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ESTADO DE INOCÊNCIA E IN DUBIO PRO SOCIETATE
Paulo César Batista Nunes da Cunha1
RESUMO
Em 1988, foi inaugurado nosso sistema jurídico, com a promulgação da Constituição da República.
Contudo, até hoje não reestruturamos nossa legislação infraconstitucional de forma adequada,
ocasionando diversas contradições. Grande parte da legislação penal brasileira foi criada durante
outros paradigmas constitucionais, vide os Códigos Penal e de Processo Penal da era Vargas, a Lei
de Execução Penal da Ditadura Militar, dentre outros. Uma vez que nossa atual Constituição é
rígida e diretiva, deve ser vista como o principal parâmetro de compatibilidade das normas com o
Estado Democrático de Direito, sem esquecer dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos que
compõem o Bloco de Constitucionalidade. Assim, a legislação ordinária deve ser lida através de
uma filtragem constitucional e convencional, de forma a assegurar a força e a hierarquia das normas,
pois é poder/dever de todo órgão jurisdicional realizar os controles de constitucionalidade e de
convencionalidade de forma difusa. Entretanto, encontram-se na jurisprudência atual ranços do
sistema inquisitorial abolido pela nova égide democrática. Um dos principais exemplos é a
fundamentação das decisões de pronúncia no rito dos processos de competência do Tribunal do Júri
através do “princípio” in dubio pro societate, que encontra respaldo até mesmo nos Tribunais
Superiores (a título de exemplo, RE 540.999-6/SP e AgRg no REsp 1192061/MG: STF e STJ,
respectivamente). Portanto, à luz dos ensinamentos de Aury Lopes Jr. e Nereu José Giacomolli será
analisada a persistência desse instituto em nosso ordenamento jurídico e sua compatibilidade com o
Estado de Inocência.
Palavras-Chave: pronúncia, Tribunal do Júri, in dubio pro societate.
1 INTRODUÇÃO
A promulgação da Constituição de 1988 bem como a incorporação de diversos tratados de
direitos humanos demonstram a edificação do Estado Democrático de Direito sob a pedra angular
da Dignidade Humana. Essa alteração de paradigma, em regra, demanda uma alteração da
legislação ordinária de forma a montar o novo ordenamento jurídico de forma coerente e coesa.
1 Especialista em Direito Processual Civil pela FAEL Universidades. Pós-graduando em Direito Constitucional pela
Universidade Anhanguera. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Analista Judiciário do
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.
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Contudo, permanecem em nosso ordenamento legislações arcaicas, como o Código de
Penal de 1940 e o Código de Processo Penal de 1941, este último inspirado no Código Processual
Penal Rocco da Itália fascista de Mussolini.
Ao longo dos anos, apenas algumas alterações legislativas pontuais ocorreram nesses
Códigos. Portanto, a forma de garantir a coesão e a coerência do ordenamento jurídico é se valer
das filtragens Constitucional e Convencional.
Assim, o devido processo é o constitucional e convencional, o justo processo, muito além
da normatividade ordinária. É aquele capaz de assegurar a proteção dos direitos humanos
no plano concreto, por meio de uma teia de garantias forjadas em sua historicidade, na
complexidade normativa doméstica e internacional. (GIACOMOLLI, 2016)
O Processo Penal foi alterado a partir da Constituição para deixar de ser mero instrumento
para condenação e aplicação da pena e se tornar um fim em si mesmo, assegurando os direitos do
acusado, tornando-os obrigatórios, garantindo que os fatos sejam discutidos de forma racional pelas
partes e sendo regulado por um terceiro imparcial.
Essa alteração do paradigma pode ser observada pela incorporação das garantias
processuais penais como direitos fundamentais previstos no Artigo 5º da Constituição da República
de 1988. As garantias, enquanto instrumentalizadoras dos direitos fundamentais, estruturam e dão
efetividade a um sistema processual democrático, razão pela qual possuem aplicabilidade imediata.
A normatividade processual penal não se insere num projeto estático, fixo, perfeito e
acabado, e muito menos autônomo e funcionalmente incomunicável mas está em constante
construção, aprimoramento, em busca de fundamentação e legitimação. (GIACOMOLLI,
2016)
Assim, para entender o processo penal brasileiro é preciso se atentar não só para a lei
processual, mas também para a Constituição e para os Tratados Internacionais de Direitos Humanos,
bem como o diálogo das fontes entre as jurisprudências doméstica e nacional.
