escolas inovadoras

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Transcript of escolas inovadoras

UNESCO 2003 Edio publicada pelo Escritrio da UNESCO no Brasil

Education Sector Division of Educational Policies and Strategies Section for Policy Studies, Research and Information Technologies/UNESCO-Paris

As autoras so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem to pouco a delimitao de suas fronteiras ou limites.

edies UNESCO BRASILConselho Editorial Jorge Werthein Cecilia Braslavsky Juan Carlos Tedesco Adama Ouane Clio da Cunha Comit para a rea de Educao ngela Rabelo Clio da Cunha Candido Gomes Marilza Machado Regattieri

Reviso: Eduardo Percio DPE Studio Assistente Editorial: Larissa Vieira Leite Diagramao: Fernando Brando Projeto Grfico: Edson Fogaa UNESCO 2003 Abramovay, Miriam Escolas inovadoras: experincias bem-sucedidas em escolas pblicas / Miriam Abramovay et alli. - Braslia: UNESCO, 2003. 428p. ISBN: 85-87853-79-1 1. Educao Brasil 2. Violncia nas Escolas Brasil 3. Violncia entre Jovens Brasil 4. Jovens Desfavorecidos Brasil 5. Ambiente Escolar Brasil 6. Inovao Educacional Brasil I. UNESCO II. Ttulo CDD 370

Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura Representao no Brasil SAS, Quadra 5 Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar. 70070-914 Braslia DF Brasil Tel.: (55 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 322-4261 E-mail: [email protected]

EQUIPE RESPONSVEL

COORDENAO Miriam Abramovay Universidade Catlica de Braslia

P ESQUISADORES Maria Fernanda Rezende Nunes Convnio UNESCO/UNIRIO Eliane Ribeiro Andrade Convnio UNESCO/UNIRIO Miguel Farah Neto Convnio UNESCO/UNIRIO Maria Angela Carvalho de Oliveira Muniz Convnio UNESCO/UNIRIO Joo Paulo Macedo e Castro Convnio UNESCO/UNIRIO Ana Maria Alexandre Leite Convnio UNESCO/UNIRIO Luiz Carlos Gil Esteves Convnio UNESCO/UNIRIO

COLABORAO Fernanda Estevam de Carvalho Estagiria UNIRIO Luisa Figueiredo do Amaral e Silva Estagiria UNIRIO Lorena Vilarins Pesquisadora UNESCO

NOTA SOBRE OS AUTORES

MIRIAM ABRAMOVAY professora da Universidade Catlica de Braslia, vice-coordenadora do Observatrio de Violncia nas Escolas no Brasil e consultora de vrios organismos internacionais em pesquisas e avaliaes nos temas: juventude, violncia e gnero. Formou-se em Sociologia e Cincias da Educao pela Universidade de Paris, Frana (Paris VII Vincennes), possui mestrado em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo e doutoranda na Universidade de Bordeaux Victor Segalen, Frana. Coordenou e publicou vrias pesquisas e avaliaes de programas sociais. autora e co-autora de livros sobre juventude, violncia e cidadania, bem como de vrios artigos publicados em revistas cientficas e especializadas no tema violncia nas escolas. MARIA FERNANDA REZENDE NUNES doutoranda pelo Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em educao pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ps-graduada em educao pelo IESAE/ Fundao Getlio Vargas. Trabalhou no Ministrio da Educao e na Faculdade de Educao da Universidade Federal Fluminense. Atualmente, integra os quadros da Escola de Educao da Universidade do Rio de Janeiro UNIRIO, atuando tambm como pesquisadora da UNESCO e professora do curso de Ps-graduao em Educao Infantil da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Coordena o Frum Permanente de Educao Infantil do Estado do Rio de Janeiro. ELIANE RIBEIRO ANDRADE doutoranda da Faculdade de Educao da Universidade Federal Fluminense, mestre em Educao pelo IESAE da Fundao Getlio Vargas e ps-graduada em Avaliao de Programas Sociais e Educativos pelo Instituto Interamericano de Cooperao para Agricultura IICA. Exerceu por vrios anos a funo de tcnica em assuntos educacionais do Ministrio da Educao MEC e integra, atualmente, os quadros da Escola de Educao da Universidade

do Rio de Janeiro UNIRIO, atuando, tambm, como pesquisadora da UNESCO, nos campos de educao juventude. Professora substituta da Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ e membro do Frum de Educao de Jovens e Adultos do Rio de Janeiro. MIGUEL FARAH NETO mestre em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (2002). Graduou-se como gegrafo (1973) e como licenciado em Geografia (1974), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde 1980, vem desenvolvendo trabalhos nas reas de Educao de Jovens e Adultos e de polticas pblicas para a educao, na Universidade Federal Fluminense e no Ministrio da Educao, dentre outras instituies. Integra, hoje, os quadros da Universidade do Rio de Janeiro UNIRIO, atuando, tambm, como pesquisador da UNESCO, nos campos de educao, juventude e violncia. MARIA ANGELA DE OLIVEIRA NUNEZ sociloga pela SORBONNE NOUVELLE Paris 7, professora, consultora da UNESCO para assuntos educacionais e integra a Unidade Gestora do Programa Escolas de Paz, desenvolvido pela UNESCO e pela Secretaria de Estado de Educao do Rio de Janeiro. Foi coordenadora de Programas Sociais da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do municpio do Rio de janeiro; diretora do Departamento de Creches e Escolas comunitrias da Secretaria municipal de Desenvolvimento Social do municpio do Rio de Janeiro. Coordenadora pedaggica do projeto Alfabetizar Construir Alfabetizao de Operrios em canteiros de obra desenvolvido pelo SINDUSCON Rio de Janeiro /MEC / Fundao Roberto Marinho. Foi coordenadora pedaggica das seguintes publicaes: Pensando: Reflexos sobre a Alfabetizao de operrios da construo Civil e Experimentando: Roteiros para a Alfabetizao de operrios da Construo Civil. JOO PAULO MACEDO E CASTRO doutorando pelo Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional UFRJ. Trabalhou no grupo de pesquisa e avaliao do Programa Escolas de

Paz no ano de 2001. Trabalhou na avaliao do Programa Favela Bairro no Rio de Janeiro no ano de 1997/1998 IEC/IPPUR. Trabalhou como pesquisador no Programa de Anlise qualitativa dos programas inovadores do Comunidade Solidria (NEEP) 1998/1999. ANA MARIA ALEXANDRE LEITE mestre em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica-Rio, Ps-Graduao em Psicologia Mdica pela Universidade Estcio de S. Exerceu, por vrios anos a funo de tcnico em assuntos educacionais do Ministrio da Educao. Atualmente integra os quadros da Escola de Educao da Universidade do Rio de Janeiro- UNIRIO e atua tambm como pesquisadora da UNESCO. Palestrante voluntria em cursos de pr-vestibulares para negros e carentes na Baixada Fluminense, co-autora do livro Escolas de Paz/UNESCO. LUIZ CARLOS GIL ESTEVES doutorando em Educao pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e mestre em Educao pela Universidade Federal Fluminense UFF, com formao nas reas de Cincias Sociais e Comunicao Social. servidor da Universidade do Rio de Janeiro UNIRIO, exercendo, entre outras, a funo de pesquisador-consultor da UNESCO em Convnio de Cooperao Tcnica, e professor de Sociologia e Polticas Pblicas da Universidade Estcio de S UNESA. Atuou tambm no Ministrio da Educao MEC, colaborando na formulao, implementao, coordenao e avaliao de polticas pblicas educacionais.

EQUIPES LOCAIS DE PESQUISA DE CAMPO

ALAGOAS Universidade Federal de Alagoas Fundao Universitria de Desenvolvimento de Extenso e Pesquisa Elvira Simes Barretto coordenadora local Jos Edson Lino Moreira assistente

AMAZONAS UNISOL Fundao de Apoio Institucional Rio Solimes Cludia Regina Brando Sampaio Fernandes da Costa coordenadora local Rosimeire de Carvalho Martins assistente

BAHIA UNIFACS Universidade Salvador Alcides dos Santos Caldas coordenador local Tatiana de Andrade Spinola assistente

CEAR Universidade Federal do Cear Vernica Morais Ximenes coordenadora local Eugnia Bridget Gadelha; Celnia Lima assistentes

DISTRITO FEDERAL Universidade Catlica de Braslia Afonso Celso Tanus Galvo coordenador local Raimunda Maria da Cunha Ribeiro assistente

ESPRITO SANTO Universidade Federal do Esprito Santo Thimoteo Camacho coordenador local Ktia Coelho Santos de S; Flvio Corsini Lrio assistentes GOIS Universidade Federal de Gois Nomia Lipovetsky coordenadora local Marialice Thomaz Soares assistente MATO GROSSO Universidade Federal de Mato Grosso Daniela Barros da Silva Freire Andrade coordenadora local Miriam Ross Milani assistente PAR UNIPOP Instituto Universidade Popular Lcia Isabel da Conceio Silva coordenadora local Josimar da Silva Azevedo assistente PERNAMBUCO Centro Cultural Luis Freire Delma Josefa da Silva coordenadora local Rosa Maria Cunha Cavalcante; Tarsila Myrtle Cmara assistentes RIO DE JANEIRO Universidade Federal Fluminense Paulo Csar Rodrigues Carrano coordenador local Ana Karina Brenner; Leda Fraguito assistentes

RIO GRANDE DO SUL THEMIS Associao Jurdica e Estudos do Gnero Mriam Steffen Vieira coordenadora local Alinne de Lima Bonetti; Ielena Azevedo da Silveira assistentes

SANTA CATARINA Universidade Federal de Santa Catarina Olga Celestina da Silva Durand coordenadora local Vera Lcia Bazzo; Terezinha Maria Cardoso; Vnia Beatriz Monteiro da Silva assistentes

SO PAULO Ao Afirmativa Assessoria, Pesquisa e Informao Ana Paula de Oliveira Corti coordenadora local Liliane Petris Batista assistente

