Entrelugares: notas críticas sobre o pós-mangue
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ENTRELUGARESNOTAS CRÍTICAS SOBRE O PÓS-MANGUE
RICARDO MAIA JR.
2
Entrelugares:notas críticas sobre o pós-mangue
1ª Edição
Ricardo Maia Jr.
Recife - PE2012
3
EdiçãoJosé Juvino da Silva Júnior
OrganizaçãoCarlos Gomes
RevisãoFernanda Maia e Carlos Gomes
Diagramação e CapaFernanda Maia
Foto de CapaHidden
ColaboraçãoRodrigo Édipo
RealizaçãoOutros Críticos
MAIA JR., RicardoEntrelugares: notas críticas sobre o pós-mangue – Recife: José Juvino da Silva Júnior, 2012. 64 p.
E-bookISBN 978-85-914545-2-5
1. Música - crítica. 2. Pós-mangue. I. Título.
Disponível para download gratuito no blogue Outros Críticos.
Contatos:Autor: [email protected]
Outros Críticos: [email protected]
| 2012 |
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SUMÁRIO
Prefácio - 5
Pós-mangue: to be or not to be?! - 10
Um passeio pela sonoridade pós-mangue - 17
Para além da sonoridade pós-mangue - 28
Do Mangue pra casa - 36
A falácia pós-mangue - 46
É possível lutar pelo pós-mangue? - 54
5
SOBRE CÂNONES INTOCÁVEIS, POLÍTICA, TECNOLOGIA E A ESTÉTICA DA MÚSICA PERNAMBUCANA
PREFÁCIO
“O intelectual existe para criar o desconforto, é o seu papel [...]”
Milton Santos
A similaridade mais interessante nas funções de jornalista e pesquisador é o caráter, essencialmente, contestatório das duas profissões. E para tal, um bom profissional das duas áreas que, por vezes, se misturam em seus propósitos mais nobres, tem no artifício da pergunta uma utilidade bélica. Utilizando-a como arma de investigação que desbrava denúncias e postulações, sugerindo novas rotas de fuga para a sociedade, promovendo reflexões e debates que podem ou não desestabilizar o status quo vigente. Melhor, claro, quando desestabiliza.
Foi transitando na interseção entre as duas profissões e, acredito, com esse propósito em mente, que Ricardo Maia Jr. encontrou um lugar para expor o que pensa. Conheci o autor no começo da década de 2000, através de uma grande amiga minha que estudou jornalismo com ele na UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco). A memória mais remota dessa época foi vê-lo em uma das etílicas ruas do Recife Antigo, sentado na calçada em uma roda de amigos, discutindo algum assunto que, para mim, era muito cabeçudo para o meu momento festivo da ocasião. Ricardo centralizava a conversa,
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e provavelmente – tenho quase certeza – estava reclamando de algo que discordava. Provoco até minha memória e me arrisco a dizer que Marx & Engels estavam presentes em espírito no inflamado discurso de meio fio. Posso estar enganado.
Anos depois, tomando cervejas com Ricardo no célebre Bar do Bigode, situado nas imediações da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), passo a ter uma relação mais estreita com ele a partir do interesse do mesmo em pesquisar academicamente o TV Primavera, coletivo anarquista e niilista de videoarte, do qual fiz parte no final da década passada. Lembro que, na época, fiquei surpreso: “Aonde esse cara quer chegar com isso?”. Conhecendo-o melhor, terminei por entender. Na verdade, Cacá (como também é conhecido na cidade) é um cara de personalidade provocadora, incomodado com o establishment das instituições e – como poucos na careta classe média recifense – guarda dentro de si um fascínio pela arte que é marginal.
Ricardo se identifica com esses agentes de contestação porque também é um deles. Seja evidenciando artistas outsiders na – cada vez mais asséptica – academia, ou como mentor da banda Ex-exus, um dos grupos mais controversos surgidos na música pernambucana, desde o Textículos de Mary. E foi imbuído até o último fiapo de cabelo desta áurea abusada, que o jornalista, pesquisador & músico, pôs o dedo em uma ferida há muito exposta e escreveu as linhas que compõem o Entrelugares: notas críticas sobre o pós-mangue1.
Admirador confesso do Manguebit, como todo pernambucano que não vê a música somente como trilha sonora para azaração e cachaça, Ricardo não está interessado em questionar o valor 1 Os textos que compõem o livro foram publicados, originalmente, em colunas mensais no blogue Outros Críticos, durante o primeiro semestre de 2012.
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da movimentação que aconteceu em Recife na década de 1990. Muito pelo contrário, reconhece a importância do mesmo, porém, critica veementemente a institucionalização do movimento como o principal referencial da música contemporânea do Estado. Como também questiona a supervalorização de outros cânones da nossa cultura, como o frevo e o maracatu, por exemplo.
Para Ricardo, esta visão moderna e estática demais e, consequentemente, pouco fluida, pode estar sufocando uma nova gama de bons artistas que, apesar de estarem produzindo música de forma autônoma dentro dos próprios quartos, não encontram investimentos suficientes para um merecido escoamento da obra, a não ser a gratuita, porém desterritorializada internet. A partir disso, durante os seis ensaios aqui compilados, o autor nos provoca constantemente, metralhando questões em busca de respostas que não são respondidas tão facilmente.
A música pernambucana perdeu mesmo a euforia da renovação? Os novos artistas são interditados pela sombra do Manguebit? Há mesmo uma concentração de investimentos públicos e privados nos medalhões? Nos falta um novo herói? Uma das soluções seria uma imprensa alternativa mais forte? A repaginação vem somente da transgressão? O pós-mangue é vítima da desmontada pós-modernidade? O pós-mangue é uma falácia? Ele é uma ressaca pós-efervescência ou uma evolução estética? Afinal, o que porra é o pós-mangue?
Com esta coletânea de ensaios legitimada em livro, podemos dizer que Ricardo Maia Jr. é a primeira pessoa, pelo menos publicamente, a chamar atenção para este grande ponto de interrogação que, talvez por ser contemporâneo até demais, seja necessário um
8
desenvolvimento de pesquisa mais apurado, para que – com o passar do tempo – o problema possa ser visualizado por todos de uma forma menos turva. Assim, nos seis textos que compõem esta obra, delineia-se uma linha de raciocínio que transparece certa inquietude e angústia de quem também é personagem de todo este processo e não está nada satisfeito com o rumo que as coisas estão tomando.
Por outro lado, apesar do envolvimento direto com a causa, existe um cuidado a todo momento para não soar determinista e leviano, mesmo deixando bem claro o ponto de vista de uma construção lógica que é própria. As comparações entre estéticas, políticas e tecnologias de épocas diferentes estão sempre a serviço do pensamento do autor, que busca apoio nas experiências pessoais e referências teóricas para elaborar este arriscado exercício crítico do seu tempo. O debate está aberto.
