Escuta as vozes da terra - Douglas Wood as vozes da... · Pus-me à escuta, atento, ... Escuta o...

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Um dia, o meu avô deixou-nos. Continuei a pensar nele com todas as minhas forças, mas ele não voltou. Não podia voltar. Rezei até mais não poder. Depois, deixei de o fazer. Sem ele, tudo me parecia sombrio, e sentia-me muito só. Alguns anos mais tarde, durante um passeio, sentei-me debaixo de uma árvore enorme. Os ramos mexiam e as folhas sussurravam. Ouvi o murmúrio de um ribeiro e o canto de um pintarroxo, pendurado numa madressilva. Ouvi também um ligeiro sussurro, misturado com o sopro do vento, com o canto dos pássaros e com o marulho da água. Tal como o meu avô me ensinara, a terra falava comigo. Então, também eu murmurei, docemente: Obrigado pelas árvores grandes e pelas flores, pelos rochedos e pelos pássaros. E, sobretudo… obrigado pelo meu avô! Foi então que algo aconteceu. Senti – outra vez – o meu avô perto de mim… E, pela primeira vez, desde há muito tempo, tudo me parecia perfeito. Douglas Wood Grandad’s prayers of the earth London, Walker Books, 2000 (Tradução e adaptação) Escuta as vozes da terra Durante a infância, o meu avô era o meu melhor amigo. Quando estávamos juntos, tudo me parecia perfeito. Gostávamos ambos de passear pelos bosques. Nunca íamos muito longe, nem andávamos muito depressa. Escolhíamos caminhos sinuosos. Enquanto caminhávamos, fazia-lhe imensas perguntas. Avô, porque é…? O que se passaria se…? Será que às vezes…? Um dia, perguntei-lhe: Avô, o que é uma oração? O meu avô ficou em silêncio durante muito tempo. Quando chegámos junto das árvores mais altas da floresta, respondeu-me com uma pergunta: Alguma vez ouviste o murmúrio das árvores? Pus-me à escuta, atento, mas em vão. Vê como as árvores sobem até ao céu. Tentam subir sempre mais. Querem chegar às nuvens, ao sol, à lua e às estrelas. Procuram elevar-se até ao céu. Pensei nas árvores, procurei ouvi-las. Enquanto reflectia, sentei- -me numa rocha velha, coberta de musgo. O meu avô explicou:

Transcript of Escuta as vozes da terra - Douglas Wood as vozes da... · Pus-me à escuta, atento, ... Escuta o...

Um

dia

, o

meu

avô

dei

xou-

nos.

Con

tinue

i a

pens

ar n

ele

com

to

das

as m

inha

s fo

rças

, mas

ele

não

vol

tou.

Não

pod

ia v

olta

r. Re

zei

até

mai

s nã

o po

der.

Dep

ois,

dei

xei

de o

faz

er.

Sem

ele

, tu

do m

e pa

reci

a so

mbr

io, e

sen

tia-m

e m

uito

só.

Alg

uns

anos

mai

s ta

rde,

dur

ante

um

pas

seio

, sen

tei-m

e de

baix

o de

um

a ár

vore

eno

rme.

Os

ram

os m

exia

m e

as

folh

as s

ussu

rrav

am.

Ouv

i o

mur

múr

io d

e um

rib

eiro

e o

can

to d

e um

pin

tarr

oxo,

pe

ndur

ado

num

a m

adre

ssilv

a. O

uvi

tam

bém

um

lig

eiro

sus

surr

o,

mis

tura

do c

om o

sop

ro d

o ve

nto,

com

o c

anto

dos

pás

saro

s e

com

o

mar

ulho

da

água

.

Tal c

omo

o m

eu a

vô m

e en

sina

ra, a

terr

a fa

lava

com

igo.

Ent

ão,

tam

bém

eu

mur

mur

ei, d

ocem

ente

:

― O

brig

ado

pela

s ár

vore

s gr

ande

s e

pela

s flo

res,

pel

os ro

ched

os

e pe

los

páss

aros

. E, s

obre

tudo

… o

brig

ado

pelo

meu

avô

!

