Escola - 1º Guerra Mundial 100 Anos _ Primeira Guerra Mundial.pdf
Transcript of Escola - 1º Guerra Mundial 100 Anos _ Primeira Guerra Mundial.pdf
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 1/69
O CONFLITO QUE MUDOU O MUNDO
Eram 3h30 de 26 de agosto de 1914, em Rozelieures, na região de Lorena, fronteira com a Alemanha, quando Joseph
Caillat, soldado do 54.º batalhão de artilharia do exército da França, escreveu: “Nós marchamos para a frente, os
alemães recuaram. Atravessamos o terreno em que combatemos ontem, crivado de obuses, um triste cenário a observar.
Há mortos a cada passo e mal podemos passar por eles sem passar sobre eles, alguns deitados, outros de joelhos, outros
sentados e outros que estavam comendo. Os feridos são muitos e, quando vemos que estão quase mortos, nós acabamos o
sofrimento a tiros de revólveres”.
Quando Caillat escreveu aquela que seria uma de suas primeiras cartas do front a seus familiares, a Europa estava em
guerra havia exatos 32 dias – e acreditava-se que não por muito mais tempo. Correspondências como a desse soldado
de 2.ª classe que morreria de pneumonia em 1º de julho de 1917 começavam então a trazer à luz para a sociedade a
gravidade do conflito, que em seus quatro anos, três meses e 14 dias mobilizaria mais de 60 milhões de combatentes e
deixaria quase 9 milhões de civis e militares mortos, além de 20 milhões de feridos, em um dos piores momentos da
história da humanidade.
É consenso entre historiadores que a 1.ª Guerra Mundial mudou a geopolítica e as sociedades que dela participaram para
sempre, alterando de forma radical o mapa-múndi – uma transformação que ainda reverbera em nossos dias. Os 1.567
dias de carnificina marcaram a queda da era dos grandes impérios – alemão, austro-húngaro, russo, turco –, resultaram
em um genocídio – na Armênia – e em uma revolução – na Rússia –, devastaram cidades, regiões e países e abalaram por
décadas a Europa, abrindo as portas, após o Tratado de Versalhes , para a emergência de Adolf Hitler e do
ANO A ANO
1914
1915
1916
1917
1918
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 2/69
Andrei Netto
ENVIADO ESPECIAL
SARAJEVO, BÓSNIA
nazismo, para a 2.ª Guerra Mundial, para o holocausto e para o mundo tal como o conhecemos hoje. "O tratado de paz de
fato impôs condições muito duras à Alemanha, que foram vividas de forma realmente humilhante pelos alemães", disse
Karine McGrath, diretora dos Arquivos do Palácio de Versalhes.
O Estado esteve em locais emblemáticos do conflito, como a célebre Ponte Latina, em Sarajevo, e os campos de batalha de
Ypres, na Bélgica, e Verdun, na França, percorreu centenas de quilômetros em fronts, visitou ruínas e sítios de guerra,
mergulhou em arquivos públicos e particulares, pesquisou documentos, fotos e imagens, entrevistou descendentes de
soldados e vítimas, ouviu historiadores e militares na França, nos Estados Unidos, no Reino Unido e no Brasil.Foram
sete meses de pesquisa, além de consultas a quase duas dezenas de publicações inglesas, francesas, italianas, alemãs,
espanholas, americanas e brasileiras mantidas no Acervo Estado . Tudo em um esforço para compreender por que a
Grande Guerra é ainda hoje, 100 anos mais tarde, uma ferida em cicatrização.
EM SARAJEVO, ATENTADO ÉCOMBUSTÍVEL DA DISCÓRDIA
Em 28 de junho de 1914, Gavrilo Princip atacou e abateu a tiros o herdeiro do trono da Áustria-Hungria, Francisco
Ferdinando, no evento que precipitou a 1.ª Guerra Mundial. Cem anos depois, o jovem nacionalista sérvio ainda
divide a Bósnia: herói ou terrorista?
Não havia representantes do governo da Sérvia nem das mais importantes autoridades da comunidade sérvia
da Bósnia-Herzegovina na noite de gala de 28 de junho de 2014 no Vijecnica , a reconstruída biblioteca
nacional do país. Naquela noite, um concerto da Orquestra Filarmônica de Viena, da Áustria, realizado no
prédio-símbolo de Sarajevo lembrava os 100 anos do atentado que matou o herdeiro do trono da Áustria-Hungria, Francisco
Ferdinando.
Do lado de fora, algumas dezenas de militantes carregavam faixas de protesto e cobriam seus rostos com uma máscara: a do
jovem nacionalista sérvio Gavrilo Princip.
Para os que estavam no interior do edifício de linhas neo-islâmicas devastado pelo fogo no cerco à cidade, em 1992, e agora
reconstruído, Princip foi um assassino. Para aqueles que protestavam no lado externo, ele foi um herói. Em síntese, assim se
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 3/69
divide a Bósnia-Herzegovina sobre o evento político usado como pretexto pelo Império Austro-Húngaro, com apoio do Império
Alemão, para lançar a 1.ª Guerra Mundial. Um século após o célebre atentado de Sarajevo, a memória do assassinato de
Francisco Ferdinando e de sua mulher, Sofia, é alvo de paixões e de discórdia política.
A controvérsia em torno do papel do jovem tuberculoso Gavrilo
Princip no ataque faz parte de um pedaço da história mais viva do que
o próprio conflito de 1914-1918 no imaginário dos Bálcãs. Recém-saída
de mais uma guerra sanguinária, a península ainda sofre as
consequências da implosão da Iugoslávia e da 3.ª Guerra dos Bálcãs,
entre 1991 e 2001, e com a profunda divisão dos povos da região. O
resultado é que sérvios, de um lado, e bósnios e croatas, de outro, têm
visões opostas também sobre o ataque cometido por nacionalistas do
movimento Mlada Bosna, Jovem Bósnia, em 1914.
A organização defendia a ideia da Grande Sérvia e a criação da
Iugoslávia e se opunha à ocupação da Bósnia-Herzegovina pela Áustria-
Hungria, que invadiu o território em 1878 e o anexou em 1908. A
iniciativa de Viena de absorver parte da Península Balcânica contrariava
as disposições do Tratado de Berlim, que reconhecia a posse da região
pelo Império Otomano, e serviu para acirrar o nacionalismo sérvio
dentro e fora das fronteiras da Bósnia, estimulado pelo apoio do Império Russo e de seu czar, Nicolau II.
Casado com uma checa, Sofia, Ferdinando era considerado um sucessor progressista do imperador Francisco-José, então com
84 anos. Nos meios políticos de Viena, imaginava-se que o arquiduque, uma vez no trono, poderia ampliar a autonomia, a
liberdade e os direitos dos eslavos do império, mais numerosos do que os austríacos e os húngaros. Esse suposto perfil
reformador – que jamais se confirmaria, em função do assassinato – causava desconfiança na corte e na elite do próprio
império, ciosas de manter o status, mas sobretudo entre os movimentos nacionalistas da Sérvia, que almejavam comandar a
grande unificação dos “eslavos do Sul” em um país unido – a “Eslávia do Sul”, ou Iugoslávia.
Foi nesse contexto que movimentos como Jovem Bósnia e Mão Negra, um grupo secreto suspeito de ter ligações com o exército e
o governo da Sérvia, conspiraram para o assassinato do arquiduque a tiros de revólver , pelas mãos de Princip, após um
primeiro atentado a bomba fracassado no mesmo dia, ambos nas imediações de Vijecnica, que Ferdinando havia visitado
instantes antes.
Cem anos depois, a memória do crime que segundo o historiador britânico Eric Hobsbawm marcou o início do “breve século 20”
ainda paira sobre Sarajevo. “Estamos em uma profunda crise econômica e a maioria da população de Sarajevo não está
Gavrilo preso pouco depois dos disparos. Crédito: Acervo Estado.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 4/69
interessada na 1.ª Guerra Mundial”, explica a historiadora Vera Katz , pesquisadora do Instituto de História da
Universidade de Sarajevo. “Mas entre acadêmicos estamos muito divididos. Temos três divisões claras: sérvios, bósnios e croatas.
Isso faz com que tenhamos diferentes interpretações sobre o papel de Gavrilo Princip na 1.ª Guerra Mundial. Entre historiadores
sérvios, ele continua a ser um herói nacional.”
A controvérsia nos meios acadêmicos é tão forte que pesquisadores sérvios boicotaram uma conferência internacional que reuniu
entre 18 e 21 de junho historiadores do mundo todo em torno do tema A Grande Guerra: Abordagens Regionais e Contextos
Globais. Uma conferência em separado será realizada em setembro, em Belgrado, na Sérvia. Para intelectuais como Miljan
Maksimovic, historiador bósnio de origem sérvia, as elites políticas bósnias e europeias tentam revisar a história, apagando os
traços do povo sérvio na cultura local e impondo o fardo da culpa pela Grande Guerra à Sérvia. “O absurdo é que bósnios
muçulmanos também impuseram grande resistência às tropas invasoras austro-húngaras em 1878, mas dizem o contrário hoje”,
afirmou Maksimovic à agência russa Ria Novosti. “O fato é que essas iniciativas não contribuem à reconciliação global, mas
aprofundam a divisão.”
Um dos grandes pontos de insatisfação da população de Sarajevo Leste e da República Srpska (República Sérvia da Bósnia, uma
das duas que compõem a Bósnia-Herzegovina), onde se concentra a população sérvia, é que uma versão da história sobre o
atentado de Sarajevo e sobre Gavrilo Princip, um “herói nacional”, está preponderando para o mundo. Para eles, austro-
húngaros eram os invasores a serem combatidos.
O que se vê hoje na Bósnia-Herzegovina, porém, é
uma revisão desse papel e uma tentativa de apagar
da memória o culto a Princip. Em Sarajevo, a
passagem sobre o Rio Miljacka em frente à qual
Francisco Ferdinando foi assassinado, que durante
a existência da Iugoslávia de Alexandre I e de Tito
se chamou Ponte Gavrilo Princip, voltou a ser
denominada Ponte Latina. Uma placa com os
dizeres “Que a paz reine sobre a Terra” hoje
esconde a anterior, que descrevia o jovem como
“um combatente da liberdade” e o atentado como
“um protesto popular contra a tirania”. As ruas em
homenagem ao herói/terrorista e ao movimento
Jovem Bósnia foram rebatizadas.
No centro histórico, onde a maioria é de bósnios e croatas, há um projeto de construção de uma estátua em memória do
arquiduque. Na mesma região, existe um albergue chamado Franz Ferdinand. “Os proprietários queriam usar o nome famoso
para atrair turistas de outros países”, explica Sedad Cholak, funcionário do hostel. “Eu diria que aqui é 50%-50%. Muitos
pensam que ele foi uma boa pessoa e muitos pensam que Gavrilo Princip era uma boa pessoa, porque ele o matou. Eu não sei…
Ele era um líder, a Bósnia fazia parte da Áustria-Hungria. Eu creio que ele era um bom homem.”
Em um país no qual cada parede traz as marcas da mais recente guerra fratricida e onde todos os espíritos ainda estão
impregnados pelo horror do conflito dos anos 1990, essa “virada da memória” em favor do arquiduque descontenta e indigna a
população sérvia da Bósnia, que vê nas iniciativas a glorificação do opressor. Por isso, há reações em curso em Istocno, periferia
de Sarajevo Leste, em Visegrad, na fronteira com a Sérvia, e em Belgrado, na Sérvia, onde monumentos à memória de Princip
estão em fase de projeto, já em construção ou inaugurados. “O ponto de início foi a retirada do monumento a Gravilo Princip da
praça na qual ele estava em Sarajevo, o que quer dizer que não há intenção de se fazer uma boa representação sobre o início da
1.ª Guerra Mundial”, argumenta Ljubisa Cosic, prefeito de Sarajevo Leste.
Quem também não gosta de todas as homenagens a Francisco Ferdinando é Gavrilo Princip. Não se trata, claro, do
herói/terrorista, mas de seu sobrinho-neto, que o Estado localizou em Sarajevo Leste. Empresário do ramo hoteleiro e
proprietário de um posto de combustíveis, Bato, ou Caçula, como é chamado pelos íntimos, vive com discrição e não gosta de
falar com jornalistas. Até pouco tempo atrás, portava com orgulho o nome do tio-avô, fuzilado em 1941 a mando do líder nazi-
fascista Ante Pavelic, o “Führer croata”. Também participava com a família, a cada dia 28 de julho, de uma reunião em uma
igreja ortodoxa do centro de Sarajevo, de onde partiam para visitar o túmulo de seu antepassado ilustre, que a escola iugoslava
lhe ensinou ser um herói.
Hoje, aos 62 anos, entretanto, Bato começa a se esconder, e não apenas de jornalistas – o empresário não quis gravar entrevista
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 5/69
Andrei Netto
ENVIADO ESPECIAL
PARIS E VERDUN (FRANÇA) E YPRES (BÉLGICA)
para a reportagem. Gavrilo Princip, o sobrinho-neto, lembra que a casa e o vilarejo onde seu antepassado nasceu foram
destruídos várias vezes ao longo do século e o risco existe. Mas, sobretudo, foge da dimensão internacional que a polêmica sobre
Gavrilo Princip, o herói/terrorista, ganhou nos Bálcãs 100 anos depois do assassinato de Francisco Ferdinando.
1914: QUANDO HORROR SE ALASTROUNa cabeça de líderes políticos e diplomatas, a 1.ª Guerra Mundial seria um conflito sangrento, mas rápido. Cem anos
depois, fortes, bunkers, crateras, armamentos, campos de batalha, cemitérios, ossários e monumentos comprovam:
foi uma guerra total.
Em um extrato de uma mensagem escrita às vésperas da eclosão da 1.ª Guerra Mundial, o
imperador da Rússia, Nicolau II, rogou a seu primo e amigo, o imperador da Alemanha,
Guilherme II:
Uma guerra vergonhosa foi declarada contra uma nação fraca; eu compartilho inteiramente a
imensa indignação na Rússia. Muito em breve não poderei mais resistir à pressão e serei
forçado a tomar medidas que conduzirão à guerra. Para prevenir a infelicidade de uma guerra europeia,
eu te peço, em nome de nossa velha amizade, que faça todo o possível para impedir que teu aliado vá
longe demais”.
À correspondência, o kaiser responderia horas depois: “Não posso considerar a marcha à frente da Áustria-Hungria como uma
‘guerra vergonhosa’. (…) A declaração do gabinete austríaco me fortifica na opinião de que a Áustria-Hungria não visa a
nenhuma aquisição territorial em detrimento da Sérvia. Creio logo que é possível à Rússia perseverar, frente à guerra austro-
sérvia, em seu papel de espectadora, sem empurrar a Europa à guerra mais horrível que ela jamais viveu”.
Membros da mesma família – ambos eram também primos do monarca
britânico George V –, além de velhos companheiros prestes a se tornarem
inimigos, Nicolau II e Guilherme II compartilhavam em junho de 1914
erros e acertos quanto à interpretação do conflito iminente. Líderes de
potências econômicas e políticas concorrentes, ambos sabiam que na
realidade não se trataria só de um desentendimento “austro-sérvio” e o
início dos combates entre seus dois impérios também era uma questão de
horas. Documentos diplomáticos e de arquivos governamentais mostram
que ambos projetavam embates sanguinários, mas não acreditavam que
um conflito longo estava por começar nem que os campos de batalha se
espalhariam pelo mundo.
Entretanto, em um intervalo de apenas 99 dias a partir de 28 de julho,
quando a Áustria-Hungria abriu as hostilidades contra a Sérvia, no
marco da 1.ª Guerra Mundial, meio mundo seria tragado por uma
sucessão de 19 declarações oficiais de guerra envolvendo dez países. Após
a atitude de Viena, o caos político se espalharia: a Alemanha declararia guerra contra a Rússia em 1.º de agosto e à França dois
dias depois; o Reino Unido se lançaria contra a Alemanha em 4 de agosto e contra a Áustria-Hungria nove dias mais tarde; entre
as duas datas, a Áustria-Hungria declararia a Rússia inimiga em 5 de agosto. Em 23 de agosto, o Japão se uniria à Entente
opondo-se à Alemanha, colocando a Ásia no mapa da guerra. Enfim, em 5 de novembro de 1914, França e Reino Unido
declarariam guerra aos otomanos, empurrando a fronteira do conflito ao Oriente Médio.
Como a escalada da crise diplomática de 1914, a zona de guerra se alastraria pelo continente como fogo em uma carreira de
pólvora até 1917, com a entrada de Estados Unidos e latino-americanos, inclusive o Brasil.
O rei George V (dir.) e o kaiser Guilherme II (esq.). Crédito: AcervoEstado.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 6/69
Tratava-se, então, de uma “guerra total”, industrial e globalizada. “É uma guerra que vai perdurar e vai se industrializar, em que
todos os progressos técnicos, todos os recursos dos Estados-Nação potentes serão mobilizados”, diz Joseph Zimet , historiador
e diretor-geral da Missão do Centenário. “É uma guerra de sociedade, toda mobilizada a seu serviço. As fábricas, as mulheres,
toda a economia vai alimentar o conflito. A guerra não se ganha só nas trincheiras, ou por combates de artilharia, mas pela
mobilização econômica, social e mental na retaguarda.”
Nesse conflito global, frentes de batalha se espalharam pela Europa, mas
também pelos Bálcãs, pela África, por Oriente Médio, Ásia, Oceania e
Atlântico Norte. Seriam ao todo 19 grandes fronts e dez batalhas em
mares e oceanos até o fim da guerra. No segundo maior foco de tensão,
no Leste Europeu, ofensivas como a de Tannenberg, em agosto de 1914,
não apenas contêm o ímpeto do Império Russo e desestabilizam ainda
mais o czarismo, como dão à Alemanha um símbolo de triunfo, sob o
comando dos generais Paul von Hindenburg e Erich Ludenforff. A
caminho da derrota e da revolução bolchevique, russos comemoram
vitórias como a do cerco de Przemysl, que deixou 115 mil pessoas mortas
ou feridas entre 24 de setembro de 1914 e 22 de março de 1915.
Entre tantos embates, porém, nenhum foi mais mortífero do que a frente
ocidental, em que soldados de França, Bélgica e Reino Unido, e mais
tarde de Estados Unidos, Canadá e Austrália, entre outros, defenderam
Paris de uma invasão. A devastação material e humana explica por que
as linhas de front se transformaram em museus a céu aberto da guerra 1914-1918. Fortes, bunkers, crateras, campos de batalha,
armamentos, cemitérios, ossários, monumentos aos mortos e até florestas são cicatrizes do conflito muito visíveis ainda hoje na
França e na Bélgica.
Nesse front, ocorreu a Batalha de Marne, em 1914, decisiva para
assegurar o fracasso da estratégia inicial de ataque alemã, o Plano
Schlieffen, e a vitória dos aliados no final do conflito. Nela, 2 milhões de
homens, entre franceses, britânicos e alemães, estiveram em trincheiras e
ofensivas em Ourcq, Deux Morins, Marais de Saint-Gond, Vitry e
Revigny, comandados por generais que se tornariam heróis nacionais da
França, a exemplo de Joseph Joffre , Joseph Gallieni e Ferdinand
Foch. Em sete dias de combates entre 5 e 12 de setembro de 1914, mais de
100 mil franceses, 7 mil britânicos e 80 mil alemães morreram ou
desapareceram e 250 mil outros soldados ficaram feridos.
No mesmo front ocidental, sucederam-se as Batalhas de Verdun e
Somme, em 1916, que deixaram 306 mil e 442 mil mortos ou
desaparecidos, respectivamente, além das de Chemin des Dames, em
1917, com mais 100 mil mortos, e a 2.ª Batalha de Marne, em 1918, que
matou 280 mil soldados.
A alta mortalidade se dava por uma conjunção de fatores, entre os quais a chamada “guerra de posições”. Essa estratégia, que
duraria os quatro anos no front ocidental, explica Michael Bourlet, doutor em História, escritor e pesquisador das escolas
militares de Saint-Cyr Coëtquidan, na França, era a forma encontrada pelos países invadidos de frear o avanço dos inimigos,
custasse o que custasse. “Em 1914, os estados-maiores fundamentavam suas estratégias em uma guerra de movimento, rápida,
que chegaria ao término de uma grande batalha decisiva”, conta Bourlet. “Ambos os lados se dão conta, ao final da Batalha de
Marne, em setembro de 1914, que a guerra será muito mais longa. E então os lados se deparam com uma guerra de posições.”
O general Ludendorff. Crédito: Acervo Estado.
O general Hindenburg. Crédito: Acervo Estado.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 7/69
A estratégia visa levar o inimigo à exaustão e à derrota, mas o resultado é a paralisia do conflito. A alternativa, então, foi
intensificar a partir de 1915 o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas para infligir baixas em massa aos inimigos e tentar
sair do impasse. Os bombardeios foram intensificados e todos os meios industriais passaram a ser empregados para matar.
Assim nasceram a guerra química, o uso de tanques e os bombardeios aéreos.
Essas novas tecnologias obrigaram generais e comandantes a testar métodos em pleno conflito , enviando centenas de soldados
para missões impossíveis e letais, como a conquista de trincheiras bem guarnecidas e bem armadas ou de morros e colinas,
pontos privilegiados para a visibilidade da artilharia. No exército britânico, um jargão se criou entre as tropas para descrever a
situação:“Leões comandados por asnos”.
Essas batalhas, que figuram no rol das mais violentas da história da humanidade, tinham em comum um elemento de base: o
sofrimento humano descomunal. Um dos diagnósticos mais frequentes entre soldados era a sensação de perda da condição
humana. Em 10 de julho de 1916, um ano e meio antes de sua morte no campo de batalha, o sargento francês Marc Boasson
escreveu:
“Eu mudei terrivelmente. Não queria lhe contar nada da horrível fadiga que a guerra engendrou
em mim, mas você me força. Eu me sinto esmagado, diminuído, (…) estou pobre e nu por causa
das emoções desmesuradas, das experiências desproporcionais à resistência humana. Algo está dando
errado, uma perda generalizada. Eu sou um homem esmagado”.
À sua noiva, o soldado Henri Fauconnier diria em carta datada de 17 fevereiro de 1917: “É assustador depender tanto do meio em
que estamos. Mady, não é com um ser humano que você se casará”, advertiu.“Às vezes eu sou um monstro, às vezes uma planta,
às vezes um mineral. Nunca um ser humano.”
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 8/69
Andrei Netto
ENVIADO ESPECIAL
MASSIGES E VERDUN, FRANÇA
NAS TRINCHEIRAS, MORTE, MISÉRIA EMEMÓRIA
Em uma guerra marcada pela multiplicação do poderio de fogo e pelas perdas em massa, fossas insalubres colocaram
inimigos frente a frente durante quatro anos, simbolizando o horror do conflito. Hoje, elas dão voz à tragédia.
A 2.ª ofensiva de Champagne programada pelo general francês Joseph Joffre para obrigar o exército
alemão a recuar na região de Marne estava em seus últimos preparativos quando o subtenente
Arthur Charles Leguay , de 37 anos, recrutado em Le Mans e matriculado sob o número 1.657 no
2.º Batalhão de Caçadores a Pé, desembarcou na estação de trem de Vitry-le-François em 15 de setembro de 1915. Onze dias
depois, de sua trincheira, sob a luz de velas, ele escreveu à sua mulher, Madeleine: “Parece que seremos encarregados de
perseguir o exército alemão e que receberemos ordem de não parar até a margem do Reno. Quer dizer que queremos o sucesso
completo”, disse o poilu (membro da infantaria francesa), completando em tom otimista: “No momento em que escrevo, as
baterias de artilharia pesada bombardeiam o terreno para deslocar as tropas inimigas. Todos estão sorridentes”.