Rodrigo Édipo
9
ENTRELUGARES:NoTAS cRiTicAS SobRE o poS-mANGUE
10
Pos-mangue: to be or not to be?!
11
Estabelecidos x outsiders? Mangueboys x indies?
Fora do eixo x Pernambuco? O que essas rixas
podem nos revelar é bastante limitador. O
cenário musical pernambucano merece um tratamento
um tanto quanto relativista, não no sentido niilista,
mas na noção metodológica da análise. Apesar dessas
limitações, esses três duelos também explicam a
situação atual da música em Pernambuco, de certa
forma, como sintomas de um mal-estar.
O embate entre estabelecidos e outsiders não é
nenhuma novidade na cena musical pernambucana,
mas é dissimulado, pouco percebido e debatido. E
por que, em meio a essas interrogações, jogar com
o conceito de pós-mangue? Porque ele compreende
uma força simbólica significativa entranhada ainda
12
no Manguebeat, ou Manguebit, considerado último
marco cultural representativo e aglutinador da arte
pernambucana, mais especificamente da música. Assim
como o conceito de pós-moderno, o pós-mangue
carrega muitas dúvidas, e isso se reflete em vários
sentidos no cenário musical pernambucano. Embora
não se possa descarregar tudo no Mangue, pois outras
vertentes que se tornaram instituições, como por
exemplo: o frevo, o forró e o maracatu, também dizem
bastante dessa posição outsider em que se encontra a
música pernambucana contemporânea, até mesmo o
indie conseguiu sua parcela estabelecida na cultura do
Estado.
O pós-mangue nos serve para entender melhor essa
cena alternativa, a partir de um conceito mais plausível
com o contexto atual. Através disso, uma série de
problemáticas surgem, como: só o mito do Mangue –
Chico Science – que conseguiu tencionar essa barreira
com mais êxito, entre o alternativo e o popular? O que
veio com o pós-mangue? Quais são suas referências,
se for possível dizer isso? Mombojó foi a referência
13
direta a esse conceito, e talvez por esse isolamento não
tenha sido possível o desenvolvimento de uma estética
coletiva e de uma decorrente política cultural. Então,
toda a culpa seria do Mombojó? Não, pois os efeitos do
Mangue na geração seguinte não podem se restringir a
um único exemplo de carreira, por mais que tenha sido
uma das bem-sucedidas dessa turma do pós-mangue,
que também pode ser compreendida nos projetos solos
dos remanescentes do Manguebeat: China, Siba, Otto,
Karina Buhr e até de Lirinha (José Paes de Lira), do
Cordel do Fogo Encantado.
O que se percebe é a perda de uma certa euforia de
renovação, carregada pelo Mangue, em seus primórdios,
e também no auge do movimento, pois essa repaginação,
enquanto proposta, ainda é proporcionada através dos
mesmo agentes que, de certa forma, ganharam status
institucionais na cultura pernambucana. Por conta
disso, houve uma ofuscação, ou mesmo ostracismo, dos
artistas que vieram depois e que, de certa forma, atuam,
realmente, na cidade, e são eles que podem representar
essa retomada expressiva da música pernambucana.
14
Não quer dizer que esses músicos que já carregam
um nome e um público significativo – apesar de
morarem no Sudeste há bastante tempo – perderam a
criatividade ou o poder simbólico com suas obras, mas
sim que houve uma concentração dessa força criativa.
A principal consequência disso é uma divisão mais
evidente, e paradoxalmente mais dissimulada, entre os
estabelecidos e os outsiders, pois a repaginação ficou
interditada, apesar dos esforços multiculturais das
instituições públicas a partir do projeto conceitual do
Manguebeat e, também, da numerosa produção da
música pernambucana atual.
O que fazer perante esse panorama? Quem será o novo
guia ou o herói da música pernambucana pós-mangue?
Essas perguntas não podem nem devem ser respondidas
em um artigo ou manifesto, ou em alguma previsão ou
aposta, ou em uma fórmula qualquer de produção ou
de emancipação, pois as soluções podem ser relativas e
infindáveis. Com esse diagnóstico sintético, é relevante
destacar a carência de como escoar a produção musical
do Estado, que parece emperrar na distribuição de
15
todo esse material. Daí vem os outsiders, de toda essa
produção que não se organiza e que está fora da cultura
oficial e dos circuitos de divulgação.
Seria por conta do isolamento dos músicos, que
acreditam somente no seu próprio trabalho gravado e
divulgado na internet? Ou a causa seria a insuficiência
de produtores para trabalhar com esse material? Ou
seriam os meios de comunicação, que contribuem
mais decididamente para essa estagnação? Ou seria o
poder público que investe sempre nos mesmos artistas,
que acabam se tornando, praticamente, funcionários
públicos? Todas essas perguntas justificam a situação,
mas não há só um problema ou uma solução.
Com este artigo, é possível introduzir o debate sobre
a atual conjuntura da música pernambucana, mas só
os agentes desse cenário é que vão poder, de fato, dar
essas respostas, e na prática. O que fica no ar é se ainda
pode ser relevante a luta pelo novo, ou pelo ovo, ou
mesmo pelo outro… ou pelo ouro?! A música, em seu
potencial estético, não pode abdicar da política, nem
o embate pode se limitar à destruição de uma cena
16
para surgir outra nova. A luta seria pela retomada da
força de repaginação da contemporaneidade que se faz
mais do que necessária para a cultura pernambucana
escutar, de fato, novas vozes e experimentar novos
sentidos, novos agentes na música!
17
Um passeio pela sonoridade pos-mangue
18
Essa noção da luta por Serge Daney – trecho
extraído do livro A Rampa, em que o crítico
faz uma análise contundente sobre o Cahiers
du Cinéma (1970-1982) –, vem a calhar muito bem
com o que venho escrevendo a respeito do pós-mangue
(contexto que se arrasta há mais de uma década).
O pós-mangue não é uma fragmentação só de agora,
da atualidade, do presente, ele vem se prolongando e se
acumulando no cenário musical pernambucano, desde
o começo dos anos 2000. O que torna a conceituação
“Uma luta se anuncia, e ela avança na maior desordem de enunciados erráticos, de paródias, gritos, palavras de ordem, crenças desordenadas, tudo o que constitui uma enunciação coletiva… Porque se uma luta fala, ela não diz jamais eu”.
Serge Daney
19
cada vez mais complexa. Como colocar num mesmo
saco conceitual, só pra citar alguns exemplos bem
distintos: Originais do Sample, Re:combo, Mombojó,
Songo, Mellotrons, Volver, Johnny Hooker, Fiddy, D
Mingus, AMP, Desalma, Team.Radio, Ex-exus, Matheus
Mota, Profiterolis, Ahlev de Bossa, A Comuna, Tagore,
Feiticeiro Julião, Bande Dessinée, Novanguarda,
German Ra, Canivetes, Os Insights, A rua, Glauco & o
Trem, Marditu Soundz, Nuda, Julia Says e Sem Perneira
Pra Suco Sujo? Qualquer tentativa de enquadramento
será frágil perante esse corpus de análise, que não se
restringe a esses citados. Mas, mesmo assim, é por
esse terreno escorregadio e movediço que a crítica
deve instigar a sua abordagem para colaborar com a
compreensão deste momento da música alternativa do
estado: o que veio depois do Manguebeat.