SUMRIO

Agradecimentos ............................................................................................................. 19 Apresentao ..................................................................................................................... 9 Dedicatria ..................................................................................................................... 23 Abstract ............................................................................................................................ 13 Prefcio ............................................................................................................................ 25 1. Alternativas Excluso Social ................................................................................. 15 Apresentao .................................................................................................................. 29 2. Breve ........................................................................................................................... 33 Abstract Histria da Bolsa-Escola .............................................................................. 37 Introduo ...................................................................................................................... 51 3. A Bolsa-Escola Cruza Fronteiras ........................................................................... 35 Caracterizao do Estudo .......................................................................................... 41 4. Os Efeitos da Bolsa-Escola na Construo da Cidadania ................................ 79 CAPTULO 1 5. Proposta para a frica ........................................................................................... 113 MARCO CONCEITUAL ....................................................................................................... 51 Escolas Inovadoras: Revisando a bibliografia ...................................................... 51 6. Concluso ................................................................................................................. 135 Bibliografia .................................................................................................................... 143 CAPTULO 2 A VIOLNCIA NAS ESCOLAS ............................................................................................ 69 Bibliografia Complementar ........................................................................................ 147 2.1 A violncia e os jovens ......................................................................................... 70 2.2 A violncia no ambiente escolar ........................................................................ 77 2.3 Situao das Escolas Inovadoras ....................................................................... 81 2.3.1 Repetncia e abandono escolar, os efeitos da violncia .................... 85 2.3.2 Superando Violncias ................................................................................. 88 CAPTULO 3 A S E SCOLAS INOVADORAS .............................................................................................. 93 3.1 Contextualizando as inovaes .......................................................................... 94 3.2 Focalizando as escolas inovadoras .................................................................... 98 3.2.1 Alagoas/Macei Escola Estadual Miriam Marroquim ............... 98 3.2.2 Amazonas/Manaus Escola Estadual Maria Madalena Santana de Lima ...................................................................................... 109 3.2.3 Bahia/Salvador Escola Estadual Mrcia Meccia ........................ 120 3.2.4 Cear/Fortaleza Escola de Ensino Mdio Liceu do Conjunto Cear ................................................................................. 133

ESCOLAS INOVADORAS: Experincias Bem-Sucedidas em Escolas Pblicas

3.2.5 Distrito Federal/Braslia Centro de Ensino Mdio 11 de Ceilndia ........................................................................................ 159 3.2.6 Esprito Santo/Vitria Escola Estadual de Ensino Mdio Arnulpho Mattos ....................................................................... 172 3.2.7 Gois/Goinia Escola Estadual Edmundo Rocha ................... 182 3.2.8 Mato Grosso/Cuiab Escola Estadual Presidente Mdici ...... 193 3.2.9 Par/Belm Escola Estadual de Ensino Fundamental e Mdio Brigadeiro Fontenelle ............................................................ 205 3.2.10 Pernambuco/Recife Escola Estadual Padre Nrcio Rodrigues .................................................................................................. 226 3.2.11 Rio de Janeiro/Duque de Caxias Colgio Estadual Guadalajara ............................................................................................ 237 3.2.12 Rio Grande do Sul/Porto Alegre Escola Estadual Baltazar de Oliveira Garcia ............................................................. 262 3.2.13 Santa Catarina/Florianpolis Escola de Educao Bsica Hilda Theodoro Vieira ........................................................ 272 3.2.14 So Paulo/Itaquaquecetuba Escola Estadual Parque Piratininga................................................................................ 292 3.3 A pluralidade das experincias das escolas inovadoras ....................... 304 CAPTULO 4 ESTRATGIAS QUE

FAZEM DIFERENA

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4.1 Clima escolar e estratgias inovadoras .......................................................... 324 4.1.1 A importncia do bom clima na vida da escola ......................... 324 4.1.2 A gesto inovadora: o papel do diretor ............................................ 333 4.1.3 A valorizao do aluno, do professor e da escola .......................... 336 4.1.4 O exerccio do dilogo ........................................................................... 342 4.1.5 O trabalho coletivo ................................................................................. 349 4.1.6 A participao da famlia e da comunidade ..................................... 353 4.1.7 A ressignificao do espao fsico ....................................................... 356 4.1.8 O incremento da sociabilidade e a construo do sentido de pertencimento....................................................................... 361 4.2 Investindo no bom clima escolar e em estratgias que fazem a diferena: O Programa Abrindo Espaos ................................................... 363

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Concluso .................................................................................................................... 381 Recomendaes .......................................................................................................... 393 Lista de tabelas ........................................................................................................... 399 Lista de grficos ......................................................................................................... 401 Lista de quadros ......................................................................................................... 403 Anexo A situao da educao no Brasil ........................................................ 405 Bibliografia .................................................................................................................. 419

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AGRADECIMENTOS

Ao representante da UNESCO no Brasil, Dr. Jorge Werthein, que acredita que a violncia nas escolas pode ser superada por meio de diversas estratgias e, sobretudo, de pesquisas que incentivem a melhoria das polticas pblicas, contribuindo para uma educao melhor. Secretaria Especial de direitos Humanos da Presidncia da Repblica, pelo aporte estratgico para a concretizao desse trabalho. Ao Reitor da Universidade do Rio de Janeiro UNIRIO Professor Doutor Pietro Novellino, por compreender e apoiar um projeto dessa natureza. Ao professor Luiz Eduardo Marques da Silva, Decano do Centro de Cincias Humanas UNIRIO pelo apoio e pela dedicao ao desenvolvimento dessa pesquisa. Ao Carlos Alberto dos Santos Vieira, Coordenador de Projetos Especiais da UNESCO, pelo suporte institucional e solidariedade. Flavia Santos Porto pelo auxlio administrativo nos momentos necessrios. Leonardo de Castro Pinheiro, pela apoio prestado na fase de elaborao do projeto de pesquisa. s 146 escolas pblicas que colaboraram para a realizao da primeira etapa dessa pesquisa, recebendo as equipes estaduais e fornecendo informaes preciosas para o trabalho. A todos os entrevistados diretores, coordenadores, alunos, professores, funcionrios e colaboradores , pela cooperao e pelo tempo dedicado.19

ESCOLAS INOVADORAS: Experincias Bem-Sucedidas em Escolas Pblicas

s diretoras e aos diretores das escolas inovadoras, pela gentileza com que receberam as equipes de pesquisa, abrindo os espaos necessrios para a reflexo sobre essas escolas. s Secretarias Estaduais de Educao das 14 Unidades da Federao abordadas. Diana Teixeira Barbosa e Mara do Couto Fernandes por seus olhares crticos e auxlio na reviso de todo o livro. A todos aqueles que, muitas vezes extrapolando os limites de suas atribuies formais, contribuem para a construo de uma escola pblica participativa e de qualidade. So essas atuaes que fazem a diferena e do sentido realizao dessa pesquisa. Aos jovens, os atores dos projetos, que fazem de suas escolas um espao para inovaes, contribuindo para a formao de um ser social, cultural e cidado.

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Ns vos pedimos com insistncia: Nunca digam Isso natural Diante dos acontecimentos de cada dia, Numa poca em que corre o sangue Em que o arbitrrio tem fora de lei, Em que a humanidade se desumaniza No digam nunca: Isso natural A fim de que nada passe por imutvel. Bertold Brecht (Augsburgo, 1898 Berlim, 1956)

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As nossas crianas e jovens Lucas, Rachel, Isadora e Vtor, Rafael, Joo Pedro e Luiza, Anais e Tom, Omara Ananda e Mariana, Ana Maria e Fernando Jos, Benjamin Jos, Raphael e Maria Manuella , que nos fazem acreditar que a mudana possvel

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PREFCIO

Uma das canes do grupo Tits mais apreciadas pelos jovens repete, em seu refro, versos que talvez representem a mais urgente reivindicao da juventude em nossos dias: S quero saber do que pode dar certo, no tenho tempo a perder1 . Numa sociedade que insiste em enxergar os jovens, tal qual as crianas, como simples indivduos de passagem para a vida adulta, tais versos soam como brados de uma juventude que, por meio da poesia, ou o melhor, aliada poesia, vem incessantemente tentando nos ensinar como quer e o que espera de seu futuro. Porque, antes de tudo, tambm precisa dar certo... A realidade, entretanto, infelizmente outra. Isto porque o clamor juvenil no raro esbarra nos ouvidos surdos de uma minoria que, no comando das aes sociais e no por acaso formada por adultos, ainda faz questo de ignorar as formas plurais e legtimas de expresso da juventude, a quem sempre reservada a posio de espectador, muito embora constitua numericamente a maior parcela da populao brasileira. Nossos jovens vivem, assim, uma situao paradoxal, que se pudesse ser expressa por meio de uma frmula matemtica, para o mais teria sempre como resultado o menos, representado pelo esquecimento, pelo descaso e pelo abandono com que so tratados pelo chamado mundo adulto. Umas das conseqncias mais perversas dessa negligncia tem se manifestado, de modo recorrente, em diversos episdios envolvendo situaes de violncia - em alguns casos, de extrema gravidade - no interior de escolas situadas nos mais diferentes pontos do pas, mostrando, ao contrrio do que muitos supem, que no existem mais regies protegidas. Deste modo, acompanhando o chamado fenmeno de globalizao da economia, tambm a violncia vem se impondo crescentemente em nosso cotidiano, invadindo espaos onde sua

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(Go Back - Srgio Britto/Torquato Neto)

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presena no pode ser tolerada, como o caso de nossas escolas, locais em que o convvio, o aprendizado da cidadania e a prtica da solidariedade de forma alguma podem deixar de ser a tnica dominante. As escolas brasileiras tambm no tm tempo a perder, precisam saber do que pode dar certo. Nesse contexto pouco animador que recebemos como uma lufada de frescor e de esperana este Escolas inovadoras: experincias bem-sucedidas em escolas pblicas. Mais um elo na slida cadeia de trabalhos que, j h algum tempo, vem sendo forjada pela Unesco do Brasil tendo o jovem como centro das atenes, traz boas novas para um pas que j no pode mais permitir que sua juventude seja apenas alvo de expectativas, pois tambm necessita ardentemente que ela d certo. E para isso, conforme nos recomenda o estudo, fundamental que ela se constitua o sujeito ativo de sua prpria transformao, tornando-se capaz de estabelecer e zelar pela preservao de uma verdadeira Cultura de Paz. Realizado em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal, este livro baseia-se no relato e na anlise de experincias desenvolvidas em escolas situadas em locais de elevada vulnerabilidade social que, tendo passado por situaes-limite e experimentando as mais variadas formas de violncia e abandono, foram capazes de enfrentar e reverter esse quadro, por meio, dentre outras medidas, do estabelecimento de pactos de confiana e aposta nos jovens. Os mesmos jovens a quem, por conta dos efeitos per versos decorrentes de uma sociedade fundamentada na excluso, nos acostumamos a ver, atravs de inmeras estatsticas, ocupando a triste posio de principais vtimas e agentes da violncia... Entretanto, em consonncia com um tempo que tambm tem pressa e anseia por transformaes eficazes e duradouras, ao fazer o inventrio das agruras enfrentadas por tais escolas, o trabalho no se limita mera catalogao de dificuldades. Ao contrrio. Demonstrando que foi realizado com ouvidos sensveis, de suas linhas saltam lies de otimismo e perseverana, formando um mosaico de peas que contam histrias verdadeiras de um pas que, apesar de todas as adversidades, tal e qual os seus jovens, tambm tem tudo para dar certo.26

Para alm de sadas mirabolantes e estratosfricas, portanto praticamente inviveis, as experincias aqui apresentadas se caracterizam por estarem situadas nos limites do possvel e da boa vontade, tocadas em frente no por heris, mas por pessoas comuns, de carne, osso e um corao enorme, capaz de abrigar uma f do tamanho do Brasil. Bons ventos espalhem essas notcias. E que ouvidos sbios e mos ativas sejam capazes de fazer com que elas se multipliquem...

