiva e ascensional, o que, por tabela, classifica os livros da “primeira maneira” a partir de sua natureza transitória, e, em certa medida, preparatória, “pré-histórica”. A presença de outra imagem biológica esclarece mais uma vez o modo como cada obra individual é percebida, alinhada crono-logicamente e em relação a determinado resultado obtido depois:

Nas páginas emocionais de Iaiá Garcia, como dos Contos Fluminenses, da Helena e da Ressurreição, e nos seus mesmos ver-sos, se faz a gestação de Brás Cubas. (p. 158. Grifo nosso).

Machado de Assis se torna, nessa medida, prisioneiro de sua própria cro-nologia, a que Veríssimo subordina o entendimento dos livros: “Em Iaiá Garcia esta feição do gênio do escritor, reconhecível desde os seus primeiros ensaios, que se desenvolverá no Brás Cubas, no Quincas Borba e nos contos da sua se-gunda maneira, já é mais manifesta que na Ressurreição ou na Helena.” (p. 159).

66 VERÍSSIMO, José. Alguns livros de 1895 a 1898. In: . Estudos de Literatura Brasileira. 1a série. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976. p. 156. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indica-da a página onde se encontram.

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Mas pode-se cogitar que o escritor não achou a ideia tão desagradável, pois, tão logo leu a crítica do amigo, enviou-lhe uma carta com as impressões que a repartição em maneiras produzia nele:

O que você chama a minha segunda maneira naturalmente me é mais aceita e cabal que a anterior, mas é doce achar quem se lembre desta, quem a penetre e desculpe, e até chegue a catar nela algumas raízes dos meus arbustos de hoje.67

Aparentemente, as imagens retiradas da História Natural, frequentes, como se percebe, davam prazer ao escritor, que, de certo modo, as havia anteci-pado, empregando-as nos títulos de seus primeiros livros de poesia, Crisálidas e Falenas. Porém, não as repetirá, embora reforce, nas edições posteriores dos livros, a concepção relativa à cronologia de produção das obras. Ela aparece, por exemplo, na carta dirigida a seu editor, Garnier, quando este, comprando os direitos autorais do conjunto da criação machadiana, providenciava o relan-çamento dos textos mais antigos, um deles sendo os Contos Fluminenses:

Quanto aos Contos Fluminenses, remeto-lhe um exemplar, segun-do vosso pedido, com pequenas correções para a próxima edição. Não corrigi o estilo, nem a composição, porque cada livro deve guardar a marca de seu tempo, e este dos Contos Fluminenses é meu primeiro deste gênero.68

E retornam principalmente na Advertência à segunda edição de Helena, o primeiro a ser republicado depois de consolidado o modo de descrever a traje-tória intelectual de Machado de Assis:

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me fez de-pois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espíri-to, naquele ano de 1876.

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tan-to me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler

67 ASSIS, Machado de. Correspondência. Coligida e anotada por Fernando Nery. Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre: W. M. Jackson Inc., Editores, 1937. p. 145.

68 MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE. Exposição Machado de Assis. Centenário do nascimento. 1839 – 1939. Rio de Janeiro: MES, 1939. p. 200.

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estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhe tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo. (p. 51).

As reedições de Ressurreição, no mesmo ano de 1905, e A mão e a luva, o úl-timo a voltar após o contrato com a Garnier, reiteram a ideia. Do primeiro, diz que “como outras que vieram depois, e alguns contos e novelas de então, per-tence à primeira fase da minha vida literária”;69 sobre o segundo previne: “Os trinta e tantos anos decorridos do aparecimento desta novela à reimpressão que ora se faz parece que explicam as diferenças de composição e de maneira do autor. Se este não lhe daria agora a mesma feição, é certo que lha deu outrora, e, ao cabo, tudo pode servir a definir a mesma pessoa”,70 reforçando mais uma vez a ideia de que mudou, provavelmente melhorou, mas o fez de modo contínuo e progressivo, num esforço de permanente aperfeiçoamento. Antes mesmo de encerrada a produção literária, Machado de Assis tinha já fixada e estabelecida a concepção que descrevia e catalogava sua obra, sendo aceita pelas gerações seguintes de críticos.

Com isso, Helena, romance no qual, como se viu, se internalizam mais po-derosamente as amarras com a cronologia, ficou presa a uma imagem conge-lada: submeteu-se ao vir-a-ser do escritor, primeiro por a crítica compreender a obra de Machado de Assis da frente para trás, depois por ele a aceitar e re-ferendar nas advertências que abrem o livro e preparam a leitura da narrativa, predispondo o sentimento do leitor.

Helena-livro e Helena-personagem protagonizam, assim, um duplo ato de submissão. A da segunda transparece na sua decisão: sendo a possibilidade de ruptura do universo fechado representado no romance, por se tratar da pes-soa menos integrada a ele, converte-se em sua principal defensora e vítima, por paradoxal que sua situação se torne. Não se revolta, embora sofra todos os prejuízos possíveis, quando poderia ter se rebelado sem ter de abrir mão das vantagens conquistadas no início e depois do primeiro segmento da intri-ga. Camargo, seu único antagonista, percebe como a moça ganhou terreno e

69 ASSIS, Machado de. Ressurreição. In: ___. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962. V. 1, p. 114.

70 ASSIS, Machado de. A mão e a luva. In: ___. op. cit. p. 196.

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procura refreá-la, apelando para seu ponto fraco. Talvez nem precisasse fazê--lo, pois a heroína sucumbe com facilidade às contradições em que sua posição a coloca. Derrotada por sua honestidade e temperamento, depois pela inau-tenticidade da situação, transforma-se no exemplo de uma docilidade desejada por certo segmento social, o de Estácio.

Estácio, todavia, não mais detinha o poder de modo hegemônico quando Machado publica o livro. A estas alturas, os republicanos, associados aos gru-pos urbanos emergentes, já contavam com seus próprios clubes e jornais, não precisando fugir para a clandestinidade, nem temendo as reações políticas que poderiam provocar. Pela mesma razão, Machado não podia localizar a ação da história no presente; tal exemplo de submissão não mais convencia, sendo aceito, contudo, como próprio a 1850. E sendo, ao mesmo tempo, reconhecível, porque, no intervalo, as mudanças ocorridas poucas alterações trouxeram para a situação da mulher. Helena talvez fosse mais dócil que suas leitoras, já que heroínas machadianas em situação similar, como Guiomar e Iaiá Garcia, con-seguiram melhorar seu status sem sacrifícios. Não é, porém, o caso de Estela, esta um pouco mais velha que a enteada, portanto, mais próxima de Helena, e que, como Lalau, de Casa Velha, teve de aceitar um marido pertencente a um grupo social equivalente ou inferior ao seu.

Por isso, a margem de ação de Helena é ínfima, menor que a de Estela, por sobre quem não pesa a situação de ilegitimidade filial, persistente durante todo o relato de Helena. Como a protagonista deste só pode se sujeitar, torna-se o contraexemplo da ruptura, desatualizando o romance: faz com que ele se alinhe à cronologia e explique-se por ela. A crítica e o próprio Machado en-dossaram essa ótica, e Helena viu-se prisioneira de uma análise colateral, que a examina em relação a um outro, com o qual não se assemelha e diante do qual fica inferiorizada.