Mesmo o procedimento do Tribunal do Júri, que possui regulamentação legal e
constitucional, precisa ser adequado à realidade democrática (constitucional e convencional).
2 TRIBUNAL DO JÚRI
No inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição da República, instituiu-se o Tribunal do
Júri: “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a
plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o
julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.
Já o Código de Processo Penal em seus artigos 406 ao 497 regulamenta o procedimento
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De acordo com Aury Lopes Junior (2014), o procedimento “é claramente dividido em duas
fases: instrução preliminar e julgamento em plenário”. A primeira que se inicia com o recebimento
da peça acusatória e a segunda com a preclusão da decisão de pronúncia.
A fase de instrução preliminar pode ser entendida como o momento processual em que a
denúncia ou queixa subsidiária é apresentada, recebida pelo juiz e ocorre a citação do réu para
apresentação de resposta escrita. O juiz, então, inicia a instrução probatória a fim de analisar a
demonstração da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de
participação.
Concluída a instrução probatória, após as alegações finais da acusação e a defesa, surgem
as seguintes possibilidades ao magistrado: a impronúncia, a absolvição sumária, a desclassificação e
a pronúncia.
A impronúncia assemelha-se à decisão de rejeição da denúncia do procedimento ordinário,
uma vez que extingue o processo em resolução do mérito. Prevista no artigo 414 do Código de
Processo Penal, é hipótese de falha na acusação que não demonstrou “a materialidade do fato ou a
existência de indícios suficientes de autoria e de participação” (BRASIL, 2008). De acordo com
Lopes Júnior (2014):
É, assim, uma decisão terminativa que encerra o processo sem julgamento de mérito, não
havendo a produção de coisa julgada material, pois o processo pode ser reaberto a qualquer
tempo,até a extinção da punibilidade, desde que surjam novas provas.
Tal decisão não absolve definitivamente o réu, mas rejeita a tramitação processual ante o
insucesso da acusação em se desincumbir de seu ônus probatório, não impedindo, contudo, nova
acusação sobre o mesmo fato.
Por outro lado, é possível findar o processo proferindo uma sentença de mérito, através da
absolvição sumária, prevista no artigo 415 do CPP3.
Uma vez que se trata de sentença de mérito, portanto acobertada pelo manto da coisa
julgada material, a absolvição sumária exige prova robusta em favor da defesa nos casos de
inexistência do fato ou negativa da autoria/participação.
Pode ser proferida, também, caso o fato imputado ao réu seja atípico ou quando
2 O Artigo 74 do CPP estabelece a tipificação da competência do Tribunal do Júri: “Art. 74. A competência pela
natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.
§ 1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo
único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados”. 3 Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando: I – provada a inexistência do fato; II –
provado não ser ele autor ou partícipe do fato; III – o fato não constituir infração penal; IV – demonstrada causa de
isenção de pena ou de exclusão do crime.
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demonstrada alguma causa de excludente de ilicitude ou culpabilidade.
Caso a instrução probatória demonstre ser o ato típico, porém diverso do artigo de
fundamento da acusação, o juiz pode alterar a definição jurídica, proferindo decisão de
desclassificação.
A desclassificação pode ser própria se a nova definição jurídica alterar a competência para
julgamento do processo, saindo do âmbito do Tribunal do Júri.
Mas, a nova definição pode continuar sob competência do Júri, como uma denúncia de
homicídio desclassificada para infanticídio, ocorrendo a desclassificação imprópria. Neste exemplo,
ocorre a desclassificação do homicídio, para que possa ocorrer a pronúncia por infanticídio.
Por fim, superadas todas as hipóteses, se convencido da materialidade e
autoria/participação do acusado, não havendo demonstração pela defesa de condições que
ensejariam a absolvição sumária ou a desclassificação, o juiz poderá proferir a decisão de
pronúncia.
A decisão de pronúncia marca o acolhimento provisório, por parte do juiz, da pretensão
acusatória, determinando que o réu seja submetido ao julgamento do Tribunal do Júri.
Preclusa a via recursal para impugnar a pronúncia, inicia-se a segunda fase (plenário).
