Ensaios Para o Ensino
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Daiane Martins Rocha
Jason de Lima e Silva
Evandro Oliveira de Brito
(organizadores)
Promoção Grupo de Pesquisa
Filosofia, Arte e Educação UFSC
ENSAIOS PARA O ENSINO DE FILOSOFIA
Parceiro Editorial Centro Universitário Municipal de São José
USJ
2015
ENSAIOS PARA O ENSINO DE
FILOSOFIA
Daiane Martins Rocha
Jason de Lima e Silva
Evandro Oliveira de Brito
(organizadores)
ENSAIOS PARA O ENSINO DE
FILOSOFIA
São José CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ 2015
CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ - USJ
Reitora: Elisiane C. de Souza de F. Noronha
EDITORA CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ
Editor Conselheiro: Evandro Oliveira de Brito Assessor editorial: Débora Medeiros
COMISSÃO EDITORIAL
ACADÊMICA
Adarzilse Mazzuco Dallabrida
Carolina Ribeiro Cardoso da Silva
Fernando Mauricio da Silva
Keila Villamayor Gonzalez Jason de Lima e Silva
José Cláudio Morelli Matos Maria Solange Coelho
Rogério Tadeu Lacerda Vera Regina Lúcio
EDITORA ASSISTENTE Zuraide Silveira
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Assessoria de Comunicação USJ
CAPA: Evandro O. Brito
“Gota de orvalho” de Escher, 1948. REVISÃO: Organizador
FICHA CATALOGRÁFICA Coordenação de Biblioteca do USJ
Atribuição - Uso Não-Comercial Vedada a Criação de Obras Derivadas
100
R672e
Ensaios para o ensino de filosofia / Daiane Martins
Rocha, Jason de Lima e Silva, Evandro Oliveira
de Brito – 1 ed. – São José : Centro Universitário
Municipal de São José, 2015.
173 p.
ISBN 978-85-66306-13-2 (e-book)
Inclui bibliografia
1. Filosofia – Estudo e ensino. 2. Estágios
supervisionados. 3. Prática de ensino. I.
Rocha, Daiane Martins. II. Silva, Jason L.
III. Brito, Evandro O. IV. Título.
CDD 100
A filosofia não é uma habilidade para
exibir em público, não se destina a servir
de espetáculo; a filosofia não consiste em
palavras, mas em ações. O seu fim não
consiste em fazer-nos passar o tempo com
alguma distração, nem em libertar o ócio
do tédio. O objetivo da filosofia consiste em
dar forma e estrutura à nossa alma, em
ensinar-nos um rumo na vida, em orientar
os nossos atos, em apontar-nos o que
devemos fazer ou pôr de lado, em sentar-se
ao leme e fixar a rota de quem flutua à
deriva entre escolhos.
Sêneca
7
SUMÁRIO Apresentação Jason de Lima e Silva e Daiane Martins Rocha ................... 09 Por que e como ensinar filosofia no ensino médio? Ou Sócrates contra Eichmann: educar para o pensar ou para o não pensar? Helder Félix Pereira de Souza .............................................. 17 The Wall: uma reflexão acerca do mecanicismo escolar e o ensino de filosofia Felini de Souza ..................................................................... 43 É possível a filosofia no ensino médio? Como é possível? Vinicius Arion Aliende Palongan de Oliveira ....................... 57 Uma possibilidade para o ensino de filosofia atual: o intercruzamento kathegeliano em dois atos Lucas Beligni Campi ............................................................. 69 Ensino da filosofia: um exercício antropofágico Thor João de Sousa Veras .................................................... 79 O “ensinar a filosofar” e o filosofar sobre sexualidade: uma proposta pedagógica para a filosofia enquanto processo de criação conceitual de gilles deleuze e félix guattari e o corpo lascivo em Merleau-Ponty Diego Luiz Warmling .......................................................... 101
8
Os desafios do ensino de filosofia para o ensino médio Michelle Ramunno Monteiro ............................................ 115 Sobre o ensino de filosofia no ensino médio Guilherme Damin Bortoli .................................................. 125 Filosofia no ensino médio: sim, uma experiência possível Aldo Félix Barreto .............................................................. 141 Compreensão prévia e filosofia no ensino Flávio Ricardo da Silva ....................................................... 153 A importância do estudo dos textos clássicos nas aulas de filosofia do ensino médio: reflexões acerca da docência em filosofia Yuri Galvão Oberlaender de Almeida ................................ 163
9
APRESENTAÇÃO
Os ensaios deste livro foram produzidos pelos
estagiários do curso de Licenciatura em Filosofia da UFSC, em
2014, a partir de dois campos de atuação: o Instituto Federal de
Santa Catarina (IFSC) e o Colégio Aplicação da UFSC.
O trabalho de supervisão desses estagiários, ou seja, o
trabalho de acolhimento na escola e acompanhamento na sala
de aula, devemos a quatro pessoas, sem as quais a formação
filosófica dos estudantes careceria da excelência que a
experiência humana e coletiva nos dá, nesta tarefa de tornar-se
professor, a cada encontro, na escuta e na palavra. São elas:
Sandro Ricardo Rosa e Leonardo Francisco Schwinden, do
Colégio de Aplicação, e Eliodória Ventura e Eliéser Spereta,
do IFSC. A essas pessoas deixamos nossos mais sinceros
agradecimentos: pelo trabalho de formação na escola e de
diálogo permanente com a universidade.
A experiência em sala, desde a etapa da observação e
assistência até o momento da prática de ensino, despertou nos
estagiários e estagiárias o interesse em muitos dos problemas
que integram o nosso sistema escolar, sobretudo no que diz
respeito à possibilidade de se ensinar Filosofia (o que significa
também a possibilidade de o discurso filosófico produzir algum
efeito sobre aqueles que não escolheram a filosofia como modo
de vida e/ou profissão). Assim, tais ensaios expressam o
trabalho de o estagiário primeiramente se situar como sujeito
na escola, entre outros sujeitos, segundo a ordem de disciplinas
e de saberes que regulamentam o tempo e o espaço de cada
qual; esse esclarecimento põe ao mesmo tempo em jogo o
desafio de se constituir uma forma de saber cuja razão é
justamente problematizar a realidade (como algo
evidentemente conhecido ou inquestionável) e a ocasião de se
fazer do encontro, num tempo e espaço previamente dados, o
princípio de uma experiência de pensamento e liberdade entre
Jason de Lima e Silva Daiane Martins Rocha
10
outros. Nada disso, claro, é tão simples, nem seguramente
garantido. Depende em parte da compreensão do que fazemos
(ou do que é possível fazer) onde estamos, em parte também do
quanto o outro está aberto à experiência de aprender a ser livre
ao questionar o que pensa ou julga ser.
Abrimos essa edição com o ensaio de Helder Félix
Pereira de Souza, Por que e como ensinar Filosofia no Ensino
Médio? Ou Sócrates contra Eichman: Educar para o pensar
ou para o não pensar? Nesse texto, somos levados a questionar
o sentido da educação após Auschwitz (os campos de
concentração do Terceiro Reich). Para o filósofo Theodor
Adorno, a razão de educar se daria no evitar a barbárie.
Considerando as possíveis implicações da análise de Hannah
Arendt sobre o julgamento de Eichmann, são pensadas duas
formas fundamentais de educação, segundo duas espécies de
formação: o “tipo Eichmann”, que corresponde à produção de
indivíduos prontos a obedecer a seus superiores, sem pensar o
quanto esses atos seriam bons ou ruins para si e para outros; e o
“tipo Sócrates”: a atividade educacional teria como base um
caráter mais reflexivo, compreendido tanto pelo conhecimento
de si, quanto pelas implicações das escolhas e ações individuais
sobre a humanidade como um todo. Cabem ainda as críticas de
Nietzsche a Sócrates e Platão, no sentido de considerar o
pensamento reflexivo e moral o princípio para nos converter
em animais de rebanho, ao invés de liberar o animal guerreiro.
Como essas questões podem nos levar a uma postura em sala
de aula no que se refere ao ensino de Filosofia? Que métodos
poderíamos utilizar para alcançar os objetivos propostos, os
quais, como proposto nesse artigo, opõem-se a uma educação
que produza indivíduos do “tipo Eichmann”?
Em seguida, lemos o ensaio de Felini de Souza,
intitulado The Wall: Uma reflexão acerca do mecanicismo
escolar e o ensino de Filosofia, no qual somos provocados pelo
clássico filme The Wall, do diretor Allan Parker (1982),
Apresentação
11
baseado no sucesso da banda Pink Floyd: trata-se de questionar
o ensino enciclopédico que reprime a criatividade e a diferença
entre os estudantes, o qual, por sua vez, impossibilita o
exercício filosófico propriamente dito. Em tom bastante
provocativo e instigante, o ensaio traz várias críticas ao nosso
sistema de educação atual, de tal modo que aponta a outro
direcionamento: rumo a uma educação para a reflexão e
liberdade. E nesse sentido, retoma e atualiza muito do legado
de nosso mestre Paulo Freire.
Vale também conferir É possível a Filosofia no
Ensino Médio? Como é possível?, de Vinicius Arion de
Oliveira, quem pensa nossa aptidão filosófica desde a mais
tenra idade. As questões mais básicas feitas por nós quando
crianças, assim, corresponderiam a um exercício filosófico
natural a nós seres humanos, o qual pode e deve ser
incentivado na adolescência. Por quê? Justamente para que tais
questionamentos e dúvidas não sejam rejeitados como meros
“porquês”, mas se tornem princípios para mudanças de
pensamento e atitude frente ao mundo.
Lucas Beligni Campi abre o ensaio Uma possibilidade
para o ensino de Filosofia no modelo atual: o intercruzamento
Kanthegeliano em dois atos com um poema de sua autoria
sobre o exercício filosófico em sala de aula: ressignificação de
si e do outro durante o processo de ensino. Campi direciona seu
artigo para a defesa de um modelo Kanthegeliano do exercício
de Filosofia no ensino médio, o que consistiria numa
compatibilização tanto da proposta kantiana, de um ensino que
proporcione o exercício da autonomia aos educandos, quanto
da abordagem historicista da Filosofia, que é atribuída a Hegel,
já que toda a tradição filosófica, com os dilemas e as grandes
questões da humanidade investigados, não devem ser
ignorados. O foco é, sobretudo, ir além da história da filosofia,
fazendo com que o exercício filosófico ocorra em sala de aula,
e que as ferramentas para a construção de um raciocínio sólido
Jason de Lima e Silva Daiane Martins Rocha
12
e bem argumentado sejam alcançadas nas aulas (em razão do
que os professores partem dos clássicos da história da
Filosofia). O objetivo não é de pouca importância: permitir ao
estudante de ensino médio, através das aulas de Filosofia, viver
um processo de ressignificação de sua existência, de modo a
fortalecer o seu pensar para o enfrentamento diário dos
próprios problemas.
No ensaio Ensino da Filosofia: Um exercício
Antropofágico, Thor João de Sousa Veras parte do que ele
nomeia uma “pedagogia da devoração”, inspirada no manifesto
antropofágico de Oswald de Andrade, e que se serve de quatro
etapas (aperitivação, deglutição/devoração, digestão e
transformação). Etapas que muito lembram os escritos de
Sílvio Gallo a propósito do ensino da filosofia, embora aqui
esteja em jogo uma apropriação da arte como recurso
fundamental para afetar os alunos “com a filosofia, na filosofia
e para a filosofia”, contando ainda com o suporte da história da
filosofia e a construção de conceitos.
Em O ensinar a filosofar e o filosofar sobre a
sexualidade, de Diego Luiz Warmling, somos instigados a
pensar em como trabalhar a questão da sexualidade nas aulas
de Filosofia, a partir de Merleau-Ponty e seus escritos sobre a
relação do sujeito com o seu corpo, sua reação à dor e ao
prazer, o que importaria à formação da estrutura subjetiva do
indivíduo enquanto tal. Partindo de questionamentos como “o
que vocês entendem por relações afetivas?”, “existe, de fato, o
que podemos entender por uma sexualidade normal? Se existe,
o que pode ser definido como tal?”, o ensaio reforça a
importância do ensino de filosofia como construção de
conceitos, e esboça alguns caminhos para se pensar no ensino
médio o conceito de sexualidade.
Michelle Ramunno Monteiro, no ensaio Os desafios
do ensino de Filosofia para o Ensino Médio, descreve a
aparente falta de interesse dos estudantes nas aulas de filosofia
Apresentação
13
como um dos principais desafios que se apresentam aos
professores de ensino médio, situação que foi “desmistificada”
com a aplicação de um questionário que indagava estudantes
acerca de temas que lhes interessariam. Os resultados foram
surpreendentes, pois levam a perceber que o desinteresse não é
em relação à filosofia em si, mas ao modo como ela tem sido
trabalhada em sala de aula. Como é defendido no artigo, a
atividade filosófica no ensino médio não se trata somente de
transmitir informações ou conceitos, mas também de incitar a
reflexão acerca das questões universais que a Filosofia aponta,
o que pode ser feito pautando o plano de ensino em três
aspectos: problematizar, conceituar e argumentar.
Com o ensaio Sobre o ensino de Filosofia no Ensino
Médio, Guilherme Bortoli, apresenta Sócrates como o
professor de filosofia por excelência. Investiga sua formação e
seus métodos, bem como a importância de o professor ter uma
“atitude filosófica” que possa levar seus interlocutores a
“ascese do pensamento”, sobretudo segundo o uso da dialética.
E ainda temos o ensaio Filosofia no Ensino Médio:
Sim, uma experiência possível, de Aldo Félix Barreto, que traz
algumas experiências de sala de aula e reflexões do professor
supervisor sobre a possibilidade e função da Filosofia no
ensino médio, bem como a responsabilidade atribuída a essa
disciplina e ao professor pelos PCN’s (Parâmetros Curriculares
Nacionais) e OCN’s (Orientações Curriculares Nacionais para
o ensino de Filosofia).
Acerca da Compreensão prévia e filosofia no ensino
médio, Flávio Ricardo da Silva sustenta ser a filosofia possível
por conta de sermos e estarmos sempre em contato com o
mundo, de modo que o existir, como seres conscientes, se torna
o princípio da própria filosofia. Através de alguns exemplos
práticos de formas para se trabalhar em sala de aula, o ensaio
coloca a filosofia como aquela que “abre o jovem para a
Jason de Lima e Silva Daiane Martins Rocha
14
possibilidade de ressignificação e enriquecimento da própria
experiência no mundo”.
Por fim, o ensaio A importância do estudo dos textos
clássicos nas aulas de Filosofia do ensino médio: reflexões
acerca da docência em filosofia, de Yuri de Almeida, provoca
reflexões sobre a situação do ensino de Filosofia após 2008,
quando se tornou obrigatório novamente, com a
responsabilidade de “ajudar a formar cidadãos”. O artigo nos
chama atenção ainda para o déficit de formação adequada de
professores, visto que muitas vezes o foco dos cursos de
filosofia é o da pesquisa acadêmica e não o da formação de
professores. Também observa o quanto é recente o crescimento
no número de material didático de filosofia. A proposta do
artigo é, sobretudo, mostrar o quanto o estudo dos clássicos
poderia iluminar o ensino de filosofia atualmente, tais como
Platão e Aristóteles, através dos problemas levantados por
esses grandes autores, de modo a tornar possível o exercício do
pensamento crítico e efetivamente encorajada a tal “educação
para a cidadania”.
Muitos contribuíram para a realização deste livro, a
começar pelos próprios estagiários, que se serviram de uma
experiência em razão da qual a vida profissional é precedida
pelo risco de se colocar diante de outros, convencer-se do que
se faz como algo que tem algum sentido e pode dar algum
sentido àqueles que encontra, reconhecer que o tempo no fim
das contas oprimiu e que lamentavelmente não foi possível
falar e discutir tudo o que pensou antes e depois de um
encontro, mas também descobrir que a inclinação solitária e
filosófica pode ser reforçada pela solidariedade de alguns, ao
lembrar ter sido despertada certa apatia ou concentrada a
euforia. Dar-se conta de que o mundo é mundo no seu devir e
fazer filosofia, dar-se a pensar e dar a pensar, eis a diferença,
no trabalho entre os jovens de um mundo que nos dá tantas
coisas quantas poucas boas ideias, as ideias com as quais
Apresentação
15
fazemos mais digna nossa condição tão frágil. A esses
primeiramente agradecemos, os acadêmicos com quem
aprendemos a generosidade de que ensinar é estar cercado de
olhares e distrações, e por isso mesmo o esforço para se
produzir e perceber o entusiasmo que nos dá o pensar.
Agradecemos de modo especial a todos os
professores e idealizadores do LEFIS (Laboratório
Interdisciplinar de Ensino de Filosofia e Sociologia), por
proporcionarem o debate e a integração entre pesquisadores e
professores do ensino médio e das licenciaturas de Filosofia e
Sociologia. Nossos agradecimentos ao professor Alberto
Cupani, que incentivou e amparou os estagiários durante o ano,
em reuniões na universidade e no colégio, além de ter se
dedicado à leitura crítica de seus ensaios.
Boas leituras!
Jason de Lima e Silva
Daiane Martins Rocha
17
POR QUE E COMO ENSINAR FILOSOFIA NO ENSINO
MÉDIO? OU SÓCRATES CONTRA EICHMANN:
EDUCAR PARA O PENSAR OU PARA O NÃO
PENSAR?
Helder Félix Pereira de Souza
1. Introdução
A primeira parte do ensaio desenvolve a noção de
ausência do pensar caracterizada pela figura do tipo Eichmann
como perigo para a existência da humanidade. Problema atual
em nossa época e que foi enfatizada pela pensadora alemã
Hannah Arendt, mas também em coro com Heidegger, Adorno
e outros autores que refletiram sobre o período pós-guerra e os
riscos da homogeneização do ser.
Por outro lado, a segunda parte destaca a importância da
presença do pensar representada pela figura do tipo Sócrates
como capaz de cultivar a pluralidade humana. Ou seja, o
autoexame, o exame de si, a reflexão ou o pensar, como o
elemento que cuida e possibilita a convivência entre homens no
singular e no plural, combinando a diferença e a identidade.
Na terceira parte o pensar socrático e o não-pensar
eichmaniano são contrapostos a fim de destacar a importância
de manter ativo o pensar para evitar a instalação do horror
totalitário e a perpetuação da barbárie. Apontando como
possível resposta ao por que ensinar filosofia no ensino médio
a aposta no ensino de filosofia na educação básica brasileira
Helder Félix Pereira de Souza
18
como uma abertura ao pensar ou filosofar para evitar a perda
da pluralidade do mundo humano.
Aceitando tal aposta na educação filosófica como o
exercício do filosofar, a quarta parte busca indicar algumas
maneiras de como ensinar filosofia no ensino médio. Assim,
são destacadas algumas táticas experimentadas durante o
estágio I e II e que são de grande serventia para quem ousa
ensinar filosofia.
Por fim, algumas considerações finais.
2. O tipo Eichmann e o não-pensar
Se pensarmos com Heidegger (1973), Hannah Arendt
(2010, 2011a), Adorno (2000) etc., grande parte dos
pensadores do século passado aceitam o acontecimento da
segunda grande guerra, o evento totalitário, os campos de
concentração, como marcos na história da humanidade que não
podemos simplesmente esquecer, mas cuidar para que não se
instalem novamente. Mesmo que a ameaça do totalitarismo
pretenda sempre desertificar o mundo humano, como destaca
Arendt (2011b), a nossa época exige um esforço para que o
mundo não seja esvaziado.
Mas, qual a relação entre o risco de perdermos o mundo
e a educação, especificamente, o ensino da filosofia na
educação?
Se pensarmos com Arendt que, apesar de ter tratado
diretamente muito pouco o tema da educação, é possível
detectar, ao menos indiretamente, em seus textos, uma
preocupação com a continuidade do mundo e
consequentemente com a educação, ainda mais ao desenvolver
as noções de amor mundi (ALMEIDA, 2009) e “banalidade do
mal” (ARENDT, 2010), ou seja, do amor ao mundo do qual
pertencemos no plural e no singular e o risco de perdermos o
Por que e como ensinar filosofia
19
mundo pela ausência do pensamento reflexivo. A inserção da
filosofia na educação pode ser um caminho para ampliar ainda
mais a reflexão na formação dos alunos e estimular ainda mais
tal postura entre os professores, os cidadãos e a sociedade,
contribuindo para que o mundo não seja totalmente
desertificado pela ausência de pensamento.
Hannah Arendt, influenciada por Heidegger1 (1973) que
apontou sobre a importância da tarefa do pensamento que se
abria com os acontecimentos do século passado e também pelo
espírito de sua época do pós-guerra, voltou seus esforços para
realizar uma espécie de ontologia do presente na medida em
que buscava pensar o que estamos fazendo. Tal postura
arendtiana se intensifica após suas reflexões sobre o
julgamento do alemão nazista Adolf Eichmann (2011a)
realizado em Jerusalém em 1961.
1 É importante destacar o fato curioso de Heidegger ter participado do
nazismo por alguns meses, se afastando depois. Alguns autores criticam tal
postura do grande filósofo alemão e, sobretudo, detectam elementos
totalitários em suas obras. Pensemos se a abertura ao pensar não seria
também uma armadilha em que a humanidade caiu e não consegue escapar,
como Nietzsche (2010) alertava sobre o engodo em que Sócrates nos
colocou ao implantar o gérmen do pensamento reflexivo e moral, que nos
torna animais de rebanho ao invés de liberar o animal guerreiro. Mesmo
agora, nesta pequena nota, refletindo sobre isso, não conseguimos escapar
do pensar e do pensamento. Talvez isso seja uma condição que não
podemos mais deixar de lado, ainda mais que “onde mora o perigo é lá que
também cresce o que salva” (HEIDEGGER, 2012, p.37). Por esse motivo,
como veremos mais a frente, o ensino da filosofia no ensino médio é um
estímulo à atividade do pensar contra a ausência do pensamento, sendo uma
aposta no modo de ser socrático frente ao maior perigo de tipos Eichmann
de ser, que não pensam. Antes ser um animal de rebanho pensante do que
um animal de rebanho não pensante que pode colocar em risco todo o
rebanho, ainda mais em tempos no qual o homem manipula cientificamente
experimentos capazes de aniquilar sua própria existência, tal como os
experimentos físico-nucleares, químicos, biológicos e também as
tecnologias sociais. Antes de fazer ou agir cegamente é melhor pensar duas
vezes ou três vezes mais.
Helder Félix Pereira de Souza
20
A partir do contato com Eichmann, sua vida e sua
postura no julgamento, Arendt e muitos outros ficaram
espantados ao encontrar uma figura comum no banco dos réus.
Um pai de família normal, com círculo de colegas e laços de
amizade como qualquer outra pessoa, bem diferente do
monstro nazista e cruel que muitos esperavam encontrar.
A questão que espantava Arendt é como Eichmann,
uma pessoa tão normal, foi capaz de organizar a logística da
solução final identificando e transportando milhares de
pessoas, enviando-as para a morte nos campos de concentração
sem muito se importar? A pensadora alemã destaca a hipótese
de que o respectivo tenente-coronel nazista era incapaz de
refletir sobre suas ações, de pensar sobre o que estava fazendo,
ponderar o bem e o mal daquilo que ele fazia.
O que mais assustou Arendt foi a extrema obediência de
Eichmann às ordens do Führer e a sua completa normalidade
diante do assassínio em massa que organizou e cuidou
enquanto burocrata e que alegava somente cumprir ordens. “O
problema com Eichmann era exatamente que muitos eram
como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos,
mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais”
(AREDNT, 2011a, p.299).
No nazismo o mais importante era o cumprimento
estrito do dever, ou seja, as leis do Estado que emanavam
diretamente das palavras de Hitler e adquiriam força de lei
devendo ser realizadas cegamente. Tais ordens eram
rigorosamente e eficientemente cumpridas pelos nazistas, em
que o certo era cumprir ordens, mas não pensá-las, mesmo que
implicasse em aniquilar milhares de pessoas.
Os atos eram monstruosos, mas o agente – ao
menos o que estava em julgamento – era
bastante comum, banal, e não demoníaco ou
monstruoso. Nele não se encontrava sinal de
firmes convicções ideológicas ou de motivação
Por que e como ensinar filosofia
21
especificamente más, e a única característica
notória que se podia perceber tanto em seu
comportamento anterior quanto durante o
próprio julgamento sumário de culpa que o
antecedeu era algo de inteiramente negativo:
não era estupidez, mas irreflexão. No âmbito
dos procedimentos da prisão e da corte
israelenses, ele funcionava como havia
funcionado sob o regime nazista; mas, quando
confrontado com situações para as quais não
havia procedimentos de rotina, parecia
indefeso, e seus clichês produziam na tribuna,
como já haviam evidentemente produzido em
sua vida funcional, uma espécie de comédia
macabra. Clichês, frases feitas, adesão a
códigos de expressão e conduta convencionais e
padronizados têm a função socialmente
reconhecida de proteger-nos da realidade, ou
seja, da exigência de atenção do pensamento
feita por todos os fatos e acontecimentos em
virtude de sua mera existência. Se
respondêssemos todo o tempo a essa exigência,
logo estaríamos exaustos; Eichmann se
distinguia do comum dos homens unicamente
porque ele, como ficava evidente, nunca havia
tomado conhecimento de tal exigência. Foi essa
ausência de pensamento – uma experiência tão
comum em nossa vida cotidiana, em que
dificilmente temos tempo e muito menos desejo
de parar e pensar – que despertou meu
interesse (ARENDT, 2010, pp.18-19).
O sociólogo e filósofo Zigmunt Bauman (2014, p. 78)
aponta que Eichmann era o modelo perfeito de burocrata,
cidadão, cumpridor dos deveres que mantinha-se o mesmo
tanto em casa ou no trabalho, capaz até mesmo de em
momentos livres executar metodicamente algumas sonatas de
Brahms sem cometer erros. Pensando nos dias de hoje ele seria
o modelo de trabalhador perfeito ou “o orgulho de uma
prestigiosa firma europeia (incluindo, pode-se acrescentar, as
Helder Félix Pereira de Souza
22
empresas com grandes proprietários ou grandes executivos
judeus)”.
O oficial nazista não nutria ódio intenso ou preconceito
contra os judeus, apesar de os enxergar como “objetos que
deveriam ser, por exigência de sua repartição, devidamente
manejados” (BAUMAN, 2014, p.79). Curiosamente, ele cita
Kant em seu julgamento ao fundamentar a sua aceitação
rigorosa das leis e que Arendt (2011a) ironicamente atesta a
superficialidade da sua leitura dado que a sua versão do
imperativo categórico estaria corrompida pelo fato de colocar
em risco a pluralidade humana e que Eichmann fora incapaz de
ponderar reflexivamente.
No entanto, a constatação de Arendt sobre o modo de
ser de um agente nazista, tomando como modelo o modo de ser
do burocrata Eichmann, causa espanto na medida em que
relacionamos com o nosso cotidiano atual. Em nossa vida
parece que mais reproduzimos mimeticamente
comportamentos do que agimos com espontaneidade, ou seja,
nos acostumamos facilmente a aceitar uma ordem ou uma lei,
repetir gestos, comportamentos, frases de efeito e clichês, sem
ao menos refletir sobre elas próprias e mais ainda sobre suas
causas e consequências. “Isso levou alguns observadores a
supor que na maioria das pessoas, se não em todas, vive um
pequeno SS esperando para vir à tona [...]” uma espécie de
“‘Eichmann latente’ escondido no homem comum”
(BAUMAN, 1998, p.195).
Se dirigirmos a perspectiva para o meio educacional
brasileiro e lembrarmos os inúmeros modos de se ensinar,
constataremos que boa parte do ensino e aprendizagem se foca
na repetição mimética de clichês. Na filosofia, um âmbito que
por excelência nos deveria estimular o pensar, não é tão
diferente como aponta o professor Geraldo Balduíno Horn
visto que “o ensino institucional e formal da Filosofia sempre
serviu ao estabelecimento e manutenção de forças hegemônicas
Por que e como ensinar filosofia
23
que buscavam neutralizar ou mesmo anular qualquer
possibilidade de formação humana crítica e autônoma”(2009,
p.19).
O professor Silvio Gallo (2012) tece também diversas
críticas sobre a forma de ensino mecânico e acelerado,
característico de nossa época e que tem em vista a mera
repetição de conceitos e aplicação em prova, deixando de lado
a reflexão que exige tempo e paciência. Reforçando a crítica, o
professor Alejandro Cerletti aponta os cuidados que se deve ter
no ensino da filosofia para que não sejam “simples técnicos
que apenas aplicam receitas ideadas por especialistas” (2009,
p.78) e nem repetidores de propostas de ensino, deixando de
lado os contextos e as particularidades dos cursos e dos alunos.
Enfim, Nietzsche em seus primeiros escritos já havia
criticado essa forma de ensino de filosofia que causa mais
repugnância à filosofia do que aproximação:
[...] pense-se em uma cabeça juvenil, sem muita
experiência da vida, em que cinquenta sistemas
em palavras e cinquenta críticas desses sistemas
são guardados juntos e misturados – que aridez,
que selvageria, que escárnio, quando se trata de
uma educação para a filosofia! Mas, de fato,
todos reconhecem que não se educa para ela,
mas para uma prova de filosofia: cujo resultado,
sabidamente e de hábito, é que quem sai dessa
prova – ai, dessa provação! – confessa a si
mesmo com um profundo suspiro: ‘Graças a
Deus que não sou filósofo, mas cristão e
cidadão do meu Estado! (NIETZSCHE, 1974,
p.89).
Parece que essa forma de ensino educa para formar
tipos Eichmann de ser. Tipos normais, comuns, incapazes de
pensar por si, mas somente obedecer. Dotados de uma extrema
normalidade e que em momentos extremos podem colocar em
risco a existência da humanidade, pois irrefletidamente são
Helder Félix Pereira de Souza
24
capazes de cometer crimes contra o gênero humano pelo fato
de não saberem ou sentirem “que estão agindo de modo
errado” (ARENDT, 2011a, p.299).
Kant, já havia alertado para essa forma de educação em
que foca somente no treino/adestramento dos indivíduos. O
pensador de Köningsberg enfatiza que “não é suficiente treinar
as crianças; urge que aprendam a pensar.” (1996, p.28) e diz
que na filosofia2 é possível aprender a filosofar, ou seja,
estimular o exercício do pensamento, mas não ensinar um
pensamento filosófico, a não ser historicamente (2001). E tal
atividade se dá praticando “o método de Sócrates” (1996,
p.75): a maiêutica.
Parece que para fugir dos clichês, da mimética
irrefletida, da obediência incondicional e cega que caracterizam
uma educação para formar tipos como Eichmann, a reflexão
praticada com a maiêutica socrática é capaz de conter o perigo
de tal irreflexão que pode colocar em risco a pluralidade
humana.
3. O tipo Sócrates e o pensar
Como muito bem observa o professor Cléber Duarte
Coelho (2014), a maioria dos filósofos tomam Sócrates como o
um modelo de educador. Ou seja, Sócrates é um exemplo de
homem que além cumprir seus deveres, respeitar as leis, é
capaz de pensar reflexivamente e instigar as pessoas a pensar,
sendo um médico de si e também dos outros.
2 É importante destacar que a tarefa da reflexão é objetivo comum a todos
os saberes, não só da filosofia, mas das diversas outras disciplinas. A
diferença é que a tarefa por excelência da filosofia que defendemos é a de
manter ativa a atividade do pensar e refiná-la cada vez mais ao aproximar os
âmbitos da ciência, da arte e da própria filosofia, assim como da vida.
Por que e como ensinar filosofia
25
Não é de pouca consideração que o próprio Platão se
utiliza de Sócrates para difundir a filosofia em diálogos e mais
à frente Kant o elege como o modelo de educador que difunde
a atividade do filosofar através da maiêutica.
Em passagens finais da Crítica da razão pura de Kant
discorre sobre a filosofia e o filosofar dizendo que: “Entre
todas as ciências racionais (a priori) só é possível, por
conseguinte, aprender a matemática, mas nunca a filosofia (a
não ser historicamente): quanto ao que respeita à razão, apenas
se pode, no máximo, aprender a filosofar” (2001, p.672).