O ataque ao qual Leguay se referia teve início às 4h45 de 30 de setembro
de 1915. Seu objetivo era tomar o vilarejo de Ripont e posições alemãs
próximas às colinas de Main de Massiges, em Champagne. Ao seu
término, o balanço da operação do lado francês indicava 797 baixas, 159
mortos – incluindo 17 oficiais – e 683 feridos. Além deles, havia 182
desaparecidos, entre os quais o subtenente. A Madeleine, um de seus
colegas de tropa escreveu: “Não posso dizer que ele esteja morto, mas o
viram cair ferido”. Como cerca de 700 mil combatentes jamais foram
encontrados na 1.ª Guerra Mundial, Leguay poderia ter sido condenado
a jamais ser localizado. Em meio ao conflito, corpos desapareciam por
completo, desintegrados por granadas de obus ou soterrados por
explosões nos arredores. Mas sua sina foi diferente. Sua ossada acabaria
encontrada por acidente em 16 de maio de 2012, 97 anos mais tarde,
junto à sua trincheira, onde também estavam sua placa de identificação,
os estilhaços de obuses que o mataram e seu capacete, perfurado.A placa de identificação de Leguay. Crédito: Arquivo pessoal.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 9/69
Seus restos mortais e pertences testemunham o horror da guerra nas trincheiras e nas “no man’s lands” (“terras de ninguém”
entre as posições inimigas) da Europa, onde 56% dos soldados acabavam mortos ou feridos, além de tantos outros doentes físicos
ou mentais em razão das condições do conflito.
Enterrar os cadáveres na 1.ª Guerra Mundial não raro não era possível em um conflito marcado por trincheiras inimigas
separadas em geral por 100 ou 200 metros, mas que poderiam estar frente a frente, distantes 20 metros, como ocorreu em Vimy,
na França. “Às vezes, entre uma trincheira alemã e uma francesa, era possível ouvir as vozes, ouvir o ruído dos talheres durante
as refeições, ouvir o soldado inimigo limpar sua arma. Havia toda uma vida que acontecia nas trincheiras”, conta Alexis
Guilbert , militar de elite francês e estudioso da 1.ª Guerra Mundial. Essa vida, que também podia se passar nos quilômetros de
galerias subterrâneas da região de Aisnes utilizadas pelos soldados, resumia-se a esperar o momento fatal do ataque. “Os
assaltos eram extremamente letais. Quando uma seção completa saía da trincheira, alemães e franceses alinhavam suas
metralhadoras e logo não havia mais nada. Regimentos inteiros desapareciam por nada.”
Dessa forma, um em cada dez combatentes morreu na 1.ª Guerra
Mundial, grande parte das vezes abandonado em condições degradantes,
sem oferecer às famílias condições para um sepultamento digno. No
campo de batalha, não raro a única opção era cavar covas rasas e
provisórias ou abandonar os cadáveres à espera de um bombardeio que
também desse fim aos agonizantes, com frequência deixados à própria
sorte entre as trincheiras inimigas. Não bastasse a expectativa sombria
de cada soldado, os excrementos, ratos, infestações de insetos, barro,
umidade, chuva e frio glacial se uniam ao pesadelo, provocando
epidemias como disenteria, cólera ou tifo, doenças de pele, gangrenas
nos pés e infecções das mais variadas, em uma época na qual a medicina
ainda não contava com antibióticos. Ao martírio físico, somava-se uma
tortura psicológica: o risco que cada militar corria de se tornar um
“gueule cassé”, ou “cara quebrada” – o deformado. Para diagnosticar
esse terror, os médicos da Grande Guerra chegaram a criar um
diagnóstico: a “obusite”, hoje reconhecida como uma manifestação de estresse pós-traumático.
O ataque francês em Massiges em 1915. Crédito: Acervo Estado.
Cavalo pasta em uma antiga terra de ninguém conquistada pelosfranceses em 1916. Crédito: Acervo Estado.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 10/69
Assim eram a vida e a morte nas trincheiras e em campos de batalha de regiões como a belga Ypres ou as francesas Somme e
Verdun, segundo os testemunhos dos próprios soldados, deixados em milhões de cartas trocadas entre os fronts de guerra e as
famílias dos envolvidos. “Nem nos surpreendemos mais com as condições de vida artificiais, quase injustificáveis, que não se
assemelham a nada de nossa vida e de nossos pensamentos de outrora”, escreveu em 1918 o tenente André Pézard, mais tarde
autor de Nous Autres à Vauquois, obra na qual descreve a ofensiva que devastou a cidade de Vauquois , na França. Sob quatro
horas de bombardeios, ele anotou: “Em meio a uma desordem incurável, esperamos impotentes, sem imaginar nada, sem
esperança de nada, o fim de algo que nos pediram para suportar. Nós existimos, apenas isso. Não somos humanos”.
Além de cartas, imagens e fotografias – os primeiros registros modernos de um conflito armado de grande amplitude –
descrevem a inutilidade dos assaltos contra as trincheiras inimigas e o absurdo de bombardeios, que chegavam a matar 90% dos
homens.
Durante décadas, em todos os fronts da Europa, esforços materiais
foram empreendidos para apagar os vestígios dessas trincheiras,
verdadeiras cicatrizes do conflito. Hoje, entretanto, um movimento
inverso está em curso. Em diferentes pontos do continente, galerias
utilizadas por aliados ou pelos impérios centrais são preservadas ou
mesmo reabertas, em uma forma de recriar a memória do conflito.
Trincheiras intactas ou reconstituídas podem ser encontradas em antigos
campos de batalha emblemáticos, como as trincheiras de Yorkshire, na
Bélgica, ou de Chemin des Dames e Verdun, na França. Entre as duas
frentes francesas, por exemplo, situa-se Massiges, um grupo de colinas
que formava a fortaleza natural no vale do Rio Aisne. Essa região,
estratégica para a artilharia de ambos os lados, dava ao exército que a
dominasse uma visão panorâmica sobre cerca de 30 quilômetros de
campos de batalha em diferentes direções. Perdê-la significaria para os
franceses a provável conquista de Paris pelos alemães. Para defendê-la
ou conquistá-la, 4 mil homens morreram por dia só entre agosto e setembro de 1914, no início do conflito. Sepultados em fossas
coletivas ou em túmulos isolados, grande parte dos soldados, como Leguay, jamais foi identificada. Antes abandonada, a área da
colina foi adquirida por cinco moradores do vilarejo de 50 habitantes, que reconstituíram as galerias de Massiges,
transformando-as em um dos mais bem conservados sítios da guerra do país.
O resultado do trabalho é que dezenas de soldados desconhecidos, franceses e alemães, vêm sendo encontrados. Entre eles está o
poilu Albert Dadure, morto em 7 de fevereiro de 1915, aos 21 anos, e localizado 97 anos depois, graças ao trabalho do arqueólogo
Yves Desfossés e do antropólogo Michel Signoli, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França. “Fazer esse
trabalho me fez entender que não podemos compreender essa guerra com os nossos conceitos de hoje em dia. Eram sistemas de
Veterano mutilado durante a guerra. Crédito: Acervo Estado.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 11/69
Roberto Godoy
Avião inglês
pensamento diferentes”, entende Pierre Labate, ex-militar do programa
de armas nucleares da França e hoje prefeito de Massiges e um dos
proprietários da área da colina. “Quando vemos a amplitude do
sacrifício… Isso seria inadmissível hoje.”
Para Jean-Pierre Mainsant, outro dos cinco proprietários da área, a
reconstituição das trincheiras é uma homenagem às famílias do vilarejo,
que ainda hoje vivem “mergulhadas na guerra”, mas também aos
parentes de vítimas, identificadas ou não, que caíram nas colinas de
Massiges, longe de suas casas. “Nós sempre fomos banhados na guerra
de 1914. Nasci aqui, nascemos aqui. Sempre convivemos com famílias
que vinham em peregrinação”, recorda-se. Além de um estímulo à
memória, diz Mainsant, desenterrar o campo de batalha é uma forma de
quebrar o silêncio que perdurou por décadas na vida dos sobreviventes
do conflito, a exemplo de seu avô, ao lado de quem trabalhou por 50
anos como agricultor sem jamais ouvir uma palavra sobre as batalhas.
“Os que viveram à guerra de 1914”, diz ele, “não falavam do assunto porque tinham vivido coisas tão inacreditáveis que não
ousavam contar porque sabiam que não acreditaríamos.”
A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICAO poder de fogo industrial mudou de vez os campos de batalha com seus aviões, canhões e metralhadoras. Nos
mares, o submarino pôs em risco os grandes encouraçados.
A carruagem escura que circulava por Londres acompanhada por um pequeno comboio de três ou quatro
outras, quase sempre à noite, era um segredo aberto no fim do século 19. A cidade mais importante do
mundo sabia: a bordo, viajava a rainha Vitória. Ia quase sempre a igrejas anglicanas, ao teatro ou a hospitais
beneficentes. Também saía para cumprir funções de monarca. Vitória adotara uma vida discreta desde a morte do marido,
Albert, em 1861, e também depois da perda do filho Alfred, em 1889. Todavia, a rainha era uma guerreira.
Interessada na história militar, acompanhou intensamente o conflito contra Zanzibar
O poilu Dadure (segundo da dir. para esq.). Crédito: Arquivo pessoal.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 12/69
O Sopwith Camel era um avião de caça britânico.Ele voava a 185 km/h e podia ser armado com duasmetralhadoras Vickers montadas em cima dopainel de instrumentos
Avião Aviatik
O caça aviatik tinha um motor Mercedes e foiaprimorado durante a guerra. Usado parareconhecimento aéreo, ganhou duas metralhadoraspara enfrentar os aviões inimigos
Avião francês
e a rebelião dos Bôeres, na África do Sul. Naquele dia do outono de 1900, V itória
estava sendo levada para conhecer uma arma secreta.
O estaleiro Vickers, de Barron-in-Furness, no litoral norte do país, havia levado para
um dique da marinha real, no Tâmisa, o primeiro protótipo do que, muito tempo
depois, viria a ser o Classe B. Segundo o historiador naval irlandês J. H. Ryan, “a nave
deveria provocar grande impressão: toda de metal, tinha a proa esguia, uma torre
pequena e suportes para um torpedo e uma mina de contato”. Vitória tinha 90 anos.
Ouviu a exposição dos engenheiros, andou ao redor do navio e sentenciou: “Que honra
pode haver em atacar sem que seu inimigo possa vê-lo e enfrentá-lo?”.
Ryan diz em seu livro, Victoria in War, ainda em elaboração, que os recursos para o projeto foram reduzidos dramaticamente
pelo governo. A rainha morreria no ano seguinte. O Classe B só viria a navegar anos mais tarde, pouco antes do começo da
Grande Guerra. Os alemães e seus submarinos desenvolvidos ao longo de uma década devastariam os mares com as ações
combinadas do pequeno U-3 e do grande U-139 .
A visão mesclada das referências morais do romantismo, que terminava, e do início da era da tecnologia como referência de
desenvolvimento talvez tenha sido a peculiaridade militar da 1.ª Guerra Mundial. A tropa britânica marchava para o combate
vestindo grossas fardas de lã escocesa, camisa de tricoline e usando gravata. Nos pés, as botinas de couro reforçado deixavam
vazar para dentro os pregos do solado depois de alguns dias de uso. Nas pernas, polainas de algodão.
O soldado, todavia, poderia estar armado com um fuzil Lewis, de 7.7 mm. Desenhado
nos Estados Unidos, o Lewis foi provavelmente a primeira metralhadora leve da
história. Atirava em rajadas usando um carregador rotativo. Tinha poder de fogo
inédito. Os mais modernos rifles de combate da época eram semiautomáticos,
acionados por ferrolho – um pequeno avanço em relação aos modelos de tiro singular.
O conflito de 1914 a 1918 é o primeiro da história no qual a engenharia de armamentos
e a tecnologia militar tiveram emprego intensivo e extensivo. Se o advento do avião
como vetor de ataque era previsível desde os experimentos bem-sucedidos do
brasileiro Santos Dumont – por meio da agilidade de seu melhor projeto, o
Demoiselle, de 1907, e dos dirigíveis usados como estação de observação –, o advento
do supercanhão francês Creusot, de 134 toneladas, deslocado sobre trilhos,
surpreendeu: as granadas de até 700 quilos que disparava atingiam os alvos a distâncias de 16 quilômetros com erro estimado
em apenas poucos metros.
A chegada do tanque mudou o campo de batalha. A proposta de um foco móvel de
fogo pesado, blindado, dotado de metralhadoras mais um ou dois canhões e capaz de
avançar em terreno irregular alterava doutrinas, consolidava a tese da guerra de
movimento e, mais adiante, tornaria obsoleto o conceito da cavalaria. O nome –tank,
em inglês – aparecia pintado nas grandes caixas de madeira nos quais eram
Fokker DR.I
Esse triplano desenvolvia até 185km/h e levava duas metralhadoras.Tornou-se símbolo da aviaçãoalemã na guerra
Barão Vermelho
Piloto de caça alemão, Manfred vonRichthofen abateu 80 pilotosinimigos durante a guerra e acaboumorto em 21 de abril de 1918. Elevoava no triplano Fokker Dr.I
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 13/69
O Spad era um caça francês que podia atingir avelocidade de 192 km/h. Carregava umametralhadora calibre 30.
Canhão 75 mm
Esse canhão francês foi tão importanteque muitos creditam a ele o fato de aFrança não ter sido posta fora decombate em 1914 pela Alemanha
Minenwerfer (morteiro)
Os morteiros foram uma das armasmais comuns das trincheiras. Aqui, ummodelo alemão de calibre 170mm.
Bertha
Canhão alemão que disparava projéteisde calibre 420mm que atingiam alvos aaté 125 quilômetros de distância. Erafabricado pela Krupp
Tanque Renault RT17
Com seu canhão de 37mm, essetanque leve francês foi o mais bem-sucedido modelo de tanque utilizado naguerra, equipando franceses eamericanos
Encouraçado
A era dos modernos encouraçados foi inaugurada pelo HMSDreadnought. Aqui o encouraçado Queen Elizabeth com seus oitocanhões de 15 polegadas
Submarino U-139
Sua tripulação de 62 homens dispunha de 24 torpedos e doiscanhões de superfície. Submerso viajava a 7,6 nós (14 Km/h)
embalados antes de serem transportados por trem, como se fossem grandes tanques
de armazenamento de líquidos.
O inventário da inovação técnica nos arsenais da Grande Guerra é imenso,
diversificado, bem-sucedido e supera os limites dos tópicos populares. O
sincronizador entre a hélice dos primeiros aviões de combate e as metralhadoras de
bordo, cujos tiros deveriam passar entre as pás, fez do inventor, o holandês Antony
Fokker , um homem rico. Os pilotos dos aviões só se comunicavam com o pessoal de
terra por meio de bandeiras e luzes coloridas a curta distância. Especialistas
americanos desenvolveram um sistema de radiotelégrafos capaz de orientar todo o tráfego aéreo em um raio de 200 quilômetros
– as primeiras torres de controle. Em 1913, pesquisadores das marinhas americana e inglesa apresentaram um Vant – veículo
aéreo não tripulado. Espécie tosca de drone, era lançado a partir de uma rampa metálica e podia percorrer 90 km em uma só
direção levemente ajustada por uma bússola elétrica.
Na frente de batalha, a engenharia militar dedicou-se à construção de trincheiras que, além de algum tipo de saneamento,
servissem também à instalação de cabos para comunicações e redes de energia. O benefício reduziu o índice de mortes por
doenças decorrentes do ambiente insalubre das primeiras valas e inaugurou a integração de serviços de campanha. A eficiência
da luta noturna cresceu com a munição traçadora que emite um pulso luminoso, indicando sua trajetória.
No oceano, imponência. O primeiro porta-aviões construído para servir de vetor de aeronaves embarcadas, o britânico HMS
Furious, entrou em ação em agosto de 1917. Num longo convés de voo de respeitáveis 200 metros, abrigava 50 biplanos, armados
com bombas de 50 quilos e um torpedo. As frotas navais passaram a operar em novembro de 1916 dois sistemas decisivos: o
hidrofone, que aumentaria enormemente a capacidade da luta antissubmarina e, na mesma linha, as cargas de profundidade –
bombas subaquáticas detonadas por sensores que mediam uma combinação de distância vertical e pressão da água.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 14/69
1914 1918
ALEMANHA
Os soldados com seus famosos
capacetes pickelhaube foram o
símbolo do exército imperial
alemão. O armamento padrão
era o fuzil Mauser
ALEMANHA
O pickelhaube cedeu seu lugar
na cabeça dos soldados para o
capacete que se tornaria o
padrão na Alemanha durante as
guerras do século 20
1918
ESTADOS UNIDOS
O exército americano usou
capacetes, fardas e armas
fornecidos por seus aliados
franceses e britânicos
1914 1918
ÁUSTRIA
Os austro-húngaros com seus
fuzis Mannlicher mantinham
tropas alpinas que foram usadas
na Galícia, atual Polônia, e na
guerra contra a Itália
ÁUSTRIA
Os austríacos adotaram o
capacete alemão e parte do
equipamento e cores do
uniforme que os aproximaram
rapidamente de seu aliado
1915
TURQUIA
Os soldados turcos com seu
capacete (Kabalak) e fuzil como
os que enfrentaram os
britânicos, franceses,
australianos e neozelandeses em
Gallipoli
1914 1918
FRANÇA
O uniforme do exército francês
no começo da guerra mantinha
cores da era napoleônica. Seu
homens avançavam em meio ao
som de bandas marciais
FRANÇA
Os poilus franceses trocaram o
velho uniforme do século 19 pelo
azul em 1915. O capacete Adrian
foi outro inovação que os
acompanharia até os 1940
1914 1918
INGLATERRA
Os homens da Força
Expecionária Britânica
carregavam seus fuzis Lee
Enfield
INGLATERRA
Os infantes ingleses man
tiveram o cáqui na cor de seus
uniformes, mas adotaram o
capacete que se tornaria padrão
dos soldados da comunidade
britânica
1918
ITÁLIA
O exército italiano adotou c
capacete francês (Adrian). Seus
homens usavam fuzis
Paraviccini
1914
RÚSSIA
Os cassacos do exército russo
carregavam sabres e o fuzil
Mosin-Nagant
SOLDADOS
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 15/69
Andrei Netto
ENVIADO ESPECIAL
YPRES (BÉLGICA) E VERDUN (FRANÇA)
NO FRONT DE YPRES, O MUNDO CONHECE AGUERRA QUÍMICA
Uso de gases mortais, como o mostarda, começou no fim da tarde de 22 de abril de 1915, nos campos de guerra da
Bélgica. Quase cem anos depois, vestígios ainda contaminam o solo e a água. Granadas de projéteis químicos seguem
sendo localizadas.
O front das tropas francesas da 45.ª e da 87.ª divisões em Langemark-Poelkapelle, na Bélgica,
vivia um intervalo sem combates por volta das 17 horas de 22 de abril de 1915 . A tarde de
sol primaveril e temperaturas acima do normal da véspera havia dado lugar à de um céu
cinzento, cortado por um avião da força aérea francesa que fazia o trabalho mais importante: castigar com bombardeios as
posições da Alemanha na região. A grande questão do dia não era sobreviver, mas reorganizar as trincheiras, caóticas, e prepará-
las para a continuidade dos combates na “saliência de Ypres ” – o ponto mais feroz da ofensiva alemã em território belga.
A calma só foi quebrada por uma brisa que soprava de leste e por uma fumaça estranha, esverdeada, opaca e espessa proveniente
das trincheiras alemãs, que ia do solo a 10 metros de altura e se dirigia às posições francesas. “A nuvem avançava em nossa
direção, empurrada pelo vento. Começamos a nos retirar, perseguidos pela fumaça”, relatou em seus registros militares o tenente
Jules-Henri Guntzberger. Nesse momento de pânico crescente, Guntzberger viu seus homens caírem um a um. Alguns se
levantavam, retomavam a marcha de recuo e caíam de novo, cada vez mais desesperados para chegar à segunda linha de
trincheiras.“Uma vez lá, os soldados desabavam e não paravam de tossir e vomitar.”
O desespero e a incompreensão tomaram conta das hostes francesas. Às 17h20, na sede de comando de Elverdinghe, o coronel
Henri Mordacq recebeu um telefonema do front. O relato era assustador: uma nuvem tóxica estava sufocando soldados e
oficiais, que partiam em retirada, abandonando o front. Correndo em direção à posição atingida, Mordacq cruzou com
combatentes que se diziam envenenados. “Por todo lado, havia pessoas fugindo, correndo como loucas, sem direção, gritando
por água, cuspindo sangue, alguns atirando-se ao chão e fazendo esforços desesperados para respirar”, descreveu o coronel, em
seus registros. Estima-se que 5 mil soldados franceses morreram sem que nenhum disparo de arma de fogo tivesse sido feito, a
maior parte asfixiados e afogados nas secreções dos próprios brônquios. Outros 15 mil foram intoxicados, com diferentes graus
de sequelas, envenenados e sofrendo hemorragias internas e externas e destruição dos tecidos pulmonares. Eles haviam sido as
vítimas do primeiro ataque de grande amplitude de uma nova tecnologia criada para a 1.ª Guerra Mundial: as armas químicas.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 16/69
Indignados com o ataque, França e Grã-Bretanha denunciaram a
covardia da guerra empreendida pelas forças armadas da Alemanha, que
violava as convenções de Haia de 1899 e 1907 proibindo o uso de gases
asfixiantes ou tóxicos em artefatos bélicos. Berlim argumentou que a
França fora o primeiro país a usar armas químicas – granadas de
lacrimogêneo, empregadas desde agosto de 1914 – e justificou a decisão
de continuar a utilizá-las alegando que os textos da convenção se
referiam a armas e explosivos, mas não a contêineres com gases, como os
usados em Ypres. O resultado foi o pior possível: os diferentes lados em
conflito imaginaram poder derrotar assim o inimigo entrincheirado,
tirando a guerra que já se estendia por nove meses do impasse.
A partir de então, os exércitos em luta se lançaram a uma corrida às
armas de destruição em massa, com o objetivo de aumentar o poder
devastador dos gases – o que o químico francês Victor Grignard ,
prêmio Nobel de Química de 1912, conseguiu ainda em 1915, com a
introdução do fosgênio, mais letal, incolor e mais difícil de detectar. Um total de 36,6 mil toneladas do produto foi empregado
na guerra, a metade por alemães.
Aos poucos, o arsenal químico se banalizou. Desprotegidos contra os
gases, 56 mil russos morreram em ataques alemães no front leste do
conflito. Mas as tropas da Entente (aliança militar entre França, Rússia e
Inglaterra) também não se furtaram a usá-las, em especial as francesas,
mas também americanos e britânicos, que em setembro do mesmo ano
foram vítimas de seu próprio estoque de cloro na batalha de Loos.
