Estado e Politicas Sociais Fundamentos e Experiencias

306
ORGANIZADORES Júnior Macambira Francisca Rejane Bezerra Andrade ESTADO E POLÍTICAS SOCIAIS FUNDAMENTOS E EXPERIÊNCIAS

description

Estado e Politicas Sociais Fundamentos e Experiencias

Transcript of Estado e Politicas Sociais Fundamentos e Experiencias

  • ORGANIZADORES

    Jnior MacambiraFrancisca Rejane Bezerra Andrade

    ESTADO E POLTICAS

    SOCIAISFUNDAMENTOS

    E EXPERINCIAS

  • ESTADO E POLTICAS SOCIAIS: FUNDAMENTOS E EXPERINCIAS

  • ESTADO E POLTICAS SOCIAIS: FUNDAMENTOS E EXPERINCIAS

    Organizadores

    Jnior MacambiraFrancisca Rejane Bezerra Andrade

    FortalezaInstituto de Desenvolvimento do Trabalho

    Universidade Estadual do Cear2014

  • E79 Estado e polticas sociais: fundamentos e experincias / organizadores, Jnior Macambira, Francisca Bezerra Andrade ; autores, Marcio Pochmann ... [et al.]. Fortaleza : IDT, UECE, 2014.

    300 p

    ISBN 978-85-67936-01-7

    1. Polticas Sociais. 2. Estado. 3. Sociedade. I. Macambira, Jnior. II. Andrade, Francisca Bezerra. III. Pochmann, Marcio. IV. Ttulo.

    CDU: 323.2

    CONSELHO EDITORIAL

    Tania Bacelar de ArajoAmilton MorettoFernando Augusto Mansor de MattosTarcisio Patricio de ArajoRoberto Alves de LimaPierre Salama

    REVISO VERNACULARMaria Lusa Vaz Costa

    NORMALIZAO BIBLIOGRFICAPaula Pinheiro da Nbrega

    EDITORAO ELETRNICAPatrcio de Moura

    CAPAIldembergue Leite

  • SUMRIO

    APRESENTAO

    CAPTULO 1O ESTADO BRASILEIRO E OS DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO NO INCIO DO SCULO 21 ............................................................................................................13 Marcio Pochmann

    CAPTULO 2ATUALIDADES DA QUESTO SOCIAL, DA JUSTIA SOCIAL E DA GESTO DE POLTICAS PBLICAS ........................................................................................35 Maria do Socorro Ferreira Osterne

    CAPTULO 3RUPTURAS, CONTINUIDADES E LIMITES DAS NOVAS PROPOSTAS DE POLTICA SOCIAL ..................................................................................................... 57

    Carlos Alberto Ramos

    CAPTULO 4PADRES DE DESENVOLVIMENTO, MERCADO DE TRABALHO E PROTEO SOCIAL: A EXPERINCIA BRASILEIRA ENTRE AS DCADAS LIBERAL (1990) E DESENVOLVIMENTISTA (2000) ............................................................................79

    Jos Celso Cardoso Jr e Cludia Satie Hamasaki

    CAPTULO 5TRABALHO E INTERAO: INFLUNCIAS CONCEITUAIS PARA UMA POLTICA PBLICA DE QUALIFICAO PROFISSIONAL DA JUVENTUDE ......................................................................................................137

    Francisca Rejane Bezerra Andrade e Jnior Macambira

    CAPTULO 6POLTICAS PBLICAS E JUVENTUDE NA SOCIEDADE BRASILEIRA: CONTRIBUIES PARA O DEBATE ...................................................................159

    Liduina Elizabete Angelim Gomes da Silva

    CAPTULO 7POLTICAS PBLICAS DE JUVENTUDE NO BRASIL: RESGATE DE UMA TRAJETRIA EM CONSTRUO .........................................................................183

    Maria Celeste Magalhes Cordeiro e Josbertini Virginio Clementino

  • CAPTULO 8ENTRE MUROS: EDUCAO PROFISSIONAL COMO ESTRATGIA DE INSERO SOCIAL PARA ADOLESCENTES EM PRIVAO DE LIBERDADE ........................................................................................................203Ftima Regina Guimares Apolinrio

    CAPTULO 9POLTICAS DE INCLUSO PRODUTIVA E QUALIFICAO PROFISSIONAL: A EXECUO DO PRONATEC BRASIL SEM MISRIA E O SEGURO-DESEMPREGO NA BAHIA, NO CEAR E EM SERGIPE ............................................................... 227

    Franco de Matos e Danilo Fernandes Lima da Silva

    CAPTULO 10EM BUSCA DE MAIOR IGUALDADE DE GNERO NO MERCADO DE TRABALHO: NECESSIDADE DE POLTICAS PBLICAS MAIS APROFUNDADAS .............253Maria Cristina Cacciamali e Maria de Ftima Jos-Silva

    CAPTULO 11ARTESANATO COMPETITIVO: UM ESTUDO AVALIATIVO SOB O OLHAR DOS ARTESOS DE IBIAPINA-CE ................................................................................279Lcia de Ftima Coelho Lima

  • APRESENTAO

    Secularmente, a questo social est presente na sociedade brasileira. Ela expressa na desigualdade. Desigualdade de riqueza, de renda, de direitos, de acesso a oportunidades de educao e sade. E, nas abordagens transdisciplinares do desenvolvimento ela se revela como centralidade.

    Dada a relevncia deste tema, desenvolvimento e questo social, foi com grata alegria que recebi o livro Estado e polticas sociais: fundamentos e experincias, organizado por Jnior Macambira, pesquisador do IDT, e Francisca Rejane Bezerra Andrade, professora da UECE. Em 2013, haviam realizado, conjuntamente, a organizao de outro livro Trabalho e formao profi ssional: juventudes em transio.

    Estado e polticas sociais: fundamentos e experincias fruto da iniciativa do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT), em parceria com a Universidade Estadual do Cear (UECE), e contou com o apoio da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) do Governo do Cear. Li-o com voracidade e verifi quei o cumprimento de sua proposta desafi adora: abordar as experincias de polticas pblicas do Estado, notadamente aquelas desenvolvidas pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Governo do Estado do Cear (STDS), articul-las com outras interpretaes de pesquisadores engajados da rea e, assim, contribuir para o debate acerca das polticas sociais no Brasil e no Cear.

    A organizao de um livro com esta temtica tarefa rdua h infi nitos cortes e dimenses, o que aumenta o risco de se fi ndar com uma colcha de retalhos de artigos. No o caso desta obra. A despeito de no ser dividido em tomos, perceptvel o fi o condutor que alinhavou a ordenao dos trabalhos. Os trs primeiros tratam de fundamentos gerais. So abordadas questes cruciais: qual o tipo de estado que se deve ter para promover o desenvolvimento; como se avaliar uma proposta de poltica social, e o que questo social.

    Abre o volume o artigo O Estado brasileiro e os desafi os do desenvolvimento no incio do sculo 21, de Marcio Pochmann. O

  • texto, quase um ensaio, uma refl exo muito bem articulada acerca de como o Estado brasileiro se estruturou e as suas condies de insero no sculo XXI. De fato, o autor v a corrente crise mundial como uma oportunidade para o Brasil no cenrio internacional e chama a ateno para o imperativo de uma refundao do Estado, considerando trs problemticas: a necessidade de polticas pblicas totalizantes, a mudana do foco de atuao do Estado para polticas redistributivas (vis vis s polticas distributivas) e a reinveno do mercado em um cenrio onde predominam grandes grupos econmicos, com o Estado fomentando micro e pequenos negcios. O trabalho vai para alm de um simples diagnstico e realiza proposies para reformular o Estado a fi m de que ele possa, efetivamente, pr em marcha o projeto de desenvolvimento sonhado por muitos, nas palavras do autor.

    Maria do Socorro Ferreira Osterne, em Atualidades da questo social, da justia social e da gesto de polticas pblicas escreve texto elucidativo do ponto de vista conceitual. Esclarece o conceito de questo social, tambm identifi cada como excluso social; diferencia poltica pblica de poltica de Estado e, indo ao encontro das ideias de Pochmann, salienta os impactos sobre equidade e justia da setorializao das polticas sociais pblicas. Outro enfoque do trabalho a anlise da gesto social e da gesto estratgica, contrapondo-as enquanto formas de administrao da poltica pblica.

    Da necessidade e das dificuldades de avaliar a poltica social Carlos Alberto Ramos faz nascer Rupturas, continuidades e limites das novas propostas de poltica social. O autor enfrenta o desafio de revelar as limitaes de novos mtodos, utilizados costumeiramente em cincias mdicas, transpostos para a avaliao de polticas pblicas. Ramos se concentra no uso de metodologias de avaliao que utilizam experimentos aleatrios associados a grupos de controle. O autor alerta para a impossibilidade tanto geogrfica como temporal de extrapolao dos resultados desses experimentos e ressalta que muitas das variveis sociopolticas (instituies, distribuies de estoques de riqueza, estabilidade poltica etc.), associadas ao nvel de bem-estar das sociedades, no poderiam ter validaes mediante experimentao aleatria.

  • O quarto texto, de Jos Celso Cardoso Jr e Cludia Satie Hamasaki, denominado Padres de desenvolvimento, mercado de trabalho e proteo social: a experincia brasileira entre as dcadas liberal (1990) e desenvolvimentista (2000), trata de um alvo caro s polticas sociais: o mercado de trabalho. O artigo aborda as principais transformaes do mundo do trabalho nacional, entre 1990 e 2013, tendo como pano de fundo a poltica macroeconmica destas duas dcadas.

    Os quatro estudos seguintes aliceram-se em polticas pblicas para a juventude, sob diferentes prismas. A temtica oportuna tendo em vista que, no sculo XXI, a insero do jovem no mercado de trabalho tem se dado de forma precria e insegura, como revelam os dados da Organizao Internacional do Trabalho para 2010, onde se constata que a taxa de desemprego mundial na faixa etria de 15 a 24 anos 2,6 vezes superior mesma estatstica para os adultos.

    Francisca Rejane Bezerra Andrade e Jnior Macambira, tambm organizadores do livro, escreveram Trabalho e interao: infl uncias conceituais para uma poltica pblica de qualifi cao profi ssional da juventude, onde se examina a educao voltada para determinado perfi l profi ssional e constata-se que a educao objetivada para tornar o jovem competitivo frente realidade mundial padece da desvinculao da ideia do desenvolvimento de um cidado de direitos.

    O texto de Liduina Elizabete Angelim Gomes da Silva, Polticas pblicas e juventude na sociedade brasileira contribuies para o debate, que registra exame crtico das polticas pblicas destinadas aos jovens no Brasil, tem pontos de contato com as concluses de Andrade e Macambira, particularmente na crtica s polticas pblicas de carter economicista por apresentarem perda signifi cativa da viso totalizante da condio juvenil.

    Maria Celeste Magalhes Cordeiro e Josbertini Virginio Clementino, em Polticas pblicas de juventude no Brasil: resgate de uma trajetria em construo, do continuidade temtica da juventude e qualifi cao, ao realizarem a interpretao do termo juventude e a narrao da construo das polticas para a juventude implementadas desde 1986 no

  • Brasil at o Projovem, o principal programa do governo federal, nos dias hoje, com foco nos cidados na faixa etria entre 18 e 24 anos.