Cristvam BuarqueMinistro de Estado da Educao no Brasil

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APRESENTAO

Consciente de que a produo e a difuso de conhecimentos constituem o modo mais promissor para a obteno de subsdios capazes de operar as mudanas desejveis por todos na vida social, a UNESCO no Brasil vem se dedicando a realizar uma vasta srie de estudos e pesquisas em suas diferentes frentes de atuao, ao mesmo tempo em que tambm tem trazido ao pblico brasileiro importantes publicaes internacionais afinadas com seus objetivos. O critrio que fundamenta o desempenho dessas atividades repousa no compromisso assumido pela instituio em responder aos desafios mais prementes da sociedade brasileira, misso que a coloca ora no papel de ouvidora, ora no papel de porta-voz dos mais importantes temas nacionais, tornando-a reconhecidamente apta a cooperar com as diferentes esferas governamentais e no-governamentais. Por conta desse perfil, a UNESCO vem direcionando grande parte dos esforos visando conhecer, em profundidade, um tema cada vez mais presente tanto no noticirio miditico quanto no cotidiano da grande maioria dos brasileiros: a violncia. Explcita ou velada, material ou simblica, esta vem ocupando espaos progressivamente amplos nos mais variados nveis, contaminando relaes antes inclumes sua influncia e desestruturando instituies sociais estratgicas, cuja defesa e preservao tornam-se urgentes, caso contrrio, corre-se o risco de perder o controle sobre elas. Dentre as instituies mais ameaadas, est a escola, instncia particularmente cara ao conjunto da sociedade, em especial, s crianas e juventude. Esta ltima vem ocupando a condio de foco de diversas violncias, seja como autora, seja como vtima, a ponto de constiturem a causa mais recorrente da mortalidade entre os jovens. Conjugam-se, assim, dois elementos histrica e intrinsecamente ligados, o jovem e a escola, cujo resultado, ao invs de corresponder aos anseios sociais de um amanh seguro e cidado, tem implicado numa combinao perigosa, descortinando um futuro que pode ficar seriamente comprometido, caso o presente no sofra, desde j, intervenes efetivas.29

ESCOLAS INOVADORAS: Experincias Bem-Sucedidas em Escolas Pblicas

Um dos marcos da produo institucional direcionada para esse assunto foi, sem dvida, a publicao Violncias nas Escolas. Lanada pela UNESCO em 2002, traz os resultados de uma ampla pesquisa realizada em capitais de 14 capitais das Unidades da Federao, abordando diversos temas relacionados s mltiplas formas de manifestao da violncia no cotidiano escolar. O impacto produzido por este livro foi tal que uma srie de eventos e desdobramentos foram desencadeados, estabelecendo redes de parcerias entre instituies nacionais e internacionais. Dentre tais iniciativas, destaca-se a criao do Observatrio de Violncias nas Escolas Brasil, parceria estabelecida entre a UNESCO e a Universidade Catlica de Braslia que tem as funes de incentivar a pesquisa, o ensino e a extenso, bem como propor recomendaes s poltica pblicas e desenvolver estratgias de preveno e combate violncia escolar. Atua ainda, aliado ao Observatrio Europeu de Violncias nas Escolas, com sede em Bordeaux (FA) e o Observatrio Internacional de Violncias nas Escolas composto por pases de vrios pontos do mundo interessados em ampliar a compreenso sobre o problema e propor sadas viveis para o seu enfretamento. Realizado a partir de um intenso trabalho de pesquisa, o livro que ora apresentamos tambm se constitui num desdobramento do estudo anterior. A diferena que, desta vez, o foco de nossa ateno volta-se para a descoberta de sadas criativas, capazes de responder aos anseios de um pas que vive, em sua histria recente, um novo tempo na busca de solues. Isto porque, ao lado de indicadores denunciando uma progressiva naturalizao de atos violentos dentro e fora do ambiente escolar, o quadro desenhado pelo Violncias nas Escolas, embora bastante preocupante, tambm apontou a existncia de experincias desenvolvidas por escolas dos quatro cantos do pas que, tendo vivenciado situaes crticas envolvendo a prtica das mais distintas for mas de violncia, foram capazes de dar a volta por cima, reescrevendo a sua histria, s que desta vez com as tintas do otimismo e da esperana. Ainda que amparadas por diferentes estratgias e procedimentos, um eixo bsico apresentou-se comum a todas, mostrando ser decisivo para o sucesso alcanado, qual seja, a instaurao de parcerias ativas com os seus jovens.30

So justamente essas histrias de otimismo e determinao, colhidas em 14 estabelecimentos escolares localizadas nas mesmas unidades federadas que fizeram parte da amostra do Violncias nas Escolas. Longe de pretender que elas se apresentem como modelos afinal, a realidade social bem mais complexa do que acreditam os que se guiam por receiturios -, alguns de seus aspectos intrnsecos talvez possam ser generalizveis, apontando caminhos de superao que transcendam seus prprios limites, desde que as especificidades de cada uma dessas iniciativas no sejam esquecidas. Fundamental, entretanto, e de acordo com as palavras de uma diretora de escola, reconhecer essas experincias como intervenes sociais de resistncia, capazes de enxergar o presente com os olhos do futuro, idia que nos remete ao famoso Relatrio sobre a Diversidade Criadora, quando recomenda: melhor optar pelo desenvolvimento preventivo agora do que por operaes militares depois. melhor corrigir os modelos equivocados e distorcidos de desenvolvimento de forma a responder s aspiraes dos povos (Cuellar, 1997: 363). Este o grande desafio e, ao mesmo tempo, a verdadeira essncia de uma Cultura de Paz.

Jorge WertheinRepresentante da UNESCO no Brasil

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ABSTRACT

Most of the research carried out by UNESCO demonstrates that the situation of public schools for youths aged 14 to 24, especially those from the poorer segments of society, is precarious. In order to contribute to the improvement of this reality, many schools are now attempting to identify the causes for this situation and seeking innovative alternatives to deal with situations of violence in an affirmative manner. UNESCO, in partnership with UNIRIO, sought to examine these schools in order to understand how they are trying to combat violence and resignify their role in view of new social and market-related demands. In order to understand these schools and their strategies, this research, Innovative Schools: Successful Experiences in Public Schools was carried out. In general terms, the objective of this research was to identify and analyze schools that are part of the public school system in 14 states in Brazil which have been developing innovative experiences. The paths taken by these schools, their strategies and their perspectives were identified, and the results they attained point to a new way to face and solve the main problems they encountered. Although these schools were faced with diverse and adverse conditions, they were able to overcome violence in their day-to-day lives through the creation of coping mechanisms. The bases of these mechanisms are activities related to the valorization of participants, dialogue, joint effort, and to the resignification of school as a space. This shift in the way in which problems are dealt with makes these schools a reference in the combat against violence and points towards new perspectives for public policies whose objective is to seek a qualitative change in public schools.

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INTRODUO

O estudo Escolas inovadoras: experincias bem-sucedidas em escolas pblicas tem como objetivo central dar visibilidade a uma srie de experincias que vm sendo desenvolvidas em escolas pblicas das regies metropolitanas de 14 Unidades da Federao, que por meio de configuraes diversas, tm prevenido e enfrentado situaes de violncias nas escolas com repercusses diretas na qualidade da educao. Apesar de aparentemente simples, a realizao das prticas desenvolvidas por essas escolas depende de uma srie de disposies individuais e coletivas, internas e externas ao universo escolar que, observadas com foco no cotidiano, demonstram um enorme esforo em que aparecem envolvidos ministrios, governos estaduais, Ongs, associaes comunitrias, movimentos sociais e rgos internacionais como a UNESCO. A escola pblica se constitui em um campo vasto, plural e diversificado, marcado por uma srie de dificuldades, ancoradas, principalmente, nas precrias condies educacionais. No entanto, ao lado dessa realidade complexa, prpria de uma instituio que rene diferentes dimenses do campo social, observam-se prticas, solues e respostas inesperadas, que buscam construir um outro tipo de histria, longe daquelas que reproduzem o fracasso e a descrena na construo de uma Cultura de paz2 . Essas novas histrias, que aqui sero chamadas de inovadoras, nascem exatamente de uma escola que se reconhece na diversidade, na luta contra os processos sociais excludentes, na aposta e na crena incondicional nos seus jovens alunos, sujeitos sociais, repletos de necessidades, desejos e sonhos.2

A cultura de paz est intrinsecamente relacionada preveno e resoluo no violenta dos conflitos. uma cultura baseada em tolerncia, solidariedade e compartilhamento em base cotidiana, uma cultura que respeita todos os direitos individuais - o princpio do pluralismo, que assegura e sustenta a liberdade de opinio - e que se empenha em prevenir conflitos resolvendo-os em suas fontes, que englobam novas ameaas no-militares para a paz e para a segurana como excluso, pobreza extrema e degradao ambiental. A cultura de paz procura resolver os problemas por meio do dilogo, da negociao e da mediao, de forma a tornar a guerra e a violncia inviveis.