É através da sonoridade que pretendo discorrer a
respeito, neste texto. Como dar conta de um panorama
tão plural? É possível sintetizar? Quando você pensa
sobre o Manguebeat, é possível visualizar algumas
linhas estilísticas, apesar de saber que houve muitas
20
extrapolações. Quando você se debruça sobre o pós-
mangue na tentativa de perceber tendências de estilo, é
evidente que a fragmentação está gradativamente mais
aguda. Mas não é nada que impeça esta crítica e também
outras reflexões que surjam, de expandir ainda mais a
explanação deste longo momento multifacetado.
É possível verificar que, nesse contexto pós-mangue,
uma forte movimentação indie tomou força, em
Recife, além dos remanescentes e dos repaginadores do
Mangue – que, talvez, tenham tido na tendência Olinda
Original Style, lançada pela Eddie, a linha estética mais
significativa –, e também do legado rocker e psicodélico,
deixado por Lula Côrtes em Jaboatão dos Guararapes
e na Zona Oeste do Recife. Há ainda os que estiveram
transitando por mais de uma tendência dessas ou, de
certa forma, procurando estar por fora disso tudo,
como os metaleiros, a cena punk e HC. A grosso modo,
esse seria o panorama dos quatro principais segmentos
culturais da Região Metropolitana do Recife, do início
dos anos 2000 até hoje.
A tendência indie, em Recife, tem sido a mais
21
representativa no cenário alternativo pernambucano,
como contraponto ao Manguebeat. Principalmente, por
conta da mídia e dos festivais gerados pelo seu principal
agente: o Coquetel Molotov. Não dá para esquecer que
o site Reciferock e o concurso Microfonia, financiado
pela Aeso/Barros Melo, também foram importantes
atores para a promoção da estética indie. Esse perfil
sempre foi marcado pela predominância das classes
média e alta recifense, enquanto agentes culturais dessa
movimentação. Grupos foram formados querendo
mostrar a autossuficiência e a capacidade que cada um
teria em gerir sua carreira, sem precisar se misturar.
Na verdade, essa vertente surgiu concomitante com
o Manguebeat, com bandas como Supersonics, River
Raid, Amps & Lina e também com a paulistana Stela
Campos – que morou na capital pernambucana,
durante quase toda a década 1990, na efervescência do
movimento Mangue –, mas essa tendência só tomou
força e corpo, realmente, no início do século XXI.
A sonoridade indie é tão ampla quanto o conceito pós-
mangue. Volver, Mellotrons, Rádio de Outono, Team.
22
Radio, The Dead Superstars, Os Retrôvisores, Sweet
Fanny Adams e Lulina são algumas referências de
artistas do estado. Apesar da disparidade de propostas,
onde eles se tocam sonoramente falando? A principal
linha norteadora seria o desapego com qualquer
enraizamento que seja da cultura local. Num tempo
em que a novidade virou uma falácia, as propostas de
mistura lançadas pelo Manguebeat foram confrontadas
por uma sonoridade sem cacoetes regionais. O rock
alternativo americano e britânico foram as principais
fontes de inspiração desta turma, principalmente
no que diz respeito ao som. A timbragem é diversa,
pois passeia pelo pós-punk, dos anos 1970, pelo new
wave, dos anos 1980, pelo shoegaze, dos anos 1990,
até a repaginação rocker, proposta pelo The Strokes.
Mas, o que há, de fato, em meio a todo esse panorama
amplo, é o desprendimento com um compromisso de
resgatar ou mesmo de repaginar as referências culturais
tradicionais ou populares do estado. Não que essa
internacionalização resuma a atuação sonora destes
grupos, pois influências nacionais como Roberto
Carlos, Mutantes e Clube da Esquina também refletem
23
algumas das nuances destas bandas. O fato é que essa
referência ao rock alternativo internacional deu a
tônica mais forte na sonoridade indie do estado, aliada
ao desligamento de voltar-se aos sons regionais.
Por outro lado, o legado do Manguebeat foi passado a
grupos que imprimiram, ao seu modo, a ressignificação
desses conceitos. Mombojó, Re:combo, Originais
do Sample, Orquestra Contemporânea de Olinda,
Academia da Berlinda, Bonsucesso Samba Clube,
Songo e Zé Cafofinho e Suas Correntes são alguns
dos projetos que, talvez, possam carregar com mais
propriedade o real sentido do termo pós-mangue,
pois, neles, é mais notável a repaginação da tendência
conceitual proposta pelos mangueboys. A mistura
entre os regionalismos e a música pop global, através
dos preceitos lançados por Chico Science & Cia, deram
e continuam a dar muito pano pra manga na música
alternativa pernambucana. A abertura é o grande
trunfo deixado pelo Mangue, pois é possível retomar
o fôlego a partir de sonoridades mais contemporâneas
– da música eletrônica (DJ Shadow, Daft Punk) ou
24
da música alternativa mundial (Stereolab, Beck) –,
ou mesmo através de novas tensões com a música
caribenha, com a bossa nova, com o frevo, com o jazz,
com o samba-rock, com o hip-hop etc. Enfim, há uma
linha estilística que aproxima, de certa forma, esses
artistas tão díspares, que é a repaginação do legado
deixado pelo Manguebeat.
Os descendentes da fase rocker e psicodélica de Lula
Côrtes se espalharam geograficamente, de modo
geral, por Jaboatão dos Guararapes – Johnny Hooker,
Monomotores – e pela zona oeste do Recife – Canivetes,
Os Insights, Jean Nicholas. Além da referência ao
músico pernambucano, o The Stooges, talvez, seja uma
aproximação analítica interessante para confrontar
com as posturas dessas bandas. Pois, é no encontro do
rock com o punk, no chamado pré ou proto-punk, que
as sonoridades destes grupos se encontram. É óbvio
que existem muitos mais apontamentos referenciais –
como: Sérgio Sampaio, Raul Seixas, Bob Dylan, David
Bowie etc. –, mas na busca por uma síntese, a tensão
entre a fase rocker de Lula Côrtes e o The Stooges é
25
bastante representativa para aqueles que comungaram
mais diretamente com essa terceira tendência. Não há
uma necessidade em reprocessar a música tradicional
do estado com outras vertentes da música pop ou
alternativa internacional, mas, ao mesmo tempo, não
é expresso diretamente o desapego com os preceitos
do Manguebeat, e isso também não significa que eles
estejam num meio termo, entre essas duas tendências.
