Escapes Possíveis na Produção da Cidade
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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE ARQUITETURA
Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Gabriela Leandro Pereira
ESCAPES POSSÍVEIS NA PRODUÇÃO DA CIDADE
Aproximações Cartográficas do Bairro Alice Coutinho
Salvador
2010
2 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE ARQUITETURA
Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
2
Gabriela Leandro Pereira
ESCAPES POSSÍVEIS NA PRODUÇÃO DA CIDADE
Aproximações Cartográficas do Bairro Alice Coutinho
Dissertação apresentada em cumprimento
às exigências para obtenção do título de
mestre junto ao Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo –
área de concentração Urbanismo, subárea
Processos Urbanos Contemporâneos –
sob orientação da Profª. Drª. Ana Maria
Fernandes.
Salvador
2010
3 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE ARQUITETURA
Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
3
Gabriela Leandro Pereira
ESCAPES POSSÍVEIS NA PRODUÇÃO DA CIDADE
Aproximações Cartográficas do Bairro Alice Coutinho
Dissertação apresentada em cumprimento
às exigências para obtenção do título de
mestre junto ao Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo –
área de concentração Urbanismo, subárea
Processos Urbanos Contemporâneos –
sob orientação da Profª. Drª. Ana Maria
Fernandes.
Aprovado em ___________________________________________
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Ana Maria Fernandes – Universidade Federal da Bahia - UFBA
___________________________________________________________________
Paola Berenstein Jacques – Universidade Federal da Bahia - UFBA
___________________________________________________________________
Clara Luiza Miranda – Universidade Federal do Espírito Santo – UFES
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À amada Sofia.
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AGRADECIMENTOS
Ao CNPq pelo apoio parcial financeiro ao trabalho.
À PPGAU-UFBA, por proporcionar encontros tão preciosos e fundamentais para a
elaboração desta dissertação.
À minha orientadora, Ana Fernandes, pelo gentil compartilhamento de seu
conhecimento e pela confiança em mim depositada na conclusão deste projeto.
Obrigada pela atenção, carinho e compreensão nos momentos de maior
necessidade.
À Clara e Paola pelas valiosas colaborações e contribuições que auxiliaram não só
no desenvolvimento e finalização do projeto, mas também no despertar para novas
frentes de estudo e possibilidades de prosseguimento.
Às pessoas que encontrei pelo percurso no desenvolver do trabalho. Por cederam
gentilmente seu tempo e colaborarem com a construção deste projeto. Obrigada
especialmente à Jéssica pelo apoio na aproximação com os moradores de Alice
Coutinho. Obrigada aos moradores do bairro que me receberam tão bem.
Aos amigos do Programa de Pós Graduação, muito mais que companheiros
acadêmicos. Obrigada à Lili, Li, Chu, Clara e Diego pelos momentos compartilhados
em minha estadia em terras baianas. À Cacá, Pedro, Tales e Laura pelo aconchego
com que receberam a mim e Sofia nos retornos necessários a Salvador para
conclusão do mestrado. Obrigada pelo carinho de sempre.
À Ivana pela parceria de sempre, amizade de sempre, presença constante mesmo
que distante.
À minha família, por cercar-me de todo carinho e apoio necessários à conclusão
desta empreitada. Tias, tios, primos e avós. Obrigada pela torcida incessante e por
amarem-me tanto assim.
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Ao meu pai, pela confiança incondicional em todos os meus sonhos.
À Mari, por partilhar do mesmo espaço e alegrá-lo com sua presença.
À minha mãe, por conceder-me os mais ricos presentes que um filho pode receber:
raízes e asas.
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“Não vês as folhas das árvores, Aurel? Não vês que ainda há um
mundo ao redor de nós? Se o que vês a olho nu não te agrada,
podes cegar-te. Embora para mim, isso seria o mesmo que
blasfêmia”
(Joestein Gaardner, 1997)
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo realizar uma leitura da cidade contemporânea a
partir de suas possibilidades de escape, espacializados como alternativa ou reação
a modelos pré-estabelecidos, formais ou oficiais. Seguindo os passos e espaços por
onde circulam os praticantes ordinários da cidade, busca-se abordar a diversidade
das elaborações criadas por/com eles no meio urbano. Utiliza-se para isso a
cartografia como metodologia alternativa com o intuito de produzir um conhecimento
sobre este tema pautado na experiência cotidiana, no espaço-tempo da lentidão
inventado pelo homem ordinário, no qual objetos, códigos e usos são alterados, e
reapropriados com o objetivo de viver do melhor modo possível. À riqueza da
experiência social não cabe a redução a que lhe é conferida e, menos ainda, a
invisibilidade a que são relegados os homens comuns. Trazer para o visível
iniciativas e movimentos alternativos faz-se necessário para que novos
conhecimentos sobre estas opacidades possam ser produzidos. Sob essa ótica, a
cartografia aproxima-se do bairro Alice Coutinho, em Cariacica (ES) com o intuito de
refinar o entendimento sobre este espaço produzido a partir de um acampamento
em terras da Companhia Habitacional do Espírito Santo – COHAB, promovido pelo
Movimento Nacional de Luta pela Moradia em 1996.
Palavras-chave: escapes urbanos, cotidiano, movimento de moradia, ocupação
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ABSTRACT
The purpose of this paper is to carry out a reading of the contemporary city from its
escapes possibilities of spacial dimensions as an alternative or reaction of pre-
established models, formal or official. Following the steps and spaces where the
ordinary practitioners walk around we seek to talk about the diversities of the
productions created by/with them in the urban environment. Its used to this the
cartography as a alternative methodology aiming to produce a knowledge about this
subject based on a daily basis experience, in the space-time laziness invented by
the ordinary men in which objects, codes and its uses are altered and reborrowed
aiming the best way of living. In the richness of the social experience doesn't fit its
reduction, even less the invisibility which are banished the common men. To br ing
up alternative initiatives and movements become necessary to the production of new
knowledge about this opacities. In this view, the cartography approaches to Alice
Coutinho, in Cariacica (ES) aiming to improve the understanding about the spaces
produced from COAB settlements, promoted by the Movimento Nacional de Luta
pela Moradia em 1996.
Key-words: urban escapes, daily basis experience, housing organization,
settlement
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Mapa com a localização das informações depositadas............................. 39
Figura 2 – Informações agrupadas por categoria. ...................................................... 40
Figura 3 - Mapa das microrregiões do Espírito Santo. Destacada em vermelho a
Região Metropolitana da Grande Vitória. .................................................................... 43
Figura 4 - Mapa da Região Metropolitana da Grande Vitória ..................................... 44
Figura 5 – Esquema dos escapes percorridos na Aproximação cartográfica 01. ..... 49
Figura 6 - Esquema da relação entre os escapes produzidos, quem o produz, suas
reivindicações e localização na cidade. ...................................................................... 50
Figura 7 - Movimento Hip Hop como escape: Grafite. Esquema do percurso e dos
encontros ...................................................................................................................... 52
Figura 8 - Grafite sendo explorado enquanto seu potencial técnico, por Renato
Pontello, na Rua João Damasceno, Zona Sul, São Paulo. ........................................ 54
Figura 9 - Evolução dos Loteamentos no município de Cariacica. ............................ 58
Figura 10 – Movimento Hip Hop como escape. Esquema do percurso e dos
encontros ...................................................................................................................... 59
Figura 11 - Panfleto de divulgação do Encontro de B-Boys e B-Girls ....................... 65
Figura 12 - Protestos como escape. Esquema do percurso e dos encontros ........... 69
Figura 13 - Protestos de moradores na Rodovia do Contorno na Serra [32]. ........... 70
Figura 14 - Atropelamento na Rodovia do Contorno em Cariacica [30]. ................... 70
Figura 15 - Sobre as diferentes velocidades na cidade. Serra, ES. .......................... 72
Figura 16 – Comércio Informal como escape. Esquema do percurso e dos encontros
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...................................................................................................................................... 77
Figura 17 - Imagem de satélite de Campo Grande, Cariacica. Destaque para o
recorte da Av. Expedito Garcia, principal via do bairro. .............................................. 80
Figura 18 - Esquema da concentração de vendedores ambulantes identificados na
Av. Expedito Garcia (trecho B). ................................................................................... 81
Figura 19 - Esquema da classificação do tipo de suporte utilizado pelos vendedores
no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B). ............................................................ 83
Figura 20 - Esquema da classificação quanto a mobilidade dos vendedores no
recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B)................................................................... 84
Figura 21 - Esquema da classificação em relação ao tipo de mercadoria vendida
pelos ambulantes no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B). .............................. 85
Figura 22 – Festas religiosas como escape. Esquema do percurso e dos encontros
...................................................................................................................................... 88
Figura 23 - Localização das bandas de congo e das comunidades rurais do
município de Cariacica ................................................................................................. 90
Figura 24 - Ocupação como escape. Esquema do percurso e dos encontros .......... 95
Figura 25 – Movimentação de ciclistas em Cariacica Sede ....................................... 96
Figura 26 - Acesso principal de Alice Coutinho .......................................................... 96
Figura 27: Imagem produzida a partir de imagens do Google Earth, delimitação das
ZEIS no PDM Cariacica (2009) e inserção de marcadores localizando Alice
Coutinho; os municípios vizinhos; Campo Grande; limite da área urbana. ............... 98
Figura 28 - Localização de Alice Coutinho no Território Base: Grande Vitória ....... 105
Figura 29 – Imagem ilustrativa simulando as informações sobrepostas sobre Alice
Coutinho produzidas em campo. ............................................................................... 112
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Figura 30 – Imagem ilustrativa simulando o traçado de Alice Coutinho com
informações e impressões produzidas em campo organizadas de forma legível que
auxiliou-nos nas análises sobre o bairro. .................................................................. 113
Figura 31 – Quadro ilustrativo simulando as informações expostas e agrupadas e
algumas articulações e conexões realizadas entre elas. ......................................... 115
Figura 32 - Esquema dos deslocamentos para a ocupação em relação ao local de
origem de seus moradores ........................................................................................ 119
Figura 33 - Sobreposição da imagem da área de sua ocupação e desenho de um
traçado próximo ao realizado..................................................................................... 131
Figura 34 – Esquema dos fluxos que atravessaram o processo de consolidação de
Alice Coutinho construído a partir das informações fornecidas por alguns moradores.
.................................................................................................................................... 132
Figura 35 - Esquema relacionando os ritmos das negociações com a COHAB-ES e a
velocidade da consolidação da ocupação em Areinha............................................. 132
Figura 36 – Desenho de Seu João - Projeto para o bairro ....................................... 135
Figura 37 - Início da ocupação no bairro Alice Coutinho .......................................... 137
Figura 38 - Praça no início da ocupação em Alice Coutinho.................................... 137
Figura 39 - Início da ocupação em Alice Coutinho. .................................................. 138
Figura 40 - Início da ocupação em Alice Coutinho. .................................................. 138
Figura 41 – Moradores e representantes do MNLM nos trabalhos do início da
ocupação em Alice Coutinho com a máquina alugada através da contribuição dos
moradores................................................................................................................... 139
Figura 42 - Casa de alvenaria na frente e o barraco de tábua nos fundos.............. 142
Figura 43 - Esquema das etapas de consolidação do bairro segundo alguns de seus
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moradores ................................................................................................................... 143
Figura 44 - Nome das ruas do bairro. ........................................................................ 144
Figura 45 - Esquema das etapas de consolidação do bairro segundo alguns de seus
moradores ................................................................................................................... 145
Figura 46 - Residência e estabelecimento comercial informal em uso
simultaneamente. ....................................................................................................... 152
Figura 47 - Igreja Evangélica Assembléia de Deus .................................................. 155
Figura 48 - A mais antiga Igreja Assembléia de Deus de Alice Coutinho ................ 155
Figura 49 - Ponto de Pregação utilizando a garagem da casa do próprio pastor. .. 156
Figura 50 - Igrejas apontadas por um morador. Ressalva-se que os pontos de
pregação não foram todos indicados, pois este morador recusa-se a incluí-los na
mesma categoria que as igrejas. ............................................................................... 156
Figura 51 - Crianças brincando na Praça de Alice Coutinho em dia de reunião com o
Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Dezembro, 2008. ................................ 159
Figura 52 - Reunião do Movimento Nacional de Luta pela Moradia com os
moradores debaixo do Juá, na Praça em Alice Coutinho. Dezembro, 2008. .......... 160
Figura 53 - Reportagem do Jornal A tribuna (12/03/2009) ....................................... 167
Figura 54 - Espaço da horta comunitária sendo preparado. Dezembro, 2008. ....... 169
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SUMÁRIO
Introdução ..................................................................................................................... 16
1 A Produção Da Cidade e Seus Escapes: Hibridismos ........................................ 19
1.1 A cidade a partir da constituição dos seus territórios: dos territórios ―formais‖
aos territórios alternativos ........................................................................................ 23
1.2 A cidade a partir das características do espaço: luminosos e opacos; lisos e
estriados .................................................................................................................... 25
1.3 A cidade a partir de quem a produz: Império, Agentes Hegemônicos,
Multidão e Homens Lentos ....................................................................................... 27
1.4 A cidade a partir das subjetividades .............................................................. 29
1.5 A Cartografia como escape metodológico ..................................................... 31
2 Aproximação Cartográfica 01: Território Base: Grande Vitória (ES) .................. 34
2.1 Procedimentos Metodológicos 01 .................................................................. 34
2.1.1 Tempo ...................................................................................................... 34
2.1.2 Espaço ...................................................................................................... 35
2.1.3 Procedimentos ......................................................................................... 35
2.2 Percurso .......................................................................................................... 42
2.2.1 Deslocamento 01: Jardim da Penha – Casa da Juventude ................... 51
2.2.2 Deslocamento 02: Casa da Juventude – Terminal de Laranjeiras ........ 56
2.2.3 Deslocamento 03: Terminal de Laranjeiras – Casa da Juventude ........ 69
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2.2.4 Deslocamento 04: Terminal de Itacibá – Terminal de Campo Grande .. 76
2.2.5 Deslocamento 05: Terminal de Campo Grande – Roda D‘Água ........... 87
2.2.6 Deslocamento 06: Roda D‘Água – Alice Coutinho ................................. 94
3 Aproximação cartográfica 02: Micro-Universo Ocupação Alice Coutinho
(Cariacica – ES) ......................................................................................................... 105
3.1 Procedimentos Metodológicos 02 ................................................................ 108
3.1.1 Tempo .................................................................................................... 108
3.1.2 Espaço .................................................................................................... 109
3.1.3 Procedimentos ....................................................................................... 109
3.1.4 Os encontros .......................................................................................... 116
3.2 Movimentos ................................................................................................... 118
3.2.1 1º Movimento: Tempo da memória ....................................................... 119
3.2.2 2º Movimento: Tempo da ação .............................................................. 129
3.2.3 3º Movimento: Tempo da esperança .................................................... 162
Articulações ................................................................................................................ 171
Bibliografia .................................................................................................................. 173
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INTRODUÇÃO
Pensar em possibilidades de escapes na produção da cidade contemporânea, tão
rica, complexa, múltipla, inquieta e pulsante, se faz necessário uma vez que ela
apresenta-se como o lugar tanto da sofisticação, quanto das perversidades
(SANTOS, 2005). Faz-se necessário voltar o olhar para caminhos, iniciativas, ações,
dinâmicas, que se apropriem das brechas, fissuras, escapes existentes na lógica do
fazer cidade dominada pela subjetividade capitalística1 (GUATTARI e ROLNIK,
2005). Estas fugas são determinantes para a constituição do espaço e das relações
sociais na cidade. Apresentam-se como um emaranhado de práticas, relações,
ações, situações que vão muito além da dualidade ―formal‖ X ―informal‖, comumente
apontadas como formas/ maneiras opostas ou contraditórias de produção de cidade.
O formal e o informal sobrepõem-se e contaminam-se nos diversos estratos da
experimentação urbana de forma tal que torna-se impossível entendê-los e
identificá-los como elementos dissociados.
A partir de três capítulos estruturais pretende-se tratar da questão dos escapes
possíveis na produção da cidade contemporânea:
1. A Produção Da Cidade e Seus Escapes: Hibridismos
2. Aproximação Cartográfica 01: Território Base: Grande Vitória (ES)
3. Aproximação cartográfica 02: Micro-Universo Ocupação Alice Coutinho
(Cariacica – ES)
O primeiro capítulo tem como objetivo apresentar o referencial teórico que norteia o
trabalho. No segundo capítulo, parte-se em direção ao bairro Alice Coutinho em
1 Ao utilizar a expressão capitalística, Guattari refere-se não apenas as sociedades capitalistas, mas
amplia o conceito estendendo-o até às economias socialistas que dele dependem. Aproximam-se pelo mesmo modo de produção de subjetividade e da relação com o outro. (GUATTARI & ROLNIK, 2005).
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meio a outras possibilidades de escapes na produção da cidade utilizando-se como
território base para esta investigação um percurso que foi se estabelecendo na
região da Grande Vitória (ES). No terceiro opta-se por uma aproximação do bairro,
localizado no município de Cariacica (ES), onde a questão da ocupação urbana para
fins de moradia (―invasão‖) é lida como escape.
Em Articulações encontram-se as últimas considerações sobre os pontos abordados
nos capítulos anteriores, a fim de apresentar algumas conexões finalizando a
dissertação ao mesmo tempo em que abre para outras e novas possibilidades e
leituras sobre os escapes.
Optou-se por iniciar o trabalho pela discussão sobre a produção da cidade
contemporânea tomando como base a híbrida relação entre a produção formal,
oficial da cidade e suas alternativas. O referencial teórico utilizado para o
desenvolvimento desta questão apóia-se em alguns autores e temas, dos quais
destacam-se:
A cidade a partir da constituição dos seus territórios: dos territórios
―formais‖ aos territórios alternativos
A cidade a partir das características do espaço: luminosos e opacos; lisos
e estriados
A cidade a partir de quem a produz: Império, Agentes Hegemônicos,
Multidão e Homens Lentos
A cidade a partir das subjetividades
Mais do que apontar posições e possibilidades duais, opostas ou contraditórias de
produção da cidade, este capítulo tem como objetivo apontar, exatamente, a
complexidade dessas relações que se sobrepõem, contaminam-se e coexistem
permeando e construindo o meio urbano.
A partir do embasamento teórico apresentado no primeiro capítulo, parte-se para o
segundo com o intuito de exercitar o olhar buscando, em experiências
compartilhadas de territorialização, identificar escapes possíveis na produção da
cidade contemporânea.
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Com o objetivo de aprofundar a investigação, optou-se pela produção de uma
cartografia do bairro Alice Coutinho, entendendo-o como possibilidade de reação à
produção hegemônica da cidade. Penetramos por este universo através das falas
dos moradores do bairro, acompanhando-os no movimento das opacidades, o qual
subdividimos em três momentos/movimentos de aproximação: tempo da memória,
tempo da ação e tempo da esperança. A aproximação com os moradores consiste
em uma breve apresentação daqueles que contribuíram mais diretamente com a
pesquisa, passando pelo processo de construção da ocupação, até sua e
consolidação e indícios de um futuro esperançoso.
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1 A PRODUÇÃO DA CIDADE E SEUS ESCAPES: HIBRIDISMOS
Pensar a cidade na contemporaneidade requer a utilização de um repertório
conceitual que a entenda enquanto sua complexidade sem reduzi-la a um conjunto
de relações superficializadas. A cidade contemporânea constitui-se em uma
multiplicidade de elementos heterogêneos que co-existem, sobrepõem-se,
contaminam-se, movimentam-se e resignificam-se a todo o momento. É abrigo e é,
ela mesma, uma multiplicidade de territorialidades, temporalidades e velocidades,
que se articulam e se agenciam constantemente. Mais do que mera portadora de
infra-estruturas físicas e materiais, a cidade é a sobreposição de relações, funções
(produtivas, políticas, disciplinares e simbólicas), escalas (espaciais e temporais/
geográficas e históricas), fluxos, territórios e territorialidades.
Para buscar dar conta desse entendimento da cidade como possibilidade, o conceito
de ―escape‖ atravessa e norteia toda a dissertação. O conceito foi utilizado aqui não
apenas como um substantivo, sinônimo de fuga, ainda que esta definição não seja
incabível. Denominaremos escapes as apropriações do urbano imbuídas de
reivindicações espacializadas, de forma tal que coloque em xeque a ordem sócio-
espacial vigente, ditada por uma ideologia hegemônica (seja do mercado imobiliário,
do mercado fonográfico, da indústria do entretenimento, das relações comerciais,
entre outras).
Entendemos também que nem todas essas criações, essas alternativas adotadas
para se viver na cidade, partam exclusivamente de uma postura intencional e
ideológica de enfrentamento. Podem partir da falta de opção ou da impossibilidade
de serem inseridas na lógica vigente. Ou pode ser ainda que a opção pelo escape
nasça do desejo de inserção muito mais do que de reação ou enfrentamento. De
qualquer forma, este processo e movimento criativos que incidem sobre o fazer
cidade como uma fuga possível, faz parte do que chamaremos aqui de escape.
Apesar da opção de tomarmos por investigação neste trabalho aqueles movimentos
que comumente são entendidos como informais, entendemos que existe que gama
de possibilidades de realização de escapes. Mesmo em algumas estruturas
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estabelecidas, formulam-se apropriações escapatórias em diferentes dimensões e
com variadas intensidades. Adquirem contornos mais rígidos quando surgem como
dobra no interior do aparato legal oficial, vigente no país, por exemplo, quando em
conquistas como a inclusão do Direito à Moradia no rol dos direitos sociais,
garantido pela Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que alterou
a redação do art. 6º da Constituição Federal; a criação do Estatuto da Cidade como
marco legal-urbanístico em 2001; e a criação do Conselho Gestor do Fundo
Nacional de Habitação de Interesse Social. Uma vez constituídos legitimam
reivindicações de uma coletividade. Em outra dimensão, encontramos ao voltarmos
o olhar para a produção arquitetônica, a obra da arquiteta Lina Bo Bardi. Incorporada
na produção formalizada por ela, a lógica escapatória existente em sua obra
apresenta-nos um relato composto por elementos heterogêneos, memórias e ações,
produzindo uma arquitetura que tem por interesse trazer para a esfera do visível
aquilo que era relegado ao segundo plano e ―recusado‖ pela ―civilização‖, como a
inventividade da cultura popular brasileira2. Podemos entender a produção de Lina
inserida na dimensão dos escapes formalmente estabelecidos e aceitos na produção
oficial da cidade.
Estas aberturas permitem que olhemos para a cidade como uma produção nem tão
rígida e nem tão controlada. Existe de fato a possibilidade de subversão da lógica
vigente. Os territórios são flexíveis, são movimentos, ainda que se encontrem em
determinados momentos estabilizados. A partir de novos fatores voltam a se
desestabilizar. Como veremos nos capítulos seguintes, a cidade então se apresenta
permeada por fluxos e refluxos que apontam para direções convergentes e
divergentes, configurando uma cidade que tem sido produzida predominantemente
por uma lógica ancorada no modo de produção da subjetividade capitalística, mas
que, no entanto, encontra em diversos espaços, possibilidades de enfrentamento,
criação e ação. A investigação dos escapes implica na possibilidade de novos
protagonistas, principalmente locais e regionais, virem à tona na cena política e
2 OLIVEIRA, 2006.
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torna necessário considerarmos a imbricação de escalas a que estas novas
territorialidades estão submetidas. A partir destas leituras e deslocamentos,
conformam-se novos territórios e novas territorialidades. São muitas e diferentes as
nuances da experimentação que permeiam os espaços do urbano se consideramos
a multimensionalidade da vida. É preciso lutar contra o desperdício destas
experiências que, em geral, são muito mais variadas do que a tradição científica e
filosófica considera3.
Para encontrarmos estes microprocessos revolucionários, que têm como traço
comum a recusa a subjetivação capitalística, tomamos como ponto de partida
práticas4 que acontecem na dimensão do cotidiano. De Certeau (1994) apresenta o
cotidiano como um espaço-tempo inventado pelo homem ordinário no qual ele
altera objetos e códigos através da sua arte de fazer, suas táticas e práticas. O
homem ordinário se reapropria do espaço e usa-o a seu jeito com ampla liberdade a
fim de que possa viver do melhor modo possível a ordem social das coisas5.
Investiremos de sentido alguns personagens urbanos que movem-se pelas cidades
agrupados (ideológica e/ou espacialmente), reinventando territórios e
espacialidades, a fim de identificarmos possíveis vias de acesso que possam nos
conduzir em expedições que adentrem as opacidades em seus diferentes níveis.
Perambulando pela cidade, esbarramos com grafiteiros, moradores/ ocupantes/
invasores de terrenos ou imóveis abandonados, artistas de rua, grupos de
manifestações populares, camelôs, ambulantes, integrantes do movimento hip hop,
minorias organizadas, skatistas, etc. Potência de resistência, potência revolucionária
3 SANTOS, 2006; 2007
4 Para De Certeau (1994), as práticas são constituídas de ―maneiras de fazer‖, pelas quais usuários
se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural. Mais do que lances, golpes ou truques singulares, as práticas são improvisações a partir de um determinado conhecimento. É criação e invenção pautada na aplicação de códigos específicos, não isentas de formalidades. ―Toda sociedade mostra sempre, em algum lugar, as formalidades a que suas práticas obedecem‖.
5 DE CERTEAU, 1994.
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ou potência de Multidão6, estes cuja existência em geral é desconsiderada (no
sentido de se tornarem invisíveis) pela sociedade, trazem para o debate questões
que dizem respeito não apenas a eles, mas ao conjunto da sociedade. Parte de uma
multiplicidade, cada um desses grupos e indivíduos atua sobre o urbano constituindo
territorialidades próprias, particulares e relacionam-se com o espaço de formas
diferenciadas, assim como travam lutas que, independente de suas escalas,
possuem considerável alcance político pelo fato de tenderem a questionar o sistema
de produção de subjetividade dominante.
O espaço urbano para estes praticantes ordinários da cidade (espaço físico, político
e simbólico) implica em reivindicação, reapropriação e subversão frente aos modos
de produção da subjetividade capitalística7.
Muros e fachadas utilizados como suporte para a arte pelos grafiteiros;
Lotes vazios e edificações abandonadas são ocupadas por grupos de sem-
tetos e se tornam lugar de moradia;
Ruas e avenidas transformadas em lugar de rito e do sagrado pelos cortejos e
procissões religiosas;
As calçadas ―mapeadas‖ e ―classificadas‖ pelos camelôs e ambulantes
conforme a intensidade do fluxo de capital em circulação, encarnado nos
múltiplos ―corpos passantes‖;
A periferia como lugar de produção artística e protesto pelo movimento hip
hop;
6 HARDT & NEGRI, 2005.
7 A produção da subjetividade capitalística é apresentada por Guattari (GUATTARI & ROLNIK, 2005),
como um sistema de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo. Para ele, neste modo, a subjetividade apresenta uma natureza industrial, na qual é essencialmente fabricada, modelada, recebida e consumida em escala internacional.
23 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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23
Mobiliários urbanos vistos como obstáculos a serem desafiados pelos
skatistas e praticantes de parkour;
Os centros urbanos e as vias de circulação mais importantes apreendidas
como lugar de articulação política e palco de manifestações para grupos e
minorias organizadas.
Vetores de revoluções moleculares8, estas diferentes possibilidades de
experimentações e práticas urbanas atualizam-se em uma relação espaço-temporal
continuamente alterada por novos e constantes agenciamentos9 (DELEUZE &
GUATTARI, 1995).
A seguir abordaremos alguns conceitos que permearão e ajudarão a construir a
discussão sobre os escapes no trabalho.
1.1 A cidade a partir da constituição dos seus territórios: dos
territórios “formais” aos territórios alternativos
O espaço geográfico10 participa e/ou compõe direta e indiretamente nossas relações
cotidianas através dos seus muros (concretos e simbólicos), fronteiras, fluxos de
imagens e informações, rugosidades, alisamentos. O espaço-território é uma
categoria múltipla: ao mesmo tempo é o espaço concreto, dominado, instrumento de
controle e exploração, ele também é diferentemente produzido e apropriado
8 Guattari (GUATTARI & ROLNIK, 2005) chama de revolução molecular os processos de
diferenciação e os fatores de resistência frente a uma tentativa de controle social que se dá através produção da subjetividade em escala planetária.
9 Um agenciamento comporta componentes heterogêneos, sejam eles de ordem biológica, social,
maquínica, gnosiológica, imaginária. É concebido para substituir o complexo. (GUATTARI & ROLNIK, 2005).
10 O espaço geográfico para o geógrafo Milton Santos (1996) é composto indissociavelmente por um
sistema de objetos e sistema de ações.
24 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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24
concreta e simbolicamente11. Sobre a constituição de territórios na cidade, o
geógrafo Rogério Haesbaert (2006b) aponta para as condições de precariedade a
que foi relegada grande parte da humanidade em função de um território
convenientemente estruturado para a mais eficiente e barata reprodução do capital,
alicerçada em um modelo político econômico neoliberal. A alienação do território em
suas múltiplas formas, é uma das exigências e condições para a produção
capitalista sob a hegemonia do capital financeiro (RIBEIRO, 2005). No entanto, esta
ordem vigente é instável, pautada em uma convivência contraditória, formada por
distintos regimes de produção territoriais de poder, instaurando o que Gonçalves
(2002) denomina de um ―verdadeiro caos sistêmico‖. Existem, no entanto, espaços
para resposta. Como reação a perversidade da estrutura dos territórios
hegemônicos, territórios alternativos se impõem dentro das ordens sociais
majoritárias configurando-se em contra-espaços12 e novos arranjos espaciais
capitaneados por uma base democrática que permite o florescimento da diversidade.
A colagem de forças sociais e lutas políticas ao território marcando trajetos, criando
caminhos e interrompendo os fluxos desejados pelas classes dominantes, elaboram
novas territorialidades (RIBEIRO, 2005). Haesbaert (2006a) ataca o que ele chama
de mito da desterritorialização. Primeiro por entender que todo processo de
desterritorialização implica em um processo de reterritorialização, de forma que essa
desterritorialização absoluta parece não fazer sentido. E segundo por defender que
na contemporaneidade o que ocorre é a potencialização da possibilidade de
vivenciar vários territórios e processos de territorialização simultaneamente,
resultando em uma multiterritorialidade. Vale ressaltar que a vida em si é
multidimensional. No entanto, para o geógrafo, a multiterritorialidade não é uma
condição que abrange a todos de forma uniforme. Uma grande parte da população
ainda luta cotidianamente pela conquista de um território mínimo, o do abrigo.
A abordagem de território realizada por Haesbaert tem como uma de suas
11 HAESBAERT, 2006
12 HAESBAERT, 2006b.
25 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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25
referências o pensamento dos filósofos Deleuze & Guattari, mais explícito quando se
refere aos processos de des-re-territorialização. Para os filósofos, território é
sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma, um conjunto de
projetos e representações os quais desembocam uma série de comportamentos e
investimentos, nos tempos e espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos
(GUATTARI & ROLNIK, 2005). O território de Haesbaert incorpora a produção de
subjetividade e os territórios existenciais dos filósofos, porém apresenta uma
dimensão espacial e materializada que raramente é incorporada pelos filósofos.