Por esse motivo, podemos pensar sobre os pensamentos
filosóficos e seus conceitos, mas não ter como certo e acabado
alguma ideia filosófica. Isso indica que há na compreensão
filosófica de Kant um aspecto mais originário e fundamental da
filosofia como uma atividade do filosofar, muito diferente de
uma concepção demonstrativa e puramente expositiva no seu
ensino. Segundo o professor e grande intérprete de Kant,
Leonel Ribeiro dos Santos,
Kant tem da prática filosófica uma concepção
essencialmente investigativa e inventiva. Todo
aquele que pensa deve chegar à verdade por si
mesmo, servindo as opiniões alheias apenas de
matéria para o exercício do próprio talento
filosófico. A verdade filosófica não está feita
nem dada em parte alguma. Cada qual a extrai
da sua própria razão e a legitima perante a
própria razão. E é neste sentido que se deve
entender a afirmação kantiana, tão
frequentemente repetida, segundo a qual não se
aprende Filosofia, mas aprende-se a filosofar,
não se ensinam pensamentos, mas ensina-se a
pensar (SANTOS, 2013, p.132).
O apontamento do filósofo português evidencia a
importância de Kant com a atividade inesgotável do
pensamento que não se limita à mera imitação e repetição de
Helder Félix Pereira de Souza
26
outros pensamentos, como muitas vezes constatamos nas aulas
de filosofia, mas extrapola esses limites e expande tal atividade
através do filosofar por si.
Como dito anteriormente, é neste sentido que a
filosofia adquire seu caráter mais elementar: a maiêutica
socrática, em que a tarefa fundamental da filosofia enquanto
atividade do filosofar é a de ser parteira de pensamentos. No
caso do ensino da filosofia aos jovens, a estratégia básica
implica em extrair conhecimentos dos alunos: que se “dê a luz
o que tem dentro acerca do saber” (PLATÃO, 2010, p.265) tal
como exemplarmente fazia Sócrates, e não somente introduzi-
los.
Transferir conceitos abstratos dos pensadores da
filosofia, se é que isto é possível, é uma tarefa complexa e
maçante para os jovens no ensino médio, que estão sendo
inseridos no universo da filosofia e muitos deles tendo o seu
primeiro contato com tal saber. Portanto, trabalhar de forma
leve os conceitos, priorizando o filosofar através da maiêutica
socrática é um caminho possível para a filosofia no ensino
médio brasileiro.
Hannah Arendt também aceita Sócrates como uma
espécie de tipo ideal de homem e pensador, na medida em que
convida a todos ao autoexame ou a reflexão:
[...] um pensador que tenha permanecido
sempre um homem entre homens, que nunca
tenha evitado a praça pública, que tenha sido
um cidadão entre cidadãos, que não tenha feito
nem reivindicado nada além do que, em sua
opinião, qualquer cidadão poderia e deveria
reivindicar.[...] decidido dar a vida não por um
credo ou uma doutrina específica – ele não
tinha nenhum dos dois - , mas simplesmente
pelo direito de examinar as opiniões alheias,
pensar sobre elas e pedir a seus interlocutores
que fizessem o mesmo (2010, pp.189-190).
Por que e como ensinar filosofia
27
Pensar o que estamos fazendo, realizar uma ontologia
do presente, exercitar o autoexame, são atividades sinônimas
ao cuidado de si e que se constitui também em uma espécie de
cuidado do outro (FOUCAULT, 2011), podendo servir como
um antídoto ao perigo do totalitarismo ou para que Auschwitz
não se repita (ADORNO, 2000). Em outras palavras, o modelo
socrático de ser, que estimula a atividade reflexiva como
postura de vida, se fomentada também no ensino da filosofia
como convite ao filosofar, pode contrapor-se a ausência de
pensamento ou a incapacidade de pensar o que fazemos,
característica de tipos Eichmanns de ser ou de uma educação
meramente instrumental, que busca o conhecimento pelo
conhecimento e o homem não como fim em si, mas como
meio.
Até mesmo Hannah Arendt destacou que o maior mal
que pode ocorrer entre homens, a banalidade do mal, é a
ausência do pensar. É a possibilidade da morte do pensamento
e que pode implicar no estabelecimento do mal banal e a
desertificação do mundo humano, nos deixando acostumados
com o deserto e até mesmo a viver nessa falta de mundo
(ARENDT, 2011b).
Ser capaz de discernir o certo do errado, pensando em si
e nos outros enquanto seres plurais que habitam e constituem o
mesmo mundo, foi a postura de Sócrates e é a peculiaridade do
pensamento reflexivo, diferentemente do pensamento que
calcula e enquanto vontade de verdade quer instrumentalmente
conhecer e dominar a totalidade. Como aponta Arendt, “A
manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento, é
a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio. E
isso, nos raros momentos em que as cartas estão postas sobre a
mesa, pode sem dúvida prevenir catástrofes, ao menos para o
eu.” (2010, p.216).
Helder Félix Pereira de Souza
28
4. Sócrates x Eichmann e a aposta na educação
para o pensar
Mas e se pensarmos de forma contrária? Ou seja, e se
aceitássemos a hipótese nietzschiana presente em “Crepúsculo
dos ídolos” na qual Sócrates e Platão são “como sintomas de
declínio, como instrumentos da dissolução grega, como
pseudogregos, antigregos” (2010, p.18)? Seria então o
surgimento do pensar maiêutico a decadência de um povo? E o
modo de ser do tipo Eichmann, incapaz de pensar
reflexivamente por si, seria um modelo a ser seguido, pois é o
inverso de Sócrates? Qual então seria o caminho certo da
educação? Obedecer cegamente suspendendo o pensar
reflexivo ou saber obedecer e também mandar, mantendo ativo
o pensar reflexivo? Em outras palavras, por que ensinar
filosofia na educação básica? Por que abrir nos alunos a vereda
da reflexão e educar para o filosofar?
Parece que, pensando com Heidegger, Arendt, Adorno,
dentre inúmeros outros pensadores, nós contemporâneos
ocidentais tendemos a ponderar para o caminho do pensamento
reflexivo. Sobretudo após os horrores da segunda grande
guerra, a melhor aposta (PASCAL, 1973) que podemos fazer é
evitar que coisas como o totalitarismo, a barbárie ao extremo se
instalem. Mesmo não tendo absoluta certeza de que estimular o
pensamento reflexivo seja um caminho absolutamente seguro,
ao menos contra a ausência de pensamento que produz tipos
Eichmann, apostar na reflexão é uma opção para quem não tem
alguma outra.
Além do mais, o simples fato de se colocar tal questão
nos insere no âmbito do pensar e que nos força a meditar sobre
outra questão importante: é possível escapar ao pensar quem já
nele se encontra?
Por que e como ensinar filosofia
29
Podemos dizer que nos encontramos dispostos em um
‘entre’ pensar e não pensar. Em alguns momentos o
pensamento parece nos requisitar e algumas vezes não, porém
há momentos em que não podemos deixá-lo de lado, sobretudo
nos acontecimentos extremos como aqueles que sempre
ameaçam o mundo e a existência humana, ou a instalação da
barbárie como aponta Adorno (2000).
Parece que a justa medida aristotélica (1973) pode
auxiliar o respectivo problema do excesso de pensar e o
excesso de não pensar. O meio termo implica em cultivar a
reflexão para que ela se refine em suas múltiplas possibilidades
e desperte quando necessária, mas também cultivá-la para que
o pensar não se torne um peso ou tormento ao ponto de
suspender o mundo buscando um além-mundo para habitar.
Há aqui uma espécie de educar para que nem sejamos
completamente socráticos, o que nos levaria a ser
“superafetados” (NIETZSCHE, 2010, p.19) da razão ao ponto
de platonicamente suspender o mundo acreditando em outro
melhor. Por outro lado, é importante educar também para que
nem sejamos completamente Eichmanns, que nos levaria a ser
repetidores miméticos de ordens, incapazes de refletir sobre o
que se está fazendo (ARENDT, 2011a).
No entanto, partindo do pressuposto de que Eichmann
tornou-se um tipo comum de ser do homem moderno e atual
que não pensa ou pouco pensa sobre suas próprias ações, pois
não tem tempo para pensar; parece que apostar em um tipo
socrático de ser, que muito pensa e sabe pensar com rigor
quando é requisitado, poderia ser uma boa aposta justamente
por representar uma falta em nossa época. O antídoto para tipos
Eichmann de ser é misturar-se, contaminar-se a tipos Sócrates
de ser. O que falta em um torna evidente o que transborda no
outro, e vice e versa, desvelando assim a essência de ambos e a
sua importância em nossa época.
Helder Félix Pereira de Souza
30
Pensando a educação brasileira atual, ter como modelo
de ensino filosófico a maiêutica socrática, mas também que
ultrapasse a barreira das disciplinas, é um possível e
estimulante contraponto ao modo eichmaniano de ser. Em
outras palavras, uma possível resposta à pergunta sobre por que
ensinar filosofia na educação básica é: educar para refletir ou
pensar o que estamos fazendo consiste em uma aposta frente a
ausência do pensar ou da reflexão, tão comum hoje em dia em
nossa era da instantaneidade (BAUMAN, 2001) e que pode
colocar em risco toda a pluralidade humana. É uma aposta na
educação que possibilita saber obedecer e saber mandar, e,
quando requisitado, também pensar as próprias ações para se
evitar catástrofes.
5. Como exercitar a maiêutica socrática no ensino
médio?
A aceitação da aposta no exercício do filosofar ou de se
pensar o que estamos fazendo tal como Sócrates, em
contrapartida ao estabelecimento de figuras não-pensantes
reflexivamente do tipo Eichmann, representa um caminho
possível para a filosofia no ensino médio na tentativa de se
educar contra a barbárie (ADORNO, 2000) e o deserto do
totalitarismo (ARENDT, 2011b).
Mas como pode acontecer este tipo de educação
filosófica no ensino médio? Em outras palavras, como ensinar
filosofia aos alunos do ensino médio? Esta é também uma
pergunta que se mantém sempre aberta, pois existem vários
modos de se ensinar filosofia.
Aqui, o ensino de filosofia na educação básica é
pensado juntamente com Kant (2001), que aposta no ensino da
filosofia como atividade do filosofar. Para isso, indicamos três
táticas úteis que se orientam pela grande aposta na estratégia da
Por que e como ensinar filosofia
31
atividade de filosofar no ensino médio e que foram exercitadas
durante a prática de estágio I e II na licenciatura em filosofia da
UFSC.
Acompanhadas pela tática do SPIC que conforme Silvio
Gallo (2012) consiste em sensibilizar, problematizar, investigar
e conceitualizar com os alunos; as táticas do CSI que implica
no dizer claro, simples e ingênuo; e com a tática do PréDuPós
como exercícios pré-aula (fixação do tema, esboço mental e
escrito da aula, aula com alunos invisíveis, ensaios e re-
ensaios), durante-aula (manter-se no aqui agora, sensibilidade
espacial e temporal, aproveitar toda e cada questão do aluno,
instigá-los e entusiasmá-los, tirá-los do aturdimento, etc.) e
pós-aula (reexame mental e se possível escrito das aulas),
podem ampliar as chances de que a atividade do filosofar
aconteça em sala de aula no ensino médio.
De modo geral, a grande tática do SPIC consiste em
uma etapa do ensino em que os alunos são sensibilizados a fim
de serem inseridos e preparados para o tema da aula;
consequentemente, o tema é problematizado abrindo espaço
para um exame de tais problemas na história da filosofia; e, por
fim, os conceitos que emergem das atividades anteriores em
diálogo com os alunos através dos pensamentos filosóficos,
intermediado pelo professor-filósofo, são reproblematizados
com o intuito de os alunos, e também o professor, apropriarem-
se dos conceitos abrindo a possibilidade de construírem por si
mesmos seus próprios conceitos ou ao menos algumas noções
conceituais.
De toda essa tática orientadora do ensino filosófico no
ensino médio, destaca-se maior importância para a atividade do
filosofar, pensado como um jogo dialógico de perguntas e
reperguntas entre professor aluno, aluno professor, e entre os
próprios alunos; vertendo e invertendo constantemente pontos
de vista entre os envolvidos no diálogo.
Helder Félix Pereira de Souza
32
Nesse aspecto, são bem vindas as lições de Silvio Gallo
sobre o SPIC com o intuito de sensibilizar os alunos para
preparar o terreno para o filosofar e também à filosofia. Dispor
de exemplos, mídias, assuntos que estão em nosso cotidiano e
dos alunos, chamá-los pelo nome3, ou se estiverem
compenetrados no celular pedir para acessarem a internet e
compartilhar uma informação que contribua para o tema da
aula, etc., são táticas importantes para retirá-los do aturdimento
e despertá-los para o caminho do filosofar.
Por isso, para potencializar a grande tática do SPIC
podemos combinar mais táticas para derivá-las em conjunto e
aumentar as possibilidades de que a estratégia do filosofar se
abra e até mesmo se realize em sala de aula.
Além dessa sensibilização e sensibilidade em sala de
aula, é importante também uma tática princípio, inspirada em
Schopenhauer, que destaca a importância do dizer “simples,
claro e ingênuo” (2005, p.33) consistindo na tática do CSI.
Implica em elaborar uma proposta temática claramente
definida e desenvolvê-la de forma simples, sem muitos floreios
ou eruditismos, para que qualquer um entenda minimamente do
que trata o assunto; e por fim, ter em conta a leveza da
ingenuidade no sentido de realizar um raciocínio que se
desenvolva naturalmente no decorrer da aula, sem
artificialidades, ou seja, sem denotar algo que pareça forçado,
pouco à vontade, mas tomar as aulas com uma desenvoltura
3 O espelho de turma com as fotos e nomes de cada aluno é extremamente
importante como ferramenta para conhecer o rosto de cada aluno e
estabelecer uma proximidade empática em um primeiro contato do
estagiário e a turma ou do professor e aluno, pois permite reconhecer e
chamar cada aluno por seu próprio nome, o que desperta maior interesse e
atenção na aula para ambos os lados. Permite também identificar quem são
os alunos mais participativos, os menos participativos, os que levam a sério
as aulas e os que não se interessam, etc., permitindo montar táticas para
lidar diretamente com cada um durante as aulas.
Por que e como ensinar filosofia
33
espontânea em que professor e alunos sintam-se bem naquele
espaço preparado para o filosofar.
A grande tática do SPIC, atravessada pela tática
princípio do CSI, da clareza, simplicidade e ingenuidade,
consistindo no desenvolvimento de um tema claro e bem
definido; uma exposição simples e sem tantos floreios; uma
disposição ingênua de abertura para o acontecimento de uma
aula filosófica: tais elementos reunidos são orientações chave
para se montar uma economia de recursos, conceitos e tempo
de aula no ensino médio, que merecem ser exercitados para que
toda aula tenha grandes chances de se abrir para o
acontecimento filosófico.
Para isso, mais táticas-exercício são importantes para
que o professor esteja bem preparado para ir para a sala de
aula. Destacam-se três táticas-exercício que podem auxiliar na
realização das aulas: as táticas pré-aula, durante-aula e a pós-
aula (PréDuPós).
Primeiramente, a tática pré-aula consiste em um
exercício inicial que antecede a aula, ou seja, serve para o
melhor preparo e ensaio da aula. Após o professor ter
elaborado e estudado o plano de aula4, passando-o e
repassando-o quantas vezes for preciso mentalmente e em
4 A etapa de escolha do tema e problema de aula consiste em um
conhecimento inicial da turma (que pode ser aferido por um questionário
dirigido a cada aluno para perscrutar seus gostos, como muito bem sugerido
por uma das estagiárias) que denota predisposição para certos temas e que o
professor se aproveita para inspirar os motes de aulas. Após ter delimitado e
estudado o tema, o professor elabora o seu plano de aula e monta como será
a aula orientando-se pela grande tática do SPIC e a tática-princípio da
clareza, simplicidade e ingenuidade. Após reunir todo o material para a
aula, exercitá-lo mentalmente e escrever um esboço ou esquema de aula no
papel, até chegar a uma aula aproximada daquilo que pretende realizar, está
delimitado o plano de aula e o professor está pronto para seguir a etapa da
tática pré-aula, ou ensaio concreto de aula com alunos invisíveis.
Helder Félix Pereira de Souza
34
esboço no papel, surge o momento de ensaiá-lo, como em um
teatro performático para alunos invisíveis.
Ou seja, o professor poderá ensaiar ao menos três vezes
sua pré-aula simulando uma aula com alunos invisíveis, pois tal
ensaio permite construir uma noção do tempo/espaço de aula,
ter melhor noção da tonalidade e intensidade da voz, do corpo,
dos gestos e dos passos; além de inspirar (DELEUZE, 2014) e
permitir exercitar a imaginação do que poderia ocorrer durante
a aula, o que um aluno poderia perguntar sobre tal e tal coisa,
etc. Exercitar essa previsibilidade de aula é preparar-se para a
arte do improviso, que está presente e é inevitável em todas as
aulas, aproveitando esses momentos fundamentais da melhor
forma possível abrindo espaço para a criação do novo junto
com os alunos.
Combinar o aqui agora real, ou o que aparece do
mundo, com o aqui agora invisível do pensamento
(imaginação), amplia as possibilidades do acontecimento de
uma aula. É imprescindível, como parte da estratégia de aula,
treinar a tática do ‘passar a aula imaginando-a no pensamento’
testando mentalmente todas as suas possibilidades e ‘passar a
aula para alunos invisíveis’ simulando em uma sala real como
seria de fato a mesma aula pensada anteriormente para alunos
invisíveis, e também se possível para alguns colegas, o que
futuramente será a aula para os alunos reais do ensino médio.
Aqui a noção de tempo e espaço ganham extrema
importância. O aqui agora do espaço tempo visível do mundo é
aquele ao qual estamos acostumados: é o tempo cronológico,
com delimitações físicas e necessárias. Já o aqui agora do
pensamento é sempre presente, ou seja, não há contagem de
tempo e medida de espaço necessária, pois sendo um âmbito do
pensamento livre para a imaginação, pode ou não contar o
tempo e delimitar o espaço, assim o pensamento interiorizado
suspende o mundo e o que vigora nele é a imaginação de uma
aula em um aqui agora, ou espaço e tempos invisíveis
Por que e como ensinar filosofia
35
(ARENDT, 2010). Quando ambos estão bem exercitados, tudo
é possível na imaginação reflexiva.
Uma segunda tática importante e que deriva do
exercício anterior é a tática durante-a-aula, que consiste em
sempre estar no aqui agora da aula, praticando com alunos
reais tudo o que fora ensaiado. Isso implica na disposição do
professor em estar aberto para o acontecimento-aula, bem
preparado através da tática da pré-aula, e pronto para qualquer
improviso.
Tal tática consiste em ficar atento a tudo e a todos que
estão ali presentes de um modo que nenhum sinal passe
despercebido e também não se esquecer da estratégia e táticas
desenvolvidas, para que não se percam os objetivos
pretendidos na aula. No entanto, é importante tomar extremo
cuidado para que durante a aula o aqui agora (espacial e
temporal) da relação direta com os alunos, com a sala, com o
que esta sendo dito, etc., não seja suspenso pelo intenso pensar
ou preocupar-se com a estratégia ou o plano a ser seguido e as
táticas a serem usadas. Pois tal deslocamento pode acabar
suspendendo o aqui agora da sala de aula deslocando-o para o
aqui agora do pensamento (o lugar invisível do pensamento)
comprometendo o jogo com a realidade externa, anulando a
ingenuidade do professor e tornando a aula extremamente
artificial e mecânica, bem diferente de uma aula com
desenvoltura natural e espontânea.5
5 Por isso é importante o professor ter sua estratégia de aula bem definida e
suas táticas bem exercitadas a fim de organicamente se desenvolverem
quando necessárias. Do mesmo modo que no teatro as cenas são ensaiadas e
exercitadas para que sejam naturais no decorrer da peça, durante as aulas é
necessário o professor também sentir-se à vontade no manuseio de suas
próprias ferramentas e deixar à vontade seu público inspirando segurança,
confiança e entusiasmo aos alunos.
Helder Félix Pereira de Souza
36
Alguns cuidados durante o acontecimento de aula são
importantes. Por exemplo: se durante a montagem da lousa6 o
professor perceber que uma parte da turma está dispersa, seria
interessante aproveitar o momento para construir
conjuntamente com os alunos os itens dispostos no quadro ao
mesmo tempo em que os explica; outra opção para trazer os
alunos para a aula é perguntar mais para os alunos o que eles
acham de tal e tal coisa para prepará-los para o diálogo e iniciar
a discussão sobre o tema de aula; se muitos estiverem
conectados na internet, mexendo em celulares ou tablets, pedir
para que pesquisem na internet algo simples, mas pertinente ao
tema da aula (como a data de vida e morte de tal filósofo, nome
completo do autor de tal obra, de filme, pintura, significado de
palavras no dicionário, período histórico, etc.)7.
Por fim, o intuito durante-as-aulas é que o professor
esteja integralmente presente a fim de usar todas as táticas
possíveis como tentativa de se conquistar um espaço livre para
que o pensamento filosófico, ou a atividade do filosofar,
aconteça em sala de aula entre professor e alunos, alunos e
professor, e entre os próprios alunos, com a finalidade de que
estes também se presentifiquem no aqui agora da aula e do
6 Caso o professor utilize na aula recursos de mídia (power point, vídeo,
projeção de imagem ou texto) convém prepará-los e testá-los com
antecedência, a fim de que no momento da aula não seja desperdiçado
tempo com tais preparativos e tenha-os disponíveis prontamente. De outro
lado, pensar outras alternativas como: enquanto pede uma atividade para os
alunos (lerem ou escreverem um texto, etc) o professor vai ativando o
equipamento de mídia, ou ter outros recursos em mãos para substituir as
multimídias quando falharem. 7 Isso talvez seja uma boa tática para guiar os alunos na utilização das
tecnologias e orientá-los para uma boa pesquisa na internet indicando
alguns sites interessantes para frequentarem, mas também orientando como
identificar boas fontes de conhecimento e informação na internet. Há
também vídeos e jogos na internet que podem direcioná-los para os assuntos
filosóficos, como o jogo ‘filosofighter’, o vídeo do ‘futebol dos filósofos’,
etc.
Por que e como ensinar filosofia
37
pensamento. Tudo isso planejado para que uma aula de 45
minutos no ensino médio tenha um bom rendimento, mas que
esses poucos minutos possam ser estendidos para as aulas do
ano como um todo e consequentemente para a vida dos que ali
estão presentes e por ali passaram.8
Por fim, a tática-pós-aula, que consiste em um reexame
mental e escrito da aula efetivamente dada, com o intuito de
marcar pontos positivos e negativos da aula trasncorrida para
aprimorar ou desenvolver novas táticas de ensino e descartar
ou consertar as falíveis. E também para dar um panorama geral
da aula a fim de preparar as próximas aulas, mantendo a
estratégia do filosofar sempre ativo.
Em suma, falou-se da estratégia da aula de filosofia que
é possibilitar e manter ativo o filosofar. Para isso destacou-se a
importância das táticas de aula: como a grande tática do SPIC;
a tática CSI, do dizer claro, simples e ingênuo; a tática
PréDuPós: do pré-aula (tema, esboço mental, escrito, aula com
alunos invisíveis, ensaios e re-ensaios); a tática durante-a-aula
(manter-se no aqui agora, sensibilidade espacial e temporal,
aproveitar toda e cada questão do aluno, instigá-los e
entusiasmá-los, tirá-los do aturdimento); a tática pós-aula, que
consiste em um reexame mental e se possível escrito das aulas,
para poder cada vez mais manter aberto o caminho do
pensamento e o filosofar como estratégia de educação
filosófica no ensino médio.
É importante lembrar que mesmo com todo esse
treinamento, exercício e ensaios, não é possível garantir o
8 Como sugestão de uma atividade mais longa a criação de um diário de
pensamentos pode ser muito útil para manter o filosofar ativo por mais
tempo e bem exercitado como destacado no artigo A escrita de si como
exercício filosófico para o ensino médio: elaborando um diário de
pensamentos (PIEDADE; SOUZA, 2014). Tal atividade pode servir
também como instrumento de avaliação do professor, capaz de aferir o
andamento do aprendizado do aluno e reforçar a apropriação conceitual pelo
mesmo.
Helder Félix Pereira de Souza
38
acontecimento de aula e que a atividade do filosofar se ative,
mas sem tais táticas a possibilidade que uma aula de filosofia
no ensino médio se abra para o filosofar podem diminuir, pois
o professor vai para aula com menos preparo. Nota-se que toda
a aula, assim como uma peça teatral, nunca está
definitivamente pronta, acabada, mas ela pode estar mais ou
menos, melhor ou pior preparada, ainda mais quando precisa
lidar com os improvisos.
A grande tática do SPIC, a tática do CSI e a tática do
PréDuPós são fundamentais para que o preparo de aula se torne
orgânico no professor e a estratégia do ensino da filosofia entre
os jovens da educação básica mantenha aberto o caminho do
filosofar para que este aconteça com naturalidade e
desenvoltura.
6. Considerações Finais
Por fim, a filosofia no ensino médio assim como a
educação é uma aposta que nós enquanto educadores, filósofos,
cidadãos e pessoas não podemos fugir, pois já estamos
inseridos nessa tradição mundana. Educar e ensinar filosofia na
educação básica é acreditar que a abertura à crítica e a reflexão
através da atividade do filosofar socrático pode auxiliar contra
a instalação da barbárie que partilha da condição humana e está
sempre presente em tipos tão normais e comuns de ser como
Eichmann.
Em outras palavras, ao ingressarmos no trágico jogo da
vida e da existência humana é melhor ter algo no que apostar
do que nada ter para apostar. Como já dizia o antigo provérbio:
‘mais vale ter um pássaro na mão do que dois voando’, ou seja,
já que somos lançados em um mundo ‘pronto’ e em movimento
é melhor ter presente a atividade do filosofar como aposta do
que nada ter para apostar.
Por que e como ensinar filosofia
39
Apostando na educação e na importância da filosofia no
ensino médio, um caminho possível, dentre vários outros, para
que o filosofar aconteça em sala de aula no ensino médio é a de
orientar-se pela estratégia de manter ativo o filosofar
estimulados pelas táticas do SPIC, do CSI e do PréDuPós
explorados neste ensaio. Quando tais táticas são bem
exercitadas as chances do acontecimento filosófico ocorrer em
sala de aula tornam-se maiores, o que pôde ser constatado
durante a realização do estágio I e II no colégio de aplicação da
UFSC.
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Helder Félix Pereira de Souza
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KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação
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Por que e como ensinar filosofia
41
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Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São
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PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet.
São Paulo: Abril Cultural, 1973.(Os Pensadores).
43
THE WALL: UMA REFLEXÃO ACERCA DO
MECANICISMO ESCOLAR E O ENSINO DE
FILOSOFIA
Felini de Souza
O sistema educacional brasileiro sempre entra em
discussão, principalmente durante o período de eleições. Nas
manifestações em junho de 2013 no Brasil, muitos cartazes
continham escritos que pediam por mais educação, por mais
investimentos na educação, ou por uma educação de qualidade.
Porém, uma pergunta que surge é: que educação nós
queremos? E o que nós entendemos por educação?
As promessas de mais escolas, escolas de qualidade e
boa remuneração ao professor sempre são citadas nesses
períodos de eleições para governantes, porém durante décadas
a educação vem sendo debatida, como uma necessidade mal
empregada na sociedade. Na atual eleição de governantes
federais e estaduais de 2014, foi comum ouvir a proposta de
educação em tempo integral. Confunde-se assim, escola com
educação, considerando-se que o aluno ficará na escola o dia
inteiro, e assim aprenderá. Pensamos que este tipo de promessa
eleitoreira, não passa de uma proposta de “asilo” infantil, onde
se coloca a criança na escola em tempo integral para que os
pais e as mães possam trabalhar mais, servir mais ao sistema.
A educação não se dá apenas no ambiente escolar. O
ser humano possui a capacidade de aprender e essa capacidade
não se limita à escola. A todo momento o ser humano está
aprendendo, descobrindo coisas novas, experimentando,
modificando conceitos que até então acreditava, aperfeiçoando
capacidades e se adaptando ao meio que sempre se modifica.
E de quem é a culpa pelos problemas da educação? Da
escola? Dos professores? Dos alunos? Da sociedade? Ou do
Felini de Souza
44
governo? Responder essas perguntas não é uma questão fácil,
assim como tentar solucionar os problemas da educação que a
décadas são diagnosticados e debatidos.
1. Relação docente-discente e discente-docente
O processo de ensino não se dá simplesmente por
transferência de conhecimento. Os conteúdos trabalhados
precisam estar associados à realidade do estudante, deste modo,
o aluno consegue compreender e adaptar o conteúdo às
problemáticas do seu cotidiano. O professor não é o único
dentro da sala de aula que possui conhecimentos prévios, é
preciso notar que os alunos já possuem uma carga cultural e de
aprendizado que proporcionaram experiências válidas para a
constituição do conhecimento. Sendo assim, não é só o aluno
que aprende na relação professor-aluno, mas também o
professor adquire conhecimento.
Nesta forma de compreender e de viver o
processo formador, eu, objeto de meu ato
formador. É preciso que, pelo contrário desde
os começos do processo, vá ficando cada vez
mais claro que embora diferentes entre si, quem
forma se forma e re-forma ao formar e quem é
formado forma-se e forma ao ser formado. É
neste sentido que ensinar não é transferir
conhecimentos [...](FREIRE, 1996, p. 22-23).
É necessário levar em consideração os conhecimentos
culturais vividos pelos alunos. Por meio desse conhecimento, é
possível construir um entendimento melhor a respeito do que é
passado em sala de aula. Não existe professor sem os alunos,
assim como não existe o “ensinar” sem o “aprender”. Portanto,
o ensinar e o aprender se dá simultaneamente, a professora ou o
professor aprende enquanto ensina, devido aos conhecimentos
The Wall
45
prévios dos estudantes. É preciso parar de considerar o aluno
como tábula rasa. É preciso parar de considerar o professor
como o portador de todo o conhecimento, aquele que tem a
obrigação de responder todas as perguntas. As respostas para
os questionamentos podem ser encontradas de forma coletiva,
na relação docente-discente e discente-docente.
O professor não é aquele que simplesmente “dá a
aula”, a aula deve ser construída como uma participação ativa
tanto do aluno como do professor. O aluno não é um mero
espectador apassivado que apenas recebe os conteúdos prontos
e as respostas para as suas perguntas. Dar as respostas para os
alunos, para todos seus questionamentos, é impedi-lo de ir em
busca da solução para as suas dúvidas por conta própria.
Portanto, o professor deve ter uma postura democrática,
visando reforçar a capacidade crítica do educando e sua
curiosidade. O professor não deve silenciar o aluno, deve
deixá-lo livre para perguntar, questionar, expor sua curiosidade
frente aos conteúdos passados e situações cotidianas, pois o
que é ensinado em sala de aula tem relação com situações
cotidianas e é preciso que os alunos consigam visualizar desta
maneira: visualizar que o aprender, os conteúdos tratados na
escola, tem total relação com a nossa vida e com todo o meio
que nos cerca.
No filme The Wall (1982), do diretor Allan Parker,
temos a demonstração do que é uma cultura educacional
conservadora e tecnicista, em que é preciso apenas repetir os
ensinamentos do professor a ponto de decorá-los. Não há
criação, apenas repetição. O personagem principal do filme,
chamado Pink, durante a infância, cria um poema que é lido de
forma pejorativa pelo professor. Uma demonstração de uma
atividade docente que nega as origens, ideias e criações de suas
alunas e alunos.
Em The Wall, o professor de Pink não instiga os
alunos a buscarem o conhecimento, não os torna inquietos a
Felini de Souza
46
ponto de que haja uma procura por parte deles, somente se vê a
repetição, a criação de padrões de mentes. Suas potencialidades
são deixadas de lado, dando vez apenas às “frases” decoradas:
“Daí a impossibilidade de ver a tornar-se um professor crítico
se, mecanicamente memorizador, é muito mais um repetidor
cadenciado de frases e de ideias inertes do que um desafiador
(FREIRE, 1996, p.27)”.