    J Entre muros: educao profi ssional como estratgia de insero social para adolescentes em privao de liberdade, de Ftima Regina Guimares Apolinrio, mostra um exemplo prtico de educao profi ssional gerido pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) junto ao Centro Educacional Cardeal Alosio Lorscheider (CECAL), no Estado do Cear. uma abordagem qualitativa do estudo de caso de treinamento profi ssional de jovens autores de atos infracionais graves e dos efeitos dessa aprendizagem sobre a autoestima e as expectativas de futuro.

    O texto Polticas de incluso produtiva e qualifi cao profi ssional: a execuo do Pronatec Brasil Sem Misria e o Seguro-Desemprego na Bahia, no Cear e em Sergipe, de Franco de Matos e Danilo Fernandes Lima da Silva, tem seleo espacial primorosa. O Nordeste brasileiro abriga o maior percentual de pobres do Pas, e os Estados do Cear, Bahia e Pernambuco servem de lar para cerca de 30% do total de pessoas residentes no Brasil com renda de at de salrio mnimo enquadradas, portanto em situao de vulnerabilidade social. Tendo em vista que esses programas tm como misso reinserir produtivamente essa parcela da populao atravs de educao inicial e continuada, mulheres e jovens representam uma parcela expressiva desse pblico-alvo. Desta forma, o texto pode oferecer subsdios a estudiosos de polticas sociais voltadas para o mercado de trabalho, para jovens e para mulheres.

    Os dois ltimos trabalhos do livro abordam gnero e mercado de trabalho. O primeiro, Em busca de maior igualdade de gnero no mercado de trabalho: necessidade de polticas pblicas mais aprofundadas, de Maria Cristina Cacciamali e Maria de Ftima Jos-Silva, trata explicitamente de igualdade de gnero, ao investigar o impacto do tempo de sada da desocupao sobre os diferenciais de salrios entre homens e mulheres. Compreender esta questo tm refl exos diretos sobre a elaborao de polticas pblicas como as licenas maternidade e paternidade. Segundo os modelos Probit utilizados, o tempo de sada da

  • desocupao responsvel por cerca de 25% da explicao da diferena salarial entre homens e mulheres, no Brasil.

    Por fim, Artesanato Competitivo: um estudo avaliativo sob o olhar dos artesos de Ibiapina-CE, de Lcia de Ftima Coelho Lima, toca, indiretamente, em questes de gnero, ao se debruar sobre o Projeto Artesanato Competitivo do Governo do Estado do Cear e suas repercusses na vida de 20 mulheres em Ibiapina-CE, que desenvolveram atividades socialmente aceitas e tratadas como femininas (bordado, croch).

    Em graus diversos, os dezesseis pesquisadores, com formao variada nas reas das cincias humanas e sociais aplicadas, que aceitaram o convite para participar deste livro, estudaram, refl etiram, avaliaram e propuseram mudanas nas polticas sociais do Estado brasileiro. So contribuies originais que, espera-se, possam auxiliar na edifi cao de uma trajetria autnoma do desenvolvimento brasileiro.

    Inez Silvia Batista Castro

    Professora do Curso de Economia da Universidade Federal do Cear

  • CAPTULO 1O ESTADO BRASILEIRO E OS DESAFIOS DO

    DESENVOLVIMENTO NO INCIO DO SCULO 21

    Marcio Pochmann1

    Marcio Pochmann1

    O sistema capitalista revela em suas crises peridicas momentos especiais de profunda reestruturao. Na realidade, oportunidades histricas em que velhas formas de valorizao do capital sinalizam esgotamentos, enquanto as novas formas ainda no se apresentam plenamente maduras no centro dinmico do mundo. Nestas circunstncias abrem-se, muitas vezes, possibilidades reais e efetivas de pases deslocados do centro dinmico do mundo virem a assumir algum grau de protagonismo no desenvolvimento mundial, outrora sob o comandado da antiga e desigual diviso hierrquica do poder global.

    De maneira geral, o Brasil tem demonstrado deter condies de aproveitar oportunidades histricas geradas nos momentos de profundas crises e reestruturao do capitalismo mundial. Na Grande Depresso capitalista entre 1873-1896, por exemplo, houve avano considervel na constituio de uma nova expanso econmica associada produo e exportao de matrias-primas e alimentos, aps vrias dcadas de regresso econmica derivadas do fi m do ciclo do ouro no sculo 18. Dado o conservadorismo da oligarquia rural prevalecente em grande parte dos pases da regio, os esforos

    1 Professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.

    13

  • reformistas do fi nal do sculo 19 terminaram sendo contidos frente ao ciclo de prosperidade proporcionado pela economia primrio-exportadora. O anacronismo republicano acomodado pelo liberalismo fez postergar por mais tempo a longa transio do sistema agrrio para a sociedade urbano-industrial, no obstante as reformas impulsionadas na dcada de 1880, como a poltica (do Imprio para a Repblica), e a trabalhista (do trabalho escravo para o livre).

    Na Grande Depresso iniciada em 1929, o Brasil novamente experimentou uma onda de reformas inditas ao at ento capitalismo primrio-exportador. Pelas mos de uma grande e heterognea frente poltica derrotada ao longo da Repblica Velha (1889-1930), houve avano signifi cativo na direo do desenvolvimento de suas foras produtivas urbanas, especialmente industriais, acompanhadas de avanos regulados por polticas sociais e trabalhistas aos ocupados formais nas cidades. Em menos de cinco dcadas a regio se tornou urbana, com reas industriais avanadas, embora menos da metade de sua fora de trabalho contasse com o sistema de proteo social e o trabalho, tendo em vista a postergao na realizao das reformas clssicas do capitalismo contemporneo (agrria, tributria e social). No ano de 1980, por exemplo, o Brasil situava-se entre as oito maiores economias capitalistas do mundo, embora ocupasse o terceiro posto de maior desigualdade do planeta e mais de 50% da populao vivesse na condio de misria.

    Na crise atual do capitalismo globalizado iniciada em 2008, o Brasil defronta-se com a possibilidade de protagonizar um novo salto desenvolvimentista aps a passagem de mais de duas dcadas da regresso econmica e social e sua contradio com a vigncia do regime democrtico sem paralelo em toda a sua histria. Para isso, contudo, o Pas trata de convergir para uma nova maioria poltica capaz de sustentar o desenvolvimento da regio em novas bases econmicas, sociais e ambientais, tendo por referncia as alteraes no papel do Estado.

    Em relao a isso, trs aspectos so explorados nas pginas a seguir, sendo o primeiro referente ao estabelecimento de inovadoras centralidades mundiais, e o segundo associado ao movimento de fortalecimento interno de uma nova maioria poltica. Na sequncia,

    14

  • volta-se aos desafi os do desenvolvimento a partir das novas e desafi adoras tarefas do Estado brasileiro.

    NOVAS CENTRALIDADES MUNDIAIS

    Na perspectiva histrica, o desenvolvimento e suas centralidades dinmicas mundiais sofreram importantes modifi caes. At a primeira metade do sculo 18, os pases asiticos respondiam pela maior parte da produo mundial, tendo em vista a combinao de grande dimenso populacional e territorial. Com a primeira Revoluo Industrial (motor a vapor, ferrovias e tear mecnico), a partir de 1750, o centro dinmico do mundo deslocou-se para o Ocidente, mais especialmente para a Inglaterra, que se transformou na grande ofi cina de manufatura do mundo por conta de sua original industrializao.

    A diviso internacional do trabalho resultante da produo e da exportao da manufatura inglesa, em relao aos produtos primrios exportados pelo resto do mundo, somente sofreu modifi caes importantes com o avano da segunda Revoluo Industrial (eletricidade, motor a combusto e automvel) no ltimo quartel do sculo 19. Naquela poca, a onda de industrializao retardatria em curso nos Estados Unidos e Alemanha protagonizou um conjunto de disputas em torno da sucesso da velha liderana inglesa. A sequncia de duas grandes guerras mundiais (1914 e 1939) apontou no apenas para o fortalecimento estadunidense como tambm permitiu consolidar o novo deslocamento do centro dinmico mundial da Europa (Inglaterra) para a Amrica (EUA).

    Com a Guerra Fria (1947-1991), prevaleceu a polarizao mundial entre o bloco de pases liderados pelos Estados Unidos e pela antiga Unio Sovitica. Nos anos de 1990, contudo, o desmoronamento sovitico garantiu aos Estados Unidos o exerccio unipolar da dinmica econmica mundial, embora desde a manifestao da crise global de 2008 se tornassem mais claros os sinais da decadncia relativa estadunidense. Como resultado, o reaparecimento da multicentralidade geogrfi ca mundial foi acompanhado por um novo deslocamento do centro dinmico, da Amrica (EUA) para a sia (China).

    15

  • Dessa forma, pases de grande dimenso geogrfi ca e populacional voltaram a assumir maior responsabilidade no desenvolvimento mundial, como no caso da China, do Brasil, da ndia, da Rssia e da frica do Sul, que j respondem atualmente por parcela crescente da expanso econmica do planeta. Tudo isso, claro, sem considerar a regio de entorno dos pases chamados baleia, pois impactam tambm sistmica e positivamente na integrao suprarregional, que se expandem com maior autonomia no mbito das relaes Sul-Sul. No sem motivos, demandam reformulaes na ordem econmica global (reestruturao do padro monetrio, exerccio do comrcio justo, novas alternativas tecnolgicas, democratizao do poder e sustentabilidade ambiental).

    Uma nova diviso internacional do trabalho se vislumbra associada ao desenvolvimento das foras produtivas assentadas na agropecuria, na minerao, na indstria e na construo civil das economias baleia. Tambm ganha importncia as polticas de avano do trabalho imaterial conectadas com a forte expanso do setor de servios. Essa indita fase do desenvolvimento mundial tende a depender diretamente do vigor dos novos pases que emergiram cada vez mais distantes dos pilares anteriormente hegemnicos do pensamento nico (equilbrio de poder nos Estados Unidos, sistema financeiro internacional intermediado pelo dlar e assentado nos derivativos, Estado mnimo e mercados desregulados), atualmente desacreditados.

    Nestes termos, percebe-se que a reorganizao mundial aps a crise global de 2008 apoia-se em uma nova estrutura de funcionamento que exige coordenao e liderana mais ampliada. Os pases baleia podem contribuir muito para isso, tendo em vista que o trip da nova expanso econmica global consiste na alterao da partilha do mundo, derivada do policentrismo, associado plena revoluo da base tcnico-cientfi ca da produo e do padro de consumo ambientalmente sustentvel.

    A conexo dessa totalidade nas transformaes mundiais requer o resgate da cooperao e da integrao supranacional em novas bases. A comear pela superao da antiga diviso do trabalho entre pases, assentada na reproduo do passado (menor custo de bens e

    16

  • servios associado ao reduzido contedo tecnolgico e valor agregado dependente do uso do trabalho precrio e da execuo em longas jornadas sub-remuneradas). Com isso, o desenvolvimento poderia ser efetivamente global, evitando combinar a riqueza de alguns com a pobreza de outros.