(LOPES JUNIOR, 2014)
Sublinha-se a expressão “acolhimento provisório”. Não se trata de invadir o mérito
processual ou subtrair a competência do Conselho de Sentença, mas é necessário que o juiz esteja
“convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de
participação” (BRASIL, 2008) e profira a sentença de forma fundamentada.
Portanto, exige-se, para a pronúncia, que a acusação demonstre, ao menos em caráter de
verossimilhança, a existência do crime e o envolvimento do réu.
Delimitadas as hipóteses de decisões a serem tomadas pelo juiz quando do encerramento
da fase sumariante e seus requisitos, é necessário observar como têm sido aplicadas na prática
forense.
A seguir serão analisados alguns casos dos Tribunais Superiores sobre os limites da decisão
de pronúncia e da garantia do Estado de Inocência.
3 IN DUBIO PRO SOCIETATE E O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O primeiro caso do Superior Tribunal de Justiça a ser analisado é o Agravo Regimental
no Recurso Especial 1192061/MG (Quinta Turma – Relator Ministro Jorge Mussi)4. Trata-se de
4 PROCESSUAL PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA DE PRONÚNCIA POR
HOMICÍDIO SIMPLES A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. REEXAME DE MATERIAL FÁTICO/PROBATÓRIO.
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uma ação penal de competência do Tribunal do Júri, na qual o réu foi pronunciado por homicídio
com dolo eventual cumulado com os crimes de omissão de socorro e direção sob efeito de álcool
em concurso material. A defesa interpôs Recurso em Sentido Estrito perante o TJMG, o qual
desclassificou o dolo eventual do homicídio para a modalidade culposa.
Então, o Ministério Público de Minas Gerais interpôs Recurso Especial, visando
restabelecer a decisão de pronúncia, o qual foi provido de forma monocrática pelo Relator por
consonância com jurisprudência dominante, o que ensejou o referido Agravo Regimental pela
defesa.
Segundo a defesa, a instrução processual não gerou comprovação do dolo eventual por
parte do réu, o que deveria ensejar sua desclassificação, respeitando os artigos 413 do CPP , art. 5º,
XXXVIII, "d" e LVII, referentes à competência do Tribunal do Júri e ao princípio in dubio pro reo.
Contudo, de acordo com a fundamentação do Ministro Relator Jorge Mussi, apesar da
ausência de conjunto probatório contundente, indícios seriam suficientes por vigorar o princípio in
dubio pro societate na fase de pronúncia:
(…) vêm entendendo esta Corte Superior diante da junção dos fatores do excesso de
velocidade e embriaguez ao volante, é causa de pronúncia em obediência ao brocárdio do in
dubio pro societate, já que neste momento processual não se vale da máxima do in dubio
pro reo (...) (BRASIL, 2010)
Assim, baseando-se na alegação da ausência do princípio in dubio pro reo na referida
fase processual, o Ministro manteve a pronúncia:
Ora, havendo dúvidas quanto à ocorrência de indícios da ocorrência de tais elementos -
embriaguez e excesso de velocidade -, que em tese podem configurar dolo eventual, se
torna de rigor a pronúncia do acusado, pois, a dúvida, nesta fase processual, se resolve em
prol da sociedade e não em benefício do réu, devendo ser ressaltado que, de acordo com o
princípio do juiz natural, o julgamento acerca da ocorrência de dolo eventual ou culpa
consciente deve ficar a cargo do Conselho de Sentença, que é constitucionalmente
competente para julgar os crimes dolosos contra a vida. (BRASIL, 2010)
AUSÊNCIA. DÚVIDAS QUANTO À MATERIALIDADE DELITIVA E AOS INDÍCIOS DE AUTORIA. IN DUBIO
PRO SOCIETATE. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. 1. O restabelecimento do decisum que
remeteu o agravante à Júri Popular, não demanda reexame do material fático/probatório dos autos, mas mera
revaloração dos elementos utilizados na apreciação dos fatos pelo Tribunal local e pelo Juízo de primeiro grau. 2. A
decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o
exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de certeza necessários
à prolação de um édito condenatório, sendo que as dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se contra o réu e a favor da
sociedade. É o mandamento do art. 408 e atual art. 413 do Código Processual Penal. 3. Afirmar se agiu com dolo
eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a
narrativa dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do conjunto fático/probatório produzido no âmbito do devido
processo legal, o que impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este Sodalício. 4. Na hipótese, tendo a
decisão impugnada asseverado que há provas da ocorrência do delito e indícios da autoria assestada ao agente e tendo a
provisional trazido a descrição da conduta com a indicação da existência de crime doloso contra a vida, sem proceder à
qualquer juízo de valor acerca da sua motivação, não se evidencia ilegalidade na manutenção da pronúncia pelo dolo
eventual, que, para sua averiguação depende de profundo estudo das provas, as quais deverão ser oportunamente
sopesadas pelo Juízo competente, ou seja, o Conselho de Sentença. Agravo regimental a que se nega provimento.