Um ponto negativo de tomar a finalidade da escola
como a aprovação no vestibular é esse caráter de repetir e
decorar para passar no concurso e ter uma boa colocação. Para
essa memorização através da repetição são criados métodos
como a paródia de músicas onde a letra é a fórmula que precisa
ser aplicada, ou o conteúdo que precisa ser decorado para saber
responder a questão na prova. Mas na prática da vida o aluno
não consegue assimilar aquele conteúdo decorado na música
com o seus questionamentos cotidianos. O professor que utiliza
como um meio apenas a memorização do aluno quanto aos
conteúdos, não consegue dar a liberdade de criação e de
assimilação do mundo em que o aluno vive.
Sabe-se, porém, como os educadores são
tentados a considerar a educação como um
processo puramente espiritual. Entretanto, à
educação compete também a tarefa de ajudar o
homem a situar-se no seu meio físico e a tirar o
maior proveito possível das condições que este
lhe oferece (SAVIANI, 1983, p.33).
Atribui-se importância, então, a aproximação com a
realidade do aluno ao ensinar. Deste modo, fazendo com que o
aluno perceba que pode experimentar seu aprendizado em seu
meio e em seu cotidiano.
The Wall
47
2. O despertar da curiosidade
Costumamos ter a infância e a juventude como
períodos de questionamentos e descobertas. A postura
filosófica é ir além do senso comum nas respostas para tais
questionamentos e incentivar que essa curiosidade dos alunos
leve a aprendizados. A criança ou adolescente vai passar por
diversas problemáticas nessas fases, como exemplo podemos
considerar os seguintes casos; quando ocorre uma morte de um
parente ou conhecido da criança e surgem as dúvidas sobre “o
que acontece quando as pessoas morrem?” ou quando o
adolescente passa pelo seu primeiro conflito amoroso e surgem
questionamentos sobre “o que é o amor?”; ou sobre o futuro,
“com o que vou trabalhar?”; e “o que preciso para ser feliz?”;
“o que é felicidade?”. Todos esses questionamentos não
deixam de ser questionamentos filosóficos que devem ser
levados em consideração. Devem ser levados para a sala de
aula e trabalhados de modo que possam trazer mais
questionamentos e mais conhecimentos para os alunos. Para
Dermeval Saviani (1983, p.66) o objeto da filosofia é tratar “os
problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua
existência”. Pensando assim, podemos chegar à conclusão de
que a filosofia está muito presente na vida dos seres humanos
e, portanto, ela não deve ser ensinada distante dos
questionamentos e experiências dos estudantes.
O fundamental é que professor e alunos saibam
que a postura deles, do professor e dos alunos, é
dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não
apassivada enquanto fala ou enquanto ouve. O
que importa é que professor e alunos se
assumam epistemologicamente curiosos
(FREIRE, 1996, p.86).
A curiosidade é uma característica vital que
proporciona descobertas e ultrapassa os limites do aprendizado
Felini de Souza
48
mecânico. Por meio das perguntas e indagações os alunos vão
construindo ou reconstruindo suas opiniões. Esse é o papel
principal das aulas de Filosofia, pois elas precisam ser
questionadoras para que desse modo o aluno encontre meios e
soluções para os problemas filosóficos.
Um dos deveres da prática educativa é o
desenvolvimento da curiosidade insatisfeita e crítica do aluno.
A curiosidade precisa ser estimulada para que por meio dela o
estudante possa buscar experiências, desse modo, adquirindo
conhecimento. E é por meio da curiosidade que atingimos a
criatividade.
A criatividade e a autonomia do aluno devem ser
respeitadas, assim como sua identidade, e na prática educativa
é preciso ser coerente com esses deveres. Em The Wall, os
alunos são representados em uma das cenas com máscaras
iguais, demonstrando assim que suas potencialidades e
identidades não são respeitadas. No filme, mostra-se este
exemplo também quando os alunos caem na máquina de moer
carne, transformando-se em uma massa homogênea onde não é
possível identifica-los. Considerar os alunos iguais em suas
capacidades os obriga a ter o dever de saber das mesmas
coisas, nas mesmas fases. Porém, o desenvolvimento pode não
se dar assim de forma mecânica. Nem todos os alunos e alunas
de determinada série vão possuir e ter condições de ter certos
conhecimentos, ou ter facilidade para adquiri-los. Cada pessoa
tem sua história, sua cultura, seu tempo de aprender e de fazer
descobertas. A divisão por séries é mais uma amostra do
modelo industrial que a escola utiliza. E a escola; no filme The
Wall, segundo minha interpretação, tem ainda o caráter de
formá-los para serem “mais um tijolo do muro”.
The Wall
49
3. A finalidade da escola
Quando falamos em “mais um tijolo no muro”, isso
nos remete a uma formação mecânica que visa um único fim a
todos os estudantes. Na prática, atualmente, podemos observar
que o fim comum das escolas tem sido a boa pontuação no
vestibular que leva à aprovação dos estudantes nas
universidades. Deste modo a educação perde o seu caráter de
desenvolver a personalidade e as capacidades dos seres
humanos e passa a ter apenas a finalidade da aprovação nos
concursos e vestibulares.
As publicidades apelativas que mostram números de
aprovados chamam a atenção dos pais e dos alunos que sonham
estar nos melhores cursos das universidades. Esse tipo de
aprendizado mecânico é condenado pelo filósofo alemão
Friedrich Nietzsche. Nietzsche em Schopenhauer como
Educador trata do “ensino enciclopédico” mais voltado a área
da Filosofia. Segundo Nietzsche, a Filosofia estava sendo
ensinada distante da realidade dos jovens estudantes e o
resultado era que os estudantes decoravam os sistemas e suas
refutações antes da prova de avaliação e esqueciam-se de tudo
logo após a avaliação. Nietzsche, portanto, desconsidera o
sistema educacional de sua época, que tem como intenção
formar “homens teóricos”, pois separam o pensamento da vida.
O professor Nietzsche, não incitava em seus alunos o simples
acúmulo de conteúdos, ao invés disso, propunha um
desenvolvimento do senso crítico e da atividade criadora de
cada indivíduo.
Nenhuma matéria escolar deve ser ensinada de forma
mecânica, forçando o aluno a decorar fórmulas e conceitos. O
êxito da educação deve ir além dos resultados obtidos nas
provas e testes, aos quais o estudante se submete.
No entanto, temos que lembrar que a culpa pelos
problemas da educação não se devem somente ao modo de
Felini de Souza
50
ensinar do professor. No filme The Wall, o professor
“desconta” em seus alunos a opressão que ele sofre de sua
esposa. A esposa do professor, no filme, é uma representação
do sistema que leva o professor a ter que cumprir ordens, como
a de limitar a liberdade de criação do seu aluno levando ele a
decorar fórmulas e conceitos. Sem contar a falta de estrutura
para a educação que algumas escolas sofrem e a falta de
incentivos aos professores no desempenho das suas funções
como educadores, algo que também é representado pela figura
da esposa do professor de Pink.
As professoras e professores já estão sendo formados
para atender as demandas do sistema educacional vigente que
busca o vestibular e o mercado de trabalho como finalidade. De
um modo geral, os docentes não são instigados a refletir sobre
suas práticas e sobre o que os obriga a se submeterem a tais
práticas de ensino. Sendo assim, também podem ser
considerados como vítimas dessas problemáticas da educação.
A função comum atual da escola é o vestibular,
visando também o mercado de trabalho, bons salários e boas
vagas de emprego. No entanto, tendo a utilidade da escola com
esses fins é possível notar como as capacidades individuais dos
alunos são deixadas em segundo plano. Todos são colocados da
mesma forma aos mesmos conteúdos, deixando de levar em
consideração dificuldades ou facilidades pessoais perante
algumas temáticas ensinadas na escola. Esse tipo de postura da
escola, que tem como “produto final” o indivíduo que será útil
ao mercado de trabalho é comentado por Nietzsche. A
sabedoria que tem como função a produção sem a reflexão é
uma sabedoria vaga.
[...] Mas essa sabedoria está podre e cada fruta
tem seu verme. Acreditem em mim; quando
quisermos que os homens trabalhem e se
tornem úteis na oficina da ciência, antes de
terem atingido a maturidade, arruinamos a
The Wall
51
ciência no mais breve prazo, assim como
arruinamos os escravos empregados muito cedo
nessa oficina. Lamento que sejamos obrigados
a nos servirmos da gíria dos proprietários de
escravos e dos empregadores para descrever
condições de vida que deveriam ser imaginadas
depuradas de todo utilitarismo e ao abrigo das
necessidades da existência. Mas
involuntariamente expressões como “oficina”,
“mercado de trabalho”, “oferta e demanda”,
“exploração” [...] saem da boca quando
queremos descrever a mais jovem geração de
sábios. A honesta mediocridade se torna sempre
mais medíocre; a ciência, do ponto de vista
econômico, sempre mais utilitária
(NIETZSCHE, 2008, p. 86 - 87).
Os cursos pré-vestibular focalizam em um ensino
rápido, de um conteúdo acumulado que deveriam ter sido
dados desde o ensino básico. Propondo formas de decorar (que
são por vezes vazias), para apenas garantir que o aluno – ainda
sem muito conhecimento prático de vida e sem assimilar o
conteúdo com situações cotidianas – passe no vestibular e
produza na mesma rapidez em que seu conhecimento foi
produzido. Estes testes avaliativos procuram homogeneizar
quantificando o saber de forma equalizada, não levando em
conta o ser humano e suas individualidades, também como
membro ativo do processo de conhecimento.
4. Experiências do estágio de docência
A experiência do estágio de docência no Instituto
Federal de Santa Catarina nos permitiu acompanhar duas
turmas diferentes. Uma no primeiro semestre (2014.1) e outra
no segundo semestre (2014.2). Esta possibilidade de conhecer
duas turmas distintas faz com que presenciamos variadas
Felini de Souza
52
situações e diferentes estudantes, com suas singulares
potencialidades, facilidades e dificuldades de aprendizado.
Pois, o ser humano é constituído por sua cultura e sua história,
e esta deve ser levada em conta no momento de aprendizagem.
Portanto, cada turma e cada estudante devem ser considerados
únicos.
Na experiência do estágio de docência pude notar que
os estudantes já estão preocupados com o mercado de trabalho,
com o vestibular, as ações afirmativas, as bolsas de estudos e
cursos. Nas aula de filosofia há um “escape” para refletir sobre
conceitos de justiça e igualdade quanto ao mercado de trabalho
e as ações afirmativas, por exemplo. É possível utilizar esses
“dilemas”, dos alunos, como meios de sensibilizar e
problematizar as temáticas em sala de aula. Aproximar o
conteúdo da realidade dos alunos é uma ideia de sensibilização.
Na sensibilização os alunos sentem-se incluídos no assunto, a
partir da problematização o problema do assunto será também
um problema deles. A partir de então começa a investigação
para encontrar uma provável solução já encontrada por outros
autores e conceituar em cima do problema que foi proposto.
Quando problematizamos, abrimos as
possibilidades de aprendizagem, uma vez que
os conteúdos não são tidos como fins em si
mesmo, mas como meios essenciais na busca de
respostas. Os problemas têm a função de gerar
conflitos cognitivos nos alunos (desequilíbrios),
que provoquem a necessidade de empreender
uma busca pessoal (SANTOS, 20--?, p.4).
A filosofia, como as demais disciplinas do currículo,
não devem esquecer seu caráter prático e de reflexão das
práticas. O método de memorização deve ser banido, pois
impede uma visualização das teorias sendo colocadas em
prática, ou a percepção da teoria dentro das práticas. Por
exemplo: em uma aula com o tema “utilitarismo”, seria muito
The Wall
53
mais proveitoso que o conteúdo partisse de problemas morais
práticos, como o dilema de Trolley. Deste modo, auxiliando no
entendimento da teoria.
Durante o estágio de docência, no Instituto Federal de
Santa Catarina (2014), percebe-se como falta aos estudantes o
pensar criticamente. As avaliações tendem a testar o nível de
memorização dos alunos quanto aos conceitos apresentados em
sala, mas não o pensar criticamente sobre um problema moral
utilizando apenas as teorias e conceitos como uma base. Com
isso, observou-se durante o estágio de docência que as alunas e
alunos não estão acostumados com um tipo de avaliação que
exija pensamento e reflexão, estão acostumados apenas com a
memorização. Os estudantes não acham que uma avaliação
com um caráter reflexivo seja difícil, consideram-na diferente
do que estão acostumados.
Ainda sobre a aproximação dos conteúdos abordados
com a realidade dos alunos, percebe-se com frequência que os
eles tendem a conversar nos intervalos de aula assuntos
pertinentes para as aulas de filosofia, como por exemplo no
período de eleições. É um desperdício deixar um tema tão
presente escapar das aulas de filosofia política.
Outro ponto observado no estágio de docência foi o
fato das aulas não ocuparem outros espaços da escola fora de
sala de aula. Está não é uma característica apenas desta escola,
ou apenas desta turma. É comum vermos os corredores e o
pátio das escolas vazios enquanto os alunos e alunas estão
dentro de sala em horário de aula. A pergunta que fica é: a
aprendizagem só se dá entre quatro paredes, com o auxilio da
lousa e com os alunos sentados? Creio que não. A
aprendizagem se dá em todo tempo e em todo lugar, e,
portanto, devemos buscar explorar os espaços para novas
descobertas.
Na prática do estágio de docência tive a oportunidade
de apresentar aos alunos os conceitos, do filósofo francês, René
Felini de Souza
54
Descartes. Entre as imagens utilizadas para despertar nos
estudantes algumas das paixões, tema abordado pelo filósofo
na obra As Paixões da Alma, também fizemos uma atividade
onde os alunos criavam seus “remédios para os excessos e
faltas da paixões da alma” escrevendo tais conselhos para uma
vida melhor em pedaços de folhas. Após uma conversa sobre
os “remédios”, os estudantes saíram da sala de aula e colaram
os bilhetes pelos espaços da escola. Esta é uma forma, ainda
que “tímida”, de tirar os alunos das quatro paredes e das
cadeiras, explorando os demais ambientes da escola.
Este presente ensaio pode, também, servir como base
para uma aula. Pois esta reflexão da qual o ensaio propõe
discute a realidade tanto do professor, quanto do aluno e até da
sociedade como um todo.
5. Considerações finais
Precisamos tratar dos problemas da educação, sabendo
que ela mesma é a solução para várias adversidades da
sociedade. A educação precisa ainda ser muito pensada para
que as pessoas que a compõe cobrem soluções e também sejam
elas mesmas as soluções para tais problemas. Tendo em vista a
Filosofia como uma portadora da visão crítica em cima dessas
problemáticas e valorizando essa matéria como todas as outras
que fazem parte do currículo da educação escolar. Em meio a
toda essa ação docente e discente, o ser humano se vê imerso
nessa problemática educacional e diante do problema a busca
se dá no refletir.
Refletir sobre a questão da educação e da escola já é
um primeiro passo para uma mudança que esperamos. Refletir
sobre nossa prática docente, nosso papel na escola, na
educação e na sociedade. Se colocar no lugar da aluna e do
aluno que busca mais conhecimento. Enquanto estudante,
The Wall
55
refletir também sobre seu papel dentro da sistemática que o
cerca e questionar. Segundo Dermeval Saviani (1983), refletir é
voltar-se a si mesmo, analisar com cuidado os conhecimentos
que possui e que recebe, e o meio onde está. E é deste modo
que em meio a educação e a escola devemos refletir sobre as
problemáticas que nos cercam.
Assim como o espelho tem a propriedade de
captar a luz e projetá-la numa determinada
direção (reflexão da luz), assim também o
homem tem a capacidade de captar (através da
consciência) os dados da realidade e imprimir-
lhes determinado sentido. Refletir é o ato de
retomar, reconsiderar os dados disponíveis,
revistar, vasculhar numa busca constante de
significado (SAVIANI, 1983, p.67).
É por meio do ato de refletir que podemos encontrar
as soluções para nossas indagações, ou apenas questionar
nossas próprias certezas ou realidades. Portanto, atribuímos, ao
refletir importância na filosofia e na questão educacional, pois
a reflexão sobre a educação já é o primeiro passo para uma
mudança.
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Scipione, 1993.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 30. ed. Rio de
Janeiro: Editora Paz e Terra, 1996.
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Educação, set/2011. Disponível em:
<http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/116/artigo234074-
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Felini de Souza
56
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Para a Vida. Trad. Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São
Paulo: Editora Escala. 2008.
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aprendizagem significativa.[20--?] Disponível em:
<http://www.famema.br/ensino/capacdoc/docs/papelprofessorp
romocaoaprendizagemsignificativa.pdf .>. Acesso em: 29 de
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sistema. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1983.
THE WALL (O muro). Direção de Allan Parker. Música de
Pink Floyd. EUA, 1982.
TRAGTENBERG, Maurício. A escola como organização
complexa. Revista espaço acadêmico. Ano II. n.2. Maio de
2002. Disponível em:
<http://www.espacoacademico.com.br/012/12mt_1976.htm.>.
Acesso em: out/ 2014.
57
É POSSÍVEL A FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO?
COMO É POSSÍVEL?
Vinicius Arion Aliende Palongan de Oliveira
“É possível?”-Sim é possível. Mas “como é possível?”
é uma questão para a qual ainda não tenho uma resposta pronta
e dificilmente a terei. Entretanto, isso não significa que esta
seja uma questão tola ou sem importância de ser refletida, pelo
contrário, é uma questão que me acompanhará enquanto eu
quiser ser um professor de filosofia e que, com certeza, terá
diferentes respostas conforme o momento em que me for
colocada. Isso porque minhas respostas serão amadurecidas,
modificadas e/ou reformuladas a cada experiência docente e a
cada nova perspectiva filosófica com a qual me deparar. E
justamente o que deixa tal questão mais interessante e
provocativa é o fato de ela não possuir uma única resposta,
muito menos um único método de resolução, pois há sempre
essa possibilidade de mudança, essa incerteza quase iminente
ao tentar respondê-la. Para mim esse é um fator positivo que
serve como incentivo para tentar sempre buscar uma boa
resposta.
Outra característica forte que ela carrega é a
individualidade, isto é, acredito que a principal base para
respondê-la será a concepção de filosofia que cada um traz
consigo. Digo isso porque lembro a minha primeira aula de
“Filosofia da Educação”, na qual a professora pediu que
escrevêssemos qual era nossa visão pessoal da filosofia e como
nós a entendíamos. Nenhuma resposta foi igual, cada um
apresentou uma visão diferente de filosofia e o que me chamou
mais a atenção foi o fato de que estávamos todos na mesma
Vinicius Arion Oliveira
58
fase e tínhamos cursado várias disciplinas juntos, logo, me
pareceu que o mais natural seria darmos respostas parecidas.
Portanto, nossa resposta para “como trabalhar a filosofia no
ensino médio?” será basicamente uma extensão da nossa visão
particular de filosofia somada às nossas experiências em sala
de aula.
Não tenho uma resposta definitiva também para o que
seja filosofia, mas desde que essa pergunta me foi feita minha
resposta já se modificou algumas vezes. Penso que uma
característica comum aos seres humanos é a curiosidade, isto é,
desde a infância, logo que dominamos a linguagem básica e
começamos a fazer as primeiras associações já esboçamos a
tentativa de compreender o mundo ao nosso redor, uma espécie
de curiosidade natural de conhecer o desconhecido e entender o
que nos cerca. Conforme nós vamos desenvolvendo nossa
linguagem e, consequentemente, ampliando nossas associações
e assimilações do mundo, os questionamentos de tudo que nos
cerca surgem de maneira natural e espontânea, começam com
as crianças pequenas (na época em que elas começam a
bombardear os pais com os “porquês” infinitos) e se tornam
uma espécie de hábito que nos acompanhará por algum tempo
ou, se for estimulado, por toda a vida.
Em meio a esse turbilhão de perguntas surgem (também
de maneira espontânea) algumas questões filosóficas, que
aparentemente são as mais tenebrosas, pois muitas vezes dizem
respeito a coisas que estão além do nosso alcance e percepção,
parece que nunca chegaremos a uma resposta definitiva (um
questionamento leva ao outro que leva a outro e assim por
diante). E sempre que nos conformamos sobre algum assunto
aparece algo que nos desestabiliza e nos leva a refletir
novamente. Por isso penso que o diferencial das questões
filosóficas é que elas acompanham a dinâmica da vida,
podendo sempre ser reformuladas e para cada reformulação há
uma possibilidade de se chegar a uma resposta diferente, ou
É possível a filosofia
59
seja, elas se modificam ao longo de nossa vivência, conforme
surgem novas experiências e conforme vamos assimilando
novos conceitos. Elas se modificam de tal modo que podemos
até dizer que nossas perguntas se renovam, mas isso não
implica que vamos perdendo nossas primeiras dúvidas, nós as
retomamos constantemente e muitas vezes com outras
perspectivas ou somente acompanhadas de novos
questionamentos. Arrisco até em dizer que nossas dúvidas
amadurecem conforme o ritmo em que nós mesmos
amadurecemos ao longo de nossa formação enquanto pessoa.1
Por exemplo, não me recordo ao certo que idade eu
tinha, mas era bem pequeno quando uma tia-avó morreu e eu
perguntei pra minha mãe “por que as pessoas morrem?” e “o
que era a morte?”, não gostei nem um pouco da resposta que
recebi, de que era algo natural e que acontece com todos, não
queria que ninguém próximo de mim morresse e nem eu queria
morrer. Lembro também que junto a essa resposta ela me disse
que essa tia iria para o céu, que lá era o lugar das pessoas boas,
etc. (me deu uma explicação condizente com a sua religião, a
católica) o que levantou questões como “porque nem todas as
pessoas iriam para o céu?” etc. Enfim, o que quero ilustrar com
esse exemplo é que após essa primeira experiência já me
deparei algumas vezes fazendo questionamentos sobre a morte,
principalmente quando acontece com alguém próximo e
sempre que me pergunto sobre isso acabo formulando uma
resposta que difere, ao menos minimamente, da resposta
anterior.
Acredito que aqui já podemos ter uma predefinição de
filosofia se pensarmos, então, que suas questões são aquelas
1 Não quero afirmar aqui que a Filosofia se resume apenas ao ato de
questionar, penso que a dúvida é a porta de entrada para o desenvolvimento
e a sistematização de toda Filosofia (e claro, não apenas da Filosofia, mas
também a base para o desenvolvimento de todas as vertentes do
conhecimento humano).
Vinicius Arion Oliveira
60
que não visam encerrar um determinado assunto (apesar das
várias tentativas dos filósofos), mas sim abrir possibilidades
para pensarmos diferentes perspectivas. Em outras palavras, o
mundo vai se construindo ao nosso redor e nos é despejada
incessantemente uma carga enorme de crenças, teorias,
conceitos e hábitos que nos absorvem e fornecem as matérias
para tecermos uma rede que nos deixe confortáveis, porém,
sempre que algo soar estranho, ou não se encaixar bem nessa
rede, isso irá nos incomodar. Fazendo uma adaptação para o
mito de Penélope, na Odisseia, nós estamos constantemente
tecendo, descompondo e “retecendo” nossa rede. Entretanto,
apesar desse processo de composição e recomposição, essa
rede sempre vai aumentando conforme recebemos material
para tecê-la e o ponto mais importante é que ela nunca será
terminada. Pensando assim, podemos dizer que a filosofia é a
caixa de ferramentas que nos possibilita construir, desconstruir,
reconstruir e modificar essa rede conceitual que nos envolve
(mas não é a única “caixa de ferramentas”, é claro).
O que pude notar com o estágio é que cada aula é uma
surpresa, pois enquanto a preparamos criamos certa expectativa
de como ela irá se desenvolver, qual rumo seguirá etc., mas
quando a aplicamos, ao entrar em sala, as coisas não saem
como o esperado. Por exemplo, algum assunto que era apenas
para servir de ligação, que se esperava passar despercebido,
ganha um destaque inesperado ou algo que se achou que seria
interessante acaba não sendo (não só os assuntos, mas também
as dinâmicas pensadas para um melhor aproveitamento das
aulas muitas vezes falham). Penso que isso ocorre porque uma
aula não é uma equação exata, ela depende de inúmeras
variáveis desconhecidas, por exemplo, depende do estado de
espírito do professor, da sua abertura ou não para a classe, sua
preparação para lidar com mudanças repentinas no
cronograma; também depende do estado de espírito dos alunos
e da abertura destes para o professor e para os assuntos a serem
É possível a filosofia
61
trabalhados em aula; depende de uma compreensão mínima da
dinâmica da sala, ou seja, se os alunos são mais ativos ou
passivos durante as aulas, qual é a abertura deles para
diferentes dinâmicas, se eles têm uma boa relação entre eles
próprios e com o professor; etc.
Resumindo, a aula quase nunca sai exatamente como o
esperado, às vezes supera as expectativas e outras não. É como
se tivéssemos um arqueiro e um alvo e colocássemos ambos
em constante movimentação (uma movimentação simultânea e
aleatória, ou seja, ambos se movimentam para todas as direções
sem qualquer tipo de padrão), de modo que, ao atirar a flecha
ela poderá acertar o alvo em cheio, ou acertá-lo de raspão, ou
passar muito perto, ou muito longe etc. Falando assim até
parece uma loteria, principalmente se entendermos que o
arqueiro é o professor, a flecha é o “conhecimento” e o alvo os
alunos. Porém, temos essa impressão apenas se pensarmos na
figura clássica do professor como o detentor do conhecimento
e os alunos como “os alvos a serem atingidos”.
Talvez, então, teremos um exemplo melhor se
trocarmos o alvo por outro arqueiro, assim poderíamos
entender que o conteúdo (a flecha) parte dos dois lados e um
arqueiro só atinge o outro quando houver uma sincronia nos
movimentos (uma sintonia entre professor e aluno). Isto é,
precisamos buscar essa sintonia com os alunos para que haja
um bom aproveitamento das aulas, além disso, os alunos
precisam se identificar com o conteúdo e isso requer certa
habilidade do professor para trazer os assuntos, assim como
requer também uma sensibilidade de perceber essa sincronia e
conseguir explorar isso de maneira produtiva para ambos os
lados.
Ultimamente o que me perturba são duas questões, a
primeira é sobre como conciliar “história da filosofia - temas -
problemas” e a segunda é sobre como criar essa sintonia entre
professor e aluno e, como perceber o interesse deles (os alunos)
Vinicius Arion Oliveira
62
por determinados assuntos filosóficos, para que seja possível
trabalhar em cima disso de uma forma mais significativa para
ambos os lados.
Como eu penso que muitos questionamentos filosóficos
surgem espontaneamente em diferentes etapas de nossas vidas,
acredito que possa estar aí uma das respostas, ou seja, muitos
alunos já se perguntaram sobre “o porquê” das coisas em
algum momento, mas provavelmente não dedicaram um tempo
mínimo para a reflexão sobre determinado assunto2. Isto é,
foram tocados pela curiosidade, muitas vezes ingênua, da
descoberta, mas não a sistematizaram de maneira mais crítica.
De acordo com Paulo Freire, em seu livro Pedagogia da
Autonomia, a dúvida é natural do ser humano e é através dela
que passamos do nível da intuição para uma “rigorosa
curiosidade epistemológica”. Neste sentido, ele afirma:
[...] quanto mais pomos em prática nossa capacidade
de duvidar, tanto mais eficazmente curiosos nos
podemos tornar e mais crítico se pode fazer o nosso
bom senso. O exercício ou a educação do bom senso
vai superando o que há nele de instintivo na avaliação
que fazemos dos fatos e dos acontecimentos em que
nos envolvemos (FREIRE, 1996, pg. 26).
Logo, se pensarmos que o alimento da filosofia é a
dúvida, cabe ao professor de filosofia trazer para o aluno o
gosto pelo questionamento e demonstrar a importância deste
hábito para o desenvolvimento do estudante enquanto pessoa.
Afinal, aquele que não estiver aberto à dúvida não consegue
ampliar sua noção de mundo, muito menos desenvolver seu
2 O que é comum, pois nossa tendência é elaborar respostas prontas para os
mais variados questionamentos, o que acaba reforçando um padrão de
repetição mecânica de conceitos, crenças e teorias. E isso desestima a
criança ou o jovem a investigar e, consequentemente, desenvolver um senso
crítico.
É possível a filosofia
63
senso crítico, além do que, se não houvesse essa abertura
seriam extintas quaisquer possibilidades de descobertas em
qualquer área do entendimento humano. Talvez, se for possível
mostrar aos estudantes, num primeiro contato, que a filosofia é
algo importante para o desenvolvimento humano e que todos
nós levantamos questões filosóficas (em maior ou menor grau)
em alguma etapa de nossa vida, isso já possibilitaria uma
abertura maior para abordar temas filosóficos em sala.
O que pude observar na primeira etapa do estágio
(observação) foi a importância de deixar os alunos falarem,
pois não basta chegar à sala e apresentar um tema já
acompanhado com sua opinião e “verdade” ou apenas
apresentar o tema sob a perspectiva de um filósofo clássico,
porque muitas vezes os alunos nem chegam a se identificar
com o tema, não conseguem fazer a ligação com as
experiências deles. Portanto, acho que é de extrema
importância um diálogo horizontal com os alunos, para ouvir
suas opiniões e poder apresentar, a partir delas, alternativas e
pensamentos diferentes.
Uma primeira sensibilização pode ser facilitada por
meio de filmes, fotos, músicas, literatura, notícias de jornais,
novelas, seriados e muitos outros recursos que possibilitem a
aproximação dos temas a serem abordados com o cotidiano dos
alunos. Após isso, a problematização já pode surgir dos
próprios alunos e o bom é que não precisamos nos apegar a
uma única problematização, por exemplo, do tema “liberdade”
podemos desenvolver dilemas sobre liberdade individual,
liberdade política, liberdade de expressão, liberdade de
escolhas e suas consequências, etc. E com isso trazer para a
turma, diferentes visões de vários filósofos em momentos
históricos distintos. Acredito que essa seria uma alternativa
para conciliar história, tema e problema, mostrando aos
estudantes que muitas questões colocadas por eles em sala já
foram tratadas seriamente por filósofos em algum momento da
Vinicius Arion Oliveira
64
história, mas nem por isso elas foram resolvidas. Com isso é
possível mostrar que os temas filosóficos são comuns a todos
nós (prova disso é que podemos localizá-los em diferentes
pessoas e também em diferentes momentos históricos) e que as
várias formas de problematização são decorrentes de fatores,
como por exemplo, o contexto social e cultural, o momento
histórico, as crenças pessoais do indivíduo, etc.
Neste sentido, penso na filosofia como uma ferramenta
fundamental para despertar o senso crítico nos alunos, uma
ferramenta que os auxilia a quebrar esse círculo vicioso de
repetição-assimilação-reprodução e proporcione o suporte
necessário para o desenvolvimento da crítica e, acima de tudo,
da criação.
Antes de iniciar a segunda etapa do meu estágio (a
docência), uma leitura que me auxiliou muito na preparação
das aulas foi, novamente, a de Paulo Freire. Em sua obra
Educação como prática de liberdade ele propõe um método
para a alfabetização de adultos que se baseia no
desenvolvimento crítico e na capacidade de criação, algo
diferente do método de repetição mecânica das cartilhas. Em
suas palavras:
[...] a alfabetização não pode ser feita de cima para
baixo, como uma doação ou uma imposição, mas de
dentro para fora, pelo próprio analfabeto, apenas com a
colaboração do educador. Por isso é que buscávamos
um método que fosse também instrumento do
educando e não só do educador e que identificasse,
como lucidamente observou um jovem sociólogo
brasileiro, o conteúdo da aprendizagem com o
processo mesmo da aprendizagem (FREIRE, 1967,
p.110).