Com a consciência do risco, tentou-se proteger os soldados. Uma das
estratégias iniciais era urinar sobre lenços, usados sobre as vias
respiratórias, enquanto na retaguarda iniciava-se a confecção das
primeiras máscaras antigás , rudimentares. O resultado está
registrado em algumas das mais assustadoras imagens da Grande
Guerra: a de combatentes cobertos com máscaras de pano, cujas formas
terrificantes se tornaram um dos símbolos da loucura destrutiva na
Europa no início do século 20.
Meses depois do ataque de Ypres, no final de 1915, os exércitos de Alemanha, França e Reino Unido distribuíram máscaras mais
eficazes a seus combatentes: a Gummimaske, a M2 e a Large box respirator representaram um avanço importante na
proteção dos soldados. Graças a elas, o impacto das mortes causadas pelas armas químicas foi marginal em meio ao cataclismo
da 1.ª Guerra Mundial. Dados do estado-maior do Reino Unido indicam que, após a tomada de medidas de redução do impacto
do gás, apenas 3% dos soldados atingidos morriam, outros 2% se tornavam inválidos e a maioria, em torno de 70%, tinha
condições de retornar aos combates em até seis semanas.
Mas o impacto psicológico das armas de destruição em massa foi destruidor entre militares e também entre civis. Anos depois do
fim da guerra, pais de família que haviam sobrevivido aos conflitos padeciam de sequelas, que encurtavam suas vidas, às vezes
por casos severos de asma, em outros por incidência de câncer de esôfago.
Ainda hoje a lembrança desses soldados mortos, imortalizados no quadro Gassed, do pintor americano John Singer Sargent, em
1918, é reverenciada por seus familiares, como uma forma de tributo por seu sacrifício. “Meu bisavô morreu quatro anos depois
de ter sido intoxicado pelo gás”, conta Charles Saint Vanne, prefeito de Ornes, uma das cidades que desapareceram após o
conflito, mas que seguem existindo em termos legais. “Os alemães haviam utilizado gás em um dos combates e ele foi uma vítima
tardia, sofrendo de sequelas anos após a guerra. Zelar pela memória do conflito e de pessoas como ele é um dever de memória
que tenho em relação aos meus ancestrais.”
Terras agrícolas também foram inutilizadas por substâncias usadas na guerra química. Em Verdun, na França, em meio à
floresta plantada sobre os campos de batalha , há zonas de acesso proibido em que a vegetação não cresce, porque o
solo ainda está contaminado. O local foi apelidado pela guarda florestal de “Praça do Gás”. Ali, após o armistício, 200 mil
granadas de obus não detonadas no conflito foram inutilizadas. Em 2004, um estudo da Universidade Johannes-Gutenberg, de
A 2.ª Batalha de Ypres, de Richard Jack. Crédito: Reprodução.
Bunker na região de Ypres. Crédito: Mastrangelo Reino.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 17/69
Mainz, da Alemanha, e do Escritório Nacional de Florestas,
da França, indicou a presença intensiva de metais pesados
como cobre, chumbo e zinco, que se somam a arsênico e
perclorato de amônia, dois componentes dos sistemas de
detonação das granadas. A concentração varia de mil a 10 mil
vezes a do meio ambiente e só três vegetais resistentes
conseguem sobreviver – o que explica a ausência de árvores
no entorno, fechado ao público desde 2012.
Segundo organizações ambientalistas europeias, a Praça do
Gás da França é apenas um dos múltiplos sítios de terras e
lençóis freáticos contaminados por armas químicas na
Europa. Há dois anos, populações de 500 cidades e vilarejos
do norte da França foram advertidas a não consumir água em
razão da elevada presença de perclorato de amônia. Os locais
correspondiam a fronts da 1.ª Guerra Mundial.
Consciente do problema, desde o final da guerra, em 1918, o
governo francês proibiu o cultivo em regiões que foram
contaminadas, criando as “zonas vermelhas”. Nelas, estão os
trechos com maior probabilidade de presença de granadas que jamais explodiram na guerra – cerca de 15% do total – e ainda
não foram encontradas. Desse universo, 2% correspondem a armas químicas que continuam expostas à natureza, em especial
gás mostarda, fosgênio e difosgênio. Um campo militar na cidade de Suippes, em Marne, na França, serve de depósito para 200
toneladas de granadas que ainda precisam ser destruídas, em uma usina que entrará em operação em 2016.
Graças à mobilização internacional, em 1925 foi assinado o Protocolo de Genebra, proibindo a utilização de gás em artefatos
bélicos, assim como a produção e a estocagem de armas químicas – ameaça que no entanto ainda não acabou.
Ypres, cidade devastada pelos combates, tornou-se um dos pontos de memória mais importantes sobre o horror da destruição em
massa. Prova disso foram as cerimônias realizadas na cidade em 26 de junho pelos 28 chefes de Estado e de governo da União
Europeia, reunidos em cúpula na cidade. “A principal mensagem que fica dessa guerra”, diz o historiador Dominiek Dendooven,
pesquisador do Flanders Fields Museum, o maior da cidade,“é a importância das decisões tomadas pelos dirigentes europeus em
1914, o sentido de responsabilidade política que deveria ter prevalecido e teria permitido evitar essa guerra”.
O quadro Gassed. Crédito: Reprodução.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 18/69
Andrei Netto
ENVIADO ESPECIAL
YPRES (BÉLGICA) E VERDUN E REIMS (FRANÇA)
NAS CIDADES-MÁRTIRES, UM CONFLITOSEM FIM
Ypres, Verdun e Reims ressurgem das cinzas, que ainda marcam a vida de seus habitantes. Douaumont, Louvement,
Craonne e Vauquois não tiveram a mesma sorte: são os vilarejos fantasmas da 1.ª Guerra Mundial.
Todos os dias, às 20h, não importa o que aconteça, soldados do corpo de bombeiros de
Ypres, na Bélgica, fecham a Avenida Frenchlann no trecho sob o Memorial de
Mennenpoort, a Porte de Menin. Então os sinos soam: trata-se do “Last Post ”, momento
no qual os 35 mil habitantes da cidade, queiram ou não, recordam-se dos 54.896 soldados da Grã-Bretanha e de outros países da
comunidade de nações britânicas mortos em batalha. Seus nomes estão gravados ali, assim como uma homenagem aos 34.984
outros cujas identidades jamais foram conhecidas.
Eles representam as centenas de milhares de combatentes que tombaram nos campos da região de Flandres na tentativa de
conter o avanço das tropas da Alemanha no front oeste e a ameaça de ocupação da França na 1.ª Guerra Mundial. A cerimônia é
repetida desde 2 de julho de 1928 e só foi interrompida pelo domínio da Alemanha nazista durante a 2.ª Guerra Mundial,
voltando a ser realizada na noite da liberação da cidade por tropas da Polônia.
A atmosfera à noite pode ser pesada na cidade, mas essa foi a homenagem decidida por seus moradores no momento em que seus
sobreviventes optaram por reconstruí-la das cinzas. Como Reims e Verdun, na França, e Przemysl, na Polônia, Ypres é uma das
centenas de cidades-mártires da 1.ª Guerra Mundial na Europa. Ao longo do conflito, pequenos e grandes centros urbanos
europeus foram riscados do mapa, mas não da memória. Alguns foram reconstruídos e hoje são prova da tenacidade de seus
povos em apagar os traços da guerra.
Esse é o caso de Ypres. Quando projetou o monumento, o arquiteto britânico Reginald Blomfield escolheu uma das portas pelas
quais os soldados que defendiam a cidade partiam para o front de Menin, onde enfrentavam as tropas alemãs. Como as demais
portas, o local foi muito castigado pelos bombardeios inimigos. Mas toda a cidade sofreu: em apenas três semanas na 2.ª
Batalha de Ypres, em 1917, mais de 4 milhões de obuses foram lançados na região – o suficiente para arrasar as paisagens
urbana e rural de Flandres.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 19/69
“Britânicos como Winston Churchill, por exemplo, queriam
que as ruínas fossem mantidas como estavam, como um
memorial para a história da 1.ª Guerra Mundial. Mas as
pessoas que viviam aqui queriam retomar suas vidas. Então
houve uma grande decisão a ser tomada”, explica o
historiador Pieter Trogh, pesquisador do Museu de Flanders
Fields, de Ypres. “Decidiram reconstruir da mesma exata
forma que a cidade tinha antes da guerra. O que você vê hoje
é de alguma forma um símbolo maior de ressurreição. Duas
guerras mundiais afetaram a região, mas eles quiseram dizer:
você pode destruir nossa cidade, ou você quis destruí-la, mas
isso não será o fim. Nós vamos retomar nossas vidas e
transformá-las em um símbolo contra a guerra.”
Em
Ypres, a decisão da primeira geração de habitantes pós-conflito foi de
esquecê-lo, ou ao menos superá-lo, como em Reims, na França. Hoje, a
capital da região da Champagne tem 180 mil habitantes e uma vida
acadêmica, cultural e econômica pujante. Mas não foi sempre assim no
século 20. Dominar a cidade fora um dos objetivos do exército alemão na
busca da conquista de Paris. Foram 1.051 dias de bombardeios sem que
as tropas inimigas tenham colocado os pés no perímetro urbano, como
acontecera em Lille. O custo patrimonial da defesa de Reims, entretanto,
foi colossal. O símbolo da destruição, na memória dos habitantes, é a
catedral da cidade, onde antigamente eram coroados os reis da França. Hoje, a própria igreja é símbolo da reconstrução de uma
cidade pulsante.
“Quando a Grande Guerra acabou, em novembro de 1918, das 14 mil casas da Reims pré-guerra, não havia mais de 60
habitáveis. A catedral estava gravemente deteriorada”, lembrou em conferência o historiador Jean-Jacques Becker, presidente e
decano do Centro de Pesquisa Histórica da Grande Guerra, de Perrone, na França. “Reims foi um caso singular. Foi a única
cidade da França com mais de 100 mil habitantes – 113 mil no último censo antes da guerra – destruída dessa forma pela
guerra.”
Já em Verdun, outra das cidades-mártires da Europa, epicentro da guerra entre 21 de fevereiro e 9 de dezembro de 1916, a
reconstrução não foi a prioridade, mas sim a memória. Nos campos de batalha da região, nada menos do que 714.231 pessoas
morreram – dos quais 362 mil franceses e 337 mil alemães –, em um saldo trágico de 70 mil mortos por mês de combate. Pela
região, passaram nada menos do que 70% dos poilus, os soldados da França, o que tornou a batalha um verdadeiro emblema da
resistência ao inimigo. Além disso, fez com que todo o país tivesse a noção precisa da tragédia em curso nos vilarejos da região,
varridos do mapa pela força destruidora da artilharia.
Foram os casos de Douaumont e Louvement, vilarejos rurais situados no que ficou conhecido como os campos de batalha de
Verdun. Para lembrar suas vítimas, o governo da França considera-os desde outubro de 1919 como existentes, mas com zero
habitante. São os vilarejos-fantasmas da guerra, ou as “cidades mortas pela França”.
Situado nas imediações do Forte de Douaumont, ponto estratégico pelo qual dezenas de milhares de soldados perderam a vida,
Douaumont, próximo da fronteira com a Alemanha, hoje é um campo verde com uma sucessão infinita de crateras abertas pela
chuva de obuses. Sobre a vegetação, restam ruínas de construções e pequenos marcos que indicam onde existiam casas e viviam
seus moradores, pessoas simples como Jean-Baptiste Dupuis, Onésime Paquin ou Jules Hildebrand, pedreiros, ou Jean-Nicolas
Dabit, fabricante de sabão.
A poucos quilômetros de distância, Louvement tem ainda mais restos de sua vida de 100 anos atrás. Entre o mar de crateras, há
trechos de paredes inteiras desabadas durante as explosões, cacos de telhas, resquícios de fundações e encanamentos abertos.
O prédio da prefeitura de Reims, que foi destruído durante a guerra.Crédito: Mastrangelo Reino/Estadão.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 20/69
Sobre os entulhos, a natureza se reconstitui, cobrindo o cimento e a
pedra com limo. No lugar de todos esses vilarejos-fantasmas, balançam
hoje árvores de 20, 25 metros de altura. Elas foram plantadas pelo
Escritório Nacional de Florestas (ONF) em 13,4 mil hectares de terras
onde um dia viveram 6.953 proprietários e suas famílias, evacuadas
durante a passagem do furacão de chumbo da Grande Guerra.
Embora sejam mais frequentes nos campos de Verdun, vilarejos-
fantasmas se espalham por grande parte do Norte e Nordeste da França.
Suas existências estão indicadas por placas ou pequenos monumentos,
como o obelisco que indica “Aqui existiu Ailles ”, única reminiscência
do vilarejo desaparecido entre 1914 e 1918. Charles Saint Vanne é
prefeito de uma dessas vilas extintas, a de Ornes. “Nosso vilarejo foi
inteiramente destruído durante a guerra, em 1916, no mês de fevereiro”,
conta. “Os habitantes foram evacuados, obedecendo à ordem de
abandonar o local. Quatro casas foram reconstruídas após a guerra, mas o que resta em geral são as ruínas.”
Outros poucos vilarejos tiveram a chance de reviver. É o caso de Vauquois, em Verdun, destruído por se localizar em um morro,
excelente ponto de observação militar na época, ou ainda de Craonne, no Chemin des Dames (Ouça a Chanson de
Craonne ), dizimada por ter tido o azar de existir em frente ao Planalto de Califórnia, justo entre as trincheiras alemãs e
francesas. Ambas voltaram à vida, reconstruídas a algumas dezenas de metros das vilas originais, mas vivem sob a perpétua
memória da devastação provocada pela guerra. “Nos espíritos das pessoas daqui”, explica Virginie Keiser, diretora da Citadela de
Verdun, “de alguma forma a guerra ainda está acontecendo”.
O Forte de Douaumont. Crédito: Mastrangelo Reino/ Estadão.
A terra de ninguém diante de Craonne e o Planalto Califórnia que a domina. Crédito:Acervo Estado.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 21/69
Andrei Netto
ENVIADO ESPECIAL
CORRESPONDENTE/PARIS
A GUERRA DE VERSÕES CONTINUAOs Sonâmbulos, livro lançado pelo historiador australiano Christopher Clark, relança o debate sobre as
responsabilidades pelo início da 1.ª Guerra Mundial. Para ele, a Sérvia e sua ambição nacionalista estão no centro da
explicação – e não a Alemanha
Às 10h43 de 31 de julho de 1914, o embaixador da França em São Petersburgo, Maurice Paléologue, enviou
um telegrama ao Conselho de Ministros da França . Em um texto seco e sucinto, o diplomata
informou que o imperador da Rússia, Nicolau II, havia ordenado a mobilização das tropas de seu país, em
resposta à declaração de guerra da Áustria-Hungria à Sérvia, sua aliada, três dias antes. “A Rússia mobilizou suas tropas”,
escreveu.
Por razões desconhecidas, a correspondência só chegaria ao Conselho de Ministros em Paris quase dez horas mais tarde, após
outro despacho, dessa vez vindo de Viena, que informava sobre a mobilização das tropas da Áustria-Hungria contra a Rússia –
uma reação ao primeiro ato hostil de São Petersburgo. Ao tomar conhecimento da iniciativa bélica dos austríacos, o governo
francês não hesitou em afirmar em sua propaganda: a mobilização do exército da Áustria-Hungria comprovava a
responsabilidade do país pelo início da guerra contra a Rússia e, por extensão, contra seus aliados do Ocidente.
A verdade, no entanto, era a inversa. A troca de telegramas, a ordem em que foram divulgados em Paris e o fato de que o texto foi
falsificado a seguir – com o acréscimo da frase “A Rússia mobilizou suas tropas em decorrência de informações sobre as
mobilizações austríaca e alemã” – são um dos tantos vestígios documentais do esforço de cada um dos países envolvidos em
manipular a verdade e culpar o outro pelo início da 1.ª Guerra Mundial, mesmo antes de os combates eclodirem. Essa obsessão
pela responsabilidade da guerra, decisiva nas negociações de paz e na redação do Tratado de Versalhes, em 1919, é ainda hoje
uma veia aberta na Europa. Cem anos mais tarde, historiadores continuam a debater: afinal, de quem é a culpa pela tragédia?
A controvérsia no mundo acadêmico em torno do artigo 231 do Tratado de Versalhes, que responsabilizava a Alemanha, já
alimentou mais de 25 mil livros e artigos, mas jamais foi de fato encerrada nesses 100 anos. Mais grave: por muito tempo, ela
envenenou as relações internacionais, em especial na Europa. Em 2013, essa ferida aberta ganhou uma nova interpretação pela
publicação do livro Os Sonâmbulos – Verão 1914: Como a Europa marchou para a guerra (The Sleepwalkers), de autoria do
historiador australiano radicado na Grã-Bretanha Christopher Clark, professor da Universidade de Cambridge. Para o
especialista em Prússia e Alemanha, a culpa do conflito foi, antes de mais nada, de “sonâmbulos” – uma metáfora para os líderes
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 22/69
Por que, passados 100 anos, ainda se fala tanto da 1.ª Guerra
Mundial? O que fez dela algo tão importante?
No passado, em especial na Europa e nos Estados Unidos, v imos muito mais
interesse na 2.ª Guerra do que na 1 .ª. O pov o britânico sempre tev e uma
ideia de que essas duas guerras pertenciam a duas diferentes ordens de
moral. A 2.ª tinha sido uma guerra “boa”, porque combatemos Hitler. A 1 .ª
tinha sido “má”, primeiro porque morreram muito mais ingleses do que na
seguinte. E também porque as pessoas achav am muito mais difícil de
entender por que motiv o, afinal, estáv amos lutando. Isso é meio enganador,
pois, afinal, (na 1.ª) ninguém v iu do lado alemão nenhum demônio
comparáv el ao holocausto – e consideremos que as pessoas só chegaram a
entender o holocausto depois de 1 945. E desde 1 945 foi por causa do
holocausto que ninguém no mundo se atrev ia a sugerir que fosse errado
combater Hitler – ele era percebido como o demônio.
Mas havia muitas outras situações em jogo.
Acredito, como expliquei no meu liv ro sobre a 1 .ª Guerra, Catástrofe: 1914 -
A Europa vai à guerra, que a nossa v isão é por demais simplista. Dev eríamos
reconhecer que foi tão necessário lutar contra a Alemanha em 1 91 4 como foi
necessário em 1 939. Não estou, com isso, sugerindo que o kaiser Guilherme
II e a Alemanha fossem demoníacos, comparados aos nazistas, mas porque a
Alemanha estav a a caminho de dominar a Europa. A Grã-Bretanha e a
França defendiam a liberdade e a democracia e, portanto, era necessário
enfrentá-la. E a maioria dos historiadores que eu respeito acredita que, se a
Alemanha tiv esse v encido a 1 .ª Guerra, e se, portanto, coubesse ao kaiser
Guilherme ditar a paz em Versalhes, então quaisquer que tenham sido os
erros daquele tratado em 1 91 9, os alemães teriam imposto um tratado
muito pior, bem mais brutal. E que traria terrív eis consequências à Europa.
Há outra coisa a destacar: não discordo de ninguém quanto ao meu enorme
respeito pela Alemanha de hoje. Essa Alemanha moderna é uma grande
democracia, sem inclinações militaristas. Mas acho que precisamos
reconhecer que ainda temos o mesmo problema – da Europa, em relação à
Alemanha – que tínhamos em 1 87 1 (quando da Guerra Franco-Prussiana).
políticos e diplomatas incapazes de parar as engrenagens de uma guerra que se anunciava sanguinária
desde o início do século.
A polêmica reaberta por Christopher Clark, entretanto, não está na responsabilização do mundo político,
quase um consenso entre historiadores, mas no fato de que sua obra recoloca a Sérvia, a instabilidade
dos Bálcãs e o atentado de Sarajevo de 28 de junho de 1914 no epicentro dos acontecimentos. Ao longo do
século que passou, acadêmicos que se debruçaram sobre a questão viram no atentado em si, cometido
pelo jovem nacionalista sérvio Gavrilo Princip contra o arquiduque Francisco Ferdinando, apenas um
fraco pretexto na decisão da Áustria-Hungria de declarar a guerra e esmagar as ambições regionais da
Sérvia.
Baseado em um trabalho de pesquisa em fontes primárias em arquivos de Paris, Londres, Viena, Berlim, Moscou, Belgrado e
Haia, Clark chega à conclusão de que o fanatismo nacionalista sérvio, somado à ofensiva de potências europeias, como a Itália,
contra territórios sob domínio do Império Otomano, tiveram papel crucial na eclosão do conflito. Por extensão, ao apontar o
dedo sobre a Sérvia, o historiador lança luzes sobre o papel dos aliados desse país, Rússia e França à frente, minimizando a
importância das ambições imperialistas da Áustria-Hungria e da Alemanha.“Clark reverte essa perspectiva e diz: 'A Sérvia
organiza uma política de potência, sai vitoriosa das guerras balcânicas de 1912 e 1913 e tem um projeto político de reunificar
todos os eslavos do sul, que existem entre os austro-húngaros'", explica o historiador francês Joseph Zimet, diretor da Missão do
Centenário da 1.ª Guerra Mundial. “O grande problema é que a Bósnia-Herzegovina, povoada de 55% de sérvios, é anexada pela
Áustria-Hungria. Christopher Clark afirma que foi a Sérvia queprovocou a 1.ª Guerra Mundial. (Para uma visão diferente sobre
as causas da guerra, leia e ouça ao lado a entrevista para o 'Estado' do historiador inglês Max Hastings, autor de Catástrofe:
1914 - A Europa vai à guerra).
Explicar a 1.ª Guerra Mundial vem sendo uma tarefa hercúlea
de historiadores ao longo de décadas. Mas esse esforço
resultou em alguns consensos: o início do século 20 era um
tempo de corrida armamentista e militarismo exacerbado, de
nacionalismos, imperialismos, disputas territoriais e jogos
perigosos de alianças e inimizades internacionais entre novas
e velhas potências econômicas e industriais. Guerras eram
vistas não como tragédias a serem evitadas a todo custo, mas
como um instrumento político legítimo de coerção a ser
empregado sempre que necessário para reordenar o equilíbrio
de poder no continente. Esse cenário geopolítico tenso
aproximava algumas e opunha outras superpotências da
época – França, Alemanha, Áustria-Hungria, Itália, Grã-
Bretanha e Rússia. Em uma era marcada pelo colonialismo, o
jogo de forças não se limitava à Europa, mas se estendia às
colônias e aos protetorados espalhados pela África, pelo
Oriente Médio e pela Ásia. Daí à guerra mundial bastou uma
fagulha.
Nesse cenário, os movimentos nacionalistas da Sérvia exerceram de fato um papel desestabilizador, como admitiram as obras do
jornalista Luige Albertini e de historiadores como Pierre Renouvin, Fritz Fischer, Annika Monbauer, John Röhl, Stefan Schimidt,
Jean-Jacques Becker, Gerd Krumeich ou Jay Winter, especialistas em 1.ª Guerra Mundial. Desse movimento extremista,
participavam grupos como Mão Negra – apoiador do Jovem Bósnia, ao qual Princip pertencia –, alguns dos quais com forte
presença no interior do Estado sérvio. Para a historiadora bósnia Vera Katz, pesquisadora do Instituto de História da
Universidade de Sarajevo, o atentado não passou de uma gota d’água.“As grandes potências, como Grã-Bretanha, Alemanha,
Rússia, França, estavam preparadas para a guerra. Havia tantas crises no mundo, como no Marrocos, no Japão e na Rússia,
questões sobre o Império Otomano, conflitos entre Rússia e otomanos… Creio que foi apenas uma faísca para o começo.”