Emancipar a leitura de Helena é talvez tão importante quanto liberar a personagem de seus condicionantes sociais e ideológicos. E, de certo modo, os dois projetos se equivalem, o segundo decorrente do primeiro: este depende de ser o romance considerado na relação que estabelece com o leitor, que, se não pode fugir à mediação resultante do lugar do livro na cronologia de Machado

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de Assis, pode questioná-lo e resgatar a identidade da obra. Porém, ao fazê-lo, não deixará igualmente de questionar a protagonista, contrapondo a solução dada pelo escritor em seu tempo e a que seria dada hoje. Helena, na atualidade, parece anacrônica; sua sujeição às classes dominantes, discutível, talvez ina-ceitável. Porém, foi o comportamento possível num certo período, e Machado soube traduzi-lo, independentemente da coloração sentimental com que o pintou. E se, ao fazê-lo, o corroborou, não procedeu tão docilmente quanto a heroína: ao mesmo tempo, propôs um jogo entre passado e presente, desde a diferença temporal entre época de produção e de representação, e de identifi-cação e distanciamento, dando o vaivém prospectivo/retrospectivo analisado. Não há por que, então, deixar de reintroduzir nesse jogo a perspectiva de um novo presente; o do leitor, intensificando sua operação. O romance ganha em dinamicidade, sem que sua estrutura seja afetada; e indica que, se pode não ser atual sua visão, nem aceitável sua ideologia conformista, conservadora e mora-lista, projeta por meio de suas fissuras a comparação entre a situação apresen-tada e a contemporânea, reativando um diálogo que o torna vivo e interessante.

Limitado pelas opções existenciais feitas pela protagonista, nem por isso Helena deixa de se comunicar com o leitor, no presente deste. Porém, isso pode acontecer se se respeita o passado que incorpora e manifesta, olhando para trás e para frente ao mesmo tempo, por cima, todavia, da linha cronológica que o vem imobilizando e emudecendo.

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Fim do percurso? Encruzilhadas

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A leitura de Helena procurou se manter dentro dos limites da metodologia sugerida por H. R. Jauss nos vários estudos teóricos e analíticos que fundam e desenvolvem a Estética da Recepção. Fiel a seus princípios, a descrição relativa à atividade do leitor proveio das indicações fornecidas pelo texto, sendo a iden-tidade daquele definida a partir das coordenadas desse. O leitor evidencia-se como pertencendo ao texto, um componente seu a quem compete acompanhar a partitura apresentada pelo narrador.

Por outro lado, o leitor é também uma figura histórica: seu horizonte, deli-mitado pelas possibilidades de aceitação de uma obra, impõe restrições à liber-dade de criação do escritor. Este, para assegurar o trânsito social de sua arte, respeita-o e, até certo ponto, repete-o, mas também promove rupturas e in-troduz, no interior desse diálogo, uma tensão dialética. Por decorrência, entre artista e audiência há uma relação sui-generis, já que, a todo momento, a troca estimulada pela leitura, que parece colocar dois indivíduos em pé de igualdade, está em vias de chegar ao atrito e ao rompimento.

A respeito dessa eventualidade, também o texto parece fornecer o maior número de informações; porém, sua explicitação não se completa sem o recurso

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à História, revitalizando o diálogo da obra com seu tempo. Cabe esclarecer, contudo, a peculiaridade desse intercâmbio: a retomada dos fatos históricos não tem a intenção de explicar o texto, nem este reproduz uma época. A pre-sença deles é motivada pelo próprio romance e visa considerá-los em relação aos aspectos enfocados ficcionalmente; deste confronto resulta a reconstituição do relacionamento entre o livro e a realidade circundante – a “vida prática”, nas palavras de Jauss. Portanto, o modo como a obra se apropria dos elementos do cotidiano e reelabora-os artisticamente indicia seus contatos com a sociedade.

Para a Estética da Recepção, é irrelevante se a literatura, mesmo a mais programaticamente realista, reproduziu fielmente o universo circundante, perspectiva que, no fundo, tem raízes platônicas. Importa antes recuperar o modo como a realidade foi transferida para a ficção, pois a explicitação desse processo permite definir a resposta do artista às necessidades e às solicitações de seu público. E, como, ao retomar aquelas expectativas e nível de experiên-cia, ele pode se sujeitar a elas, alterá-las, projetar novos comportamentos, o confronto também o posiciona na época, esclarecendo suas opções, da mais submissa à mais revolucionária.

Há, pois, entre escritor e audiência, sempre uma assimetria, provocado-ra simultaneamente do diálogo e da controvérsia. Por sua causa, mantém-se constante um intervalo, a ser preenchido por novos leitores que, mesmo em outras épocas e contextos, voltam à ficção para ali reconhecerem uma reali-dade a ser questionada ou a questioná-los. Efetivado esse processo, a obra se atualiza; mas o resultado depende também da postura questionadora de am-bos – tanto do processo de leitura, quanto da obra, pois, se um dos dois não se dispuser ao diálogo, acontece o desinteresse e a monotonia. Sua concretização progressiva, por outro lado, é sinal principalmente de quão pouco reprodutor o texto foi, mostrando-se em condições de se adaptar a circunstâncias diversas e inusitadas.

A capacidade da obra de se desprender de seu tempo original e responder às demandas dos novos leitores é reveladora de sua historicidade. Porém, para ocorrer esse desdobramento futuro, é preciso que, desde o começo, ela esta-beleça algum tipo de comunicação com os primeiros destinatários. O vínculo

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com a época de aparecimento antecipa aquela historicidade, que se propaga para o futuro desde as modalidades iniciais de recepção.

A recepção fica registrada principalmente pela crítica literária, que, poder--se-ia acrescentar, não parece apenas documentar a circulação da obra ao longo de sua trajetória; também ela tem caráter formador, repercutindo na leitura contemporânea e influenciando a valorização do texto perante o público e a sua localização no fluxo cronológico. Se a crítica documenta a história dos efei-tos da obra, responsabiliza-se igualmente por esses últimos, sob este aspecto correspondendo com mais nitidez ao papel ativo que a Estética da Recepção espera conferir ao leitor.

Em Helena parecem se evidenciar essas características: o romance apresen-ta-se como partitura a exigir do leitor determinada atividade, pois ele fica preso ao vaivém da intriga, que dissemina enigmas e suspeitas enquanto o distrai com a representação de cenas domésticas à primeira vista reconhecíveis, embo-ra decoradas com o pincel sentimental do Romantismo exacerbado. O exercí-cio de reconhecimento tem suas matizes: para admitir a situação como válida, ele precisa enfrentar a retórica da aparência, desmentindo-a e ultrapassando-a simultaneamente; e então descobrir as semelhanças entre ficção e realidade, para, logo depois, negar a segunda e preferir a primeira, retornando ao ponto de partida. Nesse regresso, a ficção passa a se confundir com a retórica da apa-rência, com qualidades que a aproximam muito da mentira ou da falsificação, ao menos, da dissimulação.

O processo é similar ao que Estácio percorre, evidenciando em que medida leitor e personagem estão próximos um do outro, vale dizer, a História (o leitor que segue o percurso sugerido pelo texto é real, correspondendo ao destinatá-rio virtual do livro) e a fantasia. Helena não chega a problematizar o tema, mas avizinha-se dele a todo momento, o suficiente pelo menos para, se se tomar a segunda pela primeira, sugerir que a troca é enganadora, embora válida na perspectiva escapista.