A proposta central desse método é situar o sujeito, no
caso o analfabeto, como protagonista do processo de
aprendizagem, não mais o tratando como um mero expectador
É possível a filosofia
65
passivo, destinado a apenas receber os conteúdos. Ao ler esses
parágrafos, me identifiquei muito com a ideia central e pensei
que não só a alfabetização, mas a educação em geral poderia
ser pensada por essa perspectiva construtiva. Então comecei a
elaborar minhas aulas com inspiração nessa ideia que, aliás,
condizia com o que pensava antes, na etapa de observação.
A proposta do professor Leonardo foi que nós (eu e o
Horklin) trabalhássemos A República de Platão ao longo do
último trimestre. Pensamos em uma maneira de conciliar essa
ideia de trabalhar junto com os alunos, construindo os
conceitos, e inserir as ideias de Platão. A nossa proposta foi a
de, antes de trazer qualquer ideia da República, trabalhar os
temas presentes na obra junto com os alunos, sob a perspectiva
deles e apenas depois fazer a relação com as ideias de Platão.
Expondo de maneira bem resumida, dividimos nossas
aulas da seguinte maneira: iríamos trabalhar basicamente com
três temas, “Democracia e outras formas de governo”, “Justiça”
e “Educação”, buscando sempre partir da perspectiva dos
alunos sobre cada tema e depois vincular com Platão. Antes de
iniciar cada assunto, sem fazer qualquer consideração ou
comentários prévios, pedimos que os alunos escrevessem em
uma folha de papel o que eles pensavam sobre o tema, por
exemplo, em nossa primeira aula, logo que entramos em sala
pedimos para eles escreverem o que era democracia e logo em
seguida iniciamos um debate partindo dos escritos e
comparando com outras concepções de democracia e com
outras formas de governo.
Para nossa segunda aula, levei as folhas com as
respostas para casa e preparei um resumo sobre democracia e
formas de governo me baseando em algumas palavras que
foram mais citadas pelos alunos e o Horklin preparou uma
apresentação sobre o que Platão pensava sobre a democracia,
monarquia, aristocracia, etc. para fazermos uma comparação e
iniciarmos uma discussão com a turma. Entretanto, como
Vinicius Arion Oliveira
66
mencionei acima, que muitas aulas não saem como o esperado,
essa segunda aula, ao menos para mim, não saiu conforme a
expectativa, pois os alunos não se sentiram motivados a
continuar a discussão e a aula acabou virando uma aula
expositiva e não dialogada. Mas avaliando o pós-aula, percebi
que a maior parte da culpa disso foi nossa, que devido à falta
de experiência pecamos em alguns pontos, por exemplo, os
alunos estavam esperando um retorno sobre as questões que
eles haviam entregado na aula anterior e já no início da aula
ficaram um pouco decepcionados ao pegarem de volta suas
respostas sem nenhuma correção ou comentário. Outro ponto
foi o que preparamos uma aula inteira pensando apenas na
participação dos alunos e quando eles não participaram ficamos
um pouco perdidos, não pensamos em um “plano B”.
A terceira aula eu preparei sozinho, sobre o tema da
Justiça, então ao final de segunda aula pedi para que eles
escrevessem o que entendiam por Justiça e me entregassem.
Dessa vez corrigi, fiz um comentário e coloquei uma questão
para reflexão em cada uma das respostas3. Separei as respostas
em cinco grupos diferentes, cada um com uma definição de
Justiça (já pensado para fazer a ligação com as cinco definições
expostas em A República) e a ideia foi a de escrever essas
frases deles na lousa e discuti-las em sala. Para iniciar a aula,
preparei uma exposição rápida sobre os significados e a
simbologia da Justiça nas mitologias egípcia, grega e romana,
com o intuito de fazer uma reconstrução histórica das
definições de Justiça e apontar algumas semelhanças com as
definições atuais. Em seguida, fui escrevendo as frases deles na
lousa e propondo o debate, essa parte foi bem legal, pois ao
verem suas frases escritas na lousa eles ficaram empolgados e
se sentiram mais confiantes para argumentarem a favor ou
contra tais definições (alguns até repensaram suas próprias
3 E realmente, quando entreguei para eles as questões corrigidas e
comentadas a recepção foi outra, completamente diferente da aula anterior.
É possível a filosofia
67
definições, pois se identificaram mais com a do colega) e a aula
fluiu bem até o final.
Para a quarta aula, eu seguiria a discussão relacionando
as definições dos alunos com as definições de Platão, porém,
não pude comparecer e quem fez isso foi o Horklin, que
também pensou em um filme para a quinta aula. O filme se
chama “O Doador de Memórias” que retrata uma sociedade
ideal do futuro que se assemelha muito aos moldes do que
Platão descreveu em A República.
Finalmente, nossa penúltima aula foi uma apresentação
geral da República, mostrando a concepção de educação para
Platão e deixando clara a proposta central do livro que é a
construção de um modelo de sociedade ideal. E a última aula
foi avaliação. Como avaliação, pensamos em uma maneira de
pedir algo mais informal, como uma redação, para fosse
possível notar o que eles absorveram das discussões nas aulas.
Pedimos a eles para formarem grupos de quatro pessoas e
construírem (juntos) uma cidade ideal, especificando como
seria o governo, a justiça e a educação. Através do que eles
escreveram foi possível comparar com as questões entregues
nas primeiras e notar uma mudança em algumas definições.
Minha avaliação geral das aulas foi positiva, mas é
claro que fiquei com a sensação de que poderia ser melhor,
houve muitas falhas e boa parte delas devido à inexperiência,
mas com certeza elas contribuíram e contribuirão para
melhorar minhas experiências futuras de docência. Por isso,
uma coisa que continuo acreditando e que pretendo prosseguir
e aperfeiçoar é a ideia de que a filosofia, no ensino médio, deve
ser trabalhada de maneira conjunta entre professor e aluno,
com base no diálogo aberto, valorizando as opiniões dos alunos
e buscando desenvolver o senso crítico e estimular o
questionamento. Na perspectiva da não acomodação e
repetição de conteúdos, mas de criação conjunta, trazendo para
o debate grandes temas e nomes da história da filosofia para
Vinicius Arion Oliveira
68
relacionar com as opiniões cotidianas, mas não como um
argumento de autoridade, que vise corrigir ou impor uma
verdade absoluta para tal questão e sim como uma perspectiva
diferente (ou semelhante) que foi formulada de maneira mais
sistemática, mas que nem por isso não pode ser refutada.
Enfim, encerro meu ensaio com uma frase de Paulo Freire que
é muito significativa para mim, pois representa minha visão
particular de filosofia: “Estudar não é um ato de consumir
ideias, mas de cria-las e recriá-las” (FREIRE, 1981, p.10).
REFERÊNCIAS
FREIRE, P.. Ação cultural para a liberdade e outros
escritos. 5° edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1981.
FREIRE, P.. Educação como prática de liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra. 1967.
FREIRE, P.. Pedagogia da Autonomia. 25° edição, Rio de
Janeiro: Paz e Terra. 1996.
69
UMA POSSIBILIDADE PARA O ENSINO DE
FILOSOFIA ATUAL: O INTERCRUZAMENTO
KATHEGELIANO EM DOIS ATOS
Lucas Beligni Campi
Ressignificância Desconstrutiva
Me disseram que lá era diferente,
Como se eu acreditasse que podia ser igual.
Que ali não era a realidade,
Como se eu ainda acreditasse no real.
E tudo foi muito rápido. Quando menos percebi já estava ali na
frente. Falava de igualdade, singerismo, Thomas Hobbes e connatus. Não
tinha muito segredo, eu já sabia tudo sobre eles. Já os conhecia antes
mesmo de encontrá-los...
E na sensibilização que nem sempre sensibiliza,
Eu ressignificava.
E eles desconstruíam.
Esqueceram de me avisar que da minha técnica eles conheciam.
Que eles também ensinavam e me investigariam...
Olhava no relógio
Já era tempo de problematizar.
E no problema levantado, novos problemas surgiam.
Foi então que percebi que não se entra duas vezes na mesma aula.
Que quando tentava, já tinha ido. E tudo sobre eles agora já não fazia mais
sentido...
Eu me ressignificava,
Eles me desconstruíam.
Eu investigo,
Eles me sensibilizam.
Thor João Veras
70
E nessa dança metodológica, quase sem metodologia, eu tentava
resistir mas com tantos mediadores, eu já não media....
E na ressignificância desconstrutiva minha certeza evanescia.
1. Base Teórica
Em meu último ensaio da licenciatura em filosofia
comentei sobre A impossibilidade do ensino de Filosofia no
modelo atual lembrando como tal modelo não permitiria o livre
pensar, requisito básico para o verdadeiro filosofar:
Já de início manifesto minha opinião de como
imagino uma boa aula de filosofia: educador e
educandos decidiriam juntos os temas a serem
estudados; alunos manifestariam suas opiniões e
participariam ativamente das aulas; a disposição
das cadeiras – isso quando os envolvidos não
sentassem diretamente no chão – seria
circular; haveria direta relação entre os assuntos
tratados e a realidade daqueles alunos e o
professor apenas faria o papel de um mediador
que iria suscitando questionamentos e lincando
os temas com a história da filosofia, citando
assim grandes filósofos e suas principais teorias.
Ou como ouso apelidar, o intercruzamento
Kanthegeliano (CAMPI, 2013).
No entanto, para tal conclusão, tive como base
experiências próprias de sala de aula enquanto professor de
outras disciplinas e somente agora após vivenciar de fato o
curso de filosofia no Instituto Federal de Santa Catarina
(IFSC) mudei consideravelmente de opinião. E da proposta
Intercruzamento Kanthegeliano adicionei o termo dois atos.
Ensino da filosofia
71
Primeiramente não será inútil pontuar como tal escola é
distinta da realidade comum escolar, contudo ainda assim, é
uma escola pública que segue a proposta curricular nacional e
acaba sendo um exemplo de como é possível atingir tal
excelência estudantil no modelo atual, o que contradiz minha
antiga concepção das aulas de filosofia. Ou seja, há um lugar
dentro do sistema público educacional em que professores e
alunos são convidados de fato para o pensar filosófico.
Obviamente que o IFSC também possui uma série de
desafios para ainda otimizar o ensino mas mantêm um
diferencial significativo que é em relação a autonomia dos
estudantes, possível parcela que propiciou atingir tal
suficiência filosófica. Aos alunos e alunas não é imposto a
permanência ou entrada nas aulas; assim como ficam livres
para o uso de dispositivos eletrônicos mesmo durante o
discurso do professor e cabe a eles decidir quais técnicas
preferem utilizar para seu aprendizado. Por fim, não possuem
notas para os avaliar, mas sim conceitos que toleram maiores
deslizes argumentativos por parte deles.
Isso tudo para clarificar como imagino os passos
seguidos por tal instituição para alcançar as aulas que
presenciei: aulas de diálogo constante; temas atuais da
realidade dos envolvidos; ou em outras palavras, um
aprendizado ativo. E a estratégia é semelhante à proposta por
Sílvio Gallo (2012): “Se a filosofia é o sentimento de
ignorância, é porque nela é fundamental a experiência do
problema. Não se produz filosofia sem um problema, o que nos
leva a afirmar que o problema é o motor da experiência
filosófica do pensamento”.
Desse modo, primeiro se ensina a história da filosofia
com seus autores e revisa os passos que estes usaram para sair
do problema e chegarem a seus conceitos: um primeiro ato ou
momento, a parcela hegeliana, em que a filosofia precisa ser
contextualizada historicamente, mas o enfoque é para os
Thor João Veras
72
problemas, para motivar o pensar dos ouvintes. Assim como
Gallo defende, o motor do pensamento são os problemas e se
faz necessário revisá-los para exercitar o pensar.
E em um segundo momento, finalmente, abrir para os
educandos o livre filosofar, parcela kantiana, para que agora
com o pensar fortalecido com as revisões conceituais dos
grandes pensadores possam também conceituar. O que sugere o
maior desafio, pois apesar de todos nesse segundo ato serem
convidados a filosofia, poucos atingirão a maestria – até porque
como qualquer ocupação, ao filósofo também é exigido certa
vocação.
E todo esse processo exige criatividade para que os
conceitos também tragam a marca dos educandos, o que nas
palavras de Montaigne seria parecido com o processo de
produção de mel pelas abelhas:
As abelhas libam flores de toda espécie, mas
depois fazem o mel que é unicamente seu e não
do tomilho ou da manjerona. Da mesma forma
os elementos tirados de outrem, ele os terá de
transformar e misturar para com eles fazer obra
própria, isto é, para forjar sua inteligência
(MONTAIGNE, 1987, p.78).
Mas para além da criatividade precisaremos também do
envolvimento dos alunos e alunas, de sorte que os problemas
precisarão vir da realidade dos mesmos para ser de verdadeiro
interesse. Que eles possam se identificar com as questões
levantadas e assim perceberem como grandes pensadores já
vivenciaram problemas semelhantes, criando assim uma
identificação até mesmo com a própria filosofia. E aqui
novamente podemos recorrer às belas palavras de Montaigne:
É de um grande simplismo ensinar aos meninos
“o sentido dos Peixes, do Leão resplendente, ou
Capricórnio que se banha nas águas da
Ensino da filosofia
73
Hespéria”, a ciência dos astros e movimentos da
oitava esfera antes de lhes abrir os olhos para os
próprios sentidos: “que tenho a ver com a
Plêiade, e a estrela boieira?”. Anaxímenes
escrevia a Pitágoras: “Como posso preocupar-me
com o segredo das estrelas, quando tenho sempre
presente a meus olhos a morte ou a escravidão?”
(MONTAIGNE, 1987, p. 79).
Dessa forma, fica nítida que essa clara separação dos
atos não se dá na prática – no primeiro já aparece o segundo e
vice-versa – e por isso intercruzamento. Essas metodologias
vão se cruzando por todo processo educacional e mesmo que
alguma seja priorizada em determinada circunstância, nunca se
exclui o manifestar da outra.
Em outras palavras, seria louvável que, enquanto o
enfoque seja na história da filosofia, os alunos já possam
arriscar conceituações, e quando mudar o foco para o livre
manifestar, também se possa recorrer ao saber historicista,
quando esse se fizer necessário. E aí fica ainda mais claro o
papel do professor enquanto mediador, aquele que percebe as
urgências do grupo e vai direcionando o processo de
aprendizagem.
Então, mesmo que nem todos os alunos possam de fato
filosofar, ainda assim essa proposta tenta incentivar os poucos
que possuem inclinação para tal, o que já contribui
consideravelmente quando lembramos que também é papel dos
professores de filosofia incentivar futuros filósofos e não dar
continuidade ao modelo de aulas convencionais em que se
ensina apenas uma pobre história da filosofia e acaba por matar
qualquer ímpeto de filosofar.
Crítica essa muito recorrente no nível de ensino
superior – mas que evidentemente também serve para o ensino
de base – bem exemplificada pelos professores Porchat e
Murcho, quando mostraram em seus estudos como o estudante
que acaba por entrar em um curso de filosofia e recebe o
Thor João Veras
74
modelo de aula mais comumente aplicado não apenas são
desestimulados do livre pensar como exauridos de qualquer
inclinação filosófica. Murcho se referindo ao aluno:
Dele não se espera realmente que filosofe, nem
lhe são fornecidos os instrumentos para isso.
Dele espera-se apenas que compreenda as ideias
dos filósofos do passado; ou que reinterprete os
seus escritos [...]. A sua atividade acadêmica
consistirá que exclusivamente em relatórios
sobre o que os filósofos pensam. Não consistirá
em tentativas progressivamente mais sofisticadas
para filosofar. Tal pretensão pode até ser vista
como ridícula (MURCHO, 2008).
Ou nas palavras de Porchat:
Porque o temor que me assalta é que, levados
pela nossa segura consciência de que a Filosofia
se alimenta continuamente de sua história,
tenhamos ido longe demais na prática da
orientação historiográfica. Que, no
louvável intuito de assegurarmos a nossos
estudantes uma sólida base de conhecimentos
historiográficos, de os afastarmos de um achismo
inconsequente próprio dos que nunca
frequentaram de perto o pensamento dos grandes
filósofos nem aprenderam a dura disciplina das
lógicas internas aos grandes empreendimentos
filosóficos, tenhamos perdido de vista a meta que
muitos desses estudantes – e de nós, também –
tinham – tínhamos – em nossos horizontes: a
elaboração de uma reflexão filosófica, a
compreensão filosófica de nós mesmos e
do mundo (PORCHAT, 2010, p.26).
E é nesse sentido que urge repensarmos um novo
modelo semelhante ao dessa instituição, para que a filosofia
cumpra talvez seu maior papel na vida dos estudantes que é a
Ensino da filosofia
75
ressignificação de suas existências. Ou em outras palavras,
como a filosofia busca os problemas e não as soluções, ela tem
a possibilidade de fortalecer o pensar e assim propiciar a cada
educando o enfrentamento diário dos próprios problemas e
também do seu existir.
2. Parte Prática
Para as aulas ministradas na instituição em questão
seguimos os temas previstos no cronograma feito pela
professora supervisora da escola, contudo, ficou ao nosso
critério a escolha da metodologia. No meu caso, acabei
ministrando dez aulas, sendo cinco planejadas e cinco
espontâneas.
No caso das planejadas, foram duas sobre Bioética e
três sobre Ética Deontológica. Na verdade como sempre são
aulas duplas, em um dia pude discorrer sobre a filosofia de
Peter Singer na sua obra Ética Aplicada e na outra semana
sobre os conceitos de Kant. Mas ainda retomamos Kant na aula
de Ética Teleológica.
A metodologia que tentei recorrer foi a descrita nesse
trabalho, como, por exemplo, na aula sobre Ética Deontológica
passei aos alunos trechos com ações morais do filme Batman
Dark Night – tentativa de Sensibilizá-los com algo atual e
próximo da realidade da turma em questão – e
Problematizando passei a palavra a eles para saberem o que
acharam das cenas e se seriam ações boas ou más – aqui já
iniciando o processo de aprendizado ativo.
Após esse primeiro momento, iniciamos a Investigação,
ou primeiro ato, discorrendo sobre a teoria kantiana e seu
conceito de Imperativo Categórico. Dessa forma, pudemos
perceber que as cenas ditas do bem foram relacionadas com o
personagem Batman e as ditas do mal a seu inimigo Coringa.
Thor João Veras
76
No entanto, após compartilharmos da teoria kantiana tivemos a
percepção que classificar as ações das personagens não é algo
simples.
Nesse momento final, os alunos e alunas perceberem
que foram precipitados nos seus julgamentos, e começaram, a
partir da teoria, a Conceituar, ou segundo ato, e aqui chegamos
na oficina de Conceito e na Ressignificação existencial dos
alunos. Pois, com muita criatividade os estudantes, motivados
pelo mediador, começam a relacionar tal filosofia com a sua
vida e percebem como as ações morais possuem uma grande
complexidade e que não basta julgarmos algo como positivo
para que de fato possamos ignorar os escrúpulos morais e
realizar tal ação. Dessa forma, também ficou uma lição de casa
para que eles percebam seus atos, e os que observarem,
busquem autonomia e consigam julgar seus atos com maior
bagagem crítica.
Já no caso das aulas ditas espontâneas, que ocorreram
sem aviso prévio, foram formas de ocupar os horários abertos
criados pela desistência da apresentação de um dos grupos de
educandos. Quatro destas foram sobre Thomas Hobbes e uma
apenas sobre Rousseau. E nesse caso, ocorreram de maneira
clássica, exposição pouco dialogada, pois sequer havia um
plano de aula.
Além das aulas, tentamos trazer para as avaliações um
pouco da proposta descrita nesse trabalho. Destaque para duas
delas: uma discursiva individual, mas com a possibilidade de
consulta do grupo que pertencia, foi formado grupos mistos
com cada integrante oriundo de uma área diferente do
seminário que apresentou, e a outra discursiva, individual, sem
consulta, que exigia do aluno a análise de um relato de caso
segundo as diferentes concepções teóricas sobre a Ética.
Não será inútil para finalizar, citar também que, de
maneira geral os alunos e as alunas se saíram muito bem nas
avaliações e que a participação dos mesmos nas aulas
Ensino da filosofia
77
ocorreram de forma intensa e geral. Não houve sequer um
deles que não tenha arriscado conceituações e participações
críticas bem situadas durante as aulas.
3. REFERÊNCIAS
CAMPI, Lucas Beligni. A impossibilidade do Ensino de
Filosofia no modelo atual, 2013. Não publicado.
GALLO, Silvio. Metodologia do Ensino de Filosofia, 1.ed. São
Paulo: Papirus, 2012.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. 4.ed. São Paulo: Nova
Cultura, 1987.
MURCHO, Desidério. A natureza da filosofia e o seu ensino.
Educ. e Filos., Uberlândia, v. 22, n. 44, p. 79-99, jul./dez. 2008.
Disponível em <http://criticanarede.com/naturfilosofia.html>.
Acesso em 06/03/2015.
PORCHAT, Oswaldo. Discurso aos estudantes sobre a
pesquisa em filosofia, Fundamento, Ouro Preto, v. 1, n. 1
set./dez. 2010. Disponível em:
<http://www.revistafundamento.ufop.br/index.php/fundamento
/article/view/13/4>. Acesso em: 06/03/2015.
79
ENSINO DA FILOSOFIA: UM EXERCÍCIO
ANTROPOFÁGICO
Thor João de Sousa Veras
"Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente. "
Oswald de Andrade
(Manifesto antropofágo)
Este ensaio é resultado do anseio de se pensar a
possibilidade pedagógica da filosofia no ensino médio e o
sentido que a minha vivência numa sala de aula me provocou a
pensar com olhos livres as infinitas potencialidades dessa
experiência educativa nos trópicos. Reuni nessa bricolagem de
reflexões algumas incursões
conceituais em busca do sentido do
ensino da filosofia oriundos da
minha prática como observador e
docente no terceiro ano "A" do
Colégio de Aplicação da
Universidade Federal de Santa
Catarina, sob supervisão dos
professores Sandro Rosa e Daiane
Martins, para a disciplina de estágio
obrigatório supervisionado,
necessária para a conclusão da licenciatura plena em filosofia.
Partindo de uma provocação (tupinambá-)nietzschiana
de que toda história da filosofia é prova de "uma má
compreensão do corpo", detive-me em um recorte filosófico
que não se constitui contra o corpo, a despeito dele ou sem ele,
mas com ele. Evidenciando que mesmo em Espinosa, ou
Thor João Veras
80
depois Gilles Deleuze, e Nietzsche entre os dois, a questão: o
que pode o corpo? ainda não foi verdadeiramente explorada.
Para trilhar esse percurso, contei com duas inspirações teóricas,
uma na contra-história da filosofia, do filósofo hedonista
Michel Onfray e outra na antropofagia cultural brasileira, do
filósofo original brasileiro, Oswald de Andrade.
1. Onfray e Oswald: um encontro possível
Michel Onfray apareceu há alguns anos na cena
intelectual da França como um nietzschiano iconoclasta,
defensor de um hedonismo atualizado ao tempo presente.
Doutor em Filosofia, hoje, é um dos ensaístas mais populares
de seu país apontado como continuador da obra de Foucault e
Deleuze. Lecionou por 20 anos em um liceu para secundaristas
até criar a “Universidade Popular de Caen” em 2002, após
demitir-se do sistema de ensino francês1. Onfray elabora um
diagnóstico crítico da situação do ensino da filosofia não
somente nos liceos secundaristas mas também na forma em que
a filosofia era ensinada nas academias. Segundo o pensador
francês, o modelo implementado nas instituições educativas de
ensino da Filosofia, não está voltada para o filosofar autônomo
no sentido kantiano , mas para a reprodução técnica da História
da Filosofia , no sentido hegeliano, uma história construída
culturalmente por filósofos do Ocidente e permeada por um
idealismo que remonta Platão:
1 Em seu afastamento alegou todos os motivos do seu desgosto pelo ensino
tradicional: a burocracia, o adestramento no lugar da educação, a disciplina
no lugar da instrução, a formatação intelectual e ideológica de indivíduos
destinados a servir ao mercado, o conteúdo pobre, o corpo docente triste,
sem pathos, desmobilizado pelo desprezo dos alunos.
Ensino da filosofia
81
Assim como se escrevia a história da filosofia
apenas do ponto marxista-leninista no Império
Soviético, o idealismo europeu que chegou aos
trópicos é outro, a historiografia dominante no
ocidente liberal é platônica. As histórias da
filosofia empenham-se em mostrar a riqueza
das variações sobre esse tema idealista.
Esquecem que o problema não está na variação
mas no eterno refrão do velho serrote musical
do tema (ONFRAY, 1990, p. 13).
Não é à toa que o filosófo da matemática Alfred
Whitehead escreve em Process and Reality que a mais segura
descrição da tradição européia é a de que ela consiste em uma
série de anotações a Platão. Ou seja, como professores recém-
formados, temos como partida uma história única, canônica,
objetiva, como referência para consulta no preparo das aulas ao
mesmo tempo que nos utilizamos desse mesmo ponto de
partida para reproduzir e debater na sala de aula.
De acordo com o filósofo do martelo, Nietzsche, essa
educação para a Filosofia não seria outra coisa senão o
afastamento da própria Filosofia do filosofar primitivo: um
filosofar que acontece a partir de suas forças, por meio dos
próprios recursos extraídos e cultivados com a vida, pensada
com o intuito de exprimi-la numa linguagem e produtiva e
criativa, perturbadora de tudo aquilo que a faz sucumbir,
fazendo o homem a renunciar a ela.
Em consonância com Nietszche, Onfray acredita que a
filosofia deve ocupar-se em encarar o corpo por inteiro. Desta
forma, os cinco sentidos são recuperados a serviço dos prazeres
e elevados à condição pragmática contra a tradição de
abandono do corpo no pensamento ocidental. O que pretende
Onfray é ir na contra-corrente e pensar uma contra-história
onde o corpo seja privilegiado, por isso, escreveu um
compêndio pedagógico e didático ao ensino contemporâneo da
filosofia, um antimanual que contesta o ensino enciclopédico e
Thor João Veras
82
uma série de seis livros da contra-história da filosofia, de
Leucipo até Lyotard.
Procedimento similar foi operado pelo escritor e
agitador cultural Oswald de Andrade em sua tese para a cadeira
de filosofia da USP em 1950 chamada "A crise da filosofia
messiânica" onde lança a hipótese de um dualismo na história
da filosofia, entre uma cultura messiânica, (transcencente,
classista e patriarcal) e uma cultura antropófaga (imanente,
sem-classes, matriarcal):
Tendi e tendo cada vez mais para uma filosofia
que chamo de filosofia da devoração. A vida é
devoração pura e só há uma conduta a seguir: o
estoicismo. É verdade que outro conceito da
existência divide a humanidade. É o conceito
messiânico e salvacionista. Os que se
enfileiram debaixo dessa bandeira são os que
acreditam que há qualquer coisa a salvar dentro
deste mundo ou fora dele. O primeiro
pensamento é que presidiu a vida das
sociedades primitivas tão superiores às
sociedades civilizadas. Estas servem-se do
messianismo para criar as servidões do corpo e
do espírito e as ilusões de toda espécie
(ANDRADE, 1970, p.56 ).
Tal projeto fora interrompido pela morte do autor, mas
deixou uma vasta influência para outros que pretendem re-
atualizar e celebrar o conceito de devoração no cenário cultural
e acadêmico, a sua importância hoje é expressa na frase
contudente de Augusto de Campos: "a antropofagia expressa
nas obras de Oswald de Andrade e outros é “a única filosofia
original brasileira e, sob alguns aspectos, o mais radical dos
movimentos artísticos que produzimos”.
Este movimento constituiu-se em uma tendência que se
manifestou em vários campos da cultura nacional. Nas artes
plásticas com Hélio Oiticica; Glauber Rocha no cinema novo;
Ensino da filosofia
83
Augusto Boal, no Teatro do Oprimido, a música, que tornou
mais conhecida, esta tendência contou entre outros, com
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Torquato Neto,
Capinam, Gal Costa, Nara Leão, maestro Rogério Duprat.
Oswald via na visão de mundo antropofágica dos índios
brasileiros uma máquina de guerra que se deparava com o
projeto ocidental de uma história da filosofia que separou do
corpo e da alma, privilegiando esta em função da outra. O
filósofo da devoração afirmava que os trópicos apresentou ao
europeu, homem filosoficamente vestido, a verdade filosófica
do "homem nu", entenda-se, a possibilidade de uma relação
nua do homem com a verdade. Uma das declinações desta
verdade já se lia na frase lapidar do Manifesto Antropofágo de
1929: "o espírito se recusa a conceber o espírito sem o corpo".
A antropofagia, considerada como um ato natural e
instintivo de devorar o outro, adentra na minha reflexão como
uma noção teórica experimental que pensa a prática filósofica
como uma atitude do corpo que devora o outro e o mundo, que
processa e transforma o processado, criando novos sentidos,
outras possibilidades de reinventar e transformar o mundo, o
outro e a si mesmo:
(…) pensar o pensamento como algo que, se
passa pela cabeça, não nasce nem fica lá; ao
contrário, investe e exprime o corpo da cabeça
aos pés, e se exterioriza como afeto
incorporante: predação metafísica, canibalismo
epistêmico, antropofagia política, pulsão de
transformação do e no outro. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2012, p.263)
2. Estágio Docência
Em conjunto com o professor supervisor, Sandro Rosa,
elaborei um plano de ensino que traçava um crítica à tradição
Thor João Veras
84
dualista no pensamento ocidental. Elas eram dirigidas
essencialmente a duas correntes: uma socrático-platônica, que
busca a verdade antropocêntrica no mundo das ideias, em
detrimento das experiências sensíveis, e a outra via cartesiana,
que rearticula o dualismo clássico na esfera do individualismo.
Nas sextas-feiras pela manhã, no primeiro horário, às
7h30, aconteciam meus encontros com a turma do terceiro ano
"A". As aulas consistiam num convite aberto à experimentação
de se pensar o corpo como objeto de análise e discussão
filósofica e seus desdobramentos práticos na vida de cada
aluno.
Para essa aventura, Epicuro, Nietzsche, Bataille e
Foucault fizeram parte do cardápio dos nossos encontros, suas
teorias serviram de ingredientes para debates e discussões em
vista da construção filosófica de uma estética de si, ou algo
parecido com isso. Desse modo as aulas colocaram em questão
como cada pensador elaborou um pensamento crítico sobre o
corpo e o seu domínio, através dos desejos, afetos, potências,
experiências interiores ou uso dos prazeres e cuidado de si.
As aulas seguiam um programa aberto à resposta que
cada aula nos dava em retorno da temática do "corpo", os
alunos eram o termômetro filosófico para que caminho a
experiência conduzia. Diversos poemas, contos, vídeos de
longa e curta metragem, programa de televisão foram
utilizados para afetar o aluno em algum sentido para propor e
criar questões e problemas para serem postos em debate na sala
e na vida.
O que se aproxima do método utilizado nas aulas foi
uma adaptação própria dos passos para o aprender de Paulo
Freire, em a Pedagogia do Oprimido, e da pedagogia
rizomática do conceito de Sílvio Gallo, com as etapas de
sensibilização, problematização, investigação e conceituação.
A avaliação seguiu um caminho contrário à verificação por
meio de provas múltipla-escolha sobre o assunto. Além dos
Ensino da filosofia
85
debates recorrentes e nas diversas intervenções dos alunos à
medida que eram afetados pelo tema, provocados pelos
problemas, e instigados pelas investigações, sugeri que eles
produzissem um ensaio filosófico sobre uma obra de arte,
retirando ali o que tinha de filosófico sobre o tema proposto,
um exercício de "inestética":
[...] uma relação da filosofia com a arte, que,
colocando que a arte é, por si mesma, produtora
de verdades, não pretende de maneira alguma
torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra
a especulação estética, a inestética descreve os
efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos
pela existência independente de algumas obras
de arte (BADIOU, 2012, p.1).