Prova de que a região dos Bálcãs – um cruzamento entre ortodoxos, católicos e muçulmanos e entre o Ocidente e o Oriente em
plena Europa – era um barril de pólvora haviam sido a crise na Bósnia de 1908 e as guerras balcânicas entre Sérvia, Grécia,
Montenegro e Bulgária contra o Império Otomano, em 1912, e entre a Bulgária e seus ex-aliados, em 1913. Ao final desses
conflitos, escreve Clark, o equilíbrio geopolítico da região estava alterado, mas a Rússia desprezou as preocupações da Áustria-
Hungria com a situação na península. “Para a Áustria-Hungria, as guerras dos Bálcãs modificam radicalmente a situação.
Sobretudo revelam que Viena está isolada e as chancelarias estrangeiras não compreendem nada da interpretação que os
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 23/69
austríacos fazem dos eventos.”
Segundo Clark, a aliança entre Rússia e França se
aprofundou também em torno dos Bálcãs em 1912, pelas
mãos do então chefe de governo francês Raymond Poincaré,
que se solidarizou com o imperador russo Nicolau II ao
afirmar que “toda conquista territorial efetuada pela Áustria-
Hungria romperia o equilíbrio europeu e afetaria interesses
vitais da França”. O aumento da sinergia militar entre russos
e franceses ajuda a explicar por que em 37 dias a Europa
partiu de um assassinato político de importância limitada – o
de Francisco Ferdinando – a uma guerra generalizada que
tomaria conta do continente.
O problema da obra de Clark, segundo seus críticos, é
sobrevalorizar a importância da Sérvia e do atentado e
minimizar a determinação da Alemanha para que a guerra
acontecesse. Essa “determinação” se tornou uma convicção
da maior parte dos especialistas no assunto em 1961, quando
o historiador alemão Fritz Fischer lançou Os Objetivos de
Guerra da Alemanha Imperial 1914-1918, livro em que diz
haver uma filiação direta entre a guerra franco-prussiana em 1870, a 1.ª Guerra Mundial e a 2.ª Guerra Mundial, causada por
uma elite industrial conservadora da Prússia com militares e meios políticos, todos com o intuito de afirmar a superpotência
alemã contra seus adversários na Europa e empreender uma política imperialista agressiva na Europa do Leste, na África e no
Oriente Médio.
O argumento das Teses de Fischer se baseou em documentos de Defesa e diplomacia da Alemanha que mostram a existência de
planos de guerra, como o Plano Schlieffen, existente desde 1905, o Conselho de Guerra de 1912, quando se cogitou o início das
hostilidades por medo do rearmamento da Rússia, ou ainda o Programa de Setembro, de 1914, no qual o governo do chanceler
Theobald von Bethemann Hollweg fez projetos de anexação e de domínio de territórios da Europa e da África – a Mitteleuropa e
a Mittelafrika –, atendendo às reivindicações dos diferentes grupos de interesse da sociedade alemã.“Fischer comete a meu ver
um grave erro: ele estabelece essa espécie de fio que iria de Bismarck a Hitler, com Guilherme II no meio. Seria um fio lógico que
levaria a Hitler. Ao afirmar isso, Fischer diz algo que eu considero completamente falso” diz o historiador Frédéric Manfrin ,
diretor de História da Biblioteca Nacional da França (BnF) e comissário da exposição Été 1914, em cartaz em Paris.“Já Clark tem
um gosto claro pela Prússia, sobre a qual ele fez seus estudos. Ele vai longe demais na tese da inocência alemã e o papel que dá à
Sérvia é bem discutível.”
A opinião de Manfrin reverbera a de outro historiador, o alemão Gerd Krumeich, professor emérito da Universidade Henrich-
Heine, de Düsseldorf, autor de um livro em que reflete sobre as responsabilidades da guerra, Fogo na pólvora – Quem detonou a
guerra de 1914?. Krumeich relembra uma das teses do historiador francês Pierre Renouvin, de 1932, segundo o qual não há
“responsabilidade unilateral” pela guerra, mas reafirmou, em recente entrevista ao jornal Le Monde:
Os dois campos encheram pouco a pouco o barril de pólvora durante os anos precedentes, mas é
incontestável que foram os alemães que colocaram o fogo”.
Em meio à polêmica centenária, uma constatação de Clark parece bem aceita por todos: “Não há arma do crime nessa história,
ou na verdade há uma para cada personagem principal”, escreve ele. “Visto por esse ângulo, a detonação da guerra não foi um
crime, mas uma tragédia.”
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 24/69
Andrei Netto
ENVIADO ESPECIAL
PARIS E VINCENNES (FRANÇA)
BRASILEIROS NA GUERRAQuando o governo declarou guerra à Alemanha, em 26 de outubro de 1917, brasileiros já lutavam e morriam nos
fronts da Europa. Barbárie do conflito marcou declínio da influência cultural e política do Velho Mundo sobre a
América Latina, diz pesquisador
"Em 20 de agosto de 1917, combateu com coragem admirável e tomou sozinho uma trincheira,
obrigando dez inimigos a entregar as armas. Ferido por três estilhaços de obus, recusou-se
formalmente a ser evacuado", registram documentos da Legião Estrangeira da França a respeito do
tenente Gustave Gelas. Os relatórios continuam: "Suboficial de elite, voluntário alistado para a Grande Guerra. De uma bravura
à beira da temeridade, distinguiu-se em cada caso no qual participou por sua coragem e suas realizações." Gelas seria um entre
milhões de bravos soldados da 1.ª Guerra Mundial se não tivesse recebido a medalha da Legião de Honra, que distingue os
méritos civis e militares eminentes na França. Ele também seria só mais um entre os agraciados pela distinção não fosse uma
particularidade: o bravo soldado Gelas era brasileiro.
Em 26 de outubro de 1917, o então presidente do Brasil, Venceslau Brás , assinou o decreto de
declaração de guerra à Tríplice Aliança, em uma cerimônia ao lado do ex-presidente Nilo Peçanha e de
Delfim Moreira, que também viria a assumir a chefia de Estado. Mas, muito antes da formalidade
histórica, esse outro Brasil já estava mergulhado na 1.ª Guerra Mundial. Desde o início do conflito,
brasileiros de diferentes origens se engajaram e partiram para os fronts da Europa. Eles são parte de
uma narrativa quase esquecida: a de soldados brasileiros que doaram suas vidas por pátrias estrangeiras
entre 1914 e 1918.
Seus traços deixados em solo europeu mostram que a 1.ª Guerra Mundial foi para os brasileiros muito
mais do que a participação restrita do Exército e da Marinha nos combates.
É provável que soldados brasileiros tenham vestido uniformes da Alemanha, da Áustria-Hungria e até do Império Otomano, já
que há registros da passagem de sul-americanos pelos três exércitos e colônias de imigrantes dos três países no Brasil, uma fonte
de alistamentos. Mas em nenhum dos casos eles teriam sido tão numerosos quanto os que lutaram – e morreram – pela França e
pela Tríplice Entente.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 25/69
Por meio do trabalho de especialistas, documentos de museus e arquivos
públicos e papéis militares guardados no Castelo de Vincennes, na
periferia de Paris, é possível resgatar informações surpreendentes sobre
parte dos 81 brasileiros engajados para lutar ao lado da Legião
Estrangeira em solo francês.
O Estado teve acesso a documentos de combatentes como os oficiais
Gustavo Gelas e Luciano Antonio Vital de Mello Vieira. Também
encontrou dados dos aviadores Lauro de Araújo, Hector Varady, Eugenio
da Silva, Virginius Lamare Brito, Olavo de Araújo, Manuel Augusto
Pereira de Vasconcelos e Fábio Sá Earp, treinados pela RAF, a força
aérea real britânica, e alistados em combate pela França. Eles
representam um universo ínfimo entre os homens de todas as
nacionalidades que estiveram na guerra, mas ilustram a participação do
Brasil que vai além da missão preparatória do Exército enviada à França
e comandada pelo general Napoleão Felipe Aché.
Do total de brasileiros em hostes da Legião Estrangeira, 15 morreram em operações nas mais ferozes frentes de batalha da
Grande Guerra. Outros sobreviveram e fizeram carreira na Europa. É o caso do tenente Gelas, nome mencionado em algumas
listas de grandes heróis da legião, merecedor de três pastas repletas de documentos no dossiê 5ye.142.647 dos arquivos militares
de Vincennes. Nascido em 1890 em São Paulo, Gustavo era dentista e se alistou de forma voluntária como simples legionário, a
patente mais baixa da corporação, até ser promovido a tenente do 1.º Batalhão do 3.º Regimento Estrangeiro em 23 de julho de
1922, um mês e oito dias após ser morto em combate em Meknès, no Marrocos. Em 18 de setembro de 1918, sua participação na
1.ª Guerra Mundial lhe valeu a Legião de Honra da França, um mérito raro entre brasileiros.
"Oficial de uma bravura excepcional. Conduziu brilhantemente seu pelotão ao ataque em 2 de setembro de 1918, destruindo
muitas metralhadoras, explodindo um importante depósito de munições e contribuindo para repelir vários contra-ataques", diz
a nota oficial do exército francês que justifica a medalha. E completa: "Tomou em pleno combate o comando de ondas de assalto
de um batalhão privado de chefe, o reorganizou sob fogo violento e o manteve na posição conquistada. Infligiu ao inimigo perdas
muito elevadas e ajudou a progressão de unidades avançadas".
Além dele, outro brasileiro chegou ao posto de oficial na 1.ª Guerra Mundial: o piloto Luciano Antonio Pital de Mello Vieira,
tenente da divisão Salmson da Legião Estrangeira. Voluntário registrado em 30 de maio de 1917, ele teve vida breve no conflito.
Faleceu em 31 de janeiro de 1918, na queda de seu avião, aos 21 anos de idade. Em seu dossiê, 5ye162.330, estão suas notas de
serviço, também elogiosas, além de registros de saúde e do atestado de óbito.
Segundo dados do exército francês, a maior parte do elenco
"franco-brasileiro" retornou ao país de seus antepassados
para lutar pela nação e por seus valores. São nomes como o
do cabo Georges Maximilien Carpentier , nascido no
Rio de Janeiro e morto em Marne em outubro de 1915, ou o
do sargento Joseph Gérard Crouzet , carioca morto em
Verdun em julho de 1916. "Eles não tinham obrigação de se
alistar, mas alguns fizeram a escolha", explica o comandante
Michel Bourlet, doutor em História, pesquisador das escolas
militares de Saint-Cyr Coëtquidan, especialista na
participação latino-americana no conflito.
De acordo com Bourlet, há ainda dois outros perfis: "Um
primeiro dos brasileiros que viajaram do Brasil para se alistar
e outro de brasileiros que viviam na França, trabalhavam,
estudavam e decidiram se engajar para combater na Grande
Guerra". É provável que nessa última categoria estivesse o
carioca Luiz França Oliveira, soldado de 2.ª classe recrutado
em Nice em 1915 e desaparecido na Batalha de Somme, em 4
de julho de 1916. Ou ainda Candido Ferreira Bastos, também
soldado de 2.ª classe, alistado em Bayonne e desaparecido em
O encouraçado São Paulo. Crédito: DPHDM.
SARAJEVO HORROR TRINCHEIRAS TECNOLOGIA GÁS MÁRTIRES A CULPA BRASIL NO 'ESTADO'
POLÍTICA ECONOMIA INTERNACIONAL ESPORTES SÃO PAULO
1914 1915 1916 1917 1918
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 26/69
Neuville-Saint-Vaast, no extremo norte do país.
O que as bases de dados da França não parecem revelar com fartura são os indícios da passagem da missão preparatória
brasileira, que teve as participações do tenente José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque e do major Tertuliano Potyguara, este
último ferido na batalha do Canal Saint-Quentin, próximo ao Chemin des Dames. Potyguara foi membro do estado-maior
vinculado ao 6.º Grupo do Batalhão de Caçadores Alpinos antes de passar ao grupo de oficiais do Brasil enviado para o front em
Saint-Quentin, em 2 de outubro de 1918, onde acabou ferido e atendido no Hospital Franco-Brasileiro.
Sobre o tema, o Estado localizou no Estabelecimento de Comunicação e de Produção Audiovisual da Defesa (Ecpad), da
França,fotografias que mostram os militares da missão em vilarejos e cidades destruídas, em postos de observação e em rotas
logísticas em Douchy, Fluquières e Etreillers, na região de Aisne, muito atingida pelo front.
A mesma instituição guarda ainda fotografias e filmes históricos do Hospital Franco-Brasileiro em Paris, registradas em julho de
1918 – cinco meses antes do fim do conflito. A instituição se situava na Rue de la Pompe, na capital francesa. As imagens
mostram a equipe médica, liderada por um certo "doutor Rio Branco", ao lado de assistentes e pacientes feridos. Há ainda fotos
de salas de operações, enfermarias, radiografias e quartos especiais reservados aos oficiais. Além de auxiliar no atendimento aos
feridos em combates, a equipe brasileira socorreu vítimas da epidemia de gripe espanhola que também dizimava a Europa, em
paralelo à guerra.
Pelo menos outras duas missões médicas brasileiras sob o comando de Nabuco Gouveia, mas subordinadas ao general Aché,
estiveram no país, em agosto e setembro de 1918. Além de médicos, enfermeiros e farmacêuticos, administradores e soldados
participaram da expedição, que teria fim em fevereiro de 1919, quatro meses antes da assinatura do Tratado de Versalhes.
Para o historiador Olivier Compagnon, pesquisador do Instituto de Altos Estudos da América Latina da Universidade Sorbonne
Nouvelle, de Paris, a passagem de latino-americanos pelo conflito na Europa vai muito além dos atos de heroísmo de seus
soldados ou das missões oficiais. Ela também teria sido determinante para o rompimento de parte dos laços de admiração e
exemplaridade que a Europa exercia sobre o Brasil e outros países da região.
Em seu livro Adieu à l'Europe (Adeus à Europa, na tradução literal), recém-lançado na França, Compagnon afirma que o
desastre humano e humanitário representado pela 1.ª Guerra Mundial levou a América Latina a uma "nova emancipação". O
novo mundo viu a Europa, até então um farol de cultura e modernidade, afundar na barbárie" , disse o historiador em entrevista
ao jornal Libération, delimitando o período como o início da ascensão cultural dos Estados Unidos sobre os países latinos. "As
narrativas e as imagens de trincheiras mostraram uma Europa mergulhada na guerra total. Ela não poderia mais ser
considerada o coração do mundo civilizado."
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 27/69
José Maria Mayrink
NAS PÁGINAS DO 'ESTADO', UMA VISÃOGLOBAL
Os boletins semanais de Julio Mesquita sobre a guerra iam muito além dos telegramas recebidos pelo jornalista. Eles
interpretavam o avanço do conflito e a política dos governos envolvidos.
Dois dias após a invasão da Bélgica pelo exército da Alemanha, o jornalista Julio Mesquita publicou,
em 6 de agosto de 1914, o primeiro da série de artigos que escreveria nos quatro anos seguintes sobre a
1.ª Guerra Mundial. Com base nos telegramas sucintos e contraditórios recebidos na semana anterior, o jornalista analisava,
sempre às segundas-feiras, o desdobramento do conflito em seu jornal, O Estado de S. Paulo, dando aos leitores uma visão
global, clara e personificada da até então maior catástrofe da humanidade.
A primeira impressão de Julio Mesquita foi de que a luta seria breve. Tanto assim que, três meses depois, ele já se assustava com
sua prolongada duração. Iniciado pelo Império Austro-Húngaro, que declarou guerra à Sérvia em 28 de julho, um mês após o
assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e de sua mulher, a duquesa de Hohenberg, por um estudante bósnio em
Sarajevo, o conflito só terminaria em novembro de 1918. Mobilizou 65 milhões de homens, dos quais 9 milhões foram mortos e
21 milhões ficaram mutilados.
Julio Mesquita sabia das limitações da informação. Para suprir a
deficiência dos despachos do telégrafo, de conteúdo parcial e censurado,
recorreu a outras fontes, como relatos de jornais europeus,
correspondências de amigos e, mais adiante, testemunhos de
combatentes, muitos deles filhos de imigrantes que se alistaram para
lutar nas trincheiras. O Estado manifestava simpatia pelos aliados –
franceses, ingleses e italianos –, mas isso não significava antipatia pelas
potências da Europa central lideradas por Alemanha e Áustria. Como o
jornal foi acusado de ser partidário, Julio Mesquita deixou clara sua
posição:
O Estado não nega as suas simpatias pelos
aliados, mas já disse, e repete, que a essas
simpatias não corresponde nenhuma antipatia pelos
súditos do kaiser, cujas excelentes qualidades de raça e de educação intelectual, comercial e industrial
não tem cessado de enaltecer.O Estado simpatiza com os aliados, não porque antipatize com os alemães,
mas porque diverge visceralmente da política autoritária e militarista que desviou a Alemanha da sua
luminosa missão e produziu esta guerra odiosa. Contra esta política, sim, temos toda a má vontade, onde
quer que ela se implante ou firme, na Alemanha ou em outro qualquer país, inclusive o nosso”.
As batalhas ainda estavam começando quando Julio Mesquita previu, em 21 de setembro de 1914, a dimensão da catástrofe que
evoluía para a Guerra Mundial. Escreveu:
Sete dias e sete noites de luta encarniçada, sete dias e sete noites de sangue, sete dias e sete noites
de morte, sete dias e sete noites de extermínio entre milhões de homens das nações mais
civilizadas do mundo! Que incomparável tema para os Homeros e para os Shakespeares do futuro, se o
futuro, no caminho em que vamos, tiver forças para os produzir! Quem vencerá?”
Resposta imprevisível, admitia o jornalista, embora ele apostasse na derrota da Alemanha e seus aliados. Sua maior
preocupação, desde aqueles primeiros meses, era a extensão da tragédia. Comparou com as guerras do passado o quadro do
O jornalista Julio Mesquita. Crédito: Acervo Estado.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 28/69
Jornal enfrenta a censura pela primeira vez
A guerra
trouxe ao País
o estado de
sítio e ao
Estado, uma
mordaça que
durou de 24
de nov embro
de 1 91 7 a 28
de fev ereiro
de 1 91 8. A direção do jornal resistiu à ação da censura policial, controlada
pelo gov ernador de São Paulo, Altino Arantes, deixando em branco o espaço
de artigos inteiros ou trechos amputados pelo gabinete de polícia. Ao todo, a
ação autoritária golpeou 22 v ezes o jornal. Os cortes mais extensos
ocorreram na edição v espertina, o chamado Estadinho. Ao todo, a faca dos
censores atingiu oito de suas edições. No Estado, os trechos afetados foram
menores, mas a ação mutilou 1 4 de suas edições no período. A escalada
autoritária começou em 1 7 de nov embro, quando o presidente Venceslau
Brás decretou estado de sítio no Distrito Federal (então no Rio), em São Paulo
e nos três Estados da Região Sul do País. Em 23 de nov embro, o jornal
publicou uma nota escrita à mão pelo presidente para o jornal. Nele, Brás
pedia aos brasileiros que se unissem para enfrentar os perigos da guerra
contra a Alemanha, aumentando a produção agrícola contra a fome, e que
ficasse alerta contra espionagem inimiga “que é multiforme”.
Logo no dia seguinte, um sábado, a edição do Estadinho, foi alv o da tesoura
dos censores. Na coluna Tópicos, um trecho inteiro foi publicado em branco.
Era o primeiro sinal de resistência. O segundo ataque da censura contra o
jornal aconteceu no dia 1 .º de dezembro, quando os policiais responsáv eis
pelo setor cortaram dois trechos do artigo O Estado de Sítio, assinado pelo
jornalista Mário Pinto Serv a, no Estadinho. Mais uma v ez, a direção do
jornal decidiu publicar os espaços em branco. O artigo cobrav a que a
ativ idade dos agentes da polícia contra a imprensa fosse controlada. “É
preciso que o gov erno federal declare quais as garantias constitucionais que
ficam suspensas e quais permanecem v igentes.”
Serv a, que trabalharia no jornal até o fim da década de 1 950, tornou-se a
conflito no século 20. Com novas tecnologias, à luta nas trincheiras se somavam as recentes invenções, como submarinos, aviões
e zepelins. Julio Mesquita citou um trecho do Padre Antônio Vieira, atual depois de três séculos, para descrever o horror da
guerra:
É a guerra aquele monstro... É a guerra aquela tempestade terrestre que os campos, as casas, as
vilas, os castelos, as cidades e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a
guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades... O pai não tem seguro o filho, o rico não
tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico
não tem segura a cela e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro...”
Os boletins semanais de Julio Mesquita foram publicados em 2002 pelo seu bisneto Ruy Mesquita Filho no livro A Guerra, obra
em quatro volumes lançados pelo jornal O Estado de S. Paulo e pela Editora Terceiro Nome. Cada volume reúne os artigos
correspondentes a um ano de guerra, de 1914 a 1918. Participaram da edição Mary Lou Paris, Fernando Portela, José Alfredo
Vidigal Pontes e Napoleão Saboia. O jornalista Gilles Lapouge escreveu a introdução. A consultoria militar foi de Fortunato
Pastore.
Serva, que trabalharia no jornal até o fim da década de 1950,
tornou-se a maior vítima da ação dos censores. O alvo de seus
artigos era o estado de sítio e a forma como este, em vez de
contribuir para trazer apoio ao governo, estava alienando
parte da nação, com “sua série de medidas desnecessárias,
violentas e inconstitucionais”. No dia 4 dezembro, os leitores
ficaram sem o trecho final de seu artigo sobre a
inconstitucionalidade do estado de sítio. Sítio Ditatorial. A
censura se agravou no dia 13 de dezembro, quando metade do
artigo A Censura à Imprensa foi vetado. O espaço em branco
na página 3 do Estadinhomostrou o significado da ação
policial. O jornal manteve sua luta. A reação policial veio em 2
de janeiro de 1918, quando o artigo Sítio Ditatorial foi
proibido na íntegra. O censor Alarico Silveira justificou sua
decisão: “O artigo não podia sair em consequência do estado
de sítio”. O jornal publicou então apenas o título e um enorme
espaço em branco em sua página 3. E Serva decidiu pedir
habeas corpus para publicar seus artigos. A censura
continuou durante o mês de janeiro, quando a Justiça paulista se negou a derrubar a censura. O jornal recorreu ao Supremo
Tribunal Federal em 19 de janeiro.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 29/69
'Estado' era lido nos campos de batalha
O jornal O Estado de S. Paulo tinha uma sucursal em Roma quando a
guerra estourou em 1 91 4. Seu diretor, Ancona López, era uma fonte direta
de informações para Julio Mesquita sobre o conflito, ao mesmo tempo em que
cuidav a da parte comercial coletando anúncios de clientes na Itália.
“Uma difusão em O Estado de S. Paulo é a melhor garantia para a eficácia
da publicidade das Casas Italianas”, escrev eu ao pé de um comunicado sobre
a mudança de endereço, da Via Sistina 42 para a Praça Veneza 88. No
cabeçalho, apresentou o Estado como “jornal diário de grande formato,
edições de 1 6 - 24 - 32 páginas” , detentor do Prêmio da Exposição
Internacional de Turim em 1 91 1 .