Foi

entã

o qu

e al

go a

cont

eceu

. Se

nti

– ou

tra

vez

– o

meu

avô

pe

rto

de m

im…

E, p

ela

prim

eira

vez

, des

de h

á m

uito

tem

po,

tudo

me

pare

cia

perf

eito

.

D

ougl

as W

ood

Gra

ndad

’s pr

ayer

s of t

he ea

rth

Lond

on, W

alke

r Boo

ks, 2

000

(Tra

duçã

o e

adap

taçã

o)

Escu

ta a

s vo

zes

da te

rra

Dur

ante

a in

fânc

ia, o

meu

avô

era

o m

eu m

elho

r am

igo.

Qua

ndo

está

vam

os ju

ntos

, tud

o m

e pa

reci

a pe

rfei

to.

Gos

táva

mos

am

bos

de p

asse

ar p

elos

bos

ques

. N

unca

íam

os

mui

to

long

e,

nem

an

dáva

mos

m

uito

de

pres

sa.

Esco

lhía

mos

ca

min

hos

sinu

osos

. En

quan

to

cam

inhá

vam

os,

fazi

a-lh

e im

ensa

s pe

rgun

tas.

― A

vô, p

orqu

e é…

?

― O

que

se

pass

aria

se…

? ―

Ser

á qu

e às

vez

es…

?

Um

dia

, per

gunt

ei-lh

e:

― A

vô, o

que

é u

ma

oraç

ão?

O m

eu a

vô f

icou

em

silê

ncio

du

rant

e m

uito

te

mpo

. Q

uand

o ch

egám

os

junt

o da

s ár

vore

s m

ais

alta

s da

flo

rest

a, r

espo

ndeu

-me

com

um

a pe

rgun

ta:

― A

lgum

a ve

z ou

vist

e o

mur

múr

io d

as á

rvor

es?

Pus-

me

à es

cuta

, ate

nto,

mas

em

vão

.

― V

ê co

mo

as á

rvor

es s

obem

até

ao

céu.

Ten

tam

sub

ir s

empr

e m

ais.

Que

rem

che

gar

às n

uven

s, a

o so

l, à

lua

e às

est

rela

s. P

rocu

ram

el

evar

-se

até

ao c

éu.

Pens

ei n

as á

rvor

es, p

rocu

rei o

uvi-l

as. E

nqua

nto

refle

ctia

, sen

tei-

-m

e nu

ma

roch

a ve

lha,

cob

erta

de

mus

go. O

meu

avô

exp

licou

:

― A

s ro

chas

e a

s m

onta

nhas

tam

bém

fal

am c

onno

sco.

A s

ua

calm

a e

o se

u si

lênc

io in

spir

am-n

os tr

anqu

ilida

de.

Dep

ois

de t

er r

efle

ctid

o du

rant

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stan

te t

empo

, peg

uei

num

a pe

dra

e co

loqu

ei-a

no

meu

bol

so.

Cam

inhá

mos

um

pou

co m

ais,

até

junt

o de

um

rib

eiro

. A á

gua

borb

ulha

va, c

intil

ava,

e v

iam

-se

pequ

enos

pei

xes

a na

dar.

― A

vô, o

s ri

beir

os ta

mbé

m m

urm

uram

?