    As decises polticas tomadas hoje pelos pases de grandes dimenses territoriais e populacionais em suas regies de entorno podem asfaltar, inexoravelmente, o caminho do amanh voltado constituio de um novo padro civilizatrio global. Para isso, contudo, torna-se estratgica a defi nio de uma maioria poltica capaz de conduzir a agenda do desenvolvimento a partir das novas centralidades mundiais.

    UMA NOVA MAIORIA POLTICA

    O curso do processo democrtico das trs ltimas dcadas no Brasil permitiu a conformao de uma nova maioria poltica comprometida cada vez mais com a sustentao do atual ciclo de expanso econmica com distribuio de renda desde os anos 2000. Ainda h, porm, muito que avanar nesse sentido, tendo em vista as oportunidades estabelecidas pelo atual cenrio mundial de novas centralidades geoeconmicas dinmicas.

    Esse acontecimento combina com o limiar da fase de crescimento considervel conduzido, por um possvel longo perodo de tempo, por foras polticas atentas s novas oportunidades internacionais. Destaca-se que a antiga maioria poltica do segundo ps-guerra mundial, que procurou dirigir o projeto de industrializao nos pases da regio, desfez-se a partir da crise da dvida externa (1981-1983).

    A imposio imediata da queda na taxa de lucro do conjunto do setor produtivo se manteve, sobretudo pelas medidas macroeconmicas adotadas de esvaziamento do mercado interno em prol da alta exportao e da baixa infl ao. Por mais de duas dcadas a regio transferiu parcela do seu produto interno ao pagamento da dvida externa, cuja consequncia maior foi a interrupo da mobilidade social elevada, principal charme do capitalismo urbano-industrial.

    17

  • Nesse contexto, as alternativas implementadas por acordos polticos de ocasio buscaram compensar a reduo da taxa de retorno dos investimentos produtivos por meio da crescente valorizao dos improdutivos ganhos fi nanceiros. Assim, a regio foi modifi cando a macroeconomia da industrializao para a da fi nanceirizao da riqueza, com presena permanente das polticas de ajustes fi scais (privatizao do setor pblico, elevao dos tributos e estagnao dos gastos sociais).

    Nos anos 1990, a sustentao do custo ampliado com o pagamento do endividamento pblico, derivado de altas taxas de juros reais, se mostrou capaz de repor aos grupos econmicos o retorno econmico perdido pelo fraco desempenho da produo e garantir o prprio sucesso eleitoral entre as dcadas de 1980 e 1990. Mesmo assim, os sinais de regresso econmica e social se tornaram maiores, como a sucessiva perda de posio relativa na economia mundial e a forte elevao do desemprego e excluso social no conjunto da regio.

    O processo eleitoral na dcada de 2000 proporcionou, de maneira geral, o fortalecimento de novas foras polticas geradas pela aglutinao dos setores perdedores do perodo anterior com parcela crescente de segmentos em trnsito do ativo processo de fi nanceirizao da riqueza para o novo ciclo de expanso dos investimentos produtivos. Com isso reacendeu-se o compromisso da maioria poltica emergente com a manuteno da fase expansiva da economia, embora permaneam dvidas em relao ao perfi l do desenvolvimento em curso.

    Nesse sentido, uma verdadeira encruzilhada passou a se estabelecer e a aguardar um desfecho neste incio do sculo 21. Em sntese, o resultado da disputa no interior da maioria poltica pela condio de Pas da Fama (fazenda, minerao e maquiladoras), ou de Pas do Vaco (valor agregado e conhecimento).

    O cenrio atual tende a valorizar mais os pases dependentes da exportao de matrias-primas e da gerao de produtos internos com forte contedo importado. Dessa forma, a reproduo deste cenrio interno sufi ciente com a manuteno da taxa de investimento abaixo de 20% do produto, bem como a conteno da

    18

  • inovao tecnolgica suprida por compras externas. Os esforos em educao so importantes, embora doutores e mestres em profuso sigam mais ativos na docncia do que na pesquisa aplicada no sistema produtivo.

    A condio de Pas da Fama cresce gerando mais posto de trabalho na base da pirmide social e ocupando maior espao internacional. Sua autonomia e dinmica, no entanto, parecem menores frente aos imutveis graus de heterogeneidade econmica e social que marcam o subdesenvolvimento.

    Por outro lado, a condio de Pas do Vaco pressupe reafirmar a macroeconomia do desenvolvimento sustentada pelo avano crescente da produtividade assentada no maior valor agregado e no conhecimento. A superimpulso dos investimentos estratgica, seja pela agregao de valor nas cadeias produtivas e nas exportaes, seja pela ampliao da inovao tecnolgica e educacional exigida. Assim, os desafios do desenvolvimento exigem tanto a convergncia produtiva e ocupacional de qualidade como o rompimento do atraso secular na condio subordinada brasileira ao centro do dinamismo mundial.

    DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO E TAREFAS DO ESTADO

    Para que o curso do ciclo de expanso econmica no repita os erros das duas fases anteriores de forte expanso nacional, a questo social exige tratamento inovador em direo maior efi cincia e efi ccia das polticas de segurana social. Ou seja, a redefi nio do Estado frente s suas aes e horizontalizao do conjunto das polticas de proteo (previdncia, assistncia e sade), promoo (educao, cultura e trabalho), e infraestrutura (habitao, urbanismo e saneamento) social. Isto porque somente o imperativo da integrao oramentria e a intersetorializao das polticas pblicas, articuladas por aes matriciais no plano territorial, permitiro enfrentar, em novas bases, as mudanas socioeconmicas que surgem da transio para a sociedade ps-industrial. Nos pases da regio isso signifi ca que nas prximas dcadas a populao tende a diminuir em termos absolutos e conviver com considervel envelhecimento etrio. No Brasil, por exemplo, estima-se que em 2040, a populao poder ser

    19

  • menor que o esperado para 2030, frente queda da fecundidade impulsionada pela fora da transio demogrfi ca que reduz relativamente a populao jovem e expande o segmento de maior idade. Todas estas profundas mudanas demogrfi cas esto sendo acompanhadas por alterao no menos importantes na situao familiar. A cada ano aumenta a presena de famlias monoparentais e chefi adas por mulheres ou por idosos.

    Em outras palavras, assiste-se decrescente capacidade de os novos arranjos familiares proverem, por meio de decises individuais, condies adequadas de vida, o que exige urgente redefi nio do papel das polticas de ateno social. No Brasil, h ainda parcela importante da populao excluda de parte das polticas de proteo social.

    O avano da sociedade moderna coloca o conhecimento na principal posio de ativo estratgico em termos de gerao de renda e riqueza. No obstante a melhora educacional dos ltimos anos, os pases da regio encontram-se muito distantes do necessrio patamar de ensino-aprendizagem. Tem ainda a indecncia de registrar uma quantidade inaceitvel de latino-americanos analfabetos e a parte restante da populao com escolaridade mdia abaixo de oito anos.

    Na sociedade moderna o ensino superior passa ser a base para o ingresso no mercado de trabalho, bem como a educao se torna imprescindvel durante a vida toda. Hoje, no Pas, menos de 15% do segmento etrio de 18 a 24 anos encontra-se matriculado no ensino superior. A partir do ingresso no mercado de trabalho, em geral, as possibilidades de continuar estudando pertencem fundamentalmente elite branca. Para os 20% mais ricos, a escolaridade mdia supera os 10 anos, enquanto os 20% mais pobres mal chegam aos cinco anos. Nos segmentos vulnerveis, como negros e ndios, nem isso ocorre.

    A persistente disperso de objetivos e a fragmentao das polticas sociais impem elevado custo-meio de operacionalizao que poderia ser rebaixado sem maior comprometimento de efetividade e efi ccia. Alm disso, inibiria o clientelismo e o paternalismo que terminam por obstruir a perspectiva necessria de emancipao social e econmica da populao benefi ciada.

    20

  • Por outro lado, nota-se que as iniquidades existentes no tratamento concedido pelo conjunto das polticas no se localizam somente na natureza do gasto social, mas fundamentalmente na forma do seu fi nanciamento. A prevalncia da regressividade na estrutura tributria que sustenta as polticas pblicas na regio onera proporcionalmente mais os pobres que os ricos. Por isso, o fi nanciamento das polticas sociais continua a potencializar o patamar da desigualdade originada na distribuio primria da renda e da riqueza.

    Embora no tendo registrado o mesmo desempenho observado nas economias centrais, os pases da regio conseguiram apresentar alguma melhora nas polticas de segurana social. Apesar das especifi cidades de um pas perifrico, as medidas mais recentes melhoraram em vrias modalidades de ateno social, sem, contudo, romper defi nitivamente com a natureza da excluso social. Se o objetivo da questo social for o enfrentamento da totalidade das vulnerabilidades da populao, a ao governamental de mdio e longo prazos exige no apenas e exclusivamente a ao setorial, mas, sobretudo, e cada vez mais, a matricialidade das polticas de segurana social.

    nesse sentido que a proposio da consolidao das leis sociais assume importncia estratgica. A necessria institucionalizao dos mais recentes xitos das polticas sociais permitiria evitar o constrangimento da descontinuidade temporal das polticas pblicas, ao mesmo tempo em que possibilitaria modernizar e ampliar a capacidade do aparelho de Estado para racionalizar procedimentos e recursos.

    Por fi m, essas medidas permitiriam a obteno de maior efetividade, efi cincia e efi ccia no conjunto das polticas pblicas voltadas para a segurana social, especialmente quando a transio para a sociedade ps-industrial se torna inexorvel. No obstante os histricos obstculos e limites impostos ao avano do sistema de bem-estar social, os pases da regio possuem, atualmente, a indita oportunidade poltica de consolidar o rumo de um novo desenvolvimento capaz de combinar melhora econmica com avano social. O futuro socialmente justo e economicamente sustentvel

    21

  • se torna possvel a partir de uma maioria poltica que assuma o protagonismo de conceber, junto com o povo, o que historicamente lhe foi negado: o bem-estar coletivo.

    Ao mesmo tempo, deve-se considerar que os avanos tcnico-cientfi cos do comeo de sculo criam nas sociedades modernas condies superiores para a reorganizao econmica e trabalhista. De um lado, o aparecimento de novas fontes de gerao de riqueza, cada vez mais deslocadas do trabalho material, impe saltos signifi cativos de produtividade. Isso porque o trabalho imaterial se liberta da existncia prvia de um local apropriado para o seu desenvolvimento, conforme tradicionalmente ocorre em fazendas, indstrias, canteiros de obras, escritrios, supermercados, entre tantas outras formas de organizao econmica assentadas no trabalho material.

    Com a possibilidade de realizao do trabalho imaterial em praticamente qualquer local ou a qualquer horrio, as jornadas laborais aumentam rapidamente, pois no h, ainda, controles para alm do prprio local de trabalho. Quanto mais se transita para o trabalho imaterial sem regulao (legal ou negociada), maior tende a ser o curso das novas formas de riqueza que permanecem - at agora - praticamente pouco contabilizadas e quase nada repartidas entre trabalhadores, consumidores e contribuintes tributrios.