Nos ensaios se encontrava, na forma de escrita de si, a
reflexão filósofica dos afetos e a relação das perspectivas deles
sobre temas tão recorrentes na vida dos estudantes, como a
felicidade, o amor, sexualidades, entre outros. Todos
conseguiram traduzir numa escrita oblíqua e não sistemática a
relação que a filosofia e certos conceitos possam ser
reapropriados no cotidiano deles, em diversas situações, em
distintas reflexões com a cultura e as experiências que
transpassam suas vivências. O resultado desse trabalho
apareceu como uma atividade de encerramento no auditório do
colégio, fizemos da última aula um evento artístico, uma
"mostra" com a temática de "Corpo: erotismo, sexualidade e
gênero." Os alunos produziram poemas, músicas, curtas
audiovisuais, clipes de música e críticas culturais. Todos
demonstrarem estar em sintonia com as novas descobertas de si
e do mundo através da aventura do corpo tão explorada nos
nossos encontros. E uma posição mais crítica frente às
patologias e preconceitos que a liberdade do corpo enfrenta
frente a sociedade. Uma nova forma de se relacionar com o
Thor João Veras
86
mundo e consigo de uma maneira autonôma e não reprodutora
de formatos pré-dispostos.
3. Ensino da Filosofia
Desde meu primeiro encontro com os colegas e
supervisores da prática docente deste ano uma pergunta foi
posta como desafio e linha condutora da reflexão durante nossa
imersão na escola: é possível ensinar filosofia no ensino
médio? Se sim, como?
Tive boas reflexões e conversas sobre essa problemática
no decorrer deste intenso ano. Primeiramente, há de se levar
em conta o fato importante de que tive as condições propícias
para um ensinar e uma experimentação plena, tive recursos
técnicos quando precisei, auxílio de dois professores que me
ensinaram muito sobre a prática docente, tive uma turma com
uma disposição digna para as atividades e provocações que
surgiram, e um colégio com uma comunidade muito integrada
e com aparatos pedagógicos disponíveis. Além da experiência
oportuna de já ter sido aluno na mesma instituição. De fato,
esse não é o retrato da maioria dos alunos de filosofia dos 50
cursos de graduação em licenciatura que a cada ano saem da
universidade, por relatos de colegas próximos e de professores
que trabalham com a temática da filosofia da educação, as
situações são bem adversas, escolas não equipadas, corpos
docentes e técnicos não preparados, violência escolar,
desinteresse generalizado, entre outros bloqueios de uma
convivência e respeito mútuo do ambiente escolar.
Portanto, é importante frisar que o laboratório do
estagiário forasteiro só se desenvolveu e despertou em mim
possibilidades ativas e criativas do ensino, por ter a consciência
de que os ambientes de ensino de filosofia no ensino médio no
Brasil afora não são ideais para um filosofar enriquecedor da
Ensino da filosofia
87
experiência do aluno. Disso segue-se, respondendo a pergunta
inicial, que o ensino da filosofia para estudantes secundaristas
é possível e desafiador ao mesmo tempo, mas de modo muito
distinto da forma em que se é ensinada a filosofia no ensino
superior. Em grande medida, porque acaba-se por ensinar como
"se foi ensinado” (CERLETTI, 2009, p.56).
Indubitavelmente, a sala de aula te desafia a se
reconfigurar completamente no momento em que você se
depara com a multiplicidade em jogo e com os limites do
ensino acadêmico. Por exemplo, de acordo com o professor
Desidério Murcho, uma das primeiras coisas que o professor de
filosofia recém-formado descobre com espanto é que o que
estudou e aprendeu na faculdade é praticamente irrelevante na
sua prática letiva (MURCHO, 2002, p.9).
A transposição exata do formato das aulas em que fui
ensinado catedraticamente pela maioria dos professores do
departamento seria um desastre pedagógico para a realidade de
alunos de Ensino Médio. Não pelo fato de que meu
aprendizado foi realizado de uma forma errada, creio que para
a vivência da pesquisa a universidade dá as ferramentas para a
compreensão do conteúdo, seus procedimentos, e sua leitura
exegética monográfica, para uma análise erudita do estudante.
No entanto, no ensino médio, não estamos formando
especificamente pesquisadores. Tampouco estamos lidando
somente com a formação de bons e dóceis cidadãos, como o
Ministério da Educação sugere em suas recomendações
programáticas. A sala de aula, esta pluralidade de seres
humanos com trajetórias e histórias, tem que estar aberta às
vivências dos alunos e a sua potencialidade criativa de dar
sentido nos textos e conceitos à sua vida, não como uma
formação moral e cívica, ou mesmo na forma exegética
acadêmica, que transforma o texto em um enfadonho fim em si
mesmo. É um fenômeno semelhante ao que o sociólogo Pierre
Bourdieu relatou sobre o ensino francês da metade do século:
Thor João Veras
88
há de um lado aqueles que sustentam que para compreender a
literatura ou a filosofia, é suficiente ler os textos.
No texto "A coruja na gaiola", o professor de filosofia
política Alessandro Pinzani diagnostica a situação da filosofia
encontrada em boa parte dos departamentos em que ele passou.
Nesse texto ele constata que a filosofia acadêmica praticada
nos departamentos de filosofia está imersa numa lógica onde
apenas se repete o pensamento de um filósofo de um
comentador fechado sobre si mesmo sem que seja possível a
abertura a experiência de pensar um problema que afeta a sua
vida filosoficamente, isso é a partir da experiência do e com o
próprio filosofar. Acontece que o ensino da filosofia herdeiro
dessa cultura acadêmica é reproduzido como uma transmissão
de conteúdos cujo objetivo é fazer que o aluno acumule o
máximo de informações possíveis através de modelos
filosóficos, formulados para serem aplicados na resolução de
questões. Nas palavras do professor Pinzani, uma espécie de
"ensino voltado para o entendimento desses textos clássicos e
para a sua reprodução monográfica através do processo de
interpretação e arguição conceitual nos artigos produzidos na
sua trajetória universitária, isso de acordo com as
determinações metodológicas e ideológicas de cada
professor"(PINZANI, 2014).2
2 "Quem tentar opor-se a esta lógica; quem achar que a assim chamada
comunidade científica não passa de uma manifestação de poder, aliás: do
Poder; um lugar de normalização e estrangulamento de todo saber
heterodoxo; um instrumento de controle e defesa de privilégios – quem
tentar, então, subtrair-se à lei do “publish or perish”, do “publica ou morre”
(lembrem-se: Sócrates não escrevia e não quis escrever, achando isto
impróprio para um verdadeiro filósofo; foi Platão que tentou normalizar e
canonizar o ensino do mestre ao pô-lo por escrito); quem achar que pensar
não é simplesmente comentar o que outros pensaram, quem quiser levar a
filosofia para as ruas da cidade, talvez já não corra, hoje, o risco de ser
executado ou aprisionado, mas corre o risco de outra morte: a morte
acadêmica"(PINZANI, 2008, p.3).
Ensino da filosofia
89
A verdade é que há vários diagnósticos na literatura da
filosofia da educação brasileira que nos chamam atenção para
uma crítica minuciosa da razão acadêmica, quero me deter
neste ensaio em alguns aspectos que interagem na formação de
professores de filosofia na nossa realidade dos trópicos, por
exemplo, a noção de educação bancária de Paulo Freire que se
reflete na formação de uma consciência culturalmente
dependente em nossa formação cultural; a delinquência
acadêmica em função de uma pedagogia burocratizada,
analisada por Maurício Tragtenberg; uma filosofia ornamental,
segundo o filósofo Roberto Gomes; uma filosofia de papagaio,
segundo o filósofo Oswald de Andrade.
Esta última crítica, de Oswald, sobre a condição de
subalternidade colonial na academia é muito discutida na esfera
pública desde 1970, por exemplo, em seu livro "Departamento
francês de ultramar" sobre a formação da "cultura filosófica
uspiana", Paulo Arantes fala de um "complexo colonial" cujas
raízes remontariam a esse momento de formação da disciplina
filosófica brasileira. Segundo o pensador uspiano:
A filosofia brasileira é o conjunto de
publicações brasileiras sobre um assunto
tradicionalmente classificado de filosófico
pelos bibliotecários. Isso é a filosofia feita no
Brasil, e ela não é distinta das demais por ser
“brasileira”. Dito isso, nem tudo está dito. A
filosofia brasileira não é brasileira, ela é
importada (ARANTES, 1987, p. 351).
Ora, se a própria filosofia teve seus primeiros suspiros
em terras brasileiras como catequese das missões jesuíticas
enviada pela corte portuguesa, e seu ensino, travestido de
humanismo artificial, visava uma educação formalista, retórica,
baseada na erudição livresca (CARTOLANO, 1985, p.20) creio
que essa análise de Paulo Arantes, apesar de exagerada, é
muito condizente com a realidade brasileira.
Thor João Veras
90
O filósofo francês Jacques Ranciére, em seu livro, O
Mestre Ignorante, identifica como causadora dessa reprodução
acrítica, uma racionalidade explicadora, defensora de uma
lógica em que aquele que explica é detentor dos conhecimentos
filosóficos necessários para transmitir um vasto conteúdo e
expor sua erudição a aqueles que não o possuem. O professor
seria um mediador do livro do filósofo e do aluno. Cabe aos
alunos compreenderem esse repasse. A lógica da explicação,
comenta Ranciére, como uma política de ensino, silencia no
aprendiz seu pensamento pulsante, sua experiência de
pensamento, para dar voz aquilo que compreendeu pela
explicação do professor.
Gilles Deleuze situa essa forma de lógica da explicação
na filosofia, um aspecto, de uma filosofia maior, uma filosofia
que, quando presa, é refém de imagens dogmáticas do
pensamento e está no nível de uma filosofia voltada para a
manutenção do poder de suas constantes, universalidade dos
conceitos, uso correto da razão, e transmissão de saberes
eurocêntricos. No entanto, esse modo de filosofar, não permite
a produção da diferença, seja nos pensamentos, nos problemas
e soluções.
O que sugiro pensarmos para o ensino da filosofia é um
deslocamento das práticas formais e disciplinares de ensino da
filosofia para um movimento que privilegie a valorização da
dimensão estético-expressiva nas práticas pedagógicas, da
passividade à ação. É a aposta de um aprendizado ativo, para
além da recognição, em um ensino em que seja oportunizado
múltiplas experiências de pensamento, que implique um
aprendizado criativo e não meramente reprodutivo, em que o
estudante não fique condenado a simplesmente assimilar
conteúdos, a decorar ideias e sistemas.
Se a Filosofia consiste na experiência com o conceito, é
importante que o jovem estudante tenha a oportunidade de
fazer ele mesmo a experiência do pensamento e não apenas
Ensino da filosofia
91
reproduzir, assim como seria importante que, numa aula de
química, por exemplo, o estudante fizesse, ele próprio, a
experiência no laboratório, não apenas tomando ciência do
resultado no livro didático.
Ao propor uma "educação menor nos trópicos" estou
atento à necessidade de sairmos deste processo de arremedo, de
imitação e de posturas, por vezes exageradamente
conciliadoras para com as ideias. Para tal é preciso reabilitar
a antropofagia oswaldiana nos dias de hoje, inclusive na
educação, para pensar um ensino de resistência contra o que
Sílvio Gallo chama dessa educação maior hegemônica da
Filosofia da Representação, para que possamos valorizar e
encontrar o inusitado, potencializar as multiplicidades e
conceber a riqueza da diferença.
4. Educação nos trópicos: pedagogia da devoração
Metodologicamente, como proposta de ação, no plano
da sala de aula, a filosofia podia muito se inspirar no
procedimento do artista plástico Hélio Oiticica, que ao fabricar
seu parangolé, suas instalações e performance, levava em conta
tudo ao seu redor, valorizando radicalmente nossas
experiências, subjetividades, histórias, trajetórias e
individualidades. Tudo que está no mundo pode ser meu
material, dizia Oiticica, "participador" é o nome que ele
designa para aquele que ao interagir a obra de arte decorre
também a transformar a obra, passando a fazer assim, parte da
autoria. Ou nos termos de Guy Debord, sair da condição de
espectador numa sociedade regida pelo fenômeno do
espetáculo e tomar a frente ativa no processo pedagógico.
A proposta de um ensino antropofágico da filosofia é
aposta de uma pedagogia voltada para o acontecimento, um
ensino rizomático, onde o aluno não deveria aprender imitando
Thor João Veras
92
o outro, neste caso o professor de filosofia, mas inventando
nossa própria maneira de nos relacionamos com os signos do
pensamento.
Vejamos aqui o eco de Nietzsche, a filosofia não lida
com verdades, como objetividades, a filosofia deve, sim, estar
preocupada com a multiplicidade, com as distintas
perspectivas, com os “múltiplos olhos” que podem nos
possibilitar um conhecimento mais completo e mais complexo.
Na filosofia da educação brasileira, o educador Valdo
Barcelos nos mostra que o nosso raro exemplo de exercício
antropofágico é o pensador e educador Paulo Freire, sobretudo
na sua pedagogia do oprimido e da indignação, que se propõe
refletir sobre o processo de colonialismo que se submetem
amplos setores da intelectualidade nacional (BARCELOS,
2012, p. 78). De acordo com Freire, as relações de ensino-
aprendizagem devem estar permanentemente abertas às
questões emergentes da sociedade, dialogando com elas, sem,
contudo, abrir mão de suas origens, sua cultura, suas
experiências, enfim, seus saberes e fazeres para pensar uma
educação que rejeite a condição de opressão do colonizador e,
ao mesmo tempo, busque romper com a cultura da
subalternidade que o aprisiona.
O ensino antropofágico se constitui na linha da
pedagogia do conceito reapropriado de Gilles Deleuze pelo
pensador brasileiro Sílvio Gallo. Esse modo de aula traz à tona
a necessidade de um ensino focado na aprendizagem em que “o
foco esteja no processo singular de pensamento de cada um. E
para isto não há método” (GALLO, 2007, p. 73). A
compreensão moderna da educação tende a centrar na ideia do
método e na utopia que se pode mediante o controle do que se
ensina, controlar o que alguém aprender, fruto de uma
sociedade pedagogizada, com um viés somente explicativo.
Pelo contrário, é uma tentativa de abertura do processo do
Ensino da filosofia
93
ensinar que convida o estudante a aprender, praticando,
experimentando o pensamento da natureza filosófica.
Nesse sentido, o ensino se constitui de um convite para
o pensar. “Cada estudante precisa fazer ele próprio o
movimento, ele próprio precisa experimentar o pensamento,
entrar no campo problemático e experimentar o pensar por
conceitos” (GALLO, 2007, p.75). Um deslocamento possível
para essa prática seria pensar uma metodologia antropofágica,
ativa e criativa, muito influenciado pelas travessias realizadas
por intelectuais que pensam o ensino da filosofia, como Daniel
Lins, Tomaz Tadeu, Walter Kohan, Jorge Larossa, entres
outros, mas diretamente extraio e configuro um método aberto
com a apropriação ressignificante do método de Silvio Gallo e
de Paulo Freire, em busca de um processo educativo aberto,
ativo e pluriversal.
5. Metodologia Antropofágica (4 etapas/dentadas)
(1) Aperitivação
Só pensamos quando somos instigados a isso por
problemas. Pensar é uma necessidade vital motivada por
problemas, portanto os problemas propostos devem ser vividos
pelo aluno como problemas seus, que o mobilizam para fazer o
movimento de pensamento. Nesta etapa (dentada) é muito
produtivo o recurso a filmes, músicas, contos, poemas,
programas de televisão. Sobretudo, exibição de filmes com a
temática a ser abordada, discutindo em seguida de modo a
mostrar a relação daquele tema com a vida dos estudantes. O
professor assume uma função de afetar os alunos com a
filosofia, na filosofia, para a filosofia. Os professores podem
tomar para si a função não de explicação, mas de afetação:
deliberadamente escolher elementos e formas de afetar os
Thor João Veras
94
alunos para a filosofia, através da filosofia. “Os afectos
atravessam o corpo como flechas, são armas de
guerra”(DELEUZE,1992, p. 18).
(2) Deglutição/Devoração
Aqui nesta etapa, a devoração transforma o tema em
problema. Coloca-se em prática o sentido incentivando os
alunos a produzirem questões a partir do tema abordado.
Quanto mais intensa e múltipla for essa devoração, mais
elementos a classe e cada estudante terão para fazer sua própria
experiência de pensamento. Os professores de filosofia
uruguaios nessa mesma esteira trabalham o ensino filosófico
como uma atividade ativa, e já incorporaram no currículo de
seu ensino secundário, em torno de problemas filosóficos, e
não somente pela história da filosofia. Em torno desses
problemas, é possível trabalhar com temas filosóficos, como eu
trabalhei a filosofia do corpo, e com uma história da filosofia
com seus filósofos e diferentes conceitos, mas isso é tomado
como um modo instrumental que permita a compreensão
daqueles problemas e, mais do que isso, matéria básica para a
criação de conceitos novos para a compreensão subjetiva de
cada estudante.
(3) Digestão
Trata-se de investigar o problema, aqui se faz uso da
história da filosofia, ou no meu caso, a contra-história da
filosofia, recorrendo a filosofias que em sua época e em seu
contexto pensaram sobre o tema que está sendo abordado. Isso
seria um instrumento para os alunos, não um fim em si, para
decorar conteúdos. As obras desses filósofos poderiam ser
Ensino da filosofia
95
estudadas para que os estudantes despertassem em si mesmos
não o talento para a sua compreensão, mas os germes de sua
própria independência teórica, de sua disposição para resistir à
cultura da moda ou a cultura oficial e de sua ligação íntima
consigo mesmo. Assim, os estudantes poderiam apropriar-se
significativamente da obra estudada, tomando-a pelo que
possui de viva e de atual, para vivê-la, lançando-se de sua
potencialidade de pensar e ser livre, conforme seus próprios
instintos, a sua força e capacidade de utilizar a sua própria
linguagem para expressá-los e, consequentemente, expressar a
própria vida (PAGNI, 2004, p. 226).
(4) Transformação (Sobremesa/Cafézinho)
É o momento inventivo e criativo do processo de
aprendizagem, onde o estudante recria os conceitos estudados,
refazendo eles mesmos o movimento de pensamento que o
levou à criação.
6. Conclusão
Essas reflexões partiram de muitas dúvidas que
perpassaram durante toda minha graduação, que muito
sinteticamente pude compartilhar neste texto. Contudo, penso
que tais apontamentos ainda prematuros para alguém que inicia
a vida acadêmica podem deixar como utopia de um ensino
mais democrático e participativo à ser construído nesta
trajetória que a Filosofia enfrenta com o seu retorno em peso
aos currículos das escolas secundaristas brasil adentro. Como
nos lembra Cerletti, não se trata, aqui, de em seguida convidar
o estudante a “fazer como” o filósofo, mas sim, de procurar
despertá-lo para a possibilidade desse fazer filosófico e lançar
um convite para “fazer com” (CERLETTI, 2009, p.41). Ensinar
Thor João Veras
96
filosofia de modo ativo, mais do que transmitir a sabedoria, dar
o garfo e a faca para que experimentem os problemas criados
como mobilizadores e impulsionadores do pensamento. Desse
modo, um ensino no plano de imanência, no sentido
deleuziano, "antropofágico", contribui para pensar a educação
como um espaço de aprendizagem e ressignificação da cultura,
que possibilita a convivência com o corpo; que aprofunda a
relação do ser no mundo, a reversibilidade dos sentidos e a
estesia como campo da experiência sensível e da imputação de
sentidos; que convoca a beleza de múltiplas leituras do vivido e
que alarga a compreensão de si e do outro.
7. REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond. Corpo. Rio de Janeiro, Ed.
Record. 10ª ed. 1987.
ANDRADE, Oswald de. Obras Completas: Do Pau-Brasil à
Antropofagia e às Utopias. Manifestos, teses de concursos e
ensaios. Rio de Janeiro, Civilização Brasileita, 1970.
AMARAL, Tarsila. Abaporu. Pintura óleo sobre tela. Museu
de Arte Latino-americana de Buenos Aires (MALBA),
Argentina, 1928.
ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando:
introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1989.
ARANTES, Paulo. Um departamento francês de ultramar.
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101
O “ENSINAR A FILOSOFAR” E O FILOSOFAR SOBRE
SEXUALIDADE: UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA
PARA A FILOSOFIA ENQUANTO PROCESSO DE
CRIAÇÃO CONCEITUAL DE GILLES DELEUZE E
FÉLIX GUATTARI E O CORPO LASCIVO EM
MERLEAU-PONTY
Diego Luiz Warmling
1. Introdução
Logo cedo no curso de licenciatura em filosofia são
lançados alguns desafios bastante peculiares no que tange o
ensino desta área do conhecimento. A começar por dinâmicas
em disciplinas como Organização Escolar, Seminário de
Ensino em Filosofia, Metodologia de Ensino de Filosofia1, etc.,
é durante os Estágios Supervisionados que estes desafios
apresentam seu aspecto mais concreto: “é possível ensinar
filosofia no ensino médio? Se possível, como isto pode
acontecer?”. Diante de provocações como estas, ao licenciando
fica por si só evidente como é difícil responder tais perguntas
de maneira direta e objetiva2. Assim como os grandes dilemas
1 Na intenção de adquirirmos logo cedo um primeiro contato com os
desafios da carreira de professor, já nestas disciplinas os professores nos
propunham trabalhar com aulas ensaiadas onde, virtualmente, simularíamos
as dinâmicas encontradas de uma sala de aula. 2 Observação minha: questões deste nível muitas vezes não passam de puras
abstrações e, por isto, exigem
sempre um certo grau de parcialidade à quem escolhe respondê-las. Sem,
contudo, deixar de me contextualizar, utilizarei desta brecha de
subjetividade para mesclar o que venho observando em meu Estágio
Diego Luiz Warmling
102
inerentes à disciplina, fazer filosofia dentro de sala de aula se
constitui, também, num grande problema ao pensamento
critico; quiçá um dos maiores! Desta maneira, partindo do que
Gilles Deleuze e Félix Guattari dizem sobre a filosofia em O
que é a Filosofia?3, num primeiro movimento de articulação
deste ensaio, responderei estas questões dizendo que o filosofar
é, antes de uma narrativa causal histórica, um processo ativo de
construção e desconstrução conceitual.
Seguindo este ínterim, tal qual sugere o próprio título,
na tentativa de pensar como a temática da sexualidade pode
ser/estar inserida dentro de uma aula de filosofia, além de
tentar responder questões como as anteriores, a partir do que
articula Maurice Merleau-Ponty, proporei-me a responder um
último problema: “é possível trabalhar a sexualidade no ensino
de filosofia?”. Partindo, portanto, do que podemos entender
como um diálogo entre Merleau-Ponty, Deleuze e Guattari,
num segundo momento direi, por fim, que a sexualidade se
constitui como um tema bastante prolífero a ser trabalhado em
aula pois, enquanto movimento de expressão singular
compreendido na nossa própria existência, pressupõe uma série
de temas paralelos que não só desembocam num processo
identificação existencial, como pressupõem uma série de
debates com os mais variados campos do conhecimento.
2. Primeira parte: como é possível fazer filosofia no
ensino médio
De fato, ainda não sabemos se é possível “ensinar
filosofia”, muito menos como isto deve acontecer. Não há,
como dizem, uma “receita pedagógica” que funcione de
Supervisionado com o que proponho e penso sobre o fazer filosofia no
ensino médio. 3 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que e a filosofia? Rio de
Janeiro: Editora 34, 1992.
O “ensinar a filosofar”
103
maneira 100% satisfatória! Neste sentido, acredito que, antes
de um “ensinar filosofia”, se possa pensar num “ensinar a
filosofar”; num “incitar ao pensamento crítico”; num “fazer
filosofia”. Seguindo os passos de Gilles Deleuze e Félix
Guattari no livro O que é a Filosofia?, penso no “fazer
filosofia” como um processo ativo e constante de criação e
recriação conceitual. Para que possamos entender melhor esta
inversão, vejamos, então, um pouco mais sobre este
“casamento” tão vindouro ao século XX.
Enquanto um dos grandes encontros filosóficos do
século, num pequeno espaço de tempo a frutífera relação entre
Deleuze e Guattari produziu grandes obras como “O Anti-
Édipo”(1972) e “O que é a Filosofia?” (1991). Frutos de uma
longa, rica e controversa colaboração, os resultados desta união
estão principalmente voltados para a valorização das
experiências inconstantes daquilo que é vivido individualmente
pelos sentidos. Ao primar pela diversidade das singularidades
que se constroem no momento presente (no momento da ação),
a aliança entre estes dois pensadores surge, portanto, na
intenção de axiomatizar uma espécie de engessamento na
atividade reflexiva de até então.
De acordo com os mesmos, até o momento, todas as
possibilidades de abordagem filosófica responderiam não ao
modo próprio do fazer filosófico, mas sim a uma relação de
linearidade imagética subordinada ao antes e depois dos
conceitos produzidos na história (ao longo de uma narrativa
causal histórica do pensamento filosófico). Sendo assim, ao
evidenciar um conflito entre o modo como concebemos o fazer
filosófico e a maneira como ele efetivamente se realiza, para
pensarmos o filosofar tal como desejamos (“ensinar a
filosofar”), é de vital importância que tenhamos em mente qual
é a especificidade da filosofia. Por isto, quando ficamos frente
Diego Luiz Warmling
104
a frente com questões tais como as anteriores4, estas perguntas
parecem ser satisfatoriamente respondidas à medida que
empregamos a filosofia não como uma simples narrativa
histórica dos conceitos, mas, como defendem Deleuze &
Guatarri, enquanto de um processo ativo de criação conceitual.
Desta forma, se em O que é a filosofia? entendermos
que não existem conceitos simples e isolados, que todo
conceito tem sempre um componente e que este sempre nos
remete a uma multiplicidade de outros conceitos, quando
preanunciamos uma alternativa ao filosofar, a filosofia
propriamente dita fica, pois, implícita num horizonte sui
generis peculiar acerca do entendimento sobre o que seria o ato
criativo de um filósofo. Guiados por Deleuze & Guattari, criar
conceitos é, então, o objetivo da filosofia:
O filósofo é amigo do conceito, ele é conceito
em potência. Quer dizer que a filosofia não é
uma simples arte de formar, de inventar ou de
fabricar conceitos, pois os conceitos não são
necessariamente formas, achados ou produtos.
A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina
que consiste em criar conceitos. […] Criar
conceitos sempre novos, é o objeto da filosofia.
É porque o conceito deve ser criado que ele
remete ao filósofo como àquele que o tem em
potência, ou que tem sua potência e sua
competência. [...] Para falar a verdade, as
ciências, as artes, as filosofias são igualmente
criadoras, mesmo se compete apenas à filosofia
criar conceitos no sentido estrito. Os conceitos
não nos esperam inteiramente quietos, como
corpos celestes. Não há céu para os conceitos.
Eles devem ser inventados, fabricados ou,
antes, criados (DELEUZE; GUATTARI, 1992.
p. 13).
4 A saber: é possível fazer filosofia no ensino médio? Se possível, como isto
pode acontecer?
O “ensinar a filosofar”
105
Jamais tratado de forma específica por estes dois
pensadores, antes visto a partir de um destacamento conceitual
distintivo da filosofia em relação à arte e a ciência, o horizonte
ao qual me refiro (o “ensinar a filosofar”) pode, portanto, ser
definido como um processo ininterrupto galgado na criação
conceitual, dada pela relevância que é facultada à singularidade
dos acontecimentos e à busca dos detalhes que se constroem no
instante mesmo da ação – no instante mesmo da aula de
filosofia.
Retomando parte de minhas experiências enquanto
professor-estagiário de filosofia no Instituto Federal de Santa
Catarina, acredito assim que, conforme o educador se torna
consciente das possibilidades que tem para trabalhar a
disciplina dentro do espaço escolar, o “ensinar a filosofar”5 traz
para dentro de sala de aula o movimento crítico que à filosofia
é tão importante: partindo antes muito mais do que os alunos
tem a dizer do que do professor propriamente dito, uma aula de
filosofia deve ser um espaço de construção, desconstrução e
reconstrução dos conceitos produzidos ao longo da história.
Antes mesmo de qualquer exegese filosófica
apreendida numa linearidade histórica e genealógica, acredito
que o “ensinar a filosofar” deve, portanto, ser entendido como
um instigar os alunos ao pensamento crítico e dialético. Sendo
assim, cabe a mim, enquanto professor, provocar dentro de sala
de aula certo estranhamento que, antes de qualquer coisa,
viabiliza o debate e discussão entre os estudantes. Explico-me:
levando em conta que muitos dos alunos podem não estar
interessados no que a filosofia tem a ensinar enquanto narrativa
histórica, ao professor de filosofia é acima de tudo imbuída a
tarefa de incitar a exposição e o diálogo entre as mais
5 Aqui vale lembrar que este termo “ensinar a filosofar” é aqui entendido
implicitamente a partir de Deleuze & Guattari.
Diego Luiz Warmling
106
diferentes opiniões e pontos de vista. O professor de filosofia
deve ser instigador do pensamento crítico e do ato de filosofar.
3. Segunda Parte: é possível trabalhar a sexualidade no
ensino de filosofia?
Se, como disse, ao professor de filosofia é dado o
trabalho de “ensinar o filosofar” e se meu objetivo principal é
traçar um panorama para a possibilidade de se trabalhar a
sexualidade dentro do ambiente escolar, fica fácil imaginar
como isto pode acontecer durante uma aula. Enquanto conceito
que, num só tempo, implica vários outros conceitos, a
sexualidade traz em si a força que os alunos precisam para
refletir e repensar a sua própria existência. A partir de Maurice
Merleau-Ponty, façamos então algumas digressões conceituais.
4. Sexualidade e existência em Merleau-Ponty
Desde muito jovem o homem já possui condições de
sentir ou deixar de sentir
sensações agradáveis e desagradáveis junto ao corpo. Desde a
mais tenra idade, o contato com pessoas próximas (pais,
amigos, parentes, vizinhos, etc.), as carícias, os afagos, as
palmadas, os prazeres e os desprezares (tanto físicos quanto
afetivos) que a criança experiencia diariamente fazem parte da
natureza e do desenvolvimento das mais
variadas funções que estarão, desde cedo, em processo
ininterrupto de formação.
Possuindo um sentido, as atitudes que uma criança
tende a reproduzir não são necessariamente causadas por
alguém ou algum acontecimento específico, são, antes, fruto de
O “ensinar a filosofar”
107
toda uma estrutura6 onde ela (a criança) está mergulhada.
Sabendo que muitas das nuances dispostas em seu contexto são
passíveis de ser apreendidas e que, de certo modo, acabam
sendo utilizadas no cotidiano, a percepção de um ambiente
agradável entre os pais, o respeito mútuo e a cordialidade que
estes empregam entre si, podem, por exemplo, ser aprendidos e
expressos como exemplos vivos de respeito para consigo
mesmo e para com o outro7.
Antes mesmo de toda elaboração lógica e discursiva
que a fala pressupõe, vendo o mundo sob o olhar do outro, a
criança compreende o sentido humano dos corpos e dos objetos
de uso juntamente com o valor significativo que sua estrutura
lhe dispõe; adquirindo então certo estilo e certo comportamento
que ajudará não apenas a se movimentar, a se expressar e
perceber o mundo ao seu redor. Através das trocas de
experiências com os outros, no homem vão se construindo
desde cedo esquemas comportamentais, perceptivos e
expressivos que se entrelaçam, enriquecem e se transformam
de acordo com os arranjamentos relacionais que o mundo
dispõe. Assim, não só pelo ambiente afetivo, mas também
junto às influências dos meios culturais, políticos, educativo,
escolares, etc., é que o homem vê em si o amadurecimento
6 Partindo de Merleau-Ponty, para este artigo compreenderemos por
“estrutura” um organismo cuja unidade exprime sempre uma determinada
conduta diante de um mundo próprio à espécie e que, direta ou
indiretamente, determina a ação de um sujeito onde cada um de seus
movimentos no mundo não podem ser compreendidos separadamente, pois
cada um destes elementos estão subsumidos na unidade do seu próprio
comportamento. De modo bastante geral, esta noção de estrutura
compreende um organismo que se forma de maneira espontânea antes
mesmo que o homem se dê conta sua individuação enquanto sujeito. 7 Aqui vale salientar que isto não ocorre de maneira necessária. Não são
raros os casos onde, mesmo inserida num contexto totalmente desfavorável,
a criança (pessoa) não deixa de interagir com os colegas de maneira
extremamente respeitosa e cordial.