É possível perceber, de fato, posturas à margem da
música alternativa do estado – no sentido de terem
pontos semelhantes com os dois primeiros grupos
estéticos do pós-mangue, mas eles não se posicionam
nem contra nem a favor, mesmo tendo um conjunto
conceitual comum que tocam as bandas da terceira
vertente, de uma forma peculiar. É isso que as lançam
na marginalidade, tocando nesses dois eixos pelas
bordas e propondo, dessa maneira, outras sonoridades!
E os artistas citados como referências sonoras
reforçam a tomada de postura estética destes músicos
pernambucanos, que optaram – pegando o gancho do
nome do principal festival desta terceira categoria do
pós-mangue –, pelo Desbunde Elétrico.
26
Há ainda uma quarta movimentação nesse panorama
fragmentado, que seriam os que estão fora e ao
mesmo tempo circulando, muitas vezes, em mais de
um segmento apresentado. Nuda, Ex-exus, D Mingus,
Matheus Mota, A rua, Glauco & o Trem, Julia Says,
Joseph Tourton, Feiticeiro Julião e Bande Dessinée
não são diretamente associados a nenhuma das três
tendências. Como o caráter é mais híbrido e, às vezes,
obscuro, esses projetos radicalizam ainda mais, de
certa forma, com a fragmentação da cena musical
pernambucana. O que dificulta a tarefa de análise
em sintetizar algumas tendências deste grupo, em
especial, pois ele consegue ser mais plural do que os três
segmentos anteriores. Do tropicalismo ao vanguardismo
paulista, do psicodelismo à música francesa, da música
eletrônica ao krautrock, do art-rock ao afrobeat, e por
aí vão as referências, sem amarrar qualquer conceito.
É na liquidez que esse grupo tem sentido. Não existem
blocos conceituais comuns, cada grupo, praticamente,
ou se envolve em uma movimentação própria, singular
e autônoma ou se mistura por dentro e por fora dessas
outras categorias, enfim, nas bordas de forma peculiar.
27
E extrapolando ainda mais essas tendências, ainda
existem os metaleiros (Desalma), os stone rockers
(AMP), os mpbistas (Paes) e os experimentais (Monstro
Amor).
O que veio depois do Manguebeat, a partir dos
anos 2000, foi uma fragmentação devastadora, e as
sonoridades das bandas de música alternativa do
estado – apesar de grosseiramente enquadradas, por
mim, em quatro categorias – refletem também essa
pluralidade estética, de forma decisiva. Essa análise
não quer incitar rixas ou facções, mas sim estimular o
debate de um contexto, que já tem mais de 10 anos, e
que vem sendo pouco agregado e discutido.
28
Para alem da sonoridade pos-mangue
29
Tirando um pouco a massa sonora da música,
dando ênfase nas letras das canções, o que
elas podem nos dizer? Quando selecionamos
alguns artistas pernambucanos no intuito de expandir
um pouco mais a análise sobre a atual cena alternativa
da música pernambucana, principalmente dos
outsiders do pós-mangue, o que isso pode nos revelar?
Será que podemos perceber alguma ligação, ou mesmo
tendência, entre esses músicos? Vou procurar responder
sobre essas perguntas no decorrer do texto.
Uma primeira questão que vem, ao observar as letras
de artistas como: Glauco & O trem, Rua, Feiticeiro
Julião, Nuda, Matheus Motta, D Mingus, Johnny
Hooker, Ex-exus, Tagore, entre outros, é sobre a perda
da necessidade de um vínculo direto com a cidade, não
30
que se tenha perdido a criticidade, mas não há uma
relação espacial tão explícita nas letras como houve
com as bandas provenientes do Manguebeat, que
tinham um forte conceito aglutinador. Isso também
não quer dizer que esses músicos não sejam urbanos,
só que as letras das canções remetem a outras tentativas
de explorar a poeticidade, além do vínculo citadino.
Enfim, o contexto é outro, e esses artistas, na tentativa
de repaginar a música pernambucana, usam a força
das letras das canções com outros engajamentos.
Os mangueboys tiveram o espaço urbano como
principal elemento do conceito que uniu os artistas em
torno da manifestação cultural do Manguebeat, nos
anos 1990. Os músicos do pós-mangue fragmentaram
essa união em forma de nichos de potência. Nas letras, é
possível constatar essa tendência. Por isso, há um certo
isolamento que impede tanto o diagnóstico quanto a
força representativa de uma cena alternativa emergente.
Para visualizar melhor toda essa conceitualização,
vamos analisar alguns trechos de canções dos músicos
pernambucanos citados acima, com a intenção de
31
mostrar tanto a fragmentação da cena alternativa
pós-mangue quanto os valores representativos das
composições.
Vamos começar com artistas que contrariam, de certa
forma, o que coloquei sobre a falta de ligação com a
cidade. Johnny Hooker, com a canção “Candeias Rock
City”, tenta criar um elo com um bairro emblemático
do litoral de Jaboatão dos Guararapes – local onde Lula
Côrtes, ícone rocker do estado, se estabeleceu e virou
referência do lugar. Johnny tenta personificar o bairro
de Candeias a partir de uma postura rebelde contra
um imaginário rival – que pode ser interpretado de
diversos modos, como a luta do novo contra o velho, ou
do outsider contra o estabelecido – como é proclamado
no refrão pastiche, de uma maneira vingativa: “Estamos
indo atrás de você/ Candeias rock city”. Na canção da
Nuda, “Maruimstad”, a relação com a cidade também
é evidente. Mas, diferentemente da música de Johnny,
há uma crítica mais contundente sobre a realidade
urbana, como é possível perceber neste trecho da letra:
“Não se faz cartão postal no córrego do maruim/ Lá
32
corre o boato que construíram um tribunal/ lado a
lado do coque/ e o mote do roque é:/ Viaduto separa
qualquer luxo de coqueluche”.
Há também tentativas críticas mais diretas de uma nova
cena musical contra a antiga, como é possível perceber
na parceria entre Bruno Souto (Volver) e Tagore no
projeto The New Folks, com a música “Mangue Beatle”.
A letra inteira trata desse embate estético, temporal e
até de classe social, com o Manguebeat: “Sou playboy
tipo burguês/ Fui pra Londres canto em inglês, então/
Teu desprezo é maior/ E eu vou na contramão/ E essa
lama nos teus dedos/ Não traduz o meu desejo, em
vão/ Meu vício é bem maior/ Na minha solidão”. Numa
tentativa de diferenciação com o momento anterior.
Outro exemplo nos remete a uma realidade inventada,
como é possível perceber no trabalho de Matheus Mota.
Nas letras deste artista, os universos dos quadrinhos e
até da linguagem publicitária são bastante recorrentes.
Em “Madame na Avenida”, ele cria um clima lúdico a
partir da realidade do flanelinha, como é perceptível
no refrão da canção: “Ele guardou o meu carro com
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carinho e apreço/ Um dia, ele tem saudades e vai partir/
Espera, ela vem roubar o seu coração/ Não, não”.