Embora utilizemos em nossas abordagens, as duas áreas de conhecimento –
geografia e filosofia – faz-se necessária esta distinção inicial. Mais adiante
abordaremos especificamente a relação entre produção de subjetividade e a
produção da cidade.
1.2 A cidade a partir das características do espaço: luminosos e
opacos; lisos e estriados
Santos e Deleuze & Guatarri continuam a inspirar a construção de nosso caminho
analítico através de categorizações do espaço. Ainda que Santos tenha em sua
base um discurso de cunho marxista e estruturalista, enquanto Deleuze & Guattari
destacam-se como teóricos do pós-estruturalismo, é possível encontrar em seus
pensamentos possibilidades de diálogo. Sugere-se aqui uma aproximação de duas
das categorias de análise do espaço propostas por Santos, o espaço luminoso e o
espaço opaco (1994, 1996, 2000) e dos conceitos de espaços lisos e estriados
trabalhados por Deleuze & Guattari (1997).
Deleuze & Guattari afirmam que a cidade é o espaço estriado por excelência.
Justificam isso pelo fato de considerarem-na um espaço delimitado, instituído pelo
aparelho do estado, regrado por medidas métricas, dimensionais, repartido segundo
intervalos assinalados. No entanto, ainda que dominante, essa força de estriagem
propicia a restituição de espaços lisos, que surgem como revidação, voltando-se
―contra‖ a própria cidade em forma de ―imensas favelas móveis, temporárias, de
26 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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26
nômades e trogloditas, restos de metal e de tecido patchwork, que já nem sequer
são afetados pelas estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação‖ 13. ―Uma
miséria explosiva que a cidade secreta‖. Este espaço liso, que surge nas fissuras da
cidade tradicional, subvertendo e rompendo a lógica da estriagem, é o espaço das
multiplicidades não métricas; dos espaços direcionais, não determinados por pontos,
mas por trajetos; ocupados por acontecimentos; espaços de afetos mais que de
propriedades; espaços intensivos, mais que extensivos. Enquanto o espaço
tradicional da cidade é o espaço do progresso, o espaço liso é o espaço do devir,
das possibilidades infinitas e do indeterminado. Estes dois espaços não são, no
entanto opostos, e nem formam um dualismo estrutural embora apresentem
naturezas diferentes. A todo o momento estão em comunicação, contaminam-se,
contagiam-se e se metamorfoseiam, ainda que de maneiras distintas, tendo como
resultado misturas que não são necessariamente simétricas e que se dão através de
movimentos inteiramente diferentes de ambos os espaços.
Para Santos a cidade é o lugar da co-presença e da diferença14. As áreas luminosas
são constituídas ―ao sabor da modernidade‖15. São espaços de exatidão,
racionalizados, racionalizadores, organizados, espaços das verticalidades, formadas
por pontos distantes uns dos outros16, dotados de uma densidade técnica e
informacional que os tornam mais atrativas ao capital17. As áreas opacas são
subespaços onde estas características estão ausentes. São os espaços do
aproximativo, da criatividade, inorgânicos, abertos, onde é possível a re-invenção e
re-apropriação de práticas sociais e afetivas, na busca de um outro futuro18. Para
Santos, são nestes espaços que surgirão outras possibilidades de relações
13 DELEUZE & GUATTARI, 1997.
14 SANTOS, 1994.
15 Idem, ibidem.
16 SANTOS, 2005.
17 SANTOS, 2001.
18 SANTOS, 1999.
27 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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27
estruturais e sociais na sociedade, que se darão através de uma revolução que virá
―de baixo‖, invertendo a relação entre opacidades e luminosidades.
―Para os migrantes e para os pobres de um modo geral, o espaço
‗inorgânico‘, é um aliado da ação, a começar pela ação de pensar,
enquanto a classe média e os ricos estão envolvidos pelas próprias
teias que, para seu conforto, ajudam a tecer: as teias de uma
racionalidade invasora de todos os arcanos da vida, essas
regulamentações, esses caminhos marcados que empobrecem e
eliminam a orientação ao futuro. Por isso, os ‗espaços luminosos‘ da
metrópole, espaços da racionalidade, é que são de fato, os espaços
opacos‖. (SANTOS, M.,1994).
1.3 A cidade a partir de quem a produz: Império, Agentes
Hegemônicos, Multidão e Homens Lentos
Os espaços não são, em sua essência, libertadores ou aprisionadores. É possível
habitar a cidade estriada e luminosa como um nômade, ou mesmo estar inserido em
um espaço liso e opaco e ainda assim, viver de forma sedentária. A fabricação de
espaços lisos (que dispõem de uma potência de desterritoriallização superior ao
estriado19) pelas multinacionais, por exemplo, apresenta-se como uma forma de
possibilitar maior mobilidade do capital no território, subvertendo e sobrepondo-se às
barreiras existentes que possam vir a criar encraves ao processo. Essa capacidade
de subversão e reapropiação dos espaços não é exclusividade dos agentes
hegemônicos. Apesar de estarmos vivendo a era do Império20 – formada pela
articulação e cooperação em rede de pontos-nodais, Estados-Nação dominantes,
instituições supranacionais, grandes corporações e outros poderes –, não é essa
forma de dominação a única força que move os processos de constituição dos
19 DELEUZE & GUATTARI, 1997.
20 HARDT & NEGRI, 2001
28 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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28
territórios na atual globalização. A Multidão apresenta-se como uma alternativa
constituída dentro do Império que tem a cidade como seu esqueleto, no sentido do
ambiente construído, e sistema nervoso no sentido de ser tanto o repositório quanto
a fonte das relações sociais e das relações de produção (HARDT, 2008). A Multidão
é um projeto político em elaboração, que tem como objetivo criar uma nova
realidade social pautada na descoberta e construção do comum. A cidade é o lugar
do comum, do espaço comum, onde vigora a participação, a vontade, a decisão, o
desejo; onde a capacidade de transformação das singularidades pode agir tomando
com as próprias mãos as condições biopolíticas da existência (HARDT, 2008;
NEGRI, 2006).
Santos (1994) defende que na cidade, e, sobretudo na grande cidade, a força dos
fracos é seu tempo ―lento‖:
―Creio porém, que na cidade, na grande cidade atual, tudo se dá ao
contrário. A força é dos ‗lentos‘ e não dos que detêm a velocidade
elogiada por Virilio em delírio na esteira de um Valéry sonhador.
Quem na cidade tem mobilidade – e pode percorrê-la e esquadrinhá-
la – acaba por ver pouco da cidade e do Mundo‖. (SANTOS, M.
1994)
Os velozes ficam a mercê das imagens pré-fabricadas, superficiais, vazias. Já para
os homens lentos, que conhecem os lugares e necessitam deste conhecimento para
sua sobrevivência, essas imagens-miragens são facilmente descobertas como
fabulações. Os homens lentos são habitantes dos espaços opacos e possuem uma
cultura baseada no território, no cotidiano, no contato de gente com gente. Já o
―mundo do tempo real‖, do just in time, dos espaços luminosos e hegemônicos,
buscam uma homogeneização empobrecedora e limitada do ponto de vista das
relações sociais, não do ponto de vista da complexidade técnico-informacional,
focada na operacionalização e funcionamento deste ―mundo globalizado‖. Santos
(2005) aposta na união horizontal dos lugares como possibilidade de reconstrução
da base de uma vida comum. Para ele, a construção de novas horizontalidades
permitirá então, a partir da base da sociedade territorial, encontrar um caminho que
nos libere da maldição da globalização perversa que vivemos e nos aproxime da
29 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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29
possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na
sua dignidade. Hard & Negri (2004) também defendem a necessidade de se criar
uma globalização alternativa, pautada em uma maior colaboração entre as nações.
1.4 A cidade a partir das subjetividades
Optamos por finalizar estas quatro possibilidades de leituras, com a discussão sobre
a cidade e a produção de subjetividade partindo do princípio de que ―a produção de
subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção‖21. Entendendo a
cidade como produção, essa abordagem parece-nos não apenas relevante, mas
necessária. Guattari (1992) aponta a cidade como uma máquina produtora de
subjetividade individual e coletiva. A subjetividade é essencialmente fabricada e
modelada no registro social, por uma multiplicidade de agenciamentos da
subjetivação. Assumida e vivida de dois modos pelos indivíduos em suas existências
particulares, a subjetividade se realiza em uma relação de alienação e opressão, na
qual o indivíduo se submete à subjetivação tal como a recebe, ou uma relação de
expressão e criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da
subjetividade, produzindo um outro processo, denominado de singularização 22.
―Todos os devires singulares, todas as maneiras de existir de modo
autêntico chocam-se contra o muro da subjetividade capitalística.
Ora, os devires são absorvidos por esse muro, ora sofrem
verdadeiros fenômenos de implosão. É preciso construir uma outra
lógica – diferente da lógica habitual – para poder fazer coexistir esse
muro com a imagem de um alvo que uma força seria capaz de
perfurar.‖ (GUATTARI, F; ROLNIK, S,2005)
21 GUATTARI & ROLNIK, 2005
22 Idem, ibidem.
30 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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30
Cabe destacar que em situações extremas isso funcionaria dessa forma, mas em
geral, vivenciamos essa relação de forma híbrida. Guattari & Rolnik (2005) chamam
a atenção para uma subjetividade mais ampla, a subjetividade capitalística. Os
modos de produção capitalísticos não funcionam apenas no registro dos valores de
ordem do capital, mas funcionam também através de um modo de controle da
subjetivação. A essência do lucro capitalista não se reduz ao campo da mais-valia
econômica, mas está também na tomada de poder da subjetividade. A produção de
subjetividade pelo capitalismo se propaga no nível da produção e do consumo das
relações sociais em todos os meios e em todos os pontos do planeta. A insurgência
de qualquer microvetor de subjetivação singular tende a ser esmagado.
Uma das funções da economia capitalística subjetiva é a segregação, assegurada
pela instauração de sistemas de hierarquia inconsciente, sistemas de escalas de
valor e disciplinarização. Essa valorização capitalística se inscreve tanto contra o
sistema de valor de uso proposto por Marx, quanto contra todos os modos de
valorização do desejo e das singularidades. A ordem capitalística fabrica a relação
do homem com o mundo e consigo mesmo, de forma tal que partimos do princípio
de que a ordem do mundo não pode ser tocada sem que se comprometa a idéia de
vida social organizada. A força da subjetividade capitalística está no fato dela se
produzir tanto em nível dos opressores quanto dos oprimidos.
No entanto, o desenvolvimento da subjetividade capitalística traz imensas
possibilidades de desvio e reapropriação, desde que se reconheça que a luta não
está restrita ao plano da economia política, mas inclui a economia subjetiva. Os
afrontamentos sociais se dão entre as diferentes maneiras pelas quais os indivíduos
e grupos entendem viver sua existência. Alguns dos movimentos sociais da
atualidade se situam nessas rupturas, as quais Guattari & Rolnik (2005) reconhecem
como importantes focos de resistência política por atacarem a lógica do sistema não
como abstração, mas como experiência vivida. Esse ―atrevimento de singularização‖,
denominado de ―revolução molecular‖, não consiste apenas em resistência ao
processo geral de serialização da subjetividade, mas caracteriza-se pela tentativa de
produzir modos de subjetivação originais. No entanto, vale chamar a atenção para o
fato de que toda a sociedade e todo o indivíduo são atravessados, ao mesmo tempo,
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31
tanto pela segmentaridade molar quanto molecular. Desta forma, as alternativas
existentes podem ser tanto macro quanto micropolíticas23.
A geograficidade do social encontra na cidade sua subjetividade materializada.
Inserir a cidade nessa discussão consiste em entendê-la como produção e como tal
atravessada por todos esses fluxos de subjetivação, seja da subjetividade
capitalística ou vetores de subjetivação singular. Enquanto espaço vivido, a cidade
caracteriza-se pela segmentação espacial e social em todos os estratos que a
compõem (habitar, circular, trabalhar, brincar)24, onde coexistem forças que tendem
a ação homogeneizante do espaço produzido por uma segmentaridade dura e
tentativas de escape produzidas por uma segmentaridade flexível.
1.5 A Cartografia como escape metodológico
Captar essa complexidade nos exigiu a eleição de um percurso metodológico que,
ao mesmo tempo, guiasse e instrumentasse conceitual e operacionalmente nossa
percepção e deixasse grau suficiente de liberdade para a apreensão do existir e
devir dos escapes encontrados. Optamos pelas aproximações cartográficas
enquanto metodologia baseada nas cartografias propostas por Deleuze & Guattari
(1995). A noção de cartografia que trazem estes filósofos distingui-se da noção de
cartografia comumente compartilhada por geógrafos, arquitetos e urbanistas:
cartografia enquanto representação gráfica de objetos e fenômenos distribuídos
espacialmente na superfície terrestre. A cartografia de Deleuze & Guattari trata-se
não de uma ferramenta, mas de uma prática voltada para a experimentação
ancorada no real. É construída de forma aberta e conectável em todas as suas
dimensões, através de suas múltiplas entradas, de forma tal que não possui como
23 GUATTARI & ROLNIK, 2005
24 DELEUZE & GUATTARI, 1996.
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32
―produto‖ um mapa estático, como os produzidos pelos geógrafos 25. De acordo com
a psicanalista Suely Rolnik (2007), a cartografia é um processo de construção e
desconstrução constante de certos mundos, motivado pelas acelerações e
mudanças repentinas advindas da globalização, dos fenômenos urbanos
corriqueiros ou dos dispositivos de memória individuais ou coletivos. Aqui será
explorada enquanto procedimento metodológico de investigação que possibilita
maximizar as possibilidades de entendimento sobre a criação e produção dos
escapes na cidade.
Entre as pistas apontadas por Passos, Kastrup e Escóssia (2009) para a realização
da cartografia, faz-se necessário entendê-la como uma possibilidade de investigação
que extrapola a oposição entre pesquisa quantitativa e qualitativa. É um método
transversal que atua na desestabilização dos eixos cartesianos trazendo para a
discussão a realidade multiplamente produzida. A realidade cartografada se
apresenta como um mapa móvel, uma onde o saber é a combinação dos visíveis e
dizíveis de um estrato. Será utilizada aqui como experiência de produção de
conhecimento sobre o espaço da cidade, por meio da elaboração de um desenho
impreciso que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que é alterado por diversos
movimentos. Interessa-nos aqui entender como os escapes se apresentam no
ambiente urbano, suas fugas conformadas no território, além das relações que
podem ser criadas e vividas socialmente na urbanidade.
Dividida em duas partes, a Aproximação Cartográfica 01 dedica-se a exploração
mais ampla e menos intensa do território, enquanto a Aproximação Cartográfica 02
consiste em um experimento mais direcionado ao bairro Alice Coutinho, localizado
no município de Cariacica, Espírito Santo, que surgiu a partir de uma ocupação do
Movimento Nacional de Luta pela Moradia, em 1996. Pretendemos com isso ampliar
o conhecimento sobre ele, através de um estudo cartográfico, transformando-o em
uma dimensão apreensível, mas ciente de que este processo inclui permanências e
25 Não cabe aqui generalizar ou subestimar os mapas produzidos pelos geógrafos. Mas faz-se
necessário diferenciá-los da cartografia proposta enquanto um mapa móvel. Mais adiante abordaremos a inclusão de mapas estáticos como elementos que virão a compor a cartografia.
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efemeridades, fixações e fluidez tornando seu registro incapaz de apreender todas
as dimensões de experimentação-produção-construção do espaço.
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2 APROXIMAÇÃO CARTOGRÁFICA 01: TERRITÓRIO BASE:
GRANDE VITÓRIA (ES)
A Aproximação Cartográfica 01 configura-se em rastreio, varredura e exploração do
campo perceptivo26 visando a construção do conhecimento sobre os escapes
encontrados entre os constantes deslocamentos da pesquisa entre Jardim da Penha
– bairro de onde partimos, em Vitória (ES) –, até Alice Coutinho – bairro localizado
em Cariacica (ES), onde pousará a pesquisa no capítulo seguinte. Entendendo a
cartografia como prática27 e a cidade enquanto o campo onde pretendemos que tal
prática seja realizada, este capítulo tem o intuito de ser um exercício que visa a
apontar outras entradas e possibilidades de cartografias sobre o mesmo tema.
2.1 Procedimentos Metodológicos 01
2.1.1 Tempo
Na Aproximação Cartográfica 01, encararemos a investigação como um jogo rápido
de registro das singularidades a partir de esquemas, textos e imagens,
problematizadas a partir de encontros durante o percurso da pesquisa. Isso abrange
um intervalo de tempo linear que vai de março de 2007 a dezembro de 2009, e
também outros tempos incluídos através das lembranças ou projeções de futuro
construídas durante este contato estabelecido entre nós, os sujeitos sociais
envolvidos, a cidade e toda sua complexidade e outros fluxos que possam ter
atravessado o percurso.
26 KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo, In PASSOS,
ESCÓSSIA, KASTRUP, (orgs ), 2009.
27 PASSOS, ESCÓSSIA, KASTRUP, (orgs ), 2009.
35 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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35
2.1.2 Espaço
A estratégia adotada para definição deste território base teve como referência o
universo por onde transitamos na medida em que avançávamos em direção à
investigação específica da Ocupação Alice Coutinho que será abordada no capítulo
seguinte. Transitar aparece aqui com um sentido mais amplo do que exclusivamente
o do deslocamento físico da pesquisadora até a Ocupação. O território base como
categoria de análise só tem valor quando vinculado ao uso e aos atores
simultaneamente. Nele está implícita uma multiplicidade de formas e conteúdos.
Definimos nosso território transitando por um universo de informações diversificadas,
que em diferentes situações forneceram-nos subsídio para incluirmos nesta
aproximação cartográfica grupos, pessoas, lugares, eventos, etc. que extrapolariam
a proposta de um recorte espacial rígido. A flexibilidade foi indispensável para que
realizássemos certos desvios que achamos necessários, assim como para que
alcançássemos os espaços desmaterializados advindos das investigações virtuais,
por exemplo, que extrapolam a lógica de escala, tempo e distância geográfica.
2.1.3 Procedimentos
2.1.3.1 Rastreamento e investigações
―Rastrearemos‖ os escapes pela cidade neste espaço-tempo, com a finalidade de
construirmos uma cartografia que não tem a intenção de ser um mapeamento
preciso e completo de todas as iniciativas e atuações direcionadas a produção dos
escapes no território, mas sim de capturar e apontar diferentes entradas e saídas
produzidas a partir de determinadas singularidades.
Recorreremos também a investigações virtuais como procedimento, entendendo que
a diversificação dos processos de produção da cidade passa por práticas e
manifestações que vão do espaço simbólico ao concreto, atravessado por fluxos
advindos de espaços virtuais e suportes midiáticos. Em um primeiro momento, as
investigações de tais ―rastros virtuais‖ foram pensadas com o intuito de obtermos
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subsídios que nos auxiliassem- no rastreamento dos sujeitos e grupos pesquisados..
Possibilidade de, a partir das experiências identificadas no espaço real, ampliarmos
o conhecimento e as informações sobre determinados grupos, movimentos, lugares,
etc. Assim como o contrário, identificar no real experiências e personagens
encontrados no espaço virtual, entendendo que estes dois tipos de experiências,
ainda que diferenciadas, coexistem e sobrepõem-se no produzir cidade28. Todos os
atores envolvidos nesse trabalho são atravessados de alguma forma pela veiculação
e divulgação de informações nos mais variados formatos na rede – fotos, vídeos,
textos pessoais em blogs ou textos jornalísticos de agências de notícia, etc. –,
ampliando dessa forma as possibilidades e formulações de saberes sobre eles.
Além dos jovens do hip hop ou do grafite - que possuem explicitamente maior
domínio sobre o uso destas tecnologias29 – pode-se encontrar os praticantes
ordinários da cidade de Cariacica, por exemplo, no site do Youtube encarnados na
figura dos Street Monkeys, grupo de praticantes do Le Parkour de Cariacica, nos
participantes dos bailes funks de ―corredor‖ que acontece nas praças do bairro Nova
Brasília. Os encontros virtuais estão inclusos no percurso realizado. Nessa
perspectiva, o percurso em si é, em parte, desmaterializado e desterritorializado.
2.1.3.2 Os encontros
A aproximação da pesquisadora com os escapes rastreados durante a pesquisa não
se deteve a um método específico ou padrão único. O tipo de experiência e o
envolvimento com as pessoas encontradas no percurso variaram de acordo com
28 No andamento da pesquisa entendemos que poderíamos expandir a utilização dos recursos
disponíveis no meio virtual para além do uso mencionado, criando mecanismos públicos colaborativos de compartilhamento e armazenamento de informações relacionadas aos escapes identificados. Esta proposta encontra-se detalhada adiante na página 37.
29 Na internet entre os grupos de hip hop e rap,os Flogs , Blogs , My Space e comunidades no Orkut
são os mais populares para divulgação de shows e músicas, além do Youtube onde é possível encontrar vários vídeos de grupos e eventos. É comum também encontrarmos sites exclusivos para divulgação de fotos, como o Flickr e os Flogs, sendo utilizado pelos grafiteiros para divulgação de seus trabalhos, assim como também vídeos onde aparecem realizando seus grafites na cidade.
37 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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37
cada situação resultando em registros e caracterizações diferenciadas, mais ou
menos intensas. De uma forma geral foi feito um esforço no sentido de compreender
quem são os envolvidos nesses processos, a forma com que alteram a lógica de
apropriação e uso do espaço urbano, seu potencial reivindicativo e produtor destes
territórios alternativos (HAESBAERT, 2006b). Reunimos estes encontros de acordo
com a característica do escape abordado, levando em consideração a forma como
este se realiza no meio urbano:
ocupações
festas religiosas
comércio informal de rua
movimento hip hop
protestos
A problematização e caracterização de cada um deles foi sendo construída no
percurso e refinada nos encontros e contatos estabelecidos, de forma que não nos
detivemos na elaboração de uma teoria geral sobre estes escapes, mas sim na
compreensão e acompanhamento destes ―gestos-fios‖ que, segundo Ribeiro
(2005b), costuram no lugar e no cotidiano ―saberes à co-presença, estimulando a
superação do prestígio ainda mantido pelas leituras mecanicistas e funcionalistas da
vida urbana‖. Segundo a autora, portadores de valores compartilhados por
determinados grupos sociais, estes gestos propiciam a criação de lugares onde
antes só havia espaço e racionalização. Acionam a possibilidade de superação da
cotidianidade alienada através de sua presença, ainda que temporariamente. É
através da leitura sensível destas práticas sócio-espaciais, imbuídas de um poder
popular, que se coloca em debate a ordem capitalista na cidade.
2.1.3.3 Proposta-registro
Como forma de registrarmos o conhecimento produzido na pesquisa, elaboramos
uma proposta de registro dos percursos: os lugares transitados (fisicamente ou não);
38 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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a identificação e localização da dimensão apreensível dos escapes; a constituição
de territórios subjetivos; e os encontros enquanto o universo singular de cada
contato. Para isso, optamos por agrupá-los nas 06 possibilidades de escapes já
definidas que, apesar de serem apresentadas de forma seqüencial, possuem a
liberdade de se cruzar, reaparecer e se reformular sempre que se fizer necessário.
Construímos a narrativa do percurso pautada no conhecimento produzido a partir
das informações, dos encontros, das impressões e do referencial teórico abordado
no Capítulo 1, de forma tal que a relação tempo-espaço não obedecesse
necessariamente a uma ordem linear. Apoiamo-nos na descrição de Rolnik (1989)
sobre o papel do cartógrafo, na qual ela o apresenta como um pesquisador que não
segue nenhuma espécie de protocolo normalizado e tem seu perfil definido
exclusivamente pela sensibilidade. Sem preconceito, utiliza-se de tudo o que
encontra pelo caminho para traçar suas cartografias. Cabe ao cartógrafo
desembaraçar as linhas, acompanhar seu trançar, marcar os pontos de ruptura e de
enrijecimento, analisar seus cruzamentos. Na cartografia tudo funciona ao mesmo
tempo30.Utilizaremos como recurso trechos de diálogo, letras de música, imagens,
mapas e esquemas inseridos no texto.
Entendemos que a metodologia que experimentamos é pautada na possibilidade de
tornar visíveis outras leituras, neste caso, sobre a produção de cidade. Nessa
direção, ser aberta, conectável, desmontável e passível de modificações são
características importantes da cartografia. Além das formas já mencionadas para
registrá-la, sentimos a necessidade de utilizarmos outras formas que nos
permitissem tanto compartilhar informações que por algum motivo ficaram de fora,
quanto estabelecer algum mecanismo de abertura para contribuições de diferentes
fontes e pessoas. Constatamos que a informação sobre a presença de muitos
desses escapes que ficaram de fora – sejam os existentes no próprio percurso que
realizamos quanto os produzidos em outros lugares da cidade, ou em outras cidades
– poderiam enriquecer e constituir um outro panorama dos escapes fornecendo
30 PASSOS, ESCÓSSIA, KASTRUP, (orgs ), 2009.
39 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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39
subsídios para futuras e novas aproximações e cartografias. Procuramos
experimentar um procedimento virtual, colaborativo onde o armazenamento e
compartilhamento de informações estão vinculados à sua localização geográfica. O
resultado dessas informações pode ser visualizado agrupado por categoria,
estruturada em uma lista, aleatoriamente compondo um mosaico ou em forma de
mapa, cuja representação se dá com o desenho da estrutura urbana, uma imagem
de satélite ou o hibrido dos dois.
Figura 1 - Mapa com a localização das informações depositadas.
Fonte: www.meipi/escapesurbanos.org
40 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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40
Figura 2 – Informações agrupadas por categoria.
Fonte: www.meipi/escapesurbanos.org
A cartografia não se reduz ao mapa produzido pelo programa ou as informações
contidas nele. O conhecimento do lugar extrapola o palpável e o estanque de forma
tal que não pode ser simplificada como localizações ou demarcações no espaço. No
entanto, quando abrimos a possibilidade de construção coletiva desse mapeamento
para qualquer internauta, colocamos o mapa nas mãos de um número maior de
pessoas. Crampton & Krygier (2008) 31 reforçam a idéia do mapa como instrumento
de poder, mais do que documentos neutros. Os autores referem-se a este tipo de
mapeamento, que passou da mão de especialistas para o alcance da população
31 In ACSELRAD (org.), 2008
41 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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com o auxilio da internet, como parte de uma ―insurreição do conhecimento‖32.
Na nossa metodologia, quando incorporamos à produção da cartografia este tipo de
produção, a consideramos como mais uma fonte de informação que pode ser
apropriada por esse método, que não possui preconceito de fonte33.
Desta forma, a proposta-registro vai se constituindo como um atlas eclético,
resultante da somatória de diversos registros possíveis, aberta a novas entradas,
sempre passível de reconstruções na medida em que novos encontros venham a
inserir novos elementos, ou mesmo através da re-elaboração dos diálogos entre os
elementos existentes resultando em novas leituras.
A plataforma digital que utilizamos para armazenarmos novas informações foi a
Meipi (www.meipi.org). Neste sitio desenvolvido por um grupo de artistas e
pesquisadores34, pode-se armazenar informações nos formatos de texto, imagem e
vídeo. Pode ser abertamente alimentado tanto pela pesquisadora quanto por
quaisquer outros colaboradores. Utilizaram como tecnologia a plataforma LAMP
(Linux, Apache, MySQL y PHP), Javascript, Google Maps API, script.aculo.us,
biblioteca javascript, ImageMagick para editar imagens e Recaptcha para configurar
formulários.
O modelo gratuito que utilizamos encontra-se disponível on line para qualquer
usuário perante cadastro no próprio sitio. Este modelo, no entanto, implica em
algumas limitações no que diz respeito ao seu formato, como por exemplo, a
possibilidade de classificação de apenas 4 temas ou categorias diferentes.
Considerando o caráter experimental da utilização desta ferramenta como
instrumento de registro interativo, achamos válida sua utilização ainda que deixemos
32 FOUCAULT, 2003 in ASCELRAD (org.), 2008
33 ROLNIK, 1989.
34 Domenico Di Siena [ALGOMAS - Arte Rivoluzionario]; Alfonso Sánchez Uzábal [Montera34]; Jorge
Álvaro Rey [Lamboratory.com]; Guillermo Álvaro Rey [Lamboratory.com]; Francesco Cingolani [ALGOMAS - Arte Rivoluzionario]; Pablo Rey Mazón [Montera34]
42 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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42
de fora algumas linhas de investigação adotadas. Os resultados desta proposta
podem ser acessados pelo endereço eletrônico: www.meipi.org/escapesurbanos .
2.2 Percurso
Iniciamos nosso percurso tendo definido o ponto de partida – Jardim da Penha,
Vitória - e o ponto de chegada – Alice Coutinho, Cariacica. Os encontros que
realizamos neste ínterim definiram o percurso, que atravessou principalmente os
municípios de Vitória, Serra e Cariacica. Os três municípios fazem parte da Região
Metropolitana da Grande Vitória35, juntamente com os municípios de Vila Velha,
Viana, Fundão e Guarapari.
35 institucionalizada pelo poder estadual em 1995.
43 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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Figura 3 - Mapa das microrregiões do Espírito Santo. Destacada em vermelho a Região Metropolitana da Grande Vitória.
Fonte: IJSN modificada. Disponível no site www.gov.es.br . Acessado em 20 de dezembro de 2009.
44 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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Figura 4 - Mapa da Região Metropolitana da Grande Vitória
Fonte: IJSN. Disponível no site www.gov.es.br . Acessado em 20 de dezembro de 2009.
45 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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45
De acordo com dados do IBGE de 2007, residem na Região Metropolitana de Vitória
1.624.837 dos 3.418241 habitantes do estado36. Esta concentração demográfica
juntamente com a concentração econômica conferem a região a função de
centralizadora no que se refere a tomada de decisões, informações, transações
comerciais, financeiras e de prestação de serviços públicos. O período
compreendido entre as décadas de 60 e 80 foram marcantes para a Região que
passou por expressivas transformações principalmente devido à alteração na sua
dinâmica econômica que até então pautava-se no padrão agro-exportador vinculado
à produção cafeeira, passando a assumir um modelo industrial-exportador a partir da
década de 7037. Tais transformações incluem desde grandes instalações, como as
da Companhia Vale do Rio Doce – CVRD e do Porto de Tubarão em 1996; da
Companhia Siderúrgica Tubarão – CST e do Porto de Praia Mole em 1983; e a
construção de diversos conjuntos habitacionais ao longo das décadas de 60, 70 e
80. De acordo com Abe (1999), a implantação desses empreendimentos de grande
capital teve repercussões em diversos setores da economia e da sociedade, com
amplos rebatimentos no urbano. Incluída no processo de modernização e
internacionalização da economia brasileira – cujo modelo estava impondo novas
condições de acumulação e nova modelagem territorial do País – a Região
Metropolitana passou de 111 mil indivíduos em 1950 e para a 194 mil em 1960, 386
mil em 1970, 706 mil em 1980 e 1.063 mil em 1991. As taxas de incremento
populacional decenais a partir da década de cinqüenta foram de 78,7%, 94,7% e
83%, reduzindo-se apenas na década de 80 para 50,5%38.