Diego Luiz Warmling
108
gradual/constituinte para a base do erotismo e de toda a
capacidade de viver intimamente a sexualidade com o outro.
Por conseguinte, ao vislumbrar o tema da sexualidade
como uma perspectiva de controvérsias filosóficas dentro do
ambiente escolar (sala de aula), vejo-me, portanto,
enredado por algumas acepções da envolvente obra de Maurice
Merleau-Ponty. Penso, portanto, que se fazem necessários
alguns apontamentos acerca dos projetos deste autor.
Para Maurice Merleau-Ponty, nossa relação com o
mundo está incluída na relação do corpo consigo mesmo. No
entanto, este (corpo) só é compreendido a partir da relação que
estabelece com outros corpos. Neste sentido, é preciso passar
considerar uma atmosfera que, para além de uma experiência
para mim, evidencie nossa relação com o mundo sem
apresentar-se como independente da infraestrutura existencial
humana: nossa atmosfera sexual e afetiva.
É preciso considerar a afetividade e a sexualidade
como partes constituintes do nosso trato com o mundo. Se
queremos evidenciar a gênese do ser, é, portanto, preciso
considerá-las como parte de nossa experiência que só tem
sentido e realidade para nós. Com efeito, para Merleau-Ponty,
“nossa meta constante é pôr em evidência a função primordial
pela qual fazemos existir para nós, pela qual assumimos o
espaço, o objeto ou o instrumento e descrever o corpo enquanto
lugar desta apropriação” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 213).
Devemos procurar ver como os objetos se põem para nós pelo
desejo ou pelo amor, e só então compreenderemos como as
coisas podem em geral ser ou existir. Entre o automatismo
(empirismo) e a pura representação (intelectualismo)8, as coisas
8 Trata-se de considerar a sexualidade tanto como um mosaico de sensações
que não se compreendem e só se explicam por um esquematismo corporal,
quanto de dizer que, atravessadas por um intelecto, simples representações
podem deslocar nossos estímulos e constituir valores que a principio não
O “ensinar a filosofar”
109
são, portanto, apreendidas na mesma medida que o horizonte
dos nossos desejos e emoções nos permite.
Seguindo neste ínterim, as analises feitas por Merleau-
Ponty em “O corpo como ser sexuado” logo mostram
experiências outras que as “normais”. É revelando às teorias
clássicas seus próprios limites que a sexualidade introduz
modos de ser diferentes da “normalidade”. Sendo assim, somos
levados a admitir uma zona vital onde se compõem as
possibilidades sexuais em cada pessoa: imanente à vida sexual,
é preciso pois que se considere, na própria existência, uma
EROS ou LIBIDO capazes de animar um mundo original, dar
significação sexual aos estímulos exteriores e esboçar o uso
que cada sujeito fará de seu corpo. É preciso, portanto,
considerar uma “função primordial” onde o corpo não é mais
um objeto qualquer, mas uma estrutura subtendida a um
esquema sexual bastante particular.
A percepção erótica se faz no mundo, não numa
consciência laborativa. O sujeito possui em si uma
compreensão que “não é da ordem do entendimento”, mas que,
enquanto o desejo, busca cegamente outro corpo. Para
Merleau-Ponty, a vida sexual não é somente o genital ou o
instintivo, é, antes, o poder que o sujeito tem de aderir e fixar-
se em múltiplos ambientes e experiências – de adquirir
estruturas de conduta. Enquanto significação privilegiada que
atravessa o movimento espontâneo da nossa existência, a
sexualidade é, então, vista como um dos modos pelos quais,
espontaneamente, o sujeito erige sua própria história e toma
posse do meio.
A questão da sexualidade assume, então, um lugar
diferenciado a partir de Merleau-Ponty: uma intencionalidade
ambígua que se dilui na própria existência humana e que, num
só tempo, evidencia a maneira geral pela qual o ser ontológico
tem relação aparente com nossos prazeres e dores naturais (MERLEAU-
PONTY, 2011).
Diego Luiz Warmling
110
se relaciona com as coisas. Para o filósofo, não se estabelece
entre corpo, existência e sexualidade uma relação hierárquica,
tudo está pressuposto mutuamente. Sendo assim, sem
necessariamente ser objeto de uma consciência deliberativa, a
sexualidade não é nem transcendência da vida humana, nem
imagem de suas representações inconscientes. Constantemente
presente como uma atmosfera ambígua, da região onde habita
(corpo), é coextensiva à vida.
Assim como as outras modalidades do ser-no-mundo
(dentre elas podemos citar as esferas politica, artística,
religiosa, etc.), a sexualidade interage com a forma geral da
existência humana e, numa espécie de dialogo entre o que o EU
se projeta enquanto sujeito e o que ELE entende do outro
enquanto objeto, constrói o que podemos entender como nossa
história pessoal (historicidade). Desta forma, a sexualidade
deve ser entendida como um movimento expressivo e singular
na relação entre meu corpo próprio e o mundo.
Contrario a qualquer determinismo cientifico, para
Merleau-Ponty o homem é uma função viva que, enquanto
totalidade, é também uma ideia histórica (conceito). Sendo
assim, é impossível separar o sexual do não-sexual, pois a
sexualidade não é nem fechada em si mesma, nem mais que ela
mesma; ela é nosso ser por inteiro. Indicando, pois, uma
independência em relação aos fatores fisiológicos, nossa vida
sexual não seria
necessariamente uma decisão racionalizada, antes um gesto
repleto de significação existencial onde, na relação com os
outros corpos, o modo de ser no mundo se revela para sua
própria existência. É a sexualidade quem faz com que o
homem tenha uma história; uma maneira especifica de ser.
O “ensinar a filosofar”
111
5. Considerações finais:
Se retomarmos algumas das asserções expostas até o
momento, na medida em que atinge a formação do sujeito
como um todo, logo percebemos que trabalhar temas como a
sexualidade dentro de sala de aula é, em verdade, muito
prolífero. Conforme o educador toma consciência do amálgama
de possibilidades para se trabalhar o “filosofar” dentro de sala
de aula, quando este dispõe seus alunos de maneira que se
abram para repensar as atitudes em relação àqueles que no
cotidiano são coparticipantes da própria existência, tal tema
(sexualidade) adquire uma importância muito grande, pois,
enquanto conceito a ser debatido, implica uma multiplicidade
de tantos outras contingências – afetividade, carinho, desejo,
prazer, percepção, corpo, bem querer, comunicação, valores
morais, ética, saúde, pluralidades culturais, etc., são bons
exemplos disto. Deste modo, dado que a filosofia é um
processo ativo de construção e desconstrução conceitual, no
que tange a sexualidade, os alunos não só se veem
aprioristicamente embebidos de questionamentos que podem
desembocar num processo de identificação existencial, como
são levados a reconhecer que tal temática precisa ser discutida
e dialogada em comum acordo com as mais heterogêneas
disciplinas do conhecimento9.
Assim como os debates sobre uso de drogas, direitos
civis e outros tantos temas
transversais que aos poucos estão sendo reintroduzidos dentro
do ambiente escolar, a questão da sexualidade impõe-se como
9 A partir de recortes de manuais como o DSM-IV (Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais) ou o CID-10 (Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde), de
documentários disponíveis na internet e até mesmo da própria filosofia de
Merleau-Ponty, estas foram algumas reflexões que tentei trabalhar durante
minha aula.
Diego Luiz Warmling
112
um tema bastante importante a ser discutido dentro de um
plano de ensino de filosofia. Retomando parte de minha
experiências enquanto “professor-estagiário”, a meu ver, ao
contrário de tantas outras disciplinas, uma aula de filosofia não
busca trabalhar com conceitos cristalinos e imediatos; sempre
visando o debate entre as mais diferentes opiniões e pontos de
vista, trabalha a todo instante com a possibilidade de se
repensar a sociedade como um todo. Sendo assim, enquanto
frutos de uma formação repressora onde ainda perduram ideias
bastante conservadoras relacionadas ao sexo, questionamentos
tais como: “o que vocês entendem por relações afetivas?”,
“existe, de fato, o que podemos entender por uma sexualidade
normal? Se existe, o que pode ser definido como tal?”, são
dotados de tão ampla relevância que professores e alunos são
levados a admitir que a sala de aula é, de fato, uma
possibilidade viva para se discutir um tema que, de tão visceral,
acaba metamorfoseando não só um indivíduo, mas toda uma
sociedade.
Partindo de minhas experiências em sala de aula
durante os Estágios Supervisionados de Ensino de Filosofia,
concluo enfim dizendo que a questão da sexualidade põe-se
como um projeto em aberto e muito vindouro para dentro do
ambiente escolar. Não só no que diz respeito ao ensino de
disciplinas como História, Biologia, Química, etc., mas
principalmente no que tange o “fazer filosofia”, não é um
conceito fechado em si mesmo, põe-se, antes, como um leque
aberto de possibilidades para o pensamento crítico e para o
filosofar propriamente dito.
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OS DESAFIOS DO ENSINO DE FILOSOFIA PARA O
ENSINO MÉDIO
Michelle Ramunno Monteiro
Como futuros professores de Filosofia, nada mais
pertinente do que tomarmos conhecimento de como são
ministradas aulas desta disciplina para alunos do ensino
médio, observando a postura pedagógica e métodos de ensino
dos professores já atuantes, conhecendo também os desafios
da atividade de docência.
Tendo em perspectiva que a atividade pedagógico-
filosófica não se trata somente de transmitir informações ou
conceitos, mas também de incitar a reflexão acerca das
questões universais que a Filosofia aponta, desenvolvendo a
análise crítica dos alunos, mostrou-se que uma estratégia
pedagógica adequada à natureza do saber filosófico é pautar o
plano de ensino de filosofia em três aspectos: problematizar,
conceituar e argumentar.
Sob este prisma, é premente que a aula de Filosofia
não esteja voltada somente à transmissão de conceitos, mas um
convite à atividade reflexiva e ao diálogo, no entanto, sem que
negligenciemos as teorias filosóficas que já foram formuladas,
mas dando também importância ao desenvolvimento da
capacidade de elaboração do pensamento crítico e do processo
argumentativo do aluno. Essa abertura à problematização não
implica que abandonemos o estudo da história da Filosofia,
mas que partamos, a partir do que já foi pensado, rumo a novas
possibilidades de abordar determinadas questões, adaptadas a
nossos problemas contemporâneos, com a intenção de
despertar nos alunos a percepção de que os problemas
filosóficos permeiam também sua realidade, para que assim
logremos atingir a sensibilização e o consequente interesse
Michelle Ramunno Monteiro
116
para os temas trabalhados em sala de aula, a meu ver, o maior
desafio que encontramos como educadores, posto que para o
que não se tem interesse, a aprendizagem é muito mais árdua.
Os temas filosóficos parecem despertar maior
interesse quando a aula é aberta ao diálogo, e, portanto,
quando os alunos são ouvidos e podem ouvir-se, como o
método socrático propõe – que se dê luz à verdade que já está
em cada um, e que se obtenha, a partir do diálogo, algum
conceito, ou até mesmo alguma quebra de um conceito. O
saber filosófico nunca é estático, é sempre passível de
evolução, pois como dizia Heráclito, não se pode entrar duas
vezes em um mesmo rio. Talvez não se possa discutir um
mesmo problema filosófico repetidas vezes sem que se tenha
alguma nova visão sobre ele. De outra forma, não seria um
problema filosófico, mas um dogma.
E assim também, a cada classe, em sua singularidade
ímpar, e em cada aula, como professores, devemos adaptar-nos
constantemente para que os métodos sejam os mais adequados
possíveis para alcançarmos nossos objetivos pedagógicos,
tendo sempre como objetivo último que o amor pelo
conhecimento, a origem do significado do termo Filosofia,
possa encontrar espaço para desenvolver-se em jovens e
inquietas mentes.
O primeiro obstáculo, apontado frequentemente nos
textos acerca do ensino de Filosofia para o ensino médio, é a
falta de interesse dos alunos pela Filosofia, já que esta nem é
ainda disciplina de vestibular (somente em raras exceções), e
geralmente a motivação maior para os estudos seriam os
benefícios práticos que advirão destes, e não uma legítima
impulsão para o conhecimento, como seria desejável. Mas será
que de fato os alunos do ensino médio não têm interesses
filosóficos?
Os desafios do ensino
117
A filósofa e pedagoga Lídia Maria Rodrigo, na obra
“Filosofia em sala de aula” – teoria e prática para o ensino
médio, apontou, a este respeito, que:
O desinteresse pelas aulas de filosofia deriva,
em boa parte, da falta de compreensão dos
conteúdos ou do fato de que, muitas vezes, o
estudante não consegue encontrar significação
nesses conhecimentos. O professor pode ter
certa cota de responsabilidade nisso, se os
procedimentos de ensino que adota contribuem
para alimentar o desinteresse e a indiferença
(RODRIGO, 2014, p. 37).
Sabemos que grande parte das obras filosóficas, com
seus termos rebuscados e eruditos, figura para a maioria dos
jovens alunos do ensino médio como uma leitura pesarosa e
pouco atraente. Temos apostilas para o ensino de Filosofia para
o ensino médio que pode servir-nos como guia cronológico e
oferecer aos alunos breves resumos de quase tudo em termos
de história da filosofia ocidental, porém, assim ensinada, a
Filosofia em nada difere das demais disciplinas, e somente
focar-se na transmissão de conceitos seria um tanto quanto
anti-filosófico. No entanto, com a natural dispersão dos alunos
quando eles não têm que se ater a conteúdos e avaliações, e
com a disputa desumana pela atenção dos mesmos com seus
celulares com mil atrativos, faz-se necessário pensar em formas
de oferecer conteúdos, oferecer a possibilidade de reflexão
filosófica em sala se aula, e entreter os alunos, sensibilizando-
os para as questões que estarão em pauta.
No intuito de fazer com que, como ponto de partida,
os próprios alunos reconheçam que possuem intrinsecamente
interesses filosóficos, para, a partir de tais interesses, planejar
os conteúdos, elaborei um questionário, e o distribuí aos alunos
de uma primeira série do ensino médio, sala na qual exerci meu
Michelle Ramunno Monteiro
118
estágio de ensino. Como se pode observar no quadro abaixo, o
questionário procurou investigar perfis e áreas de interesse dos
alunos, para um posterior estudo sobre as melhores formas de
abordagem de temas filosóficos com aproximação aos temas de
interesse apontados em tal pesquisa.
QUESTIONÁRIO PROPOSTO AOS ALUNOS DE
FILOSOFIA DO ENSINO MÉDIO
NOME:
IDADE:
SÉRIE:
1. QUAIS AS DISCIPLINAS QUE MAIS LHE
INTERESSAM?
2. QUAIS AS DISCIPLINAS QUE MENOS LHE
INTERESSAM?
3. VOCÊ JÁ SABE QUE PROFISSÃO QUER
SEGUIR? SE SIM, QUAL?
4. TEM O HÁBITO DE LER?
5. QUAL A SUA MAIOR DIFICULDADE QUANDO
LÊ UM TEXTO?
ENTRE OS TEMAS ABAIXO, ASSINALE OS QUE MAIS
LHE INTERESSAM, AS QUESTÕES QUE MAIS
DESPERTAM SUA CURIOSIDADE, OU
PREOCUPACÃO, OU TEMAS QUE VOCÊ COSTUMA
PENSAR A RESPEITO COM CERTA FREQUÊNCIA:
( )O que é o amor?
( )Qual o sentido da vida?
( ) O que é a felicidade?
( )Religião
( )Sucesso
( )Existe destino?
( ) O por quê da desigualdade
no mundo.
( )Leis da natureza.
( )Deus
Os desafios do ensino
119
( ) Liberdade
( )Arte
( )Beleza
( ) Paixão
( ) Direitos humanos
( )Pena de morte
( )Prisão
( ) Crime
( )Violência
( )Direitos dos animais
( )Desejo
( ) Família
( )Maneira correta de agir.
( )Poder
( ) Auto-controle
( ) Solução para problemas
no mundo.
( )A natureza humana é boa
ou má?
( ) Existe “natureza humana”?
( )Morte.
( )Conhecimento.
( )A questão do sofrimento
humano.
( ) Prazeres
( ) Vícios
( ) Preocupações acerca de
seu próprio futuro.
( ) Ambições materiais
( ) Fama
( ) Sexo oposto
( )Igualdade entre homens e
mulheres.
( )Preconceito
( ) Outro (s) – Qual (is)?
OS FILOSÓFOS, AO LONGO DA HISTÓRIA DA
HUMANIDADE, REFLETIRAM SOBRE MUITOS DOS
TEMAS ACIMA. ESCREVA ABAIXO 5 DENTRE ESTES
TEMAS /ASSUNTOS QUE VOCÊ GOSTARIA DE
ESTUDAR FILOSOFICAMENTE (OU ESCOLHA SEUS
PRÓPRIOS TEMAS, DEVEM SER PELO MENOS 5!).
Este questionário foi respondido por 24 alunos, sendo
eles 11 meninos e 13 meninas, da primeira série do ensino
Michelle Ramunno Monteiro
120
médio, no Colégio de Aplicação. Entre os meninos, os
principais temas de interesse foram: morte, seguida da questão
do sentido da vida, vícios, prazeres, Deus, religião, poder, se
existe destino e liberdade; já entre as meninas, embora o
primeiro lugar em tema de interesse também seja a morte, o
segundo tema mais citado foi autocontrole, seguido da questão
quanto ao sentido da vida, direito dos animais, preconceito e
igualdade de gêneros.
Numa visão geral, portanto, na somatória dos temas de
interesse escolhidos pelos alunos, o principal tema de interesse
foi a questão da morte, escolhido por 18 alunos dentre os 24,
seguida da questão do sentido da vida, escolhida por 17 alunos.
A relevância deste tipo de pesquisa é o quanto pode
auxiliar em uma abordagem filosófica destas questões, que já
despertam um prévio interesse nos alunos, e a possibilidade de
utilizar tais temas como guias para o trabalho com conteúdos
filosóficos.
Por exemplo, para aprofundarmos o tema da morte,
podemos estudar em sala de aula a obra platônica Apologia de
Sócrates. Além de na referida obra haver um belo
questionamento de Sócrates em relação à morte, tal aula
possibilitaria, além do debate do tema que se apresenta como
principal, dar aos alunos o conhecimento de quem foi Sócrates,
quem foi Platão, o contexto filosófico de então, bem como o
julgamento e condenação do filósofo que dividiu a filosofia em
antes e depois dele. Tudo isso a partir de um tema de estudos
que os próprios alunos escolheram. Podemos também, ainda
acerca da temática da morte e do sentido da vida, trabalharmos
a filosofia platônica, o Mito de Er, e a teoria da imortalidade da
alma, para contrapô-la com outras teorias. O tema do
autocontrole, por exemplo, também abre espaço de estudo e
debate acerca da mediania aristotélica, do imperativo
categórico kantiano, ou tantas outras filosofias que ocuparam-
se que questões éticas.
Os desafios do ensino
121
Enfim, desta forma o ensino seria pautado em um
interesse prévio dos alunos nas temáticas abordadas, e a partir
de preocupações reais, a partir de temas filosóficos
contemporâneos e universais, iniciaríamos nossa viagem rumo
à história da Filosofia.
O interesse pela reflexão filosófica, assim como
por qualquer outro assunto, só poderá ser
despertado se os conteúdos se revelarem
significativos para o sujeito da aprendizagem,
quer dizer, além de serem objetivamente
significativos, eles devem sê-lo também
subjetivamente, inscrevendo-se num horizonte
pessoal de experiências, conhecimentos e
valores.
Essa significação subjetiva ganha corpo quando
o sujeito consegue relacionar um novo
conhecimento com aqueles que já fazem parte
de sua estrutura cognitiva, ou seja, quando o ato
de conhecimento tem condições de configurar-
se, em alguma medida, como um ato de
reconhecimento.
[...]
A História da Filosofia ganha novo sentido
quando, em lugar de apresentar-se como uma
crônica do passado, passa a ser solicitada por
interrogações postas no presente. A referência
aos autores não constitui mera erudição ou um
conhecimento pelo conhecimento, mas um
recurso precioso e indispensável para pensar as
questões da contemporaneidade (RODRIGO,
2014, p.38,51).
Tendo em vista a aparente insuficiência do ensino de
Filosofia centralizado somente no eixo histórico, o filósofo e
pedagogo Sílvio Gallo nos indica no texto “Chegou a hora da
Filosofia”, da Revista Educação, a tendência atual para os
Michelle Ramunno Monteiro
122
outros eixos possíveis: o temático, onde há escolha do estudo
de temas de natureza filosófica, como liberdade, morte, etc.,
sendo estes temas universais, portanto, mais fáceis de
chegarem próximos à realidade do aluno, e, portanto,
despertar-lhe o interesse que o instigue a atividade do
pensamento crítico, e o eixo problemático, que estrutura suas
aulas na organização dos conteúdos em torno dos problemas
tratados pela Filosofia, porém com o apoio dos textos
filosóficos, e abordagem histórica para discussão dos temas
propostos - a partir de um tema, o professor convida os alunos
a refletirem acerca de uma questão filosófica, abre a discussão
a respeito, mas não se limita somente ao debate, mas usa-o
como gancho para apresentar textos que já versaram sobre a
questão que está sendo aprofundada, ou mesmo sobre filósofos
que já dedicaram-se aos problemas filosóficos apresentados aos
alunos.
Conhecer a história da filosofia é substancial ao
exercício do filosofar, mas atividade reflexiva é o filosofar em
si. Na prática de ensino, não devem ser tomadas como
caminhos opostos, mas como parte de um mesmo caminho. A
organização do conhecimento é fundamental para que o aluno
organize o próprio pensamento, e possa ter parâmetros de
comparação, essa também atividade interpretativa, de reflexão
e discernimento, e, portanto, do pensamento. Na comparação
existe crítica, portanto comparar também é pensar acerca de
algo. E qualquer comparação só pode ser feita tendo
conhecimento de mais de um lado de uma questão, de um fato,
de uma idéia. Logo, não pode ser abolido o ensino histórico-
filosófico, mas a tendência atual é que o ensino seja histórico-
filosófico-reflexivo, sendo o diálogo crítico com a tradição
também é uma forma de filosofar.
Outro aspecto interessante demonstrado pelo
questionário respondido pelos alunos é que, independente da
idade ou experiência de vida, é próprio da natureza humana
Os desafios do ensino
123
questionar-se acerca de temas fundamentais – e o interesse pela
temática da morte é na verdade a própria inquietação e
curiosidade acerca do sentido da vida, pois são temas cuja
significação sempre estará entrelaçada. Jovens são seres que
contam poucos anos vivenciais, sendo o estado de juventude
passageiro, porém a condição humana é o atributo essencial de
que participam – o que pretendo ressaltar com tal afirmação é
que não me parece correto subestimar suas inclinações,
julgando-as pueris e sem profundidade, só porque possuem
pouca idade, mas reconhecer a mesma humanidade à procura
de respostas que há em todos nós. Com o ensino de Filosofia, é
certo que não devemos pretender fornecer respostas, ou
espalhar verdades, mas aproximá-los do pensamento de outros
que, ainda que distantes por séculos e séculos, e milhas e
milhas, tinham as mesmas inquietações, voltavam-se para os
mesmos problemas, pois a natureza pungente das questões
filosóficas é a universalidade. E desse diálogo entre o passado
e o presente, que surja a verdade de cada indivíduo, e que seu
pensamento possa ser alimentado pela sabedoria reconhecida
naqueles que nos antecederam, e na sabedoria do espírito, o
que usualmente chamamos consciência.
REFERÊNCIAS
GALLO, Sílvio. Chegou a hora da Filosofia. Revista
Educação. Ed. 116. Disponível em
<http://revistaeducacao.uol.com.br/textos.asp?codigo=12008>.
Acesso em 30 jun. 2014.
SOUZA, S. M. R. A filosofia no Ensino Médio: uma releitura a
partir dos PCNs. In: CORNELLI, G.; DANELON, M.;
GALLO, S. (org.). Ensino de filosofia: teoria e prática. Ijuí:
Unijuí, 2004.
HORN, Geraldo Balduino. Ensinar filosofia: pressupostos
teóricos e metodológicos. Ijuí: Unijuí, 2009.
Michelle Ramunno Monteiro
124
RODRIGO, Lídia Maria. Filosofia em sala de aula – teoria e
prática para o ensino médio. Campinas, SP: Autores
Associados, 2014.
125
SOBRE O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO
Guilherme Damin Bortoli
Introdução
É estranho que em nosso tempo a filosofia não
seja, até para gente inteligente, mais do que um
nome vão e fantástico, sem utilidade nem valor,
na teoria como na prática. Creio que isso se
deve aos raciocínios capciosos e embrulhados
com que lhe atopetaram o caminho. Faz-se
muito mal em a pintar como inacessível aos
jovens, e em lhe emprestar uma fisionomia
severa, carrancuda e temível. Quem lhe pôs tal
máscara falsa, lívida, hedionda? Pois não há
nada mais alegre, mais vivo e diria quase mais
divertido (MONTAGNE, Ensaios, p.86).
Para pensar a atividade do professor de filosofia no
ensino médio será analisado em um primeiro momento o
entorno no qual a educação esta envolvida: aluno, escola e
sociedade. A partir desta análise serão expostas algumas ideias
a respeito da prática docente, tendo como referência prática o
Estágio de docência realizado no Instituto Federal de Santa
Catarina (IFSC) no ano de 2014.
Guilherme Damin Bortoli
126
1. Aspectos referentes ao entorno
Primeiramente temos que ter em conta que um aluno
nunca é "tabula rasa"1. Eles trazem para a sala a realidade em
que vivem, seus anseios, suas crenças, experiências e valores.
Há de se ter em conta também que, em geral, os alunos de
ensino médio têm idade entre 15 e 18 anos, e, por isso, estão
em uma fase de descobertas, inclusive de si mesmos. É um
período em que procuram pôr afirmação nos seus meios sociais
e seguramente isto aparece nas salas de aula. Cabe ao professor
lidar com esta situação e procurar estabelecer um ambiente
propício para o desenvolvimento da aula em que todos possam
sentir-se livres para expressar-se e expor opiniões e anseios.
Penso que a filosofia tem uma peculiaridade quanto ao
"movimento" necessário para sua prática. Entendo que o
essencial para o exercício da filosofia é um movimento em
direção a si mesmo na medida em que em última instância
estamos tratando de pensar a respeito de nossas convicções. Na
adolescência em geral, parece que os jovens preferem o
"movimento" oposto a este referido, em direção ao mundo que
parece lhes agradar mais.
O IFSC especificamente, por ser uma instituição de
ensino de excelência, seleciona seus alunos através de um
concorrido exame de seleção. Os reflexos desta seleção,
obviamente, podem ser percebidos em sala de aula. Em geral,
os alunos demonstram-se interessados para o aprendizado e são
muito bem articulados para expor suas convicções, alguns já
com muita bagagem literária e filosófica. Esta especificidade
do Instituto é muito positiva para o exercício da filosofia uma
1CERLETTI, Alejandro A. Ensinar Filosofia: da pergunta filosófica à
proposta metodológica. In: KOHAN, Walter (org). Filosofia: Caminhos
para seu ensino. RJ. Lamparina, 2008.
Sobre o ensino de filosofia
127
vez que, além dos alunos trazerem boas contribuições para o
debate também fazerem bons questionamentos o que acaba por
instituir um processo colaborativo entre alunos e professor em
sala de aula.
Com relação à escola, é preciso observar que está sob
o regimento de autoridades educativas que estabelecem as
diretrizes para o ensino, bem como os programas curriculares
das disciplinas que devem ser respeitadas pelo professor.
Entendo, entretanto, que tais conteúdos determinados não são
por si só, nem garantia, nem impedimento para que haja o
ensino de Filosofia dado que qualquer conteúdo prescrito vai
ter de ser atualizado filosoficamente pelo professor2.
Quanto ao processo educativo como um todo, entendo
que a escola e a educação em geral, estão vivendo uma crise. A
escola tem a postura de uma instituição que parece já não se
adequar as demandas dos alunos. Paula Sibilia (2012) faz uma
análise muito significativa desta crise e chama a atenção para o
fato de que a escola, no passado, fora pensada para atingir
certos objetivos que atualmente já não são os mesmos:
Os fatores que levaram a essa situação (de
crise) são inúmeros e extremamente complexos,
mas uma via para compreender os motivos
desse mal-estar seria pensar a instituição
escolar como uma tecnologia – quer dizer,
como um dispositivo, como uma ferramenta ou
um intricado artefato destinado a produzir algo.
E, portanto, é uma tecnologia de época: um
aparelho historicamente configurado. A partir
dessa perspectiva, não custa verificar que tal
maquinaria parece estar se tornando
gradativamente incompatível com os corpos e
2CERLETTI, Alejandro A. Ensinar Filosofia: da pergunta filosófica à
proposta metodológica. In: KOHAN, Walter (org). Filosofia: Caminhos
para seu ensino. RJ. Lamparina, 2008.
Guilherme Damin Bortoli
128
as subjetividades das crianças de hoje. A escola
seria, então, uma máquina antiquada; e, por
isso, seus componentes e seu funcionamento
são cada vez mais conflitantes com nossos
jovens (SIBILIA, 2012, p. 197).
Esta incompatibilidade descrita por Sibilia pôde ser
percebida no decorrer das aulas de filosofia no IFSC
especialmente quando o professor, num momento mais
expositivo da aula, procura apresentar a argumentação de
determinado filósofo. Parece que os alunos não dispõem de
paciência para acompanhar o argumento e acabam dispersando
a atenção facilmente.
Observou-se que o IFSC tem a educação claramente
direcionada para o ensino técnico. Neste sentido as disciplinas
da área das humanas parecem receber menor atenção dos
alunos em comparação das ciências naturais.
Entendo que, de maneira geral, isto ocorre porque a
atividade teórica tem sua importância encoberta pelas ciências
práticas uma vez que os resultados desta demonstram-se mais
evidentes e imediatos. Entretanto há de se exaltar a imanência
da atividade teórica, uma vez que a forma com que se pensa o
que se faz afeta diretamente a forma com que se faz. Nesse
sentido, faz-se necessário situar a filosofia e esclarecer a sua
importância.
Epicuro, filósofo grego do período helenístico,
entende que a filosofia é algo essencial para todos os homens e,
neste sentido sua utilidade estaria em ajudar os homens a terem
uma vida feliz. A filosofia é compreendida como a terapia que
procura cuidar da saúde da alma e seu propósito é que os
indivíduos, de maneira racional, possam se libertar do
sofrimento, o que lhes permitirá atingir o verdadeiro prazer,
identificado com a felicidade.
Que nenhum jovem adie o estudo da filosofia, e
que nenhum velho se canse dela; pois nunca é
Sobre o ensino de filosofia
129
demasiado cedo nem demasiado tarde para
cuidar do bem-estar da alma. O homem que diz
que o tempo para este estudo ainda não chegou
ou já passou é como o homem que diz que é
demasiado cedo ou demasiado tarde para a
felicidade. Logo, tanto o jovem como o velho
devem estudar filosofia, o primeiro para que à
medida que envelhece possa mesmo assim
manter a felicidade da juventude nas suas
memórias agradáveis do passado, o último para
que apesar de ser velho possa ao mesmo tempo
ser jovem em virtude da sua intrepidez perante
o futuro. Temos, portanto, de estudar o meio de
assegurar a felicidade, visto que se a tivermos,
temos tudo, mas se não a tivermos, fazemos
tudo para a obter (EPICURO, Carta a
Meneceu).
Para Epicuro a filosofia se justifica porque, em última
instância, pensa a respeito da postura que se escolhe tomar
diante da realidade e, esta por sua vez é determinante para que
possamos ter uma vida feliz.