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Ao final da decisão o Ministro Relator invocou o fato da decisão de pronúncia se pautar
sobre admissibilidade da acusação e não uma decisão acerca do mérito processual.
Cumpre consignar, ainda, que a decisão de pronúncia encerra simples juízo de
admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da
ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de
certeza necessários à prolação de um édito condenatório, sendo que as dúvidas, nessa fase
processual, resolvem-se contra o réu e a favor da sociedade. É o mandamento do art. 408 e
atual art. 413 do Código Processual Penal. (BRASIL, 2010)
O referido caso não transitou em julgado em razão da interposição de Embargos de
Divergência utilizando como paradigma do dissídio o Recurso Especial 705.416/SC. Os Embargos
de Divergência 1192061/MG encontram-se pendentes de julgamento na Terceira Seção do Superior
Tribunal de Justiça, sob relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz.
O Segundo caso do Superior Tribunal do Justiça é o próprio acórdão divergente referido
acima: Recurso Especial 705.416/SC (Sexta Turma – Relator Ministro Paulo Medina)5. Também se
trata de uma Ação Penal de competência do Tribunal do Júri, na qual um dos réus foi denunciado
pelo crime de homicídio doloso em concurso formal com fuga sem prestação de socorro à vítima.
O Juiz Sumariante desclassificou a conduta para homicídio culposo na direção de
veículo automotor majorado pela não prestação de socorro em concurso e para condução de veículo
com capacidade psicomotora alterada. O Recurso em Sentido Estrito interposto contra essa decisão
foi julgado procedente pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, invocando-se o “princípio” in
dubio pro societate:
Nesse contexto, na hipótese de versões antagônicas, conflitantes ou dúvidas acerca da
classificação ou culpabilidade, tal há que se resolver sempre em benefício da sociedade,
relegando ao Corpo de Jurados a oportunidade de decidir se agiu ou não o acusado com
dolo eventual no homicídio denunciado. (BRASIL, 2006)
Então o réu interpôs Recurso Especial a fim de afastar a decisão do Tribunal de Justiça,
a fim de ratificar a desclassificação feita pelo Juiz Sumariante, baseado na divergência
jurisprudencial conforme alínea ‘c’ do inciso III do artigo 105 da Constituição da República de
5 PENAL. PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DECLARATÓRIOS. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA.
HOMICÍDIO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. REVALORAÇÃO DE
PROVAS. POSSIBILIDADE. PRONÚNCIA. APLICAÇÃO DO BROCARDO IN DUBIO PRO SOCIETATE.
INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DO DOLO EVENTUAL. DÚVIDA NÃO CARACTERIZADA.
DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA QUE SE IMPÕE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. Inexistente qualquer
ambigüidade, obscuridade, contradição ou omissão no aresto impugnado, insubsistente a alegada contrariedade ao art.
619 do CPP. A revaloração do contexto probatório firmado pelo Tribunal a quo, diferente do reexame de provas vedado
pela Súmula 7/STJ, é permitida em sede de recurso especial. A pronúncia do réu, em atenção ao brocardo in dubio pro
societate, exige a presença de contexto que possa gerar dúvida a respeito da existência de dolo eventual. Inexistente
qualquer elemento mínimo a apontar para a prática de homicídio, em acidente de trânsito, na modalidade dolo eventual,
impõe-se a desclassificação da conduta para a forma culposa.