― C

laro

. Bem

com

o to

dos

os l

agos

, rio

s e

curs

os d

e ág

ua. À

s ve

zes,

cor

rem

tra

nqui

lam

ente

. Esp

elha

m a

s nu

vens

, os

páss

aros

, o

sol o

u as

est

rela

s. O

utra

s ve

zes,

esc

oam

-se

em re

dem

oinh

os, l

ança

m-

-se

no m

ar o

u ev

apor

am-s

e no

céu

. E o

cic

lo r

ecom

eça…

Tam

bém

se

riem

e d

iver

tem

com

os

seus

am

igos

roc

hedo

s. D

ança

m,

salta

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torn

am a

cai

r… M

as a

nat

urez

a co

nhec

e ou

tras

for

mas

de

se

expr

imir

. A

s er

vas

alta

s pr

ocur

am o

sol

e a

s flo

res

exal

am o

seu

pe

rfum

e do

ce. Q

uant

o ao

ven

to, s

ussu

rra,

gem

e, s

uspi

ra, e

sop

ra-n

os

as s

uas

pala

vras

. Esc

uta

o ca

nto

dos

páss

aros

de

man

hã c

edo,

esc

uta

o se

u si

lênc

io a

ntes

do

nasc

er d

o so

l. C

onse

gues

ouv

ir a

mel

odia

do

pint

arro

xo

ao

cair

da

ta

rde?

O

s an

imai

s co

rrem

pel

a flo

rest

a, t

orna

m-

-se

relu

zent

es c

om a

águ

a, e

scal

am

mon

tanh

as,

voam

até

às

nuve

ns,

ou

refu

giam

-se

na

terr

a.

É as

sim

qu

e to

dos

os

sere

s vi

vos

part

icip

am

na

bele

za d

o m

undo

Cal

ámo-

nos

os d

ois.

O m

eu a

olha

va o

hor

izon

te e

eu

refle

ctia

no

que

ele

me

tinha

dito

sob

re a

s ro

chas

, as

árv

ores

, a

erva

, os

pás

saro

s e

as

flore

s. A

cabe

i por

lhe

perg

unta

r de

que

mod

o re

zava

m o

s ho

men

s.

O

meu

av

ô so

rriu

e

pass

ou

a m

ão

pelo

s m

eus

cabe

los.

Re

spon

deu:

― T

al c

omo

a na

ture

za,

os h

omen

s tê

m a

sua

lin

guag

em

próp

ria.

Pod

em in

clin

ar-s

e pa

ra c

heir

ar u

ma

flor,

ver o

sol

des

pont

ar

no h

oriz

onte

, sen

tir a

terr

a m

over

-se

doce

men

te,

ou

saud

ar

o di

a qu

e co

meç

a.

Pode

mos

pa

ssea

r nu

m

bosq

ue c

ober

to d

e ne

ve n

um d

ia d

e In

vern

o e

ver

o no

sso

próp

rio

sopr

o co

nfun

dir-

se

com

o

sopr

o do

m

undo

. A

mús

ica

e a

pint

ura

são

tam

bém

form

as d

e no

s ex

prim

irm

os,

de fa

larm

os…

Às

veze

s, s

entim

o-no

s tr

iste

s, d

oent

es o

u is

olad

os.

Entã

o,

repe

timos

as

pala

vras

que

os

noss

os

pais

e

avós

no

s le

gara

m.

Mas

é

prec

iso

que

cada

um

enc

ontr

e as

sua

s pr

ópri

as p

alav

ras.

O q

ue é

im

port

ante

é d

izer

o q

ue v

erda

deir

amen

te s

e se

nte,

o q

ue n

os v

em

do c

oraç

ão.

Pass

ado

algu

m t

empo

, o m

eu a

vô d

isse

-me

que

eram

hor

as d

e re

gres

sar.

Mas

eu

tinha

um

a úl

tima

perg

unta

:

― S

erá

que

há re

spos

tas

para

as

noss

as o

raçõ

es?

Sorr

iu.

― S

e as

esc

utar

mos

ate

ntam

ente

, as

ora

ções

con

têm

as

suas

pr

ópri

as r

espo

stas

. Nós

som

os c

omo

as á

rvor

es, o

ven

to e

a á

gua.

N

ão p

odem

os m

udar

o q

ue n

os r

odei

a, m

as p

odem

os m

udar

-nos

a

nós

mes

mos

. É e

volu

indo

que

tran

sfor

mam

os o

mun

do.

Dep

ois

dest

e pa

ssei

o, a

inda

vol

tám

os a

pas

sear

junt

os. D

e ca

da

vez,

tent

ei e

scut

ar a

s vo

zes

da te

rra,

mas

cre

io q

ue n

unca

as o

uvi.