    Juntas, as jornadas do trabalho material e imaterial resultam em carga horria anual prxima daquelas exercidas no sculo 19 (quatro mil horas). Em muitos casos comea a haver quase equivalncia entre o tempo de trabalho desenvolvido no local e o realizado fora dele. Com o computador, a internet, o celular, entre outros instrumentos que derivam dos avanos tcnico-cientfi cos, o trabalho volta a assumir maior parcela do tempo de vida do ser humano.

    De outro lado, h a concentrao das ocupaes no setor tercirio das economias. Somente nos pases da regio, a maior parte das novas ocupaes abertas nesse setor. Para esse tipo de trabalho o ingresso deveria ser acima dos 24 anos de idade, aps a concluso do ensino superior, acompanhado simultaneamente pela educao para toda a vida.

    22

  • Com isso, distancia-se da educao tradicional voltada para o trabalho material, cujo estudo atendia fundamentalmente crianas, adolescentes e alguns jovens. To logo se conclua o sistema escolar bsico ou mdio, iniciava-se imediatamente a vida laboral sem mais precisar abrir um livro ou voltar a frequentar a escola novamente.

    Para que os prximos anos possam representar uma perspectiva superior ao que se tem hoje torna-se necessrio mudar o curso originado no passado. Ou seja, o desequilbrio secular da gangorra social. Na ponta alta dessa gangorra encontram-se os 10% mais ricos nos pases da regio, que concentram parcela signifi cativa de toda a riqueza contabilizada. Em contrapartida, a ponta baixa da gangorra acumula o universo de excludos, que se mantm historicamente prisioneiros de uma brutal tributao a onerar fundamentalmente a base da pirmide social.

    No mercado nacional de trabalho tambm residem mecanismos de profundas desigualdades, como no caso da diviso do tempo de trabalho entre a mo de obra. Em 2010, por exemplo, de cada 10 trabalhadores da regio, havia quase um com jornada zero de trabalho (desempregado), e quase cinco com jornadas de trabalho superiores jornada ofi cial (hora extra).

    O pleno emprego da mo de obra poderia ser alcanado no Brasil a partir de uma nova diviso das jornadas de trabalho, desde que mantido o nvel geral de produo. A ocupao de mais trabalhadores e a ampliao do tempo de trabalho dos subocupados poderiam ocorrer simultaneamente diminuio da jornada ofi cial de trabalho e do tempo trabalhado acima da legislao ofi cial (hora extra). Com a redistribuio do tempo de trabalho o reequilbrio da gangorra social se torna possvel.

    Na transio atual da sociedade urbano-industrial para a ps-industrial percebe-se o acmulo de novas e importantes perspectivas para as classes trabalhadoras. Inicialmente, a ampliao da expectativa mdia de vida, para cada vez mais prximo dos 100 anos de idade. Simultaneamente, percebe-se a forte concentrao do trabalho no setor tercirio das economias (servios em geral), podendo representar cerca de 90% do total das ocupaes.

    23

  • Assim, o tercirio tenderia no apenas a assumir uma posio predominante, tal como representou a alocao do trabalho no setor agropecurio at o sculo 19 e na indstria no sculo 20, como passar a exigir, por consequncia, novas formas de organizao e de representao dos interesses desse mundo do trabalho em transformao. Nos pases desenvolvidos, por exemplo, os setores industriais e agropecurios absorvem atualmente no mais que 10% do total dos ocupados.

    Embora heterogneo, o setor de servios responde fundamentalmente pela dinmica do trabalho imaterial, no mais vinculado produo de bens tangveis. Associa-se produtividade imaterial e passa a ser exercido em qualquer local e horrio, no mais em um espao especfi co como era o mundo do trabalho na indstria, na agropecuria ou no extrativismo mineral e vegetal.

    As novas tecnologias de informao e comunicao (internet e telefonia celular), em contato com as inovaes na gesto da mo de obra, no intensifi cam profundamente o exerccio da atividade laboral no prprio local de trabalho. Ademais, constata-se tambm a extenso do trabalho exercido cada vez mais para alm do espao de trabalho, sem contrapartida remuneratria e protetiva, posto que o sistema de regulao pblica do trabalho encontra-se fundamentalmente focado na empresa, como bem defi nem os cdigos regulatrios do emprego assalariado nos pases da regio.

    Em virtude disso, a lgica de funcionamento da economia capitalista impe a gerao de maior excedente de mo de obra, a partir de ganhos altssimos da produtividade imaterial. Para isso o conhecimento, e no mais a fora fsica, torna-se importante na ampliao das novas fontes de gerao de riqueza com o uso disseminado do trabalho imaterial. Nesses termos que a estratgia das classes trabalhadoras precisa ser reinventada, no apenas na defesa da realidade passada, alcanada por segmentos bem posicionados dos trabalhadores, mas tambm no protagonismo de um novo padro civilizatrio.

    No curso da nova sociedade ps-industrial a insero no mercado de trabalho precisa ser gradualmente postergada, possivelmente para o ingresso na atividade laboral somente aps a

    24

  • concluso do ensino superior, com idade acima dos 24 anos, e sada sincronizada do mercado de trabalho para o avano da inatividade. Tudo isso acompanhado por jornada de trabalho reduzida, o que permite observar que o trabalho heternomo deve corresponder a no mais que 25% do tempo da vida humana.

    Na sociedade agrria o comeo do trabalho se dava a partir de cinco a seis anos de idade para se prolongar at praticamente a morte, com jornadas de trabalho extremamente longas (14 a 16 horas por dia) e sem perodos de descanso, como frias e inatividade remunerada (aposentadorias e penses). Para algum que conseguisse chegar aos 40 anos de idade, tendo iniciado o trabalho aos seis anos, por exemplo, o tempo comprometido somente com as atividades laborais absorvia cerca de 70% de toda a sua vida.

    Naquela poca, em sntese, viver era fundamentalmente trabalhar, j que praticamente no havia separao ntida entre tempo de trabalho e de no trabalho. Na sociedade industrial o ingresso no mercado laboral foi postergado para os 16 anos de idade, garantindo aos ocupados, a partir da, o acesso a descanso semanal, frias, penses e aposentadorias provenientes da regulao pblica do trabalho. Com isso, algum que ingressasse no mercado de trabalho depois dos 15 anos de idade e permanecesse ativo por mais 50 anos, teria, possivelmente, mais alguns anos de inatividade remunerada (aposentadoria e penso).

    Assim, cerca de 50% do tempo de toda a vida estaria comprometida com o exerccio do trabalho heternomo. A parte restante do ciclo da vida, no comprometida pelo trabalho e pela sobrevivncia, deveria estar associada reconstruo da sociabilidade, ao estudo e formao cada vez mais exigidos pela nova organizao da produo e distribuio internacionalizada. Isso porque, frente aos elevados e constantes ganhos de produtividade, torna-se possvel a reduo do tempo semanal de trabalho de algo ao redor das 40 horas para no mais que 20 horas. De certa forma, a transio entre as sociedades urbano-industrial e ps-industrial tende a no mais separar ntida e rigidamente o tempo do trabalho do no trabalho, podendo gerar maior mescla entre os dois, com maior intensidade e o risco da longevidade ampliada da jornada laboral para alm do tradicional

    25

  • local de exerccio efetivo do trabalho. Frente a isso, constata-se que o melhor entendimento acerca do novo mundo do trabalho possibilita a reinveno da pauta sindical comprometida com a construo de uma sociedade superior.

    CONSIDERAES FINAIS

    A crise mundial nesta primeira dcada do sculo 21 poder ser ressaltada no futuro prximo por ter promovido as bases de uma nova fase de desenvolvimento capitalista. Isso porque a crise atual se apresenta como a primeira a se manifestar no contexto do capital globalizado, uma vez que as depresses anteriores (1873 e 1929) ocorreram num mundo ainda constitudo por colnias (pr-capitalista) e a presena de experincias nacionais de economias centralmente planejadas.

    A nova fase do desenvolvimento depende crescentemente da retomada do capitalismo reorganizado, aps quase trs longas dcadas de hegemonia neoliberal. Os quatro pilares do pensamento nico (equilbrio de poder nos Estados Unidos, sistema fi nanceiro internacional fundado nos derivativos, Estado mnimo e mercados desregulados) tornaram-se crescentemente desacreditados. A reorganizao capitalista mundial ps-crise deve se apoiar numa nova estrutura de funcionamento. O trip da expanso do capital consiste na alterao da partilha do mundo em funo do policentrismo, na era da associao direta da ultramonopolizao do setor privado com o Estado supranacional, e na revoluo da base tcnico-cientfi ca da produo e consumo ambientalmente sustentvel, conforme pode ser identifi cado na sequncia.

    Com os sinais de fracasso do equilbrio do mundo hegemonizado pelos Estados Unidos, aps a queda do muro de Berlim, tornou-se mais evidente o movimento de deslocamento relativo do centro dinmico. Diferentemente da experincia anterior de transio da hegemonia inglesa para os Estados Unidos, gradualmente consagrada pela sada da crise de 1929, percebe-se atualmente a possibilidade real de o mundo ps-crise ser constitudo pelo dinamismo policentrista. Ou seja, o fortalecimento de diversos centros regionais do desenvolvimento mundial.

    26

  • Nos dias de hoje os controversos sinais de decadncia dos Estados Unidos parecem ser mais relativos do que absolutos, tendo em vista a desproporo econmica, tecnolgica e militar ainda existente em relao ao resto dos pases do mundo. Apesar disso, observa-se que no contexto de emergncia da reestruturao no centro do capitalismo mundial ganham maiores dimenses os espaos mundiais para a construo de uma nova polaridade no sul da Amrica Latina, para alm dos Estados Unidos, da Unio Europeia e da sia.

    No mbito latino-americano as iniciativas de coordenao suprarregional remontam instituio do Mercosul, mas tm ganhado maior impulso desde a recente articulao supranacional em torno da Unasul e do Banco Sur, bem como as instituies j existentes. Isso tudo, entretanto, no pode representar apenas iniciativas de vontades polticas, pois depende cada vez mais de decises governamentais mais efetivas, por intermdio de polticas pblicas que procurem referendar o protagonismo de um novo centro regional de desenvolvimento.

    Essa possibilidade real de partilha do mundo em novas centralidades regionais implica - alm da coordenao de governos em torno de Estados supranacionais - aceitao de parte dos Estados Unidos em reestruturao interna. Do contrrio, cabe resgatar o fato de a fase de decadncia inglesa desde a Primeira Grande Guerra Mundial ter sido demarcada por grandes disputas econmicas e, sobretudo, militar entre as duas principais potncias emergentes da poca: Estados Unidos e Alemanha. Ao mesmo tempo, a reao sul-americana condio de economias exportadoras de commodities para a China termina por equivaler ao retorno de uma situao que predominou at o incio do sculo 20, de exportadores de bens primrios Inglaterra.

    Por outro lado destaca-se que, na passagem para o sculo 21, o modelo de globalizao neoliberal produziu, entre outros eventos, uma indita era do poder monopolista privado. At antes da crise mundial no eram mais que 500 corporaes transnacionais com faturamento anual equivalente quase metade do Produto Interno Bruto mundial.