Ainda de acordo com Abe (1999), o rápido e elevado crescimento da Região
Metropolitana transformou as relações de classes e a estrutura de fracionamento
36 A capital Vtória, aparece como o 4º município mais populoso do Espírito Santo, com 320.156
habitantes. Em 1º está Vila Velha com 413.548; em 2º Serra com 404.688; e em 3º Cariacica com 365.859 habitantes (IBGE, 2007).
37 IJSN, 2001.
38 IBGE, Censo Demográfico.
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46
social na Grande Vitória, intensificando a segregação espacial. Para o autor,
―materializaram-se no espaço urbano metropolitano as contradições dos interesses
econômicos e desestruturaram-se as antigas territorialidades sociais e políticas‖. A
área de ocupação urbana sofreu intensa e desordenada expansão, comprometendo
seu sítio naturalmente frágil.
Atualmente, apesar das grandes plantas industriais localizadas nesta microrregião
(entre tais destaca-se também a Chocolates Garoto, em Vila Velha), o setor de
comércio e serviços é o mais significativo da economia regional. Destacam-se os
serviços na área de comércio exterior e distribuição de produtos em larga escala
com atuação mais dinâmica na área de logística do comércio exterior e apoio à
economia urbano-industrial.
No percurso que atravessa essa configuração urbana, nos detivemos ao encontro
com 6 possibilidade de escapes produzidos na/pela cidade que foram se revelando a
partir dos estreitamentos estabelecidos durantes o processo. Os escapes, cujas
espacializações na cidade são mais facilmente apreensíveis, foram localizados e
pontuados na Figura 5 (pág. 49). Apesar de não retratar a dinamicidade de seus
atores e seus diferentes graus de mobilidade no espaço urbano, o esquema
apresentado configura minimamente sua dimensão visível no território da
investigação. Buscamos estabelecer inicialmente uma relação entre as
singularidades produzidas, seus produtores e sua espacialização, que se mostrou no
decorrer do percurso mais complexa. Desta forma, seccionadas por deslocamentos,
estabelecemos para iniciar nosso percurso as seguintes relações:
Deslocamento 01: Jardim da Penha – Casa da Juventude. Encontro com os
muros grafitados, elemento que conecta todo nosso território, e o movimento
hip hop. Atravessamos Vitória e chegamos em Cariacica onde fizemos uma
pausa na Casa da Juventude, no bairro Itacibá. Durante a pesquisa,
realizamos este deslocamento tanto de ônibus quanto de carro.
Deslocamento 02: Casa da Juventude – Terminal de Laranjeiras. Descoberta
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47
sobre os grupos de rap e encontro com os b.boys e o movimento hip hop no
Terminal de Laranjeiras na Serra, onde paramos para entender este
movimento. Este deslocamento foi realizado de ônibus.
Deslocamento 03: Terminal de Laranjeiras – Casa da Juventude. Encontro
com protestos de moradores dos bairros à margem da BR 101- Rodovia do
Contorno que conecta a Serra a Cariacica. Durante a pesquisa, realizamos
este deslocamento tanto de ônibus quanto de carro.
Deslocamento 04: Terminal de Itacibá – Terminal de Campo Grande.
Encontro com o comércio informal de rua, ambulantes e camelôs em Campo
Grande, Cariacica, concentrado principalmente na Av. Expedito Garcia. Este
deslocamento foi realizado de ônibus até a chegada em Campo Grande, e a
pé internamente ao bairro.
Deslocamento 05: Terminal de Campo Grande – Roda D‘Água. Encontro com
a festa religiosa do Carnaval de Congo que acontece nesta comunidade da
área Rural do município de Cariacica e os devotos de Nossa Senhora da
Penha que cultivam a manifestação. Este deslocamento foi realizado
parcialmente de carro e parcialmente de ônibus. O deslocamento na
comunidade de Roda D‘Água durante a festa foi realizado a pé.
Deslocamento 06: Roda D‘Água – Alice Coutinho. Encontro com o bairro Alice
Coutinho originado a partir da ocupação de sem-tetos organizada pelo
Movimento Nacional de Luta pela Moradia, próxima a antiga sede do
município de Cariacica. Este deslocamento foi realizado parcialmente de carro
e parcialmente de ônibus. O deslocamento no interior do bairro Alice Coutinho
foi realizado a pé
Priorizamos práticas que sejam reforçadas por uma coletividade, ainda que não
necessariamente realizadas em coletivo. Comunidades e grupos, organizados ou
não, foram abordados sem o intuito de reduzir particularidades, motivações e
trajetórias individuais (estas vêm a assumir papel de destaque na medida em que a
pesquisa se refina, sobretudo no capítulo seguinte). Buscamos entender a forma
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48
como se relacionam com o meio urbano em sua diversidade e mutação através da
tessitura de territórios comuns e/ou divergentes que coexistem e sobrepõem-se na
trama da cidade.
Vinculamos a realização dos escapes e aqueles que os produzem às suas reivindicações. O que reivindicam quando formulam seus escapes? Elencamos inicialmente algumas possibilidades: o habitar, a visibilidade, o direito ao culto, ao espaço, a voz, escuta e soluções (
Figura 6, pág. 50). Estas reivindicações não se realizam isoladamente ou de forma
desarticulada, assim como também os escapes não se encerram nelas. À maioria
dos escapes aqui investigados são somadas várias destas reivindicações além de
outras que por ventura tenham sido deixadas de fora, ou se façam presente apenas
em determinadas situações. Por si só estas reivindicações também não distinguem
nem diferenciam a produção dos escapes de quaisquer outras produções realizadas
na cidade. É a forma como se realizam e sua capacidade de improviso e reinvenção
que os diferencia das demais.
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Figura 5 – Esquema dos escapes percorridos na Aproximação cartográfica 01.
Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).
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Figura 6 - Esquema da relação entre os escapes produzidos, quem o produz, suas reivindicações e localização na cidade.
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2.2.1 Deslocamento 01: Jardim da Penha – Casa da Juventude
Jardim da Penha é de onde partimos e iniciamos nosso percurso. Bairro localizado
na porção continental da capital, ele teve seu desenvolvimento vinculado ao
conjunto habitacional criado pelo BNH na década de 70 que arcou com sua infra-
estrutura (ABE, 1999). Situado entre a Universidade Federal do Espírito Santo e a
Praia de Camburi, o bairro, já consolidado, abriga tanto repúblicas de estudantes
quanto famílias classe média. Destaca-se pelo traçado planejado e pelas rotatórias e
praças ajardinadas, equipadas e mobiliadas para práticas de esportes e lazer. Basta
que andemos por suas ruas para que sejamos atraídos pela plasticidade e pelas
cores conferidas pelo grafite às cinzas paredes dos edifícios. Não que isto seja
particularidade deste bairro, pelo contrário, os grafites acompanham-nos por quase
toda a cidade, estampando muros dos bairros da periferia e da classe média.
Elencado como elemento conector do nosso percurso, nele nos detivemos neste
primeiro deslocamento.
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Figura 7 - Movimento Hip Hop como escape: Grafite. Esquema do percurso e dos encontros
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Ao elegermos o grafite como escape, o fazemos principalmente pela sua constante
presença e capacidade de comunicação. O grafite atualiza e re-elabora um diálogo
urbano através do encontro involuntário entre indivíduos que, embora habitem
lugares diferentes, são colocados inevitavelmente frente a frente no espaço urbano.
Através dele a periferia conquista seu espaço e se faz tensamente presente em toda
cidade. É um encontro temporário, que se estabelece em diferentes velocidades: a
do pedestre passante, a do apreciador, a do motorista, a do grafiteiro, etc.
Tendíamos a eleger o grafite como uma possibilidade de escape desarticulado do
movimento hip hop, ainda que cientes da existência de algum tipo de relação entre
eles. A forma como o grafite aparece na cidade e sua freqüência o diferencia dos
demais elementos desta cultura: o b.boy, o MC e o DJ. É bem provável que também
nos encontremos diariamente com estes elementos pelas ruas da cidade. Mas a
menos que estejam reunidos ao som de sua música e realizando sua dança,
permanecerão no anônimo papel que lhes é atribuído: o de meninos suspeitos da
periferia. Diferentemente do grafite, não é comum encontrarmos com freqüência
rodas de b.boys ou rappers realizando batalhas de rima pelas ruas. O que não quer
dizer, é claro, que não existam ou não estejam acontecendo em algum canto da
cidade. Tanto que soubemos de algumas destas práticas, como o encontro de
b.boys que acontece no Terminal de Laranjeiras, na Serra – que abordaremos mais
a frente –, a reunião de rappers na praça do bairro Jardim Botânico, em Cariacica39 e
o freestyle40 nas ruas de Padre Gabriel41, também em Cariacica.
Essa intenção de atribuir ao grafite um caráter autônomo foi estimulada também pela
freqüência com que o grafite tem sido inserido em movimentos de arte e intervenção
39 Através da Gerente de Projetos Urbanos de Cariacica, Ivana Souza Marques, soubemos que no
bairro Jardim Botânico existe um movimento de grupos de rap. Ela contou que na ocasião da elaboração do projeto de uma praça para o bairro, dentre as reivindicações estava a necessidade de criação de um espaço para que esses jovens pudessem se reunir e se apresentar.
40 O freestyle é a arte dominada por alguns Mcs de fazer rimas improvisadas abordando diferentes
temas.
41 O vídeo com a batalha de rimas pode ser visto no site
http://www.youtube.com/watch?v=KcRDdqxkjCw . Acessado em junho de 2008.
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54
urbana, onde se somam diversas técnicas e produções artísticas. O uso do grafite
enquanto técnica é recorrente nestes movimentos, sem estar necessariamente
vinculado ao universo hip hop, seus temas e mesmo sua produção associada a
artistas integrantes do movimento hip hop.
Figura 8 - Grafite sendo explorado enquanto seu potencial técnico, por Renato Pontello, na Rua João Damasceno, Zona Sul, São Paulo.
Fonte: Página do artista na internet: http://www.flickr.com/renatopontello . Acessado em 10 de janeiro de 2010.
Encontramos o grafiteiro ―Alecs Power‖ e o b.boy ―Eduardo B.Boy‖ mais adiante, no
terminal de Laranjeiras com quem conversamos sobre essa relação entre o hip hop
e a prática do grafite e com base nas colocações feitas por eles optamos por não
desvincular o grafite do movimento hip hop enquanto escape42. Ao falar de sua
42 Abordaremos este encontro mais adiante no item 2.2.2 Deslocamento 02: Casa da Juventude –
Terminal de Laranjeiras (pág. 56)
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história com o hip hop, o grafiteiro deixa evidente a íntima relação existente entre os
elementos dessa cultura e seus integrantes que, embora não dominem todos seus
elementos, entendem-nos como indissociáveis e com o tempo passam a incorporá-
los nas suas práticas. Alecs conta que foi isso que aconteceu com ele. Envolveu-se
primeiramente com a dança, o break, em 1992, acompanhando a movimentação
que acontecia no Parque Moscoso no Centro de Vitória. Passou então a fazer parte
de um grupo de break que também participava de campeonatos, onde encantou-se
pelo grafite que sempre se fazia presente. Aprendeu a técnica e passou a grafitar
pelas ruas da Grande Vitória acompanhado de mais dois dançarinos do grupo.
Criaram a primeira crew de grafite do estado, deixando seus traços pela cidade sob
a sigla de UGI (União dos Grafiteiros Independentes) que passou a ser reconhecida
por outros jovens, instigando-os a criar também suas crews. A crew é uma espécie
de equipe formada por grafiteiros que se unem para pintar. Em geral os grafiteiros
assinam junto de seus nomes o nome de sua crew. Alecs conta que passou alguns
anos pintando sozinho até que foi convidado para participar da crew Luz do Mundo
(composta por Fred, Canela, Fone e Ren), com quem grafita atualmente. A
preocupação com a aceitação do grafite como arte ficou evidente na conversa com
Alecs que fez questão de frisar: ―Só grafitamos em muros que somos autorizados,
pela prefeitura ou pelo proprietário. Não é pichação, é a arte plástica do hip hop‖. Ele
confere ao grafite permitido o status de arte oficial. Institucionalizado, capturado,
dobrado sobre si mesmo, o grafite de Alecs parece precisar de aprovação.
Ao realizar o grafite, o movimento hip hop traz para o visível seu posicionamento
artístico e político. Assim como o faz também o b.boy desafiando os limites e a
flexibilidade do corpo embalado pelas batidas inventadas, fragmentadas, picotadas e
segmentadas produzidas pelo DJ enquanto o rapper ou o MC rima suas frases
quase sempre de protesto incitando alguma reação. É a partir deste entendimento
que entendemos que este universo não se compõe de fragmentos isolados, mas de
um conjunto de relações estabelecidas entre seus diversos componentes. Sob a
ótica do significado de cultura apresentado por Santos, M. (1996), entendemos a
cultura hip hop como uma forma específica de comunicação do indivíduo e do grupo
com o universo.
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56
―(...) é uma herança, mas também um reaprendizado das relações
profundas entre o homo e o seu meio, um resultado obtido através do
próprio processo de viver. Incluindo o processo produtivo e as
práticas sociais, a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer
a um grupo, do qual é o cimento‖. (SANTOS, M., 1996).
Assim, apontamos nesta possibilidade de ação/espacialização/territorialização da
cultura hip hop na cidade, uma entrada possível para uma cartografia sobre a
produção de escapes.
Seguimos atravessando, a cidade saindo de Jardim da Penha e, guiados pelos
muros grafitados, deslocamo-nos utilizando diferentes meios de transporte (a pé, de
carro e de ônibus) pela Av. Dante Michellini, alcançamos as ruas de Jardim
Camburi, chegamos a Serra encontrando muros na Av. Norte Sul e na BR-101,
retornamos a Vitória pela Av. Fernando Ferrari, alcançamos a Praça dos
Namorados, na Praia do Canto, a Av. Américo Buaiz, a Av. Vitória, as ruas do
Centro e rumamos a Cariacica onde já na BR-262 deparamo-nos com novos
grafites. O encontro com o grafite instigou-nos a buscar mais informações sobre o
movimento hip hop, o que levou-nos até a Casa da Juventude do município que por
promover eventos e encontros da juventude está sempre em contato com estes
grupos por serem formadores de opinião em suas comunidades.
2.2.2 Deslocamento 02: Casa da Juventude – Terminal de Laranjeiras
Chegamos a Cariacica, município que possui uma população de 356.536 habitantes
e uma área de 260 km2 (IBGE, 2007). Aproximadamente 50% de seu território
encontra-se na área rural. Sua configuração urbana está vinculada às necessidades
e exigências de uma economia inserida na lógica global do modelo industrial-
exportador, onde o deslocamento de mercadorias em suas rodovias e as
necessidades das empresas de logística ditam o ritmo e o caráter das intervenções
urbanas. No processo de intensa urbanização promovido pela vinda de grandes
projetos industriais por que passou o estado a partir da década de 60 (destaca-se no
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57
município a instalação da siderúrgica Belgo Mineira), Cariacica destaca-se por ter
absorvido grande parte da demanda populacional, principalmente a que não foi
absorvida pelo mercado ―formal‖. Aliada a seu modelo de expansão urbana
tipicamente tentacular – conseqüência de sua estrutura física norteada pelos
grandes eixos viários (BR-101, a BR-262, a ES-080 e as ferrovias Vitória-Minas e
RFFSA-Leopoldina, que cortam a malha urbana) – seu território foi sendo ocupado
através do preenchimento dos vazios intersticiais entre estas estruturas, quase
sempre com a presença de loteamentos ilegais, irregulares e ―invasões‖43.
43 IJSN, 2001.
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Figura 9 - Evolução dos Loteamentos no município de Cariacica.
Fonte: Campos, 2007
59 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
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Figura 10 – Movimento Hip Hop como escape. Esquema do percurso e dos encontros
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60
A Casa da Juventude de Cariacica 44 está localizada na margem da ES-080, próxima
ao Terminal de Itacibá, onde fizemos uma pausa e fomos atrás de pistas que
pudessem subsidiar essa nossa atratividade pelo universo hip hop. Soubemos pelos
coordenadores e funcionários da Casa da existência de alguns grupos de rap no
município, concentrados principalmente nos bairros Jardim Botânico, Castelo
Branco, Flexal e Nova Rosa da Penha. É comum ouvirmos e lermos estes nomes
nas manchetes de jornais precedendo alguma notícia vinculada à violência nas
páginas policiais. Em 2006, Cariacica ocupava o 1º lugar no ranking das cidades
mais violentas da Grande Vitória45. De acordo com dados levantados pela Secretaria
de Estado de Segurança Pública (Sesp) a macro-região, que abrange 25 bairros no
entorno de Nova Rosa da Penha e Flexal teve contribuição significativa em crimes
ligados diretamente ao tráfico de drogas. Em 2009, estudo realizado pelo Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef), apontou Cariacica como o terceiro lugar na
lista dos municípios onde mais se matam jovens e adolescentes no Brasil46.
É nesses bairros, onde os índices de criminalidade se destacam, que estão
localizados os grupos citados na Casa da Juventude. Segundo Robson Malacarne,
um dos coordenadores da Casa, em suas apresentações, os grupos estimulam o
debate político e social entre os jovens. Existem no município aproximadamente 6
ou 7 grupos47 que não possuem articulação entre si, realizando suas atividades
44 A Casa da Juventude é um projeto do Departamento da Juventude que está vinculado ao gabinete
do Prefeito. Concentra ações e projetos voltados para a juventude sem estar ligada especificamente a nenhuma secretaria. A proposta da Casa é que esta seja um local de apoio aos movimentos da juventude do município, tanto no que diz respeito à disponibilização da sua infra-estrutura (telecentro, auditório, estúdio, salas de reuniões, assessoria de direitos humanos, etc.), quanto na promoção e elaboração de políticas voltadas para a juventude, como a criação do Conselho Municipal da Juventude.
45 ―Nova Rosa da Penha e Flexal elevam mortes em Cariacica‖, reportagem publicada em 07/07/
2006, no Século Diário. Disponível em http://www.seculodiario.com.br (acessada em 10 de julho de 2009).
46 ―Seis municípios do ES no ranking das cidades onde mais se mata jovens no país‖, reportagem
publicada em 21/07/2009, na Folha Vitória. Disponível em http://www.folhavitoria.com.br (acessada em 10 de julho de 2009)
47 Esse número é baseado nos registros existentes na Casa da Juventude considerando a
participação destes grupos em eventos, seminários, reuniões e conferências realizadas. É provável
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61
isoladamente. Aliás, de acordo com Malacarne, esta característica está presente na
maioria dos movimentos relacionados à juventude em Cariacica, como o basquete
de rua, a capoeira e o funk. São movimentos que se apresentam mais ou menos
fortes de acordo com as regiões em que estão localizados. No entanto, seu nível de
articulação ainda é precário. Os movimentos que se sobressaem são os que
possuem uma atuação mais explicitamente voltada para a política ou alguma ordem
religiosa – como a União Cariaciquence dos Estudantes Secundaristas48 e a Pastoral
da Juventude49. Apresentam um nível de organização maior, mostrando-se mais
representativos e articulados. Organizações como a Central Única das Favelas –
CUFA possuem no município uma atuação voltada mais para prestação de serviços
e auxilio na realização de eventos do que propriamente um vetor de articulação dos
movimentos da periferia.
Esse encontro instigou-nos a explorar um pouco mais esse escape. Utilizamos para
isso os recursos de busca na internet para termos a dimensão da abrangência da
veiculação midiática da produção desses grupos, em específico dos localizados nos
bairros críticos de Cariacica. A difusão das lan houses, telecentros e ―gatonet‖50 nas
periferias brasileiras, além do relativo barateamento do valor dos computadores de
uso doméstico, tem facilitado o acesso e a utilização destas tecnologias pelos
moradores das periferias, além de ter propiciado que estas coloquem em circulação
na rede uma infinidade de conteúdos produzidos por elas mesmas. Encontramos um
amplo leque de grupos distribuídos pela região metropolitana além de Cariacica, nos
que existam mais grupos no município além destes.
48 Em fase de re-estruturação, o movimento apóia-se na construção do Centro Federal de Educação
Tecnológica do Espírito Santo - CEFET-ES no município como uma possibilidade de reascender o debate entre os estudantes.
49 Além da já tradicional Pastoral da Juventude, outro grupo tem se mostrado bastante atuante no
município, possuindo inclusive representação no Conselho Municipal da Juventude: o Demolay. O Demolay pode ser entendido como o movimento jovem da Maçonaria e em Cariacica é composto basicamente por filhos de Maçons e alguns convidados. Reúnem-se no Bairro Santa Fé desenvolvendo projetos internos e também em parceria com comunidades, voltados para assistência social.
50 Forma clandestina de ter acesso à TV a cabo e internet.
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municípios da Serra, Vila Velha e Vitória. Em alguns, o material encontrado é fruto
de uma produção ―caseira‖, ―amadora‖, com qualidade técnica duvidosa. Outros
apresentam um nível de informação e produção compatíveis com grupos musicais
financiados pela indústria fonográfica ―oficial‖. Santos (2005) fala sobre essa
possibilidade de ―revanche da cultura popular sobre a cultura de massas‖, quando
ela se utiliza de instrumentos que na origem são próprios da cultura de massa para
difundir a sua produção. Ainda segundo Santos, a cultura popular ganharia força por
ser baseada nos símbolos ―de baixo‖, cultivada no território, no cotidiano, por ser
portadora da ―verdade da existência e reveladora do próprio movimento da
sociedade‖. Cabe ressaltar que embora se apropriem dessas tecnologias, não
possuem em geral o seu controle, o que, aliás, é uma incógnita não apenas para os
moradores da periferia, mas para o mundo todo, uma vez que a mega-empresa
Google está monopolizando sistemas, programas e ferramentas. Não é apenas a
periferia do mundo capitalista que está ―refém‖ desta empresa.
Estes movimentos, estes símbolos podem ser percebidos entre as batidas dos DJ‘s,
os passos dos b-boys, os traços dos grafiteiros e atravessando os discursos dos
MC‘s51. As frases de ordem que denunciam as injustiças sociais e incitam reações
são quase sempre intercaladas por clamores a um Deus único e onipresente. Entre
vídeos depositados no youtube52 e páginas do myspace53, os Suspeitos na Mira
cantam e lamentam que seus ―parceiros‖ tenham se desviado da ideologia hip hop e
dão ―Graças a Deus nosso Pai‖ por terem voz para ―dizer o que tem que ser dito‖54.
Renegrado Jorge, um dos mais antigos membros do movimento hip hop local, narra
em seu videoclip – gravado no ponto de ônibus do maior Shopping de Vitória – os
pensamentos de um velho mendigo que mora embaixo da Terceira Ponte ao
51 Estes 4 elementos, o DJ, o b.boy, o grafite e o MC compõem a cultura hip hop, de acordo com
Eduardo B-boy, um dos encontros que tivemos nesse percurso e que apresentaremos mais adiante.
52 www.youtube.com
53 www.myspace.com
54 ―Narrativa‖, Suspeitos na Mira. Música disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=BSiG1ejSV1E&feature=related (acessado em 17 de julho de 2009)
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observar a ―burguesia‖ que freqüenta o shopping. Enquanto espera a morte ―com
muita felicidade‖, agradece ―a Deus por não se parte da sociedade‖55. As meninas do
Mulheres de Atitude – MDA, são exceção nesse universo dominado pelos homens e
encaram com seriedade essa responsabilidade ao percorrerem bairros como Feu
Rosa e Novo Horizonte, na Serra e Morro do Romão em Vitória, localizados nos
morros e periferias da região metropolitana , evocando o heroísmo de Joana D‘Arc e
denunciando a violência contra a mulher. ―Mulheres sendo espancadas por
namorados, por maridos/ Sou mulher que não aceita por homem ser maltratada/
Respaldada pela Maria da Penha, que nos protege de canalhas‖ 56, cantam elas.
Alguns grupos, como o Inversão Brasileira, reúnem integrantes de diferentes
municípios, neste caso, Vila Velha e Cariacica. O território do hip hop inclui diversos
territórios constituídos de fragmentos urbanos do alto do morro, do fundo dos vales,
dos espaços elitizados, conectados pela letra, pela dança, pela batida quebrada,
pela expressão gráfica, pelo jeito de andar e vestir da cultura hip hop, que se
materializam e se fazem presentes em toda cidade carregados de intensidades de
periferia.
Foi acompanhando a movimentação dos gorros e bonés virados para trás; das
correntes presas aos bolsos dos bermudões; dos tênis estilo ―All Star‖, quase
sempre acompanhados de uma mochila a tira colo, que interrompemos nossa
investigação virtual e tomamos um ônibus rumo ao Terminal de Laranjeiras 57, na
Serra. Denunciavam a corpografia58 advinda da experiência urbana singular das
55 Vídeo depositado no site http://www.youtube.com/watch?v=1MQAXEiDXEg (acessado em 17 de
julho de 2009)
56 Música disponível no site oficial do grupo: http://www.myspace.com/mulheresdeatitude (acessado
em 24 de julho de 2009)
57 A partir da década de 90, Laranjeiras consolida-se enquanto principal centro de comércio e
serviços de acentuada importância municipal, apresentando estabelecimentos e equipamentos urbanos de abrangência metropolitana, em geral localizados ao longo de eixos viários que apresentam concentração deste tipo de uso. Atualmente tem recebido boa parte da classe média capixaba que não encontra mais muitas opções de empreendimentos residenciais acessíveis na capital.
58 Por corpografia entende-se ―uma cartografia corporal (ou corpo-cartografia, daí corpografia), ou
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periferias. Desviamo-nos momentaneamente do percurso rumo a Alice Coutinho
para seguirmos esses b.boys que, em uma tarde ensolarada de sábado, tomavam
esta condução e dirigiam-se ao terminal. O terminal, comumente utilizado como local
de passagem e de baldeação, inusitadamente era o destino final desses jovens.
Para lá se direcionam, todo segundo sábado do mês, centenas deles, oriundos
principalmente das periferias da região metropolitana. O local é palco do ―Encontro
de B.Boys e B.Girls do Terminal‖. O encontro agrega em média 80 a 100 dançarinos
e aprendizes que se apresentam nas rodas formadas sob a batuta do DJ e do MC,
além de centenas de passantes que ao serem surpreendidos com tal movimentação
fazem uma pausa em seus percursos e prestigiam curiosos a exibição dos jovens
por alguns minutos. São diversos os fluxos e vetores atuando neste movimento
múltiplo produzido na/pela periferia – onde já conquistaram seu espaço – atualizado
neste ―não lugar‖ onde são construídas novas possibilidades de agenciamentos e
relações. Para Souza & Rodrigues (2004), a relação entre a periferia e o hip hop é a
sua essência, é a forma que as pessoas que moram em espaços pobres e
segregados encontram de fazer política. São as relações que se estabelecem entre
estes indivíduos pelo fato de estarem juntos em determinado espaço, nesse caso a
periferia, que Santos (1996) chama de transindividualidade. Essa
transindividualidade alimenta a criação cultural e artística dos integrantes do
movimento.
O terminal é um importante nó da rede viária urbana. O movimento apropria-se de
sua localização estratégica e sua articulação com as diferentes periferias da Região
Metropolitana através do sistema Transcol59, estruturado a partir de linhas que
coletam passageiros dos bairros e os direcionam aos terminais, de onde partem as
linhas de abrangência metropolitana. Quando o hip hop utiliza-se da potencialidade
do terminal e elege-o como o lugar do encontro, realiza nele outro escape. Apesar
seja, parte da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma também o molda, mesmo que involuntariamente (...)‖. (JACQUES, 2007)
59 Principal sistema de transporte público da região
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de parecer óbvia a característica articuladora destas estruturas urbanas,
percebemos o quão subutilizadas e impessoais são. Apropriando-se delas
imprimem aí novos significados. O hip hop ―carrega‖ a periferia para o centro e
reinventa o terminal e se espalha a partir dele.
Figura 11 - Panfleto de divulgação do Encontro de B-Boys e B-Girls
O evento começa assim: chega um grupo carregando a aparelhagem de som,
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acompanhado em geral do MC e do DJ – responsáveis por ditar o ritmo e batida das
performances dos b.boys. Os demais dançarinos começam a saltar dos ônibus e
agrupam-se em volta da aparelhagem enquanto fazem exercícios de aquecimentos.
Aos poucos a roda vai se fechando e todos estão ansiosos para começar suas
apresentações. Ao som da batida do DJ o MC dá as boas vindas aos dançarinos, e
a roda começa. Nela se vê passos, saltos, rodopios e encenações onde se misturam
disputa, desafio, ―brodagem‖ e solidariedade. É o b.boy que faz um movimento mais
complexo e é aplaudido pelos companheiros; é o iniciante – fruto das oficinas e
projetos sociais que trabalham a cultura hip hop – que é incentivado pelos
professores; é o movimento novo, diferente que é questionado pelos veteranos,
gerando um clima de tensão na roda; são as provocações e respostas dadas às
críticas através de sucessivas performances quase sempre desafiando este ou
aquele b.boy causador da discórdia. Os tradicionais freqüentadores, ou melhor,
passantes, do terminal, disputam uma ―janela‖ entre os b.boys da roda e apreciam
as apresentações. No entorno da roda, alguns iniciantes na dança break aproveitam
a presença de seus professores e de dançarinos mais experientes para pedirem
dicas e treinarem novos movimentos. Não vêem a hora de tornarem-se também o
centro da atenção e serem admirados pelos outros b.boys e pelos passantes do
terminal.
Fomos atrás de um dos organizadores do encontro, o ―Eduardo B.boy‖ – como se
autodenomina em uma página de relacionamentos na internet –, integrante do grupo
de break Ultimate B.Boys. Através dele soubemos um pouco mais da estória deste
evento que existe há 10 anos no terminal. Inicialmente não possuíam autorização.
Quem começou o movimento foi o grupo Vitória Crew que, articulado com outros
grupos, convocavam os demais integrantes do movimento que, juntamente com
seus aparelhos de som, realizavam no terminal suas performances. Não demorou
para que a Companhia de Transportes Urbanos da Grande Vitória - Ceturb proibisse
tais manifestações. Concomitantemente o movimento hip hop conquistava abertura
junto aos projetos sociais da Grande Vitória e através dos cursos, oficinas e
workshops de grafite, streetdance, discotecagem e etc. conquistavam mais adeptos.