Já nas canções de D Mingus, de Glauco & o Trem e
da Rua, é bem latente a verve existencial e surrealista
na poética. Em “Jardim Suburbano”, de D Mingus, é
evidente a tendência existencialista, montando um
retrato urbano em tom melancólico e clima surreal. O
trecho inicial da canção é bem ilustrativo: “Recortes
de um álbum etéreo/ Pedaços da minha alegria/ Pelas
ruas vazias/ Vias respiratórias congestionadas pelo
mofo da nostalgia”. Em Glauco & o Trem, a perspectiva
existencial é retratada em frustrações de ser outsider,
como podemos conferir em “Notícia popular”, onde
a falta de reconhecimento no cenário musical é
estampada na frase: “não saiu no jornal”, ou mesmo
através das crises existenciais do compositor em
“Medo-me”: “Tenho mãos estranhas, braços finos, um
tremor nas pernas um olhar desconfiado/ Uma língua
afiada, mas com medo de cantar”. Nas letras da Rua, o
tom surrealista é mais escancarado do que nos outros
dois artistas. Um bom exemplo é esse trecho da canção
34
“Escorrego”: “Escorreu/ A gota salgou/ Os lábios de
um deus/ Fez este mim cão/ Que pisa as horas em
bemol”. O jogo de palavras é o artifício necessário para
embaralhar os sentidos, criando um desapego espacial.
Indo por outro viés, analisando as letras das músicas dos
Ex-exus e do Feiticeiro Julião, além do caráter místico,
é perceptível uma tentativa de ruptura em relação a
comportamentos padrões, tabus e temas interditados,
seja do universo do macho contemporâneo, ou do
cidadão que busca novos espaços de liberdade dentro
da sociedade. “Carne Humana”, dos Ex-exus, escancara
essa condição masculina: “Você não vai querer morrer
nos meus braços/ Eu como carne humana/ Há muito já
perdeu o nexo/ Repete que me ama”. A transgressão é
a tônica! Assim como no título-refrão “Vou tirar você
da cara”, do Feiticeiro Julião, é possível perceber, de
forma lúdica, a busca por uma condição mais livre de
repressões do indivíduo na sociedade contemporânea.
Os embates são travados em vários níveis. E essas
canções nos mostram, um pouco mais, as possibilidades
da fragmentação discursiva. Os conceitos apresentados
35
servem para nortear a análise, mas é preciso dizer que
esses artistas se tocam e se misturam em vários desses
pontos levantados, indo além dessas concepções, às
vezes. Enfim, com todos esses exemplos, é possível
constatar que a cidade e a urbanidade estão presentes
nos discursos desses músicos, mas de uma forma
diferente em relação ao momento Manguebeat: não
sendo uma prerrogativa necessária enquanto tendência
de uma movimentação cultural centralizadora. O
que esses artistas querem, ao mesmo tempo, de uma
forma plural e singular, é redefinir as facetas da música
alternativa pernambucana pós-mangue, e as letras
das canções, junto com a análise empreendida, nos
mostram como isso pode ser possível. Por isso, temos
que ser engajados: que venham os novos hinos!
36
Do Mangue pra casa
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Esse movimento vem marcando a atual
cena musical pernambucana. São artistas
que vieram depois da efervescência do
Manguebeat. O chamado pós-mangue caiu numa
fragmentação muito maior do que poderiam prever os
mangueboys. Além do clima de renovação da música
alternativa deixado por Chico Science e companhia,
o barateamento da tecnologia foi um dos principais
agentes dessa movimentação do Mangue pra casa. Os
nichos foram sendo criados através dos home studios e,
dessa maneira, os músicos criaram micropoderes.
Mas, quais seriam as características dessas produções
caseiras? Primeiramente, uma estética de baixa
qualidade, ou do low-fi, por necessidade. Não que isso
não tenha acontecido na época do Manguebeat, ou
38
mesmo antes, na época do psicodelismo de Lula Côrtes,
mas o número desse tipo de produção aumentou
consideravelmente ao ponto de virar uma marca dessa
geração. Concomitante à explosão de home studios,
estúdios de ensaio e de gravação foram adquirindo
melhores equipamentos, e, com isso, a produção
de discos vem se tornando cada vez mais acessível
e crescendo consideravelmente. Por conta dessa
proliferação de possibilidades, fica difícil delimitar uma
estética para este momento pós-mangue; há algumas
tendências, mas nada que dê para generalizar demais.
A partir destas tendências do pós-mangue, vários
grupos existiram e acabaram, como: Rádio de Outono,
Mula Manca e a Triste Figura, Pé-preto, A comuna,
The Keith, Chocalhos & Badalos, Gigantesco Narval
Elétrico, Nuda, The Insights, Canivetes, Retrovisores
etc. Outros são uma incógnita, como: Mellotrons,
Monodecks, Vamoz, Fiddy etc. Alguns permaneceram,
como: Volver, AMP, Julia Says e Johnny Hooker, por
exemplo. E outros apareceram, ou como remanescentes
destes trabalhos anteriores, ou sendo novos nomes
39
mesmo, assim como: Ex-exus, A rua, Glauco & o
Trem, Bande Dessinée, Novanguarda, German Ra,
D Mingus, Matheus Mota, Feiticeiro Julião, Marditu
Soundz, Tagore, Team.Radio, entre outros. Com esses
poucos exemplos, é mais do que notável a capacidade
de proliferação da cena musical do estado, mas também
fica evidente a falta de projeção que esses artistas acabam
tendo pela fragmentação radical do pós-mangue.
Mas, como aliar a estética, a política e a tecnologia? Essa
é a grande questão que vem sendo colocada para esses
novos artistas da música alternativa pernambucana,
pois esse foi o grande êxito dos mangueboys. No entanto,
é constatado que, em vez da aglomeração proposta
pela manifestação do Manguebeat, foram criados
nichos que almejam a autossuficiência; mas, na práxis,
é percebido que essa geração vem se fragmentando
tão fortemente, ao ponto de ficarem quase de fora do
campo em disputa da cultura, tornando-se outsiders.
O poder de influência desses músicos acabou sendo
dizimado simbolicamente. Mas, como reverter essa
situação? Isso nos impõe mais questões cruciais.
40
Seria por conta da falta de casas de show de pequeno
e de médio porte? Ou o público que não é fomentado
e prefere shows de graça, proporcionados pelas
instituições públicas? Ou o conceito do pós-mangue
que deixa muitas dúvidas no ar? Ou seria o movimento
radical do Mangue pra casa que trouxe essa situação de
ostracismo geral? O grande desafio para a nova geração
do pós-mangue seria tornar a atual cena sustentável e
viável, sem precisar sair para morar no Sudeste, como
forma de provar algum valor. Criando, dessa forma,
uma rede de bandas no estado, como o Manguebeat
fez em seus primórdios, que dialoguem de forma mais
democrática com as produções que vêm de toda parte
da Região Metropolitana do Recife.