Com um escritório em Roma, o Estado conseguiu chegar aos combatentes
aliados. Fotografias env iadas da frente de batalha mostram soldados lendo os
jornais na trincheira. Eram principalmente ítalo-brasileiros, filhos de
imigrantes italianos de São Paulo que foram conv ocados para a guerra.
Em outra fotografia, fornecida pelo colecionador particular Jorge Calixto
Santos Filho e reproduzida na edição de 1 9 de nov embro de 2002, aparece o
Cabo Siron com um exemplar do Estado nas mãos, numa trincheira de
Argonne, perto de Verdun, fronteira com Alemanha. Siron era francês e
continuou v iv endo na França depois que sua mãe se separou do marido e
mudou para o Brasil. / J.M.M
Um mês depois, metade da página 3 da edição vespertina foi publicada em branco. Era o espaço reservado para mais um artigo
censurado. A edição do Estado de 23 de fevereiro trouxe a palavra censura escrita no meio de uma coluna em branco do
noticiário político. Altino Arantes, do Partido Republicano Paulista (PRP), estava no meio de seu mandato – ele seria substituído,
em 1920, por Washington Luís, que seria o último presidente da República Velha. Em 28 de fevereiro, a censura ao jornal foi
suspensa. No dia seguinte, Serva publicou o artigo vetado: A Censura Paulista. “Ao povo brasileiro só resta uma última defesa
legal – recorrer ao Poder Judiciário Federal, que tem competência para desconhecer os efeitos de quaisquer atos do Executivo ou
Legislativo infringentes dos textos constitucionais”. Nos dias seguintes, o jornal publicou os trechos e os artigos suprimidos pela
censura. Chegava ao fim a primeira mordaça imposta ao jornal.
Ruy Mesquita Filho entusiasmou-se com o trabalho do bisavô
ao ler A Guerra, que amigos de Julio Mesquita publicaram em
1920, à revelia dele. Julio Mesquita não gostou e mandou
interromper o projeto, que previa o lançamento de mais dois
ou três volumes. Julio Mesquita não assinava os boletins, que
apareciam sempre ao pé dos telegramas enviados pelas
agências de notícias e pelos serviços de informação dos países
em guerra. O jornal divulgava tudo, cabendo a seu
proprietário e diretor, com suas crônicas, “ajudar os leitores
do jornal a pôr um pouco de ordem nas suas reflexões e
corrigir as demasias, ora otimistas, ora pessimistas, das suas
primeiras impressões”, como observaram os editores do
primeiro volume.
Os boletins foram escritos “às carreiras”, quase sem
interrupção, apesar das constantes viagens de Julio Mesquita
a Campinas e à sua fazenda em Louveira. Quando estava fora
de São Paulo, o trem levava o malote com os telegramas pela
manhã e voltava nas tardes de domingo com os artigos ou crônicas para a edição de segunda-feira. Saíam também nas páginas
do Estadinho, vespertino que circulou de 1915 a 1921. “O Estadinho tinha espaço para abrir mais fotos da guerra que outros
jornais”, disse Ruy Mesquita Filho.
“Deixou-se de publicar os comentários que habitualmente saem nesta seção, por se achar enfermo o seu autor, Dr. Julio
Mesquita”, avisou o jornal, referindo-se ao período de 25 de fevereiro a 1.º de abril de 1918. Na semana seguinte, em 8 abril, o
jornalista retomou os artigos, com uma advertência inicial aos leitores: “Talvez ainda não nos seja possível recomeçar, com a
habitual pontualidade, a publicação semanal destes boletins”, escreveu ele, acrescentando que “as últimas notícias, por sua
importância excepcional, pedem alguns comentários, que não adiamos”.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 30/69
Trechos dos artifos de Julio Mesquita
Ferem-se aqui e ali, todos os dias,
cinco, dez, vinte combates
encarniçados. A verdade, porém, é que se está
travando, naquele trecho da Europa, há
algumas semanas, uma só intérmina batalha,
cuja linha monstruosa se estende desde a
Rússia até a França, com curvas mais ou
menos suaves, ou mais ou menos violentas,
pela Áustria, pela Sérvia, pela Prússia e pela
Bélgica. A Alemanha (para que falar da
Áustria?), no seu formidável ímpeto inicial,
avançou. Mas hoje, onde não recua, também
não avança, o que será fatalmente a sua ruína,
se algum acontecimento imprevisto não vier
ampará-la na queda iminente. E nesta queda
muito provável, nada haverá que possa causar
espanto ou simples surpresa, porque é natural
que homens não sejam capazes de realizar o
que é sobre-humano.”
28 de setembro de 1914
Qual dos dois adversários alcançará
primeiro o seu objetivo? Não sabemos
e é muito provável que ninguém o saiba. Por
enquanto, o que se nos afigura mais acertado é
aguardar os acontecimentos com a pequena
dose de paciência e de calma que é compatível
com a situação tão cheia de sombrias
apreensões, não só para eles, os que lá ao
longe matam e morrem, como para nós, os
que, por este vasto mundo de Deus, assistimos
'A Guerra' Traz os Boletins de todo o confronto
O trabalho de pesquisa fotográfica para o liv ro A
Guerra fez Mary Lou Paris, da Editora Terceiro Nome,
trabalhar por meses em sua casa procurando uma
linguagem que contasse a história dos boletins de
guerra escritos por Julio Mesquita. A obra A Guerra
ficaria pronta em 2002 e se transformaria em um
grande sucesso editorial. Em quatro v olumes, ela
reuniu os boletins semanais publicados durante a
conflagração de 1 91 4-1 91 8 no Estado. “Foi preciso
encontrar uma narrativ a v isual para essa obra”,
contou Mary Lou.
Esse trabalhou rev elou imagens insólitas, como as dos
pombos-correio usados pelos militares. Outra
preocupação da edição foi mostrar a guerra como um
conflito mundial, fugindo da v isão eurocêntrica que
muitos na época tinham do conflito. Para Mary Lou, o
contato com os textos de Julio Mesquita trouxe uma
grande surpresa: a capacidade de análise do
jornalista.
“Ele tinha uma sensibilidade surpreendente. Recebia
publicações de v ários países e, por isso, reunia
informações das mais v ariadas nações em guerra”,
disse Mary Lou. Com isso, Julio Mesquita tinha à sua
Também não houve comentários nas segundas-feiras de 24 de julho a 4 de setembro de 1916. Ao retomar os boletins no dia 11 de
setembro, Julio Mesquita justificou sua ausência: “Interrompeu-se há algumas semanas a publicação destes comentários, mas os
nossos leitores pouco perderam com a interrupção”. Além de a agência de notícias Havas (atual France Presse) ter melhorado a
qualidade de seus despachos, conforme observou o jornalista, “os acontecimentos destes últimos dois meses, sem dúvida
importantíssimos, são dos que por si mesmos se comentam, tão depressa se forma, no espírito de quem deles toma
conhecimento, uma ideia exata de sua significação”.
Os boletins de Julio Mesquita iam muito além dos telegramas, pois, baseados neles e em informações paralelas, interpretavam o
avanço da guerra, analisavam a política dos governos envolvidos e arriscavam prognósticos do que deveria acontecer, a curto e a
longo prazos. O Estado diferenciava-se dos jornais europeus pela capacidade de dar uma visão global do conflito mundial,
enquanto os jornalistas europeus se voltavam, cada um, para seus próprios países. Gilles Lapouge, correspondente em Paris, cujo
pai lutou nas trincheiras, reconheceu e admirou essa qualidade, o “olhar distante” do jornal, ao ler em 2002 o primeiro volume
de A Guerra, publicado pelos amigos de Julio Mesquita em 1920.
O diretor do Estado não errou em nenhuma previsão. “Não
há esforço humano capaz de impedir que desta vez se corrijam
as fronteiras dos diversos países da Europa, de acordo com o
princípio das nacionalidades, pelo qual outrora a França
tanto se bateu, que parecia abandonada para sempre depois
das vitórias alemãs de 1870/71”, alertou Julio de Mesquita em
17 de janeiro de 1915, cinco meses após o começo da guerra.
Ele acreditava na vitória dos aliados, mas temia, ou previa,
que o inimigo não se entregaria definitivamente. “A
Alemanha, se sucumbir, sucumbe numa longa explosão de
incrível vitalidade, que faz estremecer o universo em seus
alicerces”, escreveu, prevendo em seguida que a Alemanha
“cai para ressurgir”. A reação dos militares alemães ao
Tratado de Versalhes, que restabeleceu a paz em julho de
1919, oito mês após a assinatura do armistício para encerrar
os combates, favoreceu a ascensão do nazismo de Adolf Hitler
e levou à 2.ª Guerra Mundial (1939-1945).
Em seu último boletim, publicado em 14 de outubro de 1918,
Julio Mesquita adiantou-se mais uma vez na previsão do que
estava para acontecer, enquanto os países em guerra ainda
buscavam caminhos para a paz. Seu comentário de
despedida:
Esta seção do nosso jornal já não tem
razão de ser. Comentavam-se aqui,
semanalmente, os fatos da guerra. Ora, a guerra, a
bem dizer, acabou. Armistício não é paz e nem ao
armistício ainda chegamos. É mais provável,
porém, que as nações aliadas dos Estados Unidos
o não neguem, e que os generais, que comandam
exércitos em luta, o não embaracem. Além disso,
em tais condições a Alemanha o pediu, que não há
receio de que, por sua iniciativa, o fogo devastador se reacenda. O indomável orgulho alemão quer que o
mundo acredite que o império deve a sua derrota à deserção da Bulgária, da Áustria e da Turquia. Não é
exato. O colosso ajoelha-se porque não pode conservar-se de pé...”
Na avaliação de Fortunato Pastore, consultor militar que analisou o conflito no livro A Guerra, em 2002, “os editoriais que Julio
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 31/69
Mesquita escreveu durante a 1.ª Guerra Mundial revelam-se uma verdadeira aula de política internacional e de estratégia militar
no início do século 20”.
Julio Mesquita e 1914
Gilles Lapouge
A guerra explodiu em 3 de agosto de 1914. As batalhas, a carnificina, estavam longe. Mas Julio Mesquita fez questão de que
os brasileiros acompanhassem de perto a tragédia. A informação era rara, muitas vezes censurada ou mentirosa. Pouco
importava. Julio Mesquita era jornalista e semanalmente publicava em O Estado de São Paulo um longo relato da
guerra. Esses artigos foram reunidos em 2000 pela editora Terceiro Nome e O Estado de São Paulo. Li os quatro
enormes volumes. Magníficos.
As histórias da Grande Guerra, há cem anos, são inúmeras. Os grandes sábios e poetas edificaram um monumento para
contar o horror de 1914-1918. Julio Mesquita, em seu Brasil longíquo, desprovido das fontes de informação, não podia
concorrer com testemunhas europeias do drama, como Barbusse ou Genevoix, Ernst Junger ou Erich Maria Remarque.
Entretanto, seus artigos são tão belos quanto os daqueles autores do drama. Às vezes mais profundos. E mais modernos.
Qual era sua receita? O distanciamento e o uso sutil que fez dele. Seus artigos ilustram uma frase do filósofo francês Jean-
Jacques Rousseau: “Quando queremos estudar os homens, é preciso olhar de perto. Mas para estudar o homem é preciso
aprender a observar de longe”.
Nós, franceses, ou os alemães, estávamos próximos do massacre. Nós só conhecíamos batalhas como as do Marne, do
Chemin des Dames, do Somme, de Verdun. A guerra era um duelo entre duas nações vizinhas, França e Alemanha. Essa
guerra era nossa, de franceses e alemães. Era o nosso tesouro, nossa memória comum, nosso inferno e nossa abominável
glória compartilhada. Os artigos de Julio Mesquita fazem explodir essa imagem entorpecida. Certamente ele concentrou
sua atenção em Verdun ou em Somme, mas trouxe para a frente do palco todos os atores invisíveis que, nos jornais
franceses ou alemães, ficavam na sombra dos bastidores. Com Julio Mesquita não são Berlim e Paris que combatem
ferozmente: é o mundo inteiro que dança e morre na fogueira. Pensamos na grande pintura clássica. Em torno do tema
principal, no fundo do quadro, vemos personagens secundários que se agitam, camponeses, um cachorro, uma carroça, que
entram no quadro e mudam seu sentido. Assim trabalhava Julio Mesquita. Enquanto o mundo tinha os olhos fixos no
Marne ou no Somme, ele fazia sair à noite as tropas russas que lá na Prússia Oriental derrotaram os soldados do alemão
Hindenburg. Mais além, introduz no seu quadro os soldados britânicos cavando trincheiras nos Dardanelos, no Império
Otomano. Nos relatos franceses da época, a guerra é um “assunto provincial”. Nas narrativas de Julio Mesquita, ela é
“global”. A guerra de 1914 foi uma guerra profética. Anunciava, como um pregador do Antigo Testamento, os contornos do
mundo no futuro, primeiramente a 2.ª Guerra Mundial, que incendiou o planeta inteiro e foi a réplica distorcida daquela
de 1914, em seguida o mundo de 2014, arrebatado pela globalização.
Global é a guerra descrita por Julio Mesquita e também global é a atenção que ele prestou ao que ocorria longe das
batalhas: as fábricas que produziam os obuses, os quartéis onde os generais geriam a morte, nas estações de telégrafo que
colocavam em comunicação todos os compartimentos da guerra, nos ministérios onde eram tramadas alianças, rupturas,
traições. Nos hospitais onde eram cortados braços e pernas, nos portos aonde chegavam as provisões para os milhões de
soldados. O milagre é que essa ampliação prodigiosa da “distância focal”, nos relatos de Julio Mesquita, é reproduzida
numa narração clara, fácil de ler, ordenada. Precisamos abordar também o estilo. Erudito, às vezes repleto de referências à
literatura antiga. A frase é ágil, elegante, sensível, abrasadora ou indignada, mas sempre sem as “grandiloquências”
degradantes que desfiguram a maioria das narrativas sobre a Grande Guerra.
Para começar, ele estava numa posição de desvantagem, acompanhando o drama a partir de um observatório a dez mil
quilômetros do local. Julio Mesquita fez da dificuldade uma força, da fraqueza uma superioridade. Seu texto é magnífico.
E nos faz ver, sentir, sofrer, tocar nessa guerra do outro lado do mundo. Não é bombástico. E em cem anos não adquiriu
nem uma ruga sequer. Foi escrito esta manhã. É um “clássico”.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 32/69
1914
Fronteiras da Europa em 1914
O PRIMEIRO TIROMarcelo Godoy
Na noite de 28 para 29 de
julho de 1914, as águas do
Danúbio foram sacudidas em
Belgrado por estilhaços de
granadas de artilharia. Eram
austro-húngaras e haviam
sido lançadas horas depois de
Viena declarar guerra ao
pequeno reino sérvio. Os
generais que planejaram a
ação pensavam ter começado
o que seria a terceira guerra
balcânica. De fato, o chefe do
estado-maior austríaco,
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 33/69
Conrad von Hötzendorf,
confiante no apoio alemão,
acreditava poder acertar as
contas com a Sérvia em três
meses, confinando o conflito
ao Sudeste europeu, assim
como acontecera nas duas
disputas anteriores que
haviam envolvido, em 1912 e
em 1913, a Bulgária, a
Romênia, o Império
Otomano, a Grécia,
Montenegro e a mesma
Sérvia.
Mas a presença de um dos
grande poderes europeus
nesse cenário e o sistema de
alianças que ligava as
potências do continente
mudariam tudo dessa vez. A
Rússia decretou a mobilização
geral de seu exército no dia 30
para proteger a Sérvia, sua
aliada. Em 1.º de agosto, a
Alemanha, que apoiava os
austríacos, declarou guerra à Rússia. A França, aliada dos russos, decidiu reunir seus soldados no mesmo dia. No dia 3, a
Alemanha declarou guerra à França e deu um ultimato à Bélgica: dar livre passagem aos alemães. O governo belga negou o
pedido - o rei Alberto I decidiu resistir. O país acabou invadido no dia 4. A violação de sua neutralidade fez a Grã-Bretanha
declarar guerra à Alemanha.
Os austríacos que lançaram as bombas em Belgrado naquela noite de verão terminariam o ano de 1914 com 957 mil baixas em
suas forças, entre mortos, desaparecidos e prisioneiros. Foram repelidos pelos russos na Galícia (atual Polônia) e, depois de
tomar Belgrado em 2 de dezembro, expulsos da cidade pelos sérvios no dia 13. Seus exércitos deixaram para trás um rastro de 4
mil civis assassinados na Sérvia - os soldados seguiram as ordens de generais que consideravam, "em um país habitado por uma
população inspirada por um ódio fanático, toda bondade de coração fora de questão". O conflito balcânico que imaginavam
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 34/69
Raymond Poincaré e a União Sagrada
Republicano moderado, ele nasceu em Bar-le-Duc, de onde sairia durante a guerra a Via Sacra, estrada que ligava a
França a Verdun e sua frente de batalha. Foi eleito presidente da França em 1913, depois de desrespeitar um pacto
entre os partidos republicanos. Nas semanas que antecederam a deflagração, Poincaré viajou à Rússia, onde
incentivou a intransigência de seu aliado, garantindo o apoio francês em caso de guerra com as potências centrais.
Foi acusado de querer a guerra para retomar da Alemanha a Alsácia e a Lorena, perdidas na guerra franco-
prussiana de 1870. Em sua biografia sobre o político, John Keiger mostra que os papéis privados de Poincaré
demonstram que o francês não era um defensor da guerra e era menos antialemão do que se supunha. Sua
mensagem ao parlamento francês deu o tom de como o mundo político de seu país reagiu à guerra: "A França será heroicamente defendida
por seus filhos; nada deterá, diante do inimigo, a União Sagrada à qual hoje estão fraternalmente unidos na mesma indignação contra o
agressor e na mesma fé patriótica". / M.G.
Alberto I, rei da Bélgica
O rei que rejeitou o ultimato
alemão para permitir que o
vizinho atacasse a França por
meio de seu território subiu ao
trono em 23 de dezembro de 1909.
A resposta do kaiser Guilherme II
ocorreu em 4 de agosto, quando
suas tropas violaram a neutralidade belga. O rei dos belgas
começar se transformara rapidamente em europeu e, pouco tempo depois, envolveria o planeta: a 1.ª Guerra Mundial.
ARTILHARIA PESADA
O capitão alemão Harry Kessler tinha 46 anos no começo da guerra. Em suas memórias, ele conta que estava perto de Liège, na
Bélgica, em 12 de agosto de 1914 quando encontrou um grupo de artilheiros austríacos recém-chegados de Trieste. O porto no
Adriático pertencia então ao Império Austro-Húngaro. Os recém-chegados cruzaram a Áustria e a Alemanha para trazer em
segredo quatro canhões Skoda que disparavam projéteis gigantes de calibre 305 mm. Não eram as únicas peças de artilharia
pesada a chegar naquele dia. Havia outras quatro peças de calibre 420 mm fabricadas pela indústria alemã Krupp. Eram os
gigantes Bertha.
Todo esse poderio de fogo tinha um objetivo: pôr de joelhos os fortes
de Liège, que desde o dia 5 se recusavam a se render aos alemães. No
dia 15, estava tudo acabado. O peso das bombas dos canhões venceu
a resistência belga. O general Gérard Leman foi achado inconsciente
entre as ruínas e aprisionado. Sobre a cena que se seguiu, o
historiador inglês John Keegan escreveu: “Da maca, na qual seus
captores o colocaram, ele disse ao general alemão Otto von Emmich:
‘Peço-lhe que dê seu testemunho de que você me encontrou
inconsciente’.”
A invasão da Bélgica começara em 4 de agosto. Ao mesmo tempo, o
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 35/69
assumiu o comando de seu pequeno exército e resistiu ao
invasor durante quatro anos instalado atrás do Rio Yser,
na região de Flandres, a única de seu país que os alemães
não conseguiram ocupar durante a guerra. Sua família
tinha ligações com a nobreza alemã - ele mesmo
ostentava os títulos de duque de Saxe e príncipe de Saxe-
Cobourg-Gotha e sua mãe era a princesa Marie de
Hohenzollern-Sigmaringen-, o que aumentou ainda mais
a surpresa na Europa causada por sua resistência ao
invasor. O Exército belga lutou ainda na África (Togo e
Namíbia), mas se manteve fora das grandes ofensivas
aliadas até pouco antes do fim da guerra. / M.G.
A frente GalíciaAgosto a setembro de 1914
exército francês atacava na Alsácia e na Lorena. Com seus casacos
azuis e calças vermelhas, os homens marcharam em direção às
posições alemãs em colunas cerradas com bandeiras e fanfarras.
Parecia uma cena napoleônica. A guerra, no entanto, mudara.
Milhares foram ceifados pelas metralhadoras e pela artilharia
inimiga. Em um único dia – 22 de agosto –, os franceses sofreram 22
mil baixas, mais do que qualquer outra nação em um único dia
durante a guerra.
A ofensiva francesa foi um fracasso. Enquanto isso, os alemães
aterrorizavam a Bélgica. Nas primeiras semanas da guerra, 5. 146
civis belgas e franceses foram mortos em 129 represálias contra a
população civil ditadas pela paranoia alemã contra a ação de franco-
atiradores. Em Louvain, o invasor ateou fogo à biblioteca da
universidade, queimando 300 mil volumes, executou habitantes e
deportou 1,5 mil deles para a Alemanha. Massacres e pilhagens ocorreram em dezenas de cidades, como em Dinant, onde 647
civis foram fuzilados diante de mulheres e crianças. Vencida a resistência belga, os alemães caminharam para Paris. Queriam
envolver o exército francês e acabar com a guerra em menos de 40 dias. Marchavam triunfante. Nada parecia detê-los. / M.G.
A GUERRA NO LESTE
Em janeiro de 1914, o czar
Nicolau II se encontrou com
Théophile Delcassé, o
embaixador francês em São
Petersburgo. Conversaram
sobre um possível conflito na
Europa: “Não vamos deixá-los
pisar em nossos pés e, dessa
vez, não será como na guerra
no Oriente: a nação nos
apoiará”, disse o czar. Nicolau
II pensava no perigo de uma
nova revolução, como a que
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 36/69
ocorrera na Rússia em
1905, depois da derrota do
país na Guerra Russo-
Japonesa.
Os exércitos de Nicolau II se
dividiram em agosto de 1914.
Dois deles se dirigiram à
Alemanha, invadindo a região
da Prússia Oriental. Em
Gumbinnen, no dia 20, eles
bateram os alemães, que se
retiraram em meio a colunas
de refugiados. O governo de
Berlim pensava que o czar
precisaria de 40 dias para
mobilizar seus homens.
Surpresos com a rapidez
russa, decidiu trazer da
França dois corpos de
exército, enfraquecendo as
forças que invadiam aquele
país. “Sem Gumbinnen,
jamais teria havido a vitória
do Marne”, escreveu o
historiador francês Marc
Ferro. A derrota no Marne
impediu a vitória alemã em
1914.
Na Prússia, Gumbinnen
provocou a mudança do
comando alemão no Oriente. Os generais Paul von Hindenburg e Erich Ludendorff assumiram a situação e manobraram suas
forças de tal forma que conseguiram cercar o 2.º Exército russo em Tannenberg. Foi a maior vitória alemã da guerra. Seguiu-se
depois o impasse, com os exércitos imóveis entrincheirados um diante do outro durante o inverno.