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Contudo, o Ministro Relator rejeitou a máxima do in dubio pro societate:
A dúvida deve ser sempre dirimida em favor do réu, e não como está na decisão atacada,
em que se invocou o brocardo 'in dubio pro societate ' para pronunciar o recorrente, tendo
em vista a impossibilidade de se estabelecer o elemento subjetivo do tipo. De outra parte, o
decisum desclassificatório, constitui precedente lógico e necessário o juízo de certeza
declaratório, com ampla análise das questões de fato contidas nos elementos probatórios,
âmbito no qual o magistrado deve exercer com profundidade o seu racional convencimento
motivado. (BRASIL, 2006)
Ainda são invocadas as lições de Sérgio Pitombo para rejeitar tal expressão, pois mesmo
a fase de pronúncia, que impede aprofundamento do mérito, exige-se fundamentação adequada
sobre o convencimento do juiz:
A doutrina corrobora o entendimento: "(...) a expressão in dubio pro societate não exibe o
menor sentido técnico. Em tema de direito probatório, afirmar-se: 'na dúvida em favor da
sociedade' consiste em absurdo lógico-jurídico. Veja-se: em face de contingente dúvida,
sem remédio, no tocante à prova – ou melhor, imaginada incerteza – decide-se em prol da
sociedade. Dizendo de outro modo: se o acusador não conseguiu comprovar o fato,
constitutivo do direito afirmado, posto que conflitante despontou a prova; então, se
soluciona a seu favor, por absurdo. Ainda, porque não provou ele o alegado, em face do
acusado, deve decidir-se contra o último. Ao talante, por mercê judicial o vencido vence, a
pretexto de que se favorece a sociedade: in dubio contra reum” (PITOMBO, Sérgio Marcos
de Moraes. Pronúncia e in dubio pro societate - Boletim dos Procuradores da República, n.º
45, janeiro de 2002, p. 26 APUD BRASIL, 2006)."
Assim, é interessante observar que apesar jurisprudência majoritária adotar tal
“princípio” na fundamentação das decisões, ainda há resistência de magistrados em aplica-lo
livremente.
4 IN DUBIO PRO SOCIETATE E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O caso oriundo do Supremo Tribunal Federal a ser estudado é o Recurso Extraordinário
540.999/SP (Primeira Turma – Relator Ministro Menezes Direito). Seguindo a linha do presente
estudo, também se trata de Ação Penal de Competência do Tribunal do Júri, na qual os réus foram
denunciados por homicídio qualificado e sequestro.
Pronunciados pelo Juiz Sumariante, um dos réus interpôs Recurso em Sentido Estrito ao
Tribunal de Justiça de São Paulo, que manteve a decisão de primeiro grau. Então, dessa decisão o
mesmo réu interpôs Recurso Extraordinário alegando violação ao inciso LVII do artigo 5º da
Constituição, pela aplicação do princípio in dubio pro societate.
O Relator Menezes Direito, ao apreciar o Recurso Extraordinário, decidiu que a fase da
pronúncia, por não exigir provas conclusivas, permite a aplicação da máxima do in dubio pro
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societate. De acordo com a sua decisão, uma vez que a Constituição fixa a competência do
julgamento para o Tribunal do Júri, este deveria ser o responsável por fazer a derradeira e profunda
análise das provas em plenário. Portanto, apenas o Corpo de Jurados seria competente para decidir
acerca de questões controversas.
Considerando, portanto, que a sentença de pronúncia permite, em última análise, que a
causa seja submetida ao seu juízo natural e, além disso, que ela pressupõe, necessariamente,
a valoração dos elementos de prova coligidos aos autos, não há como sustentar que a
aplicação do aforismo in dúbio pro societate consubstancie violação ao princípio da
presunção de inocência.
Esse último trecho demonstra a tese adotada no Supremo Tribunal Federal, servindo para
aplicação em diversos processos (ARE 788457 AgR/SP; ARE 788288 AgR/GO, dentre outros) na
medida em que garante a aplicação do in dubio pro societate, negando o conflito com uma das
bases do Processo Penal: o Estado de Inocência.
5 ESTADO DE INOCÊNCIA
O Devido Processo Penal democrático, estruturado na Constituição e nos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos, é o principal instrumento de proteção do indivíduo frente ao
Poder Acusatório do Estado. O Devido Processo legitima a persecução estatal e impede aplicação
do direito de forma casuística e atropelada.
Para que haja condenação e, posteriormente, possa ser afetada a liberdade do indivíduo,
deve ser percorrido todo o iter processual, seguindo as regras do jogo e sem atropelos.