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ESCOLAS INOVADORAS: Experincias Bem-Sucedidas em Escolas Pblicas

O foco do estudo est direcionado para as experincias das escolas que se voltam para as diversas juventudes, considerando a sua condio de vulnerabilidade social, particularmente nas questes relacionadas a situaes de violncia, conforme tem indicado uma srie de estudos e pesquisas na rea3. Vale sublinhar que a questo da violncia, particularmente a que perpassa o universo escolar, vem sendo abordada nos cenrios nacional e internacional como um dos grandes desafios para a construo de uma Cultura de Paz. Para entender estas dificuldades, importante ressaltar que o termo violncia provido de mltiplos sentidos e significados, acolhendo diferentes situaes que fazem meno a realidades distintas e heterogneas. Estes mltiplos sentidos vo ecoar, tanto no processo de aprendizado do aluno e nas relaes no interior da escola quanto na imagem da instituio escolar como espao protegido, de direito e responsvel pela educao das novas geraes, precioso para o desenvolvimento auto-sustentado do pas (Gadotti e Romo, 2000:43). As relaes entre violncia e escola, segundo alguns autores (Debarbieux, 1998), esto na base da constituio da instituio escolar, como os castigos fsicos e a humilhao pblica, s se modificando a partir de meados do sculo XX. Para Philipe ries (1981) a escola infligiu criana o chicote, a priso, em suma, correes reservadas aos condenados das condies mais baixas. Assim, para Corti (2002) passamos de um estado em que a violncia era instrumento para garantir a autoridade para outro em que ela passa a ser evitada. Nesse sentido, poderamos afirmar que a instituio escolar sofreu um processo de pacificao. A UNESCO, tendo como finalidade contribuir para o debate e a formulao de polticas pblicas referentes s reas focalizadas nesse estudo (educao, violncia, escola e juventude), investe na realizao de uma srie de pesquisas, que buscam expressar percepes e prticas dos mltiplos integrantes da vida escolar (alunos, professores, diretores, quadros administrativos, pais e moradores do entorno).3

Um razovel investimento em estudos sobre juventude por metodologia quantitativa e qualitativa, ou seja, anlise em profundidade em diferentes reas do Brasil promovido pela UNESCO, antecede esta pesquisa. Exemplos so Abramovay (coord.), 2001; Waiselfisz, 1998, 2000; Abramovay e Rua, 2002; Castro et al., 2001; Abramovay et al., 1999; e Minayo, 1999.

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Considerando a importncia de anlises que explicam as macrossituaes que envolvem o espao escolar, o trabalho aqui apresentado optou por se ater a situaes particulares, que dessem conta dos mecanismos com os quais muitas escolas constroem respostas para o seu cotidiano, promovendo aes que melhoram o clima escolar, revertendo de forma criativa situaes relacionadas violncia, sob o olhar dos seus prprios integrantes. As experincias descritas tratam de diferentes aes. Em alguns casos, pontuais, mas significativas, pois provocam o compromisso e o entusiasmo da comunidade escolar. Em outros, so experincias que tm o mrito de articular e promover processos de integrao e a possibilidade de alunos e professores se inclurem em novas redes de conhecimento, cultura, cidadania e solidariedade. O que est em jogo, com certeza, um novo modelo de gesto da escola pblica, em que se pressupe a articulao com a sociedade imediata bairro ou comunidade local, vila, cidade e vnculos mediatos com as esferas estadual, nacional e global (Frigotto, 2000:11). Ressalta-se, aqui, a importncia fundamental do papel indutor das diferentes instncias que compem o sistema educacional brasileiro, como o Ministrio da Educao, os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Educao, as Secretarias de Estado e Municipal de Educao, na consolidao de um apoio efetivo, tcnico e financeiro. Este apoio potencializa as iniciativas que valorizam a escola pblica, seus alunos, professores e funcionrios, construindo novas opes para os jovens. As iniciativas, consideradas inovadoras porque propiciam processos criativos de articulao e transformao do clima escolar, promovem uma maior integrao dos diferentes setores da escola, fortalecendo laos e mecanismos de compartilhamento de interesses e objetivos. E, neste sentido, permitem um contraponto aos diferentes tipos de problemas vivenciados, contribuindo para a diminuio da violncia na escola - indisciplina, agresses, ameaas, intimidaes -, para a melhoria do desempenho escolar e para a promoo da motivao de alunos e professores. Enfim, tais iniciativas vm despertando em muitos gestores, professores, alunos e comunidades a convico de que a mudana possvel.37

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Para uma melhor compreenso destas questes, este livro foi organizado em quatro captulos. O primeiro captulo, centrado no marco conceitual da pesquisa, coloca em discusso diferentes percepes e sentidos atribudos ao termo inovao e ressalta a importncia de se refletir sobre os mecanismos de integrao (dilogo, cooperao e participao). O captulo dois contextualiza, ainda, as relaes entre violncia, escola e juventude, no mago das quais surgem as experincias inovadoras. Para tanto, aborda dados que quantificam e qualificam a violncia que atinge os jovens no Brasil e a violncia no ambiente escolar. No terceiro captulo, o foco encontra-se na descrio e na anlise das escolas inovadoras. Seu eixo se constitui a partir da reflexo sobre o que faz uma escola ser inovadora?, retratando o contexto das inovaes. Em um segundo momento, tece uma anlise, em profundidade, de 14 escolas cujos projetos se destacaram, uma por unidade da federao, observando os processos de produo de prticas inovadoras na preveno e no enfrentamento da violncia e suas relaes com as caractersticas do universo escolar, considerando o contexto interno da escola e seu entorno. Sistematiza, ainda, as grandes linhas que caracterizam a diversidade das prticas em curso nessas escolas. O quarto captulo apresenta e analisa as estratgias identificadas como inovadoras no cotidiano das escolas, refletindo sobre as mudanas observadas na relao com os alunos, na participao das famlias e da comunidade, no engajamento dos professores e demais funcionrios, no uso e na percepo do espao fsico, na sociabilidade e na prpria imagem da escola. Aborda as relaes entre clima escolar, violncia e aprendizagem, coletadas nos depoimentos dos diversos participantes da pesquisa, obtidos em entrevistas e grupos focais. Podese observar a importncia do bom clima escolar como fator de xito das prticas inovadoras direcionadas revalorizao da escola e ao enfrentamento da violncia Em sua concluso, o livro, a partir das experincias levantadas no unive rso pesquisado, apresenta r ecomendaes e aponta perspectivas para polticas pblicas voltadas construo de uma38

escola pblica afinada com as aspiraes da sociedade, de forma a oferecer aos jovens uma educao de qualidade capaz de abord-los com um novo olhar, de valorizar suas mltiplas identidades e incorporar em suas prticas cotidianas suas produes culturais como forma de enfrentar as situaes de violncia.

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CARACTERIZAO DO ESTUDO

O estudo aqui apresentado buscou identificar experincias e caminhos percorridos por instituies escolares que vm trabalhando de forma inovadora na construo de uma escola pblica capaz de contribuir para a diminuio da excluso social, particularmente no que se refere aos milhes de jovens que se encontram margem da educao, da cultura, da cincia, do esporte, do lazer etc. Busca, tambm, identificar as conseqncias dessas novas prticas no combate s situaes de violncia no espao escolar. O interesse em estudar as escolas inovadoras surgiu de uma srie de indagaes a partir dos resultados da pesquisa Violncias nas Escolas (2002), realizada pela UNESCO. O trabalho faz um amplo estudo sobre o tema, procurando identificar e analisar as percepes dos alunos, do corpo tcnico-pedaggico e dos pais sobre os tipos de violncia correntes no ambiente escolar e suas causas. A violncia surge como conseqncia da ruptura de pactos sociais, por meio da fora fsica ou simblica, apresentando-se em uma multiplicidade de situaes capazes de, muitas vezes, esgaar os laos sociais. O trabalho aponta, tambm, para situaes dentro do ambiente escolar que podem, no limite, desencadear a violncia casos de indisciplina; pichaes e depredaes; no-construo de pactos dentro da escola; no-explicitao de regras e normas da escola; falta de professores e baixos salrios; falta de investimento em material e equipamento fsico; espao fsico descuidado e desorganizado; ausncia de dilogo entre os integrantes da unidade escolar etc. A partir desse vasto levantamento, o estudo sugere que essas situaes sejam pensadas de forma integrada, pois se interpenetram, no havendo entre as mesmas uma relao de causalidade, mas de profunda interdependncia. Em sntese, diante desse rol de preocupaes, observou-se a necessidade de se compreender os processos adotados por algumas escolas que, em contextos desfavorveis, vm desenvolvendo experincias bem-sucedidas no cotidiano escolar. O objetivo o de41

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registrar um conhecimento que vem sendo produzido de forma noinstituda e que pode oferecer pistas para possveis mudanas num quadro ainda precrio da educao brasileira. Com essas preocupaes, formularam-se as seguintes indagaes: Por que uma escola inovadora? Como as escolas se organizam? Quem participa dessas novas prticas? Como os diferentes atores na escola percebem as experincias inovadoras? Que situaes levaram necessidade de mudana? Essas aes provocam mudanas nas atitudes e na organizao da escola? Existe relao entre clima escolar, experincias inovadoras e aprendizagem? Como as situaes de violncia so enfrentadas por essas escolas? Que aspectos so propulsores de mudanas? Como as escolas produzem aes para enfrentar a violncia, ressignificando seu papel frente s novas demandas sociais? Cabe destacar, que o estudo narra experincias singulares em contextos especficos. Como aponta Lahire, as caractersticas extradas da vida social devem sempre ser recontextualizadas, (....) no se tratam de capitais que circulam, mas de seres sociais que, nas relaes de interdependncia e em situaes singulares, fazem circular ou no, podem transmitir ou no, as suas propriedades sociais (Lahire, 1997: 32). Nessa perspectiva, procurouse realizar um estudo mais aprofundado, construindo diferentes interpretaes para os mltiplos fenmenos caractersticos da realidade analisada, repletos de variabilidades histricas, econmicas e culturais.