E o que está acontecendo na prática? Um fenômeno
é interessante como sintoma desse momento pós-
mangue: a predominância atual de eventos com
Djs tocando setlists na cena alternativa da cidade.
As bandas quase que estão desistindo de tocar na
cidade, preferindo somente gravar e divulgar na rede
de computadores. São os próprios músicos que estão
41
realizando esses eventos, o que mostra, com maior
evidência, algumas das lacunas mais gritantes da
produção musical do estado. Esse diagnóstico não é
feito para crucificar ninguém, mas só para constatar
uma tendência.
Pegando esse gancho, a principal referência seria a de
Belém, onde há as Aparelhagens, que são, de forma
geral, Djs tocando as músicas produzidas na cidade,
basicamente, o brega. Essas festas são importantes
para fomentar a cena local. No final dos eventos, eles
vendem o setlist para o público que quiser comprar. É
uma postura mercadológica e política, aliando a estética
do brega nessa luta franca pelo mercado independente.
Além da Aparelhagem, os carrinhos que vendem CDs
piratas são usados também como forma de fomentar
e valorizar a nova safra musical da capital paraense.
Convenhamos que eles tratam com um estilo popular,
que é o brega, e o produto musical de Recife seria, no
caso, a música alternativa. Mas também há a música
regional do estado, que é popular, mas não sai das asas
do poder público. Daí vem essa difícil encruzilhada
42
que a música pernambucana quase sempre se encontra:
como vender o nosso produto cultural sem virar um
Axé Music? Com essa experiência do brega paraense,
outra questão também pode ser levantada: como
fomentar nossa cena independente?
Contudo, a solução para essas questões também não
seria usar as fórmulas do brega de Belém nem do Axé da
Bahia como modelos salvadores. Deve haver algumas
ações que possam funcionar aqui, claro, mas isso só dá
para saber na prática mesmo, não formulando discursos.
A fragmentação da cena é positiva pela democratização,
mas não é viável, quando vira isolamento ou ostracismo.
Os outsiders sempre são agentes interessantes para
a renovação do cenário cultural, mas não devem ser
perpetuados como malditos. Isso é perigoso! É curioso
ver o esforço dos músicos, por conta das possibilidades
dadas pela internet, em se comunicar com o mundo,
principalmente com os grandes centros, leia-se: Europa
e Estados Unidos. Mas, eles se esquecem da práxis de
manter uma via mais do que aberta com a própria
cidade, estado, região. Isso não é demonstrar fraqueza
43
nem a abertura de cotas para os excluídos, e sim mostrar
que a cena está viva e que precisa de movimentação,
apesar dos gostos e dos nichos que possam existir.
Com essa fragmentação, não é praticável cada grupo
desses achar que sozinho dá para ser um movimento
tão significativo e forte quanto foram o Manguebeat e
o Tropicalismo.
Onde estão esses outros artistas, hoje, que ficaram
fragmentados? Estão produzindo ainda na cidade, mas
geralmente na condição de outsiders. Esses músicos não
são só os remanescentes de algum cenário anterior, pois
há muitos novos artistas que estão trilhando o mesmo
caminho, por não se enquadrarem nas condições
dos estabelecidos ou por não encontrarem meios de
propagar a música alternativa que está sendo feita no
estado. Talvez, por insistirem numa fragmentação, isso
enfraquece o potencial de ação criativa de uma cena
musical que tem o seu poder na aglomeração, e precisa
muito disso para sobreviver, isto é, da soma desses
agentes criativos.
A possibilidade da gravação caseira e a decorrente
44
democratização do acesso à produção fonográfica vêm
proporcionando uma expansão significativa na música
alternativa pernambucana, mas este movimento do
Mangue pra casa não pode ser tão radical ao ponto
de fazer os artistas esquecerem-se de atuar nas ruas
das cidades, de fato. É preciso atuar na malha cultural
de forma efetiva, com apresentações e estratégias de
distribuição dessas gravações – que estão se tornando
abundantes –, na perspectiva de fomentar o público
da cena independente do estado. Para isso, os músicos
precisam trabalhar juntos para dar visibilidade a
todos, a partir do coletivo, e não apostar somente na
individualidade de cada projeto.
A música em seu potencial estético não pode abdicar
da política, e o embate não pode se limitar à destruição
de uma cena para surgir outra nova. O pós-mangue
precisa, mais do que nunca, do fôlego dos outsiders,
pois os seus principais agentes estão querendo mudar a
cidade, não mudar de cidade. Os outsiders se encontram
ainda entranhados nesses nichos, nos entrelugares
dessas relações. Escorregadios e fragmentados! E
45
isso é um sintoma importante para a criação, de
fato, de um cenário renovado. Não dá para sufocar
mais o Manguebeat. A cena de música alternativa
pernambucana almeja reconhecimento e espaço, para
agora! Não daqui a 5, 10, 15 anos, simplesmente para
preencher alguma lacuna histórica.
46
A falacia pos-mangue
47
Pós-mangue é uma falácia, assim como todas
as tentativas de rótulo sob movimentações
culturais, pois são sempre frágeis e não dão
conta da complexidade de uma contingência e de um
contexto qualquer. E se isso está atrelado diretamente
a um conceito pretérito, essa incapacidade se torna
mais aguda. Apesar dessa constatação, a crítica e
muitos artistas não deixam de tentar emplacar um
direcionamento que busca definir o modo operante
de um grupo ou o espírito de uma época. Quando a
fragmentação é a tônica do instante, o melhor caminho
é o pós ou o neo? Ou é a preguiça ou é a falta de
criatividade que não deixam um conceito triunfar? Ou
estamos falando de uma política enfraquecida aliada
a uma estética fragmentada e individualista? Ou não
48
sabemos mesmo é lidar com o caos e precisamos nos
escorar em pilares conceituais?
É fato que o peso representativo do Manguebeat caiu
mais do que bem nos artistas que estavam envolvidos
nessa causa. Está, também, muito claro que o pós-
mangue não decolou por não ter essa representatividade
nem o poder de aglutinação, e precisa ser tratado
apenas como uma denominação de um momento –
temporalmente falando – depois do Mangue. Neste
contexto hiperfragmentado e supersaturado pelas
beiradas em que cada um deveria ser capaz de tornar-
se instituição, os artistas não se sentem atraídos nem
querem ser referenciados como tais. Pode haver a
potência para a autossuficiência, porém ainda há
muitos entraves externos e internos para essa realidade
ser concretizada. Já fiz quarto artigos sobre a temática
na tentativa de refletir sobre o contexto em que me
insiro, diretamente, mesmo sabendo que o conceito
pós-mangue não daria conta desse panorama nem
representaria, de fato, a cena contemporânea de música
alternativa em Pernambuco.