O livro lida com o problema da representação e do reconhecimento por dentro e por fora, dando-lhe uma solução hoje conservadora; mas já tinha esta conotação a seu tempo, pois, como se viu, Helena nega dois presentes

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concomitantemente: os contemporâneos à ação e à produção do romance. Quando se atreve a encarar temas controversos – a política e a escravidão – usa de um expediente que o libera do encargo de ter de tomar uma posição: faz com que predomine a ótica das personagens. Assim, é Camargo quem traz a política para o cenário idílico do Andaraí, referindo-se a ela sob o prisma da (sua) ambição, o que leva o leitor a preferir a postura neutra, depois apartidária e, enfim, elegantemente saquarema (logo, conservadora) de Estácio. A escravi-dão aparece no interior do discurso de Helena, cuja trajetória é tão infeliz, que induz à conclusão de ser sua sorte pior que a dos negros.

O romance se arrisca muito pouco do ponto de vista ideológico e, como prefere endossar os valores patriarcais, ainda que perceba o encerramento de seu ciclo hegemônico, parece superado em nossos dias. A crítica que suscitou só acentua sua superação, legando ao leitor contemporâneo uma tarefa de du-plo desentranhamento: do tipo de leitura que propôs, contrastado, por uma parte, às que se efetivaram ao longo do tempo, por outra, ao horizonte do pre-sente, diante do qual Helena se explica enquanto criação do passado, mas even-tualidade existencial numa sociedade onde a estratificação persiste ou ameaça.

O exame do romance de Machado indica ser viável o projeto de Jauss: é possível, como ele deseja, “devolver à experiência estética a função social e co-municacional que fora perdida”,71 razão por que a Estética da Recepção foi convertida numa Teoria da Comunicação Literária em escritos posteriores.72 Além disto, revela-se procedente, por oportunizar a obras do passado retomar o diálogo com o leitor, interrompido às vezes por circunstâncias paradoxais, como, por exemplo, a valorização do autor pelo que veio a produzir depois ou a utilização de um texto para ilustrar características de uma escola literária.

O fato de dispor de um escopo teórico e metodológico completo, coerente e exequível não confere ao Autor pretensões absolutistas, nem ele deseja abolir, evitar ou negar a contribuição de outros setores da ciência literária. No posfá-cio a Ifigênia, Jauss salienta a parcialidade inerente à Estética da Recepção, que corresponde a uma “reflexão metódica parcial, fértil e interdisciplinar.” (p. 31).

71 JAUSS, Racines... p. 31. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.72 Cf. JAUSS, Esthétique... p. 1116; e Jauss, The Dialogical.... p. 52.

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A interdisciplinaridade, verificável quando do recurso à História na análise de Helena, justifica o apelo à Sociologia, à Estética e à Hermenêutica simultanea-mente. A parcialidade decorre da posição atual do intérprete, antecipadamente exposto aos efeitos projetados pela obra. Coerente com sua visão da História, segundo a qual se percebem os fatos na proporção do impacto que provocam, assumindo dimensões diferentes à medida que o tempo passa, Jauss não se deixa seduzir pela ideia de conferir à Estética da Recepção a superioridade e a veracidade assumidas pelas ciências que critica. Isso o leva a contrapor sua proposta à da Teoria Crítica, a quem acusa de se autoatribuir uma “consciên-cia verdadeira” (p. 38), em franca contradição com seus princípios originais. A Estética da Recepção, da sua parte, é mais modesta: não hostiliza interpreta-ções, nem pretende ser melhor que as precedentes, se não que procura verificar “a compatibilidade das interpretações diferentes.”.73

Viável ainda que parcial, interdisciplinar e, como se deduz, democrática, ela não se viu isenta de críticas e contestações; estimulou também novas pes-quisas na direção do estudo do leitor, embora muitas delas se apresentem como dissidências e fruto da recusa a acompanhar a rota sugerida por Jauss.

Críticas e discensões

As objeções dirigidas à teoria recepcional enfocam três aspectos: o concei-to de leitor, a visão do texto literário e o alcance do trabalho. O primeiro tema tem atraído o maior número de críticos, a razão se devendo provavelmente ao fato de Jauss considerar a principal conquista de suas teses a reabilitação do papel do leitor para a concepção social, histórica e estética da literatura.

Henry Schmidt considera o conceito empregado por Jauss mera “constru-ção teorética”,74 posição a que se consorciam Peter Bürger, Luiz Costa Lima, Susan Suleiman e Robert Holub. O primeiro afirma que, de um lado, Jauss reconhece a importância do leitor, de outro, seu fundamento metodológico, a lógica da pergunta e da resposta, não supõe a participação do recebedor

73 JAUSS, Esthétique... p. 1119.74 SCHMIDT, Text – Adequate... p. 59.

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propriamente dito.75 Para Costa Lima, Jauss, embora pense que não, trabalha com um conceito de leitor ideal,76 perspectiva endossada por Susan Suleiman (a propósito de W. Iser, cujo conceito de leitor implícito Jauss incorpora às suas teses), com as seguintes palavras:

O sujeito leitor que emerge dos ensaios (de W. Iser) não é um indi-víduo específico, historicamente situado, e sim uma mente trans--histórica cujas atividades são, ao menos formalmente, sempre as mesmas.77

R. Holub segue orientação similar: gostaria de que Jauss chegas-se a um questionamento da noção mesma de sujeito, conforme procede o Desconstrutivismo. Como não o faz, ratifica a “metafísica da presença” pecu-liar ao pensamento ocidental, sem romper com a tradição universalista e de herança platônica que julgava ter ultrapassado.

O mesmo vale para a noção de texto: tal como o sujeito, esse consiste numa unidade fixa e imutável, de modo que, se varia no tempo, a diversidade é epi-dérmica, não o afetando internamente. Permanece como dado estático, relati-vizando a ambição de Jauss de ter submetido tudo ao fluxo da transformação e da historicidade.78

O terceiro grupo de críticas focaliza o alcance do trabalho, provindo so-bretudo dos que, enquanto contestam Jauss (e Iser, às vezes), apresentam suas propostas de pesquisa alternativa com a recepção. Günther Grimm acusa a Estética da Recepção de não encarar o ângulo histórico e social de forma mais acentuada. Como resposta a essa exigência, formula seu projeto, de tomar o sujeito da recepção como um ser ativo, capaz de afetar a produção da obra de arte. Esta, por seu turno, precisa ser avaliada na perspectiva de sua aceitação pela sociedade, de que resulta a História da Recepção, disciplina por cuja orga-nização se responsabiliza. Grimm expõe suas intenções:

75 Cf. BÜRGER, Peter. op. cit.76 Cf. LIMA, Luiz Costa. O leitor demanda (d)a literatura. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). A literatura e o leitor. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1979.77 SULEIMAN, Susan. Introduction: Varieties of Audience-Oriented Criticism. In: SULEIMAN, Susan;

CROSMAN, Inge. The Reader in the Text. Essays on Audience and Interpretation. Princeton: Princeton University Press, 1980. p. 25.