Apoiados pelos projetos sociais, e sob a organização do grupo Ultimate B.boys, foi
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elaborado o projeto do ―Encontro de B.Boys e B.Girls do Terminal‖ e através dele
conseguiram o apoio da Ceturb. Tal apoio consiste apenas no aval para realização
do evento uma vez por mês. Todas as despesas (como o transporte da aparelhagem
e aquisição de equipamento) são bancada pelos Ultimate B.Boys. Eduardo e
Alecsandro (o grafiteiro Alecs Power) queixam-se da falta de subsídio para
realização do evento que a cada dia cresce mais. Sabem da responsabilidade que
têm na manutenção do evento, principalmente junto aos seus alunos. Os dois dão
aulas em projetos sociais da Região Metropolitana e sabem o quão aguardado é o
dia do encontro pelos jovens e crianças das periferias em que trabalham: ―Tem
gente que mata cursinho até para vir aqui. Sabe que é uma vez por mês só‖, conta
Eduardo. Ele acredita que esta parceria dos projetos sociais com o movimento hip
hop é fundamental para o sucesso de iniciativas que têm por premissa resgatar
crianças e adolescentes em situação de risco. Eduardo lembra que desviar esses
jovens do mundo das drogas e do crime faz parte da filosofia do hip hop. Querendo
ou não, seus alunos são alertados que, ao aderirem ao movimento hip hop, estão
aderindo a uma postura e um posicionamento que vai além das letras, dos passos
do break, ou dos traços do grafite. Estão aderindo e um estilo de vida. Perguntamos
o que leva os jovens à essa adesão. Instantaneamente Eduardo responde: ―A mídia.
Está na mídia. Ele vê que o cara tá lá na televisão e vê que pode tá lá também‖.
Percorremos mais um pouco o espaço do terminal observando a circulação dos
b.boys misturados aos passageiros dos ônibus que paravam para assistir o
movimento. Notamos que são poucas as meninas do movimento presentes. Em
geral estão acompanhadas de namorados e poucas são as que arriscam alguns
movimentos do break ao lado da roda principal. Enquanto isso o DJ chama a
atenção de alguns b.boys que tumultuam a roda, enquanto um rapaz queixa-se de
que furtaram seu celular na mochila enquanto estava entretido aguardando seu
momento de entrar na roda. Os motoristas em horário de descanso procuram um
―buraco‖ na roda para prestigiar a apresentação e um grupo de crianças, talvez
alunos ou iniciantes, dão os primeiros passos na dança.
Decidimos que é hora de voltar para o ponto de onde nos desviamos e optamos por
pegar a BR-101, Rodovia do Contorno, para retornarmos a Cariacica. No caminho,
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algumas questões não nos deixaram esquecer do Terminal. Não é irônico que o
garoto que teve o celular furtado tivesse exatamente o estereótipo dos suspeitos
desse tipo de furto? Negro, magricelo, jovem, de bermudão, corrente pendurada,
camisa larga e boné pra trás? Lembramos do comentário dele quando se deu conta
do furto, mas que na hora pareceu-nos irrelevante: ―Depois a gente vai lá reclamar
com os ‗caras‘ e eles acham ruim, não acreditam na gente!‖, se referindo aos
seguranças do Terminal. Ainda que almeje ser notado, ser visto, a sua própria
imagem, sua corporeidade60, caricatura do menino da periferia, é uma barreira para
que suas queixas e suas denúncias sejam encaradas com seriedade pelos
detentores contextuais do poder, nesse caso, o segurança do Terminal. No
momento, sua visibilidade está relacionada com a imagem de suspeito. Lembramos
de fato semelhante narrado por Faustini (2009), ao se recordar de um acontecimento
de sua adolescência na baixada carioca, quando voltava para casa com seus
amigos. Foram abordados por policiais militares, mas só um deles levou o tapa na
cara, o que era negro. Faustini atribui a sua invisibilidade de branco junto aos
policiais a justificativa de não ter sido também agredido. Estar na mídia é, para o
menino do hip hop, o seu devir branco. Sua possibilidade de ser invisível em
situações como a narrada por Faustini e, em outras, ter a visibilidade dos brancos. O
devir branco aqui não se refere exclusivamente à cor da pele, mas a toda uma série
de atribuições e ideais que carrega esse devir majoritário: a do belo, a do bem
sucedido, a do aceito, a do que possui permissão para circular sem ser barrado, a
do que pode cobrar por justiça sem ser ridicularizado, etc. A desconfiança é violenta
com os meninos da periferia. José Junior (2006) também relata um episódio de
desconfiança quando foi com um amigo comer pela primeira vez em um Mc‘Donalds
no Rio. A volta pra casa foi surpreendida com o espancamento dos dois por policiais.
Quantas não são as histórias de desconfiança, humilhação e violência para com
estes meninos? O papel de suspeito lhes é comum, assim como a ânsia em deixar a
invisibilidade. O devir escape para estes meninos é a visibilidade dos brancos?
60 ―(...) corporalidade ou corporeidade é uma dimensão objetiva que dá conta da forma com que eu
me apresento e me vejo, que dá conta também das minhas virtualidades de educação, de riqueza, da minha capacidade de mobilidade, da minha localidade, da minha lugaridade (...)‖ (SANTOS, M. 1996)
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Ainda que incomodados com tal in-conclusão tomamos nosso caminho de volta
deixando em aberto a continuidade dessa discussão.
2.2.3 Deslocamento 03: Terminal de Laranjeiras – Casa da Juventude
Figura 12 - Protestos como escape. Esquema do percurso e dos encontros
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Figura 13 - Protestos de moradores na Rodovia do Contorno na Serra [32].
Fonte: www.gazeaonline.com.br
Figura 14 - Atropelamento na Rodovia do Contorno em Cariacica [30].
Fonte: www.gazeaonline.com.br
Tomamos a BR-101 rumo a Cariacica através desta rodovia, conhecida como
Rodovia do Contorno neste trecho em que se desvia da capital Vitória. Na década
de 90, as faixas em seu entorno então em processo de consolidação, tiveram
algumas de suas áreas destinadas ao desenvolvimento de atividades metropolitanas
do setor terciário, apresentando predominância de estabelecimentos de grande porte
destinados a comércio e serviços com elevado grau de especialização. Algumas
grandes glebas abrigam empreendimentos cujos raios de atendimento extrapolam
os próprios limites estaduais, como as Estações Aduaneiras de Interior (EADIs) no
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município de Cariacica. Nos últimos anos, o município tem trabalhado para afirmar
seu potencial logístico, tirando proveito de sua localização geográfica, da
proximidade com o complexo portuário, das infra-estruturas rodoviária e ferroviária
que atravessam seu território, assim como da existência de grandes áreas ainda
disponíveis favoráveis a instalação de equipamentos de grande porte.
Deparamo-nos com grandes velocidades em busca de tempos reduzidos, em busca
da adequação ao ―mundo do tempo real‖, do “just-in-time‖ das empresas de
logística, da racionalidade única, cuja criação é limitada a um pequeno número de
agentes, impondo um ritmo de vida incompatível com o ritmo no qual o mundo
cotidiano sobrevive. Em Cariacica, os fluxos oriundos da transnacionalização dos
arranjos econômicos, são brutamente materializados: caminhões-baús e containers
atravessam e sobrepõem-se ao tempo das pequenas práticas conectadas às rotinas
locais. Observamos as pessoas que trafegam a pé ou de bicicleta pela rodovia em
uma velocidade bem mais lenta nos perigosos (e praticamente inexistentes)
acostamentos.
Em determinados trechos, estas faixas também concentraram expressivo
quantitativo de comércio varejista de pequeno e médio porte, assim como bairros
populares, confirmando as tendências de alguns fragmentos da Rodovia assumir
características tipicamente locais com dinâmicas urbanas, superiores àquelas
registradas no restante da rodovia.
Enquanto o funcionamento dos espaços hegemônicos supõe uma demanda
desesperada de regras que obedeçam à dinâmica de interesses privados, o
cotidiano supõe uma demanda desesperada de Política, resultado da consideração
conjunta de múltiplos interesses (SANTOS, 2000).
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Figura 15 - Sobre as diferentes velocidades na cidade. Serra, ES.
Fonte: Pesquisa MG-ES, um sistema infra-estrutural. Disponível em http://www.pucsp.br/artecidade/mg_es/index.htm
Em meio a apitaços, panelaços, sinais de fogo e cheiro de pneu queimado,
encontramos um grupo de moradores reagindo a esta lógica perversa na qual a vida
é banalizada e seu valor minimizado frente ao valor das mercadorias. O cidadão é
relegado a segundo plano. A indignação parte de mais um dentre tantos os
atropelamentos que acontecem quase diariamente na rodovia. Em 2008, o Espírito
Santo possuía três dos dez pontos mais perigosos das rodovias brasileiras. Dois
deles localizados na Rodovia do Contorno (BR 101) e um na BR 262, também em
Cariacica61. No entorno da rodovia estão localizados 13 populosos bairros do
município, entre eles Nova Rosa da Penha, que se originou de sucessivas
ocupações irregulares em áreas do Estado na década de 70/80. Um dos pontos
mais críticos da rodovia é exatamente na entrada deste bairro. De acordo como
61 Jornal A Gazeta, 02/12/2008. Disponível no endereço eletrônico:
http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2008/12/37837-estado+tem+tres+dos+dez+pontos+com+maior+indice+de+acidentes+nas+estradas+federais.html . Acessado em 03/03/2009.
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inspetor da Polícia Rodoviária Federal Marcos Wiris Rainha62, é nas entradas dos
bairros que a maioria dos atropelamentos acontece. Estas dezenas de acidentes e
atropelamentos anuais denunciam a incompatibilidade entre a velocidade da rodovia
e o ritmo de vida dos moradores e trabalhadores do entorno que locomovem-se em
geral a pé, de ônibus ou bicicleta.
Encontramos alguns deles materializando sua insatisfação utilizando-se das já
usuais práticas de barricadas como reação a violência com que modelos
hegemônicos e excludentes são impostos. O que está em jogo nesta movimentação,
o que os une na rodovia, independente de uma organização, é a própria
sobrevivência. Suas, de seus filhos, familiares e amigos. A causa que os une
momentaneamente, o comum entre eles é a valorização da vida. Querem através
desses atos tornarem-se visíveis. E assim conseguem, ao escorregarem do interior
das áreas opacas, aonde moram, e ocuparem e interromperem o fluxo, ainda que de
matéria, das área luminosas. A cidade não é indissociável de sua estrutura física.
Nem os fluxos o são. Ainda que Castells (1999) fale da emergência de uma
―sociedade em rede‖ em detrimento da ―sociedade territorial‖, inserida na lógica de
uma economia global almejada pelo município, esta continua a ser composta tanto
de espaços de fluxo quanto de espaço de lugares. Ainda que na rodovia predomine
a lógica espacial dos espaços de fluxos, seu oposto, a organização espacial
historicamente enraizada, momentaneamente questiona e coloca em ―xeque‖ este
domínio, pois na realidade, são os dois o mesmo lugar. Como nos comunica Santos,
São, todavia, os mesmos lugares que formam redes e que formam o
espaço banal. São os mesmos lugares, os mesmos pontos, mas
contendo simultaneamente funcionalidades diferentes, quiçá
divergentes ou opostas. (SANTOS, M. 2005)
Os deslocamentos e atropelamentos na rodovia também incluem aqueles moradores
62 Jornal A Gazeta, 13/06/2008.
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que trabalham nas empresas instaladas na beira da rodovia, assim como os
moradores de outras periferias da região metropolitana, que necessitam aguardar,
em pontos de ônibus precários ou improvisados, o transporte público para voltarem
para suas residências. Estes trabalhadores cruzam e arriscam-se diariamente na
rodovia. Ao mesmo tempo em que é o perigo, a existência da rodovia e toda a
problemática que apresenta com a instalação das empresas e o intenso fluxo de
cargas pesadas advindo dessas atividades, enquanto vetor de crescimento
econômico, apresenta-se como uma possibilidade de trabalho para os moradores do
entorno.
Ainda que pulsem as barricadas, o lugar tem sua lógica e seu significado
determinados pelas diferentes formas e estruturas de poder. Neste tipo de
manifestação, em geral, os poderes oficiais (municipal, estadual ou federal), tendem
a favorecer o setor de serviços avançados, primando pela participação destes nos
índices de emprego e no PIB (Produto Interno Bruto), resguardando assim a
possibilidade de atrair novos de investimentos para a área.
Mesmo considerando a fragilidade deste movimento frente aos poderes –
principalmente ao poder policial que em geral age de forma autoritária e covarde
contra estes manifestantes – achamos válido considerar estas reações enquanto
potência pelo fato de trazer para o visível o afrontamento dessas grandes estruturas
materializadas em infra-estrutura e logística (acho que é mais isso que a fragilidade
da estrutura global. Não?) a também fragilidade da estrutura global pautada nos
espaços de fluxo ao revelar sua dependência da estrutura física da cidade.
Gonçalves (2002) apresenta-nos a força dos ―piquetes‖ realizados por moradores
desempregados do bairro operário de La Matanza, na região da Grande Buenos
Aires, na Argentina. O movimento bloqueou o tráfego das carretas na rota
economicamente mais importante do país.
Se trató de una lucha ‗pueblada‘como dicen los argentinos, porque
involucró a todos los integrantes del barrio, con distintas estrategias
de sobrevivencia y distintas modalidades y experiencias de lucha. El
episodio de La Matanza constituyó un aprendizaje en las
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potencialidades del sentido territorial de las nuevas formas de
organización de la población, al tiempo que evidencia el carácter
antipopular del gobierno, a pocos meses de haber asumido. El
gobierno tuvo que firmar un convenio con los insurrectos de La
Matanza, aceptando todas sus exigências. (CECEÑA, 2001 in
GONÇALVES, 2002).
Desta forma, indicamos a espacialização dos protestos como escape por emergir de
um contexto dominado pelos vetores da racionalidade hegemônica enquanto seu
oposto. Pela ousadia da pausa em um movimento que não admite interrupções, por
dar visibilidade aos que são invisibilizados nos acostamentos inexistentes e pela
capacidade aglutinadora independente de movimentos oficiais institucionalizados.
Nossa aproximação com escape até então foi consideravelmente superficial, do
ponto de vista do contato com os envolvidos em sua realização. Restringimo-nos em
lançar um olhar atento a esta situação de dentro do ônibus que conduziu-nos de
volta a Cariacica. Um refinamento desta possibilidade junto aos moradores do
entorno que vivenciam cotidianamente esta situação parece-nos um passo válido
que apontará outras cartografias possíveis e mais precisas deste movimento.
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2.2.4 Deslocamento 04: Terminal de Itacibá – Terminal de Campo
Grande
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Figura 16 – Comércio Informal como escape. Esquema do percurso e dos encontros
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Depois dessa passagem pela Rodovia do Contorno, voltamos a Cariacica via
Terminal de Itacibá. Esse desvio permitiu que compreendêssemos um pouco mais
da configuração do município. Ainda no ônibus, percebemos que, à medida em nos
aproximávamos do Terminal, as pessoas movimentavam-se e agitavam-se rumo à
porta de saída. Quando o ônibus parou, dirigiram-se a outra fila, que conduzia aos
ônibus rumo a outro terminal, o de Campo Grande. Esta migração quase que em
massa dos passageiros de um ônibus para o outro, instigou-nos saber o motivo de
tal deslocamento coletivo. Era fim de semana, véspera de uma data comemorativa,
situação na qual o consumo bate recordes no país. Tal fato levava os moradores
das periferias por onde passamos a dirigirem-se ao principal centro comercial do
município, Campo Grande.
De acordo com ABE (1999), o asfaltamento da BR-101 na década de 60 foi o vetor
que impulsionou o surgimento de vários bairros ciliares a ela, dentre eles Campo
Grande. Na década de 90, o bairro consolidou-se enquanto centro de comércio e
serviços de acentuada importância, em Cariacica, apresentando estabelecimentos e
equipamentos urbanos de abrangência metropolitana, em geral localizados ao longo
de eixos viários que apresentam concentração deste tipo de uso.
Pouco depois de atravessar a BR-262, antes da chegada ao terminal, notamos que
as pessoas preparavam-se para saltar e fizemos o mesmo. Saltamos na principal via
do bairro, a movimentada Avenida Expedito Garcia, onde coexistem pequenos
estabelecimentos comerciais formais, grandes magazines de redes multinacionais,
barracas e bancas improvisadas de vendedores de variadas mercadorias, clientes,
moradores, trabalhadores, restaurantes, supermercados, botecos, lanchonetes,
guardas, andarilhos, mendigos. Compreendemos que em Campo Grande cruzam-
se moradores de todas as regiões do município. Comumente referem-se ao bairro –
em tom de brincadeira – como Big Field, com o intuito de ressaltar sua importância
no município. Big Field é lugar de destaque. É onde residem as pessoas de maior
poder aquisitivo, onde é possível encontrar algum tipo de diversão a noite, onde
concentram-se as melhores escolas e universidades privadas do município, onde é
possível encontrar uma diversidade de estabelecimentos comerciais para fazer
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compras.
Conversando com uma professora que dá aula de inglês no bairro, ela explicou-nos
que o trecho entre a BR-262 e a pracinha de Campo Grande (identificada pela letra
―A‖ na Figura 17) é a ―ala mais nobre‖ do bairro, onde se encontram as lojas mais
caras. Nela percebemos que sua estrutura urbana é também um pouco mais
generosa, com calçadas mais largas e o trânsito flui apenas em uma direção. O
trecho ente a praça e o posto de gasolina (identificado pela letra ―B‖ na Figura 17) é
onde a aglomeração é maior. As calçadas parecem ser mais estreitas, o trânsito de
mão dupla e os pontos de ônibus sem estrutura necessária, fazem com que a
sensação de tumulto seja maior. Do posto de gasolina em direção a saída do bairro
(indicado pela letra ―C‖ na Figura 17) a ambiência modifica-se e aos poucos já se
assemelha com as instalações da BR-262.
Tentamos fazer um paralelo com Vitória, mas não encontramos nela nenhuma
centralidade que possua características semelhantes. Talvez a única centralidade
que comporte de longe a sobreposição apresentada em Campo Grande, pelo fato de
agregar diferentes estabelecimentos comerciais e freqüentadores diversificados,
seja a centralidade conferida ao maior shopping da cidade. Mas tal comparação
torna-se descabida ao considerarmos que, no caso do shopping, a acessibilidade
física e simbólica é rigidamente controlada pela iniciativa privada, onde normas de
conduta e comportamento são estabelecidas de forma a assegurar um mínimo de
―ordem‖ e ―segurança‖ a seus freqüentadores.
No entanto, identificamos um elemento que conecta as diferentes centralidades,
inclusive o shopping, e faz-se presente onde quer que se apresente concentração de
gente: o ambulante, o camelô, o ―cara do carrinho‖. Criamos um recorte imaginário
abrigando o trecho mais denso da Av. Expedito Garcia (representado pelo retângulo
amarelo da Figura 17) e decidimos analisar um pouco a dinâmica desses
comerciantes, que denominaremos aqui como vendedor informal de rua.
Contabilizamos aproximadamente 100 vendedores neste trecho, embora estimemos
que este número seja maior devido aos vendedores realmente ―ambulantes‖, que
não se fixam em determinado local. A fugacidade destes vendedores levou-nos a
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abordá-los sem, no entanto, preocupar-nos em quantificá-los com precisão.
Figura 17 - Imagem de satélite de Campo Grande, Cariacica. Destaque para o recorte da Av. Expedito Garcia, principal via do bairro.
Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).
Marcamos então um encontro nesta avenida com a Gerente de Projetos Urbanos da
Prefeitura Municipal de Cariacica e também mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFES, Ivana Souza Marques, que na
ocasião estava realizando pesquisa também neste bairro para sua dissertação de
mestrado, com quem compartilhamos impressões acerca desta atividade enquanto
possibilidade de escape.
Percebemos que estes vendedores encontram-se concentrados na própria Avenida
Expedito Garcia e no início de suas transversais, próximos às esquinas. Estas são
as áreas de maior movimento e trânsito de pessoas. Assim como também as
esquinas são os lugares de pausa para travessia dos cruzamentos. Entre a
desterritorialização do grande capital e a virtualização do fluxo das transações
financeiras, a oportunidade de lucro para estes vendedores circula em um espaço-
tempo apreensível e determinável ainda que mutável. Movimento e pausa guiam a
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lógica de fixação e deslocamento dos vendedores pela avenida, levando em
consideração o tipo de suporte disponível e as características dos elementos
construídos do entorno, assim como o tipo de mercadoria vendida. São muitas as
variantes envolvidas e determinantes para a espacialização deste comércio informal
de rua. Passamos a percorrer e a observar a espacialização dos comerciantes na
avenida. Eles se encontravam em frente à pizzaria fechada (ao menos nesse
horário), caminhando pelas calçadas, em frente a lojas maiores como Stapi,
Eletrocity, Casas Bahia, Tim Celular, Lojas Franklin, Lojas Avenidas, em frente à
farmácia, apoiados na parede da farmácia, apoiados no parapeito do Supermercado
Extra Plus, na esquina do Supermercado, na lateral do Supermercado, apoiados na
parede em frente a clínica odontológica, concentrados na esquina do Leevre, em
frente a financiadora Dacasa, na esquina da IBI-C&A, em frente a papelaria
Castorino Santana, ao lado do supermercado Schwuab, em frente ao supermercado,
em frente ao banco BMG. Por vezes encontram-se localizados no leito da rua, ora
na calçada, ou ainda entre um e outro utilizando o desnível da calçada como apoio.
Figura 18 - Esquema da concentração de vendedores ambulantes identificados na Av. Expedito Garcia (trecho B).
Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).
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Identificamos vários tipos de tipos de suportes que os vendedores usam para expor
suas mercadorias. Vão desde mesinhas portáteis ao chão da própria calçada. Dos
capôs dos carros, aos gradis, paredes externas e outros elementos das fachadas
dos imóveis localizados na avenida. De kombis, vans ao próprio corpo. Há um
diálogo constante entre estes variados elementos: é o cara do cachorro quente que
guarda seus banquinhos e mesinhas no depósito da loja de celular; o vendedor de
DVD que aproveita-se do portão da escola que não abre aos sábados; é o vendedor
de queijo que protege-se do sol na sombra da banca de jornal. Embora exista
também aparentemente competição e rivalidade entre vendedores formais e
informais, essas reciprocidades urbanas estão presentes no dia-a-dia na dinâmica
desta e provavelmente de outras centralidades. O tipo de suporte também
pressupõe investimentos e recursos variados, que influenciam também nas
estratégias de conquistas de clientes. De buzinas, a mega-fone, carros de som e a
própria voz, são instrumentos utilizados para atrair fregueses e clientes. A buzina do
―olha aê o picolé e o chip-chup‖ já é clássica. Assim como o ―tin tin tin‖ do triângulo
do vendedor de quebra-queixo‖. O vendedor de DVD pirata coloca-nos a par dos
últimos lançamentos da indústria cinematográfica e oferece-nos 3 lançamentos por
valor equivalente a uma entrada no cinema. Não apenas ter instrumentos de
comunicação, mas poder de convencimento parece fundamental para ter sucesso
neste ramo.
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Figura 19 - Esquema da classificação do tipo de suporte utilizado pelos vendedores no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B).
Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).
Alguns suportes utilizados permitem que possam circular pela avenida enquanto
outros exigem que se fixem em determinados pontos. Chamamo-os aqui de fixos,
híbridos e nômades. Dos fixos, cuja mobilidade é a mais limitada, destacamos as
barraquinhas, banquinhas, tabuleiros apoiados em caixotes, além de suportes
apoiados. Geralmente a estabilidade de seus apoios está na dependência de sua
imobilidade. Os híbridos possuem a capacidade de deslocamento, mas tendem à
fixação quando encontram público receptivo a suas mercadorias. Destacamos entre
os híbridos principalmente os carrinhos de comida e bebida, entre eles os de água
de côco, de salgado, de pururuca e batata frita (estes dois últimos utilizam carrinho
de supermercado). Os nômades utilizam em geral o próprio corpo para
deslocamento. Na figura abaixo (Figura 20) apresentamos uma representação da
espacialização destes vendedores no momento da pesquisa. Cabe ressaltar que
esta representação é meramente ilustrativa uma vez que como já abordamos aqui,
as estruturas utilizadas como suporte pelos vendedores são montadas e
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desmontadas diariamente, mesmo as que apresentam-se enquanto característica a
imobilidade. São fixas dentro de um espaço de tempo definido pela sua presença na
avenida. Quando encerram suas atividades, desmontam suas barracas, bancas,
etc., que serão remontadas no dia seguinte. Em alguns casos, alteram-se os
vendedores presentes na Avenida no período do dia e da noite, e após o desmonte
do vendedor diurno, chega o vendedor noturno e monta no mesmo lugar sua
estrutura. Alternam-se no uso do lugar. A figura do nômade aparece simbolicamente
representada no esquema. Como explicamos anteriormente, não nos prendemos a
localização ou percurso deste vendedor e o entendemos em constante movimento
entre os vendedores representados63.
Figura 20 - Esquema da classificação quanto a mobilidade dos vendedores no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B).
Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).
63 Entendemos que este constante movimento esteja permeado por momentos de pausa e fixações
temporárias. Apenas nos referimos a este vendedor como movimento constante para acentuar seu diferencial frente aos demais.
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Esta relação fixação ou mobilidade está também diretamente relacionada ao tipo de
mercadoria a ser vendida e a infra-estrutura necessária em cada caso. Dentre as
mercadorias que identificamos estão bolsas, cintos, capas de celular, chapéus,
óculos, relógio, tapete, acessórios, utensílios domésticos, artesanatos, bjouterias,
eletrônicos, vestimentas, calçados, brinquedos, CDs, DVDs, etc. Entre as comidas e
bebidas destacam-se churros, cocada, papa (Figura 21). E qual a relação entre ser
fixo, híbrido ou nômade? Um comentário sobre só um ser nômade?
Figura 21 - Esquema da classificação em relação ao tipo de mercadoria vendida pelos ambulantes no recorte da Av. Expedito Garcia (trecho B).
Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).
Percebemos que existem espaços definidos, áreas restritas a cada um, que não
pode ser ocupada por outro e algum tipo de organização, ainda que na ocasião não
tenhamos conseguido identificar formalmente seus representantes. Na ocasião, os
vendedores estavam prestes a ser desalojados pela Prefeitura por ocasião de um
projeto denominado Calçada Viva, que tinha por objetivo adequar as calçadas da
Avenida a um padrão compatível com o exigido pelas normas de acessibilidade. O
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clima entre os vendedores era de tensão e nossa presença, sondando sobre suas
atividades, parecia representar uma ameaça à permanência dos mesmos, que não
se mostraram muito receptivos a nossas tentativas de contato.
Optamos por analisar as informações que conseguimos e tentar junto a prefeitura
entender sobre o projeto Calçada Viva. Antes de sairmos de Campo Grande, no
entanto, deparamo-nos com Verônica, moradora de Alice Coutinho, bairro originado
a partir de uma ocupação organizada pelo Movimento Nacional de Luta pela
Moradia, em 1996. Conhecemo-nos em um trabalho que realizamos no bairro em
200564. Verônica convidou-nos para o chá de panela de sua filha e dá notícias do
bairro que agora já possui asfalto na rua principal. O convite veio a calhar em meio a
nosso interesse pelos escapes produzidos na cidade. Alice Coutinho pareceu-nos
propício para tal abordagem, uma vez que o bairro nasce em condições adversas,
em direção contrária à produção oficial e formal da cidade, construído coletivamente
pautado nas experiências coletivas de seus moradores. Aceitamos o convite.
Na Prefeitura, tivemos acesso ao projeto na Secretaria de Planejamento e
Desenvolvimento Urbano de Cariacica e pudemos constatar que a área destinada
para os ambulantes que seriam retirados das calçadas e da Avenida era
consideravelmente pequena comparada a quantidade de vendedores. O projeto
prevê a relocação deles para uma rua transversal à Expedito Garcia. Ao analisarmos
o diagnóstico realizado pela empresa de consultoria contratada pela Prefeitura,
constamos que não existem dados suficientes sobre os ambulantes que subsidiem
este dimensionamento. Nem dados quantitativos ou qualitativos, mesmo quando
abordada questões referentes a mobilidade, ao trânsito e à atividade econômica. É
como se não existissem, salvo um mapa onde aparecem em classificação
semelhante aos demais obstáculos nas calçadas, como postes, lixeiras, ou outros
elementos construídos.
Os territórios tecidos por estes vendedores quando espacializam-se pela cidade
64 Detalharemos essa relação e o trabalho que desenvolvemos no bairro Alice Coutinho no capítulo
seguinte.
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trazem para o debate uma série de discussões que passam por questões de
(i)legalidade em relação a venda de mercadorias piratas, no não pagamento de
impostos e tributos, além da obstrução de vias públicas. Mas também atualizam as
possibilidades de apropriação e criação na cidade. Silva (2007) apresenta essa
relação em seu trabalho, no qual atribui ao ambulante a produção atual de territórios
na cidade através do modo como o próprio indivíduo se apropria dos espaços,
invertendo, trocando, transformando e adjetivando de modo inesperado os espaços
públicos planejados. Utilizando-se também do termo escape, a autora define essa
produção do ambulante como um escape por entender que são ―frestas encontradas
pelos usuários da cidade para a manifestação de uma subjetividade singular‖.
Pactuamos com a afirmação de Silva e apontamos neste comércio informal de rua a
possibilidade de escape pelo seu caráter de constante (re)criação em um universo
que tende a eliminá-lo. Refinar o contato com estes vendedores, aproximando-nos
do fugaz processo de territorialização estabelecido por eles no cotidiano urbano,
parece-nos outra porta por onde podem-se desdobrar cartografias e outras
compreensões acerca desta movimentação.
2.2.5 Deslocamento 05: Terminal de Campo Grande – Roda D’Água
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Figura 22 – Festas religiosas como escape. Esquema do percurso e dos encontros
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―Iá iá você vai a penha? Me leva ô, me leva‖65
Este canto é trecho de uma música conhecida dos moradores do Espírito Santo seja
por estar incorporada ao tradicional repertório das bandas de congo locais, ou pelo
fato de ter sido popularizada no fim da década de 90 por uma banda capixaba 66 que
fez sucesso no estado unindo elementos do rock ao do ritmo popular, criando o
rockongo. Lembramos dessa canção na visita que fizemos a Prefeitura para
tomarmos conhecimento de informações sobre os vendedores informais de Campo
Grande.Lá, nos deparamos com uma agitação suscitada pela proximidade da festa
do Carnaval de Congo que acontece na área rural do município. Na ocasião, a
Secretaria de Cultura, em parceria com a Secretaria de Planejamento, estava
realizando um levantamento na comunidade de Roda D‘Água com o objetivo de
identificar e mapear os grupos de congo da comunidade, seus mestres e demais
integrantes. Tínhamos em mente partir da Prefeitura para Alice Coutinho, aceitando
o convite que recebemos de Verônica que encontramos em Campo Grande. No
entanto, atraídos pela festa do Carnaval de Congo em Roda D‘Água, desviamos
novamente do percurso imaginado. Convidamos alguns amigos e fomos
experimentar a festa.