Mais ao sul, na região da Galícia (atual Polônia), austríacos e russos mobilizaram milhões de homens desde a fronteira da
Romênia até a Alemanha. A sorte da guerra na região mudaria rapidamente, mas o ano terminaria com um desastres austríacos.
Eles perderam a fortaleza de Lemberg e 150 mil de seus homens estavam cercados em outra fortaleza, a de Przemyls (no sul da
atual Polônia). O começo da guerra significou para os russos a perda de 1 milhão de soldados e de outro 1,26 milhão para os
austro-húngaros. A incapacidade bélica do exército de Viena fez os alemães terem certeza de que estavam “acorrentados a um
cadáver”: a monarquia austríaca dos Habsburgos. / M.G.
ENQUANTO ISSO NO BRASIL...
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 37/69
A invasão da França1914
O começo da guerra de 1914 viu a posse na Presidência do Brasil do mineiro Venceslau Brás. Ele havia ocupado a Vice-
Presidência durante o governo de Hermes da Fonseca (1910 a 1914) e derrotara o republicano-liberal Ruy Barbosa. O País vivia
no sul a Guerra do Contestado, uma rebelião de caboclos contra os governos estadual e federal em torno da posse de terras em
Santa Catarina, que só acabaria em 1916. Em São Paulo, as famílias da elite cafeeira eram grandes, como a do futuro presidente
Washington Luís, fotografada pela revista Careta.
O futebol era já o esporte mais popular do País – o Flamengo se sagrara campeão carioca pela primeira vez em 1914. Já os
paulistas tiveram dois campeões naquele ano – o Corinthians e o São Bento –, pois duas ligas distintas organizaram
campeonatos no Estado. A publicidade anunciava novas facilidades da vida moderna: "A senhora está satisfeita com seu
marido?" Assim, com essa pergunta, começava o texto do anúncio da Société Anonyme du Gaz do Rio de Janeiro para convencer
que “o bom marido” era aquele que comprava um fogão a gás para sua mulher. O anúncio ocupava uma página da revista Careta
e estava pouco antes da reportagem sobre as façanhas dos aviadores da Escola Brasileira de Aviação, em Deodoro.
Naquele ano, as "pessoas de bem" da então capital federal frequentavam o elegante salão do Copacabana Club durante o
carnaval. Em 28 de junho, quando o jovem Gavrilo Princip matou o arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, o crime que
prendia a atenção do mundo era outro: o assassinato de Gaston Calmette, diretor do jornal francês Le Figaro. O jornalista foi
baleado por Henriette Caillaux, segunda mulher do ministro das finanças francês, Joseph Caillaux. O motivo do crime foi o fato
de Calmette ter publicado cartas privadas do ministro.
O Estado publicava no dia 1.º de agosto a manchete: A guerra austro-sérvia. No dia seguinte, adotaria como manchete a
palavra que marcou sua primeira página pelos próximos quatro anos: A Conflagração. A guerra definitivamente entrava no
cotidiano dos brasileiros. / M.G.
BATALHA DO MARNEO jovem Yves Congar tinha
dez anos e vivia em sua Sedan,
na França, perto da fronteira
da Alemanha, quando
escreveu em 29 de julho de
1914: “Eu consigo pensar
sobre a guerra. Gostaria de ser
soldado e lutar”. Congar se
tornaria um dos mais
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 38/69
influentes teólogos da Igreja
no século 20. Dominicano, foi
consultor do Concílio
Vaticano 2.º e se tornaria
cardeal em 1994, um ano
antes de sua morte.
Depois da Bélgica, os alemães
invadiram a França. Sedan foi
uma das cidades ocupadas e
saqueadas pelo invasor – o pai
de Congar foi tomado como
refém pelos alemães como
prevenção à resistência da
população. Os exércitos
alemães se dirigiam à região
de Paris, um setor defendido
apenas pelos 100 mil homens
da Força Expedicionária
Britânica e pelo 5.º Exército
francês. Contra eles,
marchavam três exércitos
alemães.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 39/69
Os aliados foram batidos em Moons, Le Cateau, Maubege e retiravam-se em direção a Paris. Os alemães atingiram a região do
Rio Marne. Não sabiam que o marechal francês Joseph Joffre ordenara a disposição de uma nova tropa, o 6.º Exército, para
defender a capital francesa. Soldados foram transferidos de trem da fronteira com a Alemanha a tempo de salvar a França. O
contra-ataque começou no dia 5. Sobre essa situação, escreveu o general francês Ferdinand Foch: “Minha direita está ruindo,
minha esquerda está recuando. Excelente. Ataco com meu centro”.
Às 9h02 de 9 de setembro, o 2.º exército alemão recebeu uma das mais dramáticas ordens da guerra: retirar. Uma brecha entre
ele e o 1.º exército alemão se havia aberto e colocava em risco toda a frente. O mais impressionante da decisão foi ela ter sido
tomada por delegação. De fato, foi o tenente-coronel Richard Hentsch quem a determinou como enviado do chefe de estado-
maior alemão, general Helmuth von Moltke, para avaliar a situação. Para o historiador inglês Max Hastings, a derrota alemã no
Marne foi a “virada, o momento decisivo da 1.ª Guerra Mundial”. / M.G.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 40/69
A QUEDA DE PRZEMYLS
O grande cerco de Przemyls começou em 17 de setembro de 1914. A cidade-fortaleza mantida pelo Império Austro-Húngaro na
Galícia (atual Polônia) contava com uma guarnição de cerca de 150 mil homens. Era a chave das defesas do império dos
Habsburgos diante dos Montes Cárpatos e acabou envolvida pela maré russa que tomou a região depois que o exército de Viena
foi derrotado perto de Tarnopol, obrigando os alemães a correr em ajuda de seus aliados.
No fim de 1914, o avanço alemão em direção a Varsóvia havia obrigado os russos a levantar o cerco à cidade. Era 9 de outubro. E
foi por pouco tempo. Com o fracasso da ação alemã, os austríacos também tiveram de se retirar em 26 de outubro, deixando
mais uma vez a cidade-fortaleza sitiada. Ali perto, no Rio Vístula, o filósofo Ludwig Wittgenstein acompanhou o drama da
retirada.
Wittgenstein deixara Cambridge e se alistara no exército austro-húngaro. Foi designado para um barco-patrulha. A guerra o
decepcionou rapidamente. A começar pelos colegas da tripulação. O filósofo descobriu que “compartilhar uma grande causa (a
guerra) não enobrece a humanidade”. “Os russos estão em nosso encalço”, escreveu no diário. “Trinta horas sem dormir”,
anotou. Ele e seus colegas se retiraram para Cracóvia.
Przemyls passou todo o inverno cercada. Trinta mil civis compartilhariam o destino dos militares. No começo de 1915, a falta de
comida levou ao abate de 13 mil cavalos do exército – na época, o transporte militar era largamente dependente da força animal.
Em 23 de janeiro, os austríacos lançaram uma ofensiva para tentar libertar a cidade. Ela fracassou assim como a tentativa
seguinte, em 27 de fevereiro. Em 22 de março, a guarnição austríaca se rendeu. Cento e dezenove mil soldados tornaram-se
prisioneiros russos.
Os russos ficariam ali poucos meses. Em maio, os alemães e austríacos começaram uma grande ofensiva. Em julho, Przemyls foi
reconquistada. Em agosto, os russos se retiravam de Varsóvia e do restante da Polônia.
A frente oriental
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 41/69
Pedro I, rei da Sérvia (1844-1921)
Quando o bombardeio austro-húngaro atingiu Belgrado em 28 de julho, fazia um mês que Pedro I havia passado o
governo de seu país ao filho, o futuro Alexandre I, que se tornou regente em razão da saúde debilitada do pai. Pedro
havia saído vencedor em duas guerras balcânicas - a primeira contra o Império Otomano e a segunda contra a
Bulgária. Colocado no poder pelos ultra-nacionalistas, pretendia criar a Grande Sérvia, enfrentando a Áustria-
Hungria. A Sérvia se tornara uma monarquia constitucional. Em 1914, um nacionalista sérvio - com o auxílio de
oficiais do serviço de informações do país - matou em Sarajevo o arqueduque austro-húngaro Francisco Ferdinando.
O episódio levou o vizinho poderoso a declarar guerra ao reino de Pedro I, que resistiu durante o primeiro ano até
que em 1915 foi invadido por forças austro-húngaras, búlgaras e alemãs. O exército sérvio e Pedro se retiraram pelas montanhas em direção
a Corfu, onde foram resgatados. Em dezembro de 1918, Pedro se tornou o primeiro monarca da recém-criada Iugoslávia, que englobava a
antiga Sérvia e três áreas do antigo Império Austro-Húngaro: a Eslovênia, a Croácia e a Bósnia-Herzegovina. Morreu em 1921. / M.G.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 42/69
A frente ocidental
O CAMINHO PARA LOOSO escritor e poeta inglês
Robert Graves contou em suas
memórias (Goodbye to At
All; leia a resenha do
jornal inglês The
Guardian) como sobreviveu
nas trincheiras da frente
ocidental desde que se alistara
em 1914. “Eu me mantive de
pé e vivo bebendo cerca de
uma garrafa de uísque por
dia.” Graves foi um dos
soldados que participaram da
grande ofensiva aliada no
Artois, na França, entre
setembro e outubro de 1915.
O velho exército imperial
inglês de antes da guerra
havia sido consumido no fim
de 1914 na 1.º Batalha de
Ypres, no sul da Bélgica.
Reconstituído com os
voluntários que chegaram aos
quartéis cantando It’s a
Long Way to Tipperary ,
música-símbolo dos homens
de uniforme cáqui, o exército
inglês teve de cavar
trincheiras a exemplo dos
outros combatentes da frente
ocidental para sobreviver. Do
outro lado do arame farpado
da terra de ninguém (espaço
entre as trincheiras inimigas),
os alemães cavaram mais
fundo.
No começo do ano, uma primeira ofensiva inglesa fracassara em Neuve-Chapelle. Em maio, os ingleses atacaram novamente. O
alvo era a Crista de Aubers, no Artois. Ao mesmo tempo, os franceses tentaram conquistar outra área elevada na mesma região, a
de Vimy. Os ataques só acrescentaram mais algumas dezenas de milhares de nomes às listas dos mortos nos campos de
honra publicadas pela imprensa inglesa.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 43/69
Chegava o dia 25 de setembro. Os ingleses usaram seus engenheiros para colocar minas embaixo da linha de trincheiras alemãs.
Iam explodi-las no momento em que o avanço de seus soldados começasse. Durante quatro dias, a artilharia martelara as
defesas alemãs. Por fim, abriu centenas de cilindros com o gás cloro, mas o vento contrário fez com que o veneno fosse parar nas
linhas inglesas.
Quando deixaram as trincheiras no dia 25, os ingleses pensavam que haveria pouca resistência. Avançaram de peito aberto em
direção aos alemães, que saíram de seus abrigos profundos cavados nas trincheiras e assumiram os postos em suas
metralhadoras a tempo de provocar um massacre. Dos 15 mil britânicos que se lançaram ao ataque, 8 mil foram mortos ou
feridos no primeiro dia. A batalha durou até 14 de outubro. Custou 60 mil baixas aos ingleses e 30 mil aos alemães.
JIHADO prédio em estilo barroco, ao lado do Bósforo, abrigava a
embaixada alemã em Constantinopla. Seu titular era o barão
Conrad von Wangenhein, um amigo do kaiser Guilherme II,
com excelentes relações com o governo dos jovens turcos, o
grupo político que se rebelara contra o sultão Abdul Hamid II
em 1908 – ele acabou exilado e substituído pelo irmão,
Maomé V, em 1909. Em agosto de 1914, o alemão recebeu em
seu gabinete o embaixador americano, Henry Morgenthau, e
fez uma revelação: o Império Otomano entraria na guerra do
lado da Alemanha, mas o que importava mesmo era “o
mundo muçulmano”. Mais do que ganhar um aliado, os
alemães contavam em transformar a conflagração em uma
jihad, uma guerra santa que sublevasse o Islã contra os
russos, ingleses e franceses.
As previsões do embaixador começaram a se cumprir em 29
de outubro de 1914. Navios turcos bombardearam quatro
portos russos no Mar Negro. Em 2 de novembro, a Rússia
declarou guerra à Turquia e foi seguida no dia 5 pela Grã-
Bretanha e pela França. No dia 14, o xeque Ul-Islam, em
nome do sultão Maomé V, decretou a jihad. Havia 270
milhões de muçulmanos no mundo em 1914, dos quais 140 milhões viviam sob o mando franco-russo-britânico. Contra esses
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 44/69
A frente italiana
países, o sultão esperava lançar o “fogo do inferno”.
Mas os jovens turcos tinham outros planos. Mobilizaram suas melhores tropas para invadir o Cáucaso, na Rússia, em vez de
lançá-las em direção à Índia – a joia da coroa britânica – ou o Canal de Suez, no Egito, então protetorado britânico. Sem botas e
casacos de inverno, o exército turco enfrentou - 31°C e congelou na Batalha de Sarikamish. O desastre levou à perda de 75 mil
homens.
A derrota provocou pânico. Os armênios – cristãos que viviam na região – foram transformados em bode expiatório. O governo
turco decidiu deportá-los, provocando a maior crise humanitária da guerra. É impossível calcular quantos armênios morreram.
As estimativas vão de 1,3 milhão a 2,1 milhões. O chamado pela guerra santa fracassou. Nenhum movimento de resistência
muçulmano nasceu do decreto de jihad turco.
Por fim, em 25 de abril, franceses, ingleses, australianos e neozelandeses desembarcaram na Península de Gallipoli, no Estreito
dos Dardanelos. Ficaram lá até 1916 e o ataque – concebido por Winston Churchill, então primeiro lorde do almirantado inglês
para levar à derrota da Turquia – transformou-se em mais um dos desastres militares da guerra. Cento e dez mil turcos e aliados
morreram na campanha. Outros 200 mil ficaram feridos.
FRATELLI D'ITALIAQuem dá mais? Essa é a
pergunta que pode definir a
política em relação à guerra
do primeiro-ministro italiano
Antonio Salandra. Ele mesmo
a chamava em 1915 de “sacro
egoísmo”, ao indagar qual dos
dois lados da guerra poderia
assegurar mais ganhos
territoriais à Itália em troca
de seu apoio. A entrada da
Itália na guerra está
intimamente ligada ao
chamado irredentismo,
movimento que buscava unir
debaixo do governo de Roma
todas as regiões habitadas por
italianos. Como a maioria
delas estava sob domínio
austro-húngaro, não era
difícil prever qual lado
receberia seu apoio. E assim
foi: a Itália, que antes da
guerra era aliada da
Alemanha e do Império
Habsburgo, as chamadas
potências centrais, declarou
guerra à Áustria-Hungria em
23 de maio.
Milhares de italianos e filhos
de italianos ao redor do mundo se mobilizaram para lutar pelo país. De São Paulo partiu em 1915 o jovem Amerigo Rottelini.
Nascido em 1894, ele era filho do jornalista Vitaliano Rottellini, dono do jornal Fanfulla, editado em italiano na cidade. Amerigo
se tornou tenente do exército real italiano e morreu em 24 de agosto de 1917, quando conduzia um assalto com seus soldados.
Em São Paulo, o comendador Ermelino Matarazzo fundou o Comitatto Pro Patria, para reunir doações em dinheiro, alimentos e
roupas para os soldados italianos e seus familiares – esforço que lhe valeu o reconhecimento do governo italiano.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 45/69
Gás
Os alemães inventaram a guerra química. Em 1914, o gás
foi usado em Neuve Chapelle, em outubro de 1914. A
quantidade era pouca e passou despercebida pelos ingleses.
Quatro quintos da fronteira italiana com os austríacos eram constituídos de montanhas de até 3 mil metros de altitude cobertas
de gelo e neve no inverno. Explosões ali podiam facilmente provocar avalanches. E os italianos atacaram nos Alpes da região do
Trentino e no Vale do Rio Isonzo, perto do Mar Adriático. Só nas quatro batalhas do Isonzo, em 1915, 54 mil italianos morreram
e pouco terreno foi conquistado. Um novo impasse com os exércitos imobilizados em trincheiras surgia na Europa.
O MUNDO EM GUERRA
Às 9h15 de 25 de setembro, o bombardeio das linhas alemãs cessou.
Dois milhões de obuses haviam sido lançados pela artilharia francesa
em três dias. Foi quando os homens do 23.º Regimento de Infantaria
Colonial se lançaram ao ataque. No fim do dia, mil deles estavam
mortos, mas a posição alemã em Massiges, na Champagne, no norte
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 46/69
Em janeiro de 1915, nova ação alemã. Dessa vez, na frente
oriental. Em Bolimov, testaram um gás lacrimejante
contra os russos, mas a maior parte congelou. Foi só em
abril de 1915 que seu exército esperou o vento soprar em
direção aos franceses e liberou gás cloro de seis mil
cilindros abertos em suas trincheiras. Quase seis mil
soldados morreram. Durante a guerra, ingleses, franceses
e alemães usaram 130 toneladas de gases venenosos.
Depois do cloro, outros agentes, como gás mostarda e o
fosgênio, foram utilizados. A arma que se tornou um dos
símbolos da guerra seria banida delas por meio de tratado
internacional em 1925. / M.G.
da França, estava conquistada. Os regimentos coloniais eram
constituídos principalmente por soldados da metrópole enviados às
colônias. Eles foram mobilizados para a guerra assim como as
unidades de tirailleurs (atiradores), formadas pelos povos das
colônias.
Quase um milhão de marroquinos, zuavos, spahis, senegaleses,
marroquinos vietnamitas e malgaxes foram enviados para a luta na
Europa. Os ingleses mobilizaram 1,3 milhão de tropas do Canadá, da
Austrália, da Nova Zelândia e da África do Sul, que lutaram na
Europa. Outro 1 milhão de africanos e hindus entraram no exército
inglês. Eles combateram os otomanos na Mesopotâmia, no Sinai, na
Palestina e enfrentaram os alemães na China e na Tanzânia, nos
Camarões e na Namíbia, as três principais colônias alemãs na África.
No Oriente Médio, a revolta árabe – com a ajuda do oficial inglês
T.E. Lawrence, o Lawrence da Arábia interpretado por
Peter O’Toole no filme dirigido por David Lean – e a
promessa inglesa de terra e liberdade para árabes e judeus
começariam a desenhar a crise que toma conta da região até hoje. Os
ingleses contaram com os japoneses na ação contra as colônias
alemãs na China e no Pacífico. Em 7 de novembro, os 5 mil alemães
da guarnição de Tsingtao se renderam aos 60 mil japoneses e 2 mil britânicos que os cercaram. A tomada de Tsingtao marcou o
início do expansionismo japonês na China,política que levaria o país a atacar Pearl Harbor em 1941. Os japoneses completariam
sua ação na Grande Guerra tomando para si as Ilhas Marina, Carolinas, Marshall e Gilbert.
Em 7 de junho de 1915, o jornalista Julio Mesquita escreveu no Estado:
Não se contentou o império do Mikado com o rico prato de gordas e saborosas concessões e
magníficos privilégios que a Alemanha lhe preparou, a Inglaterra lhe ofereceu, e ele aceitou por
conta de maior quantia. O Japão quer mais e tenta reduzir a pobre China, hoje mais desamparada que
nunca, a uma quase completa vassalagem, resolvendo assim, quase sem esforço, (...) o amplo e
complicado problema da dilatação do seu domínio e da sua supremacia no Extremo Oriente.”
Na África, os alemães foram derrotados na Namíbia e em Camarões em campanhas nas quais os dois lados mobilizaram grandes
contingentes de tropas nativas. Do outro lado da África, o general alemão Paul von Lettow-Vorbeck lutou contra ingleses, sul-
africanos, portugueses, moçambicanos, congoleses e hindus. No começo, tinha 3 mil askaris (soldados negros) e 200 oficiais
alemães. Depois, aumentou seu exército para 20 mil homens – seus inimigos eram 300 mil. Lettow-Vorbeck se rendeu em 25 de
novembro de 1918, depois de o armistício ter sido assinado na Europa.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 47/69
1916
A Batalha de Verdun
O ANO DE VERDUNQuem não viu esses campos de
morte jamais terá a menor
ideia deles. Em Verdun, os
mortos não contavam. Nem se
enterravam. Da lama
inescapável à sede infinda, o
ambiente tornava improvável
que a vida de um soldado
durasse mais de 15 dias na
frente de batalha.
“Quando a gente chega, os
obuses chovem em toda parte
e a cada passo. Apesar de
tudo, é necessário avançar. A
gente deve se contorcer para
não passar sobre um morto
coberto no fundo da
trincheira. Mais longe, vários
feridos recebem curativos,
outros são levados em macas
para retaguarda. Uns gritam,
outros gemem. Vê-se os que
não têm mais pernas; outros
estão sem a cabeça e
permanecem várias semanas
no chão”, escreveu em uma
carta um soldado da 65.ª Divisão de Infantaria francesa, em julho de 1916. A luta ali só terminaria em dezembro.
Para a França, 1916 é o ano de Verdun, o ano da batalha que o estado-maior alemão planejou para sangrá-la até o fim. O plano
era atacar a histórica fortaleza e forçar o inimigo a contra-atacar até esgotar suas forças. O assalto alemão começou em 21 de
fevereiro. Um conjunto de 1,2 mil canhões disparou em uma frente de 20 quilômetros de extensão. O avanço inicial alemão foi
avassalador. O Forte de Douaumont, o coração do sistema defensivo de Verdun, caiu às 3h30 do dia 25.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 48/69
A cidade só não caiu por causa da determinação francesa. O general Philippe Pétain assumiu o comando. A estrada que ligava
Verdun a Bar-le-Duc se transformou na Via Sacra. O tráfego ali não parava, dia e noite. O que parecia ser a véspera da vitória
alemã se transformou em mais uma batalha de atrito, um moedor de carne e de materiais. E assim foi até que os franceses
contra-atacaram. No dia 21 de outubro, os marroquinos e a infantaria colonial retomaram Douaumont. Na noite de 2 para 3 de
novembro, foi a vez da reconquista do Forte de Vaux. Em 15 de dezembro, a última ofensiva francesa assegurou mais cinco
fortificações e fez 11,3 mil prisioneiros. As baixas alemãs chegaram a 337 mil – dos quais 143 mil mortos –, enquanto as
francesas atingiram 377,2 mil – 162,4 mil mortos.