78 Cf. HOLUB, Robert. Atas do Colóquio ocorrido em 27 de fevereiro de 1983. In: Jauss, The Dialogical.... p. 38-41.

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A História da Leitura (Lesergeschichte) interroga o sujeito leitor (quem?), os assuntos de leitura (o quê?) e as razões para a vigên-cia desses (por que quem lê o quê?). A História da Recepção (Rezeptionsgeschichte) enfatiza a análise das modalidades; ela am-plia o horizonte da História da Leitura ao pesquisar sobre o modo da recepção (como por que quem lê o quê?), pois os componentes modais são mais importantes que os temáticos, que só interessam como função das modalidades condicionadas ao sujeito.79

Grimm deseja estudar as maneiras como o texto foi socialmente acolhido – esta é a história das modalidades de sua recepção, diferente das interpreta-ções, objeto da Estética da Recepção. Para obtê-las, cumpre ampliar o raio de consulta, que não se dirige apenas ao texto, mas às testemunhas que explicitam sua difusão e às instituições, que dispõem de meios variados para alargar ou inibir o alcance de uma obra. Espera, assim, chegar a uma postura mais objeti-va – e também menos elitista, por lidar com o material efetivamente circulante e medir o valor da obra desde o impacto social que causou ou vem causando ao longo do tempo.80

Hannelore Link propõe uma via intermediária: considerando incomple-tas a Estética da Recepção, centrada nas realizações da obra, e a História da Recepção, que examina o efeito causado pela circulação social do texto sobre a produção de um autor, decide somar as duas metades. De um lado, cabe ob-servar a influência do público, mais patente na literatura de massa, bem como seus opostos: a arte hermética, em que o autor renuncia à comunicação imedia-ta, e a pedagógica, quando a influência é desejada, agora, porém, pelo artista, que escreve para agir sobre a audiência. De outro, a obra afeta um universo social, que se oferece como matéria de pesquisa: as influências exercidas por um criador sobre outros escritores, o mercado de que participa, as instituições encarregadas de sua propagação.

H. Link quer, igualmente, investigar a concretização do texto, também aqui fundindo dois conceitos precedentes: o de concretização enquanto recons-trução da intenção original, escudada em R. Ingarden; e o de concretização

79 GRIMM, Günther. Rezeptionsgeschichte. München: Fink, 1977. p. 61.80 Cf. GRIMM, G. op. cit. E GRIMM, Günther (Hrsg.). Literatur und Leser. Theorien und Modelle zur Rezeption

literarischer Werke. Stuttgart: Reklam, 1975.

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enquanto lisibilidade, vale dizer, na condição de possibilidade de decodificação do texto em cada época, segundo a definição do Estruturalismo tcheco. A reu-nião desses dois significados forma a “concretização sintética”, que verifica sua realização tanto no ângulo do texto, quanto do público e do período histórico.81

Hans Ulrich Gumbrecht pertenceu por algum tempo à Escola de Constança. Aluno de Jauss e, depois, professor naquela Universidade, partici-pou do movimento de renovação da ciência literária alemã, embora não tenha colaborado nas primeiras reuniões do grupo Poetik und Hermeneutik.

Seu trabalho de pesquisa, como os anteriormente citados, vai na direção da História e da Sociologia. Apoiado nas teses de outro professor em Constança, Thomas Luckmann, estuda os modos como se formam e se constituem os sen-tidos circulantes na sociedade. A ação social não se vincula apenas ao compor-tamento e à divisão da sociedade em classes; relaciona-se também a uma ordem de concepções que dão consistência, unidade e identidade à vida em grupo. A literatura participa ativamente desse mecanismo, pois tem papel formador; portanto, pode-se, a partir dela, reconstituir o conhecimento coletivo, o saber circulante, responsável pela significação e relevâncias das ideias e atitudes no conjunto das atividades sociais.82

Nessas propostas, bem como em outras,83 é fácil notar como a perspectiva histórica e/ou sociológica predomina sobre a estética, quando da determinação da recepção. Além disto, concebe-se o leitor antes como entidade coletiva, e não individual, consequência lógica do foco escolhido. A ausência do ângulo estético também se justifica: tanto Grimm, como Gumbrecht, embora desde premissas diversas, veem o valor como resultado, cambiante no tempo, da rede de ideias vigentes.

Todavia, parece não ser injusto afirmar que não conseguem resolver te-oricamente um tema caro a Jauss, de certo modo marginalizando-o: o da

81 Cf. LINK, Hannelore. op. cit.82 Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Sobre os interesses cognitivos, terminologia básica e métodos de uma ciência

da literatura fundada na teoria da ação. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). op. cit.83 As pesquisas sobre a leitura contam também com uma vertente em que predomina a perspectiva empírica, in-

vestigando, por meio de entrevistas dirigidas diretamente a leitores reais, o comportamento e a preferência do público. Cf. por exemplo VIEHOFF, Reinhold. Über ein Versuch, den Erwartungshorizont zeitgenössicher Literaturkritik empirisch zu objektivieren. Zeitschrift für Literaturwissenchaft und Linguistik 6 (21): 96 – 124. 1976. E ZIMMERMANN, Bernhard. Der Leser als Produzent: Zur Problematik der rezeptionsästhetischen Methoden. Zeitschrift für Literaturwissenchaft und Linguistik 4 (15): 12 – 26. 1974.

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experiência estética, que resgata o leitor enquanto indivíduo e impede sua di-luição nas idas e vindas das influências e ideologias dominantes.

Uma das polêmicas mais intensas provocadas por Jauss e a Estética da Recepção durante os anos 1970 foi com o Marxismo, sobretudo com seus representantes na então Alemanha Oriental. Seu principal interlocutor foi Manfred Naumann, que, em 1973, publicou o livro Gesellschaft – Literatur – Lesen (Sociedade – Literatura – Leitura). Sua tese funda-se na noção de Rezeptionsvorgabe, termo que se refere ao processo, determinado pela obra, de esta antecipar ou prefigurar sua recepção. Jauss rejeita a proposta de Naumann, a quem acusa de ainda estar preso à estética da representação e adotar os con-ceitos de efeito e recepção tão somente para injetar sangue novo num tema esgotado em meio às suas contradições.84

Robert Weimann representa, melhor que Naumann, as pesquisas reali-zadas na então República Democrática da Alemanha, orientadas para a re-cepção. Situa a esta última no campo da História da Literatura, neste ponto irmanando-se ao professor de Constança; mas acentua que, se é importante estudar as circunstâncias de leitura, não se deve abandonar as circunstân-cias de produção: “A estrutura da literatura correlaciona-se com sua função na sociedade, e esta correlação precisa ser estudada em termos de ‘gênese’ (ou Entstehungsgeschichte) e ‘impacto’ (Wirkungsgeschichte).”.85

Segundo Weimann, o processo literário tem duas faces: o da escrita, com-preendido quando associado ao momento da criação do texto, afetada pelo contexto da época e sociedade vivido pelo escritor; e o da leitura. O primeiro é importante, porque determina o aparecimento da obra; mas tem seus limites, por se restringir àquele período de tempo. Enquanto que o segundo não tem balizas, assegurando, além disso, a vitalidade daquela: “A estrutura nasce no processo genético, mas vive no processo de leitura e interpretação: ela é afetada pelas perspectivas sociais e individuais de seus leitores e críticos.” (p. 8).

84 Cf. JAUSS, H. R. Zur Fortsetzung des Dialogs zwischen ‘bürgerlicher’ und ‘materialistischer’ Rezeptionsästhetik. In: WARNING, Rainer (Hrsg.). op. cit.

85 WEIMANN, Robert. Structure and Society in Literary History. Studies in the History and Theory of Historical Criticism. Baltimore & London,:The Johns Hopkins University Press, 1984. Esta é a versão ampliada da edição publicada originalmente em 1976. As demais citações são retiradas deste texto, sendo indicada a página onde se encontram.