65 Trecho de uma canção popular tocada pelas bandas de congo durante as festividades do Carnaval
de Congo de Máscaras, no Município de Cariacica-ES.
66 Banda Manimal.
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Figura 23 - Localização das bandas de congo e das comunidades rurais do município de Cariacica
Fonte: Encarte do CD Banda de Congo de Cariacica, ES-Brasil.
Instigou-nos a possibilidade de acompanhar esta festa-ritual que se atualiza
anualmente na comunidade através da realização do evento, recriando a
territorialidade do culto. A territorialidade não provém do simples fato de se viver
num lugar, mas da comunhão que se mantém com ele67. ―Territórios temporários‖,
são tecidos anualmente pelos devotos, mas a territorialidade das bandas de congo,
são cultivadas diariamente na comunidade quando práticas como a da confecção
dos tambores são ensinadas aos mais novos.
Tomamos novamente a Rodovia do Contorno, dessa vez por um curto trecho, e
67 SANTOS, 1997.
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atravessamos a pista em direção a zona rural do município. Deixamos a estrada
asfaltada e seguimos pela estrada de Roda D‘Água até encontrarmos a
movimentação que denunciava o evento. Encontramos as bandas de congo ainda
reunidas se preparando para a procissão pelas ruas da comunidade rural em direção
ao centro comunitário, onde se transforma em festa, que este ano se restringiu ao
encontro das bandas, sem o suporte já costumeiro de barraquinhas de comidas e
vendedores de bebidas. Os policiais encontravam-se de prontidão para que tal
determinação fosse cumprida. Soubemos pelos freqüentadores assíduos da festa
que no ano anterior haviam acontecido alguns tumultos e até alguns carros foram
atacados. Pelo fato de não apresentar uma estrutura que garantisse a segurança
dos freqüentadores no local, a prefeitura não teria permitido a realização da festa
que ocorre geralmente após a celebração religiosa. No entanto, próxima a área onde
estacionavam os carros que chegavam para acompanhar a celebração, nos
deparamos com um vendedor ambulante que utilizava sua kombi como se fossem
prateleiras de supermercado. De portas abertas, os produtos, inclusive as proibidas
bebidas alcoólicas, ficavam em exposição. Como dissemos no sub-item anterior,
onde houver concentração de gente, lá estarão os comerciantes informais de rua,
que por não se deterem exclusivamente a um ponto ou uma estrutura enraizada,
acompanham a movimentação das massas pela cidade.
Aproximamo-nos do som dos tambores, deixamo-nos envolver pelas cores em
movimento. Nos gestos, nas roupas, nas rezas, nas danças, nos ritos. Os corpos
rodopiam livremente pelas ruas de terra e lama. Entre eles, fiéis, moradores,
curiosos, admiradores e estudiosos, que rodopiam rememorando a subversão e a
conquista de tempos outros. Tempos em que a máscara do João Bananeira, hoje
adereço, camuflava e libertava para a festa o corpo prisioneiro da cor que trazia
impregnada na pele. Ao se tornar invisível, a pele preta – transmutada em múltiplas
cores de tecidos improvisados cobrindo o corpo em sua totalidade – forjava uma
indefinição quanto à sua condição de escrava e apropriava-se dessa possibilidade
temporária de, através da sua não identificação, suprimir barreiras, re-siginifcar
lugares e re-criar o território habitual pela ocupação simbólica do espaço pelo corpo
momentaneamente liberto. Um corpo em festa. Essa brecha no tempo durava o
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período em que os senhores, livres, deslocavam-se sem empecilhos – a não ser o
da distância – de Roda D´Água ao convento onde prestavam sua homenagem e
suas preces à Nossa Senhora da Penha, padroeira do Estado. Impedidos de fazer
tal percurso, os escravos criaram a sua própria festa, intitulada Carnaval de Congo
de Máscaras. A comunidade de Roda D‘Água manteve o ritual e anualmente recria-o
por três dias: Domingo de Ramos, Domingo de Páscoa e o dia da padroeira, Nossa
Senhora da Penha (uma semana após o Domingo de Páscoa).
Ao invés dos tradicionais hinos e cânticos católicos, ouvimos pelas ruas da
comunidade, em formato de cortejo, as músicas criadas e re-criadas pelos
descendentes dos escravos reproduzidas pelas bandas congo da região, que
prestam homenagem também a São Benedito.
A festa enquanto escape reinventa as relações entre os sujeitos e o ambiente
momentaneamente. Resignifica os espaços habituais através da alteração
temporária e regular de seu uso. Anualmente. Ruas que cotidianamente são
utilizadas para o deslocamento são apropriadas pelos fiéis em celebrações,
cerimônias, rituais e festas. Tecem circunstancialmente ―territórios sagrados‖ para
além dos muros e paredes de edifícios religiosos (igrejas, terreiros, templos,
conventos) que se desfazem, ou não, após o término das celebrações 68. Outras
festas religiosas acontecem tanto em Cariacica, quanto nos outros municípios da
região metropolitana, inclusive outros rituais nos quais participam as bandas de
congo, mas talvez pela sua peculiaridade do acontecimento lembramos da Festa de
São Pedro, realizada na praia do Suá em Vitória. Sua procissão subdivide-se em
procissão marítima e terrestre. Diferentes relações se estabelecem nesta ocasião.
Em Roda D‘Água, a cidade ―invade‖ a comunidade e o município enquanto
administração, apropria-se da festa e faz dela sua ―bandeira‖ cultural. Atualmente a
68 Em alguns casos, esses territórios deixam marcas visíveis, que se transformam em marcos
urbanos, como por exemplo a ―Cruz do Papa‖, em Vitória – ES. Outras vezes, são os marcos e símbolos religiosos que determinam o local dos festejos, como por exemplo, a Festa da Penha, em torno do Convento de Nossa Senhora da Penha, em Vila Velha – ES.
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administração pública participa de perto da organização desta festa que há algum
tempo tinha a comunidade como produtora exclusiva da festividade. A maioria dos
integrantes das bandas e atuantes no movimento organizado da região podem até
não concordar com a forma como o processo é conduzido, mas todos cobram do
poder público mais apoio e patrocínio para as bandas. Como é o caso do Mestre
Tagibe, que acha que as bandas de congo são pouco solicitadas para participarem
de eventos oficiais municipais por cobrarem cachê.
Mestre Tagibe é um dos mestres de congo morador de Roda D‘Água. Viemos a
encontrá-lo posteriormente a nossa ida à comunidade, trabalhando de vigia na
Secretaria Municipal de Educação de Cariacica. Através dessa descoberta pudemos
entender um pouco mais sobre o micro-universo dos moradores da comunidade e
integrantes das bandas. Seu Tagibe sempre viveu em Roda D‘Água e desde
pequeno acompanhava seu pai, também mestre de congo, quando este saía para
tocar. ―Com meu pai aprendi a ser congueiro‖, conta ele. Morar na área rural era
muito duro pois enfrentavam várias dificuldades. Ser congueiro também era difícil,
pois era comum que as pessoas não reconhecessem o valor dessa manifestação.
Ele conta que chegaram a ser apedrejados, ao realizarem algumas apresentações, o
que os deixou muito ―chateados‖. Para Seu Tagibe, hoje a situação está diferente,
pois existe esse reconhecimento. Para ele, isso se deu também pela importante
participação dos jovens, com mais ―instruções‖ neste movimento. ―Porque no nosso
tempo o pessoal tudo não sabia ler, saber escrever o nome era pra rei, entendeu?
Hoje você vê gente que já acabou os estudos tocando congo, outras pessoas mais
inteligentes, tudo...‖, conta o Mestre. Existe um esforço em resgatar certas práticas,
como a confecção de instrumentos e difundi-la aos mais novos. Seu Tagibe acredita
que seja esse o seu papel, pelo fato de ser mais velho e ter acompanhado seu pai e
os antigos mestres sempre que saíam para tocar. ―O que me inspirou a fazer esse
tambor é trazer os antepassados pra dentro da banda. Meus avós...‖.
Destas relações singulares, cotidianas, cultivadas por estes homens lentos, não
mais isolados na área rural, mas participantes ativos da vida urbana e ocupando
principalmente os lugares que lhes são reservador na cena política, vislumbramos
possibilidades de escape pautadas no conhecimento cego que possuem deste
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território, construída a partir dos limiares onde cessa a visibilidade69·.
2.2.6 Deslocamento 06: Roda D’Água – Alice Coutinho
69 CERTEAU, 1994.
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Figura 24 - Ocupação como escape. Esquema do percurso e dos encontros
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Figura 25 – Movimentação de ciclistas em Cariacica Sede
Figura 26 - Acesso principal de Alice Coutinho
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De Roda D‘Água partimos para nosso encontro em Alice Coutinho. Tínhamos que
presenciar o ritual do chá de panela que povoa o imaginário das meninas de
diferentes classes sociais. Deslocamo-nos em direção à antiga sede do município,
localizada a cerca de 20 Km do Centro de Vitória, na Rodovia José Sette (ES-80)
que atravessa o município rumo a Santa Leopoldina. Ao longo da rodovia, surgiram
na década de setenta outros bairros, como Itacibá, Tucum e Santana. A Sede
Municipal, gradualmente perdeu as características de núcleo independente para
tornar-se um dos subúrbios conurbados ao Núcleo Central, deixando de abrigar o
edifício-sede da Prefeitura Municipal. Esse crescimento pulverizado prosseguiu na
década atual, fazendo de Cariacica o município mais populoso do Estado, mas com
os índices sociais e de serviços urbanísticos abaixo de quase todos os demais da
Região Metropolitana70.
No período entre 89/9871, as ocupações das áreas vazias no município ocorreram de
forma disseminada no espaço urbano, uma característica de ocupação peculiar ao
município de Cariacica. Porém observamos que, em algumas áreas, essas
mudanças ocorreram mais significativamente. Próximo á sede, os novos
loteamentos ocorreram dispersos dentro da área urbana, enquanto a ocupação
irregular foi mais intensa. As ocupações ou parcelamentos que tiveram suas
densidades modificadas mais intensamente, mudando de vazio ou baixa densidade
para média ou alta densidade, ocorreram principalmente às margens das rodovias
BR-101 e ES-080. É exatamente na via de ligação dos bairros Sede e Residencial
Prolar que está localizado o acesso para Alice Coutinho.
Inserido em uma Zona Especial de Interesse Social – ZEIS72, o bairro teve sua
origem na ocupação ocorrida em 1996, organizada pelo Movimento Nacional de Luta
pela Moradia em Cariacica – MNLM.
70 ABE, 1999.
71 INSTITUTO DE APOIO À PESQUISA E AO DESENVOLVIMENTO JONES DOS SANTOS NEVES,
2001.
72 Plano Diretor Municipal, 2008.
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Figura 27: Imagem produzida a partir de imagens do Google Earth, delimitação das ZEIS no PDM Cariacica (2009) e inserção de marcadores localizando Alice Coutinho; os municípios vizinhos; Campo Grande; limite da área urbana.
Chegamos ao bairro retribuindo ao convite que recebemos. Tivemos a oportunidade
de conversar com moradores antigos e novos, adultos e crianças. Pudemos
perceber o crescimento do bairro nestes últimos quatro anos. Parece-nos que quase
todos os lotes estão ocupados. Evidente também é a constatação de que o bairro
não é um conjunto homogêneo e uniforme. O contraste das edificações mais
recentes, ainda barracos de madeira, com as construções mais antigas em maior
número, a maioria já em alvenaria, é evidente. Esta diferenciação não diz respeito
meramente à tipologia ou a qualidade construtiva das habitações. É como se o
bairro possuísse territórios específicos pertencentes a determinados grupos, com
áreas permitidas, áreas restritas, algumas mais permeáveis, áreas de sobreposição
harmônica, áreas hostis a quem não é do bairro, etc. Circulamos pelas ruas na
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companhia de algumas crianças conhecidas e ao passarmos por determinadas
áreas era comum ouvir comentários como: ―a gente nunca vem aqui‖, ou ―eu não
conheço nenhuma menina daqui‖. Quando questionamos a razão disto, geralmente
ouvíamos: ―minha mãe não gosta, porque diz que é perigoso‖, ―só tem gente
estranha‖, ou coisas do tipo. Essa idéia de perigo, aliás, apareceu outras vezes nas
conversas das crianças. Talvez esse fato explique o pequeno número de crianças
brincando pelas ruas do bairro e no vazio central destinado para a praça (ainda não
executada). Foram relatados pelas crianças episódios de violência como um
esfaqueamento na praça, rotineiras batidas policiais por conta de tráfego de drogas,
dois assassinatos, além das constantes fugas de menores internos da UNIS-
Unidade de Integração Social do ICAES – Instituto da Criança e do Adolescente do
Espírito Santo, que procuram esconderijo no bairro. Os comentários sobre a questão
da violência não ficaram restritos apenas ao bairro, mas também envolviam os
bairros vizinhos. Sobre o bairro Pró-Lar, por exemplo, comentaram que: ―Aqui [Alice
Coutinho] se comparado com o Pró-Lar, até que não está tão tenso. Lá está tenso!
As crianças não podem nem ficar na rua... E é férias! Porque se tiver na rua e a
polícia passar vai junto. Eles não respeitam nem menina... E pressiona até dizer
onde é a boca. Mas os meninos esconderam tão bem que ninguém sabe... Nem a
polícia acha. Dizem que vão mandar a Tropa de Elite!‖
Para entendermos como se deu o processo que originou o bairro, recorremos a duas
pessoas que acompanharam desde o início sua ocupação e tiveram papel
fundamental no seu surgimento: Paulo Assis e Elias Ferreira Nunes. Os dois fazem
parte do Movimento Nacional de Luta para Moradia- MNLM no Espírito Santo. Elias
atua no Movimento desde 1996 e Paulo é mais antigo. Os dois contam que se
envolveram inicialmente no movimento dos bairros onde moravam (que também
surgiram de ―invasões‖) motivados pela Comunidade Eclesial de Base, da Igreja
Católica, na qual participavam. Percebemos este movimento atuando como
dispositivo que, ao agregar diferentes atores, potencializa outros desdobramentos.
Observamos que ainda hoje, ainda que em menor intensidade, a igreja católica
possui um papel relevante na constituição de movimentos, ou grupos sociais do
município. O envolvimento do Elias no movimento de moradia aconteceu devido a
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100
um convite da associação de moradores de Porto Novo para auxiliar no
cadastramento das famílias para o processo de uma nova ocupação que seria feita
em Vila Oásis (também no município de Cariacica).
―Aí, eu fui entender, porque a importância da moradia na vida de uma
família. Porque você via as pessoas falando, via as pessoas
colocando a situação delas. E foi como o Paulo falou. Quando você
começa a falar de moradia para alguém que não tem, você começa a
entrar na questão da moradia. Mas também na questão da vivência
delas, da gente mesmo.‖ (Elias)
A ocupação de Vila Oásis foi um processo demorado, pois a área era difícil de ser
ocupada por existir ali uma plantação de eucalipto, o que levou o grupo a optar pela
ocupação de outra área, em Areinha. Essa área é hoje o bairro Alice Coutinho.
É importante ressaltar que a administração pública do município de Cariacica é
marcada pela corrupção e descontinuidade administrativa. Com isso, a ausência de
políticas habitacionais agravou mais ainda o problema da moradia no município. Em
um período de 20 anos, o município teve 12 prefeitos (quando deveria ter tido 5).
Vários deles foram afastados do cargo por irregularidades administrativas.
Tabela 1 - Prefeitos do Município de Cariacica a partir de 1983
1983 a 1984 Vicente Santório Fantini Em 10/84 se afasta devido a um derrame cerebral.
1984 a 1986 Nelço Secchin (Vice-Prefeito): Assume em out/84. Em fev/86, é afastado sob a acusação de corrupção.
1986 a 1987 Claudionor Antunes Pinto: Permanece de 12 de Fevereiro de 1986 a 04/87, como interventor.
1987 a 1989 Milton da Rocha Melo: Presidente da Câmara que assume em abril/87 a janeiro/89, em lugar do interventor.
1989 Vasco Alves de O. Júnior: Governou de 1 de janeiro de 1989 a 18 de maio de 1989. Afastado por acusação de irregularidades administrativas.
1989 Augusto César Meloti Melo: Vice assume o lugar de Vasco
1989 Vasco Alves de O. Júnior: Governou durante 14 dias. Afastado após anulação de uma Liminar
1989 Augusto César Meloti Melo: Governou durante os meses de setembro e outubro.
1989 a 1992 Vasco Alves de O. Júnior: Retorna à Prefeitura por decisão do Conselho Superior da Magistratura do Espírito Santo. Reassume em 3 de Outubro de
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1989 até 04/92
1992 Augusto César Meloti Melo: Governou de 04 à 12/92
1993 a 1996 Aloízio Santos: Eleito e empossado sob a égide da Lei Orgânica do Município de Cariacica
1997 a 2000 Dejair Camata: Morreu em acidente automobilístico em 26 de março de 2000
2000 Jesus dos Passos Vaz: Assumiu no dia 26/03. No dia 1° de novembro foi afastado pela Câmara de Vereadores
2000 Joscelino Miguel da Silva: Assumiu na manhã do dia 2 de novembro
2001-2003 Aloísio Santos: Assumiu o cargo no primeiro minuto, numa iniciativa inédita, tendo sido o primeiro prefeito do País a assumir o Governo de madrugada. A solenidade na Câmara foi bastante concorrida pelos políticos, população e imprensa, pela novidade.
2004-2008 Helder Salomão: Candidato do PT, se elegeu com 72,46% dos votos, contra 27,54% do candidato a reeleição Aloízio Santos.
Na visão do Elias, a prefeitura de Cariacica viveu no governo de Vicente Santório
(1983-1984) um dos piores momentos de uma política baseada no populismo, sem
planejamento, onde famílias ficaram ricas com a distribuição de terras do município
e aprovação de loteamentos irregulares.
É neste contexto de instabilidade administrativa e ausência de proposições para a
questão habitacional que aconteceram diversas ―invasões‖ no município, como Porto
de Santana e Flexal.
―Não se planejou nada. Famílias ficaram ricas. As nossas terras
foram distribuídas para famílias. Pode ir lá, em Porto de Santana ver.
Os bairros ficaram sem planejamento.‖ (Elias)
Nas ocupações, era comum acontecerem desentendimentos entre os envolvidos:
―O povo ia marcando, pegava aquelas cordinhas e cada um marcava
o seu. E as mortes que aconteciam era por causa da questão dos
lotes‖ (Elias)
Outra questão presente nas ocupações é a questão da especulação imobiliária. A
maioria destas ocupações ocorreu em locais sem nenhuma infra-estrutura e foi
ocupada por pessoas que não possuíam condições financeiras sequer para a
compra de materiais de construção. No entanto, a pressão dos moradores sobre o
poder público, acabou por algumas vezes refletindo em resultados e melhorias para
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o bairro. Quando isto acontecia, era comum que aparecessem especuladores
interessados em comprar estes lotes:
―A gente não consegue controlar os especuladores, que há um
monte. Tem pessoas que têm uma certa condição e ele vai e tira
aquela família dali. E aquilo fica servindo pra ele ter ganho depois.‖
(Paulo)
Nunca existiu no município uma proposta clara para a questão habitacional
defendida pelos governantes; no entanto autorizavam-se, de maneira irregular,
novos loteamentos, sem infra-estrutura.
―E aí o que acontece, fica o bairro totalmente abandonado e a
administração pública não tem condição de atender todos os
loteamentos clandestinos que vai sendo formado. Leva o povo que é
necessidade de organizar pra ir cobrar a água, a iluminação pública,
cobrar esgoto e transporte. (...) Enquanto as administração poderia
fazer um projeto pra habitação com toda infra-estrutura, eles prefere
atender as necessidades das imobiliárias, que deixa os loteamento
clandestino. (...) A prefeitura muita das vezes da mais oportunidade
pra essas imobiliárias do que construir o projeto.‖
Na ocupação de Areinha, o processo foi diferente dos demais. Com o aprendizado
das ocupações mais antigas – que aconteceram sem nenhum planejamento e hoje
apresentam carências de espaços e equipamentos públicos – o Movimento
modificou sua postura.
―Quando eu entrei no movimento a nossa filosofia já era outra. Olha,
nós vamos ocupar, mas primeiro nós vamos ver aonde nós estamos,
e o que vai acontecer no futuro com relação às ruas, a praça. Então,
na ocupação que nós fizemos lá, nós pensamos nisso. Deixamos as
ruas, deixamos a praça, espaço para escola, espaço para centro
comunitário, creche. Lá tem muitos espaços pro público. E foi difícil
segurar o povo pra isso. Nós tivemos que enfrentar muita resistência
do povo. Nós deixamos uma praça num lugar privilegiado, então as
pessoas achavam que ali tinha que ser moradia.
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A gente vai conversando com as pessoas e hoje muitos que estavam
lá até tem uma certa consciência, mas no geral numa ocupação vai
quem chega primeiro, ocupa e pega o melhor espaço. Hoje nós não
queremos só ocupar o espaço. Nós queremos construir um projeto
de um bairro, onde todos possam morar com qualidade de vida.‖
(Elias)
Neste processo, a decisão de estabelecer espaços que seriam públicos para o bairro
foi previamente definida, ainda que alguns moradores fossem contrários por
acharem desperdício de espaço. No entanto, na fala do Paulo é possível entender o
posicionamento do Movimento e seus líderes nesta iniciativa de planejar o bairro:
―Isso era falta de experiência mesmo. É que a necessidade obrigava
a gente a fazer uma coisa que a gente não tinha grande experiência
pra ta fazendo hoje. Hoje não, com o decorrer da caminhada a
experiência foi chegando e fomos de fato pensando diferente.
Adianta ocupar pra deixar o povo sofrer sem ruas, sem esgoto, sem
nada. Ou adianta planejar? E aí nós fomos nos organizando.‖ (Paulo)
Enquanto possibilidade de fazer cidade, consideramos muito rica a produção e
espacialização de ocupações como esta, motivadas pela escassez e conquistadas
coletivamente por um grupo heterogêneo na tessitura de um novo território. Assim
como no caso do comércio informal, propomos que a questão da moradia seja aqui
pensada para além do binômio legalidade/ilegalidade, já há bastante tempo inserido
na lógica do fazer cidade73. Enxergamos as ocupações como um rompante, de certa
forma, na lógica do mercado imobiliário e das políticas públicas voltadas para
habitação. Interessa-nos sua complexidade e diversidade. Polvilhando em várias
73 Em São Paulo (1886) e Rio de Janeiro (1889), os códigos de postura tornaram proibitiva a
construção de cortiços nas áreas centrais que assim como a prática da autoconstrução da moradia, proliferavam-se. (MARICATO, 1997).
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cidades brasileiras, as ocupações tecem um território espacialmente descontínuo
embora com conteúdo semelhante. Configuram um ―território-rede‖74 de ocupações.
Diante dos diferentes escapes aqui apresentados, podemos perceber o quão
múltipla e complexa são as relações sócio-espaciais e afetivas estabelecidas na
cidade. Propomos então, dar continuidade a esta investigação, aproximando-nos
deste último encontro, refinando a pesquisa através do contato direto com os
moradores que residem em Alice Coutinho, a partir do qual desenharemos novos
traços de horizontes emancipatórios neste paradigma emergente75.
74 HAESBAERT, 2006.
75 SANTOS, 2006.
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3 APROXIMAÇÃO CARTOGRÁFICA 02: Micro-Universo Ocupação
Alice Coutinho (Cariacica – ES)
Figura 28 - Localização de Alice Coutinho no Território Base: Grande Vitória
Fonte: Figura modificada a partir de imagem de satélite capturada pelo Google Earth (2009).
Permanecemos em Alice Coutinho. O ―ponto final‖ de um extenso percurso
percorrido no capitulo anterior, no qual atravessamos e nos aproximamos de
diversos territórios. Nesta segunda aproximação, damos continuidade à linha
metodológica adotada, optando por ampliar o encontro com a ocupação, hoje bairro,
Alice Coutinho. Essa aproximação se dará através do estabelecimento de novos
encontros, com o intuito de refinarmos a investigação sobre este escape específico.
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Tomamos como referência a leitura do lugar a partir das conversas com seus
moradores, que gentilmente nos guiaram pelos passos e espaços que percorreram
até chegarem à ocupação e realizarem nela sua necessidade/desejo de habitar.
Nesta busca, foi feito um esforço no intuito de não reduzirmos a leitura sobre o
habitar em habitat76·, isolando-o na sua função de moradia. Nem de reduzir a
discussão à questão legal da propriedade. Ao analisarmos o histórico das lutas pela
moradia no Brasil77, notadamente verificamos a indissociabilidade da luta pela
moradia de outras lutas como a luta por melhor qualidade de ensino, lazer, trabalho,
transporte, mobilidade, saúde, etc.
Entendemos a ocupação como a realização de um processo de singularização e
rompimento com o modo de produção da subjetividade que caracteriza as
sociedades contemporâneas. Rompe-se – a princípio – com a tradicional
especulação imobiliária que ao longo dos anos vem ditando as regras do jogo na
organização e valoração das cidades. Rompe-se também com o posicionamento
dependente em relação ao Estado como provedor universal, ainda que estes
rompimentos sejam passíveis de adaptações, reformulações, e por vezes,
reaparições. A questão da especulação, por exemplo, ressurge redimensionada e
atualizada no interior das ocupações. Flexíveis e mutáveis há sempre algo de
precário e frágil na constituição dos escapes que ameaça sua existência enquanto
singularidade. Existe sempre o risco de serem recuperados, seja por uma
institucionalização, por um devir-grupelho78, pela rigidez hierárquica das
organizações, ou mesmo pelo indivíduo como sugere Baumann (2001). Para ele o
indivíduo é o oposto do cidadão e tende a buscar seu próprio bem-estar através do
bem-estar da cidade. Para tanto insiste na reencarnação dos modelos dominantes.
Para Guattari (GUATTARI & ROLNIK, 2005), a subjetividade capitalística possui uma
força que se produz tanto em nível dos opressores quanto dos oprimidos. Nesse
sentido, entendemos que inserida nesta movimentação, a ocupação enquanto
76 LEFEBVRE, 1991.
77 GOHN, 1991.
78 GUATTARI & ROLNIK, 2005
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escape, se realiza não como uma constância, mas como uma alternância de
tempos, sentido e significado, composta por ciclos de aceleração, estabilização,
apagamento e ressurgimento na qual a produção de subjetividade traz
possibilidades de desvio e reapropriação.
No conjunto das dinâmicas inseridas neste processo de mutação espacial, social e
econômica, persiste um ―potencial escapatório‖ capaz de alavancar uma seqüência
de revoluções moleculares, a despeito do modo de funcionamento do
grupo/grupelho que por vezes se realiza no interior destas revoluções, de forma
retrógrada e autoritária. Cabe indagarmos o que de fato está em jogo nesse caso?
Munidos de tais questionamentos adentramos Alice Coutinho e nos aproximamos de
seus moradores com o intuito de realizarmos uma leitura sensível deste micro-
universo, que contribua para ampliar o entendimento acerca da formação dos
escapes na cidade. São diversas as abordagens possíveis. Optamos pela
construção de uma tessitura através da qual as relações sociais, os conflitos, os
diálogos e a sociabilidade entre os moradores da ocupação fossem se
descortinando. Construir um conhecimento sobre a ocupação a partir dos encontros
com seus moradores é perceber de que maneira os sujeitos se movimentam
organizando, expressando e construindo a realidade em que vivem. Entendemos
que assim conseguiremos nos desvencilhar das leituras ―oficiais‖ e consensuais
sobre as ocupações e avançar na direção da construção de uma narrativa coerente,
pautada nas experiências vividas por estes praticantes ordinários da cidade.
Santos (2006) define a razão ocidental como razão indolente, cuja indolência é
responsável pelo imenso desperdício da experiência social, contribuindo para a
disseminação do pensamento único. Embora ele não fale de cartografia, por sua
proposta de investigação estar pautada em uma racionalidade ampliada, não apenas
no que diz respeito a novos conhecimentos, mas em novos processos de produção
de conhecimentos79, consideramos coerente a aproximação deste autor com o
79 SANTOS, 2006.
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método. Em questão está o comprometimento com uma produção de conhecimento
desvencilhada de formulações pré-estabelecidas.
3.1 Procedimentos Metodológicos 02
Entendemos que a investigação aqui proposta é uma continuação da investigação
realizada no Capítulo 2. Ali, agrupamos os escapes em possibilidades de
espacialização levando em consideração a forma como se realizavam no meio
urbano, sendo uma delas as ocupações. Cada grupo de escapes abarcou encontros
diferenciados a partir dos quais se desenvolveu a leitura sobre aquela possibilidade.
Alice Coutinho foi um desses encontros e propomos sua ampliação e refinamento
aproximando-nos de alguns moradores. São nos encontros que os componentes
destes grupos e movimentos são apresentados enquanto singularidades, enquanto
estratos possíveis da multiplicidade.
3.1.1 Tempo
As investigações em campo foram realizadas em um intervalo de tempo que vai de
março de 2007 a dezembro de 2009, estando a maior parte das entrevistas e
conversas com os moradores concentradas entre setembro de 2008 e janeiro de
2009. As informações e leituras que realizamos sobre Alice Coutinho, no entanto,
carregam um conhecimento anterior do lugar devido ao fato de a pesquisadora ter
trabalhado no bairro no Projeto de Extensão Célula, entre 2004 e 200580, e também
ter realizado uma proposta de intervenção projetual na área em seu Projeto de
80 O Projeto ―Desenvolvimento sustentado do bairro Alice Coutinho, Cariacica-ES‖ foi realizado pelo
Programa de Extensão CÉLULA- Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo do DAU-UFES, entre os anos de 2004 e 2005 sob a coordenação do Prof. Milton Esteves Júnior. O projeto foi inserido em uma experiência acadêmica de integração das disciplinas Projeto de Arquitetura 7 e Urbanismo 4 e o Programa de extensão. A experiência resultou em um Dossiê contendo o diagnóstico da ocupação realizado pelos alunos e os projetos resultantes das disciplinas que foi entregue aos moradores da ocupação e representantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia.
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Graduação em 200681.
3.1.2 Espaço
A área delimitada pelo MNLM durante o processo de ocupação de Alice Coutinho é
nossa referência, apesar de seus limites estarem sujeitos a expansão ou retração
caso faça-se necessário a partir das leituras realizadas. Transitar pelos espaços por
onde transitam os moradores implica em entender e ampliar o entendimento sobre
esse escape para além do deslocamento físico da pesquisadora. O território da
ocupação como categoria de análise só tem valor quando vinculado ao uso e aos
atores simultaneamente. Definimos esse território transitando pelo universo de
informações diversificadas, que em diferentes situações forneceram-nos subsídio
para incluirmos nesta aproximação cartográfica grupos, pessoas, lugares, eventos,
etc. que extrapolariam a proposta de um recorte espacial mais rígido.
