Entidades familiares constitucionalizadas para além de ‘numerus clausus’ “ – Paulo Luiz...

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MUNDO JURÍDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS: PARA ALÉM DO NUMERUS CLAUSUS PAULO LUIZ NETTO LÔBO Doutor em Direito Civil (USP); Diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família; Professor na UFPE (Mestrado e Doutorado) e na UFAL. SUMÁRIO: 1. Das entidades familiares; 2. Da demarcação jurídico-constitucional do tema; 3. Das normas constitucionais de inclusão; 4. Do melhor interesse das pessoas humanas que integram as entidades familiares; 5. Do fundamento comum no princípio jurídico da afetividade; 6. Dos critérios de interpretação constitucional aplicáveis; 7. Da inadequação da Súmula nº 380-STF; 8. Da violação do princípio da dignidade humana, como conseqüência da exclusão; 9. Da inclusão de entidades familiares implícitas ou equiparadas, no STJ; 10. Da união homossexual como entidade familiar; Conclusão Hominum causa omne ius constitutum sit - Cícero 1. Das entidades familiares O pluralismo das entidades familiares, uma das mais importantes inovações da Constituição brasileira, relativamente ao direito de família, encontra-se ainda cercada de perplexidades quanto a dois pontos centrais: a) há hierarquização axiológica entre elas?; b) constituem elas numerus clausus?. Proponho-me a enfrentar preferencialmente a segunda questão, gizando-a ao plano da Constituição brasileira, ou seja, extraindo sentido das normas nela positivadas, utilizando critérios reconhecidos de interpretação constitucional. Várias áreas do conhecimento, que têm a família ou as relações familiares como objeto de estudo e investigação, identificam uma linha tendencial de expansão do que se considera entidade ou unidade familiar. Na www.mundojuridico.adv.br 1

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MUNDO JURÍDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS: PARA ALÉM DO NUMERUS CLAUSUSPAULO LUIZ NETTO LÔBODoutor em Direito Civil (USP); Diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família; Professor na UFPE (Mestrado e Doutorado) e na UFAL.SUMÁRIO: 1. Das entidades familiares; 2. Da demarcação jurídicoconstitucional do tema; 3. Das normas constitucionais de inclusão; 4. Do melhor interesse das pessoas humanas que integram as entidades familiares; 5. Do fun

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MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS: PARA ALM DO NUMERUS CLAUSUSPAULO LUIZ NETTO LBODoutor em Direito Civil (USP); Diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Famlia; Professor na UFPE (Mestrado e Doutorado) e na UFAL.

SUMRIO: 1. Das entidades familiares; 2. Da demarcao jurdicoconstitucional do tema; 3. Das normas constitucionais de incluso; 4. Do melhor interesse das pessoas humanas que integram as entidades familiares; 5. Do fundamento comum no princpio jurdico da afetividade; 6. Dos critrios de interpretao constitucional aplicveis; 7. Da inadequao da Smula n 380-STF; 8. Da violao do princpio da dignidade humana, como conseqncia da excluso; 9. Da incluso de entidades familiares implcitas ou equiparadas, no STJ; 10. Da unio homossexual como entidade familiar; ConclusoHominum causa omne ius constitutum sit - Ccero

1. Das entidades familiares O pluralismo das entidades familiares, uma das mais importantes inovaes da Constituio brasileira, relativamente ao direito de famlia, encontra-se ainda cercada de perplexidades quanto a dois pontos centrais: a) h hierarquizao axiolgica entre elas?; b) constituem elas numerus clausus?. Proponho-me a enfrentar preferencialmente a segunda questo, gizando-a ao plano da Constituio brasileira, ou seja, extraindo sentido das normas nela positivadas, utilizando critrios reconhecidos de interpretao constitucional. Vrias reas do conhecimento, que tm a famlia ou as relaes familiares como objeto de estudo e investigao, identificam uma linha tendencial de expanso do que se considera entidade ou unidade familiar. Na perspectiva da sociologia, da psicologia, da psicanlise, da antropologia, dentre outros saberes, a famlia no se resumia constituda pelo casamento, ainda antes da Constituio, porque no estavam delimitados pelo modelo legal, entendido como um entre outros. No campo da demografia e da estatstica, por exemplo, as unidades de vivncia dos brasileiros so objeto de pesquisa anual e regular do IBGE, intitulada Pesquisa Nacional por Amostragem de Domiclios (PNAD). Os dados do PNAD tm revelado um perfil das relaes familiares distanciado dos modelos legais, como procurei demonstrar em trabalho pioneiro, logo aps o advento da Constituio de 19881. So unidades de vivncia encontradas na experincia brasileira atual, entre outras2: a) par andrgino, sob regime de casamento, com filhos biolgicos;1

Paulo Luiz Netto Lbo, A Repersonalizao das Relaes de Famlia, in O Direito de Famlia e a Constituio de 1988, Coord. Carlos Alberto Bittar, So Paulo, Saraiva, 1989, p. 53-81. 1 www.mundojuridico.adv.br

MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo b) par andrgino, sob regime de casamento, com filhos biolgicos e filhos adotivos, ou somente com filhos adotivos, em que sobrelevam os laos de afetividade; c) par andrgino, sem casamento, com filhos biolgicos (unio estvel); d) par andrgino, sem casamento, com filhos biolgicos e adotivos ou apenas adotivos (unio estvel); e) pai ou me e filhos biolgicos (comunidade monoparental); f) pai ou me e filhos biolgicos e adotivos ou apenas adotivos (comunidade monoparental); g) unio de parentes e pessoas que convivem em interdependncia afetiva, sem pai ou me que a chefie, como no caso de grupo de irmos, aps falecimento ou abandono dos pais; h) pessoas sem laos de parentesco que passam a conviver em carter permanente, com laos de afetividade e de ajuda mtua, sem finalidade sexual ou econmica; i) unies homossexuais, de carter afetivo e sexual; j) unies concubinrias, quando houver impedimento para casar de um ou de ambos companheiros, com ou sem filhos; l) comunidade afetiva formada com filhos de criao, segundo generosa e solidria tradio brasileira, sem laos de filiao natural ou adotiva regular. Interessa saber se as hipteses enunciadas nas alneas g, h, i, j e l esto ou no tuteladas pela Constituio brasileira. o que se pretende investigar, a seguir, sendo certo que as hipteses a at f esto nela previstas, nos trs tipos de entidades familiares que explicitou, a saber, o casamento, a unio estvel e a comunidade monoparental. Em todos os tipos h caractersticas comuns, sem as quais no configuram entidades familiares, a saber: a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsiderao do mvel econmico; b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episdicos ou descomprometidos, sem comunho de vida; c) ostensibilidade, o que pressupe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente. O direito tambm atribui a certos grupos sociais a qualidade de entidades familiares para determinados fins legais, a exemplo da Lei n. 8.009, de 29.03.90, sobre a impenhorabilidade do bem de famlia; da Lei n. 8.425, de 18.10.91, sobre locao de imveis urbanos, relativamente proteo da famlia, que inclui todos os residentes que vivam na dependncia econmica do locatrio; dos artigos 183 e 191 da2

A tipicidade aberta, exemplificativa, enriquecida com a experincia da vida. Orlando Gomes (O Novo Direito de Famlia, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1984, p. 66) refere-se s famlias derivadas da me com os filhos de sucessivos pais, ausentes ou invisveis, comuns nas camadas mais baixas da populao; s que renem crianas sem pais, criadas e educadas por genitores convencionais; s comunidades extensas e unificadas; ao grupo composto de velhas amigas aposentadas que, refugando o pensionato, unem-se para proverem juntas suas necessidades. 2 www.mundojuridico.adv.br

MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo Constituio, sobre a usucapio especial, em benefcio do grupo familiar que possua o imvel urbano e rural como moradia. A questo proposta encontra-se estreitamente correlacionada com aqueloutra enunciada acima, quanto possvel hierarquizao axiolgica das entidades familiares, tendo primazia a famlia constituda pelo casamento. Parcela pondervel da doutrina assim entendeu, no apenas por razes de tradio jurdica, mas em virtude das expresses contidas no 3 do artigo 226 da Constituio quando tratou do reconhecimento da unio estvel. 2. Da demarcao jurdico-constitucional do tema A interpretao dominante do art. 226 da Constituio, entre os civilistas, no sentido de tutelar apenas os trs tipos de entidades familiares, explicitamente previstos, configurando numerus clausus. Esse entendimento encontrado tanto entre os antigos civilistas quanto entre os novos civilistas, ainda que estes deplorem a norma de clausura que teria deixado de fora os demais tipos reais 3, o que tem gerado solues jurdicas inadequadas ou de total desconsiderao deles. Os que entendem que a Constituio no admite outros tipos alm dos previstos controvertem acerca da hierarquizao entre eles, resultando duas teses antagnicas: I H primazia do casamento, concebido como o modelo de famlia, o que afasta a igualdade entre os tipos, devendo os demais (unio estvel e entidade monoparental) receberem tutela jurdica limitada; II H igualdade entre os trs tipos, no havendo primazia do casamento, pois a Constituio assegura liberdade de escolha das relaes existenciais e afetivas que previu, com idntica dignidade. O principal argumento da tese I, da desigualdade, reside no enunciado final do 3 do art. 226, relativo unio estvel: devendo a lei facilitar sua converso em casamento. A interpretao literal e estrita enxerga regra de primazia do casamento, pois seria intil, se de igualdade se cuidasse. Todavia, o isolamento de expresses contidas em determinada norma constitucional, para extrair o significado, no a operao hermenutica mais indicada. Impe-se a harmonizao da regra com o conjunto de princpios e regras em que ela se insere.o