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Weimann extrai dessa circunstância a por ele denominada “dialética da significação passada e do sentido presente”, que explica a relação entre a gênese e a recepção (ou efeito) da obra. Por isso, aceita-se o estudo da recepção, não abre mão do exame das origens literárias, possível tão somente dentro de uma estética da representação. O trecho transcrito a seguir sintetiza este objetivo, nascido da conciliação de duas tendências, cuja incompatibilidade congênita não é questionada pelo Autor:

Enfatizar apenas a Darstellungsästhetik (estética da representa-ção) leva a um tratamento formalizado ou absoluto da estrutura e abstrai a obra da história de seus leitores e o processo de sua comunicação e sobrevivência no presente. Enfatizar apenas a Rezeptionsästhetik (estética da recepção) leva a um gênero plura-lista de relativismo que abstrai a obra da história de sua criação; ignora o fato de que a estrutura da obra (embora afetada e per-manentemente redefinida por leitores e críticos) é dada historica-mente. É neste sentido que estrutura e função, assim como gênese e recepção, podem ser vistas como objetos complementares da crítica histórica. (p. 13).

Pequeno balanço final

Nascida como contestação e se autoclassificando de “provocação”, a Estética da Recepção não poderia ficar à margem de críticas e polêmicas. Com as li-mitações que seus críticos apontaram – a principal delas, relativa à natureza literária do conceito de leitor, é, todavia, confirmada com um objetivo desejado por Jauss86 – ela tem igualmente seus méritos, contribuindo para o alargamen-to das fronteiras da Teoria da Literatura, cuja indiferença para com o leitor, se talvez não pudesse ser considerada tão grande quanto pretendia Jauss, era, ainda assim, evidente.

Enquanto conjunto de ideias, a Estética da Recepção apresenta coerência de concepções e organização interna, introduz uma terminologia, ainda que importe boa parte do vocabulário da Hermenêutica, e explicita sua metodolo-gia. Reconhece alguns de seus limites e, ao mesmo tempo, procura ampliar sua abrangência, incorporando concepções que permitem esclarecer sobretudo as

86 Cf. JAUSS, H. R. Ästhetische Erfahrung und Literarische Hermeneutik. Frankfurt: Suhrkamp, 1984. p. 696.

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relações entre a literatura e a vida prática. Sob esse aspecto, cumpre mencionar, ainda que de passagem, a contribuição de W. Iser, mencionado a propósito da estrutura de apelo do texto e do conceito de leitor implícito, e K. Stierle, que refletem sobre a função da ficção e do imaginário que embasam, mas ao mesmo tempo são fertilizadas por elas, as análises de Jauss sobre o lugar da literatura na existência individual.87

Assim, se, por um lado, a Estética da Recepção motiva polêmicas, dissidên-cias e pesquisas que contrariam alguns de seus princípios, por outro, ela não se reduz ao autor aqui colocado em primeiro plano. As ideias de Iser e Stierle, localizadas no campo específico da Teoria da Literatura, indicam seus desdo-bramentos internos e conferem-lhe consistência, mostrando ainda não proce-derem de um único pensador, isolado dos demais. Pelo contrário, o caráter coletivo e solidário dessa produção intelectual se evidencia tão logo se constata que Jauss via de regra antecipa suas pesquisas nos colóquios patrocinados pelo grupo Poetik und Hermeneutik. Essa circunstância indica suplementarmente estarem elas fundadas no diálogo e na discussão pública, coerente com o prin-cípio da pergunta e da resposta, seguidamente reiterado pelo autor.

O papel dessas ideias, por sua vez, transcende o grupo e o local onde apa-receram. Sua contribuição para a História da Literatura pode ser avaliada a partir das revisões dos autores do passado. Além disso, parece concretizar o objetivo a que se propõe, reabilitando a historicidade da literatura, não por torná-la outra vez dependente da História, e sim por associá-la à experiência estética que deflagra. Ao contrário dos predecessores, e mesmo de seus críticos, Jauss não procura somar funções diferentes, e sim mostrar como na primeira, a histórica, encontra-se a segunda, a estética, e vice-versa.

Igualmente importante é a sua contribuição para a Literatura Comparada, que subordina à História da Literatura, por esta consistir a base de sua ciência da literatura. Este vínculo funda-se na natureza histórica da obra de arte, foco que ilumina todas as demais questões. Pela mesma razão, critica a teoria da

87 Cf. as obras citadas de Wolfgang Iser; STIERLE, Karlheinz. Text als Handlung. München: Fink, 1975; JAUSS, Hans Robert. Die kommunikative Funktion des Fiktiven. In: JAUSS, H. R. Ästhetische Erfahrung und Literarische Hermenutik. Frankfurt: Suhrkamp, 1984.

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intertextualidade que, como a Literatura Comparada de outras décadas, re-nuncia à visão histórica e separa a literatura da vida social:

Supõe-se um diálogo idealista entre texto e texto, num univer-so onde tudo é texto e cada texto, tão-somente a soma de outros textos, como se um texto pudesse falar a qualquer época, sem a interferência dos leitores.88

Desde o início apostando no caráter histórico da literatura, Jauss vale-se dele para embasar suas teses, afirmar a identidade de sua teoria e, sobretudo, superar a tendência metafísica que a Poética carrega desde suas origens. Um de seus críticos, R. Holub, reconhece essa virtude,89 e ela não é negligenciá-vel: apoiado na História, Jauss sabe que os conceitos são transitórios e que é uma ambição fadada ao fracasso acreditar que as significações são objetivas e transmitidas de uma vez para sempre. Sabe que esta afirmação pode ser virada contra ele, mas previne-se: seus princípios contêm a convicção de que tudo é relativo, e se não dispomos de balizas para medir esta relatividade, arriscamos absolutizar o que precisa ser compreendido dentro das devidas proporções.

Esse posicionamento é, em si mesmo, uma lição; todavia, as ideias que reveste podem igualmente ser transportadas para o ensino, passagem não de todo arbitrária, pois foi a falência de um modelo pedagógico que estimulou o autor a repensar a ciência literária.

Sua crítica à História da Literatura permanece válida, pois o modelo tra-dicional descrito ainda vigora na escola. Porém, a proposta de mudança de foco gera consequências suplementares: colocar o leitor sob o spot da atenção teórica significa trazer o professor e o aluno para esse centro. São eles que de-sempenham a função de interlocutores diante da obra literária, representando o interesse provindo do presente e o novo horizonte a questionar a obra pelo confronto estabelecido entre os dois tempos em que ela se situa, conforme o jogo de ubiquidade de que só a arte é capaz.

A valorização da experiência estética, que confere ao leitor um papel pro-dutivo e resulta da identificação desse com o texto lido, enfatiza a ideia de que

88 JAUSS, The Dialogical... p. 61.89 Cf. HOLUB, Robert. Reception Theory. A Critical Introduction. London and New York: Methuen, 1984.

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uma obra só pode ser julgada do ponto de vista do relacionamento com seu destinatário. Os valores não estão pré-fixados, o leitor não tem de reconhecer uma essência acabada que preexiste e prescinde de seu julgamento. Pela leitura ele é mobilizado a emitir um juízo, fruto de sua vivência do mundo ficcional e do conhecimento transmitido. Ignorar a experiência aí depositada equivale a negar a literatura enquanto fato social, neutralizando tudo que ela tem condi-ções de proporcionar.