PROCEDIMENTOS ADOTADOS O estudo combinou abordagens e estratgias de coleta de dados distintas, mas complementares, permitindo superar as limitaes e ampliar os benefcios de cada um dos procedimentos adotados. O processo de coleta de dados foi organizado em duas etapas: na primeira, optou-se por uma abordagem extensiva e, na segunda, por uma abordagem compreensiva, que permitiu qualificar o tipo de material coletado. A abordagem extensiva baseia-se na utilizao de mtodos e tcnicas quantitativas. Tal procedimento objetiva trabalhar com a42

capacidade inferencial dos dados, a partir de uma metodologia indutiva, caracterstica de pesquisas do tipo survey. Sob esta perspectiva, so desenvolvidos instrumentos como questionrios auto-aplicveis ou aplicados mediante entrevistas, abrangendo universos completos (censo) ou amostras probabilsticas. Esta abordagem tem como principais vantagens: (a) a possibilidade de aferir magnitudes; (b) a identificao de padres comuns a universos distintos; (c) a comparabilidade dos resultados; (d) a razovel preciso das generalizaes; (f) a possibilidade de examinar tendncias e recorrncias a serem qualificadas por meio de outros procedimentos. No que se refere abordagem compreensiva, o principal objetivo desse procedimento se ater ao contedo das informaes fornecidas pelos atores sociais, consistindo na captao das percepes, representaes, valores, intenes e motivaes. Entre as tcnicas adotadas na abordagem qualitativa, privilegiaram-se: A realizao de entrevistas individuais semi-estruturadas com diretores das escolas, alunos, professores, coordenadores de projetos e comunidade. Este procedimento permitiu conhecer categorias e aspectos da atividade cotidiana, vivenciados e/ou por eles utilizados, sobre os quais no havia conhecimento anterior, o que impedia sua incorporao em um questionrio. Tal abordagem resultou em entrevistas mais detalhadas, onde foi possvel captar os diferentes sentidos que os indivduos atribuem s suas aes. Assim, possvel ao pesquisador explorar certas informaes e idias inesperadas, surgidas no processo de entrevista. A realizao de grupos focais com alunos e professores. Considera-se o grupo focal como uma adequada tcnica de pesquisa para buscar respostas aos porqu e como dos comportamentos sociais. uma fonte de informao para se entender as atitudes, crenas e valores de um grupo ou de uma comunidade relacionada aos aspectos especficos que se quer estudar. Esta tcnica transformou-se em um dos principais instrumentos dos mtodos de indagao rpida (Rapid43

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Assessment) 4 , desenvolvida para obter uma informao em profundidade e que possibilite dar respostas em curto prazo s indagaes sugeridas em campo. A realizao de obser vao direta (in loco) nas escolas selecionadas. Para a realizao deste tipo de atividade, elaborouse um roteiro de campo em que foram estabelecidos alguns critrios que deveriam guiar o olhar do pesquisador. O trabalho de observao tinha como principal objetivo confrontar os dados obtidos por meio de entrevistas, questionrios ou grupos focais com a percepo do pesquisador. A observao de campo permitiu, tambm, acompanhar as relaes e os comportamentos dos diferentes atores sociais. A PREPARAO DOS PESQUISADORES O trabalho foi coordenado por um grupo de pesquisadores que, por meio de convnio de cooperao entre a UNESCO e a UNIRIO, vem desenvolvendo uma srie de pesquisas. Para a viabilizao deste estudo nos Estados, construram-se parcerias com universidades, organizaes no-governamentais e centros de pesquisa, visando composio de equipes estaduais responsveis pela realizao do trabalho. Assim, trabalhou-se em quatorze estados, onde foram formaram equipes locais de pesquisa com o objetivo de coletar as informaes nas escolas selecionadas. Essas equipes eram formadas por pesquisadores com experincia em trabalhos dessa natureza e que j haviam atuado junto ao setor de pesquisa e avaliao da UNESCO em outros projetos. As equipes estaduais foram preparadas, por meio de encontros, onde as discusses circularam em torno dos objetivos do trabalho, dos procedimentos metodolgicos, das diferentes etapas da pesquisa, dos

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O Rapid Assessment utilizado para facilitar decises que devem ser pautadas na realidade; uma ferramenta para articular opinies, julgamentos e perspectivas dos envolvidos em processos sociais diversos. (World Bank, 1993).

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instrumentos elaborados. Como facilitador da discusso e do trabalho, distribuiu-se durante o treinamento um material, contendo orientaes e documentos necessrios ao trabalho de campo.

A SELEO DAS ESCOLAS A priori, o presente estudo trabalhou com as mesmas quatorze (14) capitais contempladas na pesquisa Violncias nas Escolas: Macei, Manaus Salvador, Fortaleza, Vitria, Goinia, Cuiab, Belm, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Florianpolis, So Paulo e Distrito Federal, sendo que, os pesquisadores receberam a orientao de que poderiam selecionar escolas de outros municpios que fizessem parte da regio metropolitana. Os dados aqui apresentados foram coletados a partir de dois momentos distintos. Primeiro definiu-se, para compor este estudo, um mnimo de 10 escolas por Unidade da Federao, o que totalizou 146 escolas. A escolha das escolas que integram a pesquisa se realizou a partir de consulta a todas s secretarias estaduais de educao dos estados selecionados, alguns sindicatos de professores e algumas organizaes no-governamentais com atuao no campo educacional. Para orientar a escolha das escolas foram estabelecidos os seguintes critrios: Localizao em bairros/comunidades com ndices elevados de violncia (de acordo com os dados fornecidos pelas Secretarias Estaduais de Educao); Localizao no municpio da capital ou na regio metropolitana; Desenvolvimento de projetos culturais, cientficos, esportivos, literrios, e as chamadas atividades extracurriculares; Novas formas de gesto; Baixos ndices de evaso e invaso; Reconhecimento e valorizao social; Escolas com demanda por vagas pela populao; Escolas com funcionamento nos trs turnos; Escolas com nmero significativo de jovem;. Escolas que eram consideradas problemas e que sofreram mudanas; Algum tipo de experincia de enfrentamento de situaes de violncia (interna e externa), por meio de iniciativas criativas;45

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Nessa seleo, foram indicadas duas escolas que no pertenciam capital do estado, mas, regio metropolitana, quais sejam: municpios de Itaquaquecetuba, em So Paulo, e Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro. Num primeiro momento, o objetivo concentrou-se em realizar uma caracterizao geral das 146 escolas 10 por estado e do seu entorno. Foram coletadas diferentes informaes sobre a escola, gesto, organizao, experincias e projetos desenvolvidos como contraponto aos diferentes problemas, permitindo ainda, detectar as diferentes caractersticas e a natureza do que as escolas estavam denominando de processos de inovao. Estes dados foram coletados a partir da observao de campo, aplicao de questionrio aos diretores, entrevistas com membros das secretarias estaduais de educao e das comunidades. Procurou-se, tambm, observar a disponibilidade das escolas para a realizao de um estudo em profundidade. As 146 escolas focalizadas no momento inicial da pesquisa, revelaram um panorama plural, caracterizado por significativa diversidade de combinaes entre suas ofertas educacionais, conforme pode-se observar na tabela abaixo:TABELA 1 Percentual de escolas, por etapas de atendimento, segundo o diretor, 2002

Fonte: Pesquisa Escolas Inovadoras, UNESCO, 2002.

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No que se refere ao nmero de alunos matriculados nas escolas pesquisadas, o quadro encontrado tambm distinto. Considerando os dados apresentados, as escolas indicadas como inovadoras, podem ser agrupadas em pequenas (menos de 500 alunos matriculados), que correspondem a 3,4% das escolas pesquisadas; mdias (de 500 a 1000 alunos matriculados), onde se encontram 13% do total; e grandes (mais de 1000 alunos matriculados), equivalendo a 83,6% das escolas. O dado interessante para posterior anlise o fato da grande maioria das escolas consideradas bemsucedidas (83,6%) serem compostas de mais de 1000 alunos.

DESDOBRAMENTOS O desdobramento desta etapa foi a seleo de uma escola em cada capital ou regio metropolitana (14), para a realizao de acompanhamento mais aprofundado. Cada equipe estadual, em parceria com a coordenao da pesquisa, aps exaustiva anlise das 146 experincias (registrada em 14 relatrios parciais de pesquisa), indicou aquelas que deveriam participar do estudo em profundidade. As escolas selecionadas foram: 01. Alagoas/ Macei Escola Estadual Miriam Marroquim; 02. Amazonas/ Manaus Escola Estadual Maria Madalena Santana de Lima; 03. Bahia/ Salvador Escola Mrcia Meccia; 04. Cear/ Fortaleza Escola de Ensino Mdio Liceu do Conjunto Cear; 05. Distrito Federal Centro de Ensino Mdio 11 de Ceilndia; 06. Esprito Santo/ Vitria Escola Arnulpho Mattos; 07. Gois/Goinia Escola Estadual Edmundo Rocha;. 08. Mato Grosso/ Cuiab Escola Estadual Presidente Mdici; 09. Par/ Belm Escola Estadual de Ensino Fundamental e Mdio Brigadeiro Fontenelle; 10. Pernambuco/Recife Escola Estadual Padre Nrcio Rodrigues; 11. Rio de Janeiro/ regio metropolitana/ municpio de Duque de Caxias Colgio Estadual Guadalajara;47

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12. Rio Grande do Sul/ Porto Alegre Escola Estadual Baltazar de Oliveira Garcia; 13. Santa Catarina/ Florianpolis Escola de Educao Bsica Hilda Theodoro Vieira; 14. So Paulo/ regio metropolitana de So Paulo/ municpio de Itaquaquecetuba Escola Estadual Parque Piratininga; Esse segundo momento da pesquisa, chamado de abordagem compreensiva, procurou trazer detalhes das diferentes percepes e prticas com as quais as escolas vm construindo as inovaes e apreender os diferentes sentidos atribudos a essas inovaes, particularmente as que se referem aos aspectos relacionados aos jovens e s situaes de violncia escolar. Assim, as equipes estaduais estiveram presentes nas escolas, e em cada uma das quatorze unidades, utilizaram os seguintes procedimentos: Entrevista com o diretor responsvel pela escola; entrevista com seis alunos dois de cada turno, na faixa etria de 15 a 24 anos; trs professores um de cada turno; quatro funcionrios do corpo administrativo tambm preservando uma amostra de turno. Seis grupos focais com alunos diferentes turnos e faixa etria entre 15 e 24 anos; e trs grupos focais com professores. Observao da escola e seu entorno. A orientao se baseou na necessidade de compreenso do espao, por estar ele intrinsecamente vinculado compreenso da organizao humana. Pensar o espao, as demarcaes ter ritoriais , sobretudo, pensar o uso que as pessoas fazem dele, gerador de percepes diferentes sobre o local. Os espaos fsicos no esto separados das percepes e significados atribudos pelas pessoas. Outro destaque importante diz respeito conversa como um momento privilegiado para a obteno de infor maes, conhecer as pessoas e os tipos de relaes e prticas que ali se estabelecem. Ao contrrio da entrevista, a conversa permite obter registros aleatrios, opinies sobre assuntos diferentes, infor maes mais espontneas. Cabe ao pesquisador48

sistematizar e ordenar as falas, dar um significado ao que dito, conect-las com os objetivos mais gerais da pesquisa. Valorizouse assim, dinmica local, considerando que, em um primeiro momento o campo mais rico do que as hipteses, sugestes e vises do grupo da pesquisa. As entrevistas e os grupos focais totalizaram, aproximadamente, 400 horas de fitas transcritas, referentes a todo o material de campo. As equipes estaduais realizaram ainda, um relatrio final, abordando diferentes aspectos identificados em campo, tais como caracterizao do local, histria dos atos de violncia, estratgias de superao, formas de relacionamento com o entorno escolar, formas de organizao, planejamento e gesto da unidade escolar, o que gerou 14 relatrios finais por Estado. Com base nos dados originrios dos questionrios, dos relatrios dos pesquisadores estaduais, das entrevistas individuais, dos grupos focais e da observao in loco, foi realizado um tratamento sistemtico dos dados, buscando uma anlise que per mitisse relacionar e correlacionar os diversos procedimentos, na busca das convergncias, divergncias, tenses, contradies e por fim, descobrir situaes que possam apontar as estratgias constr udas por esses atores no enfrentamento das violncias escolares.