3.1.3 Procedimentos
Praticaremos a cartografia como procedimento e construção. A ela está associado o
ato de nos lançarmos na busca por informações e impressões que contribuam para
a construção desta narrativa que inclui observação, conversas formais e informais
com diferentes atores – moradores, representante, coordenadores do MNLM, etc. –
pesquisas bibliográficas, pesquisas na internet, deambulações pela cidade, visitas à
Prefeitura Municipal de Cariacica, conversas formais e informais com os técnicos da
Secretaria de Planejamento, etc.
Buscamos desenhar o campo de força no qual encontram-se os moradores da
81 O Projeto de Graduação denominado ―Arquitetura e Informação: uma investigação sobre espaços
públicos e acesso a informação‖ aborda a inclusão de políticas públicas voltadas para a instalação de equipamentos e estruturas tecnológicas que cumpram a função de potencializar as trocas e a comunicação entre as periferias das cidades.
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ocupação. Informações referentes ao seu cotidiano, suas atividades, suas
necessidades, queixas e desejos foram fundamentais para que penetrássemos nos
espaços visíveis e nas opacidades deste bairro. Não se trata de dar conta de toda a
problemática, complexidade e histórico das ocupações no Brasil através de um
estudo de caso. Optamos por investigar esses moradores, ―ex-sem-teto‖,
entendendo-os não como conformadores de um determinado segmento social, mas
de uma determinada forma de inserção no espaço urbano. Ao tomarmos como fio-
condutor os depoimentos de alguns de seus moradores estamos conscientes que tal
atitude implica em fazer escolhas dentro de uma pluralidade de opções possíveis.
Entendemos que esta postura inverte a lógica de compreender primeiramente toda a
extensão do objeto para depois investigarmos suas práticas. No entanto, interessa-
nos caracterizar a constituição de territórios, a partir de suas práticas e seus modos
de vida. Os modos de vida, se atribuídos a totalidade do segmento sem-teto, ou dos
invasores e ainda dos moradores, culminaria em parâmetros esvaziados ou seu
contrário, parâmetros artificialmente criados que tentam englobar uma totalidade que
é irreal.
Para tanto consideramos fundamental colocar ―na mesa‖ todas as informações e
dados produzidos em campo para que possamos identificar e (re)articular as linhas
que os conectam de forma tal que seja possível realizarmos uma leitura desta trama
urbana que nos é tão cara nesta proposta de investigação. Coordenamos 3 ações
que apresentam como resultado 3 movimentos: emaranhar, desemaranhar, tecer.
Ao emaranhar, tratamos de exteriorizar as informações absorvidas e produzidas no
campo, na qual coexistem diferentes construções, afetos, espaços e tempos de Alice
Coutinho e seus moradores. Essa figura de linguagem remete a essa compilação
sobreposta de fluxos variados de informações que tomamos como base para a
produção de nossa cartografia.
Ao desemaranhar, tratamos de expor de forma l inteligível? as informações
produzidas, destrinchando e caracterizando as principais linhas de força
encontradas, para sua conseguinte distinção, rearticulação, costuras e novas
tessituras. Essa figura remete a questões de legibilidade e agrupamento do
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conteúdo produzido.
Por fim realizamos a tessitura das relações, amarração, conexões, entrelaçamentos
e construções desta trama complexa, deixando inevitáveis ―fios perdidos‖ e pontos
sem arremate.
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Figura 29 – Imagem ilustrativa simulando as informações sobrepostas sobre Alice Coutinho produzidas em campo.
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Figura 30 – Imagem ilustrativa simulando o traçado de Alice Coutinho com informações e impressões produzidas em campo organizadas de forma legível que auxiliou-nos nas análises sobre o bairro.
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Figura 31 – Quadro ilustrativo simulando as informações expostas e agrupadas e algumas articulações e conexões realizadas entre elas.
Ao exteriorizarmos, começamos a organizar as informações, conectando e tecendo
algumas das relações possíveis entre aquele lugar e os elementos que o compõem
– sejam eles as pessoas que conversamos e outras mencionadas no decorrer da
pesquisa, os fatos importantes, as movimentações cotidianas, etc.
Percebemos a existência de algumas linhas guias que estruturam ou atravessam o
discurso sobre o surgimento da ocupação, sua consolidação enquanto bairro e a re-
estruturação das vidas dos moradores que optaram reconstruir suas vidas lá. Linhas
de tempo e espaço resultaram em diferentes velocidades entremeadas por afetos e
desafetos, relações de poder, conquistas, medo e esperança.
Detectamos 3 linhas de força/movimento recorrentes durante o trabalho de campo,
que entendemos como resultantes do entrelaçamento de três tempos: o tempo da
memória, o tempo da ação, e o tempo da esperança. Embora impregnada de uma
lógica temporal, a proposta não pretende ser um ―relato‖ linear da trajetória do
bairro. Cada um desses tempos apresenta diferentes temporalidades, advindas das
mais variadas dinâmicas e acontecimentos.
Tempo da memória: Remete aos fatos que antecederam o início da
ocupação, marcados quase sempre por processos relacionados a perdas e
dificuldades que de alguma maneira se confluíram nesse escape realizado
como ocupação.
Tempo da ação: É caracterizado pela fixação do grupo, antes disperso. São
os processos de territorialização e significação que, instáveis e dinâmicos,
constituíram e constituem cotidianamente a comunidade. É o tempo da
construção de um conhecimento coletivo sobre o lugar. Lugar novo, novo
aprendizado e novas formulações onde a ocupação enquanto prática espacial
apresenta-se como detonadora de uma consciência política pautada nos
direitos do cidadão – ainda que não totalmente desvinculada de uma
consciência política politiqueira. A ocupação só se realiza no coletivo. Não se
realiza enquanto uma fuga egoísta. Precisa de gente.
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Tempo da esperança: Esta terceira linha é uma projeção a partir de
perspectivas concretas ou não, na qual vislumbramos futuros possíveis
utilizando como referência não apenas o presente (e o passado)
materializado, mas os presentes possíveis não realizados que permanecem
enquanto força, enquanto potência, enquanto gérmen de mudança. Nesta
direção apontamos a superação do aspecto negativo do bairro invadido pelo
aspecto positivo de comunidade através da produção de uma nova história,
sempre em construção pelos sujeitos e pela conjunção de forças existentes,
da qual apontam conquistas políticas, na esperança da criação de saídas que
atualizem a utopia da cidade.
3.1.4 Os encontros
A aproximação da pesquisadora com a ocupação se deu principalmente pelos
encontros estabelecidos. Realizamos conversas formais e informais com alguns
moradores nas quais abordamos questões referentes ao processo de constituição
da ocupação, ao cotidiano e a expectativas futuras. Deixamo-nos ser guiados por
eles nestas conversas de forma tal que, ao invés de definirmos um roteiro rígido de
perguntas, optamos pela flexibilização do itinerário respeitando o rumo tomado por
cada morador, aprofundando naquilo que cada um apresentasse como mais
relevante. As conversas passaram de alguma forma pela questão da participação
dos moradores na construção da ocupação e da reconstrução da própria vida
naquele espaço. Passaram também pela construção das suas casas, pela relação
estabelecida com o a coordenação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia de
Cariacica – MNLM – e com os demais moradores.
O universo dos encontros e sua trajetória foram sendo desenhados na medida em
que as conversas aconteciam. Os próprios moradores, quase sempre, indicavam
outros moradores para fazermos contato, contribuindo para a construção de uma
narrativa apoiada em práticas comuns, experiências particulares, solidariedades e
lutas. Um percurso repleto de idas e vindas, que foram abrindo caminhos e
delimitando o campo/espaço-tempo a ser percorrido. São histórias e pessoas que se
cruzam acrescentando, confirmando ou contradizendo informações, que redefinem a
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todo o momento os contornos deste escape.
O trabalho não tem a intenção de causar mal estar nem constrangimento aos
moradores de Alice Coutinho ou atuar como delator de atividades ilícitas que
possam estar acontecendo no bairro. Menos ainda de expor seus moradores a
situações comprometedoras. Certos cuidados foram tomados neste sentido, como a
substituição dos nomes reais dos moradores por nomes fictícios e entrelaçamento
das histórias e informações fornecidas82. As falas referentes a assuntos mais
delicados foram agrupadas e dissolvidas de forma tal que não seja possível
identificar a fonte das informações.
Camila83, adolescente e moradora do bairro, atuou como uma espécie de ―fio de
Ariadne‖ conduzindo-nos pelo bairro e auxiliando-nos no contato com os demais
moradores.
Estiveram diretamente envolvidos em nossos encontros 12 moradores, com idades
que variam entre 17 e 83 anos, além de outros tantos cujos contatos estabelecidos
foram mais fugazes. O que mora há mais tempo na ocupação está lá desde o início
(1996) e o que chegou por último mora há apenas 04 anos (2004). Dentre os
moradores, alguns são atuantes no Movimento, possuindo inclusive algum cargo na
coordenação municipal, enquanto outros apenas acompanham a luta de longe. São
segmentaridades de um agenciamento coletivo pautado na participação ativa de
diferentes sujeitos movidos por lógicas particulares e comuns, impulsos, desejos e
experiências articuladas em uma trama de relações sócio-espaciais que tem na
ocupação uma possibilidade de realização de experiência compartilhada de
territorialização na cidade.
82 Os coordenadores do Movimento Nacional de Moradia, Paulo Assis e Elias Ferreira foram
identificados com seus nomes verdadeiros por já se tratarem de pessoas públicas.
83 A partir daqui já usaremos os nomes fictícios, exceto dos representantes oficiais do MNLM.
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3.1.4.1 Proposta-registro
Como proposta capaz de apresentar este entendimento empírico sobre a ocupação
produzido no campo, sugerimos a produção da cartografia a partir dos 3 tempos-
movimentos identificados em campo: tempo da memória, tempo da ação e tempo da
esperança. Como subsídio para a elaboração desta cartografia, nos utilizamos dos
registros dos encontros, parcialmente gravados em mp3 e sistematizados. Estes
registros servirão como ferramentas que nos auxiliarão nas leituras e interpretações
deste escape. Outras fontes utilizadas foram imagens, mapas e anotações
registradas no diário de bordo ao qual recorremos por diversas vezes para
resgatarmos impressões e anotações realizadas no campo. Conectando estes
fragmentos, utilizaremos da narrativa que, assim como a apresentada no capítulo
anterior, não pretende ser fiel na sua relação espaço-tempo com os acontecimentos.
São enfocados recortes que falam das práticas cotidianas, dos itinerários
percorridos, dos afetos, da rede de relacionamentos, do visível, do que é passível de
apreensão ainda que fluido, do simultâneo. Estes recortes representam leituras
possíveis de um território multiplamente construído.
3.2 Movimentos
[Des][re]territorializações. Movimentos de ruptura da ordem na vida de seus atuais
moradores que oriundos de diferentes lugares e carregados de motivações também
diferentes, deslocaram-se rumo à ocupação. Sem-teto ou não84, são pessoas que
por diversos motivos estavam em condições de vulnerabilidade no que se refere ao
habitat: meeiros expulsos do campo, sobreviventes de chacinas, dissidentes de
outras ocupações, desempregados sem condições de arcar com as despesas de um
aluguel ou moradores de periferias precárias e esquecidas, através de uma corajosa
afirmação da vida lançaram-se em direção à criação de novos agenciamentos sócio-
84 Embora nenhum dos entrevistados tivesse casa própria, poucos foram os que não possuíam de
fato um lugar para morar. No entanto as condições em que viviam anteriormente estavam distante do que se possa imaginar enquanto ideal de moradia. Existiram casos também em que as pessoas ocuparam para vender ou alugar, não cabendo classificá-los como ―sem-teto‖, uma vez que seu objetivo não é de conquistar um abrigo, mas o de lucrar com futuras negociações imobiliárias.
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espaciais.
Figura 32 - Esquema dos deslocamentos para a ocupação em relação ao local de origem de seus moradores
3.2.1 1º Movimento: Tempo da memória
Foi a reação de medo e apreensão de algumas crianças ao perceberem o som dos
helicópteros da polícia sobrevoando o bairro no dia em que realizávamos em Alice
Coutinho parte de nossa pesquisa de campo, que detonou em nós o interesse por
conhecer as histórias que carregam seus moradores, acreditando que estas
experiências que trazem consigo e colocam em jogo na construção deste novo
território são elementos fundamentais para entendermos este escape para além das
superficialidades. É óbvio que sua constituição está também pautada em fatos e
motivações anteriores à existência do bairro e que vieram a culminar na ocupação
deste espaço em 1996. Essa percepção aconteceu ainda em 2005, quando
estávamos envolvidos no Projeto de Extensão Célula, do curso de Arquitetura e
Urbanismo da UFES. A freqüência com que íamos ao bairro, acompanhada dos
demais participantes do projeto e integrantes do Movimento Nacional de Luta pela
Moradia, agregou-nos, e aos demais integrantes do grupo, o status de confiável
junto aos moradores. Durante o tempo em que ficávamos lá percorrendo as ruas do
bairro e transitando entre reuniões na casa de um ou outro morador para o
desenvolvimento do projeto, era comum que fossemos acompanhados por grupos
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de crianças que, na maioria das vezes, não possuíam autorização dos pais para
ficarem ―perambulando‖ pelas ruas em outras ocasiões. ―Minha mãe falou que com
vocês eu posso ir‖. Era comum escutar frases como essa das crianças, ou mesmo
de suas mães. Não raramente, estas mesmas crianças nos elegiam seus
confidentes e desde então passamos a ―colecionar‖ histórias que foram compondo e
sobrepondo trechos dessa tessitura urbana de conexões nem sempre óbvias ou
previsíveis em todos os momentos, passando por trágicas a banais em outros.
São estas movimentações em direção a Alice Coutinho que nos interessam neste 1º
Movimento, que de alguma foram se construindo e culminaram no agrupamento de
seus moradores. São os fatos destacados por eles, seja quando indagados por nós
sobre o assunto, seja quando espontaneamente deixaram escapar alguma história
ou alguma lembrança.
3.2.1.1 Claudia
Ainda espanta-nos a naturalidade com que Claudia, em 2005, na ocasião com seus
aproximadamente 7 anos, contou-nos sobre como um dia tentou matar sua mãe
atirando-lhe um objeto na cabeça. Poderíamos acreditar que se tratava apenas de
estripulia de criança regada aos exageros próprios de sua pouca idade, motivada
pela banalidade da violência e da morte anunciada e exaltada descabidamente pelos
populares filmes hollywoodyanos se, no desenrolar da conversa, não tivéssemos
sido atingidos por uma seqüência de outras revelações tão ou mais cruéis que esta
contada pela pequena. Noticiava-nos que a tentativa de homicídio foi recíproca e
gabava-se por também ter saído ilesa ao empurrão que recebera da mãe com o
intuito de que rolasse para baixo da roda do ônibus em determinada ocasião.
Questionava-nos sobre a cor de sua pele (cabocla, mistura de índio com negro, de
cabelos escorridos, lábios grossos e olhos apertados) e sobre a justificava dada pela
sua mãe: ela contava que por não gostar da menina abandonou-a muito tempo
exposta ao sol quando era pequena. Claudia foi para Alice Coutinho morar com sua
avó que, aparentemente, possuía melhor condição ou disposição para cuidar da
garota. Sua mãe tem outro marido, outros filhos e com seu pai ela não tem contato.
Apesar de visitar Claudia com freqüência, ela afirmava que não gostaria de morar
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com a mãe novamente, que preferia morar com a avó. Tempos depois soubemos
que elas se mudaram e não tivemos mais notícias suas.
3.2.1.2 As irmãs
Ainda em 2005, o tal helicóptero da polícia anunciado anteriormente, aterrorizava
duas irmãs, de aproximadamente 8 e 9 anos, a ponto de chorarem de medo em
plena rua da então pacata tarde de Alice Coutinho. Diferentemente da Claudia, as
irmãs não nos contaram nada em um primeiro momento, mas nos deixaram
preocupados a ponto de irmos atrás de informações sobre a história das meninas.
Descobrimos que tinham ido morar lá por intermédio do Conselho Tutelar. O pai das
meninas havia sido denunciado e preso por agressão contra elas e sua mãe. Morar
em Alice Coutinho era uma possibilidade de esconderijo, da improbabilidade de
serem localizadas pelo pai. No entanto, a proximidade do bairro com algumas
instituições prisionais deixava as irmãs em estado de alerta, sempre amedrontadas
com a possibilidade de uma fuga. Quando o helicóptero da polícia sobrevoa a área
em altitude mais baixa, é sinal de que houve alguma fuga. Vários moradores já
relataram que o bairro está na rota de fuga dos menores internos da UNIS 85 e vários
são os casos de residências que foram invadidas e utilizadas como refúgio por eles.
Na cabeça das meninas, um desses fugitivos poderia ser seu pai. Daí o pavor e a
reação imediata de se esconder atrás de nós como se pudéssemos servir de escudo
e proteção no caso de sua indesejada aparição. Com o passar do tempo o medo das
meninas foi diminuindo e elas mesmas nos contaram essa história.
Comum também era o convite para uma pausa para o café na casa de um e de
outro, quando não almoços, ou lanches, os quais exigiam de nós um ―jogo de
cintura‖ apurado para que conseguíssemos escapar de alguns desses convites tão
generosos. A boa aceitação deste projeto pelos moradores do bairro foi importante
para essa nossa nova aproximação (2008-2009), onde realizamos uma série de
encontros e conversas tanto com moradores com quem já havíamos tido contato
85 Unidade de Internação Socioeducativa
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naquela época, quanto outros que até então nos eram desconhecidos.
3.2.1.3 Camila86
Reflexo dessa boa relação estabelecida com os moradores de Alice Coutinho foi a
permanência do contato com Camila. No trabalho que realizamos em 2005, ela era
uma das crianças que acompanhou de perto nossas atividades no bairro junto com
seus muitos irmãos. Acompanhava-nos mesmo quando possuía ordem expressa do
padrasto de não sair de casa. Questionava a autoridade do mesmo pelo fato dele
não ser seu pai. Ela conta que quando foi a Alice Coutinho pela primeira vez
detestou. ―Só tinha mato‖. Bem diferente da vida dinâmica que tinha quando morava
em Porto de Santana, onde tinha liberdade para brincar na rua. Foi um
desentendimento com o avô, com quem vivia, que levou a família a mudar para Alice
Coutinho há quatro anos atrás. Só mudaram depois que a casa de alvenaria ficou
pronta – ainda que sem reboco ou piso – e desde então só mexeram em algumas
fiações da parte elétrica e no telhado, que foi arrancado durante uma ventania há
alguns aos atrás.
3.2.1.4 Verônica
Conhecemos Verônica também em 2005, na época em que realizávamos o trabalho
com a equipe da UFES. Na época, recém chegada à Alice Coutinho, Verônica quase
sempre recepcionava-nos de forma calorosa assim que chegávamos ao bairro e
mostrava-se muito interessada nas atividades que estávamos realizando. Bem
articulada e falante, nos dias em que não aparecia, sua ausência era logo percebida.
Com o tempo ficamos sabendo pelas suas filhas que quando o marido estava em
casa ela não saía, pois ele não gostava que ela ficasse na rua de papo com ―os
outros‖. O reencontro com Verônica, já separada do antigo marido, proporcionou-nos
longas conversas. Ela disponibilizou-nos gentilmente o espaço de sua casa para que
pudéssemos utilizar como apoio durante a realização da pesquisa e lá passou a ser
86 Deste ponto em diante , os encontros foram realizados na pesquisa de campo entre 2008-2009.
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nosso ponto de chegada e partida. Mãe de Camila, Verônica mudou para Alice
Coutinho com os filhos e o então marido logo após o nascimento de seu 6º filho. Foi
durante o período em que estava hospitalizada, após o parto da criança – que na
ocasião precisou ficar alguns dias internada – que a confusão entre seu pai e seus
filhos aconteceu. A família morava no porão da casa do pai de Verônica em Porto de
Santana em condições precárias. ―Morava no porão da casa do meu pai... Igual a
rato. Rato é que mora no porão.‖. A briga culminou na expulsão da família. No
entanto, mediante a ameaça de denunciar o pai por agressão e maus tratos,
Verônica conseguiu um acordo: sairia de seu porão e não denunciaria o pai se este
construísse uma casa para ela e sua família. Estabelecido o acordo, Verônica soube
da existência de Alice Coutinho através de pessoas do bairro e da igreja que
freqüentava:
―Dona Morena que mora em Porto de Santana me falou a respeito. A
Lena, que era minha vizinha lá também já tinha me falado a respeito,
e eu vim. (...) Eu vim sem nunca ter vindo aqui nesse lugar! Peguei
um ônibus no terminal e vim! Quem sabe ler vai a Roma! [risos].‖
Ela conta que antes de ir para Alice Coutinho a sua família havia se juntado e
comprado um lote para ela em Vila Velha, mas que ela não aceitou pois o lugar era
praticamente inacessível.
Foram muitas as dificuldades enfrentadas para permanecer em Alice Coutinho.
―Não tinha água, não tinha luz. Só tinha mato! Só pirambeira e ainda
um monte de árvore. Eu falei: ‗Como eu vou fazer? ‘. Minha vontade
era de armar uma cabana nas árvores! Parecia que eu tava contando
piada né?! Ele perguntou: ‗Você ta animada pra vir? ‘. Eu falei: ‗Eu
tenho escolha? Não tenho escolha né?! Ou vai, ou vai, então... e
vim... Desmatar o lugar [risos]‖
3.2.1.5 Seu Jairo e Dona Conceição
Acostumados com a vida na roça, Seu Jairo e Dona Conceição gostariam de ter
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continuado por lá. A ida para Alice Coutinho há 5 anos atrás, se deu por motivo de
necessidade. Moravam na ―roça‖, em São Gabriel da Palha, localizada na região
norte do ES e sempre trabalharam por lá, no plantio: ―Eu vim pra cá porque o patrão
vendeu a terra né... vendeu a terra e nós perdemos o emprego. Eu trabalhava com o
patrão há 33 anos! Ele vendeu a terra e nós tivemos que ir embora‖. A ida para a
cidade era vista pelo casal como algo indesejável e a falta de infra-estrutura na
época tornava essa adaptação ainda mais difícil: ―Acostumado com a roça, a gente
não chegou aqui achando muito bom não... tinha violência também... agora ta
melhorando... Não tinha água também...‖. Eles contam que o filho veio primeiro para
a ―cidade‖ e depois de um tempo conheceu o Paulo Assis, que teria ―passado‖ o lote
para ele. Então, o casal, quando veio de São Gabriel para a ―cidade‖, já foi direto
para Alice Coutinho.
3.2.1.6 Dona Maria
Dona Maria foi outro reencontro. Na época em que a conhecemos, além de ser um
dos moradores que mais participavam das atividades que realizávamos, era também
integrante da coordenação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia de
Cariacica. Chamávamo-nos carinhosamente pelos nossos apelidos, demonstrando
estar super íntima e à vontade com a nossa presença por lá. Hoje Dona Maria não
participa mais tão ativamente do Movimento e também não se mostra tão
empolgada com as questões do bairro, ainda que seu discurso permaneça focado
na confiança no crescimento e desenvolvimento da comunidade. Moradora de Alice
Coutinho há 07 anos, conta que quando chegou lá só havia mato e ―bicho‖: ―Era um
matagal, nem tinha poste!‖. Sua trajetória é marcada por uma tragédia: o
assassinato de seu marido em Padre Gabriel, também em Cariacica. Ela conta que
mudou do bairro do dia para a noite com medo que seus filhos também fossem
assassinados. Aceitou a proposta de uma vizinha que possuía um lote em
Ecoporanga – município localizado na região norte do ES – que recebeu como
pagamento de uma transação que realizou, mas nunca tinha dado uso: ―Nem sabia
onde ficava Ecoporanga. Arrumei as malas, peguei os meninos e fui para a
rodoviária‖. Dona Maria alega que o bairro em que morava era muito violento,
principalmente por causa do tráfico de drogas: ―Até o cachorro, davam maconha pra
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ele fumar!‖, exemplifica ela com o intuito de que pudéssemos compreender a
dimensão do tráfico no bairro. A vida em Ecoporanga, município voltado para
atividades rurais, apresentou para ela outra relação de vizinhança e de vida em
comunidade: ―É outra vida... lá não era Vitória. Era uma convivência diferente. O
vilarejo onde eu morava era minha família!‖. A casa onde morava não tinha trancas
nas portas nem nas janelas. Logo que chegou se assustava ao cruzar na estrada
com homens carregando facão, enxada e outras ferramentas. Com o tempo se
acostumou com o fato de que estes poderiam ser apenas instrumentos de trabalho,
não armas. A volta para Cariacica foi motivada pela escassez e dificuldade do
trabalho na ―roça‖: ―Não tinha outro serviço. Meus filhos queriam trabalhar, e outros
serviços também...‖. A ida para Alice Coutinho foi intermediada pelo seu cunhado
que também integrava o Movimento. Enquanto finaliza a construção de sua casa,
Dona Maria mora com 02 de seus 04 filhos em uma casa vizinha a sua, cedida por
outra pessoa que foi morar em outro bairro.
3.2.1.7 Dona Celestina
Uma das poucas testemunhas do início da ocupação de Alice Coutinho que
permanece morando no bairro, Dona Celestina, no alto de seus 83 anos, recebeu-
nos no sofá de sua casa na companhia de alguns de seus netos e uma amiga
também moradora do bairro. Chegamos até ela por indicação de Dona Maria, com o
auxilio de Camila ,que agendou-nos uma visita. Sua casa está localizada próxima à
divisa do bairro com Antônio Ferreira Borges, perto da área onde foi construído o
barracão de lona que abrigou durante um bom tempo os primeiros habitantes de
Alice Coutinho. Uma senhora negra, simples, que traz na face as marcas do tempo e
das lutas. O que motivou a saída dessa moradora de Morrinhos – também em
Cariacica – e a busca por um novo lugar para morar foram as dificuldades no acesso
à casa onde morava:
―Minha casa lá era numa barroca. E todo dia nós tinha que sair de lá
pra modo de levar um menino que eu tinha na APAE, e tinha doença
na perna que eu tinha e eu caí muito morro abaixo‖
Dona Celestina se refere aos 12 anos de Alice Coutinho como uma vitória e lembra
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como chegou lá em 1996 com toda a família:
―Aqui foi uma invasão né.?! (...)Eu vim com o Paulo Assis. Isso tudo
aqui era barracão de lona. Ali onde era a creche ali era o
acampamento do pessoal. Quando vinha acampava num
barracãozão de lona que tinha. Todo mundo acampava ali. E agora
depois ia fazendo os barraquinhos de lona, nos lotes.‖.
3.2.1.8 Joaquim
Joaquim, também testemunha do início da ocupação, ainda lembra do dia que
acampou em Alice Coutinho com sua mãe e seus irmãos em julho de 1996. Lembra-
se da quantidade de carrapatos! A mudança não lhe agradou, mas não tinham
condições de permanecer pagando aluguel e morando em lugar de tão difícil acesso.
Vindos de Nova Rosa da Penha, permaneceriam debaixo do ―pé de árvore‖ por
quase um ano. ―Aquele pé de árvore ali é o cartão postal do bairro... com um monte
de barraquinha...‖. Casado e pai de 06 filhos (04 com a ex-mulher, e 02 com a atual),
mudou-se da casa da mãe, onde morava inicialmente, para outra casa também no
bairro.
3.2.1.9 Dona Helena
Moradora do bairro há 05 anos, Dona Helena lembra que quando foi pra lá uma
parte do bairro já possuía ruas abertas e os gatos de luz e água. Mas também tinha
muito mato ainda. Para ela não foi fácil conseguir um lugar para morar. Contou muito
com a ajuda de amigos: ―Tive que vir em muitas reunião... tive ajuda de Paulo e
Rosangela... Hoje se eu to aqui e agradeço a Rosangela e ao Paulo‖. A amiga
conseguiu primeiro e ajudou-a depois. ―Ela veio pra aqui... aí depois que ela veio
pra cá a gente veio‖, conta Dona Helena, que foi para lá com o marido e 06 filhos.
Antes disso morava em condições precárias em Campo Verde. ―Vim pra cá porque
aqui é melhor do que lá‖.
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3.2.1.10 Seu José
Morador do bairro desde 1998, Seu José morava antes em Santa Rosa. Foi morar
em Alice Coutinho para não ter mais que pagar aluguel. Ficou sabendo desta
movimentação através de um primo lá em Santa Rosa, onde já se ouvia boatos da
ocupação. Quando foi morar em Alice Coutinho ainda não estava envolvido com o
movimento de Moradia. Apesar de não ter estado presente no dia da ocupação, seu
José parece saber detalhes do acontecido em 03 de julho de 1996. Das 20 famílias
acamparam, nem todo mundo permaneceu porque alguns não tiveram coragem de
enfrentar o mato (da altura de uma árvore ou mais altos até), carrapatos, animais,
espinhos, cobras, etc.
3.2.1.11 Seu Francisco e Dona Edilene
Seu Francisco mora no bairro há 8 anos e quando chegou ainda não havia ruas.
Algumas pessoas já estavam morando debaixo da ―lona preta‖, debaixo do ―pé de
arvore‖, onde hoje está construída a escola. Seu Francisco e família juntaram-se a
eles. Ficaram sabendo da ocupação através de colegas que moravam em Nova
Rosa da Penha. No entanto, Dona Edilene conta que quem passou as informações
mais precisas foi o Paulo Assis, que com freqüência estava em Nova Canaã, onde
moravam: ―Ele sempre tava lá em Nova Canaã... Ele que informou que ia abrir aqui
a área‖. Optaram por deixar Nova Canaã por acreditarem que na ocupação, ainda
que não tivesse nada, seria possível construir um lugar melhor para viver. Seu
Francisco afirma que estava certo: ―Aqui cresceu muito mais do que Nova Canaã.
Quando eu saí de lá tava com onze anos que nós estava morando lá. Ta do mesmo
jeitinho. Aqui não. Aqui era aquele mato puro... E cresceu mais‖.
3.2.1.12 Kaka
―Casei aos 18 anos, fui pra casa da minha sogra, no bairro Limão. Tive 5 filhos.
Depois de casado houve a separação entre eu e minha esposa. Ela me deixou com
5 filhos. Aí cuidei deles e graças a Deus consegui botar eles na idade adulta. Hoje
eu tenho 3 filhas casadas‖. É dessa forma que Kaka inicia sua história em Alice
Coutinho. Há aproximadamente 5 anos, Kaka conseguiu seu lote:
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―Sempre pedi a Deus que me abrisse a porta, pra eu comprar um lote
para que eu viesse a ter minha casinha mesmo no lugar... A minha
situação... eu morava no quintal da minha ex-sogra e necessitava
assim de um lote pra ter um lugarzinho meu mesmo‖.