Portanto, deve-se considerar a liberdade do indivíduo como um dos princípios de maior
importância ao sistema democrático. Presumindo a liberdade como regra, deve-se demonstrar de
forma racional, e através do devido processo, a necessidade extrema de retirá-la. Os direitos e
garantias fundamentais funcionam como travas e, ao mesmo tempo, como estruturas ao Poder
punitivo estatal.
Nereu José Giacomolli (2016) defende a equivalência processual das expressões
“presunção de inocência”, “presunção de não culpabilidade” e “Estado de Inocência”, pois todas
indicam a necessidade de demonstração racional da culpabilidade pela acusação.
Segundo Lopes Junior (2014): “Todo poder tende a ser autoritário e precisa de limites,
controle. Então, as garantias processuais constitucionais são verdadeiros escudos protetores contra o
(ab)uso do poder estatal”. Dessa forma, é necessário dar a máxima efetividade às garantias e
direitos previstos nas leis, Constituição ou convenções para assegurar que o processo não está
contaminado por vícios e se estabeleceu de forma legítima e imparcial.
Para Gilmar Mendes (2012), “as garantias asseguram ao indivíduo a possibilidade de exigir
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dos Poderes Públicos o respeito ao direito que instrumentalizam”. Pode-se entender, portanto, que a
garantia do devido processo penal instrumentaliza o direito à liberdade, na medida que impede seu
cerceamento sem que tenha sido percorrido o caminho democrático.
De acordo com Nereu Giacomolli (2016), os documentos internacionais surgidos após a
Segunda Guerra Mundial inspiraram os Estados democráticos a adotarem os direitos e as garantias
do processo penal em suas Constituições.
Tratando-se de processo penal, o primeiro direito a ser apontado é o Estado de Inocência
ou de Não Culpabilidade, presente no artigo 5º, LVII da Constituição da República de 19886 e no
artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos7. Para assegurar esse direito, há diversas
garantias fundamentais tão importantes quanto ele mesmo. A própria noção de devido processo
penal surge a partir da presunção de inocência:
O ser humano nasce inocente, permanece inocente até que o Estado afaste esse estado
natural e jurídico, de modo consistente, através do devido processo constitucional e
convencional, do devido processo (acusação, processo, ampla defesa, provas suficientes,
debate contraditório, decisão judicial fundamentada, duplo pronunciamento).
Portanto, corolário ao Estado de Inocência, há a garantia do encargo probatório exclusivo
para acusação. Para alterar o Estado do qual todo indivíduo parte, é necessário que a acusação
demonstre de forma racional todos os fatos alegados no processo, como a existência e a
materialidade do crime, a prova de autoria do réu.
Contudo, isso não impede que a defesa queira, valendo-se do contraditório, produzir as
provas que julgar necessárias para elucidar quaisquer questões processuais ou materiais. O que não
se pode é criar uma situação desfavorável ao réu por ausência de provas, nem forçá-lo à
autoincriminação. Assim, não existindo provas ou sendo estas muito frágeis, a dúvida deve ser
interpretada em benefício do réu. O devido processo exige consistência probatória por parte da
acusação.
A manutenção do Estado de Inocência não deve ser garantida apenas na dimensão
endoprocessual. Mas deve ser também enxergada como regra de tratamento fora do processo. Para
Aury Lopes Junior (2014):
Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a
publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de
inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade)
devem ser utilizadas como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática
em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial.
6 LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. 7 8.2 – Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente
sua culpa.
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A essa regra de tratamento, é possível atribuir a edição da Súmula Vinculante 11 do
Supremo Tribunal Federal, que determina a excepcionalidade do uso de algemas, por toda a carga
representada pela apresentação do réu preso por algemas, trata-se de uma confirmação não jurídica
da culpa aos olhos do leigo. Portanto, é preciso que esse princípio seja respeitado principalmente no
rito perante o Tribunal do Júri.
Ainda, deve-se entender a carga do Estado de Inocência para impedir a privação da
liberdade do réu.
Quando a perspectiva de análise partir do estado de inocência, a regra é a manutenção da
liberdade do cidadão (regra protetiva do status libertatis – tratamento interno), com o
emprego de remédios jurídicos garantidos pela CF e pela legislação ordinária, mormente
através do habeas corpus. Por isso, a prisão somente se justifica após uma sentença
condenatória com trânsito em julgado e a prisão processual não representa uma antecipação
dos efeitos de uma condenação.