Com efeito, a norma do 3 do artigo 226 da Constituio no contm determinao de qualquer espcie. No impe requisito para que se considere existente unio estvel ou que subordine sua validade ou eficcia converso em casamento. Configura muito mais comando ao legislador infraconstitucional para que remova os obstculos e dificuldades para os companheiros que desejem casar-se, se quiserem, a exemplo da dispensa da solenidade de celebrao. Em face dos companheiros, apresenta-se como norma de induo. Contudo, para os que desejarem permanecer em unio estvel, a tutela constitucional completa, segundo o princpio de igualdade que se3

Maria Berenice Dias e Ivone M. C. Coelho de Souza (Famlias Modernas: (Inter)sees do Afeto e da Lei, Revista Brasileira de Direito de Famlia, n. 8, jan/mar 2001, p. 68) entenderam que a Constituio, por absoluto preconceito de carter tico, deixou de regular certas espcies de relacionamento. Como ser demonstrado, a Constituio brasileira tutela as entidades familiares de qualquer tipo. 3 www.mundojuridico.adv.br

MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo conferiu a todas as entidades familiares. No pode o legislador infraconstitucional estabelecer dificuldades ou requisitos onerosos para ser concebida a unio estvel, pois facilitar uma situao no significa dificultar outra. A tese II, da igualdade dos tipos de entidades, consulta melhor o conjunto das disposies constitucionais. Alm do princpio da igualdade das entidades, como decorrncia natural do pluralismo reconhecido pela Constituio, h de se ter presente o princpio da liberdade de escolha, como concretizao do macroprincpio da dignidade da pessoa humana. Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda sua realizao existencial. No pode o legislador definir qual a melhor e mais adequada. C. Massimo Bianca, tendo em conta o sistema jurdico italiano, ressalta o princpio da liberdade, pois a necessidade da famlia como interesse essencial da pessoa se especifica na liberdade e na solidariedade do ncleo familiar. A liberdade do ncleo familiar deve ser entendia como liberdade do sujeito de constituir a famlia segundo a prpria escolha e como liberdade de nela desenvolver a prpria personalidade4. A tese II, inobstante seu avano em relao tese I, ainda insuficiente. A questo que se impe diz respeito incluso ou excluso dos demais tipos de entidades familiares. J perfilhei a tese II. As meditaes e as investigaes ulteriores da dimenso e do alcance das normas e princpios contidas no art. 226 da Constituio, em face dos critrios de interpretao constitucional notadamente do princpio da concretizao constitucional, levaram-me ao convencimento da superao do numerus clausus, como demonstrarei. A excluso no est na Constituio, mas na interpretao. 3. Das normas constitucionais de incluso Estabelece a Constituio trs preceitos, de cuja interpretao chega-se incluso das entidades familiares no referidas explicitamente. So eles, chamando-se ateno para os termos em destaque: a) Art. 226 A famlia, base da sociedade, tem especial proteo do Estado. (caput) b) 4o Entende-se, tambm, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. c) 8o O Estado assegurar a assistncia famlia na pessoa de cada um que a integram, criando mecanismos para coibir a violncia no mbito de suas relaes. No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformao, no tocante ao mbito de vigncia da tutela constitucional famlia. No h qualquer referncia a determinado tipo de famlia, como ocorreu com as constituies brasileiras anteriores. Ao suprimir a locuo constituda pelo casamento (art. 175 da Constituio de 1967-69), sem substitu-la por qualquer outra, ps sob a tutela constitucional a famlia, ou seja, qualquer famlia. A clusula de excluso desapareceu. O fato de, em seus pargrafos,4

Cf. Diritto Civile, v.2, Milano, Giuffr, 1989, p. 15.

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MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqncias jurdicas, no significa que reinstituiu a clusula de excluso, como se ali estivesse a locuo a famlia, constituda pelo casamento, pela unio estvel ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos. A interpretao de uma norma ampla no pode suprimir de seus efeitos situaes e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. O objeto da norma no a famlia, como valor autnomo, em detrimento das pessoas humanas que a integram. Antes foi assim, pois a finalidade era reprimir ou inibir as famlias ilcitas, desse modo consideradas todas aquelas que no estivessem compreendidas no modelo nico (casamento), em torno do qual o direito de famlia se organizou. A regulamentao legal da famlia voltava-se, anteriormente, para a mxima proteo da paz domstica, considerando-se a famlia fundada no casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituio essencial 5. O caput do art. 226 , consequentemente, clusula geral de incluso, no sendo admissvel excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade. A regra do 4o do art. 226 integra-se clusula geral de incluso, sendo esse o sentido do termo tambm nela contido. Tambm tem o significado de igualmente, da mesma forma, outrossim, de incluso de fato sem excluso de outros. Se dois forem os sentidos possveis (incluso ou excluso), deve ser prestigiado o que melhor responda realizao da dignidade da pessoa humana, sem desconsiderao das entidades familiares reais no explicitadas no texto. Os tipos de entidades familiares explicitados nos pargrafos do art. 226 da Constituio so meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referncia expressa. As demais entidades familiares so tipos implcitos includos no mbito de abrangncia do conceito amplo e indeterminado de famlia indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretizao dos tipos, na experincia da vida, conduzindo tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade. 4. Do melhor interesse das pessoas humanas que integram as entidades familiares Os diversos preceitos do art. 227 referem-se famlia, em geral, sem tipific-la, ressaltando o interesse das pessoas que a integram, no mesmo sentido empregado pelo 8o do art. 226. Para concretizar os interesses de cada pessoa humana, especialmente dos mais dbeis (criana e idoso) imputada famlia o dever de assegurlos (arts. 227, caput, e 230). Ao contrrio da longa tradio ocidental e das constituies brasileiras anteriores, de proteo preferencial famlia, como base do prprio Estado e da organizao poltica, social, religiosa e econmica, a Constituio de 1988 mudou o foco para as pessoas humanas que a integram, razo porque comparece como sujeito de deveres mais que de direitos. A proteo da famlia proteo mediata, ou seja, no interesse da realizao existencial e afetiva das pessoas. No a famlia per se que 5