Penso que a filosofia é de suma importância no
processo educativo à medida que este deve ser compreendido
como formação humana, que vai além da mera capacitação
técnica da mão de obra. Isto também esta determinado de
alguma forma pela LDB no seu artigo 35, quando cita que o
ensino médio deva ter como finalidade, dentre outras, “o
aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a
formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e
do pensamento crítico”.
2. A dicotomia filosofia entre o filosofar
Para ajudar a compreender melhor o exercício da
filosofia do ensino médio é preciso expor a dicotomia que
Guilherme Damin Bortoli
130
muitos autores tem feito em relação à didática de ensino da
filosofia ou como História da Filosofia, com ênfase na tradição
filosófica ou como ensino do filosofar, com ênfase no que se
chama a “atitude filosófica”.
O ensino como História da Filosofia remete a um
ensino sistemático e organizado com o intuito de possibilitar ao
estudante o conhecimento das diversas correntes filosóficas ao
longo da história. Este ensino pode ser feito em ordem
cronológica ou não. O objetivo central parece ser de
instrumentalizar o estudante para um possível pensar filosófico
Entretanto esta proposta de ensino não me parece
apropriada porque ao voltarmos para estudar a história da
filosofia veremos que já houveram diversos conhecimentos
diferentes e até teorias contraditórias concebidas como
filosofia. Devemos então buscar algo em comum nos
conhecimentos apresentados pelos filósofos que poderíamos
chamar de "Filosofia". Esta característica comum é na verdade
uma atitude, uma atividade e não propriamente o conteúdo.
É neste sentido que a Filosofia se distingue das outras
disciplinas estudadas no ensino médio e que inclusive faz com
que não exista um método propriamente dito que poderia ser
utilizado sempre da mesma forma. Não se trata de um
conhecimento enciclopédico, que armazena conteúdo. Ainda
assim a História da Filosofia tem fundamental importância, à
medida que é a partir do seu vasto conteúdo que estamos
instrumentalizados para as abordagens em sala de aula.
Penso que a filosofia é antes uma pergunta do que
uma resposta, que se caracteriza mais pela busca do que pela
posse. Utilizarei aqui uma analogia com relação à Utopia que
poderia ser aproximada à Verdade procurada pela filosofia e
que enfatiza o caminho traçado para atingir o objetivo:
A utopia está lá no horizonte. Me aproximo
dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho
dez passos e o horizonte corre dez passos. Por
Sobre o ensino de filosofia
131
mais que eu caminhe, jamais o alcançarei. Para
que serve a utopia? Serve para isso: para que eu
não deixe de caminhar (GALEANO, 2001, p.
230).3
O exercício da filosofia é como a busca pela Utopia, ela nos
proporciona o caminhar, o movimento.
Mas então como definir o que é a Filosofia? Percebe-
se certo incômodo em defini-la, mas podemos identificar este
incômodo como um sentimento que oportuniza o filosofar uma
vez que se movimenta em busca de um conceito. A Filosofia é,
em última instância, dar oportunidade ao pensamento4. Chauí
no artigo para a Folha intitulado Perfil do professor
improdutivo, ao procurar uma definição para filosofia afirmou:
uma tarefa absurda e pouco produtiva, para não
dizer inglória e vã, tentar uma definição de
Filosofia. Não porque a filosofia seja essa coisa
imprecisa, flutuante, tal que tudo é Filosofia e
nada é Filosofia, mas porque definir Filosofia é
dar a ela, de antemão, conteúdos. Se eu der, de
antemão, conteúdos para a Filosofia, eu terei
retirado, (...) a própria possibilidade de fazer
Filosofia (CHAUÍ, 1988, A3).
3. Conciliação entre a filosofia e o filosofar
Entendo que o que faz com que seja Filosofia é a
atitude filosófica, e por isto é interessante procurar desperta-la
nos alunos. Entretanto, como já foi dito, isto não exclui a
importância da tradição filosófica na sala de aula. Eis aqui o
3BIRRI,Fernando apud GALEANO, Eduardo. Las Palabras Andantes.
Catalogos S.R.L., Buenos Aires, 2001. 4CERLETTI, Alejandro. O Ensino de Filosofia como problema filosófico.
2009.
Guilherme Damin Bortoli
132
grande desafio, como conciliar o ensino da filosofia, como
atitude filosófica e o conteúdo da tradição filosófica?
Acredito que o uso da tradição filosófica no contexto
do ensino médio deve, antes de mais nada, ser feito através de
uma abordagem temática. O conteúdo da tradição pode servir
tanto de embasamento teórico para uma discussão, quanto para
despertar o interesse dos alunos.
A história da filosofia deve ser vista como
história não da tradição em seu sentido
doutrinário, ou como história dos grandes
sistemas, mas sim como contendo a
contribuição dos grandes filósofos ao
introduzirem questões que até hoje nos
motivam a pensar, e como indicando os vários
modos como essas questões foram tratadas.
Deve ser vista também não como linear ou
contínua, mas como incluindo o intenso debate
entre os vários filósofos e as várias correntes de
pensamento, as críticas, rupturas, controvérsias,
polêmicas que já se encontram no inicio mesmo
da filosofia como a crítica de Parmênides aos
mobilistas, de Platão aos sofistas e de
Aristóteles aos platônicos. A tradição filosófica
é uma história de grandes polêmicas, mais do
que da formação progressista de um saber ou da
constituição de uma doutrina. (…) A
consideração da historia da filosofia não nos
revela o progresso de um saber, nem a expansão
de um conhecimento. Não é linear, nem
cumulativa, mas antes, os problemas são
recorrentes, incessantemente retomados
(MARCONDES, 2008, p. 60).
É importante perceber a importância da recapitulação
da tradição filosófica, mas não no sentido da formação de um
aluno erudito, capaz de "armazenar" as teorias concebidas no
decorrer da história. O que penso ser mais relevante na tradição
filosófica são os questionamentos feitos pelos filósofos, que
Sobre o ensino de filosofia
133
continuam a proporcionar discussões. A tradição não precisa
ser abordada como um fim em si mesmo, mas antes como meio
para proporcionar o filosofar a partir do despertar da “atitude
filosófica”.
Despertar este que não se mostra tarefa fácil. É certo
que a “atitude filosófica” é intrínseca ao ser humano, uma vez
que surge do sentimento de espanto, de confrontar-se com o
desconhecido. O mundo nos espanta, por esta razão
filosofamos. Entretanto a rotina do dia-a-dia acaba por nos
“adormecer”. Por esta razão fala-se no despertar da “atitude
filosófica”. Porém não é somente a partir do esforço do
professor que se dá o despertar. Em última instância depende
do sujeito adormecido querer despertar. Cerletti descreve este
processo da seguinte forma:
Ensinar é conduzir a antessala de desafios que,
em última instância, são pessoais. O que cabe
ao professor é estimular e levar adiante este
desafio. Filosofar, então, é atrever-se a pensar
por si mesmo, e fazê-lo requer uma decisão. Há
que se atrever a pensar, porque isto supõe uma
maneira nova de se relacionar com o mundo e
com os conhecimentos, e não meramente
reproduzi-los. E isto implica incerteza. Pensar
supõe que há algo novo que se põe em jogo. É
uma atitude produtora e criadora, não é
meramente uma reprodução ou repetição do que
há. O que habitualmente se costuma "ensinar" é
o produto do pensamento de outros, o que
chamamos conhecimentos. Mas o pensamento é
intransmissível porque é um ato que depende,
em última instancia, de cada um (querer
transmiti-lo seria como pretender ensinar
alguém a ser um inventor). Transmitir ideia já
elaboradas não significa, obviamente, ensinar a
pensar, já que os conhecimentos são, em última
instância, só informação. Informação de maior
ou menor qualidade ou importância, mas
Guilherme Damin Bortoli
134
apenas informação, e a filosofia, certamente,
requer algo mais (CERLETTI, 2006, p.30).
De fato, percebe-se na sala de aula diferentes atitudes
nos alunos, enquanto alguns estão dispostos para a investigação
filosófica e demonstram-se interessados e participativos, outros
parecem estar mais acomodados. O professor de filosofia que
pretende despertar a “atitude filosófica” nos estudantes precisa
colocá-los em um estado de incômodo com o contínuo não-
saber e torná-los dispostos a investigação.
4. Sócrates, o professor de filosofia por excelência
Sócrates nos é apresentado por Platão como o filósofo
por excelência porque reconhecia seu não-saber. Ora, que tipo
de professor é Sócrates? Como ele ensina a filosofia? Qual a
sua formação? Obviamente o modo como os homens eram
formados nos tempos de Sócrates era bem diferente do que
conhecemos no século XXI. Não havia toda a sistemática de
cursos e disciplinas que temos nos dias de hoje. Seguem
algumas curiosidades a respeito da formação de Sócrates.
Apesar de pertencer à família de recursos
modestos, Sócrates pôde, desde a juventude,
receber uma educação esmerada, digna de
jovens atenienses de ricas e aristocráticas
famílias. Manteve desde cedo relações com as
mais notáveis inteligências de sua época e
também com o círculo de Péricles, que passou a
governar Atenas quando Sócrates contava vinte
anos de idade. Mas teve contato principalmente
com os sofistas, que nesta época atuavam em
Atenas. Frequentou desde a mocidade o liceu,
local em que os jovens atenienses realizavam o
cultivo físico e intelectual. Frequentou também
a escola de música de Cosmos para se
Sobre o ensino de filosofia
135
aperfeiçoar no bailado e, ao mesmo tempo, na
cítara (NAVARRO 1996, p.13).
Como é possível notar, a formação de Sócrates vai
muito além do que hoje conhecemos por Universidade, o que
lhe possibilitou aprofundar-se nas questões em que se detinha.
Esta atitude deve ser tomada como referência para o professor
de filosofia. É fundamental que a preparação vá além dos
muros das Universidades. É indispensável que o professor
possua permanentemente a “atitude filosófica” que lhe estimule
o movimento incessante em busca do conhecimento.
O “professor” Sócrates esperava levar seus
interlocutores à “ascese do pensamento” através da maiêutica.
Processo este descrito no diálogo Teeteto de Platão com uma
analogia a “arte do parir”, é dizer, de trazer ideias à luz,
esclarecê-las. Esse processo do “parto” das ideias é conduzido
por Sócrates através da técnica da dialética. Num primeiro
momento procura levar o interlocutor a aporia com o objetivo
de que ele abandone o que ele pensa saber, suas certezas.
Cumprindo este primeiro objetivo, Sócrates inicia o “parto”
fazendo com que seu interlocutor exponha suas ideias,
contrapondo argumentos, fazendo perguntas, com o objetivo de
trazer à luz ideias mais claras.
Da atividade de Sócrates podemos tirar algumas
lições. A primeira delas é que o interlocutor (no caso da prática
docente, os alunos) é o ator do seu próprio conhecimento. Para
aprender, ele precisa tornar as ideias suas (assimilá-las), ser
ativo na relação ensino-aprendizagem. É dizer, sem iniciativa
do interlocutor não haverá aprendizado.
Segundo, o método da dialética pode ser uma boa
ferramenta para a prática docente. Ao expor suas ideias e ouvir
outras diferentes, o estudante estará mais interessado em
esclarecer e aprimorar as suas a partir dos argumentos
apresentados do debate.
Guilherme Damin Bortoli
136
Há ainda o método da educação por imagens do qual
Sócrates faz uso. A partir de uma narrativa descritiva de um
fato hipotético, o interlocutor constrói uma imagem mental que
posteriormente será interpretada. Penso que o aluno retém esta
imagem mental com mais facilidade e isto lhe ajudará a
construir e memorizar o argumento construído a partir da
interpretação da imagem – Quem não se recorda da alegoria da
caverna apresentada por Platão? Na prática pude constatar que
os exemplos debatidos em sala de aula, no caso específico das
abordagens de ética normativa, ajudaram muito os estudantes a
compreender as teorias.
5. O ensino de filosofia
Em uma breve recapitulação dos temas tratados neste
ensaio, acredito que o primeiro passo para uma boa prática
docente no ensino médio é compreender o aluno e o entorno ao
qual o ele esta submetido, família, escola, sociedade.
Discutiu-se a respeito da dicotomia existente entre o
ensino da filosofia como História e como busca (filosofar),
entretanto procurou-se a aproximação das duas posturas e
conclui-se que estas não se excluem, mas se complementam.
Apresentou-se algumas características da formação de
Sócrates e também sua forma de compreender e praticar a
filosofia. Entende-se que os métodos apresentados dos quais se
utiliza, dialética e educação através de imagens, são
possibilidades para o ensino de filosofia no ensino médio,
entretanto nem estes nem quaisquer outros devem ser utilizados
como “O método”.
Certamente não há maneira privilegiada ou um
método eficaz de ensinar, porque esta maneira dependerá do
professor-filósofo que se seja e das condições em que se dê
Sobre o ensino de filosofia
137
esse ensino5. Neste sentido, pretender dispor de uma “fórmula
mágica” para a atividade docente em filosofia é ilusório porque
cada circunstância apresentará suas particularidades. A
“didática” da filosofia é uma construção (uma base conceitual
teórica e prática) que deveria ter a vitalidade de se atualizar
todos os dias6. Entretanto, podemos pressupor uma estrutura
básica para uma boa aula de filosofia, na qual se estabelece
uma situação problema cujas soluções devem ser encontradas
filosoficamente.
Em relação à prática, devem-se levar em consideração
alguns aspectos preliminares. É condição indispensável para a
prática docente a disposição e preparação (domínio do
conteúdo a ser estudado) do professor. Somente assim poderá
manter seus alunos interessados no conteúdo.
Devemos também pensar que “a sala de aula é um
âmbito em que é possível formular perguntas filosóficas com a
radicalidade que elas implicam”7. É através destas perguntas
que se deseja despertar nos alunos a atitude filosófica, para, a
partir de então, fazer filosofia.
Com relação aos alunos, descreveu-se que o interesse
dos alunos é outro, estão diante da descoberta da sua liberdade,
dos seus sentimentos. A disciplina de filosofia lhes esta sendo
imposta como uma obrigação. Como, então, motivar o aluno e
fazê-lo interessado pela filosofia?
É certo que temas polêmicos e temas relacionados
com as inquietações da adolescência facilitam. Entretanto,
independentemente do tema, deve haver alguma sensibilização
a fim de que o aluno compreenda o problema a ser trabalhado.
5CERLETTI, Alejandro A. Ensinar Filosofia: da pergunta filosófica à
proposta metodológica. In: KOHAN, Walter (org). Filosofia: Caminhos
para seu ensino. RJ. Lamparina, 2008. 6Ibid
7Ibid.
Guilherme Damin Bortoli
138
Assim, a sensibilização deve ser uma forma de convidar os
alunos para, juntamente com o professor, procurar por
respostas. O objetivo aqui é o despertar a “atitude filosófica”, é
convidar os alunos para movimentarem-se, serem ativos nesta
busca. A ausência desta atitude implicará uma resposta que não
lhes faz sentido.
Para as aulas de ética normativa durante o estágio
docente, utilizou-se de dilemas éticos práticos para sensibilizar
os alunos (um caso de canibalismo). A medida que os alunos
encontravam dificuldades para julgar tais dilemas interessaram-
se em procurar justificativas para as suas escolhas. Além do
interesse pela investigação, observou-se também que as teorias
apresentadas foram compreendidas em grande medida através
dos exemplos apresentados. Sempre que retomávamos o tema
em outras ocasiões, os exemplos foram citados pelos alunos
para relembrar os argumentos das teorias apresentadas.
Passando pelo primeiro passo da sensibilização e, por
consequência do despertar a “atitude filosófica” nos alunos,
cabe ao professor habilmente conduzir a discussão e trazer para
ela, sempre para somar ao debate, os conceitos da tradição
filosófica. Penso ser importante contrapor ideias através da
exposição de teorias e também das críticas dirigidas a ela; isto
leva os alunos a compreender a essência do problema em
questão além de oferecer-lhes mais recursos para que
construam as suas respostas. É preciso tomar cuidado com a
exposição de argumentações muito extensas que levam os
alunos a entediarem-se e, por consequência dispersarem-se. A
variação do método utilizado pelo professor no decorrer da sua
aula ajuda a quebrar a “monotonia”, por isso, utilizar-se de
esquemas teóricos, exemplos, imagens, além de auxiliarem na
compreensão do assunto, mantém a aula agradável.
Em função da natureza polêmica de alguns temas
filosóficos, o debate acaba sendo parte das aulas. Ele deve ser
uma construção com diferentes argumentos e não um ringue de
Sobre o ensino de filosofia
139
ideias. Por isto é fundamental que impere a tolerância. Acredito
ser importante que o professor (estando ciente de que não é
responsabilidade sua) tente preparar seus alunos para irem além
da sua subjetividade; é dizer, que sejam capazes de ouvir e
aceitar a posição do outro mesmo que seja contrária a sua.
Immanuel Kant identificou o pensar de forma consciente como
uma síntese do pensar por si mesmo com o pensar do ponto de
vista do outro8.
Por fim, tendo em vista o que esperamos para uma
aula de filosofia, é preciso estar alerta para a direção à qual não
queremos ir. Não queremos que a aula de filosofia seja um
“achismo” geral, na qual qualquer discussão e qualquer opinião
tenham status de pensamento filosófico. Neste mesmo sentido,
não queremos que as discussões sejam superficiais, ficando
presas a opiniões e senso comum. É necessário que o
pensamento supere o senso comum e que os argumentos sejam
construídos com racionalidade. Tampouco queremos ser
filósofos críticos negativos, criticar destrutivamente qualquer
argumento sem propor uma reordenação.
6. REFERÊNCIAS
CERLETTI, Alejandro A. Ensinar Filosofia: da pergunta
filosófica à proposta metodológica. In: KOHAN, Walter (org).
Filosofia: Caminhos para seu ensino. RJ. Lamparina, 2008.
__________________. O Ensino de Filosofia como problema
filosófico. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2009.
Chaui, M. Perfil do professor improdutivo. Folha de São
Paulo, 24 de fevereiro, 1988.
8KANT, Immanuel, 1724-1804. Critica da razão pura. 4. ed. Lisboa
Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
Guilherme Damin Bortoli
140
EPICURO. Carta a Meneceu. Tradução de Desidério Murcho.
Disponível em <http://criticanarede.com/meneceu.html>.
Acesso em 06/03/2015.
GALEANO, Eduardo. Las Palabras Andantes. Catalogos
S.R.L., Buenos Aires, 2001.
KANT, Immanuel, 1724-1804. Critica da razão pura. 4. ed.
Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
KOHAN, W. O. Sócrates, A Educação e a Filosofia. De herói a
Anti-Herói. In: Ensino de Filosofia: teoria e prática, 113-126.
Ijuí: Unijuí, 2004.
NAVARRO, Eduardo de Almeida. Sócrates, Vida e
Pensamentos. São Paulo: Ed. Martin Claret, 1996.
SIBILIA, Paula. A Escola no Mundo Hiper-conectado: Redes
em vez de Muros?. Matrizes, São Paulo (USP), vol 5, no 2
(2012); p 195 - 211.
MARCONDES, Danilo. É Possivel ensinar a filosofia? E, se
possível, como?. In: KOHAN,Walter (org). Filosofia:
Caminhos para seu ensino. RJ: Lamparina, 2008.
PLATÃO, Teeteto. In: Diálogos de Platão. Tradução do grego
por Carlos Alberto Nunes. 3a. ed., Belém: Universidade
Federal do Pará, 2001.
141
FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO: SIM, UMA
EXPERIÊNCIA POSSÍVEL
Aldo Félix Barreto
1. Introdução
Realizei meu estágio de docência em filosofia para o
ensino médio, acompanhando as aulas de filosofia do Professor
Elieser Spereta, no IFSC - Instituto Federal de Santa Catarina
por um período de dois semestres. No primeiro deles minha
experiência foi com uma turma de 3º ano do curso Técnico
Concomitante em Edificações. No segundo, estagiei em uma
turma mista de 2º ano com alunos do curso Técnico
Concomitante em Meio Ambiente e do curso Técnico
Concomitante em Química. No acordo feito entre a
Universidade Federal e o IFSC, estabeleceu-se que os
estagiários da UFSC participariam das aulas em duplas.
Durante todo o período de estágio formei dupla com o colega
Guilherme Bortoli, e o trabalho em dupla mostrou-se bastante
produtivo.
A experiência de estágio proporciona ao graduando de
licenciatura, a possibilidade de participar das interações
vivenciadas, normalmente, apenas por professores e alunos nas
salas de aula durante o processo de ensino/aprendizagem. Tive
a oportunidade de observar atentamente o andamento das aulas
e estabelecer relações com os referenciais teóricos estudados
durante o curso de graduação. Pude ministrar alguns conteúdos,
preparar questões de provas sobre os temas por mim
ministrados e também corrigir provas.
Preparar-se para ensinar filosofia no ensino médio
requer em um primeiro momento, indagar-se a respeito da
Aldo Félix Barreto
142
natureza da filosofia em si e de sua especificidade. Também é
pensar sobre um ensino dirigido a estudantes jovens, na maior
parte com uma faixa etária entre 14 e 18 anos e perguntar-se:
Por que ensinar filosofia? O que ensinar? E como ensinar?
(Souza, 2004). Requer refletir a respeito do papel do professor
de filosofia em meio ao processo educativo, bem como sobre a
repercussão de sua atitude filosófica junto aos alunos. Foi
interessante verificar durante o meu período de estágio, como
estas questões ressurgiam e reavivavam-se diante do desafio de
cada aula a ser ministrada.
2. Reflexões sobre a experiência de estágio no IFSC
As turmas de 2º e 3º anos do IFSC assistem duas aulas faixa de
filosofia por semana, o que corresponde a 100 minutos de aula
a cada encontro. Já no primeiro semestre de estágio, o
professor Elieser nos deu liberdade para ministrar alguns
temas. Confesso que senti o peso da responsabilidade e só dei
aulas, mesmo, no segundo semestre. Ministrei duas lições, uma
sobre a ética kantiana e outra sobre a ciência política em
Maquiavel. Para cada lição pude contar com o tempo integral
das duas aulas faixa.
Poder ministrar duas aulas por semana, é um privilégio
se considerarmos que os PCNs - Programas Curriculares
Nacionais e OCN/Filosofia - Orientações Curriculares
Nacionais não prevêem a obrigação de duas aulas semanais de
filosofia para o ensino médio. Em muitos casos, dependendo da
escola, o professor de filosofia contará com apenas 50 minutos
por semana para desenvolver as atividades em sala de aula com
cada turma. A luta para conquistar uma obrigatoriedade de
abrangência nacional, de pelo menos duas aulas de filosofia por
semana para o ensino médio, está na pauta de luta dos
movimentos que buscam um ensino de filosofia de melhor
Compreensão prévia e filosofia
143
qualidade para esta etapa do ensino médio. Outra conquista
almejada por estes movimentos, é a atuação exclusiva de
docentes com graduação de nível superior em filosofia nas
ministrações desta disciplina. É comum ver-se em várias
escolas, privadas ou mesmo nas do estado, professores de
outras disciplinas, como história ou sociologia, ministrando
aulas de filosofia. No entanto, alcançar os principais itens da
referida pauta de lutas, dependerá das respostas a um desafio
maior: o de estabelecer uma identidade da matéria filosofia
como disciplina pertinente ao currículo de ensino médio.
Enquanto esta identidade não estiver bem fixada, a disciplina
de filosofia continuará a constar no imaginário popular, e
mesmo entre os demais profissionais da educação, como
disciplina de caráter secundário, relacionada à erudição, fé e
moral.
O professor Elieser é doutorado em filosofia pela
Unicamp, universidade respeitada do estado de São Paulo.
Segundo ele, “despertar e manter o interesse dos alunos é
fundamental, pois, se perdermos este vínculo de interesse pela
matéria, os estudantes tendem a encarar a filosofia como coisa
antiga, confusa, chata…”. Segundo ele, as aulas expositivas
com abordagens temáticas tem surtido mais efeito neste
sentido, que as que consistem em abordagens históricas.
Eu já havia preparado minha aula sobre ética kantiana
quando assisti à aula do Guilherme (colega de estágio) sobre o
utilitarismo de Bentham. Que aula! Ele conversou com a turma
todo o tempo, apresentando os princípios teóricos e ilustrando
com casos verídicos. Sua aula foi um sucesso em vários
aspectos, mas a forma como prendeu a atenção de todos foi
marcante, a ponto de me fazer rever o programa de exposição
da minha aula que estava prevista para a semana seguinte.
Optei por uma aula mais dialogal, então, começando
cada etapa com apresentação de casos que consistiam em
Aldo Félix Barreto
144
dilemas éticos, alguns propostos pelo próprio Kant. Coloquei o
livro “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” de Kant,
à disposição dos alunos para que passassem de mão em mão e
folheassem, tendo um contato concreto com a obra impressa do
autor. Só após a apresentação de cada caso, prosseguíamos
para a problematização com os estudantes analisando aquele
caso. Estando os estudantes, de maneira geral, envolvidos no
processo, prosseguia a aula com as soluções teóricas
desenvolvidas por Kant e estas eram novamente dispostas no
diálogo com a turma para a análise de todos. O pensamento
kantiano foi contextualizado com seu tempo, as bases para as
formulações do imperativo categórico foram analisadas junto
com a turma, exemplos do seu funcionamento foram
apresentados e discutidos e objeções à ética kantiana
apontadas por outros teóricos foram contempladas. Foi
interessante notar que mesmo sem contato anterior com as
objeções apresentadas por especialistas, alguns alunos se
anteciparam apresentando suas próprias objeções o que me
dava oportunidade para apresentar as objeções daqueles.
Para que o professor de filosofia possa cumprir com seu
papel nas relações ensino/aprendizagem da disciplina, precisará
ter desenvolvido em si próprio, sólida cultura filosófica,
entendendo o aprendizado do filosofar, como processo e não
como produto, ou seja, algo que se constrói pela leitura dos
textos filosóficos, pelo debate e pela reflexão. Para tanto
requer-se que o professor tenha desenvolvidas, as habilidades
didático-pedagógicas necessárias e uma postura interdisciplinar
para mediar o desenvolvimento da competência de
contextualização sociocultural em seus alunos. O texto dos
PCNs/filosofia prevê que a construção, por parte do professor,
de sua identidade como docente de filosofia, dependerá de
como ele responde à pergunta: “O que é filosofia?”. No texto
lemos:
Compreensão prévia e filosofia
145
Em suma, a resposta que cada professor de
filosofia do Ensino Médio dá à pergunta...“que
é filosofia?” decorre, naturalmente, da opção
por um modo determinado de filosofar que ele
considera justificado. Aliás, é fundamental para
esta proposta que ele tenha feito sua escolha
categorial e axiológica, a partir da qual lê e
entende o mundo, pensa e ensina. Caso
contrário, além de esvaziar sua credibilidade
como professor de Filosofia, faltar-lhe-á um
padrão, um fundamento, a partir do qual possa
encetar qualquer esboço de crítica (BRASIL,
2000, p. 48. l).
Observando as aulas do professor Elieser, pude
perceber que ele é um profissional competente, que tem bom
conhecimento a respeito de diversas áreas da filosofia e
domina com excelência os temas à que se propõe ministrar.
Sua postura afetiva e dialogal, tem lhe garantido o respeito de
todas as turmas. Ele sonda as opiniões dos estudantes com
atenção. Após cada participação do aluno, ele apresenta a
mesma ideia do aluno usando outras palavras e confirma com
este se era aquilo mesmo que o aluno queria dizer. A aula
segue sempre nesse ritmo que convida à reflexão e à
participação. Certa vez, Elieser confidenciou comigo, de que
se preocupava com a postura extremamente “conservadora”
(capitalista) dos alunos do IFSC. Percebi em meio a suas aulas
sobre bem estar social, na sua expressão, traços de uma
cultura política interessada nas questões sociais, bastante
discretos, mas, sólidos.
Imagino que eu precise conhecer um pouco mais da
filosofia como um todo, até que possa definir com certeza, a
quais correntes da filosofia deva me vincular. Mas por
enquanto, já percebo em mim, um considerável gosto pelos
textos dos diálogos platônicos, pela ética de Levinas, pela
Aldo Félix Barreto
146
proposta educacional de Paulo Freire, pela estética
hegeliana… Filosofar, eu defino como um jeito de interpretar
a realidade, que pode partir até de uma intuição, mas que
precisa passar ileso pelo crivo rigoroso da razão.
É salutar, portanto, que o professor esteja criticamente
comprometido com a corrente filosófica com a qual melhor se
identifica, mas, consciente de que o seu papel está mais para
um facilitador que propõe os conteúdos a partir da realidade
dos estudantes, agindo como mediador dos processos dialogais,
de investigação e de construção de conceitos. A figura do
professor que deseja realizar qualquer espécie de doutrinação,
não faz jus a uma atitude verdadeiramente filosófica.
Não basta, portanto, que a disciplina de filosofia conste
como integrante obrigatória dos currículos de ensino médio e
que cada professor de Filosofia tenha formação acadêmica
filosófica, para imaginarmos que durante uma aula desta
disciplina, o estudante esteja tendo a oportunidade de vivenciar
uma experiência de pensar filosoficamente. Para “provocar”
intencionalmente em sala de aula tal experiência, se exigirá
uma articulação acertada de elementos pedagógicos
imprescindíveis: enfoque, conteúdo e metodologia de ensino,
apropriados.
Pensar no enfoque, conteúdo e metodologia a ser
aplicada em uma aula de filosofia, remete-nos novamente à
figura do professor e suas intenções em classe. É do professor a
responsabilidade de condução da aula. Portanto, ele tem que
poder identificar de forma geral, o contexto em que estão
inseridos os estudantes da classe a que se dirige, e estar
preparado para a reflexão filosófica à qual pretende conduzi-
los. Não se pode chamar de aula de filosofia propriamente dita,
uma ministração que despreze de todo a tradição filosófica, sua
especificidade de pensamento por conceitos, seus principais
Compreensão prévia e filosofia
147
autores e correntes, bem como sua configuração na história.
Para Horn:
Só podemos aprender a pensar, pensando, mas,
para nós, pensar implica retomar aquilo que é
resultante do que já foi pensado. Esta é a
justificativa e a significação mais profunda do
diálogo com os pensadores que nos
antecederam no tempo e com aqueles que
convivem conosco num mesmo espaço social,
na contemporaneidade (Horn, 2009).
Contudo, se queremos oferecer ao estudante
oportunidades de refletir, criticar e resignificar seu mundo por
um viés filosófico, esta aula precisa despertar o seu interesse de
participação na reflexão, o que exigirá do professor equilíbrio o
bastante, para ao tentar fugir de um conteudismo de história da
Filosofia, não acabar por incentivar um pensar
descompromissado, descontextualizado que resulte em um
discurso vazio.
A participação dialogal dos alunos das duas turmas
observadas se deu de forma natural. Eles não apresentam
maiores problemas de expressão, fazendo perguntas e
observações pertinentes aos temas propostos. Foi possível ver
um ou outro, vez por outra, entretido com alguma atividade
não relacionada à aula, seja esta uma conversa paralela, em
tom baixo, ou fazendo uso de aparelho celular para acesso
breve a redes sociais. Nada intolerável ou preocupante. De
maneira geral, as turmas surpreenderam positivamente,
considerando sua média de idade e o comportamento bem
menos receptivo de alguns de seus pares em outros contextos
escolares, principalmente no que diz respeito às atividades que
exigem capacidades de abstração, de leitura, e de escrita.
Devemos considerar que para ingressar no IFSC, os
estudantes passam por um teste de seleção, o que facilita a
Aldo Félix Barreto
148
formação de turmas com nível de aproveitamento acima da
média nacional. Todavia, parece claro, que grande parte dos
resultados positivos alcançados nestas aulas de filosofia, tem
sido construída na interação amigável entre o professor e a
turma. Certa vez, Elieser comentou comigo e com Guilherme,
que a escolha feita por alguns profissionais de fazer-se
representar na figura de “professor carrasco”, não surte um
bom resultado.