Assim, qualquer seja a modalidade de prisão provisória não pode ser usada para antecipar a
pena do réu. Uma vez que é necessário percorrer todo o iter do devido processo penal para
desconstituir o Estado de Inocência, a prisão provisória deve se justificar apenas em casos
excepcionais e de forma cautelar, para instrumentalizar a ação penal, em determinadas situações
concretas, não podendo nem mesmo ser decretada para crimes considerados graves, conforme
jurisprudência dominante no STF.
O trecho a seguir foi retirado da decisão monocrática do Ministro Celso de Mello, relator
do Habeas Corpus 132615/SP:
Impende assinalar, por isso mesmo, que a gravidade em abstrato do crime, qualquer que
seja, não basta para justificar, só por si, a privação cautelar da liberdade individual de
qualquer paciente.
O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a natureza da infração penal não se revela
circunstância apta, “per se”, a justificar a privação cautelar do “status libertatis” daquele
que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.
Esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito
desta Corte, ainda que o delito imputado ao réu seja classificado como crime hediondo ou
constitua espécie delituosa a este legalmente equiparada.
Portanto, não basta a alegação da gravidade genérica de um tipo penal para que seja
decretada a prisão provisória, sob pena de diminuir o alcance do Estado de Inocência.
6 CRÍTICAS AO IN DUBIO PRO SOCIETATE
Reconhecida a importância do Estado de Inocência e consideradas suas consequências, é
necessário estudar por que parte da doutrina e alguns poucos julgados resistem em reconhecer a
expressão in dubio pro societate como princípio. Aury Lopes Júnior (2014) inicia a discussão:
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“Questionamos, inicialmente, qual é a base constitucional do in dubio pro societate? Nenhuma. Não
existe”.
Portanto, surge a primeira crítica: como pode ser princípio sem estar previsto? Trata-se do
fenômeno nomeado por Lenio Luiz Streck de Pamprincipiologismo:
Na esteira da construção dessa busca pela determinação do conceito de princípio, deparei-
me, mormente nos anos mais recentes, com situações inusitadas. Certamente, a mais
pitoresca de todas é aquela que nomeei de pamprincipiologismo, uma espécie de patologia
especialmente ligada às práticas jurídicas brasileiras e que leva a um uso desmedido de
standards argumentativos que, no mais das vezes, são articulados para driblar aquilo que
ficou regrado pela produção democrática do direito, no âmbito da legislação
(constitucionalmente adequada).
Dessa forma, no contexto do pós-positivismo jurídico, que reconhece os princípios como
normas, muitos operadores do Direito acabam por trazer valores (morais) para o âmbito jurídico
casuisticamente, sem explicação hermenêutica, denominando-os princípios. Fenômeno que é
observado não apenas com o in dubio pro societate, mas também com o “princípio” na confiança do
juiz da causa, “princípio” da afetividade, dentre outros.
Brilhante conclusão de Rodrigo Hendges sobre o dever constitucional dos juízes
desenvolverem suas decisões através de princípios que encontrem previsão normativa, fruto de uma
construção democrática:
A partir daí, pode se evidenciar que a aplicação do princípio do in dubio pro societate nas
decisões de pronúncia que levam o réu a julgamento perante o Tribunal do Júri é
inconstitucional, pois, se o Constitucionalismo Garantista concebe um sistema de controle
do conteúdo do Direito produzido, impondo ao julgador o dever ético de proteger e
reverenciar os princípios fundamentais positivados, a aplicação do brocardo carece de
validade substancial, já que não encontra previsão na norma fundamental positivada pela
Constituição Federal, ao contrário do princípio da preseunção de inocência e do in dubio
pro reo, derrogados nestas decisões.
Porém, ainda que possuísse previsão legal, não seria possível confrontá-lo com o Estado de
Inocência, que regulamenta o processo penal democrático. Para Lopes Junior (2014):
Não se pode admitir que os juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás
de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar
réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que
representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário.
Deve-se considerar o fato de que a fase posterior à pronúncia, realizada em plenário, conta
com um Conselho de Sentença capaz de condenar o réu baseado na íntima convicção dos jurados.