Cf. Gustavo Tepedino, in A Nova Famlia: Problemas e Perspectivas, Vicente Barreto (coord.), Rio, Renovar, 1997, p. 56. No sentido coincidente do texto, diz o autor, ibidem, que hoje no se pode ter dvida quanto funcionalizao da famlia para o desenvolvimento da personalidade de seus membros, devendo a comunidade familiar ser preservada (apenas) como instrumento de tutela da dignidade da pessoa humana. 5 www.mundojuridico.adv.br

MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo constitucionalmente protegida, mas o locus indispensvel de realizao e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, no podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a excluso refletiria nas pessoas que as integram por opo ou por circunstncias da vida, comprometendo a realizao do princpio da dignidade humana. 5. Do fundamento comum no princpio jurdico da afetividade O princpio da efetividade tem fundamento constitucional; no petio de princpio, nem fato exclusivamente sociolgico ou psicolgico. No que respeita aos filhos, a evoluo dos valores da civilizao ocidental levou progressiva superao dos fatores de discriminao, entre eles. Projetou-se, no campo jurdico-constitucional, a afirmao da natureza da famlia como grupo social fundado essencialmente nos laos de afetividade, tendo em vista que consagra a famlia como unidade de relaes de afeto, aps o desaparecimento da famlia patriarcal, que desempenhava funes procracionais, econmicas, religiosas e polticas. A Constituio abriga princpios implcitos que decorrem naturalmente de seu sistema, incluindo-se no controle da constitucionalidade das leis. Encontram-se na Constituio Federal brasileira algumas referncias, cuja interpretao sistemtica conduz ao princpio da afetividade, constitutivo dessa aguda evoluo social da famlia, especialmente: a) todos os filhos so iguais, independentemente de sua origem (art. 227, 6); b) a adoo, como escolha afetiva, alou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, 5 e 6); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, e a unio estvel tm a mesma dignidade de famlia constitucionalmente protegida (art. 226, 3 e 4); d) o casal livre para extinguir o casamento ou a unio estvel, sempre que a afetividade desaparea (art. 226, 3 e 6). Se todos os filhos so iguais, independentemente de sua origem, porque a Constituio afastou qualquer interesse ou valor que no seja o da comunho de amor ou do interesse afetivo como fundamento da relao entre pai e filho. A fortiori, se no h qualquer espcie de distino entre filhos biolgicos e filhos adotivos, porque a Constituio os concebe como filhos do amor, do afeto construdo no dia a dia, seja os que a natureza deu seja os que foram livremente escolhidos. Se a Constituio abandonou o casamento como nico tipo de famlia juridicamente tutelada, porque abdicou dos valores que justificavam a norma de excluso, passando a privilegiar o fundamento comum a todas a entidades, ou seja, a afetividade, necessrio para realizao pessoal de seus integrantes. O advento do divrcio direto (ou a livre dissoluo na unio estvel) demonstrou que apenas a afetividade, e no a lei, mantm unidas essas entidades familiares. A afetividade construo cultural, que se d na convivncia, sem interesses materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Revela-se em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princpio, ostenta fraca densidade semntica, que se determina pela mediao concretizadora do intrprete, ante cada situao real. Pode ser assim traduzido: onde houver uma relao ou comunidade unidas por laos de afetividade, sendo estes suas causas originria e final, haver famlia. www.mundojuridico.adv.br6

MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo A afetividade necessariamente presumida nas relaes entre pais e filhos, ainda que na realidade da vida seja malferida, porque esse tipo de parentesco jamais se extingue. 6. Dos critrios de interpretao constitucional aplicveis Alm dos argumentos j referidos, que apontam para a configurao de clusula de incluso das entidades familiares implcitas, mediante interpretao sistemtica e teleolgica dos preceitos constitucionais, outros critrios podem reforar essa linha de entendimento, de acordo com a doutrina especializada. Antes, cumpre lembrar a advertncia de Friedrich Mller6, forte em H. G. Gadamer, sobre o peso da pr-compreenso que precede e condiciona a interpretao constituda pelos contedos, modos de comportamento, preconceitos, possibilidades de expresso e barreiras lingsticas e a insero do intrprete num contexto de tradio, o que, certamente, tem contribudo para o predomnio do entendimento da continuidade da clusula de excluso das demais entidades familiares. Carlos Maximiliano7 aponta-nos trs critrios hermenuticos compatveis hiptese em exame, da interpretao ampla: a) Cada disposio estende-se a todos os casos que, por paridade de motivos, se devem considerar enquadrados no conceito; b) Quando a norma estatui sobre um assunto como princpio ou origem, suas disposies aplicam-se a tudo o que do mesmo assunto deriva lgica e necessariamente; c) Interpretam-se amplamente as normas feitas para abolir ou remediar males, dificuldades, injustias, nus, gravames. Aplicando esses critrios s normas constitucionais mencionadas sobre as entidades familiares, tem-se: a) as entidades explcitas e implcitas enquadram-se no conceito amplo de famlia, do caput do art. 226, por paridade de motivos; b) a referncia famlia tem sentido de princpio ou origem, devendo aplicar-se a todos os tipos que dela derivam lgica e necessariamente; c) o conceito de famlia, sem restries, do art. 226, aboliu as discriminaes e injustias que as normas de excluso continham nas anteriores Constituies brasileiras. Gomes Canotilho8 refere o princpio da mxima efetividade ou princpio da interpretao efetiva, que pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribudo o sentido que maior eficcia lhe d. Ou seja, na dvida deve preferir-se a interpretao que reconhea maior eficcia norma constitucional. Aplicando ao tema: se dois forem os sentidos que possam ser extrados dos preceitos do art. 226 da Constituio brasileira, deve ser preferido o que lhes atribui o alcance de incluso de todas as entidades familiares, pois confere maior eficcia aos princpio de especial proteo do Estado (caput) e de realizao da dignidade pessoal de cada um dos que a integram ( 8).6

Direito, Linguagem, Violncia Elementos de uma Teoria Constitucional I, Trad. Peter Naumann, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1995, p.41. 7 Cf. Hermenutica e Aplicao do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1980, p. 204. 8 Cf. Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 1989, p. 162.

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MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo Konrad Hesse9 diz que a interpretao constitucional concretizao. Precisamente o que no aparece de forma clara como contedo da Constituio o que deve ser determinado mediante a incorporao da realidade de cuja ordenao se trata. Consequentemente, o intrprete encontra-se obrigado incluso em seu mbito normativo dos elementos de concretizao que permitam a soluo do problema. A discriminao apenas admitida quando expressamente prevista na Constituio. Se ela no discrimina, o intrprete ou o legislador infraconstitucional no o podem fazer. 7. Da inadequao da Smula n 380-STF H forte tendncia da jurisprudncia dos tribunais brasileiros em buscar fundamento de deciso, que reputam justa, para soluo de conflitos decorrentes de entidades familiares no explicitadas na Constituio, na Smula n 380 do STF, cujo conhecido enunciado estabelece: Comprovada a existncia de sociedade de fato entre os concubinos, cabvel a sua dissoluo judicial, com a partilha do patrimnio adquirido pelo esforo comum. Sabe-se que a Smula 380 foi uma engenhosa formulao construda pela doutrina e pela jurisprudncia, durante a vigncia da Constituio de 1946, consolidada no incio da dcada de sessenta, para tangenciar a vedao de tutela legal das famlias constitudas sem casamento, de modo a encontrar-se alguma proteo patrimonial a, freqentemente, mulheres abandonadas por seus companheiros, aps anos de convivncia afetiva. Como no era possvel encontrar fundamento no direito de famlia, em virtude da vedao constitucional, socorreu-se do direito obrigacional, segundo o modelo das sociedades mercantis ou civis de constituio incompleta, ou seja, das sociedades de fato. Essa construo tpica do que determinada escola jurdica italiana denominou uso alternativo do direito. Os efeitos da Smula limitam-se exclusivamente ao plano econmico ou patrimonial. Todavia, o que era um avano, ante a regra de excluso das entidades familiares, fora do casamento, converteu-se em atraso quando a Smula continuou a ser utilizada aps a Constituio de 1988. Note-se que at mesmo para uma das entidades familiares por ela explicitadas, a unio estvel, continuou sendo aplicada a Smula, como se no fosse famlia e devesse ser considerada uma relao patrimonial, at o advento da Lei n 8.971/94. Houve necessidade de a Lei n. 9.278/96 dizer o bvio, a saber, as questes relativas unio estvel deveriam ser decididas nas varas de famlia, pois tratavam-se de relaes de famlia. O equvoco da aplicao da Smula n 380 unio estvel expandiu-se s demais entidades familiares, em decises consideradas ousadas e avanadas. Com efeito, o fundamento na orientao contida na Smula, ainda quando ela9

Escritos de Derecho Consticional, trad. Pedro Cruz Villalon, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 40.