Foi através do contato com Paulo Assis que Kaká conseguiu seu tão sonhado lote.
Por simpatizar com o Movimento, ele acabou exercendo no bairro o papel de auxiliar
na coordenação local, ainda que informalmente.
―Uma coisa muito importante que eu vou falar pra você: Eu amo o
bairro Alice Coutinho. É o mais importante. Eu amo o bairro Alice
Coutinho. E é esse o motivo que eu faço qualquer coisa pra ajudar,
pra trabalhar‖.
Quando questionado da onde vem esse amor todo pelo bairro, ele explica:
― É porque eu nunca tive né... Um homem tem que ter uma casa pra
morar. Pra ir e pra voltar. Eu tinha lá mas tava no nome da minha ex-
mulher, que eu tenho muito carinho. Mas não considero meu lá não.
Que é a coisa mais importante, mesmo que seja debaixo de uma
lona, mas é saber que ali você vai administrar aquilo ali. Não é
mandar, mas sim administrar. Hoje eu tenho plena liberdade. Eu
tenho plena liberdade né, de trazer meus amigos pra minha casa,
não importa o que nós vamos fazer, o que nós vamos comer, mas
nós vamos estar juntos!‖.
3.2.1.13 Bethânia
Hoje com 39 anos, Bethânia mora em Alice Coutinho desde 2001. Antes morava em
Flexal, nos fundos do restaurante aonde trabalhava. Quando o restaurante fechou as
portas, se viu sem teto. A mãe dela, que já é falecida, morava na ocupação, e a
ajudou a conseguir um lote também. Com o tempo seus irmãos também foram morar
lá. No início Bethânia achou que a ocupação não daria certo. ―Tinham poucas ruas
abertas...‖. Ela conta que o sonho de seu marido é voltar para Viana: ―Em Viana tudo
é perto!‖. Ela possui dois filhos que já são casados.
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Apresentamos alguns dos moradores do bairro relacionando-os aos fluxos –
motivações, acontecimentos, sentimentos, etc. – que impulsionaram seus
deslocamentos para um Alice Coutinho que só existia enquanto potência. Estes
fluxos atravessaram a constituição desse novo território que se construiu a partir de
diferenciados processos de des-re-territorializações nos quais diversos elementos de
memórias foram acentuados enquanto singularidade, conferindo a um e outro
habilidades e competências que, compartilhadas, forneceram importantes
contribuições na construção dos novos traços de sociabilidade e territorialidades.
Entendemos a ousadia da chegada e a opção pela permanência como momentos
chaves nesse processo que implica em mudanças significativas, alterações,
atualização de novas e das já enraizadas práticas e mesmo no abandono de outras
que não puderam mais ser estabelecidas em sua forma anterior. Assim,
reelaboraram se não o ritmo da vida no campo, o estreitamento das relações de
vizinhança lá permitidas. Outras práticas, no entanto, foram, ao contrário, cerceadas
por imperativos como a violência, que impede a utilização da rua em sua
potencialidade, por crianças e adolescentes. Satisfação e insatisfação mesclam-se
com a insegurança e a esperança nesse novo espaço-condição.
3.2.2 2º Movimento: Tempo da ação
Adentramos o tempo da ação tomados pelas considerações realizadas sobre o
tempo da memória. Os territórios neste novo tempo se definem na subjetividade dos
afetos, na materialidade do traçado urbano, entre estriamentos e alisamentos, nas
práticas cotidianas, onde as atuações políticas e pessoais confundem-se conferindo
significado e sentido ao lugar. Neste tempo de ação se realizam as tentativas de
demarcação e construção do bairro assim como a reconstrução de vidas e casas,
em meio a enfrentamentos e conflitos.
De 1996 (ano em que teve início a ocupação) a 2009 (ano em que interrompemos
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nosso contato com o bairro), o processo de consolidação de Alice Coutinho passou
por diferentes momentos, alternando-se entre momentos de inquietação e
estabilidade. Em junho de 1996, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia –
MNLM, providenciou um ônibus que levaria os militantes ao local do acampamento,
sem, no entanto, revelar a eles seu destino. Achavam que iam participar de uma
festa em comemoração ao Dia Nacional de Luta por Moradia, promovida anualmente
pelo Movimento. Não sabiam que a ―festa‖ programada era a ocupação da área que
pertencia a COHAB, em Areinha.
―O Movimento se encontrou a meia-noite em frente ao Palácio
Anchieta, em Vitória. Levaram um ônibus com o pessoal da
ocupação de Porto de Santana. Convidaram para uma ‗festa‘ para
comemoração do dia Nacional de Ocupação e trouxeram em um
ônibus para cá‖.
―Aí eles falaram assim, olha, a festa que nós vamos é uma ocupação.
Aí nós fomos, e ai quando nós chegamos nesse lugar, já era uma
hora da manhã. Aí o Paulo falou assim, ó, a área que nós vamos
ocupar é essa, ai que quem quiser voltar pode voltar, e os que
quiserem ficar vamos ficar, vamos começar a roçar isso aqui e
vamos ocupar essa área.‖
A estratégia adotada pelo Movimento funcionou em parte. Algumas das famílias
preferiram retornar. A COHAB, proprietária da área, exigiu sua desocupação para
que iniciassem as negociações. O Movimento concordou e a COHAB propôs que
fosse criada uma cooperativa para que pudesse ser estabelecida uma parceria entre
Movimento, Prefeitura e COHAB, a COOP-Areinha. Apesar de concordarem com a
criação da cooperativa, esta não saiu do papel. A negociação com a COHAB não
evoluiu o que culminou no retorno do grupo para o acampamento. Segundo Elias,
um dos coordenadores do Movimento, o grupo ―voltou dessa vez pra ficar‖, roçando
e construindo os barracos de lona na área onde hoje se encontra a escola.
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Figura 33 - Sobreposição da imagem da área de sua ocupação e desenho de um traçado próximo ao realizado
Fonte: DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005
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Figura 34 – Esquema dos fluxos que atravessaram o processo de consolidação de Alice Coutinho construído a partir das informações fornecidas por alguns moradores.
Figura 35 - Esquema relacionando os ritmos das negociações com a COHAB-ES e a velocidade da consolidação da ocupação em Areinha.
A ocupação avançou em um ritmo muito mais frenético que o das negociações.
Enquanto estavam presos às respostas da COHAB, os moradores permaneceram
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concentrados debaixo das lonas evitando uma ocupação dispersa. A pausa nas
negociações foi o estopim para que Movimento e moradores desconsiderassem a
possibilidade de acordo e partissem efetivamente para a apropriação da área.
Reagiram aos entraves da burocracia construindo o bairro e suas casas.
―O povo tem que ter moradia.(...) Enquanto a COHAB estava
enrolando nós, nós estávamos esperando por eles. Mas enquanto
eles pensavam que nós estava parado, nós continuamos!‖
―Quando eles [COHAB] chegavam pensando que a gente tava aqui,
a gente já tava lá. Quando vinha aqui novamente nós já estava com
o poste até ali.... Quando voltaram a dar uma atenção aí de novo nós
já tinha botado casa pra lá, ali já tinha outra, já tinha poste tudo até
aqui na praça. Enquanto eles estão enrolando nós... e por resto, eles
não arranjaram jeito de tirar nós mais!‖
3.2.2.1 Expansão
O acampamento expandiu-se e transformou-se em bairro com a participação ativa
de diferentes atores. Ainda que conduzido de perto pela coordenação do Movimento,
as construções diárias eram realizadas por moradores comuns através do
compartilhamento de práticas que trouxeram de outras experiências. Estas
experiências e a atualização destas práticas feitas a partir de tomadas de decisões
coletivas direcionaram os caminhos e formas que a ocupação veio a tomar ao longo
dos anos. Por parte do Movimento, as experiências adquiridas na participação de
outras invasões, trouxeram à tona preocupações com os problemas gerados pela
ocupação desordenada. Tinham como referência o bairro Flexal – também em
Cariacica – que, mais de 20 anos depois de sua ocupação, apresentava sérios
problemas relacionados a acessibilidade e carência de espaços públicos. Em
resposta a tal preocupação, Seu João – um dos moradores que posteriormente veio
a ser um dos coordenadores do grupo – utilizando-se de experiência adquirida com
esquadros em trabalhos anteriores e também o conhecimento de morador de outras
ocupações, elaborou o que chamou de ―rascunho‖ do projeto do bairro para
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apresentar aos moradores em uma reunião. O rascunho foi aprovado e a ele
atribuído o cargo de ―engenheiro do bairro‖.
―A pequena experiência que eu tenho com esquadro, eu vou tentar
fazer o melhor, falei. Aí comecei com o papel a riscar, riscar, riscar, e
vi que se a gente sai com a rua reta lá de cima, sem aquela curva lá
no final, aquela rua ia saindo lá de cima e ia sair lá em baixo. Aí, a
gente achou por bem de fazer a rua principal vindo por ali, virar aqui
e ajuntar aqui e virar também. (...) Fiz desse jeito, levei pra reunião e
pensei que eles não fossem aprovar não. Porque os terrenos estão
tudo tipo cocado, não ta no esquadro. Por que? Porque ta rodando o
bairro! Coloquei em cima da mesa lá o desenho, todo mundo olhou,
olhou, olhou, aprovou que eu podia fazer a medição daqui pra frente,
organizar a medição tudo de acordo com aquilo que tava ali.(...) Por
isso que tem umas pessoas aí que falam ‗nosso engenheiro‘! Falam
que eu sou engenheiro só porque eu risquei! (risos) Quem faz o risco
é arquiteto né!‖
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Figura 36 – Desenho de Seu João - Projeto para o bairro
Fonte: Acervo MNLM apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005
Do projeto, algumas poucas alterações foram feitas, como a redução da largura das
ruas de 10 para 8 metros, sob a argumentação de ser possível ampliar o número de
lotes com essa alteração.
O projeto do bairro não envolvia apenas o traçado e dimensionamento de ruas e
lotes. Havia também uma espécie de zoneamento elaborado em conjunto com a
coordenação do Movimento, que tinha a intenção de promover através de uma
ocupação hierarquizada, a diversidade e trazer o desenvolvimento para o bairro. Na
zona comercial, abrir-se-ia a possibilidade de fornecer lotes para comerciantes que
não necessariamente residissem no bairro. Outras áreas teriam um zoneamento
hierarquizado de acordo com o ―poder aquisitivo‖ dos moradores. Essa segregação
é explicada por alguns moradores e pela coordenação do Movimento com uma
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alternativa para atrair moradores que possuíam capital pra investir no bairro.
Acreditavam que se houvessem áreas destinadas a eles, não ―misturada‖ com os
demais moradores, a proposta seria mais facilmente aceita. O questionável é por
isso?
―As ruas já estavam tudo marcadinhas (...).As pessoas mais...
digamos assim... de pouca cultura, ia ficar na Rua 10. As de mais
cultura aí era em outra rua‖.
―O pessoal achava que o comércio aqui era muito fraco. Aí começou
a ocupar aqui o pessoal...‖.
Nenhuma das duas idéias de zoneamento funcionou. O projeto do novo bairro
pauta-se em um ideal de cidade impregnado no imaginário coletivo. Seu traçado
segue o dos bairros vizinhos, assim como sua estrutura fundiária e morfológica.
Assim como se tentou fazer o zoneamento. O projeto reforça o que já foi dito antes,
sobre a necessidade de afirmar e distanciar do estereotipo da ocupação
desordenada, desorganizada, tumultuada, insalubre e carregada de preconceito, não
apenas por parte dos outros mas por parte dos próprios moradores da ocupação.
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Figura 37 - Início da ocupação no bairro Alice Coutinho
Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005
Figura 38 - Praça no início da ocupação em Alice Coutinho.
Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005
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Figura 39 - Início da ocupação em Alice Coutinho.
Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005
Figura 40 - Início da ocupação em Alice Coutinho.
Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005
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Figura 41 – Moradores e representantes do MNLM nos trabalhos do início da ocupação em Alice Coutinho com a máquina alugada através da contribuição dos moradores.
Fonte: Acervo MNLM s/d apud DOSSIÊ-DAU/UFES, 2005
Com o aumento do número de pessoas que se dirigiam à ocupação pedindo lotes, o
Movimento e os moradores que estavam há mais tempo envolvidos no processo,
elaboraram algumas normas e procedimentos que precisavam ser respeitados para
que a pessoa tivesse direito ao lote. Precisavam freqüentar as reuniões semanais,
preencher uma ficha com um histórico que indicasse os motivos da ida para a
ocupação. Os moradores contam que tentavam sondar mais informações sobre
essas pessoas para averiguarem a real necessidade delas, mas nem sempre era
possível. As pessoas que conseguiam tinham um prazo de 15 dias para começar a
construir de lajota. Essa estratégia foi adotada tanto para dificultar possíveis
tentativas de despejo – nas quais construções de lona e de tábua são mais
facilmente retiradas – quanto para evitar que oportunistas deixassem os lotes vazios
especulando.
―Eu vinha e roçava para poder fazer, mas não tinha dinheiro pra
fazer. Aí um camarada que trabalhava sendo diretor, que tava junto
aí, pegava e marcava com 15 dias tirava o lote da pessoa. Mas aí
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com 15 dias eu cheguei pra outra reunião e já tinha passado pra
outro já. Quer dizer, eu limpei terreno para os outros. Aí depois eu
peguei e vendi peça de ferramenta minha e vim pra debaixo da lona‖.
―[O Movimento] Botou uma pressão pra eu construir em 15 dias, mas
eu não tinha dinheiro... Aqui tinha essa política de se fazer em 15
dias...‖
Essas normas, no entanto, atingiam também as pessoas que não tinham condições
de adquirir material de construção forçando o Movimento e a coordenação local a
serem mais flexíveis.
―É justo tomar o lote da pessoa, o cara comprovando ali o motivo
porque não pode? Quer dizer, aí a gente pegava e dava mais um
tempo para a pessoa, esperava mais.‖
Situações como essas acabaram por criar atrito com diversos moradores que se
sentiam injustiçados, e as relações entre os moradores e seus representantes
começam a se desgastar. Hoje existem lotes que estão há mais de 02 anos sem
nada construído87. Foram várias as estratégias adotadas pelos moradores na
construção de suas casas. Os que trabalhavam durante o dia intensificavam o ritmo
das construções de madrugada ou nos fins de semana, com a ajuda amigos e
parentes.
Das casas que visitamos, encontramos situações e processos diferenciados.
1. A família só mudou com a casa pronta, que foi construída pelo avô, com 3
quartos, 1 cozinha e banheiro, direto na alvenaria. Desde sua construção (há
87 Ainda hoje a questão da propriedade não foi resolvida e a posse da área continua a ser da
COHAB-ES, embora haja um acordo de que será estudada a forma de transferência do titulo de propriedade para os moradores.
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4 anos) não foram feitas mais alterações, apenas o telhado que foi destruído
por uma ventania. Ainda não possui revestimento, tem quintal e é isolada no
lote.
―Eu não sou arquiteta, mas falo com ele que tá tudo mal feito!‖
2. Casa de alvenaria em construção há 07 anos. Enquanto isso a família mora
na casa ao lado, cedida por outra moradora.
3. A casa teve 3 etapas: primeiro foi construído o barraco de lona, depois o
barraco de tábua, e por último a casa de alvenaria.
4. Mora na casa da sogra enquanto termina a construção em alvenaria da sua
casa. Constrói em geral nos fins de semana com ajuda de amigos e
parentes.
5. Já havia um barraco de tábua, pois a família conseguiu um lote que havia
sido abandonado. Depois de um tempo construíram um novo barraco de
tábua, depois a casa ―de verdade‖, de alvenaria.
6. A primeira moradia foi debaixo da lona. Depois em um barraco de tábua que
conserva até hoje no fundo do lote e está emprestado para um amigo que
constrói na casa ao lado. Hoje reside na casa de alvenaria, na parte de trás
do comércio que divide na mesma edificação.
7. Primeiro construíram um ―barraquinho‖ e tábua e depois de alvenaria. As
duas construções permanecem no lote. Hoje em uma mora o marido e em
outra a esposa.
8. Construíram direto em alvenaria. Enquanto construíam alugaram uma casa
no bairro por 3 meses.
9. Primeiro construiu um barraco de tábua no fundo do terreno para ocupar o
lote. Enquanto construía morava na casa da sogra. Agora mora no barraco
enquanto constrói a casa de alvenaria na frente. Não pretende derrubar o
barraco de tábua quando a casa ficar pronta para ter como recordação e
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também para hospedar amidos e visitas.
Figura 42 - Casa de alvenaria na frente e o barraco de tábua nos fundos
10. Depois de trocar de lote 3 vezes, construiu direto em alvenaria. Enquanto
construía morava na casa do pai em outro bairro.
11. Morou primeiro em um lote provisório, depois mudou para um definitivo. Já
havia no lote um barraco de ―madeirite‖ que utilizou enquanto construía o
seu.
Como na construção do bairro, a casa também apresenta referências e citações. No
entanto, variações se fazem necessárias devido aos obstáculos impostos seja pelo
método de construção utilizado, pela situação financeira, pelos arranjos familiares
existentes, etc. Quase sempre permanecem a distinção entre entrada social e de
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serviço, embora seja dispensável uma vez que os ―serviços‖ são realizados pelos
próprios moradores. A distribuição dos cômodos no interior da residência, em geral
também toma como referência essa mesma casa burguesa, mas se realiza de forma
particular, também adaptada à condição financeira do morador, embora permaneça
como ideal a ser alcançado ao fim da interminável obra. Adaptações em relação ao
número de pessoas por cômodo também se fazem necessárias.
A primeira área ocupada foi onde hoje é a creche. A abertura das ruas teve início
pela Rua 11, que juntamente com as ruas 10 e 12 foram as primeiras a serem
ocupadas. Estima-se que cerca de 30 famílias ocuparam essa área em um primeiro
momento. Esse processo não esteve imune as tentativas de repressão.
―A gente pensou até que não ia dar certo né, quando a polícia
começaram a despejar o povo aí... Qual invasão que não acontece
isso assim da polícia querer despejar o povo?‖.
Figura 43 - Esquema das etapas de consolidação do bairro segundo alguns de seus moradores
Em 2000 houve a primeira tentativa de ―invadir‖ o terreno da Blokos Construtora
para construir uma rua de saída para o ―asfalto‖, que não teve êxito.
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Em 2001 as ruas ainda não estavam totalmente abertas e não havia muitas casas.
Existiam muitos bichos que entravam nas casas. Alguns moradores afirmam que
ainda hoje existem cobras.
Em 2002 a expansão da ocupação chega à Rua Floriano Coutinho, que avança em
direção ao que hoje é a entrada do bairro.
Em 2003 ainda existiam lotes e barracos desocupados para morar. Não havia muitas
construções da igreja católica pra baixo. ―Era tudo mato‖. No entanto, alguns
moradores afirmam que já estava tudo loteado apesar das ruas não estarem
abertas. Prevaleciam os ―gatos‖ de luz e água e muitos dos barracos eram de tábua.
A conexão do bairro com o ―asfalto‖ ainda não existia. De 2003 em diante foi o
período de maior desenvolvimento do bairro.
Em 2004 foram abertas as últimas ruas e a expansão alcança a Rua Esperança e
avança em direção à Rua Antário Filho. A área entre a praça e o bairro Ferreira
Borges constitui a parte mais consolidada do bairro.
Figura 44 - Nome das ruas do bairro.
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Figura 45 - Esquema das etapas de consolidação do bairro segundo alguns de seus moradores
Algumas relações se estabelecem a partir dessas sucessivas etapas de expansão
do bairro. Durante nossas caminhadas presenciamos alguns moradores se referirem
á área ocupada mais recentemente (indicada pela cor azul na Figura 45 ) como
―cafundó do Judas‖. No ―cafundó do Judas‖ concentram-se os moradores mais
recentes do bairro e as edificações mais precárias. Percebemos um olhar de
desconfiança para com eles por parte dos moradores mais antigos. Semelhante
desdém foi direcionado para a parte ―baixa‖ do bairro vizinho, Andorinhas. ―Croca‖,
favela, ―um monte de casa tudo empilhada‖, foram expressões utilizadas para se
referir a eles e a forma com que ocupam os fundos de vale. Esta atitude, no entanto,
demonstra uma necessidade de distinguir eles próprios dos demais moradores,
numa tentativa de valorizar sua condição de não-favelado visivelmente externada
quando falam que moram em um bairro planejado.
―Temos uma planta! Um dos bairros de Cariacica que é todo
projetado, todo planejado chama-se Alice Coutinho!‖
O uso da expressão ―bairro planejado‖ aparece carregada de uma civilidade
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renegada à ocupação, à favela, à ―croca‖. O bairro planejado liberta os moradores,
ex-invasores, de toda carga negativa da invasão e atualiza-os enquanto cidadãos,
enquanto comunidade.
Ao estabelecerem estes limites entre o que são e que não são, incorporaram uma
prática que outrora lhes afetou diretamente enquanto ainda estavam acampados.
―Eu mesmo ouvi com esses próprios ouvidos aqui, quando eu fui em
comércio ali dentro [referindo-se ao bairro vizinho, Antônio Ferreira
Borges], pessoas dizer que a partir do momento que vieram esses
sem terra pra cá nós ficamos prejudicados, nós não temos sossego
mais. Que isso não devia, de ter vindo esse povo pra cá. Porque que
não foi pra outro lugar... (...) Tudo de errado que acontecia lá eles
colocavam a culpa em cima do pessoal aqui.‖
A aproximação com o outro é que exige a distinção. Classificações e distinções
estabeleceram uma relação conflituosa entre os moradores dos bairro Antônio
Ferreira Borges e os moradores da ocupação que, com o tempo, foi minimizado.
―No começo eles começaram a achar ruim nossa presença, mas
depois eles concordaram. Não criaram problema nenhum não...‖
Junto com o avanço e as conquistas dos moradores de Alice Coutinho veio também
a substituição da diferenciação pela busca da igualdade, pelo direito de ter direitos.
Essa é uma constante que atravessa diferentes dimensões da vida dos moradores
do bairro, impregnando sutilmente detalhes do dia-a-dia, como a decoração de Natal
do bairro, não prevista pela Prefeitura. Presenciamos em uma das reuniões com a
comunidade, um discurso emocionado de um de seus representantes, sobre a
conquista das luzes para o Juá. Em todos esses anos de existência, nunca haviam
conseguido que sua árvore tivesse o destaque merecido junto às autoridades e
técnicos que decidem sobre a decoração de Natal do município.
Aos poucos identificamos outras sutis relações simbólicas que revelaram o respeito
e o peso conferido ao ensino pelo Movimento e pelos moradores do bairro.
Elegeram a construção da escola como símbolo do início da ocupação. Na área
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onde acamparam inicialmente os primeiros moradores, hoje está localizada a
―Escola Municipal de Ensino Infantil Amélia Virginia Barbosa Machado‖, que ao
longo dos anos teve sua área preservada pelos moradores que atuaram como
fiscais zelando pela sua não invasão. Tanto que nela, mesmo na época da abertura
das ruas, foram até temporariamente ocupadas, mas nunca por instalações fixas. É
perto da escola que moram também os moradores mais antigos, na primeira etapa
consolidada do bairro.
Algumas pequenas demonstrações de construções coletivas e afetivas imprimem ao
espaço significado peculiar. As ruas do bairro que dão continuidade às já existentes
no bairro vizinho, foram inicialmente numeradas e posteriormente receberam nome
escolhidos pelos próprios moradores:
―Cada rua tem uma história...‖
―A rua 12 tem esse nome em Ferreira Borges, mas em Alice
Coutinho se chama Rua Jorge Pinheiro. A rua 11 é a Rua da Vitória,
a Rua 10 é a Rua Olga Nascimento, e a rua que divide o bairro Alice
Coutinho com Antonio Ferreira Borges é a Rua 15. Foi o povo que
escolheu o nome das ruas. Rua Araribóia, Rua Antário Filho, Rua
Antonio Baldino, Rua Elienir Dornellas (que freqüentava a igreja
católica, mas morreu), Rua Piauí, Rua Bela Vista, Rua Cajueiro.
Quando a gente tava lá falamos que nome a gente coloca nessa rua
aqui? Vamos sugerir o que? O que que tem aqui? Aí vimos um de pé
de caju lá na frente que ta lá até hoje. Aí resolvemos, vamos botar
Cajueiro então! Porque ta na direção do cajueiro. Aí trouxe isso aí
pro meio do povo, o povo aprovou‖
O primeiro ―bico de água‖ foi feito na casa de Jorge Pinheiro, morador do bairro
vizinho que permitiu que ―puxassem‖ de sua casa os bicos e realizassem suas
instalações provisórias. Como forma de homenageá-lo, foi dado seu nome a uma
das ruas do bairro.
Em contrapartida, o nome do ―bairro‖ foi uma escolha política, cuja estratégia
adotada pelo Movimento consistiu em chamar a atenção do então prefeito, Aloísio
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Santos88. ―Foi uma tentativa de sensibilizar o prefeito‖, afirma um integrante do
Movimento avaliando como positivo o resultado desta ação, pois o bairro ganhou
visibilidade junto a administração municipal. Nem todos os moradores concordam
com essa escolha.
―Aqui é reconhecido como se fosse continuação de Ferreira Borges...
Isso aí foi puxação de saco! Paulo puxando o saco do homem lá que
fez... Eu, até eu mesmo não concordo‖
3.2.2.2 Práticas, usos e improvisos
O início da ocupação aponta vários improvisos. O acampamento no meio da rua
pressupunha a limpeza da área e armação do barraco de lona. Ocupou-se primeiro
a área onde hoje é a creche, onde permaneceram acampados por quase um ano,
antes da abertura das ruas.
Dentre as estratégias utilizadas para esta construção, destacam-se algumas
práticas, marcantes nos espaços opacos, dentre elas a produção dos ―bicos‖ ou
―gatos‖ de água e luz. A água foi apontada pelos moradores como a questão mais
séria.
―A água a gente puxava de mangueira de borracha, aí encanava pra
dentro das residências, pra casa de um, pra casa de outro... A luz era
a mesma coisa, puxava do poste‖.
―Vinha água lá do Ferreira Borges e a gente pegava e distribuía
aqui... Mas tinha muita falta de água sabe... A gente só pegava água
a noite, porque a partir de oito horas tinha. Mas de manhã, quando
todo mundo levantava não tinha mais, da torneirinha... não tinha
nenhuma. Começava a tirar o pessoal lá de cima e aqui não
88 Alice Coutinho foi a mulher do ex-prefeito Aloízio Santos. Na ocasião da ocupação,ela havia
acabado de falecer.
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chegava... A gente só tirava a noite pra poder construir.. no tonel. As
vezes 20 litros, 4...‖
Em uma das tentativas da Companhia Espírito Santense de Saneamento – CESAN
de barrar a execução dos ―bicos‖ foi colocado um relógio único, para as famílias que
moravam no bairro. Obviamente, esta tentativa fracassou, pois o valor dividido ente
os moradores raramente era pago. Alguns afirmam que nunca pagaram. Os ―bicos‖
geravam também uma movimentação interna, uma rede informal de prestações de
serviços. O conhecimento exigido para sua execução levava alguns moradores a
contratarem aqueles moradores mais habilidosos, ou que detinham mais
conhecimento na área das instalações para fazê-lo – embora muitas fezes tais
serviços fossem executados de graça, pela camaradagem.
―Eu me pendurava no poste a noite, fazia gato pra um aqui, e
ganhava 20 reais, fazia mais outro ali e ganhava mais 20 reais.
Ganhava o dinheiro com os ―bicos de luz‖ pra poder completar o
dinheiro da mangueira e pra poder me manter. A dificuldade era os
vazamentos‖.
A busca pelos vazamentos acontecia de madrugada em função da pressão da água
ser maior.
―Ia cada um com uma lampadazinha procurar bico de água...
Quantas noites nós já não fizemos isso... Tinha dia que era 1h da
noite e nós estava lá, passando nas ruas, caçando aonde é que tava
vazando água... Porque de dia quase não tinha pressão nenhuma da
água, era todo mundo usando. Então... certamente não tem água pra
fulano porque beltrano tá usando. Mas de noite como não tinha
ninguém usando, aí você ia ver onde é que tava vazando...‖
Tais práticas renderam alguns encontros inusitados nas madrugadas.
―Quantas e quantas das vezes eu topei com camarada que tava aí
escondido no meio dos matos, e lá vai eu com a lanterna no meio
dos trilhos e daí a pouco tinha um camarada e falava: ‗ó, não fala
nada que me viu aqui não!‘. Eu falava, ‗não rapaz, fica tranqüilo!‘.
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Camarada se escondendo de outro que queria matar ele e ele se
escondendo, e eu to nem sabendo de nada. Em tempo até de tomar
uma bala com a cara a fora em prol dos outros, em prol do povo.‖
Esse sentimento de trabalhar em prol de uma causa, de um povo, de uma
coletividade perpassa diversas outras situações, conferindo às relações construídas
pelos moradores momentos solidariedade, tensão e conflito.
O uso individual da água era ―controlado‖ por todos os moradores e ações tidas
como egoístas eram repreendidas, em alguns casos até com violência:
―O pessoal vendo eu aguando a horta, quando faltava água para
eles então era porque eu tava aguando planta...Não tinha nada a
ver... Porque eu tinha o meu ―bico de água‖ que vinha lá do Ferreira
Borges, independente da rede dos outros. Mas aí começaram a
comprar galinha, comprar cachorro, aquele monte de coisa pra poder
ficar aqui em cima da minha horta. Aí eu desisti. Pra evitar confusão.
Fui agarrado pela garganta mesmo, por causa de água!‖.
As estratégias que conferimos utilizadas para a construção dos ―bicos‖ poderiam
estar enquadradas na definição de gambiarra feita por Portela (2007), na qual ―o
processo de construção de coisas pressupõe um estado de precariedade, de falta, e
uma conseqüente ação de adaptação à esse estado, na base do improviso‖. Ainda
presentes no bairro, os ―bicos de água‖ eram a forma de obtenção de água de todos
os moradores, até 2005, quando, devido ao aumento de moradores, passaram a não
dar mais vazão a quantidade de água solicitada. Neste momento, substituíram a
gambiarra pela instalação da rede padrão de água, solicitando-a junto a CESAN. A
rede foi instalada em etapas, tendo início pela área entre o bairro Antônio Ferreira
Borges e a Rua Nova Esperança. A adesão de parte dos moradores à rede da
CESAN solucionou o problema da falta de vazão das instalações improvisadas,
culminando na permanência dos ―gatos‖ na maioria das casas do bairro.
Assim como os gatos de água, os gatos de luz avançavam acompanhando a
expansão do bairro. Em 1999 foram colocados os primeiros 9 postes e em 2000
mais alguns.