    27

  • No contexto ps-crise tende a ser um contingente ainda menor de corporaes transnacionais a governar qualquer setor de atividade econmica, podendo resultar na ultramonopolizao privada sem paralelo histrico. Essa realidade possvel faz com que os pases deixem de ter empresas, para que empresas passem a ter pases.

    A runa da crena neoliberal explicitada pela crise atual tornou profundamente desacreditada tanto a vitalidade dos mercados desregulados como a sufi cincia do sistema fi nanceiro internacional assentado nos derivativos. Por isso, espera-se que algo de novo deva surgir das prticas de socialismo dos ricos na crise internacional por intermdio das enormes ajudas governamentais s corporaes transnacionais (bancos e empresas no fi nanceiras).

    A maior interpenetrao governamental na esfera dos altos negcios ultramonopolistas do setor privado global pode dar lugar ao fortalecimento de Estados supranacionais capazes de alterar as condies gerais de produo dos mercados (regulao da competio intercapitalista e apoio ao fi nanciamento das grandes empresas). Em resumo, percebe-se que a viabilizao do capital ultramonopolista global tende a depender crescentemente do fortalecimento do Estado para alm do espao nacional.

    Diante da maior instabilidade do capitalismo submetido a poucas e gigantescas corporaes transnacionais - muito grandes para quebrarem a partir da prpria lgica do mercado - amplia-se o papel do Estado em relao acumulao de capital. A coordenao entre os Estados supranacionais poder permitir a minimizao das crises frente regulao da competio intercapitalista. Todavia, o estreitamento da relao cada vez mais orgnica do Estado com o processo de acumulao privada do capital global deve se reverter no aprofundamento da competio entre os Estados nacionais.

    Por fi m, o terceiro elemento do novo trip do possvel surgimento do capitalismo reorganizado e em melhores oportunidades ao desenvolvimento encontra-se associado mais rpida acelerao e internalizao da revoluo tcnico-cientfi ca no processo de produo e consumo. Pelo conhecimento produzido at o momento acerca da insustentvel degradao ambiental gerada pelas atuais

    28

  • prticas de produo e consumo, sabe-se que a sada da crise global no deveria passar pela mera reproduo do passado.

    Nesse sentido, o padro de produo e consumo precisa ser urgentemente reconfi gurado. Para isso no apenas a matriz energtica mundial vem sendo alterada, como tambm as alternativas de sustentabilidade ambiental se tornam cada vez mais viveis do ponto de vista econmico (lucrativas). Assim, as penalizaes governamentais s atividades de produo e consumo ambientalmente degradantes devem crescer e serem politicamente aceitas, permitindo que um conjunto de inovaes tcnico-cientfi cas possa fazer emergir um novo modelo de produo e consumo menos encadeador da maior mudana climtica.

    Da mesma forma, o avano da sociedade ps-industrial, cada vez mais apoiado no avano do trabalho imaterial, tende a viabilizar uma profunda reorganizao dos espaos urbanos, fruto de exigncias do exerccio do trabalho em locais apropriados (fazenda para a agricultura e pecuria, fbrica e indstria para a manufatura, entre outros). Pelo trabalho imaterial, a atividade laboral pode ser exercida em qualquer local, no mais em espaos previamente determinados e apropriados para isso, bem como em qualquer horrio.

    Com isso, a reorganizao social em comunidades territoriais torna-se possvel, o que pode evitar o comprometimento temporal cotidiano com os deslocamentos da casa para o trabalho e vice-versa, entre outras tarefas comuns. Nesses termos, o fundo pblico precisar ser fortalecido tanto na tributao de atividades de produo e consumo ambientalmente degradantes como nas novas formas de riqueza vinculadas expropriao do trabalho imaterial.

    Somente a maior ampliao do fundo pblico poder permitir a postergao do ingresso no mercado de trabalho a partir dos 25 anos, com o estabelecimento de mecanismos que permitam o processo de educao e aprendizagem para a vida toda e, ainda, jornada laboral de at 12 horas por semana. Tudo isso, contudo, pressupe maioria poltica necessria para tornar realidade o que hoje se apresenta como mera possibilidade.

    29

  • Do contrrio, o excedente de fora de trabalho cresce, com atividades cada vez mais precrias e empobrecedoras em meio acumulao de nova riqueza global. Para isso, as transformaes do Estado se fazem urgentes e estratgicas. No atual perodo democrtico h uma grande expectativa de se estabelecerem os novos rumos do projeto de desenvolvimento.

    Alm do obstculo de consagrar uma nova maioria poltica que ouse mais na direo da transformao da crise mundial atual em oportunidade de maior reposicionamento do pas no mundo, cabe ainda a rdua tarefa da refundao do Estado sob novas bases. Trs podem ser os seus eixos estruturantes.

    O primeiro consiste na reorganizao administrativa e institucional que viabilize a reprogramao de todas as polticas pblicas a partir da matricialidade e integrao setorial de suas especialidades. Enquanto o Estado funciona na forma de caixinhas setoriais (educao, sade, trabalho, entre outros) e regionais, os problemas atuais tornam-se cada vez mais complexos e totalizantes, incapazes de serem superados pela lgica de organizao pblica em partes que no se comunicam, quando concorrentes entre si. A fonte disso encontra-se centrada na recuperao do sistema de planejamento democrtico e transparente de mdio e longo prazos.

    O segundo eixo concentra-se na necessria ampliao das polticas distributivas para as redistributivas. Ou seja, a transio da melhor repartio social do oramento governamental para a expanso da progressividade do fundo pblico, com a reduo da carga tributria sobre a renda do trabalho e a ampliao de impostos, taxas e contribuies sobre as rendas do capital (lucro, juros, aluguel e renda da terra). Arrecadando mais e melhor, o Estado passa a alterar a desigualdade medieval que se mantm nos pases da regio latino-americana.

    O terceiro eixo se refere reinveno do mercado, tendo em vista o poder dos grandes grupos econmicos sobre o Estado. Alm das exigncias de transparncia e crescente participao social, o Estado precisa reconstituir-se fundamentalmente para o verdadeiro mar que organiza os micro e pequenos negcios no

    30

  • pas, com polticas de organizao e valorizao do setor por meio da criao de bancos pblicos de financiamento da produo e comercializao, fundos de produo e difuso tecnolgica e de assistncia tcnica e de compras pblicas.

    Esses so alguns dos passos que o Estado precisa percorrer. A refundao do Estado urgente e inadivel. A oportunidade trazida pela crise mundial real, mas depende da capacidade interna de organizar uma nova maioria poltica capaz de colocar em marcha o projeto de desenvolvimento sonhado por muitos e que agora ameaa se tornar realidade.

    REFERNCIAS

    AGLETT. M. Regulation et crises du capitalisme. Paris: Calmann-Lvy, 1976.

    AGRWALA, A.; SINGH, S. A economia do subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

    AMSDEN, A. A ascenso do resto. So Paulo: Unesp, 2004.

    ARRIGHI, G. A iluso do desenvolvimento. Petrpolis: Vozes, 1997.

    BARRIENTOS, A. Dilemas de las polticas sociales latino-americanas. Nueva Sociedad, n. 239, p. 65-78, 2012.

    BEN, J. Estado e economia na Amrica Latina. Passo Fundo: Clio, 2003.

    BRTOLA, L.; OCAMPO, J. Desenvolvimento, vicissitudes e desi-gualdade. Madrid: SGIB, 2010.

    BID. Incluso social e desenvolvimento econmico na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

    CARNEIRO, R. Commodities, choques externos e crescimento: refl exes sobre a Amrica Latina. Santiago: [s.n], 2012. (Srie macroe-conomia del desarrolllo, 117).

    CEPAL. Da inovao poltica pblica. Santiago, 2011.

    31

  • CHANG, H. Globalisation, economic development and the role of the state. New York: ZBL, 2004.

    FALETTO, E. Dimensiones sociales, polticas y culturales del de-sarrollo. Santiago: Flacso, 2009.

    FIORI, J. Estados e moedas no desenvolvimento das naes. Petr-polis: Vozes. 1999.

    FIORI, J.; MEDEIROS, C. Polarizao e crescimento. Petrpolis: Vo-zes, 2001.

    FRIEDEN, J. Capitalismo global. Barcelona: M. Crtica, 2007.

    FRIEDMAN, B. As consequncias morais do crescimento econmi-

    co. Rio de Janeiro: Record, 2009.

    HOLFMEISTER, Wilhelm (Org.). Reformas polticas en Amrica Latina. Rio de Janeiro: Fundao Konrad Adenauer, 2004.

    INFANTE, R. El desarrollo inclusivo em Amrica Latina y el Cari-be. Santiago: Cepal, 2011.

    KOWARICK, L. Capitalismo e marginalidade na Amrica Latina. So Paulo: Paz e Terra, 1975.

    LAGOS, R.; ARRIAGADA, C. Poblacin, pobreza y mercado de traba-jo em Amrica Latina. Santiago: OIT, 1998.

    LOVE, J. A construo do terceiro mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

    MADDISON, A. Perspectives on global economic progress and human development. In: ANNUAL SYMPOSIUM, 2008, [S.l.]. Proceedings [S.l.: S.n.], 2008.

    MARINI, R. Amrica Latina, dependncia y globalizacin. Santia-go: Flacso, 2009.

    MELO, J. Capitalismo tardio. So Paulo: Brasiliense, 1981.

    32

  • MORAIS, R. Liberalismo e neoliberalismo: primeira verso. Campi-nas: Unicamp. 1997.

    OCDE. Perspectives du dveloppement mondial. Paris, 2012.

    OIT. La exclusion en Amrica Latina. Lima: Visual Service, 1995.

    . La reforma laboral en Amrica Latina. Lima, 2000.

    OLIVEIRA, C. Processo de industrializao: do capitalismo original ao atrasado. So Paulo: Unesp, 2002.

    PALMA, G. Gansos voadores e patos vulnerveis. In: FIORI, J. (Org.). O poder americano. Rio de Janeiro: Vozes. 2004

    PINTO, A. Naturaleza e implicaciones de la heterogeneidad es-tructural de la Amrica Latina. Ciudad de Mxico: FCE, 1970.

    POCHMANN, M. Subdesenvolvimento e trabalho. So Paulo: LTr, 2013.

    PRADO, A. Neoliberalismo e desenvolvimento: a desconexo trgi-ca. Campinas: Unicamp, 2006.

    ROUDART, L.; MAZOYER, M. Histrias das agriculturas no mundo. So Paulo: Unesp, 2009.

    RIBEIRO, G. La globalizacin popular y el sistema mundial no-hege-mnico. Nueva Sociedad, n. 241, 2012.

    SACHS, W. Dicionrio do desenvolvimento: guia para o conheci-mento como poder. Petrpolis: Vozes, 2000.

    SADER, E.; GENTILE, P. Ps-neoliberalismo: as polticas sociais e o Estado democrtico. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

    SERRANO, F. et al. O mito do colapso do poder americano. Rio de Janeiro: Record, 2008.