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1.

MARCO CONCEITUAL

ESCOLAS INOVADORAS: REVISANDO A BIBLIOGRAFIA Este estudo tem como preocupao trazer a pblico experincias/ aes/projetos 5 , implementados no mbito das escolas estaduais das regies metropolitanas de 14 capitais, que visam reverter diferentes situaes reconhecidas como de violncia escolar. So diferentes os tipos de violncias que repercutem no processo de aprendizado do aluno e na imagem da instituio escolar como espao de aprendizado e formao. Os atos praticados no interior da escola que atingem o indivduo em suas diversas dimenses fsica (agresses), moral (xingamentos, desrespeitos) e pblica (destruio, roubo) so denominados pela expresso violncia escolar. Em diferentes pesquisas realizadas pela UNESCO6 buscou-se trazer tona o olhar dos diferentes atores participantes da vida escolar (alunos, professores, diretores quadros administrativos, pais e moradores do entorno) sobre os principais problemas enfrentados nas escolas. Estes estudos permitiram traar um perfil sobre o sentimento da comunidade escolar no que se refere s atitudes que geram prticas e condutas violentas.5

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No texto, optou-se por utilizar os termos experincias/aes/ projetos pelo fato de muitas das iniciativas aqui apresentadas no se conformarem em um modelo que possa ser explicado, seja como uma ao, projeto ou experincia. As diferentes iniciativas podem, em certos momentos, apresentar-se como uma ao (individual e pontual), como uma experincia (ao mais coordenada e coletiva) ou projeto (que envolve um grau de planejamento e coordenao). Neste sentido, optou-se por utilizar os trs termos por considerar que ele atende melhor idia de processo. Abramovay et al. 2002; Abramovay, 2002; Debarbieux e Blaya, 2002, entre outras.

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A questo da violncia escolar vem se colocando no cenrio nacional e internacional como um dos grandes desafios para a constituio de uma Cultura de Paz. No entanto, observa-se uma grande dificuldade para conceituar e encontrar explicaes para as origens e as causas dos atos de violncia praticados na escola. Para entender estas dificuldades, duas questes devem ser pontuadas. Em primeiro lugar, importante constatar que o termo violncia polissmico, com diferentes significados constitudos histrica e culturalmente (Debarbieux, 1996, 1998; Chesnais, 1981; Dupquier, 1999; Watts, 1998; Zaluar, 1998; Peralva, 1997). Em segundo lugar, observa-se que, sob o manto desse termo, se abrigam situaes diversificadas, passando de pequenos delitos e ataques propriedade a atentados contra a vida, que informam sobre realidades e manifestaes de violncias distintas e heterogneas. Entretanto, apesar da complexidade do termo e da dificuldade de conceituao, existe um consenso bsico. Todo ato de agresso fsica, moral, institucional que tenha como alvo a integridade do(s) indivduo(s) ou grupo(s) considerado ato de violncia (Abramovay e Rua, 2002). A partir deste consenso, a literatura que se debr ua mais especificamente sobre o tema da violncia escolar tem traado, ao longo dos anos, diferentes olhares e focos de interesse, pois, como salienta Charlot, a prpria violncia escolar um fenmeno heterogneo e desestrutura as representaes sociais que tm valor fundador: aquela da infncia (inocncia), a da escola (refgio de paz) e a prpria sociedade (pacificadora no regime democrtico) (Charlot, 1997: 01 apud Abramovay e Castro, 2003). De acordo com o autor, as violncias praticadas no universo escolar, para serem compreendidas e explicadas, devem ser hierarquizadas a partir da sua natureza: atos associados ao que denominou de violncia (roubos, violncia sexual, ferimentos, crimes, etc.), atos de incivilidades (humilhaes, palavras grosseiras, falta de respeito) e violncia institucional e simblica, (violncia nas relaes de poder). A hierarquia proposta por Charlot, em certa medida, permite compreender fenmenos de violncia escolar de forma mais ampla e diversificada, ao tratar como violncia certas aes oriundas da quebra do dilogo (intimidaes, injrias, delitos contra objetos e propriedades etc.), e praticadas por aquilo que Bourdieu (2001) chamou de poder oculto ou violncias simblicas.52

A noo de incivilidade, como matriz para a anlise da violncia escolar, tem uma forte repercusso nos estudos realizados na Frana (Peralva,1997). No entanto, alguns autores, como Dupquier (1999) e Fukui (1991), chamam a ateno para a necessidade de distinguir violncia de agressividade (expresso da incivilidade), visto que nem toda manifestao de agressividade pode ser um ato de violncia, pois nem toda agressividade tem como desejo a destruio do outro. Para Debarbieux, as incivilidades seriam violncias anti-sociais e antiescolares, quando mais traumticas, pois silenciosas e banalizadas para proteo da escola, tomando muitas vezes a forma de violncia simblica (Debarbieux, 1998 apud Abramovay e Rua, 2002). Porm, em um estudo mais recente, Debarbieux e Blaya (2002) alertam para o fato de o termo poder gerar uma distoro nas interaes escolares, levando a interpretaes e explicaes sobre atos de violncia de cunho evolucionista, tais como a predominncia de certos padres de comportamentos identificados como brbaros e outros civilizados. Nesses termos, os autores sugerem substituir o termo incivilidade pelo termo microviolncia, como forma de melhor qualificar certos atos de violncia que ocorrem nos processos interativos entre os diferentes atores sociais. Em que pese a necessidade de impor limites entre conceitos como violncia e agressividade, os estudos realizados a partir da dcada de 1990 vm demonstrando um grande potencial na busca de uma maior compreenso, no apenas do fenmeno da violncia escolar, mas, tambm, de uma maior inteligibilidade do cotidiano escolar, com suas mltiplas formas de interaes positivas e negativas. Neste sentido, importante atentar para as diferentes realidades escolares, levando em considerao os cdigos e regras definidos por cada sociedade. Diferentes pesquisas realizadas na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, vm mostrando uma variedade de olhares sobre o universo escolar, contribuindo de forma significativa para um maior acmulo sobre o fenmeno da violncia e para sua maior inteligibilidade. A extensa reviso de estudos sobre a violncia vem mostrar que as pesquisas realizadas na Inglaterra (Hayden e Blaya, 2001) tm dificuldade em conceituar a violncia escolar, visto que o termo violncia no comumente usado para qualificar certos atos praticados por53

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professores contra alunos ou vice-versa, por suas conotaes emocionais (Abramovay e Rua, 2002). Ter mos como ag ressividade, comportamento agressivo, bullying e disruption seriam mais apropriados para lidar com certas situaes do cotidiano escolar. Tambm na Espanha, como mostra Ortega (2001), existe um certo constrangimento moral ao se qualificar certos atos de violncia, em especial aqueles praticados contra jovens e crianas, como violncia escolar. J nos Estados Unidos, o foco tenderia a se localizar no exterior da escola, nas gangues (Hagedorn, 1997), e, nestes casos, as expresses utilizadas seriam delinqncia juvenil, condutas desordeiras, comportamento anti-social (Flannery, 1997). No Brasil, a partir de meados dos anos 90, haveria a tendncia a um certo consenso na literatura de tratar como violncia todas as manifestaes de agresso contra o patrimnio, assim como aquelas voltadas contra a pessoa (alunos, professores, funcionrios etc.) (Fukui, 1991; Sposito, 1994; Guimares, 1996; Minayo, 1999). Do ponto de vista da busca de explicaes sobre as causas da violncia escolar, percebe-se que a literatura sobre o tema associa os atos de violncia a fatores externos e/ou internos. De uma forma bem resumida, pode-se sugerir que os fatores externos (exgenos) referemse a explicaes de ordem socioeconmica, ao agravamento das excluses sociais, raciais e de gnero, perda de referencial entre os jovens, ao surgimento de galeras, gangues, trfico de drogas, desestruturao familiar etc, perda dos espaos de sociabilidade (Candau, Lucinda e Nascimento, 1999; Guimares, 1998; Belintane, 1998; Artz, 1998; Peignard, 1998; Payet, 1997; Zinnecker,1998). Estes fatores, apesar de no condicionantes, estariam na origem da explicao de muitos casos de violncia praticados nas escolas. Neste tipo de perspectiva, a escola torna-se vtima de situaes que fogem ao seu controle, sendo objeto de atos de violncia. No que se refere s variveis internas (endgenas), a literatura destaca os seguintes fatores: o nvel de escolaridade dos estudantes (Flannery, 1997), o sistema de normas e regras, a disciplina dos projetos polticos pedaggicos (Haydem, 2001; Blaya, 2001; Ramogino et al., 1997), a quebra dos pactos de convivncia interna,54

o desrespeito de professores com alunos e vice-versa, a m qualidade do ensino, a carncia de recursos (Sposito, 1998; Feldman, 1998; Blaya, 2001). Observa-se que estas variveis se inserem em um conjunto de aes, dificuldades e tenses vividas no cotidiano escolar. A dificuldade de estabelecer relaes entre os alunos, a escola e a comunidade contribuem para o surgimento de violncias no interior da unidade escolar. Vale destacar que o tema violncia nas escolas comporta mltiplos olhares, percepes e modelos de anlise. Observa-se, como vm salientando Debarbieux (2001) e Watts (1998), a necessidade de se proceder a estudos multidisciplinares e transnacionais, como forma de confrontar experincias distintas e encontrar afinidades que levem a uma maior compreenso do fenmeno. Por outro lado, os estudos realizados vm mostrando que a escola passa por transformaes no que se refere sua identidade, ao seu papel e funo social. Alinhar perspectivas macrossociais sobre juventudes, violncia e excluso social com estudos etnogrficos sobre o universo escolar pode contribuir de forma significativa para a constituio de alternativas violncia. Neste estudo, mudou-se o foco, partindo-se das aes e iniciativas criadas pela comunidade escolar com o objetivo de melhorar o clima escolar, fortalecer/estabelecer os canais de interlocuo entre os diferentes integrantes da escola, ampliar a participao dos alunos, melhorar o desempenho escolar e construir mecanismos de diminuio da violncia escolar. Ao inverter a linha de investigao, ou seja, ao investigar as aes propositivas existentes no meio escolar, a pesquisa revelou aspectos importantes sobre o processo de organizao e gesto da escola, possibilitando um outro olhar sobre as aes e os comportamentos violentos no seu interior. Ao serem valorizadas, as iniciativas e experincias realizadas pelas escolas, no enfrentamento a uma srie de questes (indisciplina, agresses, ameaas, intimidaes, baixo desempenho escolar, desmotivao) promovem uma maior integrao da unidade escolar, fortalecendo ou mesmo criando laos e mecanismos de compartilhamento de interesses e objetivos e possibilitando um contraponto aos diferentes tipos de violncias praticados no interior da escola.55