Porque ela produz efeitos, Jauss pode atribuir-lhe índole formadora. Quando age sobre o leitor, convida-o a participar de um horizonte que, pela simples razão de provir de um outro, difere do seu. É solidária e diferente ao mesmo tempo, sintetizando nesse aspecto o significado das relações sociais. Quando se soma a isso o fato de que uma obra de época diversa reatualiza a experiência do passado, de outra maneira inacessível, compreende-se em que medida a literatura também possibilita um relacionamento histórico e tempo-ral praticável apenas dessa maneira. Eis por que Jauss sublinha seguidamente a natureza emancipatória da arte literária: ela, de algum modo, arranca o indiví-duo de sua solidão e amplia suas perspectivas, esse alargamento do horizonte dando-lhe a dimensão primeira do que pode vir a ser.

A educação contém igualmente essa utopia liberadora, de modo que pode concretizá-la através da literatura, sem ter de contrariar sua natureza, nem a da arte. Para tanto, basta deixar obras e leitores falarem. Como o ensino não tem se comportado dessa maneira, vem desmentindo a função iluminista que traz das origens. A denúncia de Jauss atinge, sob esse aspecto, outros alvos, além dos inicialmente apontados; mas seu projeto pode igualmente obter resultados para além das fronteiras da literatura, indicando em que medida tem cunho social e está comprometido com o presente. Se as lições anteriores ainda não forem suficientes, esta última por si só afiança a validade de todo o trajeto.

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Bibliografia comentada

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1) Obras de Hans Robert Jauss (seleção)

I.a) – Livros:Literaturgeschichte als Provokation. Frankfurt: Suhrkamp, 1970.Contém a versão definitiva da conferência apresentada e primei-

ramente publicada em 1967: “Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft” (A História da Literatura como provocação da ciên-cia literária). Constam do livro também os seguintes ensaios: “Literarische Tradition und gezenwärtiges Bewubstein der Modernität” (Tradição literária e consciência atual da modernidade); “Schlegels und Schillers Replik auf die ‘Querelle des Anciens et des Modernes’” (A resposta de Schlegel e Schiller à ‘Querelle des Anciens et des Modernes’); “Das Ende der Kunstperiode – Aspekte der literarischen Revolution bei Heine, Hugo und Stendhal” (O fim do período artístico – Aspectos da revolução literária em Heine, Hugo e Stendhal); “Geschichte der Kunst und Historie” (História da arte e narrativa histórica).

Traduções:a) em língua portuguesa:“A história literária como desafio à ciência literária”. In: JAUSS, Hans

Robert. História literária como desafio à ciência literária. Literatura medieval e teoria dos gêneros. Porto: Livros Zero, 1974. Contém apenas a tradução da conferência.

A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. São Paulo: Ática, 1994. Contém apenas a tradução da conferência.

b) em espanhol:“La historia literária como provocación de la ciencia literária”. In:

GUMBRECHT, Hans Ulrich et alii. La actual ciencia literária alemana. Salamanca: Anaya, 1971. Contém apenas a tradução da conferência.

La literatura como provocación. Barcelona: Península, 1976. Dos textos que compõem a edição alemã original, só não tem a tradução do ensaio sobre Schlegel e Schiller.

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c) em francês:Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978. Contém a tradu-

ção da conferência e dos ensaios: “Tradição literária...” e “História da arte e...”.d) em inglês:Towards an Aesthetic of Reception. Minneapolis: University of Minnesota

Press, 1982. Traz a tradução da conferência e do ensaio sobre história da arte.

Kleine Apologie der Ästhetischen Erfahrung. Konstanz: Verlag der Universität Konstanz GMBH, 1972.

Trata-se da conferência apresentada em 1972, em que reivindica a retoma-da dos estudos sobre a importância e o lugar da experiência estética no contex-to da Teoria da Literatura e da Estética.

Tradução:“Petite apologie de l’expérience esthétique”. In: JAUSS, Hans Robert. Pour

une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978.

Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik. Frankfurt: Suhrkamp, 1977.

Constitui o primeiro volume dedicado ao estudo da experiência estética e a Hermenêutica Literária. Desenvolve as teses apresentadas na publicação anterior, ainda não se aprofundando na questão da Hermenêutica Literária.

Traduções:a) em língua portuguesa:LIMA, Luiz Costa (Org.). A literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1979. Contém a tradução do Prefácio e do Capítulo A3.b) em francês:Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978. Contém a tradu-

ção do Capítulo E, La Douceur du foyer, sobre a poesia lírica francesa publicada em 1857.

Poétique 39: este número da revista é todo dedicado à Estética da Recepção,

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contendo a tradução do Capítulo A3 da obra de Jauss.c) em inglês:Aesthetic Experience and Literary Hermeneutics. Minneapolis: University

of Minnesota Press, 1982. Trata-se da tradução integral do volume de Jauss.

Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik. Frankfurt: Suhrkamp, 1982.

Trata-se da edição definitiva do estudo sobre a experiência estética e a Hermenêutica Literária. Contém quase todos os ensaios pertencentes ao primeiro volume e mais os estudos teóricos e analíticos que fundam a Hermenêutica Literária e aplicam suas principais noções.

Traduções:Além das traduções citadas anteriormente, citam-se as seguintes:a) em língua portuguesa: “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”. In: LIMA, Luiz

Costa (Org.). Teoria da Literatura em suas fontes. V. 2. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984.

b) em francês:Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978. Tradução do

ensaio sobre as Ifigênias de Racine e Goethe.Vários. Problems actuels de la lecture. Paris: Edition Clancier-Guinaud,

1982. Tradução parcial do ensaio sobre o texto poético na mudança de hori-zonte de leitura.

c) em inglês:Towards an Aesthetic of Reception. Minneapolis: University of Minnesota

Press, 1982.Question and Answer. Forms of Dialogic Understanding. Trad. de Michael

Hays. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989.“The Identity of the Poetic Text in the Changing Horizon of

Understanding”. In: VALDÉS, Mario J.; MILLER, Owen (ed.) Identity of the Literary Text. Toronto, Buffalo and London: University of Toronto Press,

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1985. Trata-se da tradução do texto introdutório à terceira parte de Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik (edição definitiva de 1982), cujo título original é “Horizontstruktur und Dialogizität”.

I.b) – Ensaios não incluídos em livros ou versões originais de ensaios de-pois incluídos em livros:

“Paradigmawechsel in der Literaturwissenschaft”. Linguistische Berichte. 1 (3): 44 – 56. 1969.

“Levels of Identification of Hero and Audience”. New Literary History. 5 (2): 283 – 317. Inverno de 1974.

Tradução da exposição feita no colóquio sobre “Negativität und Identifikation” (Negatividade e Identificação), patrocinado pelo grupo Poetik und Hermeneutik. Foi publicado com alterações no primeiro volume de Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik e assim conservado na edi-ção definitiva desse estudo.

“Der Leser als Instanzeiner neuen Geschichte der Literatur”. Poetica 7: 325 – 344. 1975.

Parcialmente traduzido in: VALDÉS, Mario J.; MILLER, Owen J. (ed.) Interpretations of Narrative. Toronto, Buffalo & London: University of Toronto Press. 1978.