    SUNKEL, O. La dependencia y la heterogeneidad estructural. El Tri-mestre Econmico, v. 45, n. 1, [20--]

    33

  • TAVARES, M. Problemas de industrializacin avanzada em capi-talismos tardios. Ciudad de Mxico: CIDE, 1981.

    VERGOPOULOS, K. Globalizao: o fi m de um ciclo. Rio de Janeiro: Contraponto. 2005

    34

  • Maria do Socorro Ferreira Osterne1

    CAPTULO 2ATUALIDADES DA QUESTO SOCIAL, DA

    JUSTIA SOCIAL E DA GESTO DE POLTICAS PBLICAS

    Maria do Socorro Ferrera Osterne1

    Fazendo uma anlise retrospectiva da experincia brasileira no campo das polticas sociais, percebe-se que grande parte de sua trajetria foi preponderantemente infl uenciada pelas mudanas econmicas e polticas ocorridas no plano internacional e pelos impactos reorganizadores dessas mudanas na ordem poltica interna. De fato, situada neste contexto, como bem lembram Bravo e Pereira (2002), a proteo social no Brasil jamais conseguiu apoiar-se fi rmemente nas pilastras do pleno emprego, dos servios sociais universais, tampouco teceu, at hoje, uma rede de proteo capaz de impedir a entrada e a reproduo de segmentos sociais majoritrios da populao nas estratifi cadas e diversifi cadas linhas da pobreza.

    Refl etir sobre poltica social, contudo, impe, preliminarmente, um melhor exame de como se apresenta a questo social na atualidade, fenmeno social e individual abrangente tecido sobre relaes cotidianas revestidas de matizes ideolgicas uma vez aliceradas nas polmicas discusses sobre igualdade e diferenas. Discusses essas, via de regra, segmentadas, parcializadas e expressas

    1 Maria do Socorro Ferreira Osterne Assistente Social, Mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Cear, Livre Docente pela Universidade Estadual do Cear e Doutora em Servio Social pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Associada da Universidade Estadual do Cear e Pesquisadora do tema: Famlia, Gnero e Gerao nas Polticas Pblicas.

    35

  • em ngulos estritos e de alta densidade explicativa. Por envolver questes da ordem da equidade, da imparcialidade, da paridade, da justia e da liberdade, no poderia, a rigor, ser tema de fcil e de imediata compreenso.

    Historicamente falando, a questo social no um problema novo. Comeou bem antes da globalizao e dos mpetos concentradores do sistema fi nanceiro internacional. Seu entendimento, entretanto, comporta muitas interpretaes, por sua vez relativas, culturais, histricas e graduais.

    A questo social, hoje, por outros e variados caminhos explicativos, tambm identifi cada como excluso social, uma nominao surgida no sculo XIX a partir das manifestaes de misria e pobreza advindas da explorao das sociedades capitalistas com o desenvolvimento da industrializao. Alis, o que se apreende, ao longo da histria do capitalismo, que h uma relao direta entre cada perodo dessa formao social - concorrencial, monopolista e tardio - com os sistemas de proteo social e, no caso especfi co, com a assistncia social.

    Na primeira fase, ou seja, na etapa concorrencial, havia mui-ta fi lantropia, pouco Estado, e no existiam as polticas sociais con-forme entendidas hoje. No segundo momento, fase monopolista, o Estado se amplia, criam-se as polticas sociais e reduz-se o papel da fi lantropia. No estgio do capitalismo tardio, sob a gide neoliberal, a proposta pouco Estado (com outra feio), reduo das polticas sociais e refi lantropizao da assistncia, inclusive constituindo-se fi lantropia empresarial.

    O que se observa que nas particularidades inerentes a cada um desses perodos a questo social que expressa a contradio capital e trabalho, as lutas de classes e a desigual participao na distribuio da riqueza social, em essncia, continua inalterada. Quer dizer, as manifestaes se reciclam, se renovam, se atualizam historicamente, porm, sob bases antes j existentes. referindo-se a essa lgica que Castel (1998) argumenta se estar vivendo uma nova velha questo social. A maior novidade do momento, entretanto, a sua relevncia nas ltimas dcadas, principalmente a partir dos anos

    36

  • 1990. Penetrar sua contemporaneidade implica o levantamento de algumas situaes.

    Compreender a questo social no terreno da economia poltica at o fi nal da dcada de 1980, luz do materialismo histrico de inspirao marxista, parecia ser a maior tendncia das correntes de pensamento das esquerdas da poca. Porm, a falncia do sistema socialista sovitico e a descrena em ideais motivadores de lutas por transformaes sociais abalaram profundamente os sentimentos das esquerdas no ps-1989. Nesse contexto, ideais de pensamento que haviam abraado o marxismo optaram por outros caminhos. Como na maioria das vezes as mudanas da teoria seguem as alteraes da poltica, apareceram no cenrio novas tentativas de constituio de paradigmas explicativos diante dos desafi os postos pela chamada sociedade ps-industrial, ps-socialista ou ps-moderna.

    Levando em considerao que o presente artigo no pretende se ocupar de um maior detalhamento das adjetivaes atribudas sociedade contempornea, dever indicar autores como David Harvey, Jean-Franois Lyotard e Edgar Morin como tericos dedicados a pensar criticamente o atual momento histrico de rpidas e profundas alteraes ocorridas,

    [...] no cenrio planetrio- como a globalizao econmica crescente, a elevao dos fl uxos transfronteiras, a irrupo de dios tnicos em meio s guerras de esfacelamento de pases artifi cialmente mantidos pela Guerra Fria e o terrorismo em escala global, dentre outros. (LIMA, 2010, p. 8).

    No tocante a outros caminhos trilhados pelas esquerdas para dar conta das novas demandas sociais, estes passaram a expressar, nitidamente, uma diviso interna (terica e prtica) dos movimentos sociais progressistas. Funcionando como pano de fundo dessa diviso situam-se as discusses, muitas delas ultrapolarizadas, sobre igualdade e diferena. Discusses que permanecem atuais para pensar as desigualdades sociais que aliceram a questo social contempornea e tambm o ideal da justia social.

    Assim a histrica oposio entre igualdade/diferena persiste aparecendo como um tema fecundo para o debate. A dialtica entre

    37

  • igualdade como princpio e igualdade como prxis continua a alimentar a construo do que se poderia chamar uma verdadeira teoria social do gnero, da nacionalidade, da raa/etnia e da sexualidade, dentre outros temas relacionados.

    De fato, o debate sobre a igualdade e/ou a diferena que atualmente se desenvolve no s entre as feministas, ultrapassa, em larga medida, o mbito acadmico em suas implicaes, pois remete a um importante problema poltico e prpria teoria do conhecimento. Suas metas, portanto, exigem transformaes sociais em grandes dimenses. A propsito desse debate, Flvio Pierucci, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de So Paulo (USP), em artigo que leva o ttulo Ciladas da diferena (PIERUCCI, 1993) possibilita uma exata ideia do que possa ser a ultrapassagem dessa temtica para o plano da poltica e da prpria teoria do conhecimento. Nesse artigo o autor procura analisar aquilo que chama de armadilhas racistas, sexistas e moralistas, existentes nos discursos das esquerdas que focalizam e enfatizam o direito diferena, dirigidas, inclusive, contra os prprios movimentos de esquerda.

    Para Pierucci (1993), a bandeira das diferenas, atualmente empunhada pela esquerda como uma novidade pelos novos movimentos sociais (das mulheres, dos negros, dos ndios e dos homossexuais), em sua origem constituiu o grande signo das direitas, velhas ou novas, extremas ou moderadas. Foi a ultradireita do fi nal do sculo XVIII e primeira dcada do sculo XIX, a primeira direita a surgir como reao a toda espcie de universalismo e igualitarismo existentes nas ideias fi losfi cas da poca. Nos argumentos do autor a defesa das diferenas carrega tentativas de explicar as desigualdades de fato ao mesmo tempo em que reclama a desigualdade de direito.

    Em suas anlises diz que para os indivduos de esquerda, principalmente os intelectuais, a diferena no tem nada a ver com a desigualdade. uma questo de pluralismo cultural! [...] A verdadeira igualdade repousa na diferena. (PIERUCCI, 1993, p. 5). Raciocina que todas as diferenas no so hierarquizantes, mas a maioria sim, sobretudo quando as diferenas so defi nidoras de coletividades, de categorias sociais e de grupos. Querer defender as diferenas em bases igualitrias, enfatiza, uma tarefa muito difcil em termos prticos, embora mais fcil em termos tericos.

    38

  • Louvar o direito diferena tem assumido pretenses emancipatrias como, por exemplo, nos crculos feministas mais intelectualizados, assim como no interior de outros movimentos sociais em defesa das identidades coletivas. Contudo, na tica de Pierucci (1993), existe uma grande difi culdade de seguir at o fi m a lgica do postulado da diferena (grupal) sem reforar prticas discriminatrias.

    Por outro lado, Dagnino (1994), discorrendo sobre a apropriao e a possibilidade da emergncia de uma nova cidadania, vincula essa possibilidade, dentre outras condies, experincia concreta dos movimentos sociais, tanto ao de tipo urbano quanto aos movimentos de mulheres, negros, homossexuais e ecolgicos, nos quais a luta por direitos tanto igualdade como diferena constitui sua base fundamental. Admitindo no estar preparada para desenvolver uma anlise mais aprofundada sobre esta questo, a autora sugere, no contexto de uma viso historicizada da cidadania como estratgia, um quadro de referncia terico e poltico onde seja possvel articular o direito igualdade com o direito diferena.

    Dagnino (1994), partindo dos argumentos de Pierucci (1993), indica que, para ele, no se trata de recusar a diferena, mas de entender o que a diferena designa. Isso por acreditar na existncia de um intrnseco vnculo entre igualdade e diferena. Lembra que, no campo da direita, a diferena sempre surge como afi rmao do privilgio, portanto como defesa da desigualdade. No campo da esquerda a diferena surge como reivindicao exatamente na medida em que ela determina desigualdade. A afi rmao da diferena, na tica da autora, vincula-se sempre reivindicao de que ela possa existir como tal, que possa ser vivida, sem que isso signifi que ou tenha como consequncia o tratamento desigual e a discriminao.

    Dagnino (1994) observa, enfi m, no querer escapar, recusar ou negar os riscos da articulao entre igualdade e diferena, os quais no seriam maiores do que tratar essa questo de forma desarticulada. Diz, portanto, que todo campo poltico relevante sempre minado pela disputa e pela fi xao de signifi cados. Em outra linha de raciocnio, alerta para o equvoco de pensar a diferena positiva, ou seja, aquela

    39

  • afi rmada na defesa de um privilgio, como um dado sensvel imediato e, consequentemente, facilmente percebido por todos.

    Por outro lado, a diferena negativa que serve de base discriminao e desigualdade no um dado sensvel e percebido. Ao pensar assim lhe parece optar por um vis mais identifi cado com o conservadorismo popular do que com uma perspectiva de avaliao consciente dos grupos sociais que vivem o cotidiano de uma cultura autoritria. No seu pensamento, se a desigualdade no fosse constituda enquanto discriminao diferena ela no existiria como reivindicao de direito. (DAGNINO, 1994). E, assim observando, lhe parece que o direito diferena aprofunda e amplia o direito igualdade.