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MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo no seja claramente indicada, contm um insupervel defeito de origem, pois considera as relaes afetivas como relaes exclusivamente patrimoniais, no regidas pelo direito de famlia. Afinal, que sociedade de fato mercantil ou civil essa que se constitui e se mantm por razes de afetividade, sem interesse de lucro? Assim, a Smula n 380 perdeu sua funo histrica de realizao alternativa de justia, pois o impedimento que visava a superar (excluso das famlias fora do casamento) deixou de existir. 8. Da violao do princpio da dignidade humana, como conseqncia da excluso Por que buscar-se soluo estranha ao direito de famlia, que degrada e amesquinha a dignidade humana? Lembre-se que, segundo conhecida e sempre lembrada lio de Immanuel Kant10, dignidade tudo aquilo que no tem um preo, seja pecunirio seja estimativo, a saber, o que inestimvel, indisponvel, que no pode ser objeto de troca. Diz ele: No reino dos fins tudo tem ou um preo ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preo, pode-se pr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa est cima de todo o preo, e portanto no permite equivalente, ento tem ela dignidade. Os conflitos decorrentes das entidades familiares explcitas ou implcitas devem ser resolvidos luz do direito de famlia e no do direito das obrigaes, tanto os direitos pessoais, quanto os direitos patrimoniais e quanto os direitos tutelares. No h necessidade de degradar a natureza pessoal de famlia convertendo-a em fictcia sociedade de fato, como se seus integrantes fossem scios de empreendimento lucrativo, para a soluo da partilha dos bens adquiridos durante a constncia da unio afetiva, pois o direito de famlia atual adota o modelo, vigorante nos tipos de casamento e unio estvel que deve ser utilizado para os demais tipos - da igual diviso deles, exceto os recebidos por herana ou adoo ou os considerados particulares. Em diversas passagens do captulo dedicado famlia, a Constituio demonstra sua ateno primordial com a dignidade das pessoas que a integram, implicitamente, como acima j destaquei, ou explicitamente ( 7 do art. 226, art. 227, 230). Sujeitos dos deveres so o Estado, a famlia e a sociedade, que devem propiciar os meios de realizao da dignidade pessoal, impondo-se-lhes o reconhecimento da natureza de famlia a todas as entidades com fins afetivos. A excluso de qualquer delas, sob impulso de valores outros, viola o princpio da dignidade da pessoa humana. Para a Constituio (art. 226, 8) a proteo famlia d-se nas pessoas de cada um dos que a integram, tendo estes direitos oponveis a ela e a todos (erga omnes). Se as pessoas vivem em comunidades afetivas no explicitadas no art. 226, por livre escolha ou em virtude de circunstncias existenciais, sua dignidade humana apenas estar garantida com o reconhecimento delas como entidades familiares, sem restries ou discriminaes. 9. Da incluso de entidades familiares implcitas, no STJ10

Cf. Fundamentao da Metafsica dos Costumes, trad. Paulo Quintela, Lisboa, Ed. 70, 1986, p. 77.

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MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo Na apreciao dos casos concretos, com a fora dos conflitos humanos que no podem ser desmerecidos por convices ou teses jurdicas inadequadas, o Superior Tribunal de Justia tem sucessivamente afirmado o conceito ampliado e inclusivo de entidade familiar, notadamente no que concerne aplicao de determinadas leis que tutelam interesses pessoais decorrentes de relaes familiares. Na considerao do que se compreende como entidade familiar prevista na Lei n 8.009/1990, sobre impenhorabilidade do bem de famlia, o Tribunal, para atender aos fins sociais da lei, chegou a incluir os solitrios (singles), at mesmo os solteiros, entre as entidades familiares11. Nessas decises tem prevalecido a tutela das pessoas, cuja moradia imprescindvel para realizao da dignidade humana, sobre qualquer considerao restritiva de entidade familiar. O Tribunal, na aplicao da lei, tem procurado conform-la s normas constitucionais, como se observa no seguinte julgado (R. Especial 205.170-SP, DJ de 07.02.2000): CIVIL. PROCESSUAL CIVIL.LOCAO. BEMDE FAMLIA. MVEIS GUARNECEDORES DA RESIDNCIA. IMPENHORABILIDADE. LOCATRIA/EXECUTADA QUE MORA SOZINHA. ENTIDADE FAMILIAR. CARACTERIZAO. INTERPRETAO TELEOLGICA. LEI 8.009/90, ART. 1 E CONSTITUIO FEDERAL, ART. 226, 4. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. O conceito de entidade familiar, deduzido dos arts. 1 da Lei 8.009/90 e 226, 4 da CF/88, agasalha, segundo a aplicao da interpretao teleolgica, a pessoa que, como na hiptese, separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabilidade, dessarte, proteger os bens mveis guarnecedores de sua residncia. 2. Recurso especial conhecido e provido. Dir-se- que a incluso da pessoa solitria no conceito de entidade familiar relativa, ou seja, para os fins da lei de impenhorabilidade do bem de famlia, no que concordo, na medida em que tenho o princpio da afetividade como fundamental para essa qualificao; afetividade somente pode ser concebida em relao com outro. A situao do que vive s de entidade familiar equiparada, para os fins legais, o que no transforma sua natureza. O maior nmero de decises do STJ volta-se situao de solitrios que so remanescentes de famlias, especialmente os vivos, separados e divorciados. Seja como for (entidade familiar completa ou equiparada), interessa ressaltar o fundamento constitucional do julgado, ou seja, o 4 do art. 226, que, ao tratar da comunidade monoparental, enuncia: Entende-se, tambm, como entidade familiar .... Como acima demonstrado, o significado de tambm inclusivo, e no exclusivo, sendo certa a fundamentao do Tribunal, ainda que para incluir entidade familiar equiparada.