O MASSACRE DO SOMME
Um general que participara de sessões espíritas na qual conversara com o espírito de Napoleão e pensava poder se comunicar
com Deus era o homem que os ingleses encontraram para comandar seu exército em 1916. Assim era Douglas Haig, conta o
historiador inglês John Keegan. No dia 1.º de julho de 1916, ele lançou seus homens no vale do Rio Somme contra as defesas
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 49/69
COTA 146¹
Planos Desolação inferno de moscas Fusão de verde
branco e vermelho
Salvas de 50 bombas nas trincheiras tal qual
de quatro nos debatemos para expulsar a po-
eira do tapete
Crateras góticas como as catedrais
Rumor de moscas violentas
Cartas lacradas em uma caixa de charutos de Oran²
A entrega d'água vem com suas vasilhas
Na trilha, os feridos vão sozinhos
Ramificações de Decauville
Lá se joga esconde-esconde
Se faz a cabra-cega
Que sonhos
Madeleine o que não é do amor não tem remédio
Tuas fotos no meu peito
E as moscas metálicas são pequenos astros talvez
A cavaleiro a cavaleiro a cavaleiro a cavaleiro
Ó planos que em todas crateras vegetam os homens
Ó planos que às trilhas vão como os traços sobre
a ponta dos dedos nas pedras monumentais de Gravinis
Madeleine teu nome é uma rosa incerta
rosa dos ventos ou da roseira
Os vaqueiros vão às fontes a 7 km daqui
Perthes Hurlus Beauséjour nomes pálidos e tua Cidade sobre
Tourbe³
Cemitérios de soldados cruzes onde chora o quepe
Sombra de carne putrefata as árvores assim raras
são mortos pregados na cruz
COTE 146
Plaines Désolation enfer des mouches Fusées le vert
le blanc le rouge
Salves de 50 bombes dans les tranchées comme quand
à quatre on fait claquer pour en faire sortir la pous-
sière un grand tapis
Trous semblables à des cathédrales gothiques
Rumeur des mouches violentes
Lettres enfermées dans une boîte de cigares venue d'Oran
La corvée d'eau revient avec ses fûts
Et les blessés reviennent seuls par l'innombrable boyau
aride
Embranchement du Decauville
Là-bas on joue à cache-cache
Nous jouons à colin-maillard
Beaux rêves
Madeleine ce qui n'est pas à l'amour est autant de perdu
Vos fotos sur mon coeur
Et les mouches métalliques petits astres d'abord
A cheval à cheval à cheval à cheval
O plaine partout des trous où végètent des hommes
O planie où vont les boyaux comme les traces sur le
bout des doigts aux monumentales pierres de Gravinis
Madeleine votre nom comme une rose incertaine
rose des vents ou du rosier
Les conducteurs s'en vont à l'abreuvoir à 7 km d'ici
Perthes Hurlus Beauséjous noms pâles et toi Ville sur
Tourbe
Cimitières de soldats croix où le képi pleure
L'ombre est de chairs putréfiées les arbres si rares sont
GUILLAUME APOLLINAIRE
O poeta Guilhaume Apollinaire foi um dos escritores que combateram na 1.ª Guerra Mundial. Engajou-se na artilharia e foi ferido
gravemente em combate. Calligrammes, sua principal obra, tem como subtítulo "poemas da paz e da guerra" (Apollinaire, Oeuvres
poétiques, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade). As imagens da guerra e de suas misérias estão presentes em diversos poemas de
Apollinaire, como neste, Cota 146, o terceiro dos Poèmes à Madeleine.
alemãs – alguns dos abrigos inimigos tinham mais de dez metros de profundidade e eram impenetráveis para qualquer projétil
de artilharia britânica.
Pior do que as defesas alemãs foi a inépcia do comando. Em alguns setores, nem mesmo o arame farpado que separava os
ingleses dos alemães foi destruído e isso significava a morte para qualquer soldado que tentasse atacar o oponente. Dos 100 mil
ingleses que subiram o topo de suas trincheiras para avançar contra o inimigo, 19.240 morreram e outros 38.230 ficaram feridos
ou desaparecidos no primeiro dia da ofensiva.
Os ingleses insistiram nos ataques nos meses seguintes. E lançaram mão de uma grande inovação na história das guerras. Em
Flers, no dia 15 de setembro, eles levaram 32 Mark I para a frente de batalha. Eram monstrengos que se deslocavam lentamente
e carregavam dois canhões de 57 mm e quatro metralhadoras. Eles surpreenderam os alemães, mas ainda levaria algum tempo
até que esse invento se tornasse decisivo nos campos de batalha.
Depois disso, a chuva se encarregou de deixar o terreno do Somme intransitável. Até que em 18 de novembro as operações na
região foram suspensas. Um balanço de perdas é difícil de se fazer. Hew Strachan, outro notável historiador inglês da 1.ª Guerra,
calcula em 650 mil as baixas alemãs – incluindo aí feridos leves – e 614 mil dos aliados, das quais 420 mil foram britânicas.
Tudo isso para a conquista de poucos quilômetros de terra e pelo sonho de abrir uma brecha na linha inimiga e, assim, pôr um
fim à guerra. / M.G.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 50/69
Ouvi chorar o obus que passa em tua testa
1 . Cota é a designação militar de uma elev ação em um terreno.
Os artilheiros, como era o caso de Apollinaire, usav am
referências na paisagem para calibrar o tiro de seus canhões
2. A caixa pode ser de charutos, mas também craniana, ou seja
de cabeça. As cartas estariam lacradas na cabeça. Nesse sentido,
Oran, na Argélia, seria uma referência às tropas colonias v indas
da África para combater na França.
3 . Cidades do Vale do Rio Marne, onde se trav aram combates na
1 .ª Guerra. O Tourbe é um rio da região do Marne. Apollinaire
foi ferido na cabeça durante os combates.
Tradução: Marcelo Godoy
des morts restées debout
Ouïs pleurer l'obus qui passe sur sa tête.
A Ofensiva Brussilov1.º de junho a 29 de setembro
O GENERAL E O MONGE
Gregory Rasputin era um monge que acreditava que podia
resolver problemas das mulheres com casamentos
conturbados mantendo com elas relações sexuais. Suas
crenças e escândalos pareciam pôr em risco a segurança do
próprio estado russo ainda mais quando sua influência sobre
a czarina Alexandra o permitia fazer e desfazer ministros. A
mulher de Nicolau II acreditava que Deus enviara o monge,
pois só ele parecia cessar os sofrimentos do herdeiro do
trono, seu filho Alexei, que era hemofílico.
Rasputin era contra a guerra e tentou fazê-la parar ou
limitar seus efeitos, mesmo durante as batalhas vitoriosas. O
místico se tornara um estorvo para nobres e militares, entre
eles Aleksei Brussilov, o mais competente entre os generais
russos da 1.ª Guerra. Em 4 de julho de 1916, apoiado por
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 51/69
Francisco José, o imperador da Áustria-
Hungria
Em 1917, o império dos
Habsburgos era uma entidade
doente. Um espectro o rondava
desde que Francisco José I subiu
ao trono aos 18 anos: a revolução.
Era 1848. As revoltas na Boêmia,
em Viena e na Hungria levaram à
abdicação de Fernando 1º em
favor de seu sobrinho. O homem
que se formara à sombra do conde de Metternich e do
general Joseph Radetzky (homenageado pelo compositor
Johann Strauss com a marcha que leva seu nome)
esmagou as rebeliões, mas teve depois de ceder. Primeiro,
por meio do acordo com os húngaros, criando o dualismo
da monarquia. Depois, assistiu ao longo declínio militar do
império, derrotado nas guerras de reunificação da Itália
(por franceses e piemonteses, na Batalha de Solferino, em
1959) e da Alemanha (pela Prússia, na Batalha de
Sadowa, em 1866). Teve de aceitar o voto universal no
império em 1907, ao mesmo tempo em que anexava a
Bósnia-Herzegovina. Quando a guerra começou, sua
autoridade estava esgarçada. A morte do sobrinho e
herdeiro, Francisco Ferdinando, em um atentado
cometido por nacionalistas sérvios em Sarajevo, foi usada
pelos falcões de sua corte para levar o império à guerra em
28 de julho contra a Sérvia, decisão que arrastou a Europa
e depois o mundo para a conflagração. Morreu em 1916.
Com o fim da guerra e a derrota no conflito, o império se
desfez. / M.G.
quase 2 mil canhões, ele lançou a ofensiva que levaria seu
nome na região da Galícia (atual Polônia). Tinha 200 mil
homens para lutar contra 150 mil austro-húngaros. Em
pouco tempo, Brussilov abriu um brecha nas defesas
inimigas e fez mais de 100 mil prisioneiros. Alemães e
austríacos tiveram de trazer tropas da França e da Itália
para detê-lo, mas suas vitórias continuaram em agosto e
setembro. Os combates haviam provocado quase 2 milhões
de baixas nos dois lados quando o monge aconselhou a
czarina a pedir a Nicolau II que acabasse com a ofensiva, o
que foi feito.
A decisão fez de Brussilov um conspirador. Ele se juntou ao
grupo de civis e militares que pretendiam prender a czarina,
depor o czar e entregar o poder ao seu primo, o grão-duque
Nicolau Nicolaievitch. Depois da Revolução de Fevereiro,
que deporia a monarquia em 1917, Brussilov comandou os
exércitos russos até agosto, quando foi substituído após o
fracasso da ofensiva lançada pelo governo provisório de
Alexander Kerensky. No fim de sua vida, Brussilov viveria
aposentado em Moscou e apoiaria o esforço de guerra
soviético em 1920 no conflito com os poloneses. Morreu em
1924. / M.G.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 52/69
BLOQUEIO
Winston Churchill dizia que havia um único homem na Inglaterra que podia perder a guerra em uma única tarde. Esse homem
era John Jellicoe. Desde 1588, nenhum almirante britânico havia tido sob seu comando toda a esquadra do país. E, se ela fosse
derrotada pela frota de alto-mar alemã, o reino ficaria indefeso. Para o escritor Max Hastings, Churchill exagerava. Mesmo que
Jellicoe sofresse pesadas baixas, faltaria aos alemães meios de impor um bloqueio ao Reino Unido, única forma de esmagar a
Grã-Bretanha.
A guerra no mar começara em agosto. No Pacífico, o almirante alemão Maximilian von Spee levou seu esquadrão da China ao
Chile, onde afundou na Batalha de Coronel, em 1.º de novembro, os cruzadores britânicos mandados para interceptá-lo. Foi a
pior derrota inglesa nos mares durante a guerra. Para enfrentar Spee, os britânicos mandaram dois cruzadores de batalha e
cinco cruzadores leves. O encontro ocorreu em dezembro diante de Port Stanley, nas Ilhas Malvinas. Três navios alemães foram
afundados pelos ingleses e 2,2 mil marinheiros morreram. Pouco antes, os alemães haviam perdido seu cruzador Emden nas
Ilhas Coco.
Depois disso, só em duas oportunidades durante o conflito a guerra no mar envolveria os encouraçados das grandes frotas. A
primeira foi em Dogger Bank, quando os alemães perderam a maior oportunidade estratégica durante a guerra de enfrentar com
todas as suas forças uma parte reduzida da esquadra inglesa. A segunda vez foi em Jutlândia, a grande batalha naval da guerra.
Jutlândia foi um desses momentos em que o dito de Churchill poderia ter se transformado em verdade. As duas grandes
esquadras se enfrentaram no Mar do Norte entre os dias 31 de maio e 1.º de junho. Vinte e cinco navios foram a pique, matando
8,5 mil marinheiros. Depois disso, a frota alemã não mais deixou seus portos.
A guerra no mar continuaria até 1918. Mas a Alemanha apostaria unicamente em seus submarinos para dobrar a Grã-Bretanha e
acabar com o bloqueio inglês, que a partir de 1917 começou a sufocar a economia alemã. O uso indiscriminado da guerra
submarina atingiria navios de países neutros, como os Estados Unidos e o Brasil, que declararia guerra à Alemanha em outubro
de 1917. Tudo isso por nada, pois, no fim, os submarinos se mostrariam incapazes de atingir decisivamente a Inglaterra e os seus
aliados. / M.G.
A GUERRA NO CÉUO capitão americano Eddie Rickenbacker decolou em seu avião para abater balões inimigos. Amanhecia e não havia previsão de
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 53/69
que aviões inimigos estivessem no ar até que um caça alemão apareceu diante do avião Spad do capitão. Eles sobrevoavam a
região entre o Rio Meuse e a Floresta da Argonne. O caça alemão começou a atirar e Rickenbacker respondeu. Ambos foram
atingidos. O inimigo caiu entre as trincheiras americana e alemã, tornando-se um dos 26 aparelhos abatidos pelo piloto
americano na guerra.
Com o motor avariado, o capitão pousou em um campo em Verdun. Foi quando os mecânicos examinaram a aeronave. Havia 27
perfurações em seu avião. Uma delas entrara pelo lado direito do para-brisa. Quando era criança em Omaha, no Nebraska, no
Meio-Oeste americano, o capitão Rickenbacker sofreu um pequeno acidente. Uma cinza quente caiu em seu olho direito,
deixando um ponto negro em sua pupila. O problema não impediu que ele se tornasse uma dos principais ases da aviação na 1.ª
Guerra Mundial. Mas Rickenbacker sempre teve medo de que o pequeno ponto negro o impedisse de ver a aproximação de um
avião inimigo. Por isso, ele mirava com o olho esquerdo, o que o fazia se inclinar para esse lado no cockpit de seu avião. Foi o que
o salvou naquele dia. A bala passou a uma polegada de sua cabeça.
Poucos dos maiores ases da guerra sobreviveram ao conflito. O alemão Manfred Richthofen, o Barão Vermelho, morreu em 21 de
abril de 1918 depois de derrubar 80 inimigos. O major inglês Edward Mannock morreu no dia 16 de julho de 1918 após abater 73
inimigos. O italiano Francesco Barraca fora abatido dias antes, em 19 de junho, depois de colecionar 34 vitórias contra os
inimigos. Em 11 de setembro de 1917, foi a vez de o capitão francês Georges Guynemer ser morto. Ele havia vencido 53 combates e
sobrevivido a sete pousos de emergência após ser atingido por inimigos.
A 1.ª Guerra Mundial viu o avião se transformar em uma arma letal. Além dos combates entre pilotos, eles também foram usados
para metralhar e bombardear tropas e cidades. Era o começo de uma era que tornaria o domínio dos céus uma das condições
para a vitória na guerra moderna. / M.G.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 54/69
1917
REVOLUÇÃOMarcelo Godoy
Um exilado russo que vivia na Suíça escreveu em setembro de 1914: “A transformação da atual guerra imperialista em guerra
civil é a única palavra de ordem proletária justa”. Nos anos que se seguiram, o grupo clandestino que ele – Vladimir Ilitch Lenin
– comandava se tornaria a mais poderosa força política de seu país. Sob a promessa de paz, pão e terra para o povo, os
bolcheviques acabaram com o conflito com a Alemanha. Retiraram o império do czar da conflagração mundial, mas o país
mergulharia até 1921 em uma guerra civil tão mortífera quanto a primeira.
No começo de 1917, dois anos e meio de guerra, com suas doenças, mortes, destruição e fome, haviam colocado a Rússia
novamente à beira da revolução, como em 1905, quando o país perdera o conflito para o Japão. Em janeiro, um agente secreto
da polícia do czar escreveu: “Crianças estão emaciando. A revolução – se isso ocorrer – será espontânea, semelhante a um motim
contra a fome.” Em 22 de janeiro, sua previsão se cumpriu. Cento e cinquenta mil trabalhadores marcharam por Petrogrado e
dezenas de milhares fizeram o mesmo em outros cidades russas. Alguns carregavam cartazes: “Abaixo a guerra” e “Abaixo a
autocracia”. Em 8 de março (calendário ocidental), mulheres da indústria têxtil entraram em greve. Em dois dias, 200 mil
trabalhadores estavam parados.
Nas ruas, o embaixador francês, Maurice Paléologue, os ouvia cantar a Marselhesa. Fora da cidade, o czar ordenou que a
guarnição de Petrogrado restabelecesse a ordem. Mas, no dia 11, os soldados começaram a se amotinar. Na tarde seguinte, mais
de 20 mil deles estavam nas ruas. Impedido de voltar a Petrogrado, o czar parou no quartel do general Nicolai Ruszkiy. Ele e o
chefe do estado-maior, general Mikhail Alekseyev, aconselharam-no a abdicar. Entre a lealdade ao soberano ou à nação,
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 55/69
A frente ocidentalJaneiro a maio de 1917
disseram, o exército escolheria a segunda. E assim foi. Nicolau II renunciou em favor de seu irmão mais novo, Miguel, que por
sua vez renunciou um dia depois e convocou a eleição de uma Assembleia Constituinte. Um governo provisório sob o comando do
príncipe Georg Lvov assumiu o poder. Acabavam assim três séculos de domínio dos Romanov.
UM PLANO INFALÍVEL
Os aliados tinham tudo
planejado. Os ingleses
atacariam da direção norte,
no Artois, para o oeste
enquanto os franceses
avançariam do sul, no Chemin
des Dames, em direção ao
norte. O movimento criaria
duas grandes pinças para
cercar os alemães na região do
Rio Somme, que formava uma
saliência na frente de
combate. Mas, dias antes de
os ataques começarem, o
inimigo se retirou da área que
deveria ser envolvida pelo
avanço aliado, deixando a ala
esquerda da ofensiva francesa
na região do Rio Aisne sem
oposição.
“A conclusão lógica era adiar
toda a operação”, escreveu o
historiador inglês Hew
Strachan. Mas os aliados
decidiram o contrário. E um
dos motivos para isso foi
salvar a Rússia. “Não
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 56/69
esqueçam que o exército
francês está fazendo
preparativos para uma grande
ofensiva, e o exército russo
tem o dever de honrar a sua
parte nisso”, escreveu o
embaixador francês em
Petrogrado, Maurice
Paléologue, ao governo
provisório daquele país em 13
de março.
A retirada alemã diminuíra a
frente de combate que seu
exército devia cuidar. Durante
meses, seus homens haviam
escavado uma grande
fortificação, conhecida como
Linha Hindenburg, e ali se
abrigaram à espera dos
aliados. Mesmo assim, os
ingleses atacaram na região
de Arras em uma frente de 24
quilômetros onde o inimigo
ainda se mantinha firme. Eles
reuniram 2,7 milhões de
projéteis de artilharia com
espoletas rápidas, que
explodiam quando a bomba
tocava no solo, aumentando
seu impacto e cortando
facilmente o arame farpado.
Durante todo o inverno,
tropas canadenses foram
treinadas para se acostumar
com o terreno que deveriam
conquistar. Os soldados
avançaram logo atrás do fogo
da artilharia, que fazia uma
barragem logo adiante. Por volta das 13 horas de 9 de abril, eles haviam avançado 3,5 quilômetros e capturado as colinas
conhecidas como Vimy Ridge. Os alemães trouxeram reforços. Em pouco tempo, barraram o avanço aliado. Mais um plano para
resolver o impasse da guerra de trincheiras começava a atolar. / M.G.
OS MOTINS DO EXÉRCITO FRANCÊS
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 57/69
A abdicação do czar na Rússia coincidiu com uma série de crises governamentais na França. O comandante do Exército, Joseph
Joffre, havia sido afastado depois de ser considerado culpado pelo fracasso da estratégia em 1916. Seu sucessor como
comandante-em-chefe, o general Robert Nivelle, tinha certeza de ter a fórmula para romper as linhas alemãs e ganhar a guerra.
Isso significava mais ofensiva.
Para azar dos soldados franceses, seu general escolheu atacar o Chemin des Dames, a região que abrigava as mais fortes defesas
alemãs em toda a frente ocidental. Três exércitos se lançaram em direção à catástrofe em 16 de abril. As bombas da artilharia
francesa caíram em trincheiras alemãs vazias – de sua posição mais alta, os inimigos puderam antever toda a preparação de
Nivelle e se retirar.
O massacre foi quase completo. Quando o fogo dos canhões cessou, a infantaria francesa foi surpreendida pelas metralhadoras
alemãs colocadas em pontos estratégicos. Em uma semana, os hospitais que esperavam 10 mil feridos estavam lidando com 96
mil. Uma divisão senegalesa, cujos soldados já sofriam com o congelamento, perdeu 60% de seu efetivo. Os soldados começaram
a desobedecer. Cerca de 40 mil deles, concentrados entre as cidades de Soissons e Reims, recusaram-se a voltar para a linha de
frente.
Era uma espécie de greve contra o comando incompetente e as péssimas condições de vida nas trincheiras. Eles queriam também
mais licenças para visitar suas famílias. Os soldados ainda estavam dispostos a defender a França, mas dentro de suas condições.
Diante do desastre militar e da crise no exército, o governo resolveu nomear o general Phillipe Pétain chefe do estado-maior em
29 de abril. Era o começo da queda de Nivelle.
No começo de maio, soldados que se dirigiam a Chateau Thierry contavam a Internacional e gritavam “abaixo a guerra e
“longa vida à revolução”. Em 8 de maio, Pétain substituiu Nivelle como comandante-em-chefe do Exército. No dia seguinte, a
ofensiva no Chemin des Dames foi suspensa - a França registrava 187 mil mortos ou feridos.
Os motins foram reprimidos com vigor moderado: dos 629 soldados condenados à morte entre maio e outubro, só 43 foram
executados. Pétain aumentou as licenças e atendeu a outras reivindicações dos soldados. O mais importante, porém, é que a
partir dali o exército francês adotou a defesa como sua estratégia de guerra./ M.G.
A MORTE NOS FLANDRES
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 58/69
'Tempestades de Aço'
O escritor alemão Ernest Jünger lutou na Primeira
Guerra durante quatro anos. Foi ferido diversas vezes e fez
de suas notas durante a guerra seu mais famoso livro:
Tempestades de Aço (Stahlgewittern). Eis um trecho sobre
Passchendaele:
Defrontamo-nos em todo lugar
com traços da morte. Parecia
que não podíamos encontrar alma viva
nesse deserto. Aqui, atrás de uma cerca
arruinada, um grupo jaz – os cadáveres
ainda recobertos pela terra que chovera
sobre eles após o estouro do obus. Ali,
dois mensageiros estão estendidos na
borda de uma cratera de onde ainda
sobe a fumaça de gás da explosão. Em
outro lugar, numerosos corpos
dispersos em um pequeno espaço: um
destacamento de intendentes tombados
em meio à chuva de fogo, ou uma seção
desgarrada de reforços que ali
encontrou a sua morte. Fizemos nossa
entrada; abraçamos com um olhar os
segredos desses cantos mortais e
voltamos a desaparecer na fumaça.”
Tradução da edição francesa (Orages d’Acier): Marcelo
Durante um ano, engenheiros ingleses cavaram a 25 metros de
profundidade galerias em direção à Crista de Messines, na Bélgica.
Vinte e quatro túneis foram abertos. Debaixo dos profundos abrigos
das trincheiras do inimigo, os britânicos depositaram 500 mil quilos
de explosivos. Com a exaustão de franceses e russos, Londres foi
obrigada a fazer sua ofensiva sozinha. A escolha da marinha e do
exército foi atacar nos Flandres, no sul da Bélgica, a fim de avançar
até as cidades costeiras de Ostend e Zeebrugge, acabando com as
bases que os alemães criaram para seus submarinos naquele país.
Eram 3h10 de 7 de junho quando 19 detonações das gigantescas
minas criaram “rosas com pétalas carmim ou enormes cogumelos de
fogo e terra, que subiram para o céu”, escreveu o historiador John
Terraine em The Road to Passchendaele. Dez mil soldados alemães
foram soterrados pelas explosões que, de tão fortes, chegaram a ser
ouvidas no sul da Inglaterra. O bombardeio que se seguiu foi terrível.
Dois mil canhões causaram outras 15 mil baixas no inimigo. Por volta
da meia-noite, toda a região leste da crista estava nas mãos dos
britânicos. Era o começo da campanha de Passchendaele, a pequena
cidade belga que se transformaria em sinônimo de perdas inúteis e
da futilidade da guerra.
Para o general William Robertson, chefe do estado-maior imperial,
os ingleses estavam voltando aos seus velhos princípios. “Em vez de
planejar romper a frente inimiga, nosso objetivo é dobrar o exército
inimigo, o que significa lhe infringir perdas mais pesadas do que as
que sofreremos.” Com a crista em suas mãos, britânicos, canadenses
e australianos avançaram em direção ao Planalto Gheluvelt. Mas, no
fim de agosto, pouco avanço havia sido feito. Mesmo assim, a
ofensiva seguiu adiante.