49
Os meus argumentos têm a pretensão de compreender
e de, principalmente, problematizar, e não de
delimitar ou de definir uma leitura final sobre o tema.
Primeiramente, o que me moveu a escrever foi a falta
de críticas que procurassem, mesmo generalizando,
entender este momento pós-mangue, que se arrasta
desde o começo dos anos 2000. O segundo motivo
foi por estar envolvido e atuando neste contexto; e o
terceiro, por toda essa fragmentação que me instigou
a pensar a respeito e a tentar achar algumas linhas
conceituais através deste recorte analítico. Seria a marca
da atualidade da música alternativa pernambucana:
não estar à procura de uma linha norteadora? Bem,
até hoje, não existe um conceito-chave. Os artistas
do pós-mangue não despontam aos holofotes da
indústria cultural, nem um músico nem um grupo ou
uma movimentação que represente, genericamente,
todo um contexto. Talvez, futuramente, esse caos seja
catalisado e convertido em um emblema representativo,
que tenha a força de abarcar a contemporaneidade do
porvir. Será que esta geração beira ao fracasso e está,
simplesmente, preparando o terreno para uma cena
50
futura mais esclarecida? Fracasso da indústria, mas e o
sucesso de nicho? É aquela história: o que é dar certo
na “sociedade pós-massiva” (André Lemos) que a gente
está vivendo? Não dá para trabalhar com previsões
nem é possível resumir a importância de uma época ao
ostracismo, pelo simples fato de ela não emplacar um
hit ou uma movimentação conceitual; essa cena ainda
não está morta, ao contrário, ela está se contorcendo
em busca de novas possibilidades.
Essa noção do pós é sempre um incômodo e dá uma
certa sensação de instabilidade, pois, mesmos os
movimentos que encontraram uma base conceitual
consistente, como o Tropicalismo e o Manguebeat, e que
tiveram na polivalência uma das mais fortes diretrizes
de suas intenções de manifesto, não encontraram o
cenário tão fragmentado e individualista como esse do
pós-mangue. Apesar de essas marcas terem vingado,
o que elas conseguiram foi forjar uma cena em torno
de uma conceituação que, primeiramente, favorecem
seus criadores e os que estão abarcados ao redor deles,
e, por último, de tão repetidas como a identidade
51
plausível de um momento cultural, acabam sendo,
muitas vezes, a única interpretação de um contexto
e, consequentemente, uma tendência. Mas o fato de
terem forjado a cena não necessariamente é sinônimo
de sucesso. Já houve várias cenas sendo forjadas e não
dando em nada. Então, talvez, o caminho não seja só
esse!
A farsa pós-mangue não alcançou um status
representativo e aglutinador e, talvez, a principal
razão de seu fracasso seja a postura assumida pelos
artistas e pelos críticos. Será que procuraram trilhar
pelo individualismo em vez de somar e de dar força
a um poder cultural de pressão coletiva? A potência
dissimulada de que cada indivíduo poderia ser uma
instituição (como bem observou Rodrigo Édipo, na
coluna da revista Mi #1), por conta do caos encontrado
após a falência da indústria fonográfica, que foi
potencializado pelo barateamento da tecnologia de
gravação e pela possibilidade de distribuição através
da internet. Dessa forma, chegou-se a um novo estágio,
em que o artista precisa, ainda, aprender a lidar com
52
todas as fases de produção para poder gerir, de fato,
sua carreira e, por fim, conseguir aliar de forma crítico-
criativa as novas tecnologias com uma nova forma
de política e de estética, que possibilite o status de
representação requerido por uma nova geração ávida
por ser a cara de uma época caótica. Ou se faz isso, ou
como disse H.D. Mabuse, em entrevista para a Mi #2:
pega um empréstimo de 200 mil e paga jabá!
Essa potencialidade é, muitas vezes, confundida
com uma ilusão de democracia e de liberdade
enquanto, cada vez mais, as instituições estabelecidas
se cercam e interditam de uma forma mais eficaz e
dissimulada, travestida, muitas vezes, de transgressão
e vanguardismo, mas que, na realidade, dão uma
falsa impressão de que tudo já foi feito e confrontado.
As rupturas são domesticadas e financiadas para
transparecer um momento “democrático”. Como
proceder entre o paradoxo do anonimato das redes
sociais e do financiamento adestrador? Ou como
questionou Inès Champey, apresentando o livro de
Pierre Bourdieu e Hans Haacke, Livre-troca (1995):
53
“Como se pode afirmar a independência de artistas
e intelectuais críticos quando confrontados pelos
novos cruzados da cultura ocidental, pelos campeões
neoconservadores da moralidade e do bom-gosto,
pelos patrocínios de multinacionais e apoio do Estado,
além da preocupação autoindulgente dos teóricos que
perderam totalmente o contato com a realidade? Como
salvaguardar o mundo da livre-troca?” Essas questões
parecem que vão ficando mais complexas com o passar
do tempo. E em meio ao contexto pós-mangue, esses
problemas estão longe de serem solucionados. Acho
que eles nunca chegarão a um fim, de fato. Mas, agindo
de forma mais consciente, é viável que carreiras sejam
sustentáveis, mesmo sem engatar qualquer falácia que
seja de uma cena convincente.
54
E possivel lutar pelo pos-mangue?
55
Chegamos ao sexto e último texto do que
venho postulando sobre o momento pós-
mangue. Tentei abordar essa problemática
com a devida carga analítica merecida, a partir da
bagagem crítica que venho acumulando por vir atuando
enquanto músico, pesquisador e jornalista, justamente,
durante o período em questão.
Tratei de traçar um panorama sobre os embates
entre estética e política aos modos de produção, das
análises sonoras e das letras de alguns expoentes
desta movimentação que veio após o Manguebeat, à
problematização do próprio termo “pós-mangue”,
enquanto ferramenta de aglutinação e de representação
desta geração de artistas. Enfim, muito foi dito por
mim e muito mais poderia ser debatido com outras
56
perspectivas e por outros críticos.
Para finalizar essa empreitada, pretendo voltar a crítica
para ela mesma, ou seja, vou falar, agora, do que entendo
não só sobre a crítica especializada, encontrada em
segmentos editoriais restritos, como revistas, jornais
e blogues, mas também a respeito dos veículos de
distribuição da música enquanto dispositivos críticos,
a partir da perspectiva mais ampla da indústria cultural
no embate entre arte, mercado e técnica.
Por conta da autonomia subjetiva proporcionada
pelo surgimento dos microuniversos produtivos, os
artistas, que surgiram a partir da readaptação dos
sistemas de produção das grandes gravadoras, ficaram
deslumbrados com as possibilidades de independência
profissional da carreira, mas acabaram sendo engolidos
por toda essa potência criativa e tecnológica, sem
saberem administrar, de fato, e lutar ativamente dentro
dos novos paradigmas econômicos escancarados pelo
barateamento da tecnologia e pelo uso das redes de
computadores.