“Goethes und Valerys Faust – Zur Hermeneutik von Frage und Antwort”. Comparative Literature 28 (3): 201 – 232. Verão de 1976.

Traduzido in: JAUSS, Hans Robert. Towards an Aesthetic of Reception. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982. Publicado com cortes nas observações de ordem metodológica in: JAUSS, Hans Robert. Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik.

“Esthétique de la réception et communication littéraire”. Critique 37 (413): 1116 – 1180. Outubro de 1981.

Tradução do ensaio “Rezeptionsästhetik und literarische Komunikation”,

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publicado originalmente in: SUND, H.; TIMMERMANN, M. (Hrsg.). Auf den Weg gebracht – Idee und Wirklichkeit der Gründung der Universität Konstanz. Konstanz: Verlag der Universität Konstanz, 1979.

“Zur Abgrenzung und Bestimmung einer literarischen Hermeneutik”.

In: FUHRMANN, Manfred; JAUSS, Hans Robert; PANNENBERG, Wolfahrt (Hrsg.). Text und Applikation. Theologie, Jurisprudenz und Literaturwissenschaft im hermeneutischen Gespräch. München: Fink. 1981.

Traduzido parcialmente in: HERNADI, Paul (ed.). What is Criticism? Bloomington: Indiana University Press, 1981. Republicado com alterações na versão definitiva de Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik.

The Dialogical and the Dialetical Neveu de Rameu: How Diderot adopted Socrates and Hegel adopted Diderot. Berkeley: The Center for Hermeneutical Studies in Hellenistic and Modern Culture, 1983.

Este ensaio também se encontra na versão final de Ästhetische Erfahrung und literarische Hemeneutik.

II) – Outras vertentes relacionadas à Estética da Recepção

II. a) A Sociologia da LeituraESCARPIT, Robert. Sociologie de la littérature. Paris: PUF, 1978. (1. ed.:

1958)Com este livro, Escarpit procura lançar as bases de uma sociologia da lite-

ratura voltada ao exame da circulação social da literatura e suas relações com o público leitor.

___ et alii. Le littéraire et le social. Elements pour une sociologie de la litté-rature. Paris: Flammarion, 1970.

Além dos ensaios de Escarpit, esta coletânea reúne a produção de outros membros da Escola de Bordéus, examinando as relações entre a literatura e o público leitor.

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SCHÜCKING, L. L. The Sociology of Literary Taste. Chicago: The University of Chicago Press, 1966.

Publicado originalmente em alemão, foi com a versão em inglês que L. L. Schücking popularizou suas ideias relativas à importância do gosto literário para a difusão e repercussão de uma obra de arte.

II. b) O Estruturalismo tchecoEIKHENBAUM, B. et alii. Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto

Alegre: Globo, 1970.Reúne os ensaios mais conhecidos dos formalistas, incluindo os de V.

Chklovsky e I. Tinianov, respectivamente, sobre a arte como procedimento e a evolução literária. Reeditados em TODOROV, Tzvetan. Teoria da literatura. Textos dos formalistas russos. São Paulo: UNESP, 2013.

MUKAROVSKI, Jan. Escritos de Estética y Semiótica del Arte. Barcelona: Gustavo Gili, 1977.

Coletânea bastante representativa do pensamento do principal membro do Círculo Linguístico de Praga. Inclui a tradução do ensaio “Função, norma e valor estético como fatos sociais”.

TOLEDO, Dionísio (Org.). Círculo Linguístico de Praga: estruturalismo e Semiologia. Porto Alegre: Globo, 1978.

Nesta coletânea estão traduzidos os ensaios de J. Mukarovski, sobre a arte como fato semiológico, e de F. Vodicka, sobre a história das repercussões de uma obra literária, importantes para a compreensão da visão sociológica e his-tórica do Estruturalismo tcheco.

II. c) O Reader-Response CriticismFISH, Stanley. Is there a Text in this Class? The Authority of Interpretative

Communities. Cambridge, Ma & London: Harvard University Press, 1980.Reúne os ensaios publicados pelo autor durante a década de 1970, ex-

pondo suas teses relativas à Estilística Afetiva e a atuação das comunidades

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interpretativas.

TOMPKINS, Jane P. (ed.). Reader-Response Criticism. From Formalism to Post-Structuralism. Baltimore & London: The Johns Hopkins University Press, 1980.

Contém os principais ensaios de S. Fish, G. Prince e M. Rifaterre que fun-dam e caracterizam o Reader-Response Criticism. São dignos de nota, igual-mente, os dois textos produzidos pela organizadora, avaliando a corrente crí-tica em questão.

II. d) Wolfgang Iser e a Estética do Efeito (Wirkungsästhetik)– Livros:Der implizite Leser. Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis

Beckett. München: Fink, 1979.W. Iser, a partir da noção de leitor implícito, examina obras da literatu-

ra inglesa, do século XVII ao XX, concentrando-se principalmente na ficção romanesca.

Tradução:The Implied Reader. Patterns of Communication in Prose Fiction from

Bunyan to Beckett. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1974.

Der Akt des Lesens. München: Fink, 1976.É a obra mais importante de Iser no âmbito de seus estudos sobre o leitor,

em que aprofunda sua concepção relativa à estrutura comunicacional dos tex-tos literários e fundamenta a teoria do efeito estético produzido pela arte em seu destinatário.

Traduções:a) em língua portuguesa:LIMA, Luiz Costa (Org.). A literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1979. Contém a tradução parcial da quarta secção do livro, relativa à interação entre o texto e o leitor.

O ato da leitura. Uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer.

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Rio de Janeiro: Editora 34, 1996-1999. 2v. b) em inglês:The Act of Reading. A Theory of Aesthetic Response. Baltimore: The Johns

Hopkins University Press, 1980. Trata-se da tradução integral da edição alemã.

c) em francês:L’act de lecture. Théorie de l’effet esthétique. Paris: Mardaga, 1985.

– Ensaios (seleção):“Die Appelstruktur der Texte”. In: WARNING, Rainer (Hrsg.).

Rezeptionsäathetik. Theorie und Praxis. München: Fink, 1975.“A indeterminação e a resposta do leitor na prosa de ficção”. Trad. de Maria

Angela Aguiar. Cadernos do Centros de Pesquisas Literárias da PUCRS. Série Traduções. Porto Alegre, V. 3, N. 2, março de 1999.

“Der Lesevorgang”. In: WARNING, Rainer (Hrsg.). op. cit. Traduzido para o inglês, com o título de “The Reading Process: A

Phenomenological Approach”, in: ISER, Wolfgang. The Implied... E também in: TOMPKINS, Jane P. (ed.). op. cit.

“Die Wirklichkeit der Fiktion”. In: WARNING, Rainer (Hrsg.). op. cit.Traduzido para o inglês, com o título de “The Reality of Fiction”, no vo-

lume VII de New Literary History, publicado no outono de 1975. Em francês, com o título de “La Fiction en Effet”, foi editado no número já mencionado da revista Poétique.

III) – Sobre a Estética da Recepção e vertentes associadas:BÜRGER, Peter. Vermittlung – Rezeption – Funktion. Ästhetische Theorie

und Methodologie der Literaturwissenschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1979.DE MAN, Paul. Introduction. In: JAUSS, Hans Robert. Towards an

Aesthetic of Reception. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982.GADAMER, Hans Georg. Verdad y metodo. Salamanca: Sígueme, 1979.GARVIN, Harry (ed.), Theories of Reading, Looking and Listening.