A chuva era contínua. A lama era tanta que só se conseguia caminhar
por cima de passarelas de madeira. Mulas afundavam até afogar em
buracos abertos por explosões que estavam cheios de lama e água.
Era impossível para a equipe de um canhão atirar com rapidez e
precisão – cada vez que os tiros eram feitos, a bateria afundava no
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 59/69
Godoy
George V e o nome de
sua família
A guerra já estava no fim de seu
terceiro ano quando George V
tomou uma decisão: mudou o
nome da família real inglesa de
Saxe-Coburg-Gotha para
Windsor. O nome anterior era por
demais germânico em uma época em que os britânicos se
preparavam para mais uma controversa ofensiva no
continente – em Passchendaele, na Bélgica –, preparada
pelo general Douglas Haig. George V, rei da Grã-Bretanha
e da Irlanda e imperador das Índias, era um monarca
popular, o que não impediu em 1916 o levante
nacionalista da Páscoa de incendiar uma das partes do
império: a Irlanda. O fuzilamento de vários líderes
solo.
Em novembro, quando a ofensiva foi suspensa, os ingleses contavam
275 mil baixas – 70 mil delas eram mortos. Ao todo, os aliados perderam cerca de 500 mil homens. Mais do que os 380 mil de
seus inimigos. O plano de Robertson fracassara. / M.G.
OS YANKEES – E OS DÓLARES – ESTÃOCHEGANDO
Em 28 de novembro de 1916, o Federal Reserve americano publicou uma advertência contra a compra de títulos de tesouros
estrangeiros. A Grã-Bretanha gastava então US$ 250 milhões por mês nos Estados Unidos – metade para si e a outra para seus
aliados. Entre outubro de 1916 e abril de 1917, França e Inglaterra gastaram US$ 1,5 bilhão nos EUA – seis quintos desse total
saíram das venda de títulos públicos em Nova York. O investidor médio americano estava totalmente dependente da vitória dos
aliados da Entente – aliança militar que reunia Grã-Bretanha, França e Rússia. Uma semana depois da advertência do Fed, US$
1 bilhão haviam evaporado no mercado de ações.
Alheia a isso, a elite militar alemã não queria mais saber dos
argumentos do chanceler Bethmman Hollweg. Exigia que a guerra
submarina fosse feita sem restrições. Queria torpedear qualquer
navio que se dirigisse à Grã-Bretanha, fosse de país neutro ou não.
Afundar tudo o que se aproximasse das ilhas inimigas era a única
saída possível contra o bloqueio naval que os ingleses impunham à
economia de Berlim. Os comandantes da marinha e do exército
colocaram o kaiser Guilherme II contra parede. Obtiveram o sinal
verde em 8 de janeiro de 1917 e, em 1.º fevereiro, o país soltou as
rédeas dos submarinos.
Dois dias depois, os Estados Unidos decidiram romper relações
diplomáticas com a Alemanha. No dia 17 de fevereiro, o embaixador
americano na Grã-Bretanha foi informado pelo governo de Londres
sobre uma das maiores descobertas feitas durante a guerra pela
espionagem britânica. Os ingleses haviam decifrado os códigos
alemães e conseguiam interceptar suas comunicações. Em reação à
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 60/69
rebeldes não deteve o plano de Eamon de Valera de obter a
independência do país na década seguinte. Foi em seu
reinado que a Índia começou a dar os primeiros passos
rumo à independência. Morreu em 1936, antes que a crise
colonial após a 2.ª Guerra Mundial abrisse caminho para
o fim dos grandes impérios coloniais. / M.G.
1918
decisão americana, o chanceler alemão, Arthur Zimmermann, teve
outra de suas grandes ideias.
Ele se lembrou da rivalidade entre mexicanos e americanos - em
1916, os Estados Unidos mandaram uma expedição ao México para
lutar contra os rebeldes liderados por Pancho Villa. Decidiu, por
meio do embaixador alemão em Washington, incentivá-los a invadir
o Texas e entrar na guerra ao lado da Alemanha.
Um dia antes, o tesouro inglês tinha em sua conta um rombo de US$ 358 milhões nos EUA e gastava US$ 75 milhões por
semana. O telegrama de Zimmermann foi publicado pelo presidente americano Woodrow Wilson. Em 2 de abril, ele discursou
para a nação. Os Estados Unidos entravam na guerra. A economia dos aliados e muitos especuladores americanos foram salvos
da bancarrota. / M.G.
ADEUS ÀS ARMASMarcelo Godoy
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 61/69
A 11.ª Batalha do Rio Isonzo em agosto causou 166 mil baixas para os italianos. Desde que a guerra começara, seu comandante,
o general Luigi Cadorna, planejava atingir o Porto de Trieste, no Adriático. Sob domínio austro-húngaro, a maioria da população
tinha origem italiana. Dois anos depois, os homens de Cadorna haviam avançado apenas um terço do caminho – só em 10 de
agosto de 1916, eles haviam capturado a cidade de Gorizia.
Ao mesmo tempo em que avançavam palmo a palmo, o número de deserções crescia – passara de 2.137 em abril de 1917 para
5.471 em agosto. Duas brigadas se amotinaram. Até o implacável Cadorna – 750 soldados italianos foram fuzilados durante a
guerra, o maior número entre todos os exércitos em conflito – reconhecia que seus homens precisavam de repouso.
Faltou combinar com os alemães e os austríacos. No dia 24 de outubro, depois de um breve bombardeio, eles avançaram na
região do Alto Isonzo. "Quanto mais longe penetrávamos em terreno hostil, menos preparadas estavam as guarnições para a
nossa chegada e mais fácil era a luta", escreveu o então tenente Erwin Rommel, que mais tarde seria o mais famoso marechal
alemão da 2.ª Guerra Mundial. Em pouco tempo, seguiu-se uma enorme debandada italiana. Ernest Hemingway a retratou no
livro Adeus às Armas.
Soldados atiraram em oficiais que tentavam impedi-los de fugir ou se render. Em semanas, o exército italiano perdeu quase 700
mil homens, dos quais 40 mil foram mortos e 280 mil capturados pelo inimigo. As deserções atingiram 350 mil. Greves
gigantescas estouraram em Milão e em Turim. Uma demonstração antiguerra na primeira cidade foi reprimida à bala, deixando
41 mortos e 200 feridos. Foi preciso reforço inglês e francês para impedir a derrota total. Cadorna foi destituído e substituído por
Armando Diaz. Mais folgas, melhores rações, tratamento menos severo e, principalmente, o fim das ofensivas pacificaram o
exército que aguentou em junho de 1918 a ofensiva austríaca no Rio Piave.
Após o fracasso inimigo, os italianos decidiram que era chegada a hora de atacar novamente. Em 24 de outubro, iniciaram a
ofensiva do Monte Grappa ao Adriático. No dia 27, eles atravessaram o Piave e os soldados austríacos se recusaram a contra-
atacar. No dia seguinte, a Checoslováquia se declarou independente do Império Habsburgo. No dia 29, os croatas e sérvios
decidiram se separar de Viena e foram seguidos no dia 31 pelos húngaros. O exército imperial, que perdera mais de 500 mil
homens, deixara de existir. No dia 3, os italianos desembarcaram em Triste e no mesmo dia um armistício foi assinado. A guerra
chegava ao fim nessa parte da Europa. / M.G.
A Ofensiva Caporetto26 de outubro a 12 de novembro de 1917
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 62/69
O FLAGELO
Os primeiros doentes surgiram no cruzador Bahia. Eram 70 na manhã de 6 de setembro. A última epidemia castatrófica da
história, a gripe espanhola, encontrou a frota brasileira em Dacar, no Senegal. "Os doentes caíam ardendo de febre, cobertos de
suor emplastrado com moinho de carvão, sem ter nem sequer quem os auxiliasse a tomar banho e mudar de roupa, pois os
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 63/69
O sobrevivente
O último remanescente da Divisão Naval de Operações de Guerra (DNOG), formada pela
Marinha do Brasil para combater na 1.ª Guerra Mundial, ainda navega. O Laurindo Pitta,
rebocador construído na Inglaterra em 1910, foi usado em tarefas de apoio. Desde 1990, faz
passeios pela Baía de Guanabara. Com 104 anos, o Laurindo Pitta, um barco com 514
toneladas de deslocamento e 39 metros de comprimento, ganhou há anos motores mais
modernos, a óleo diesel. Recebeu equipamentos de salvatagem (botes salva-vidas) e de
combate a incêndio, além de radar. O resto é conservado (ou foi reconstruído) como na
época da guerra.
“Na década de 90, o Laurindo Pitta estava morto. Foi decidido transformá-lo em navio-museu”, relata o diretor de Patrimônio Histórico e
Documentação da Marinha, vice-almirante reformado Armando de Senna Bittencourt.
Além do Laurindo Pitta, a DNOG foi formada pelos cruzadores Bahia e Rio Grande do Sul, pelos contratorpedeiros Piauí, Rio Grande do
Norte, Paraíba e Santa Catarina e pelo navio auxiliar Belmonte. Iniciou viagem em 7 de maio de 1918. Em 25 de novembro, foi atacada e
reagiu com cargas de profundidade e tiros de canhão. A Inglaterra atribuiu aos brasileiros o afundamento de um submarino alemão. Teria
sido o único feito pela frota do Brasil no conflito. / WILSON TOSTA
A frente ocidental21 de março a 4 de junho de 1918
poucos válidos que lhes poderiam assistir nisso diminuíam de
hora em hora, de minuto em minuto. Essa situação era ainda
agravada pela falta de toldo diante do sol da Dacar", escreveu
o capitão-tenente Orlando Marcondes Machado.
A Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG) era a maior
contribuição do Brasil ao esforço de guerra dos aliados. O
País entrara no conflito mundial em 3 de novembro de 1917,
depois de romper em 11 de abril relações diplomáticas com a
Alemanha. O motivo foi o torpedeamento do navio brasileiro
Paraná, na costa francesa, efetuado por um submarino
alemão. Três tripulantes da embarcação, que levava 94 mil
sacas de café, morreram. O café era então o maior produto de
exportação do País.
O governo brasileiro decidiu enviar dois cruzadores, quatro
contratorpedeiros, um rebocador e um tender de sua
esquadra para patrulhar a costa africana entre Dacar, no
Senegal, e o Estreito de Gibraltar, no Mediterrâneo. Depois
do Bahia, a gripe se espalhou pelos demais navios. A doença
chegou ao cruzador Rio Grande do Sul no dia 7 e, na manhã
seguinte, já havia derrubado 160 marinheiros. Entre 10 e 20 de setembro, 95% da tripulação estava doente.
A gripe matou 20 milhões de pessoas ao redor do mundo – tanto quanto a guerra em quatro anos. Dos 2 mil marinheiros
brasileiros, 156 morreram. No Brasil, a doença matou o presidente eleito, Rodrigues Alves. Para a publicação inglesa The Sphere,
"Influenza ou La Gripe podia se tornar entre os ingleses mais mortal do que uma ocupação inimiga ou mais implacável e
destrutiva do que os hunos". A frota brasileira, que fora paralisada pela doença, só conseguiu chegar à Europa em 10 de
novembro, um dia antes do armistício que pôs fim à guerra. /M.G.
A ÚLTIMA OFENSIVAO jovem tenente Ernst Jünger
saltou na primeira trincheira.
Virando-se de costas depois de
invadi-la, ele se deparou com
um oficial inglês, que trazia a
túnica desabotoada, de onde
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 64/69
pendia a gravata por meio da
qual ele o agarrou e o jogou
em um parapeito de sacos de
areia. Atrás dele, a cabeça
grisalha de um major surgiu e
gritou: "Abata esse cachorro".
Tenente das Sturmtruppen, as
tropas de assalto alemãs,
Jünger conta em seu livro
Tempestades de Aço o que se
seguiu. "Alguém pensaria
estar em meio a um
naufrágio", escreveu. Os
ingleses fugiam por todo lado.
"Eu apertava como em um
sonho o gatilho de meu
revólver, mas fazia tempo que
eu não tinha mais balas no
tambor. Um homem ao meu
lado jogava granadas entre os
fugitivos."
Os alemães voltaram a atacar
na frente ocidental em 21 de
março de 1918. Desde 1916,
não faziam isso. A saída da
guerra da Rússia e da
Romênia permitiu a Berlim
transferir tropas para a
França e lançar um grande
ataque antes que a presença
do exército americano na
Europa mudasse
definitivamente a balança de
forças da guerra. Era,
portanto, a última chance de
vitória de Berlim.
Naquela manhã, Jünger conta
que o combate foi liquidado
em um minuto. "Os ingleses
saltaram fora de suas
trincheiras e batalhões
inteiros fugiram pelos
campos." Transformaram-se
em alvo fácil para o inimigo e
em pouco tempo os campos se
coalharam de corpos. Os soldados alemães haviam avançado após cinco horas de bombardeio, muito pouco para os padrões da
guerra. A neblina permitiu que as Sturmtruppen se aproximassem das metralhadoras inglesas sem ser notadas. Das 38.512
baixas inglesas no primeiro dia da ofensiva alemã, 21 mil eram de soldados feitos prisioneiros. Os ataques alemães produziram
um avanço que não se via desde 1914 – foram 64 quilômetros em direção ao Rio Somme.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 65/69
A frente ocidental18 de julho a 3 de outubro de 1918
O primeiro ataque, batizado como Michael, terminou em 5 de abril. Quatro dias depois, o general Erich Ludendorff lançou o
segundo, chamado Georgette. Dessa vez, o alvo era a área dos Flandres, na Bélgica. Apenas 19 quilômetros foram conquistados.
O próximo ataque alemão foi a Operação Blücher, lançada em 21 de maio no Chemin des Dames. Os alemães chegaram a ficar a
90 quilômetros de Paris, que bombardearam com sua artilharia. Mas foram detidos por americanos e senegaleses em Chateau
Thierry. Juntos os dois lados perderam aproximadamente 800 mil homens. Pressionado pela fome e pela debacle de seus
aliados, a Alemanha de Guilherme II não aguentaria muito tempo mais. / M.G.
A ERA DA REVOLUÇÃO MUNDIAL
Após a queda dos Romanov,
uma questão atormentava os
aliados: por quanto tempo a
Rússia permaneceria na
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 66/69
guerra. Seu exército se
desfazia com milhares de
deserções. A pregação
revolucionária seduzira parte
da tropa com a perspectiva da
paz imediata. Foi então que o
desastroso ministro do
exterior alemão, Artur
Zimmermann, resolveu ter
mais uma ideia. Ele
convenceu o kaiser Guilherme
II a permitir que Lenin
deixasse a Suíça, onde estava
exilado, e atravessasse a
Alemanha em um trem
lacrado em direção à Rússia.
Sua aposta era que a ajuda ao
revolucionário marxista
contribuiria para a retirada
dos russos da guerra.
A Revolução de Fevereiro
colocara no poder uma série
de governos provisórios
liderados primeiro pelos
moderados do partido Kadete
e, depois, pelo trabalhista
Alexander Kerensky. Até que
em 7 de novembro (25 de
outubro pelo calendário
russo) chegou a vez dos
bolcheviques. Sob a liderança
de Leon Trotsky, organizador
do Comitê Militar
Revolucionário de Petrogrado,
e orientados por Lenin, os
bolcheviques se sublevaram.
Tomaram a Fortaleza de
Pedro e Paulo e o Palácio de Inverno, derrubando o último governo Kerenky.
A aposta de Zimmermann parecia correta. Em pouco tempo, os bolcheviques retiraram a Rússia da guerra por meio do Tratado
de Brest-Litovsky. A chegada ao poder dos marxistas em Moscou se voltaria, no entanto, como um bumerangue contra as
potências centrais. Berlim seria convulsionada no fim da guerra por uma revolução que derrubaria o kaiser e inauguraria a
República de Weimar, sob o comando do social-democrata Friedrich Ebert. A Áustria-Hungria seria dilacerada por movimentos
nacionalistas e Viena assistiria a uma revolta comunista, logo sufocada. Em 21 de março de 1919, o poder na Hungria cairia nas
mãos dos comunistas liderados por Bela Kun. Durante 133 dias, uma República Soviética comandou o país até que tropas
romenas o invadiram e depuseram o governo. Estava aberta a era da revolução mundial.
Em março de 1918, o ex-exilado russo escreveu: “Esta violência constituirá um período histórico-universal, toda uma era de
guerras com o caráter mais diverso – guerras imperialistas, guerras civis dentro de países, entrelaçamento de uma e outras,
guerras nacionais, de libertação das nacionalidades […]. Esta época – de gigantescas bancarrotas, de violentas soluções bélicas
em massa, de crise – começou”. Por 74 anos, o regime que Lenin inaugurara com a ajuda do conservador alemão Zimmermann
se manteria na Rússia e difundiria o espectro da revolução pelo mundo. /M.G.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 67/69
A frente ocidental18 de julho a 3 de outubro de 1918
Europa atual
A GUERRA QUE DUROU 31 ANOSA vitória aliada começou no
Bosque de Belleau, no Marne.
Os franceses recuavam diante
do ataque alemão e cruzaram
com os recém-chegados
marines. “É melhor vocês
recuarem”, disse um oficial
francês ao capitão Lloyd
Willlians. “Recuar? Raios, nós
acabamos de chegar”. O
contra-ataque dos fuzileiros
navais americanos entrou
para a história da corporação.
Era 4 de junho de 1918. Os
americanos começavam a
chegar em grande número à
frente de combate na Europa.
Pouco mais de um mês depois,
o general Charles Mangin,
conhecido como Açougueiro,
lançou seu exército – o 10.º
francês – adiante em Villers-
Cotterets. O bombardeio
começou às 4h35. A infantaria
avançou atrás da barragem da
artilharia acompanhada por
centenas de tanques leves
Renault FT17. Armados com
um canhão de calibre 37 mm e
com uma metralhadora, os
tanques levavam uma
guarnição de dois homens e
transpunham rampas de até
45° de inclinação e valas de
até 1,8 metro de largura. A
uma velocidade de 7
quilômetros por hora, eles
ajudaram a levar franceses e
americanos de volta até
Soissoons, no Vale do Aisne.
Os aliados começaram a
expulsar o exército de Berlim
da França. Exaustos, os
alemães viram o total de seus
homens cair de 5,1 milhões
para 4,2 milhões depois da
ofensiva da primavera. Eles
haviam produzido
pouquíssimos tanques – o
gigante A7V. Dependiam
principalmente dos veículos
ingleses e franceses
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 68/69
Guilherme II, o último imperador
alemão
Em 31 de março de 1905, o kaiser desembarcou em
Tânger e declarou seu apoio ao sultão do Marrocos contra
a ação francesa – em acordo com a Inglaterra – de
expandir as áreas sob seu controle no norte da África. As
capturados. Seus inimigos
reuniram perto de Amiens 530
tanques ingleses e 70
franceses para atacar no dia 8
de agosto ao lado de soldados
canadenses e australianos. O
sucesso foi gigantesco. Em
quatro dias, os alemães
tiveram de recuar até a região
que ocupavam no começo do
ano. “Foi o dia negro do
exército alemão”, disse o
general Erich Ludendorff.
Depois disso, uma sucessão de
ofensivas aliadas levou os
alemães a procurar a paz em
outubro. Derrotado, o exército
germânico recuou para suas
fronteiras. No dia 26 de
outubro, Ludendorff, que
rejeitava a negociação de paz,
foi forçado a renunciar. A
revolução batia às portas de
Berlim. O kaiser foi obrigado
a renunciar. O armistício
entre os alemães e os aliados foi assinado em um vagão ferroviário em 11 de novembro, em Compiègne, na França.
Mais de 600 cemitérios da 1.ª Guerra existem hoje na França, que os
tornou sepulturas perpétuas e contratou mais de mil jardineiros para
fazer sua manutenção. Os britânicos perderam quase 1 milhão de
soldados na guerra. Os franceses tiveram 1,7 milhão de mortos, os
austro-húngaros 1,5 milhão de militares, os alemães 2 milhões, os
russos 1,7 milhão, os italianos 460 mil e também se contam aos
milhares as mortes de turcos, de americanos e de outras nações
envolvidas na conflagração.
26/7/2014 100 Anos | Primeira Guerra Mundial
http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/ 69/69
duas potências coloniais queriam
pôr fim à rivalidade entre elas e
decidiram dividir as áreas de
influência de cada uma na África,
o que deixou a França livre para
expandir seu império do Oeste da
Argélia para o Marrocos. O rei da
Prússia e imperador da Alemanha
tinha poucos interesses no
Magreb. O homem que chegara ao trono em 15 de junho
de 1888 apoiava o caminho novo da política internacional
alemã, definida pelo chanceler Bernard von Bülow: a
Weltpolitik (política mundial), que representava um triplo
desafio à hegemonia britânica com seus planos de
expansão comercial, marítima e colonial. Sua decisão de
dar apoio incondicional à Áustria-Hungria contra a Sérvia
é considerada uma das causas diretas da guerra. Reagiu à
mobilização do exército russo declarando guerra à Rússia
e invadiu a Bélgica, violando a neutralidade do país para
atacar a França – aliada russa –, o que fez a Inglaterra
entrar no conflito. Deixou a condução da guerra aos seus
generais, e a derrota deles o fez abdicar. Era 9 de
novembro, e a Alemanha mergulhara em uma agitação
social que parecia levá-la à revolução. Dois dias depois, o
armistício entre os beligerantes pôs fim à guerra. Deposto,
Guilherme IIviveria recluso no seu exílio na Holanda.
Dali, viu Hitler chegar ao poder e iniciar a guerra em
1939. Morreu em 1941, uma semana antes de a Alemanha
invadir a União Soviética. / M.G.
E de quem foi a culpa por essa catástrofe? “Se quisermos apontar o
dedo desde o século 21, nós podemos acusar esses que levaram a
Europa em direção à guerra de duas coisas. Primeiro, pela falta de
imaginação em não perceber o quão destrutivo um conflito assim
poderia ser e segundo por falta de coragem para resistir àqueles que
diziam não haver outra opção se não a guerra. Sempre há o que
escolher”, escreveu a historiadora canadense Margaret Macmillan em
The war that ended peace - The road to 1914 (há uma edição
portuguesa: A guerra que acabou com a paz).
A guerra iniciara aquilo que o historiador inglês Eric Hobsbawn
chamou de “era do massacre”, aberta por um conflito travado em
“torno de metas ilimitadas”. Ela ia abrir, na opinião dele, uma única
era de conflito que só terminaria em 1945, na 2.ª Guerra.
“Retrospectivamente, os 31 anos desde o assassinato do arquiduque
austríaco em Sarajevo até a rendição incondicional do Japão devem
parecer uma era de devastação comparável à Guerra dos 30 Anos no
século 17 na história alemã”, escreveu Hobsbawn.
A 1.ª Guerra não resolveria nada, não acabaria com as guerras ou
garantiria a autodeterminação dos povos. Mas, ao acabar com
impérios, semear revolução e guerras e reordenar os Bálcãs e o
Oriente Médio, ela lançaria as sementes de conflitos que sacodem o
mundo até hoje. “Em resumo”, escreveu Strachan, “ela não mudou
apenas a Europa, mas o mundo no século 20; ela certamente não foi
uma guerra sem significado ou objetivos.” /M.G