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No Brasil, os singles j atingiam o impressionante percentual de 8,6% de todos os domiclios, em 1999, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domiclios, do IBGE.

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MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo Outro tipo de entidade familiar, apreciada pelo STJ, tutelada pelo art. 226 da Constituio, a comunidade constituda por parentes, especialmente irmos. Veja-se o seguinte julgado (R. Especial 159.851-SP, DJ de 22.06.98): EXECUO. Embargos de terceiro. Lei n 8.009/90. Impenhorabilidade. Moradia da famlia.Irmos solteiros. Os irmos solteiros que residem no imvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteo de impenhorabilidade, prevista na Lei n 8.009/90, no podendo ser penhorado na execuo de dvida assumida por um deles. Sem embargo do fim proposto da impenhorabilidade, a deciso cuida de entidade familiar que se insere totalmente no conceito de famlia do art. 226, pois dotada dos requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade. No h, nesse caso, sociedade de fato mercantil ou civil, e no se poder considerar como tal a comunidade familiar de irmos solteiros. O STJ tambm enfrentou a controvertida situao da famlia decorrente de unio concubinria, em caso de seguro de vida realizado em favor de concubina, por homem casado (R. Especial n 100.888-BA, DJ de 12.03.2001). O caso est bem retratado nos seguintes trechos da ementa: HOMEM CASADO. SITUAO PECULIAR, DE COEXISTNCIA DURADOURA DO DE CUJUS COM DUAS FAMLIAS E PROLE CONCOMITANTE ADVINDA DE AMBAS AS RELAES. INDICAO DA CONCUBINA COMO BENEFICIRIA DO BENEFCIO. (...) II - Inobstante a regra protetora da famlia, consubstanciada nos arts. 1.474, 1177 e 248,IV, da lei substantiva civil, impedindo a concubina de ser instituda como beneficiria de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situao dos autos, que demonstra espcie de bigamia, em que o extinto mantinha-se ligado famlia legtima e concubinria, tendo prole concomitante com ambas, demanda soluo isonmica, atendendo-se melhor aplicao do direito. III Recurso conhecido e provido em parte, para determinar o fracionamento, por igual, da indenizao securitria. A deciso, por outros fundamentos, chega concluso que seria idntica que tivesse utilizado a interpretao constitucional sustentada nesta exposio, sem os equvocos que podem ser assim identificados: a) a deciso entende que se trata de entidades familiares simultneas (refere a duas famlias), no podendo ter havido a fundamentao infraconstitucional referida (Cdigo Civil), como regra protetora da famlia, o que supe a excluso de uma das duas; b) se so duas famlias, no pode uma ser legtima e outra concubinria, pois ambas estariam sob proteo constitucional, sobretudo pelo fato de haver afetividade, estabilidade (coexistncia duradoura) e ostensibilidade (prole); c) as normas infraconstitucionais, que vedam o adultrio - com tendncia ao desaparecimento, conforme a evoluo do direito - devem ser interpretadas em conformidade com as normas constitucionais, ou seja, no excluem essas unies como www.mundojuridico.adv.br11

MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo entidades familiares e tm finalidade distinta, no plano civil (causa de separao judicial) e criminal (em forte desuso). 10. Da unio homossexual como entidade familiar As unies homossexuais seriam entidades familiares constitucionalmente protegidas? Sim, quando preencherem os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade12. A norma de incluso do art. 226 da Constituio apenas poderia ser excepcionada se houvesse outra norma de excluso explcita de tutela dessas unies. Entre as entidades familiares explcitas h a comunidade monoparental, que dispensa a existncia de par andrgino (homem e mulher). A ausncia de lei que regulamente essas unies no impedimento para sua existncia, porque as normas do art. 226 so auto-aplicveis, independentemente de regulamentao. Por outro lado, no vejo necessidade de equipar-las unio estvel, que entidade familiar completamente distinta, somente admissvel quando constituda por homem e mulher ( 3 do art. 226). Os argumentos que tm sido utilizados no sentido da equiparao so dispensveis, uma vez que as unies homossexuais so constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natureza prpria. O argumento da impossibilidade de filiao no se sustenta, pelas seguintes razes: a) a famlia sem filhos famlia tutelada constitucionalmente; b) a procriao no finalidade indeclinvel da famlia constitucionalizada; c) a adoo permitida a qualquer pessoa, independentemente do estado civil (art. 42 do ECA), no impede que a criana se integre famlia, ainda que o parentesco civil seja apenas com um dos parceiros. Os tribunais brasileiros demonstram maior receptividade para atribuio de efeitos s unies homossexuais, ainda que sob a indevida qualificao de sociedade de fato. O Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul julgou caso decorrente da relao homossexual de dois homens, que viveram juntos durante trinta anos. Um deles, que adotou uma menina, deixou patrimnio que foi disputado entre a filha e o outro companheiro. O Tribunal reconheceu, com razo, a existncia da entidade familiar, e segundo o modelo do direito de famlia, decidindo pela meao entre a filha e o companheiro sobrevivente. A justia federal do Rio Grande do Sul tem decidido no sentido de determinar ao INSS a concesso aos parceiros homossexuais dos mesmos benefcios previdencirios devidos aos cnjuges e companheiros de unio estvel13. Alm da invocao das normas da Constituio que tutelam especificamente as relaes familiares, preferidas nesta exposio, a doutrina tem encontrado fundamento para as unies homossexuais no mbito dos direitos fundamentais, sediados no art. 5, notadamente os que garantem a liberdade, a igualdade sem distino de qualquer natureza, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Tais normas12

As legislaes infraconstitucionais estrangeiras que tm regulado as unies homossexuais referem a relao duradoura de afeio mtua, como enuncia a Lei de Unio Civil do Estado de Vermont, Estados Unidos, de abril de 2000. Cf. Walter Wadlington e Raymond C. OBrien (Org.), Family Law Satutes, International Conventionsand UniformLaws, New York, Foundation Press, 2000. 13 As referncias s decises esto contidas em artigo de Roldo Arruda, publicado no endereo eletrnico estadao.com.br, seo Geral, de 9 de abril de 2001. 12 www.mundojuridico.adv.br

MUNDO JURDICO Artigo de Paulo Luiz Netto Lobo assegurariam a base jurdica para a construo do direito orientao sexual como direito personalssimo, atributo inerente pessoa humana14. Concluso Os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituio brasileira no encerram numerus clausus. As entidades familiares, assim entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, esto constitucionalmente protegidas, como tipos prprios, tutelando-se os efeitos jurdicos pelo direito de famlia e jamais pelo direito das obrigaes, cuja incidncia degrada sua dignidade e das pessoas que as integram. A Constituio de 1988 suprimiu a clusula de excluso, que apenas admitia a famlia constituda pelo casamento, mantida nas Constituies anteriores, adotando um conceito aberto, abrangente e de incluso. Violam o princpio constitucional da dignidade da pessoa humana as interpretaes que (a) excluem as demais entidades familiares da tutela constitucional ou (b) asseguram tutela dos efeitos jurdicos no mbito do direito das obrigaes, como se os integrantes dessas entidades fossem scios de sociedade de fato mercantil ou civil. Cada entidade familiar submete-se a estatuto jurdico prprio, em virtude requisitos de constituio e efeitos especficos, no estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quando a legislao infraconstitucional no cuida de determinada entidade familiar, ela regida pelos princpios e regras constitucionais, pelas regras e princpios gerais do direito de famlia aplicveis e pela contemplao de suas especificidades. No pode haver, portanto, regras nicas, segundo modelos nicos ou preferenciais. O que as unifica a funo de locus de afetividade e da tutela da realizao da personalidade das pessoas que as integram; em outras palavras, o lugar dos afetos, da formao social onde se pode nascer, ser, amadurecer e desenvolver os valores da pessoa. No se pode enxergar na Constituio o que ela expressamente repeliu, isto , a proteo de tipo ou tipos exclusivos de famlia ou da famlia como valor em si, com desconsiderao das pessoas que a integram. No h, pois, na Constituio, modelo preferencial de entidade familiar, do mesmo modo que no h famlia de fato, pois contempla o direito diferena. Quando ela trata de famlia est a referir-se a qualquer das entidades possveis. Se h famlia, h tutela constitucional, com idntica atribuio de dignidade.COMO CITAR: LBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para alm do numerus clausus. Disponvel na Internet: . Acesso em xx de xxxx de xxxx. (Substituir xxxx pela data de acesso ao artigo)Artigo publicado no site Mundo Jurdico (www.mundojuridico.adv.br) em 05 de janeiro de 2002

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Cf. Luiz Edson Fachin, Aspectos Jurdicos da Unio de Pessoas do Mesmo Sexo, RT 732/48. No mesmo sentido, Maria Celina Bodin de Moraes, A Unio Entre Pessoas do Mesmo Sexo: Uma Naslise sob a Perspectiva Civil-Constitucional, Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 1, jan/mar 2000, p. 89-112.

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