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Outras gambiarras foram criadas desde o início do processo de ocupação. O bairro
foi ―desenhado e demarcado no chão‖ pelos moradores com ―pau de vassoura‖ e
barbante. Na elaboração do projeto do bairro utilizaram-se das referências que
cultivaram no local, como, por exemplo, o Juá, para estabelecerem referências e
relações de distância. Como disse seu José,
―A gente sabia que o pé de Juá tava no meio do bairro‖
Detentores de um conhecimento cego sobre o espaço89, desenvolveram técnicas e
relações espaço-tempo singulares a partir das quais dominam seu território.
Em geral práticas e usos são atualizados e reafirmados pelos moradores de forma
inventiva e também via apropriações de modelos já estabelecidos. Eles são
reelaborados sem burocracias ou outras preocupações normativas.
O que antes era um bar, agora acrescido de uma parede que o divide ao meio no
comprimento, passa a dividir espaço com uma padaria. A ―venda‖ do Seu João de
frente para a praça serve também de salão para sua mulher. Entre uma venda e
outra de chup-chup90, balas, pão, refrigerante, biscoitos e acetona, atende-se a
clientela de mulheres que procuram o serviço da manicure e são atendidas nos
bancos e mesas improvisados no ―puxadinho‖ da venda.
89 DE CERTEAU, 1994.
90 O nome deste produto pode variar de acordo com a região do país: chup-chup, geladinho, sacolé.
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Figura 46 - Residência e estabelecimento comercial informal em uso simultaneamente.
Relações de proximidade entre cliente e dono do bar são facilmente estabelecidas
quando casa e bar aglutinam-se no mesmo terreno ou na mesma construção. O bar
do Seu Manuel, por exemplo, fica sempre fechado e, os fregueses querem comprar
algo, ―chamam‖ na sua casa, no portão ao lado.
―Eu boto aqui dentro e ela [sua mulher] mesmo que atende. Ela ta
doente, e não pode ficar andando...‖
A escassez de estabelecimentos comerciais no bairro é justificada por alguns
moradores pela inadimplência gerada pelo costume de ―comprar fiado‖.
―A questão de ter pouco comércio é por conta de uma meia dúzia
que não gosta de cumprir com o seu dever. (...) Ó, quase ninguém
viu essa venda minha aqui abarrotada de mercadoria de cima
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embaixo...É sempre pouquinho. Pouquinho, com preço razoável, pra
vender só no dinheiro.‖
Enquanto os comerciantes queixam-se dos clientes, estes se queixam dos altos
preços cobrados por eles.
A feira anuncia sua chegada pelo alto-falante da kombi, de onde o feirante nômade
circula pelas ruas do bairro vendendo de peixe a verduras. A informalidade no
comércio só é colocada em xeque pelos moradores quando oferece perigos
evidentes aos consumidores, como é o caso da venda de remédios.
‖ Tem comércio que vende remédio mas poxa, você vai comprar
remédio assim? Esse dipirona, um monte de trem doido aí... Da onde
eles tiram esse remédio pra vender? Que ninguém vê eles
comprando de farmácia, de onde vem esse remédio que não tem a
licença nem nada pra poder vender? Eu não compro remédio aqui....‖
Pudemos identificar dezenas de igrejas e templos ao percorrermos as ruas do bairro.
No entanto, fomos informados por alguns moradores que não correspondem à
realidade, pois existe uma distinção estabelecida por alguns deles que diferenciam
as igrejas e templos dos ―pontos de pregação‖. Os pontos de pregação seriam os
casos em que moradores transformam sua própria casa um lugar de reunião de
determinada denominação religiosa, seja através da construção de um ―puxadinho‖
para frente, ou da re-elaboração do espaço da garagem, ou mesmo somando-se ao
usos já estabelecidos em seus cômodos – como as salas por exemplo – ao uso para
o culto. Esta prática é criticada por alguns.
―Se a pessoa tá com ponto de pregação na casa dela não é
considerada igreja não. (...) Isso aqui não é igreja não... Isso aí é
plaquinha que eles colocaram agora. Ali é residência de ―Fulano‖, ali
é residência de ―Ciclano‖, não foi liberado para igreja na época. Ele
ta fazendo ponto de pregação na casa dele! (...) Aquelas duas ali não
foram autorizadas, nem pelo Movimento, nem pela COHAB pra ser
igreja.‖
―Daqui a pouco boto uma plaquinha aqui e faço ponto de pregação
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com nome de igreja e tal e coisa. Aí eu que to fazendo agora por
minha conta. A COHAB não sabe disso, o Movimento de Moradia
não sabe disso, não autorizou‖.
Os moradores que realizam, coordenam, ou mesmo alugam espaços em suas casas
para essas práticas questionam essa distinção, pois entendem o ―ponto‖ como um
espaço em trânsito necessário enquanto não se estabelecem oficialmente em lugar.
Para eles, o ―ponto‖ é mais um improviso, outra gambiarra.
―O ponto é um local provisório. A igreja vai ser construída na Rua
Antário Filho‖.
Em determinados momentos, percebemos que a indignação por parte dos que não
reconhecem nestes núcleos de autoridade religiosa, passa por questões que
começam pautadas no receio pela prática de charlatanismo e enganações, mas se
desenvolvem apontando preocupações quanto à migração de fiéis de suas
congregações. Existe uma disputa evidente entre os ministros, pastores, ou outros
nomes utilizados para denominar as autoridades religiosas locais, que se configuram
enquanto representações de poder e não raramente sobrepõem-se ao papel de
autoridade política local. Tanto que comumente entram em conflito com outros
poderes estabelecidos, como o do tráfico.
―Pastor que falou demais teve que ‗sair fugido‘ da ocupação.‖
A figura do pastor é tão representativa junto aos moradores que, ao referirem-se às
igrejas, não utilizam como referência sua denominação, mas sim o nome do pastor
que exerce a função de líder religioso: Igreja do Pastor ―Fulano‖, Igreja do Pastor
―Beltrano‖, Igreja do Pastor ―Ciclano‖, etc. (Figura 50). Por ―oficiais‖, alguns
moradores entendem as igrejas que tiveram autorização do Movimento para se
estabelecer, totalizando uma católica e sete evangélicas de diferentes
denominações.
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Figura 47 - Igreja Evangélica Assembléia de Deus
Figura 48 - A mais antiga Igreja Assembléia de Deus de Alice Coutinho
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Figura 49 - Ponto de Pregação utilizando a garagem da casa do próprio pastor.
Figura 50 - Igrejas apontadas por um morador. Ressalva-se que os pontos de pregação não foram todos indicados, pois este morador recusa-se a incluí-los na mesma categoria que as igrejas.
O improviso permeia também as relações estabelecidas entre a praça e seus
usuários e freqüentadores. Assim como a área reservada à escola desde o início da
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ocupação do bairro, a área da praça foi pensada e incorporada na dinâmica do
bairro, apesar de não ter sido executada até hoje. A praça figura o imaginário de
vários moradores que a descrevem como se a estivessem realmente materializando-
a, principalmente os que acompanharam o processo desde o início, como Joaquim:
―Metade é uma quadra poli-esportiva e da metade pra lá é um jardim
que vai ser em frente à igreja católica. Foi programado desde o
princípio! (...). ―É a única área de lazer que está tendo no momento‖.
Algumas ações relativas à construção coletiva da praça foram tentadas mas, na
opinião de alguns moradores, encaradas com desdém pelo grupo que exerce
alguma influência na área, principalmente entre os jovens.
―Cá pra cima só dá bagunça minha filha, tem nada que dê jeito não...
Só uma intervenção política. Veio o pessoal de uma comunidade aí,
pra arrumar as plantinhas lá na praça, fazer banquinho... quando eles
foram derrubou tudo...os próprios malandros daqui...eles não gostam
de nada bonito...‖
Enquanto público, o acesso democrático a esse lugar tem sofrido constantes
restrições, ainda que em determinados momentos agregue diferentes usos e
práticas, como as brincadeira de crianças e reuniões comunitárias.
―Bate bola, reunião, festividade, festinha né... Inclusive a última
festinha foi a reunião com o prefeito. Teve reunião também do
lançamento da obra aqui. A área de festa e lazer é sempre aqui na
área da praça mesmo.‖
O Juá que confere imponência a área, tornou-se referência tanto pela sua beleza e
por testemunhar no passado reuniões comunitárias muito disputadas, quanto por
abrigar sob sua sombra os ―rapazes‖ do bairro. De lá acompanham e controlam a
movimentação do entorno, utilizando-se da presença intimidadora de seus cães,
constituindo um território reconhecido pelos moradores e freqüentadores como o
território do tráfico.
―(...) fazer uma praça pra que os filhos da gente possa brincar na
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praça e ficar vendo tráfico e prostituição não interessa... Eu vou levar
minha filha pra ficar lá brincando no parquinho e o outro lá passando
droga... é o que acontece lá.‖
Nesse contexto, o espaço público – a rua e a praça – frequentemente festejado nos
estudos sobre a periferia como o lugar da sociabilidade, da liberdade, tem sido no
bairro vinculado principalmente ao espaço da violência, do ilícito.
―Na pracinha é cheio de drogas ali. Começou a ficar mais forte tem
pouco tempo. Os meninos que ficavam na rua se envolveram agora.
O pessoal do bairro mesmo. Vem gente dos bairros vizinhos
comprar‖
―Na rua ficam umas crianças com mães desnaturadas, que acabam
indo para o mau caminho‖
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Figura 51 - Crianças brincando na Praça de Alice Coutinho em dia de reunião com o Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Dezembro, 2008.
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Figura 52 - Reunião do Movimento Nacional de Luta pela Moradia com os moradores debaixo do Juá, na Praça em Alice Coutinho. Dezembro, 2008.
Entre as mães com que conversamos, foi unanimidade esta preocupação e a
proibição por parte delas da permanência de seus filhos nestes lugares. Soubemos
de vários episódios que contribuíram na construção desse sentimento de medo e
insegurança que ronda os moradores: o mais aterrorizador culminou com o
assassinato e degolação de um casal suspeito de ter denunciado os traficantes do
local. Algumas pessoas relataram que já tiveram suas casas ―vigiadas‖,
constantemente rondadas por pessoas na tentativa de escutar o que se fala dentro.
Simulações de arrombamento e bilhetes ameaçadores também foram utilizados
como forma de amedrontar. Como forma de medir poder, os traficantes chegaram a
expulsar um dos moradores do bairro que atuava junto com o Movimento.
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Como alternativa, nos momentos de lazer, utilizam-se os quintais ou casas de
vizinhos amigos, onde as crianças podem brincar juntas.
―O lazer das crianças é ir pra escola e voltar pra casa. No sol ainda!
Ou no frio. Quando não é sol é no frio e pisando na lama!‖
―Melhor é deixar pra se divertir quando pode. Dentro do quintal ou
quando a gente pode sair com eles pra fora né‖.
A maioria busca freqüentar espaços de lazer em outros lugares. Quando possuem
condições, optam por freqüentar lugares em Vitória, os quais foram citados a Praça
dos Namorados, o Parque Moscoso, a Praia de Camburi e o Shopping Vitória. Em
Cariacica, Campo Grande é citada como uma possibilidade de lazer, sendo que o
lugar mais próximo é a Praça de Cariacica Sede, onde em alguns dias da semana é
realizada uma feira de comida e artesanato.
―Aqui em Cariacica não tem coisa boa pra criança brincar. Não tem
divertimento. A não ser o pula-pula de tarde [na Praça de Cariacica
Sede] não tem mais nada!‖.
Esta alternativa atrai principalmente as crianças. Os adolescentes e jovens, buscam
na Sede outro tipo de divertimento, as lan houses, sendo que a freqüência com que
vão a estes estabelecimentos está diretamente relacionada com a sua situação
financeira.
―Gosto de ir na lan house. Tem três em Cariacica Sede, eu já fui em
todas. (...) É dois reais a hora. Quando eu não compro roupa gasto
tudo na lan house‖.
Como parte indissociável da cidade, Alice Coutinho compartilha de várias das
questões que perturbam os moradores e pensadores da cidade, tais como tráfico,
violência (seja do bandido, seja do automóvel), mercantilização da vida, o consumo
exarcebado, etc. Chama-nos atenção no bairro a postura dos jovens, onde essa
relação intensa com o consumo é gritante. Talvez não mais que a estabelecida entre
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os jovens de outras localidades. Salta-nos aos olhos talvez por estar inserida em um
contexto de dívidas e dificuldades em arcar com necessidades primárias. Ainda
assim, não poder participar do jogo do consumo parece ser humilhante. Celulares de
última geração são exibidos e re-negociados a todo o momento. São comumente, e
ironicamente, utilizados como moeda de troca e pagamento de empréstimos e
dívidas realizadas.
Assim como no resto da cidade, coexiste no bairro uma infinidade de minúsculos
territórios submetidos a diversas lógicas. Ainda assim, os laços de amizade criados a
partir das relações de vizinhança mostram-se mais estreitos que em territórios
produzidos de forma menos intensiva. Os moradores da ocupação carregam uma
dimensão de vida que embora não seja exclusiva deles, reflete sua capacidade de
reinvenção, enfrentamento e solidariedade que encontra rebatimento nas suas
práticas, táticas e formas de se relacionar com o mundo.
Embora tenhamos dividido nossa análise em 3 tempos, até agora, parece-nos
evidente o quão indissociáveis são. O tempo da memória atravessa o tempo da ação
a todo o momento, na fala dos moradores, na história do traçado, no chão, na praça.
3.2.3 3º Movimento: Tempo da esperança
Enquanto nos dois movimentos anteriores caminhávamos com o objetivo de
aproximarmo-nos da ocupação, neste terceiro e último movimento caminhamos em
sentido oposto. Aos poucos, vamos nos afastando com o intuito de, a uma certa
distância, delinear perspectivas futuras, indicações de continuidade, mudanças e a
re-elaboração deste escape.
Quando iniciamos esta expedição e imaginamos explorar um universo fruto de uma
ocupação, nos deixamos levar pela expectativa de encontrarmos nele uma
comunidade idealizada, como se o fato de ter sido construída a partir de uma
necessidade comum, fosse capaz de criar entre seus moradores relações mais
harmoniosas e duradouras do que aquelas existentes em outros territórios. Não
demorou muito para que nos defrontássemos com as tensões existentes na
construção deste território alternativo.
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―Um mora de lado o outro mora do outro e as pessoas não se juntam!
Você entende? Tem que ta se juntando, tem que ta se organizando
pra fazer um trabalho legal‖
A ocupação como realização não escapa de fissuras e vulnerabilidades próprias da
coletividade.
Realizam-se nela múltiplos movimentos simultâneos ampliando e dispersando as
possibilidades de sociabilidade que vão muito além da frágil idealização da militância
dos ―sem-teto‖. Constroem-se a partir de desejos não apenas coletivos, mas
sobretudo individuais, onde cada morador esforça-se para sanar a sua própria
necessidade básica de habitar. Em determinados momentos, estes fluxos de desejo
e necessidade apontam para uma mesma direção, enquanto, em outros, se
distanciam. No entanto, ambos estão vinculados ao (com)partilhamento de um lugar
comum: o bairro Alice Coutinho. Partilha significa duas coisas: a participação em um
conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. O
conceito de partilha sensível91 agrega, ao mesmo tempo, um comum partilhado e
partes exclusivas. É no ínterim dessas repartições de partes e de lugares que se
construíram as bases desse escape.
Ao abordar o conceito de comunidade, Maria da Glória Gohn (1991), em seu estudo
sobre movimentos sociais e luta pela moradia, demonstra como, nos anos 70 e 80, o
a ―comunidade‖ foi utilizado por diversos setores de forma oportunamente
diferenciada. Os movimentos populares criados a partir de ações da sociedade civil,
utilizavam-se do conteúdo político do termo para conferir sentido a uma nova cultura
política, fundada no aprendizado de uma nova cidadania, em que reivindicações em
torno da noção dos direitos ocupavam um lugar central. Os movimentos sociais
criados por estímulos dos agentes da sociedade política utilizavam-se do termo em
seu sentido funcional-positivista, como ―lócus geográfico espacial‖, criado a partir da
91 RANCIÈRE, 2000.
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rede de relações informais, negadora de uma leitura social a partir de uma
sociedade dividida em classes. E os programas oficiais do governo, utilizavam o
termo comunidade para denominar o caráter agregador das entidades criadas pelo
estímulo do poder público como comunitárias.
Em Alice Coutinho, Movimento e moradores vivenciam tensões que resultam do
confronto das relações de poderes ali estabelecidas e questionadas. Assim como
tensa também é a relação estabelecida entre moradores e traficantes. A
sociabilidade, enquanto ato de estar junto92, implica nestas relações. A sociabilidade
encontrada em Alice Coutinho não se reduz aos conflitos, ainda que sua existência
não deslegitime a vida coletiva. O conflito é constituinte de um espaço social
coletivizado, posto que é múltiplo e diverso.
A atuação conjunta do Movimento com os moradores foi responsável pela notável
consciência e atuação política dos mesmos. Isso é facilmente percebido em
qualquer conversa que se tenha no bairro. Observamos a importância dada à
atuação política e seu entendimento enquanto espaço de ações e possibilidades,
quando freqüentamos as reuniões com representantes da Prefeitura. Os moradores,
ou ao menos a parcela mais atuante deles, entendem a ocupação como parte da
cidade e lutam para sua inclusão e pelos seus direitos, reafirmando e exercitando
sua cidadania. Em geral, os moradores estão sempre bem informados sobre os
acontecimentos políticos do município e principalmente os relacionados ao bairro. A
adesão de alguns deles ao Movimento é outro destes reflexos.
―...depois de eu observar bastante o Paulo Assis, ver como é que ele
trabalhava, eu, decepcionado com várias outras ocupações que eu já
estive... Jardim Carapina, eu fui um dos fundadores de lá, Flexal II eu
sou um dos fundadores de lá... Não deu certo porque os camaradas
que eu ajudava a eles sempre só queria saber da minha ajuda, e na
hora de aparecer, quem aparecia era só eles. Aqui, por exemplo,
Paulo Assis eu passei a ajudar ele, ele quis que eu crescesse junto
92 SANTOS, 1996
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com ele. Ele deu chance para todos nós que entrou junto com ele
acompanhar os trabalhos todinhos. Aonde tinha uma reunião ele
falava ‗ó, vai ter reunião e é bom vocês está lá‘. Tanto é que o
negócio lá da UFES, ele falou ‗é bom que você esteja lá‘. Então ele
sempre procurou valorizar o trabalho da gente deixando a gente
participar de várias reuniões a ponto é que eu já fui parar lá em
Brasília a fora, fui lá pra São Paulo a fora, ganhei viagem de graça.
Com os outros que eu trabalhava, nunca que eles me deram uma
chance de nada. Sempre eu trabalhava, trabalhava, trabalhava, e na
hora de ir dizer quem fez isso aí o camarada dizia assim: ‗foi eu que
fiz‘. Eles nunca sabia falar nós. Já Paulo Assis não... ele falava nós,
nós, nós... Com aquele negócio dele ficar falando sempre nós, aí eu
achei por bem de ajudar. Falei ‗eu vou ajudar vocês um dia, se não
der certo a gente para‘. Até hoje não teve jeito de parar! Tentei sair
fora, mas não tem jeito!‖
Da mesma forma que o apoio dos moradores ao Movimento pôde ser percebido, por
exemplo, na vitória do candidato a vereador Paulo Assis, um dos coordenadores do
MNLM de Cariacica, nas eleições realizadas em 2008. Sua vitória foi atribuída ao
trabalho que desenvolve junto aos moradores de Alice Coutinho e também outras
ocupações.
Quando levada para outras instâncias, a tensão entre essa relação já vivenciada no
interior do bairro, extrapola seus limites e ganha visibilidade com contornos
duvidosos. Sinais dessa situação já apareciam quando um dos representantes do
Movimento assumiu um cargo comissionado ainda na primeira gestão do Prefeito
Helder Salomão, do PT (2004-2008). Queixas do tipo ―agora que estão ‗na Prefeitura‘
esqueceram da gente‖ eram comuns. Assim como seu contrário, ―agora que estamos
na Prefeitura não param de pedir que consiga material de construção e emprego
para parentes‖. As discordâncias entre representantes do Movimento e moradores
quanto aos critérios de elegibilidade dos candidatos a lotes na ocupação também
sempre existiram. Assim como as insinuações de práticas politiqueiras realizadas
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pelo Movimento, favorecendo determinadas pessoas, partidos ou aliados políticos.
Em março de 2009, Paulo Assis teve sua vitória questionada junto ao Ministério
Público sob suspeita de barganhar votos em troca de lotes em Alice Coutinho e
prometer regularização fundiária. Pelos corredores da prefeitura, corre o boato que
tal denúncia foi feita por um suplente que assumiria o posto caso o vereador fose
deposto. Até o momento as investigações não foram concluídas.
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Figura 53 - Reportagem do Jornal A tribuna (12/03/2009)
Fato é que Movimento e moradores destacam-se por ocupar os lugares que lhes são
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seus por direito, principalmente nas instâncias participativas junto ao poder público
municipal. Durante o processo de elaboração do Plano Diretor Municipal de
Cariacica, em 2006, por exemplo, a participação direta do Movimento na figura de
seus representantes foi determinante na definição e delimitação das áreas precárias
no município e inclusão de bairros oriundos de ocupações informais, como Alice
Coutinho, nas ZEIS.
Já em Alice Coutinho, o Movimento ensaia sua retirada do ―comando‖ da ocupação
na expectativa de que as pendências em relação à regularização fundiária se
resolvam. Este é o limite de sua presença, estabelecido pelo próprio Movimento.
Cabe aos moradores construir formas de não deixar escapar a consciência política
cultivada durante todos esses anos. Nesta fase de transição, existe uma
movimentação em torno da constituição de chapas para que se concretize um
processo eleitoral que democraticamente escolha o grupo que irá representá-los
oficialmente mediante a criação de uma associação de bairro.
―O bairro já ta pronto, agora é nós que tempos que investir, trabalhar,
pra que nós viermos a ver o progresso aqui dentro! E esse trabalho,
vai depender de nós, comunidade. De nós, comunidade...‖
―Pra nós, crescer o bairro Alice Coutinho, a gente precisa estar unido
e correndo atrás das autoridades. Achamos o poder, né?!‖.
Através do somatório da diversidade de experiências de sobrevivência, visualizamos
a possibilidade de construção de espaços de esperança que ultrapassem a idéia de
alcançar ―benefícios‖ em infra-estrutura e serviços. O projeto em desenvolvimento da
horta comunitária aponta nessa direção, alimentando um entendimento de cidade
como lugar da reprodução social da vida, restando ainda esperança em uma
atualização da utopia de cidade. Às vezes bastam movimentos, de velocidade ou de
lentidão, para que espaços lisos sejam recriados.
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Figura 54 - Espaço da horta comunitária sendo preparado. Dezembro, 2008.
Mesmo diante de toda a vulnerabilidade a que está exposta a construção da
sociabilidade entre os moradores, o sentimento de pertencimento a uma coletividade
existe. E é importante que exista e que se fortaleça. Esse auto-reconhecimento
enquanto morador ―da comunidade‖ tem a força necessária para enfrentarem ilesos
os olhares preconceituosos que a cidade lhes direciona. Ser ―da comunidade‖
diferencia-os, ainda que, principalmente para os mais jovens, essa associação não
seja desejável. São outros os modelos e estereótipos que gostariam que lhes
fossem associados: o da ―Garota Fantástica‖93, o de participante do Big Brother
Brasil, o de modelo, de atriz, etc. O que eles querem, é outra forma visibilidade.
93 Quadro do Programa Fantástico da Rede Globo no qual acontece um concurso de beleza e a
vencedora ganha o título de Garota Fantástica e firma contrato com uma grande agência de modelos.
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As conquistas ―da comunidade‖, no entanto, têm despertado a admiração dos
moradores dos bairros vizinhos, que em outros momentos, hostilizavam-nos. A
admiração é fruto não somente por aquilo que os moradores já conquistaram para o
bairro, mas também pelo entendimento de que, se fossem somadas as forças,
poderiam conquistar muito mais. As conquistas dos moradores de Alice Coutinho
beneficiam diretamente os moradores dos bairros vizinhos, mais antigos:
―Eles tem mais de 25 anos que não consegue nada pra lá! Depois
que nós viemos praqui, conseguimos melhorias pra lá‖.
―Essa obra [do orçamento participativo] que nós ganhamos pra 2009
foi para o bairro Andorinhas. O Andorinhas ta cheio de lama, ta
ruim... A rua do valão, que sai lá em Cariacica vai ser feita. Nós
ganhamos. Andorinhas, Nova República, Cajueiro... Tinham 20
pessoas do bairro deles só. Da gente tinha muito mais né, muita
gente daqui. No final juntamos com o Ferreira Borges, com
Andorinhas... Juntamos com vários bairros, fizemos uma reunião e
entramos com eles né, pra ajudar eles que eles estavam precisando.
Aqui a gente tem força pra conseguir as nossas coisas. Lá eles não
tem força. Aí a gente fez um acordo: ‗vamos ajudar o pessoal de
Andorinhas? Vamos...Vamos apoiar a obra deles? Vamos‖
Talvez nesse reconhecimento possa estar a chave para que se perpetue o potencial
reivindicador e articulador imbuído no ideal de comunidade. Prova deste
reconhecimento foi a proposta elaborada por um morador do Bairro Antonio Ferreira
Borges que, em uma reunião organizada pela Prefeitura para discussão do Plano de
Ordenamento Territorial – POT, no qual seriam delimitados e definidos os bairros e
seus nomes, sugeriu que prevalecesse o nome Alice Coutinho para denominar o
bairro ao qual ele seria agregado, um dos bairros vizinhos. Essa operação não
precisou ser realizada, e o nome do bairro Alice Coutinho passou a figurar
oficialmente no mapa municipal desde o final de 2009.
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ARTICULAÇÕES
Tentamos através da leitura destes encontros, contribuir para a ampliação do
universo de debates sobre as possibilidades de produção da cidade contemporânea.
Procuramos falar das movimentações marginais e dos espaços por onde transitam
estes praticantes ordinários e todos os demais habitantes da cidade. Os conteúdos
que encontramos neste caminho tanto vagam sem formas muito definidas, quanto
cristalizam-se em formas fixas. Expusemos alguns conflitos, diálogos e
possibilidades de interações e sociabilidade que vieram a revelar e atualizar
questões banalizadas pelo senso comum que em geral tende para a redução da
significação da experiência.
Tentamos elaborar registros que falam da vida cotidiana, dos itinerários percorridos,
dos afetos, dos eventos urbanos, do que é passível de apreensão, ainda que fluido,
do simultâneo, do híbrido, do que está à margem, das opacidades. Enquanto
realizamos esta possibilidade de leitura do território e seu conteúdo, construímos
uma, dentre tantas, cartografias possíveis da cidade.
Encontramos também uma enorme quantidade de outras formas e outros conteúdos
que poderiam fazer parte desta cartografia. Concluímos que são diversas as
motivações que impulsionam o surgimento de um escape: a necessidade, o desejo
de rompimento e enfrentamento a determinadas racionalidades hegemônicas, o
oportunismo, o negócio. Essa distinção é relevante e faz-se necessária distingui-la
em nossa reflexão sobre o caminho percorrido.
Construindo novas ou atualizando nem tão novas possibilidades de existência no
urbano, os escapes são construídos pautados em racionalidades ou novas
imposições e limites disciplinares sobrecodificados em substituição aos códigos já
desgastados? O que temos de mais claro nesta discussão é a impossibilidade, ou
inviabilidade, de uma classificação rígida no que diz respeito ao seu papel de
articulador de novas formas de produção da cidade. Os escapes constituem um
discurso aberto sobre a produção da cidade, onde não cabem restrições.
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Enquanto método, emaranhamos, desemaranhamos e tecemos algumas tessituras
possíveis dos escapes potenciais e o micro-universo no qual se encontram. Temos
por certo que outras tantas tessituras poderiam ser desenvolvidas, ou mesmo
refeitas. Ainda existem dúvidas se em todas as abordagens conseguimos nos livrar
das rígidas análises classificatórias tão presente nos estudos científicos acadêmicos.
Dúvida também se em determinados momentos não acabamos por nos aproximar
mais das representações superficiais da realidade do que das cartografias
subjetivas. Ainda assim, enquanto prática, enquanto experimento metodológico,
entendemos que o aprofundamento e refinamento da proposta de investigação virá a
partir do momento em que novas cartografias sejam praticadas e esta revisada.
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FACULDADE DE ARQUITETURA
Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
178
pela Profª. Drª. Regina Helena Alves da Silva http://ccnm.org.br/
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(http://www.ccnm.org.br/Cartografias_Urbanas_sensoriais/Apresentacao.html,
promovido pelo PPG-AU:UFBA em junho de 2009.
http://noolhodarua.wordpress.com/
http://bocadolixo.wordpress.com/category/hip-hop/
Vídeos na internet:
Le Parkour Cariacica ES 01: http://www.youtube.com/watch?v=HaD_3_wpBJI
Le Parkour Cariacica ES 02: http://www.youtube.com/watch?v=qH4b_Bi8An8
Freestyle em Padre Gabriel [part1]: http://www.youtube.com/watch?v=KcRDdqxkjCw
Vídeo do grupo de rap Suspeitos na Mira:
http://www.youtube.com/watch?v=BSiG1ejSV1E&feature=related
Vídeo do grupo de rap MDA- Mulheres de Atitude:
http://www.youtube.com/watch?v=l-78EOqmymM
http://www.youtube.com/watch?v=Te-aq6Rvsyw
http://www.youtube.com/watch?v=psHevPynHoU&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=DilpwOIz4Jo
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179 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE ARQUITETURA
Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
179
Renegrado Jorge: http://www.youtube.com/watch?v=1MQAXEiDXEg
Fotologs, my spaces, perfis e páginas de relacionamento:
Rap Capixaba:http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=14589857
Projeto Rua Free Style: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=47227128
Fotolog do grupo de rap In-Versão Brasileira: http://www.fotolog.com/inversao
My Space do grupo de rap In-Versão Brasileira:
http://www.myspace.com/inversaobrasileira
My Space do grupo de hap Família G.A.M: http://www.myspace.com/familiagam
Orkut do grupo de rap Família G.A.M:
http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=7241869022001306049
Palco MP3 do grupo de rap Família G.A.M:
http://palcomp3.cifraclub.terra.com.br/familiagam/
Flog do grupo de rap Família G.A.M: http://www.flogao.com.br/familiagam
My Space do MC Adikto: http://www.myspace.com/mcadikto
Perfil no orkut do MC Adikto : http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=6803555
My Space do Suspeitos na Mira: http://www.myspace.com/suspeitosnamira
Página do Suspeitos na Mira no site da Trama:
www.tramavirtual.com.br/suspeitosnamira
My Space do grupo de rap MDA- Mulheres de Atitude:
http://www.myspace.com/mulheresdeatitude
Perfil do orkut do grupo de rap MDA- Mulheres de Atitude:
180 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE ARQUITETURA
Programa Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
180
http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=6762864136969998354