Lewisburg: Bucknell University Press; London & Toronto: Associated

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University Press, 1981.GODZICH, Wlad. Introduction. In: JAUSS, Hans Robert. Aesthetic

Experience and Literary Hermeneutics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982.

GRIMM, Günther. Rezeptionsgeschichte. München: Fink, 1977.___ (Hrsg.). Literatur und Leser. Theorien und Modelle zur Rezeption lit-

erarischer Werke. Stuttgart: Reklam, 1975.HOHENDAHL, Peter Uwe. Introduction to Reception Aesthetics. New

German Critique 4 (1): 29 – 63. Inverno de 1977.HOLUB, Robert. Reception Theory. A Critical Introduction. London &

New York: Methuen, 1984.LEENHARDT, Jacques. Towards a Sociology of Reading. In:

SULEIMAN, Susan; CROSMAN, Inge (Org.) The Reader in the Text. Essays on Audience and Interpretation. Princeton: Princeton University Press, 1980.

LIMA, Luiz Costa. “O leitor demanda (d)a literatura”. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). A literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

___. (Org.). Teoria da Literatura em suas fontes. 2 v. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984.

LITTAU, Karin. Theories of Reading. Books, bodies, and Bibliomania. Cambridge: Polity Press, 2006.

LINK, Hannelore. Rezeptionsforschung. Eine Einführung in Methode und Probleme, Stuttgart: Kohlhammer, 1980.

ROTHE, Arnold. O papel do leitor na crítica alemã contemporânea. Letras de Hoje 13 (39): 7 – 18. Março de 1980.

SCHMIDT, Henry J. Text-Adequate Concretizations and Real Readers: Reception Theory and its Applications. New German Critique 6 (2): 157 – 169. Primavera de 1979.

SEGERS, Rien T. Readers, Text and Author: Some Implications of Rezeptionsästhetik. Yearbook for Comparative and General Literature 24: 15 – 23. 1975.

___. An Interview with Hans Robert Jauss. New Literary History XI (1): 83 – 95. Autumn 1979.

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160 Estética da Recepção e História da Literatura

STAROBINSKY, Jean. Preface. In: JAUSS, Hans Robert. Pour une es-thétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978.

SULEIMAN, Susan; CROSMAN, Inge. The Reader in the Text. Essays on Audience and Interpretation. Princeton: Princeton University Press, 1980.

WARNING, Rainer. Rezeptionsästhetik. Theorie und Praxis. München: Fink, 1975.

WEINRICH, Harald. Para una historia literaria del lector. In: GUMBRECHT, Hans Ulrich et alii. La actual ciencia literaria alemana. Salamanca: Anaya, 1971.

ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: SENAC, 2001.

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Vocabulário crítico

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Concretização – Conceito utilizado por W. Iser, que o retoma de R. Ingarden e F. Vodicka, define a atividade do leitor, de preenchimento das la-cunas ou vazios de um texto, deflagrando o processo de comunicação próprio à literatura.

Distância estética – Corresponde ao intervalo entre uma criação artística renovadora e os códigos estéticos vigentes; quanto maior a distância, maior a originalidade e o valor da obra, menor também a probabilidade de o público aceitá-la e entendê-la.

Efeito – Equivale à resposta ou à reação motivada pelo texto no leitor; pode significar igualmente o impacto causado no sistema estético ou histórico de um dado período.

Emancipação – Uma obra renovadora, ao desafiar um código vigente, ofe-rece ao leitor novas dimensões existenciais. Nessa medida, libera-os dos li-mites cotidianos e da dominação dos aparelhos institucionais. A Estética da Recepção, ao resgatar a natureza emancipatória de uma obra, também a eman-cipa ou salva-a dos laços constrangedores da História da Literatura tradicional.

Estrutura de apelo – Segundo W. Iser, apoiado em R. Ingarden, um texto literário não é uma composição fechada; pelo contrário, contém lacunas e pon-tos de indeterminação, que exigem a concretização (v.) do leitor e exercem certo efeito (v.) sobre ele.

Experiência estética – Fruto do relacionamento da obra e o leitor, é o aspec-to fundamental de uma teoria fundada na recepção. Compõe-se de três etapas, interrelacionadas: a poiesis, pois o recebedor participa da produção do texto; a aisthesis, quando este alarga o conhecimento que o destinatário tem do mundo; e a katharsis, durante a qual ocorre o processo de identificação (v.) que afeta as possibilidades existenciais do leitor.

Fusão de horizontes – Conceito emprestado de Gadamer, significa o pro-cesso mesmo de intercâmbio do leitor com uma obra literária do passado, que,

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integrada na origem a um horizonte, apropria-se dos horizontes dos novos contextos temporais nos quais circula. Portanto, não apenas cada leitor con-tribui com seu horizonte, como recebe da obra os horizontes a que ela já se amalgamou com o decorrer da História.

Hermenêutica Literária – Ramo da Hermenêutica cuja organização me-todológica é exigida e providenciada por H. R. Jauss. Supõe três etapas: a da compreensão do texto, decorrente da percepção estética e associada à expe-riência primeira de leitura; a de interpretação, quando o sentido do texto é reconstituído no horizonte da experiência do leitor; e a de aplicação, quando as interpretações prévias são trabalhadas e medidas a história de seus efeitos (v.).

História dos efeitos – H. G. Gadamer refere-se à consciência da história dos efeitos, que dá conta do impacto dos eventos passados (históricos) sobre o presente e confunde-se à tradição. H. R. Jauss transporta-a à Hermenêutica Literária, que, na etapa da aplicação, registra o impacto de uma obra sobre o público leitor e o sistema literário.

Horizonte das expectativas – R. Holub assim define esta noção: “sistema in-tersubjetivo ou estrutura de espera, um ‘sistema de referências’ ou um esquema mental que um indivíduo hipotético pode trazer a qualquer texto.” (Reception Theory, p. 59). Uma das tarefas da Estética da Recepção é a reconstrução desse horizonte, a fim de esclarecer o relacionamento da obra com o público.

Identificação – Equivale à resposta do leitor quando da experiência estética e tem um significado tanto intelectual, quanto afetivo. Por isso, uma obra pode atuar sobre a audiência, oferecendo-lhe padrões de identificação e também emancipando-a (v. emancipação).

Leitor – Segundo H. R. Jauss, consiste no foco a partir do qual cumpre examinar a literatura, a Estética da Recepção sendo o resultado dessa virada. Ele distingue entre o leitor implícito, noção importada das ideias de W. Iser, discernindo a partir das estruturas objetivas do texto, e o leitor explícito, in-divíduo histórico que acolhe positiva ou negativamente uma criação artística,

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sendo, pois, responsável pela recepção (v.) propriamente dita dessa.

Lógica da pergunta e da resposta – Trata-se da principal categoria metodo-lógica de Jauss, importada da Hermenêutica e Gadamer. Possibilita a inter-pretação do texto e a reconstituição do diálogo deste com seu público original e subsequente. Seu ponto de partida é a afirmação de R. G. Collingwood, se-gundo o qual se compreende um texto quando se compreende a pergunta de que ele foi a resposta.

Recepção – Refere-se à acolhida alcançada por uma obra à época de seu aparecimento e ao longo da História. Em certo sentido, dá conta de sua vita-lidade, verificável por sua capacidade de manter-se em diálogo com o público.

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