    Ainda neste sentido, so bastante atuais e instigantes, no obstante polmicas, as refl exes de Nancy Fraser, considerada uma das pensadoras mais lcidas do debate contemporneo sobre justia social. Fraser, a partir de 1980, tem se dedicado a formular uma concepo de justia que seja capaz de sair das polaridades entre igualdade social e diferena cultural, procurando compreend-las em um contexto histrico marcado pelas aceleradas e profundas mudanas do mundo, infl uenciadas pela globalizao econmica e tecnolgica, pela elevao dos fl uxos transfronteiras, pelo fundamentalismo/terrorismo e pelas guerras entre pases artifi cialmente mantidas pela Guerra Fria, como j citado anteriormente.

    Tomando, preferencialmente, as polticas feministas como objeto de anlise, Nancy Fraser prope uma abordagem bidimensional da justia de gnero, vlida, entretanto, para todos os movimentos sociais. Suas primeiras preocupaes foram expor os dilemas entre as polticas econmicas de redistribuio e as polticas culturais de reconhecimento.

    Lima (2010), em seu trabalho dissertativo sobre o sentido de justia em Nancy Fraser, expe que o ncleo normativo da concepo freseriana de justia a noo de paridade de participao. Para a autora, no dizer de Lima (2010), a paridade da participao possui duas condies para alm dos padres de igualdade legal formal, ambas necessrias. Uma condio objetiva, referida distribuio

    40

  • de recursos materiais, e uma condio intersubjetiva, relacionada a padres institucionalizados de respeito e oportunidades iguais para todos. Na sua concepo as lutas sociais contemporneas tm apresentado uma forte tendncia ao fortalecimento de movimentos sociais comprometidos com a defesa de grupos historicamente injustiados sob o ponto de vista cultural e simblico. (LIMA, 2010, p. 8). Refere-se, principalmente, aos movimentos feministas, de negros, de gays e lsbicas, j existentes anteriormente, mas que se fortaleceram a partir da derrocada do sistema socialista sovitico, quando se assume, progressivamente, a bandeira da luta pelo reconhecimento da diferena como proposta autnoma de ao social, muitas vezes deixando de lado ou obscurecendo a antiga problemtica da desigualdade econmica. (LIMA, 2010).

    Para Lima (2010), Nancy Fraser observa que essa nova forma assumida pelos movimentos sociais emergentes desencadeou muitas tenses no interior da prpria esquerda poltica, fazendo aparecer um vigoroso, polmico e ideolgico debate sobre igualdade versus diferena cuja tentativa de superao se tornou um encargo importante e imprescindvel ao pensamento e s prticas sociais progressistas. Se as intenes redistributivas igualitrias dominaram nos ltimos sculos toda a produo do conhecimento empenhada em transformaes sociais, as lutas por reconhecimento cresceram depois da queda do socialismo sovitico no fi nal do sculo XX.

    A proposta de Fraser (2002) , portanto, compreender a justia social na sociedade contempornea, por ela chamada de sociedade ps-socialista, investigando a relao entre os anseios por redistribuio e as reivindicaes por reconhecimento, para, no fi nal, defender que a concepo de justia, por um lado, precisa incorporar as preocupaes tradicionais das teorias de justia distributivas, especialmente a pobreza, a explorao, a desigualdade e os diferenciais de classe. Por outro, necessita, tambm, assimilar as preocupaes recentemente ressaltadas nas fi losofi as de reconhecimento, sobretudo o desrespeito, o imperialismo cultural e a hierarquia de status. (FRASER, 2002).

    O resultado dessa posio uma concepo bidimensional de justia que absorve tanto a redistribuio quanto o reconhecimento, sem reduzir uma poltica em detrimento da outra. Aprofundando mais

    41

  • ainda suas refl exes, Fraser (2002) converge para acrescentar que os debates contemporneos sobre justia no podem abranger somente questes substanciais de primeira ordem relativas desigualdade econmica e ao respeito diferena. Prope, por conseguinte, que as teorias da justia devam se tornar tridimensionais, ou seja, que incorporem a questo poltica da representao (pertencimento social). Sendo as questes da representao especifi camente polticas, no poderiam se reduzir aos problemas culturais e econmicos, mesmo que entrelaados. Apesar de a redistribuio e o reconhecimento serem eles prprios polticos, uma vez permeados pelo poder o poltico possibilita o cenrio no qual se travam as lutas por redistribuio e reconhecimento, pontua a autora.

    Polmicas parte, no se pode deixar de reconhecer a atualidade, a pertinncia e o vigor que todas essas discusses sobre igualdade versus diferena tm emprestado para um melhor entendimento dos problemas sociais da atualidade. A igualdade como categoria tico-poltica e as desigualdades assumem perfi l singular frente a uma confi gurao particular dos modelos adotados pelas sociedades para se produzirem e se reproduzirem segundo os princpios dominantes do sistema capitalista em vigor. Alm do mais, no se pode esquecer que preciso, tambm, retomar o signifi cado atribudo aos direitos sociais, uma vez que sua trajetria, em sociedades distintas, inclui o aspecto das relaes de poder e da diviso de classe.

    Feitas essas consideraes introdutrias, cujo incio problematiza a noo da questo social, entendendo-a como a razo de ser das polticas sociais pblicas, passa-se para o que pode ser considerado a segunda parte desta refl exo, cujo foco sero as atuais confi guraes das polticas sociais brasileiras frente problemtica do desenvolvimento e do seu ideal contemporneo.

    As questes sociais brasileiras atuais so historicamente especfi cas, embora carreguem, em si, a sntese de todas as transformaes ocorridas no cenrio geopoltico mundial, com destaque para o fi m da guerra fria, para a contestao da hegemonia estadunidense, para a ascenso do neoliberalismo, no obstante suas nefastas consequncias para o espraiamento da globalizao. Nesse contexto, no difcil imaginar que antigos paradigmas, j plenamente

    42

  • estabelecidos, comecem a se desestabilizar, forando a necessidade da constituio de novos instrumentos de anlise e novas formas para compreender e enfrentar os problemas sociais.

    Tendo como objeto refl etir sobre as polticas sociais pblicas, seus rumos e suas fi nalidades, um primeiro desafi o, portanto, ser o de pensar o que venha a ser desenvolvimento, dizendo melhor, a que desenvolvimento se est referindo quando se trata de direitos sociais ou, ainda, que noo de desenvolvimento conviria a um estado de justia e equidade social.

    O movimento da realidade nos ltimos dez anos tem deixado claro que no faz mais nenhum sentido insistir no poder regulador do mercado. O aumento da misria e da desigualdade, o drama do desemprego, as nefastas consequncias acumuladas na vida e no cotidiano dos povos deixam evidente que os mercados, por si ss, no tm a menor condio de promover resultados socialmente justos e economicamente efi cientes. Sendo assim, a nossa poca est a exigir respostas polticas mais ousadas, atitudes mais impactantes e refl exes tericas mais inovadoras. (NOGUEIRA, 2005).

    No faz mais, tambm, sentido nenhum pensar o desenvolvi-mento apenas por sua vertente econmica, relacionada ao custo e ao lucro, mas como uma dinmica que incorpore, de forma combinada, a dimenso da democracia, da justia social e da ecologia. Em sntese, um desenvolvimento sustentvel ecolgico e socialmente estabeleci-do. Porm, para que esta noo seja internalizada e exercida preciso mudar o paradigma da ao transformadora rumo a uma ontologia e a uma epistemologia que traga consigo uma nova valorizao do insti-tucional, do poltico e do estatal.

    De uma conotao originariamente genrica e aparentemente neutra, a noo de desenvolvimento assumiu o sentido de um estado positivo e desejvel. Seus adjetivos pretendidos so: poltico, econmico, social, tecnolgico, sustentvel, justo, inclusivo, humano, emancipador, harmnico, cultural, material etc. Seus principais indicadores, antes, eram de natureza essencialmente econmica. Como bem refere Nogueira (2005), encontrar esse sentido exige inteligncia tcnica, criatividade/inventividade, mas, principalmente,

    43

  • uma abordagem inovadora da questo do Estado. Para Nogueira (2005), preciso retomar sua reforma, no pela via do econmico, mas pelo seu sentido tico-poltico e por sua relevncia estratgica. Alm do mais, no se pode discutir o Estado, hoje, a fundo e com rigor, sem considerar o contexto da reestruturao socioprodutiva, a revoluo tecnolgica, a transformao do mundo do trabalho e a mundializao: do capital, das redes de comunicao e dos sistemas de informao.

    Um novo poder poltico e um novo Estado, por sua vez, precisam trazer consigo uma nova cultura, um novo homem, uma nova cidadania. Prescindem, portanto, de uma reforma intelectual e moral, assentada no pleno emprego do recurso democrtico, do dilogo e da negociao. Pressupem, em sntese, o Estado de Direito. Tudo isso dever ter sua gnese no campo de uma educao efetivamente emancipatria e de uma cultura revolucionria de valorizao da condio humana.

    Como se percebe, trata-se de uma complexidade sugestiva da prevalncia do tico-poltico e do social sobre o econmico, e de uma maior valorizao do momento estatal e poltico-institucional. Nas palavras de Nogueira (2005, p. 32),

    Em sociedades complexas e fragmentadas, cortadas por interesses que no se compem com facilidade e inseridas em posio subalterna no capitalismo globalizado, como o Brasil, parece pouco provvel que se consiga pensar a mudana e a organizao de novas hegemonias sem o pleno emprego do recurso democrtico ao dilogo e negociao. A transformao se assemelha a uma obra de arte poltica, edifi cada e lapidada molecularmente ao longo do tempo por amplos arcos de sustentao.

    Hoje, ainda estamos, na realidade brasileira, vivendo incertezas no tocante possibilidade de uma poltica de desenvolvimento capaz de garantir o pleno emprego, o crescimento da renda e o enfrentamento das injustias sociais. Portanto, nunca foi to oportuno revigorar a ideia de um pacto poltico pela cidadania. Neste sentido, repensar a forma como as polticas sociais pblicas esto sendo implementadas tarefa importante, porm complexa, uma vez que uma gesto democrtica no se esgota no administrativo, tampouco no fi nanceiro ou na manipulao

    44

  • de sistemas. Neste ponto, compreendido como o terceiro momento desta refl exo, oportuno perguntar sobre o problema propriamente dito da gesto das polticas sociais pblicas, assunto deveras importante, mas sempre tratado de forma perifrica, assentado em lgicas tecnocrticas fora de uma racionalidade tico-poltica.

    Primeiramente, convm comentar que muito se fala sobre poltica pblica, porm pouco se atenta para a essncia do seu sentido. A rigor, poltica pblica no sinnimo de poltica estatal. Segundo Bravo e Pereira (2002), a palavra pblica, que acompanha a palavra poltica, no expressa identifi cao exclusiva com o Estado. , portanto, pblica no sentido de res publica, isto , coisa de todos, e, por isso mesmo, algo que compromete, simultaneamente, o Estado e a sociedade. Res pblica como forma de organizao poltica que se pauta pelo interesse comum, pela vontade da comunidade, pela soberania popular, e no pelos que governam. Poltica pblica , assim, na tica dessas autoras, ao pblica, ou seja, onde alm do Estado a sociedade se faz presente, adquirindo representatividade, poder de deciso, alm das condies de exercer o controle sobre a sua prpria reproduo e sobre os atos e decises do governo e do mercado. J a noo de poltica se refere a planos, estratgias ou medidas de ao coletiva, formulados e executados com o objetivo de atender as legtimas demandas e necessidades sociais.