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A utilizao da expresso experincias bem-sucedidas ou experincias inovadoras implica o risco de qualificao de outras experincias como ineficazes ou, mesmo, como ultrapassadas, gerando um certo reducionismo na anlise e na compreenso do trabalho realizado pelas escolas. Neste sentido, ao tratar de experincias bemsucedidas, procurou-se resgatar a prpria percepo transmitida pelos atores envolvidos, que conferiam a suas experincias/aes/projetos um carter de inovao. Em muitos casos, trata-se de aes muito simples e que, num primeiro momento, podem parecer banais ou mesmo antiquadas, mas so significativas, pois despertam um compromisso e uma motivao dos participantes pela busca de solues aos problemas enfrentados. Em outros casos, certos projetos podem parecer grandiosos e desproporcionais para a realidade da escola. Entretanto, apresentam capacidade de articulao e integrao com o entorno, permitindo ampliar as parcerias e as estratgias de superao de problemas de integrao da escola com a comunidade. Em que pese o formato da experincia/ao/projeto desenvolvido pela escola, o que garante a unidade destas iniciativas que, por isso mesmo, esto sendo consideradas como bem-sucedidas fato de estarem articulando processos de construo coletiva para a superao das dificuldades. A partir destas primeiras ponderaes, importante atentar para outras questes que esto presentes na discusso sobre inovao. O termo inovao apresenta um carter ambguo, visto que, ao se tratar uma determinada experincia como inovadora, pode estar se estabelecendo uma comparao entre experincias, onde uma poderia ser considerada mais inovadora do que outra. A inovao no atemporal nem abstrata, mas adquire significado quando historicizada e contextualizada. Cabe, neste sentido, levantar algumas questes que podem aprofundar o debate sobre as iniciativas aqui retratadas. Vale lembrar que o tema da inovao sempre esteve associado ao campo das descobertas cientficas e institucionais (Beck, 1992; Latour, 1997). Dentre suas diferentes abordagens, vale recuperar algumas sugeridas por autores que, em trabalhos e pesquisas distintas, levantaram questes sugestivas sobre alguns significados a ele atribudos.56

Uma primeira questo a ser enfatizada, como sugerem Deal e Kennedy (1982), que as grandes transformaes sociais, econmicas e polticas que marcaram as sociedades no final da segunda guerra mundial geraram uma incerteza grande a respeito dos valores, abalando a confiana no comprometimento das pessoas, sendo necessrio enfatizar modelos e construir processos que, de um lado, possibilitassem maior integrao e, de outro, fossem capazes de fazer confluir interesses e mecanismos de dilogo. O investimento em iniciativas inovadoras aparece como a grande possibilidade de desenvolvimento socioeconmico. Diante de tal preocupao, Heller (1985) levanta uma hiptese interessante no que se refere a conceber a inovao como um mecanismo capaz de recuperar os processos de integrao social. Segundo o autor, existe uma crise de legitimidade da autoridade institucional, que se evidencia pela pouca confiana atribuda s instituies e suas lideranas. Esta desconfiana gera uma perda de referencial e uma fragmentao dos modelos de ao, estabelecendo um maior descomprometimento dos integrantes das organizaes com a prpria instituio. A instituio deixa de representar os interesses e anseios dos seus integrantes, perdendo seu papel de fornecedora de modelos culturais (ticos e morais), comportamentais e educacionais. Para Heller, a identidade passou a ser construda de forma diferente, havendo um deslocamento dos espaos geradores e propulsores de identidades para fora das organizaes. Essa alterao, quando projetada no futuro, apresentaria uma tendncia noinovadora, pois tenderia a valorizar modelos culturais carismticos, autoritrios ou mesmo, consumistas. A inovao, neste caso, pode ser pensada como um instrumento de recuperao da auto-estima institucional, de devoluo de legitimidade e autoridade instituio, enquanto portadora de certos modelos culturais. Recuperar a legitimidade significa restabelecer a confiana, o dilogo e o comprometimento dos diferentes integrantes com o projeto institucional, com os objetivos de curto e longo prazo da escola. No caso de Heller, pode-se sugerir que a idia de inovao se localiza menos na oposio entre o novo e o velho e mais na atualizao e/ou criao de mecanismos de recuperao dos processos de integrao social.57

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Um outro autor que pode contribuir neste debate Alvesson (1987), que chama a ateno para outros aspectos do processo de crise organizacional. Segundo ele, o desenvolvimento acelerado (econmico e social) traz, como conseqncia, um processo de quebra da coeso de certos modelos culturais, uma tecnificao da vida social e a destruio de certos padres culturais tradicionais que agiam como integradores das vrias dimenses da vida social. Para Avelsson, a perda de certos referencias morais e ticos, por exemplo, estaria na origem da mudana de atitude em relao tanto autoridade quanto famlia, resultando na transformao dos comportamentos e nas formas de interao. Muitos autores nacionais e internacionais vo atribuir a estas mudanas comportamentais e atitudinais um campo de reflexo para pensar o crescimento de formas de sociabilidades negativas, como, por exemplo, as gangues e o trfico de drogas (Jankowsky, 1991; Guimares, 1998), ou de atitudes de delinqncia e criminalidade 7. As instituies escolares podem ser percebidas como modelos (no exclusivos) dos pressupostos bsicos (morais e ticos) que determinado grupo desenvolve no processo de aprendizagem para lidar com os problemas de adaptao externa e de integrao interna. Uma vez que os pressupostos funcionem suficientemente bem para serem considerados vlidos, so ensinados aos demais integrantes como a maneira correta para lidar com aqueles problemas. Dentro desta perspectiva, a inovao aparece como uma experincia capaz de reordenar/mediar/negociar as interaes tanto externas quanto internas, no apenas do ponto de vista das aes que gera, mas dos valores que transmite.

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Algumas abordagens sobre violncia no meio escolar procuram demonstrar que o tipo de violncia praticado na escola est mais associado a problemas relacionais (agresses, indisciplinas, ameaas etc.) do que a atos criminais. Segundo alguns autores (Brancaleoni, 1998; Debarbieux, 1996; Peralva, 1997), certas aes criminais, tais como homicdios, so, geralmente, praticadas no exterior da escola. Entretanto, repercutem no universo escolar e afetam tanto a imagem da escola quanto a dos alunos.

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Ainda no trabalho de Avelsson, pode-se encontrar uma percepo de inovao como um conjunto de aes capazes de restabelecer certos padres de sociabilidades positivas, que teriam sido perdidas ou substitudas por outras. Menos do que definir um padro ou um comportamento tico universal, estas aes devem ser capazes de ordenar e recuperar o grupo, enquanto portador de um modelo de ao, sem excluir outros. A inovao, neste caso, pensada como um processo situado em um tempo e em um espao especfico e compartilhado pelos atores envolvidos. No entanto, o problema da inovao tambm levanta um outro conjunto de questes associado idia de superao e resoluo de certos comportamentos e prticas desestruturadores das sociabilidades positivas. O conflito e os diferentes tipos de violncias escolares colocam em evidncia a quebra de certos pactos de convivncia (Ortega, 2001), instituindo uma ordem desordenada e uma perda da capacidade de ensino e aprendizado do aluno e uma sensao de fracasso escolar. Vale destacar que as primeiras interpretaes sobre o fracasso escolar estavam circunscritas ao foro individual dos alunos, centradas na incapacidade de aprender. Entretanto, este problema toma dimenses alarmantes do ponto de vista social, e a lgica do fracasso individual dos alunos passa a ser questionada 8 . A escola, ento, voltase para o conjunto dos alunos oriundos das camadas populares, atribuindo-lhes a culpa pelo fracasso escolar 9 . Neste tipo de abordagem, a origem socioeconmica aparece como fora explicadora. At meados dos anos 1980, as explicaes sobre o fracasso escolar repousavam sobre uma crtica ao sistema educacional, compreendido como uma aparelho reprodutor das desigualdades socioeconmicas (Bourdieu e Passeron, 1970; Willis, 1991), sendo as tenses e os conflitos existentes no universo escolar determinados pelos conflitos sociais mais gerais.8

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As primeiras medidas tomadas pelo poder pblico no sentido de minimizar o fracasso dos alunos, principalmente a evaso e a repetncia, que no final dos anos 1970 j atingiam ndices superiores a 50%, tiveram carter compensatrio. As polticas desta dcada so marcadas por acentuar o incipiente repertrio cultural deste segmento da populao, tanto as de natureza lingstica (justificando o fracasso da alfabetizao) quanto as referentes s suas condies de vida.

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Focalizando o espao intra-escolar, Moreira enfatiza que, no mnimo, duas culturas confrontam-se no cotidiano: de um lado, a cultura erudita e etnocntrica, veiculada nos contedos programticos e identificada com as camadas dominantes da populao; por outro, a cultura popular marginalizada e ausente das prticas pedaggicocurriculares no interior das escolas. (Moreira, 1999: 54). Neste tipo de abordagem, ainda inspirada na perspectiva de Bourdieu e Passeron (1970), os contedos programticos impem um sistema simblico reprodutor de uma cultura dominante, que contribui para a reproduo das estruturas de poder. No centro da ao pedaggica, confrontam-se duas dimenses: o contedo transmitido (artefato simblico) e o poder que ordena a relao (identificado como violncia simblica), exercido pela autoridade pedaggica. No entanto, a anlise de Moreira chama a ateno para a importncia de se retomar o microcosmo da unidade escolar. Ao destacar a existncia de padres de comportamentos distintos, o autor alerta para a tenso que se constitui no ambiente escolar entre os diferentes segmentos (alunos, professores e administrao), gerando formas de discriminao cultural, racial e social. Algumas pesquisas, como as de Ldke e Mediano (1992), mostram que, para alm da reproduo das estruturas de poder, existe tambm uma ausncia da cultura popular nas prticas pedaggicas e curriculares (nas estruturas formais de ensino). Alm disso, nas prticas cotidianas da escola, so criadas expectativas e esteretipos em relao aos alunos das camadas populares, gerando novas prticas pedaggicas que os afastam deste processo10.