Trata-se de um grande risco para qualquer pessoa ser levado a esse julgamento.
Necessária, também, a lição de Paulo Rangel (2002):
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Se há dúvida é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em
sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua
falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o
sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção. A desculpa de que os
jurados são soberanos não pode autorizar uma condenação com base na dúvida.
Reconhecer e aplicar como princípio a sentença in dubio pro societate é retirar o ônus
processual da acusação e transferi-lo de forma inconstitucional para a defesa. Seria uma forma de
esvaziamento da impronúncia. De acordo com Lopes Junior, “o sistema probatório fundado a partir
da presunção constitucional de inocência não admite nenhuma exceção procedimental, inversão de
ônus probatório ou frágeis construções inquisitoriais do estilo in dubio pro societate”.
Deve-se sempre recordar que no processo penal não há distribuição equitativa do ônus
probatório tal qual nas lides do processo civil, repousando inteiramente nas mãos do Estado-
Acusação.
Assim, a existência de uma dúvida razoável deve gerar prejuízo à parte que deveria ter
cumprido tal tarefa: a acusação. Esse prejuízo processual da acusação deve gerar a extinção do
processo, ainda que seja sem resolução do mérito, através da impronúncia. Uma vez que a
impronúncia não faz coisa julgada material, nada impede que venha a ser iniciado novo processo
baseado em novas provas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É preciso que se entenda que a democracia instalada pela Constituição de 1988 deve
irradiar para todas as áreas do Direito. O Processo Penal, apesar de não ter tido sua codificação
refeita tal como o Processo Civil, deve ser visto à luz da Constituição e dos Tratados Internacionais
de Direitos Humanos, como o Pacto San José da Costa Rica.
Prática inquisitoriais, como a aplicação do in dubio pro societate, devem ser abolidas da
teoria e da prática jurídica. Afinal, não podemos deixar o Direito ser levado por “regras de bolso”
(ROSA; KALED 2014). Para que uma expressão possa ser considerada Princípio Jurídico necessita
ter previsão normativa, fruto de discussões democráticas e anseio da sociedade.
Por mais bem-intencionados que estejam, os atores jurídicos não podem ter a pretensão de
criar normas durante o transcurso dos processos. Repito, as normas gerais e abstratas devem ser
oriundas de um devido processo legislativo, sob pena de tornarem-se normas de conveniência e
arbítrio.
Apesar de ter sido perpetuada por muito tempo, a referida expressão está sendo combatida
em diversos espaços, não apenas na fase da pronúncia, mas no próprio recebimento da denúncia. A
norma não diz que essas fases preliminares exigem profunda demonstração probatória, mas é
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preciso que haja indícios mínimos e aparência (verossimilhança) dos fatos narrados pela acusação.
Retirar a garantia do in dubio pro reu e do Estado de Inocência do acusado é subverter a
lógica processual penal, é inverter ônus da prova, é dizer que em caso de ausência de provas a
dúvida se reverteria em favor da acusação, contra o réu.
Não cabe aos atores jurídicos desprezarem a lei e criarem sua própria norma. A Lei trata da
verossimilhança para pronúncia, não da certeza exauriente. A fase de pronúncia serve justamente
para impedir que um caso de dúvida possa ser encaminhado para julgamento pelo Conselho de
Sentença.
Simples: havendo os elementos presentes no artigo 413 em caráter de verossimilhança,
deve ser pronunciado o réu. Em caso de dúvida do juiz, não tendo sido persuadido completamente
pela acusação, deve impronunciar, rejeitando a acusação, ainda que sem resolução do mérito.
Não fosse assim, o legislador não teria criado tal fase, o juiz apenas analisaria os elementos
da denúncia e da resposta à acusação e já intimaria as partes para iniciar o julgamento em plenário
logo após o recebimento da denúncia.
O jurista Lenio Luiz Streck defende abertamente a necessidade de que sejam criticadas as
decisões judiciais, até mesmo as proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, pois a Constituição é
muito mais do que o seu guardião diz que ela é. Na coluna Senso Incomum do final de 2016,
apontou que talvez o caminho para que abandonemos determinados comportamentos seja o
constrangimento. Por isso, é dever de toda comunidade jurídica constranger todo comportamento
que despreze a Constituição.
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