57
Dentro desse panorama, o grande gargalo deixado pelas
grandes gravadoras não está na produção fonográfica
no que diz respeito à gravação, mixagem, masterização,
enfim, à concepção do produto, e sim à distribuição
efetiva desses trabalhos. Além das referências óbvias
quando se fala em disseminação na indústria cultural da
música, como rádio e televisão, a crítica especializada
encontrada nos periódicos impressos e digitais
também reflete essa carência mercadológica; espaços
onde a procura de vanguardas deveria ser mais pela
movimentação política do que pela novidade estética,
aliando uma com a outra, contra o esvaziamento
coletivo. Por essa e outras razões, é preciso pontuar
o pós-mangue mais como momento que veio depois
da era de monopólio das grandes gravadoras do que
como um movimento estético aglutinador. Movidos
pelos ideais estéticos de autonomia, de alteridade e de
autenticidade, esses artistas negligenciam a política de
circulação por meio dos dispositivos institucionalizados
pela indústria cultural da música, por acharem que
esses meios estão contaminados demais ou por não
encontrarem a abertura esperada.
58
Os dispositivos de distribuição abertos para os
mangueboys não são os mesmos encontrados hoje
em dia, principalmente para Chico Science e Nação
Zumbi, seguido pelo Mundo Livre S/A, que tiveram,
no contexto, o surgimento de uma indústria cultural
voltada para a música jovem, aparatada pelos selos
especializados das grandes gravadoras, como o Chaos e
o Banguela, da Sony e da Warner, respectivamente; pela
crítica especializada da revista Bizz, que tinha surgido
antes em 1985 e conseguia vender, nacionalmente,
uma média de 60 a 70 mil exemplares, e pela chegada
do primeiro canal de TV segmentado do país, a MTV
Brasil, em 1990, que acolheu a movimentação do
Manguebeat em sua grade de novidades e apostas.
Anterior a esta movimentação, a capital pernambucana
foi fomentada pela Rozenblit, de 1954 a 1977. A Fábrica
de Discos Rozenblit dispunha, além da gravadora, de
um moderno parque gráfico, o que dava à empresa
pernambucana autossuficiência na cadeia produtiva.
Entre a falência da Rozenblit e o começo do movimento
Mangue, há um hiato que podemos denominar como
59
pré-mangue (para dar uma certa afinidade com o nosso
foco de análise). Apesar de distantes, o antes e o depois
do Mangue se assemelham em bastantes aspectos e se
distinguem em muitos outros, obviamente.
O ponto mais relevante de aproximação para a análise
entre o pré e o pós-mangue é o ostracismo. No período
anterior, a obscuridade da cena local deu-se por conta
do monopólio e do casting restrito da era áurea das
grandes gravadoras nacionais. Na época atual, que se
arrasta desde o início do século XXI, esse caráter existe
devido à falta de engajamento por uma produção
fonográfica sustentável, e a principal carência encontra-
se no segmento de distribuição. Aparentemente, tudo
está ao alcance das mãos, mas, na prática, isso não é bem
assim. Os discursos a respeito desse assunto são bem
batidos já: falta espaço nas rádios, não há programas
na televisão que veiculem esses artistas, os jornais não
dão espaço crítico suficiente, não há um engajamento
por parte da crítica etc.
Há muito trabalho sendo feito na internet e por mídias
alternativas, mas não é o suficiente para a promoção
60
de carreiras duradouras. Há tantas manifestações,
atualmente, querendo ocupar espaços e interferir em
políticas públicas - o que é bastante positivo para o
debate social. O cinema em Pernambuco, por exemplo,
vem tendo conquistas importantes dentro da indústria
cultural, as quais se refletem em mais investimentos,
reconhecimento crítico e circulação do material fílmico.
Já a área da música no estado, apesar de ter excesso
de produção, não consegue mostrar o que é feito,
demonstrando que uma parte preciosa da produção
fonográfica está ainda capengando: a de distribuição
e circulação de artistas e de materiais, pois dependem,
também, da ocupação dos dispositivos institucionais
de financiamento e dos meios de comunicação
tradicionais. Talvez seja o caso de recrutar profissionais
para essa demanda, ou de quebrar os entraves que
ainda existem com as rádios, as TVs e as instituições
públicas e privadas.
Como se organizar politicamente perante à arte, ao
mercado e à técnica, atualmente, é ainda a grande
questão para os artistas do pós-mangue, e vai além
61
deles. Com essas reflexões e com minha atuação,
enquanto agente na área da música em Pernambuco,
espero contribuir para essa luta contínua ter mais
êxitos e menos retrocessos. Há debates antigos que
parecem ter se esgotado, mas que, na verdade, ainda
precisam ser reforçados e conquistados, de fato, pois
são essenciais para o funcionamento de uma cadeia
produtiva sustentável na música alternativa do estado.
É uma pena que o estado de espírito atual faça com
que tudo esteja fora de moda constantemente, é como
pontuou Bauman: “a modernidade atual é incapaz
de manter sua forma. Tudo é permanentemente
desmontado e reconstruído e, mesmo a reconstrução
já é feita com a perspectiva da transitoriedade”, a
desconfiança é uma coisa positiva e necessária para
o pensamento crítico, mas é preciso também que seja
combinada com uma práxis transformadora, pois, por
mais clichê e anacrônico que pareça, o momento urge
revoluções!
62
Ricardo Maia Jr.
Rodrigo Edipo
Carlos Gomes
Doutorando em Comunicação pela UFPE, músico da banda Ex-exus e repórter da MI – Música Independente em Pernambuco.
Mestrando em Comunicação pela UFPE, editor da MI – Música Independente em Pernambuco e do site Futebol de Bolso.
Escritor, editor do blogue Outros Críticos e curador do projeto Outros Críticos Convidam.
63
Este e-book foi composto na tipologia Minion Pro e Bolton, em corpo 14/18/25,2 nas dimensões 600px x 800px, em
formato PDF (Portable Document Format).
64
“O pós-mangue precisa, mais do
que nunca, do fôlego dos outsiders,
pois os seus principais agentes estão
querendo mudar a cidade, não mudar
de cidade. Os outsiders se encontram
ainda entranhados nesses nichos,
nos entrelugares dessas relações.
Escorregadios e fragmentados! E
isso é um sintoma importante para
a criação, de fato, de um cenário
renovado. Não dá para sufocar mais
o Manguebeat. A cena de música
alternativa pernambucana almeja
reconhecimento e espaço, para
agora! Não daqui a 5, 10, 15 anos,
simplesmente para preencher alguma
lacuna histórica.”
Ricardo Maia Jr.
“A modernidade
atual é incapaz
de manter sua
forma. Tudo é
permanentemente
desmontado e
reconstruído
e, mesmo a
reconstrução
já é feita com a
perspectiva da
transitoriedade.”
Bauman