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bastante diferente nascer no Maranho e nascer em So Paulo. Enquanto no primeiro estado, para 4 crianas nascidas, 3 so pobres, no segundo a situao se modifica: apenas 1 pobre. A mortalidade infantil chega a 62 para cada mil crianas nascidas em Alagoas e a 16 para as nascidas no Rio Grande do Sul. Tambm fato que as mulheres ganham menos que os homens e que, segundo os ltimos indicadores sociais elaborados pelo IBGE (2002), a partir do Censo de 2000, as diferenas comeam quando so ainda muito jovens. As meninas freqentam a escola mais tempo que os meninos, que a abandonam devido ao trabalho. Vale lembrar que estes ltimos esto mais afetos a mortes violentas. Se o exemplo acima for transportado para mulheres jovens e negras, a situao de desigualdade se torna ainda mais grave.

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Esta tendncia mudaria no final dos anos 1980, com a garantia de direitos constitucionais, presentes na Constituio Federal (1988) e no Estatuto da Criana e do Adolescente (1990), onde fica notria a necessidade de mudana de argumentos para justificar o insucesso escolar: de um lado, as caractersticas individuais, a preguia, o desleixo, a falta de zelo e a incapacidade intelectual; de outro, a origem socioeconmica. Tais argumentos, aos poucos, so substitudos por uma viso mais ampla sobre as diferenas culturais, os valores, as tradies, que se entrecruzam com as explicaes socioeconmicas. neste panorama que o debate sobre a escola pblica assume grande importncia, pois se espera dela uma cultura escolar apta a lidar no s com a diversidade de seus alunos e com as desigualdades existentes entre eles, mas, tambm, a contribuir para a construo de uma escola mais igualitria. Em tal processo, a existncia de um clima escolar propenso incluso dos alunos e de suas famlias, dos valores, crenas e cultura que os cercam, trar impactos aprendizagem. Assim, o clima positivo e o respeito heterogeneidade cultural sero motivadores para os alunos e professores na busca de novos conhecimentos e, ao mesmo tempo, responsveis por uma cultura escolar capaz de construir uma identidade compartilhada. Neste sentido, vale lembrar as ponderaes feitas por Charlot, a respeito da relao entre origem social e trajetria escolar. Segundo o autor, importante atentar para os sentidos diversos atribudos pelos alunos escola. O fracasso escolar deve ser entendido no apenas a partir de explicaes de natureza externa escola, mas das mltiplas reaes e interaes estabelecidas no interior da escola (Charlot, 1997 apud Abramovay e Castro, 2003). Vrios estudos e pesquisas, como a de Soares (2002), contriburam para focar a questo do fracasso escolar na inadequao do sistema escolar (nas suas estruturas formais e nos padres de interao) e no mais na inabilidade cognitiva de seus alunos. Assim, voltar o olhar para dentro da escola (estudos e pesquisas da dcada de 1990) significa conhecer em que medida dimenses culturais criam ou estimulam embates de alunos, professores e direo. Assim, possvel buscar formas de promover uma educao includente por meio da minimizao dos61

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efeitos perversos de uma sociedade hierarquizada, tanto culturalmente quanto nas suas estruturas scio-polticas. A busca por uma educao humanista, onde a diversidade fosse percebida como uma dimenso complementar e no antagnica, provocou uma srie de estudos, que buscavam refletir sobre o universo escolar como um fenmeno total, no mais determinado por uma ou outra dimenso (econmica, social, cultural), mas pela forma como estas dimenses afetavam o cotidiano escolar. Nessa perspectiva, alguns estudos (Ortega e Del Rey, 2002) chamam a ateno para o fato de a educao, enquanto instncia criadora e formadora de valores ticos, sociais e morais, ter se afastado dessa preocupao por uma valorizao excessiva da liberdade individual, gerando um aumento considervel das tenses internas na escola. Essas tenses, em um extremo, poderiam desencadear fenmenos de violncia de natureza e origens distintas. Nesse sentido, o conflito no interior da escola colocaria em risco a prpria instituio, enquanto propulsora de um saber tico formativo, exigindo um processo regulatrio mais rgido11. Os estudos de Nvoa (1992), Brunet (1992) e Silva (2000) atentam para certos aspectos, referentes organizao escolar (tais como liderana, autoridade, gesto, legitimidade e hierarquia), que afetam, de um lado, a estabilidade dos professores e, de outro, o desempenho dos alunos. Estas reflexes vm contribuir para o debate acerca dos elementos que definem o clima escolar para os envolvidos neste processo. Segundo Silva (2000), conhecer as concepes de autoridade e hierarquia que fundamentam a prtica de uma escola ser essencial para compreender as formas de participao compartilhada que l se engendram. Utiliza-se do conceito de Arendt de que a autoridade exclui a

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Imbricada a este processo regulatrio estaria presente a idia de coero. Tal combinao (regulao e coero) colocaria em movimento mecanismos contnuos, capazes de avaliar, medir, qualificar e hierarquizar certos comportamentos e prticas, assim como identificar e classificar seus autores. No limite, pode-se afirmar que a introduo de cmeras de vdeo e de detectores de metal nos estabelecimentos escolares exemplo drstico destes processos de coero e regulao.

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utilizao de meios externos de coero: onde a fora usada, a autoridade em si fracassou, para elucidar a diferena desta para as demais formas de poder. Assim, para que haja autoridade, necessrio um reconhecimento da sua legitimidade pelas partes envolvidas (Arendt, 1972 apud Silva, 2000:131). Neste sentido, a legitimidade existe ou deixa de existir na medida em que seja reconhecida tanto pelos alunos, professores, diretores, funcionrios e familiares como pela comunidade do entorno. Observase que as relaes que se processam no interior da escola entre professores e alunos, alunos e alunos, direo e professores, dentre outros, esto em permanente embate e negociao a respeito da autoridade. Conforme aponta Silva:A atuao da direo da escola fundamental (...). A tarefa do administrador escolar no controlar o trabalho pedaggico mas assegurar a existncia de condies para que o ensino se realize (...). Quando a legitimao da autoridade se d meramente pelo cargo burocrtico ocupado, normalmente ocorre uma centralizao das decises formais nas mos da direo e um individualismo exacerbado nas prticas ocorridas na sala de aula (...). Nos grupos em que h o predomnio desse tipo de cultura, observa-se um baixo envolvimento dos profissionais entre si e com a escola, sendo muito freqente a alta rotatividade de profissionais e a proliferao daqueles que dizem que nada h para ser feito (Silva, 2000: 133).

Para Friedberg (1995), no se pode conceituar as instituies como instncias plenamente organizadas, pois estas carregam, em seu formato, um certo grau de anarquia, que o autor vai denominar de anarquia organizada. O que caracterizaria esta anarquia no seria apenas o fato de existirem conflitos de interesse e uma falta de autoridade, mas um conhecimento mal utilizado e mal distribudo. As escolas tm, muitas vezes, objetivos e metas pouco claros e, principalmente, pouco assumidos por seus integrantes. O grau e o tipo de participao dos diferentes atores da comunidade escolar frgil e pouco definido, estabelecendo-se relaes desequilibradas e ambguas. Alguns autores procuram mostrar que este desequilbrio est associado ao formato altamente centralizador e autoritrio do sistema educacional, reproduzido na unidade escolar. Em tal contexto, os temas63

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da descentralizao dos processos poltico-administrativos e da democratizao da escola pblica aparecem com destaque. A criao de colegiados e conselhos, dotados de autoridade deliberativa e decisria, o envolvimento da comunidade escolar na seleo de diretores e o repasse direto de recursos financeiros s unidades escolares, dentre outras providncias, contribuem, inegavelmente, para a construo de uma escola mais autnoma. A discusso sobre o impacto da gesto participativa na qualidade do trabalho das escolas no recente, tornando-se especialmente expressiva no final da dcada de 1970 e pautando-se, sobretudo, no reconhecimento da impossibilidade de apenas a direo solucionar os problemas e questes inerentes vida escolar. A gesto participativa e descentralizada pressupe uma prtica de discusso coletiva, que envolve desde a diviso de responsabilidades e a definio das funes de cada um at as decises sobre encaminhamentos e aes concretas. Conforme afirmam Sousa e Corra, sendo o projeto pedaggico a identidade da escola, sua construo demanda um processo constante de partilha entre os vrios segmentos que contribuem para o trabalho da instituio escolar (Sousa e Corra, 2002: 62). Certamente, tal perspectiva implica rever o papel e as funes do diretor, de forma que este atue no cotidiano, na condio de lder pedaggico, apoiando a definio de prioridades, avaliando programas e aes, organizando e participando de atividades de formao dos funcionrios e valorizando os resultados alcanados pelos alunos. A realidade brasileira, porm, mostra que a tendncia centralizadora ainda muito forte na cultura da escola e do sistema educacional como um todo. A participao, no seu sentido pleno, ainda no constitui prtica comum no cotidiano, muito marcado por uma concepo na qual seria o diretor o nico responsvel pela escola. Nesse quadro, entretanto, possvel reconhecer estabelecimentos onde, como apontam Penin e Vieira (2001), h uma identidade bem definida, que os diferencia de outros e que permite que o perfil da escola no se confunda com a figura do diretor, mesmo quando esta, individualmente, apresenta destaque expressivo. Em tais estabelecimentos, aparente o trabalho de todos os atores na construo de sua histria e cultura: professores, funcionrios, alunos, pais ou responsveis pelos alunos e demais componentes da comunidade.64

No entanto, como chama a ateno Friedberg (1995), as relaes que so estabelecidas pelos indivduos dentro de um mesmo sistema (organizao) tambm apresentam desequilbrios no nvel das aes, das expectativas e dos anseios. O autor lembra que as hierarquias se constituem no prprio contexto da ao, onde tambm so exercitadas relaes de poder. Mesmo que esses processos no inviabilizem a ao, desestruturando a cooperao, podem intervir como elemento capaz de aumentar as tenses e as desigualdades. O que est em jogo neste processo a capacidade, institucional e individual, de estabelecer mecanismos de negociao e mediao. Como bem mostram certos autores, toda ordem social uma ordem negociada (Simmel, 1971; Strauss, 1992), que pressupe algumas definies: quem negocia o qu, com quem e em relao a qu. A negociao est igualmente ordenada em funo do tempo: uma ordem negociada exige um trabalho de organizao contnua das bases que a orientam. Strauss (1992) e