    Para Bravo e Pereira (2002), poltica pblica signifi ca ao coletiva que tem por funo concretizar direitos sociais demandados pela sociedade e previstos nas leis. Os direitos sociais que aludem participao do povo na riqueza coletiva incluem: educao, trabalho, salrio justo, sade e aposentadoria. So direitos que possibilitam reduzir os efeitos das desigualdades inerentes sociedade do capital. Esses direitos, declarados e garantidos nas leis, s tm aplicabilidade por meio de polticas pblicas correspondentes, as quais, por sua vez, se operacionalizam mediante programas, projetos e servios.

    por meio das polticas pblicas que so planejados e postos em prtica programas de distribuio de bens e servios regulados e providos pelo Estado, com o envolvimento e o controle da sociedade, complementam as autoras. (BRAVO; PEREIRA, 2002). Elas alertam, contudo, para o fato de a relao da sociedade com o Estado na

    45

  • operacionalizao dessa poltica nem sempre ser de reciprocidade, aliana e parceria, mas de competio e confl ito. Confl itos que precisam ser trabalhados para o aperfeioamento da poltica e do interesse pblico. (BRAVO; PEREIRA, 2002).

    De fato, muitas vezes a poltica pblica apenas representa aquilo que o governo opta por fazer ou no fazer diante das situaes que se apresentam. Quando se delega ao Estado a autoridade para unifi car e articular a sociedade, as polticas pblicas passam a ser um instrumento privilegiado de dominao, como muitas vezes tem ocorrido na realidade brasileira.

    Assim, a poltica pblica, ao mesmo tempo em que se constitui uma deciso, supe uma certa ideologia de mudana social, esteja ela explcita ou no na sua formulao. preciso compreender que essa deciso resulta do compromisso de uma racionalidade tcnica com uma racionalidade poltica. (NOGUEIRA, 2005). exatamente nessa dimenso poltica que poder residir sua natureza contraditria, ou seja, mesmo constituda para a manuteno do status quo, poder caminhar em favor da justia social. Em todos os casos, para que exista uma poltica pblica fundamental a existncia de instrumentos de ao coletiva, ou seja, de aes aliceradas em decises de natureza coletiva, pois seu encargo bsico a constituio da cidadania social.

    Porm, sob o ponto de vista da operacionalizao propriamente dita, percebe-se que no Brasil as polticas sociais pblicas, em sua dimenso institucional e em todos os nveis dos poderes (municipais, estaduais e federais), caracterizam-se por um conjunto desarticulado de instituies responsveis por polticas setoriais, extremamente segmentadas, que sobrepem usurios e competncias, alm de espalharem e, via de regra, desperdiarem recursos oriundos de uma diversidade no planejada de fontes. Assim, recebem o cidado e seus problemas de forma fragmentada, com aes e servios executados setorialmente, mesmo que se trate da mesma famlia, da mesma criana, do mesmo adolescente, da mesma mulher, do mesmo idoso, enfi m do mesmo trabalhador.

    prtica comum entre as polticas pblicas brasileiras a desti-nao de recursos para o enfrentamento de determinado problema,

    46

  • como por exemplo, o trabalho infantil, desconsiderando o contexto em que a criana se insere, o analfabetismo ou o semianalfabetismo do seu grupo familiar, a desqualifi cao profi ssional, o desemprego e/ou o subemprego de seus pais, a inexistncia de escolas de qualidade prximas de sua moradia e a insalubridade de sua habitao, den-tre outros fatores determinantes de sua condio de excluso social, econmica, poltica e cultural.

    A insistncia em trabalhar problemas isolados compromete o entendimento do indivduo em sua dimenso relacional e de complexa totalidade. Consequentemente, no poder agir sobre a essncia do problema demandado. Seria, portanto, o caso de perguntar: a quem interessa a setorializao das polticas sociais pblicas? Ora, o atendimento das demandas sociais como um conjunto de direitos relacionados entre si poder convergir para a ampliao da cidadania e para a emancipao do coletivo. A setorializao, portanto, interessa a todos aqueles que no tm vontade poltica para fazer acontecer a equidade e a justia social.

    No tocante ao patamar do conhecimento da administrao ou gesto de polticas pblicas, importa considerar que essa rea, somente nos ltimos sessenta anos, consolidou-se como um corpo terico especfi co, com um instrumental analtico e uma gramtica prpria, voltada compreenso de seus fenmenos de natureza poltico-administrativa.

    O incio da dcada de 1950 considerado o marco do surgimento da rea disciplinar de estudos das polticas pblicas. Nessa poca surgiu um crescente interesse de estudiosos e pesquisadores sobre a formulao, a implementao e a avaliao desse tipo de poltica. Os conhecimentos na rea de polticas pblicas so necessrios queles que lidam com problemas pblicos, notadamente nos setores dedicados s reas de sade, educao, segurana, habitao, trabalho, transporte, saneamento, ambiente, defesa nacional, assistncia, cultura, desenvolvimento e gesto pblica. (SECCHI, 2010).

    Para Secchi (2010), quando se quer encontrar as bases epistemolgicas e os modelos de anlise das polticas pblicas buscam-se seus principais fundamentos disciplinares nas cincias polticas; na Sociologia e na Economia. Mas, tambm, na

    47

  • administrao pblica, na teoria das organizaes, na Engenharia, na Psicologia Social e no Direito. Conviria acrescentar a Filosofi a (na dimenso da tica e da Moral), imprescindvel para o entendimento da administrao pblica no mundo contemporneo, quando se fala em agentes conscientes, sociedade tecnolgica ou do conhecimento e da informao, ao mesmo tempo em que os episdios de falta de transparncia continuam a desafi ar a possibilidade de uma gesto efetivamente democrtica.

    O maior desafi o dos governos e da administrao pblica na atualidade, entretanto, parece ser o de promover o desenvolvimento econmico e social sustentvel atravs de polticas pblicas. A expectativa dos cidados de que a gesto das organizaes no setor pblico deva se realizar sob a gide do Estado de Direito e da democracia poltica. Assim sendo, o ambiente da gesto pblica deve ser representado pelo contexto social, poltico, jurdico e econmico do Estado e da administrao.

    Assim, na busca das bases epistemolgicas e dos modelos de anlise das polticas pblicas, compreender o Estado constitui tarefa imprescindvel. Na tica de Pereira (2010), em um sentido amplo as principais funes do Estado situam-se em quatro grandes setores: as funes de Estado stricto sensu, encarregadas da ordem externa, da defesa do territrio, da representao externa, do provimento da justia, da tributao e da administrao dos servios que presta; as funes econmicas orientadas para a criao e administrao da moeda nacional, da regulamentao dos mercados e promoo do desenvolvimento (planejamento, gerao de incentivos e estmulos, construo de infraestrutura em setores estratgicos, entre outros); as funes sociais para provimento universal dos bens sociais fundamentais (sade, educao, habitao, alimentao, redes de proteo social etc.); e as funes de preservao do meio ambiente.

    As polticas de Estado, portanto, orientam-se pelos preceitos consagrados na Constituio, apresentam carter particularmente estvel e infl exvel e determinam que os governos de um estado as implementem, independentemente dos mandatos que os eleitores lhes confi am em determinados momentos histricos.

    48

  • As polticas de governo, nas refl exes de Heidemann e Salim (2010), so geridas com o auxlio da estrutura administrativa estabelecida para resolver ou pelo menos minorar os problemas sociais na sua totalidade ou setorialmente nas suas especifi cidades. Na tica de Heidemann e Salim (2010), no Brasil os recursos da administrao pblica se caracterizam, em boa parte, por um processo de carter eminentemente formal e tambm patrimonialista. Trata-se de uma administrao que tem sua base de operao na instituio repartio pblica.

    Neste sentido prevalecem os meios postos em prtica pelo seu administrador, o funcionrio pblico. A administrao pblica brasileira o espao por excelncia da burocracia pblica e de uma ainda intensa apropriao corporativa e poltica pouco sensvel cidadania, e mais preocupada com a efi ccia social do governo. Lembra, ainda, que a poltica pblica vai alm da perspectiva de polticas governamentais, e que o governo no a nica instituio promotora de polticas pblicas, uma vez que uma associao de moradores, as empresas concessionrias, as associaes diversas da sociedade, enfi m, as Organizaes No Governamentais (ONGs) tambm se constituem agentes de polticas pblicas. No chamado terceiro setor se d a produo de um bem pblico por agentes no governa mentais, ao mesmo tempo distintos do setor empresarial e do mercado.

    Contudo, a relao entre polticas pblicas e instituies governamentais muito ntima. Mais rigorosamente falando, uma poltica no se transforma em poltica pblica antes que seja adotada, implementada e cumprida por alguma instituio governamental. Alm do mais, as instituies governamentais emprestam s polticas pblicas trs caractersticas distintas, ou seja, legitimidade (obrigaes legais sujeitas lealdade dos cidados); universalidade (dizem respeito a todas as pessoas); poder e coero (somente os governos podem legitimamente conter os violadores de suas polticas).

    Sob o ponto de vista instrumental, Heidemann e Salim (2010) sugerem que o ciclo conceitual das polticas pblicas passa por quatro etapas: a primeira se refere s decises polticas tomadas para resolver problemas sociais previamente estudados; depois de formuladas e regulamentadas em leis precisam ser implementadas. Numa terceira

    49

  • etapa procura-se verifi car se as partes interessadas esto sendo satisfeitas em suas demandas e se esto fazendo uso dos controles sociais postos sua disposio. Enfi m, as polticas pblicas precisam ser avaliadas com vistas sua continuidade, ao seu aperfeioamento ou reformulao, ou simplesmente sua descontinuidade.

    Apesar das mudanas provocadas pelo processo de globalizao e pelas intensas presses da sociedade, a gesto do setor pblico brasileiro continua a padecer de uma estrutura pesada, burocrtica e centralizada em diversas reas, notadamente na social [...] e no tem sido capaz de responder, adequadamente, enquanto organizao, s demandas e aos desafi os do momento atual. (PEREIRA, 2010, p. 9).

    De fato, o desafi o da administrao pblica tem se tornado cada vez mais ingente. Os tericos e pesquisadores da rea de gesto pblica precisam continuar investindo na busca de uma viso estratgica para melhor compreender e enfrentar os problemas da gesto pblica brasileira contempornea. Pelo menos trs razes esto sendo recorrentemente apontadas como motivo de preocupao para os gestores pblicos e para os cidados. A primeira delas que o mercado j deu provas de que por si s no consegue substituir o Estado no mbito das polticas pblicas, e que ambos precisam de um governo mais identifi cado com a justia social. A segunda se refere s crescentes exigncias relacionadas com a