Para Alejandro Cerletti: “Quem ensina Filosofia deve
ter-se perguntado, com a radicalidade que implica uma
pergunta filosófica autêntica, por que e para que vai ensinar
filosofia a esse grupo ao qual vai dirigir-se” (CERLETTI,
2009, p.78). É certo que determinada metodologia de ensino de
filosofia poderá estar mais próxima de se adequar ao processo
de ensinar o filosofar, no entanto, a viabilização deste processo
só se faz através da mediação consciente de um professor capaz
de empreendê-lo. “Devido a isso, aqueles que ensinam filosofia
nunca poderiam ser simples técnicos que apenas aplicam
receitas ideadas por especialistas.” (Cerletti, p.78). O professor
tem de estar atento para não permitir que algum apego seu ao
planejamento prévio, impeça-o de ater-se ao verdadeiro
questionar filosófico por parte do aluno. O planejamento de
uma aula de filosofia, devido à própria natureza da Filosofia,
deve prever abertura para o questionamento crítico e o pensar
autônomo deve sempre ser incentivado.
Porque ensinar filosofia? Eu quero ensinar filosofia
pela mesma razão apontada por uma máxima relacionada à
educação: ‘educação para a emancipação’ . Ousar pensar por
si, já é um ato emancipador, deve ser incentivado e
aprimorado.
Compreensão prévia e filosofia
149
Sílvio Gallo aposta numa metodologia que respeita a
especificidade conceitual da Filosofia, propondo a disciplina de
filosofia como oficina de conceitos, aberta ao inusitado e à
criação:
(...) numa aula de filosofia assim concebida,
importa mais o processo criativo, a
experimentação, fazer o movimento de
pensamento do que o ponto de chegada, a
solução do problema, a veracidade do conceito
criado. Importa que cada estudante possa passar
pela experiência de pensar filosoficamente, de
lidar com conceitos criados na história,
apropriar-se deles, compreendê-los, recriá-los e,
quem sabe até mesmo criar conceitos próprios
(GALLO, 2007, p.26).
Minha segunda aula foi sobre ciência política, a partir
da obra “O Príncipe” de Maquiavel. Comecei perguntando se
havia questões sobre Maquiavel na prova do ENEM (Exame
Nacional do Ensino Médio) aplicada na semana anterior e os
alunos confirmaram que sim. Então perguntei sobre o que eles
já sabiam sobre Maquiavel e fui anotando as respostas no
quadro branco. Como na aula de Kant, disponibilizei o livro
“O príncipe” para apreciação dos alunos. Expliquei que
durante o nosso estudo naquele dia, muitas das nossas
opiniões sobre Maquiavel poderiam mudar.
Entendo que posicionar o conteúdo a partir da realidade
dos alunos, seja começar a partir daquilo que eles já conhecem
ou da forma como eles reagem a uma notícia atual ou a uma
obra de arte, ou mesmo ao pensamento expresso num
fragmento de texto filosófico. A reação de cada aluno nestes
momentos revela algum valor seu, que ele já conhece, que o
Aldo Félix Barreto
150
permite se posicionar a respeito do objeto de contemplação,
aprovando, desaprovando...
A partir da introdução, cada etapa da aula foi iniciada
com a leitura de um fragmento da obra O Príncipe com
excessão do último fragmento, extraído da obra “Comentários
sobre a primeira década de Tito Lívio” também de Maquiavel.
Cada fragmento revelava um aspecto diferente do pensamento
maquiaveliano. Um aluno lia o fragmento em voz alta e os
demais acompanhavam a leitura por meio de cópias xerox. O
pensamento contido no fragmento era, então, problematizado e
a partir da problematização, mais dados a respeito da vida, da
obra e do posicionamento ético-político de Maquiavel eram
acrescentados. Como última etapa, pedi que formassem
equipes de três ou quatro integrantes para responder por
escrito a três perguntas relacionadas ao tema. Quando
acompanhava o trabalho nas equipes, pra minha surpresa, um
aluno chamado Giovanni perguntou se Maquiavel não estaria
ironizando ao escrever O Príncipe. Parabenizei-o, revelando
que Rousseau pensava como ele, mas aproveitei para
apresentar concepções mais atuais que divergiam desta
posição. Uma aluna de outra equipe me disse que se interessou
pelo tema e que iria ler O Príncipe.
Para o caso de alguém imaginar ser utópico propor uma
aula de ensino médio que possibilite ao estudante criar seus
próprios conceitos, Gallo explica que tal tarefa não é
impossível e baseia-se nas ideias de Deleuze e Guattari para
sugerir que quando o aluno se utiliza de um conceito trazido da
história da filosofia para interpretar seu mundo, ele já recria o
conceito, pois tal conceito se transforma quando extraído de
seu contexto original para o contexto atual mediante a
apreensão feita pelo aluno.
Compreensão prévia e filosofia
151
3. Conclusão
Sim, filosofia no ensino médio é uma experiência
possível, contudo, dependerá do professor encarar os desafios
que se farão presentes de uma forma ou de outra a cada dia e a
cada aula. Às vezes o desafio poderá estar na dificuldade que a
própria temática escolhida possa representar, outras no
desinteresse generalizado de uma turma ou de um grupo
isolado em uma turma. Há que se considerar também,
dificuldades impostas pelas próprias condições de trabalho
oferecidas por algumas instituições de ensino, sejam péssimas
instalações, horário reduzido para as aulas, ou falta de material
didático. A desvalorização da disciplina de filosofia por alguns
colegas, professores de outras disciplinas, pode representar em
si, um sutil desafio à boa aceitação desta disciplina no âmbito
restrito de uma escola. Certamente, o ensino de filosofia no
contexto geral da educação de ensino médio brasileira
apresenta condições bem mais áridas que as oferecidas no
IFSC para prática do filosofar a partir de experiências em sala
de aula. No entanto, um professor dinâmico e bem preparado
será capaz de responder bem a muitos dos desafios com os
quais venha a se deparar.
A respeito da pauta de lutas observada por movimentos
país afora no que tange à filosofia de ensino médio, sabemos
que a trajetória desta disciplina no ensino médio, teve suas
maiores conquistas muito recentemente a partir de 2008 com a
nova LDB. As melhoras desde então, tem sido gradualmente
mais visíveis, e neste aspecto, o papel das universidades,
propondo a reflexão sobre o tema e formando os novos
professores tem sido preponderante.
4. REFERÊNCIAS
Aldo Félix Barreto
152
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Básica. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio. Ciências Humanas e suas tecnologias. Brasília, DF,
2000.
CERLETTI, Alejandro. Em direção a uma didática filosófica.
In: _____. O ensino de filosofia como problema filosófico.
Tradução de Ingrid Müller Xavier. Belo horizonte: Autêntica,
2009. Coleção Ensino de Filosofia.
GALLO, Sílvio. Artigo: A filosofia e seu ensino: conceito e
transversalidade. In: SILVEIRA, Renê J.T; GOTO, Roberto
(org). Filosofia no ensino médio: Temas, problemas e
propostas. Loyola, 2007.
HORN, Geraldo Balduino. Ensinar Filosofia. RS: Ed. Unijuí,
2009.
SOUZA, Sônia Maria de. Artigo: A FILOSOFIA NO ENSNO
MÉDIO: uma (re)leitura a partir dos PCNs. In: ENSINO DE
FILOSOFIA: Teoria e Prática; org. Gallo; Danellon; Cornelli.
Ijuí: ed. UNIJUÍ, 2004.
153
COMPREENSÃO PRÉVIA E FILOSOFIA NO ENSINO
Flávio Ricardo da Silva
1. A filosofia é possível no Ensino Médio?
De saída, a minha resposta para essa questão é sim. A
filosofia é possível não só no ensino médio, mas é sempre
possível enquanto existirem seres humanos. A filosofia é um
possível do humano, na medida em que este é um ser que
compreende. E ser um ser que compreende significa que, uma
vez existindo no mundo, o homem já está sempre caminhando
em alguma compreensão. Existir no mundo significa sempre já
ter sido atingido pelo mundo1. Existir, portanto, não significa
meramente ser, como uma coisa fechada em si mesma – que
não compreende, que não esta aberta –, mas existir já sempre
em contato com o mundo e, assim, compreensivamente.
Poderíamos dizer isso de outra forma. Existir significa ser
consciente – por isso as coisas, diferentemente dos humanos,
não existem, apenas são. Este ser consciente nunca é um “em
si”, fechado, mas ser consciente é ser consciente de algo, é já
estar direcionado para o mundo. Eu não existo “primeiro”
como um “eu mesmo” que “depois” entra em contato com o
1 Mundo aqui não é um conjunto de coisas, mas uma totalidade (aberta) de
significação a partir da qual as coisas me aparecem. Uma cadeira, por exemplo, não me aparece como um objeto dos sentidos ao qual, posteriormente, eu atribuo o nome de cadeira. Uma cadeira me aparece dentro de uma totalidade de significados, sem a qual o ‘ser cadeira’ não se mostraria como tal. Em termos simples, a cadeira não é um mero dado dos sentidos, ela não me aparece como cadeira sem que já haja uma compreensão – implícita ou explícita – do mundo.
Yuri Galvão Almeida
154
mundo. Não, eu já existo sempre em contato com o mundo e é
neste contato – que sempre já se deu – que ocorre a
compreensão (de forma mais ou menos explícita/clara).
Essa compreensão é a “matéria prima” da filosofia. É
sobre esta compreensão originária que os filósofos constroem
seus sistemas. Uma filosofia age sobre esta compreensão. Às
vezes tenta refutá-la (céticos, por exemplo), até escarnecê-la
(cínicos), fechá-la (quando se torna a filosofia, o sistema). Mas
sempre, a nosso ver, pode enriquecê-la, expandi-la. Agir sobre
a compreensão significa, então, ter uma postura ativa sobre
esta compreensão. Ou seja, não apenas ser atingido
passivamente pela compreensão, mas pensar esta compreensão
ativamente. Fazer com que esta compreensão – na medida do
possível – se mostre mais claramente, mais explicitamente. Em
outras palavras, tornar esta compreensão mais consciente e
assim conceder, ou restituir, ao homem o poder de escolher2.
O que queremos mostrar com estas ideias é que a
filosofia é sempre possível na vida do homem. Na medida em
que ela (filosofia) se ampara na experiência humana no mundo.
Uma experiência compreensiva – o homem sempre já se move
2 Quando algo me é oculto eu nada posso decidir a respeito, apesar de
poder ser influenciado por isso. Por exemplo, uma concepção baseada na metafísica platônica pode, por meio da cultura na qual vivo, exercer grande influência sobre minhas concepções a respeito do que considero verdadeiro, sem que eu possa criticar tal concepção (mesmo que eu a efetue no meu comportamento, na minha forma de pensar). Posto que ela não me aparece explicitamente e permanece, portanto, como um pressuposto impensado sobre o qual eu não decido. Ou seja, um voltar-se ativo sobre um aspecto impensado de uma compreensão prévia que já influencia a minha vida, abre para mim a possibilidade de exercer certa liberdade sobre este impensado que anteriormente, por se manter impensado e oculto (mas ainda tendo consequências na minha vida cotidiana), me determinava sem que eu pudesse exercer alguma liberdade de escolha sobre isto.
Compreensão prévia e filosofia
155
em uma compreensão de mundo – e potencialmente discursiva;
passível, em alguma medida, de se explicitar em discurso. Essa
compreensão sempre já ocorrida, na medida em que o homem é
consciente no mundo, já é uma espécie de filosofia elementar,
ou potencial. Porém, o filosofar propriamente dito, ocorre
quando o homem se volta sobre a compreensão na qual está
enredado e tenta explicitá-la ativamente. Esse explicitar, esse
trazer a luz, é o ato filosófico que nos interessa aqui. O
filosofar, assim compreendido, possibilita tanto a crítica de
uma compreensão prévia (ou pelo menos de alguns aspectos
desta), quanto uma ampliação de horizonte. Tornar a
compreensão mais rica e abrangente.
2. Como é possível a filosofia no Ensino Médio?
A partir do exposto acima queremos fazer perceber
que o aluno sempre já se move em certa compreensão do
mundo. O estudante não vem à sala de aula como uma tábula
rasa, ele já compreende. E este é o elo a partir do qual ele pode
ser levado à filosofia, no sentido ativo de que falávamos
anteriormente. É na compreensão já efetuada pelo aluno na sua
vida cotidiana, que o professor deve “alcançá-lo” durante a
aula. Isso significa que é preciso um esforço, da parte do
professor, por captar a compreensão prévia dos alunos em
relação ao tema que será abordado. Por sua vez, isso se traduz
numa postura de abertura em relação ao diálogo com a turma.
O aluno deve ter a oportunidade de manifestar sua
compreensão tanto antes, quanto durante a exposição do
professor. E o professor a partir do que nota no conteúdo dos
comentários e perguntas deve ir ajustando seu discurso, o ritmo
da exposição, o vocabulário usado. Os alunos fornecem ao
professor a “matéria prima” com a qual ele os ajudará a
Yuri Galvão Almeida
156
compreender o tema ou autor estudado. Essa matéria prima
advém da própria vivência deles, do seu existir no mundo.
Aqui temos um duplo movimento: por um lado, o tema ou
autor abordado deve ser “levado” até a compreensão prévia do
aluno, e por outro a compreensão prévia do aluno é trazida até
o tema ou a perspectiva do autor. Por exemplo: em uma aula
sobre felicidade o docente se utiliza de um vídeo sobre o
assunto. Após assistirem o vídeo o professor faz perguntas aos
alunos, perguntas que visam fazer com que eles exponham sua
visão prévia do que é a felicidade. O professor, então, usa as
ideias que os alunos expõem para ir introduzindo o conteúdo
programado para a aula. As opiniões dos alunos dão ensejo
para que o professor traga a eles opiniões e conceitos
filosóficos. Deste modo, a discussão vai tomando contornos
mais claros. Abrindo aos alunos a possibilidade de dialogar
com a tradição filosófica.
Assim, a tradição filosófica pode ajudá-los a tornar
mais clara e mais rica a compreensão que eles têm da e na
própria vida. A aula nunca deve ser tão abstrata e deslocada do
cotidiano dos alunos a ponto de que não possam vivenciar a
problematização filosófica em sua própria existência, sob pena
de fazê-los perder o interesse. A filosofia, os problemas e
temas de que ela tratou e trata, são problemas e temas da
existência humana. Assim entendida, a tradição filosófica não
pode ser encarada como um fim em si mesmo. Mas como algo
que deve se relacionar com o aluno por intermédio do
professor. A tradição deve falar ao aluno para que este possa se
apropriar dela. O professor é o mediador que faz com que a
tradição fale ao aluno. Possibilitando que ele (o aluno) consiga
fazer uso de ideias e conceitos filosóficos na compreensão de
sua existência, de sua situação no mundo. Nessa apropriação,
nesse “falar” da tradição, o aluno pode sair do “assim se diz”
de uma compreensão adquirida passivamente e assumir um
pensamento mais ativo e crítico.
Compreensão prévia e filosofia
157
Na prática, essa mediação feita pelo professor
significa certa simplificação dos conceitos filosóficos
trabalhados. Mas um simplificar que permita ao jovem ver a
filosofia na sua vida, e não uma simplificação que entregue a
ele respostas simplórias e estéreis. A simplificação, aqui, abre a
possibilidade de apropriação, por parte do estudante, dos
conceitos filosóficos e enseja a continuidade da reflexão (com
o que ela tende a se tornar mais complexa). É isso que nos
interessa. O filosofar enquanto ato, o pensamento ativo. Não
está em mira a tradição como doutrina, como coisa acabada,
mas a tradição como fornecedora de instrumentos conceituais
capazes de fomentar a continuidade do pensamento. O filosofar
crítico, e não doutrinário. Um filosofar como tarefa do
pensamento humano. E, portanto, nunca acabado, nunca
totalizado.
Com a lembrança da importância da tradição
queremos fazer ver que, se por um lado é muito importante
ouvir o aluno, abrir espaço em aula para que ele se manifeste e,
mais importante, que o conteúdo dessas manifestações seja
utilizado pelo professor como matéria prima para que ele ajude
o aluno a construir seu entendimento a respeito do assunto
abordado; por outro lado, a aula não pode se resumir a um
diálogo entre aluno e professor, ou entre alunos, deve haver a
“intromissão” de conceitos filosóficos mais claros para que não
se perca o rumo. A tradição filosófica faz parte da construção
que o professor visa ajudar o aluno a engendrar com a matéria
prima que ele (aluno) já traz consigo.
São dois aspectos, portanto: por um lado o que o aluno
traz, por outro o que a tradição tem a oferecer em relação a isso
que ele traz. E mesmo isso que os alunos trazem é carregado de
tradição. Os alunos existem no mundo. Esse mundo é povoado,
também, por conceitos filosóficos. Na medida em que já
sempre foram atingidos pelo mundo, os alunos já foram
Yuri Galvão Almeida
158
atingidos pela tradição filosófica. Na aula é possível fazê-los
perceber essa situação. Fazê-los ver os limites e potenciais da
visão de mundo que já adquiriram no decorrer de suas vidas.
Nesse sentido, a aula de filosofia não é apenas um momento de
aprendizado de filosofia enquanto disciplina da grade
curricular, mas também um momento de autoconhecimento e
autocrítica; autoconhecimento entendido não como um
conhecimento de um sujeito fechado em si mesmo, mas como
conhecimento de si na relação com o outro3. O conteúdo
exposto na aula, se trabalhado adequadamente (segundo a ideia
de levar em conta a compreensão prévia do aluno), não vai se
resumir a uma apresentação abstrata destituída de interesse
vital, mas algo que toca a vida cotidiana do aluno. A filosofia,
diferentemente de outras disciplinas mais técnicas que são
ministradas na escola, tem essa capacidade de manter viva a
perspectiva humana sobre a vida. Esse é o elemento que pode
tocar o jovem no seu mundo cotidiano. A filosofia abre o
jovem para a possibilidade de ressignificação – feita, dentro do
possível, ativa e criticamente – e enriquecimento da própria
experiência no mundo.
3. Trabalho em sala
Empregamos vídeos em algumas aulas ministradas
utilizando uma metodologia que segue as principais ideias
discutidas neste ensaio. Passamos o vídeo para os alunos e,
logo após o fim deste, reentramos em cena fazendo questões
sobre a compreensão que eles tinham acerca do que foi
abordado pelo vídeo. Por exemplo, um dos vídeos falava sobre
Epicuro e a felicidade, após os alunos o terem assistido,
3 Outro entendido como mundo. Incluindo muitos aspectos, como a
própria tradição filosófica, por exemplo.
Compreensão prévia e filosofia
159
perguntamos o que era felicidade para eles. A partir do que
responderam podemos ir introduzindo o assunto que
desejávamos abordar. Dentro daquilo que os alunos expuseram
estavam algumas ideias que tinham captado em aulas anteriores
sobre Aristóteles e Sartre. Com as intervenções dos alunos
pudemos dar um contorno mais claro à posição de Epicuro em
relação às posições destes outros filósofos que eles emulavam
(com ou sem consciência). Utilizando o que eles diziam
pudemos fazer a aula mais interessante e acessível. Ainda que
tivéssemos que passar por alto em vários aspectos mais
específicos do pensamento de cada autor e nos focar mais no
problema da felicidade – que é mais concreto para o aluno do
que o estudo muito profundo do pensamento de um autor
específico.
Posteriormente, ministramos uma aula sobre Sócrates
na qual utilizamos o gancho da aula anterior sobre Epicuro.
Logo após terem assistido a outro vídeo (desta vez sobre
Sócrates) interpelamos os alunos e estes começaram a fazer
comparações entre Sócrates e Epicuro. Alguns se posicionando
ao lado deste ou daquele autor. Naquilo que diziam pudemos
notar tanto em que pé andava as suas compreensões de
Epicuro, quanto as que formavam a respeito de Sócrates.
Assim, pudemos esclarecer um pouco mais o pensamento de
ambos os filósofos ao mesmo tempo em que fazíamos esse
pensamento ressoar na vida pessoal de cada aluno. Por
exemplo, utilizamos Epicuro, e sua hierarquia de desejos, para
fomentar uma crítica à nossa era consumista. Da mesma forma,
Sócrates foi utilizado por nós para iluminar a importância do
pensamento crítico para o bom funcionamento da democracia e
como é importante que um cidadão possa defender suas ideias
perante outros cidadãos e aceitar a própria ignorância quando
esta lhe é revelada no contato com outros.
Yuri Galvão Almeida
160
Na esteira dessa aula sobre Sócrates cabe um aviso
que, a partir de nossa vivência no decorrer desta aula, julgamos
importante. Trata-se de que o professor não sobrecarregue suas
aulas com uma grande profusão de conceitos. Na aula que
ministramos sobre Sócrates percebemos uma diminuição da
participação da turma quando o número de conceitos expostos
se tornava muito elevado, tornando o panorama geral do
assunto abordado em algo muito complexo. Os alunos tendem
a se sentir inibidos frente a tal situação, não conseguindo
encontrar o “fio de Ariadne” que lhes permitiria fazer
colocações a respeito do que está sendo exposto. Uma
multiplicação exagerada de informações dá a aula aquele ar
“abstrato” que tende a afastá-los da discussão. Neste ponto
também entra o “tato” do professor, a capacidade de perceber a
situação dos alunos frente ao assunto e de mudar o andamento
da aula em função dessa percepção. Aqui cabem recursos a
exemplos, perguntas dirigidas a turma que estimulem e dêem
uma indicação do que o professor está pondo em questão com
o que está expondo. Muitas vezes percebemos que ao fazer
uma pergunta à turma botamos luz sobre o que o professor
espera que os alunos estejam compreendendo e qual é o
“caminho” da aula, para onde, ou para o que, as explicações se
dirigem e qual é a relação disso com a vida dos alunos.
4. Considerações finais
No dia-a-dia da prática docente – neste curto espaço
em que a empreendemos – mostrou-se de fato difícil, em
muitas situações, captar a compreensão que a turma estava
tendo do assunto abordado. Participamos da elaboração de uma
avaliação e percebemos que alguns alunos compreenderam
nossas exposições de uma forma um tanto diferente do que
esperávamos. E aqui se mostrou outra ferramenta de diálogo
Compreensão prévia e filosofia
161
entre aluno e professor, a própria avaliação. Nesta a
oportunidade de perceber o que foi apreendido e de onde foi
apreendido se revela ao docente. O professor pode captar o
modo como este ou aquele aluno o compreende. Ele pode ver
de onde estes alunos enxergam o assunto abordado, i. e., qual
era a compreensão prévia (ou pelo menos algum aspecto desta)
a partir da qual os alunos estavam interpretando o que estava
sendo trabalhado em sala. Captando um pouco essa
compreensão prévia, é possível trabalhar o assunto de forma
diferente, para tentar melhorar sua absorção por parte do aluno.
Isso mostra que a avaliação tem valor não só ao fim da
exposição de um assunto e antes de se adentrar outro, mas
também durante esta exposição. Para que seja possível a
mudança de rumo na forma como o assunto é abordado, ainda
enquanto este está sendo abordado.
5. REFERÊNCIAS
MENDEZ, J.M.A. Avaliar para conhecer, examinar para
excluir. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.
LUIJPEN, W. Introdução à fenomenologia existencial. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973.
163
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DOS TEXTOS
CLÁSSICOS NAS AULAS DE FILOSOFIA DO ENSINO
MÉDIO: REFLEXÕES ACERCA DA DOCÊNCIA EM
FILOSOFIA
Yuri Galvão Oberlaender de Almeida
“A água é bebida com mais gosto quando da própria
fonte”- Ovídio
Quando ainda estava no ensino médio, lembro-me de
algumas palavras proféticas de meu pai. Na, meados de meus
dezessete anos, entregava-me a convivência com os amigos e a
prática intensa de esporte. Meu pai, médico de formação e
profissão, lera amplamente, desde astrologia até filosofia, o que
lhe dá certa cultura geral.
Certo dia disse-me, em tom de conselho: “meu filho,
leia os clássicos, os grandes pensadores, como Platão. Eles
“farão sua cabeça”. Imagino que ele, pautado na percepção de
que me aplicava avidamente ao esporte e à convivência, teve a
sensibilidade de notar minha falta de interesse ao estudo, à
educação intelectual. Hoje compreendo quão proféticas essas
palavras. Ao estudar Platão percebo quão imbuídas elas estão
de certa ideia de educação1. O gosto de meu pai pela leitura foi
decisivo para que tivesse meu primeiro contato com a filosofia.
Ao escrever esse ensaio de docência, vejo em suas palavras o
divisor de águas para um indivíduo. Mas não só isso, vejo
também uma semente pela qual se pode formar um professor
1 De modo resumido essa ideia consiste na ginástica, para educar o corpo, e
na música, para educar o espírito. Cf. Plato, Republic (book II, 376e) in
Complete Works/ Plato; Indianapolis, Indiana, Hackett Publishing
Company, 1997.
Yuri Galvão Almeida
164
de filosofia. Este ensaio é expressão de experiências docentes e
reflexões acerca da docência em filosofia.
A filosofia entre nós retornou, em caráter de disciplina
obrigatória do ensino médio, em 2008. A justificativa para sua
volta é sua importância para que os cidadãos brasileiros
possam de fato exercer sua cidadania2. Mas de que maneira
exatamente a filosofia prepara os jovens para o exercício da
cidadania? Seria ela uma espécie de merchandising formadora
de cabeças para o status quo? Ou seria ela uma nobre e fiel
serviçal de nossa divina (ou melhor, laica) democracia? Já
adianto que o objetivo desse ensaio não é responder a essas
perguntas, ou melhor, é respondê-las da maneira mais séria,
radical e direta que aquele que ora vos escreve é capaz, nesse
momento. Procurarei deixar claro que, ao enfrentar essas
perguntas a sério, descobre-se o problema que há no fundo
delas, e então uma investigação mais essencial e preliminar
mostra seu porte, fazendo dessas perguntas meras
questiúnculas secundárias.
A filosofia já esteve em nossas escolas (antes de nossa
ditadura militar), inclusive bem acompanhada pelo ensino de
latim, grego e francês, testemunha disso é a professora
Marilena Chauí, que foi aluna de colégio público naquela
época3. No entanto, desde a ditadura militar a filosofia esteve
2 CEPPAS, Filipe, Anotações sobre o ensino da filosofia no Brasil, In:
Filosofia: ensino médio / Coordenação, Gabriele Cornelli, Marcelo
Carvalho e Márcio Danelon. Coleção explorando o ensino; v. 14. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2010.
3 CARVALHO, Marcelo; SANTOS, Marli. O Ensino da Filosofia no
Brasil: três gerações. In: Filosofia: ensino médio / Coordenação, Gabriele
Cornelli, Marcelo Carvalho e Márcio Danelon. Coleção explorando o
A importância do estudo
165
afastada de nossas escolas, estando restrita às universidades e
faculdades. Em consequência, a filosofia desenvolveu-se
principalmente como pesquisa acadêmica, ou formação para
bacharelado, como hoje é chamado. A preocupação pela
didática, ou mesmo investigação de seu ensino para aqueles
que nela não veem ou não compreendem (“ainda que ainda”,
pois um dia podem compreender) a importância da filosofia,
naturalmente passou despercebida, ou foi propositalmente
negligenciada. O curso histórico da filosofia (junto ao palpite
deste que ora vos escreve) entre nós parece indicar uma
valorização maior à pesquisa acadêmica, em detrimento de
uma filosofia voltada às escolas, ou seja, ao público que não
escolheu como curso superior a filosofia. Podemos chamá-los
de leigos, insensíveis ao encanto da filosofia, ou seja lá o que
for. Fique claro que o “diagnóstico” acima tratado pretende
generalizar o “status” da filosofia entre nós desde a ditadura
militar (e sua expulsão das escolas) e a revisão da LDB feita
em 20084.
Observa-se que os novos professores de ensino médio,
formados em nossas universidades, estão inteirando-se do
ensino da filosofia para os que não escolheram (ao menos
ainda) a filosofia como seu estudo principal. Estão enfrentando
esse desafio em momento recente à reimplantação da filosofia
nas escolas. É natural, portanto, que o “déficit” de formação
adequada para esse tipo de ensino (uma vez que o foco, ao
ensino; v. 14. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação
Básica, 2010. 4 BRASIL. [Lei Darcy Ribeiro (1996)]. LDB: Lei de diretrizes e bases da
educação nacional [recurso eletrônico] : Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. (Série
legislação; n. 130). 10. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara, 2014.
Yuri Galvão Almeida
166
longo dos anos, tenha sido a pesquisa acadêmica) seja sentido,
tanto entre os estagiários de filosofia para o ensino médio,
quanto nos professores que os preparam. Outro fato r é o
crescente e recente, número de material didático de filosofia,
sendo produzido entre nós. Através dessas considerações
quero destacar o momento crítico em que o ensino de filosofia
a nível escolar vive e o quão decisivo é essa formação para o
futuro desse ensino.
Portanto, o estagiário de hoje vive o desafio de
encontrar maneiras para ensinar a filosofia. Onde buscar as
fontes para o ensino de filosofia no ensino médio? Como fará
cumprir a própria justificativa pela qual a filosofia foi
reintroduzida em nossas escolas (a saber, contribuir para o
exercício da cidadania)? Em verdade, esse estagiário de
filosofia tem até mesmo o direito de questionar e buscar refutar
a possibilidade de fazer filosofia no ensino médio, ou a
justificativa pela qual foi reintroduzida. No entanto esse ensaio
não quer enveredar por essa via. Vamos ao ponto, portanto:
uma palavra tem sido usada sem maiores cerimônias até o
momento. É usada também em nossa LDB. Foi até dado a
responsabilidade por desenvolver o exercício da cidadania. Que
palavra é essa?
Aqui chegamos ao ponto que anunciei mais acima, e
começamos a tocar no problema de fundo, ou seja, naquilo que
está pressuposto na reintrodução da filosofia em nosso ensino.
Vejam bem: está-se pressupondo o conhecimento do que é a
própria filosofia. A pergunta que já está respondida, mas não
explicitamente, é decisiva para determinar o alcance da
filosofia, sua importância e a maneira mais propícia de seu
ensino. O que é filosofia?
Ao clímax da pergunta segue-se a escuridão do
abismo. Mas, como diz Confúcio: “não reclame da escuridão,
A importância do estudo
167
acenda uma vela”, ou seja, frente à imensa escuridão do
desconhecido, faça o que está ao seu alcance.
Bem sabemos que a filosofia é tradição milenar
(iniciou a mais de 2500 anos atrás), e que ao longo desses
milênios de história ela foi praticada, ensinada e definida de
muitas maneiras diferentes. Essas definições contradizem-se,
englobam-se, entrepassam-se, tornando a resposta a essa
pergunta algo nada fácil. Ainda mais quando não se tem em
mente uma mera elaboração “palavresca”, que têm por
motivação a entrega de um trabalho acadêmico em
determinado prazo. A dura realidade da prática docente de
filosofia no ensino médio é o campo em que a resposta a essa
pergunta será colocada em xeque e a todo o momento testada.
Talvez, pela dificuldade das situações, é possível arriscar-se a
dizer que nesse campo a filosofia será testada a nível
existencial, na vida prática do aspirante a professor. Até onde
se está disposto a ir para ser professor de filosofia? Em todo
caso, o ponto que estou destacando é a importância vital dessa
pergunta (ou seja, o que é filosofia?) para aquele que se propõe
a ensinar filosofia no ensino médio. Talvez mais importante
ainda do que ao professor da academia, que recebe alunos já
interessados em filosofia, portanto, algo dela entendem (ao
menos espera-se que assim seja). Como esse estagiário poderá
enfrentar essa pergunta?
Certamente, se seu objetivo for somente passar em
concurso público, ou coisa que o valha, o estudo que lhe será
proposto serão documentos como parâmetros curriculares e
orientações curriculares, bem como livros de professores atuais
que, como ele, enfrentam os mesmos problemas e fazem a
mesma pergunta. Estará aí a verdadeira fonte da qual se pode
descobrir (ou redescobrir) a essência da filosofia?
Acredito que a forma mais segura de formar-se frente
a essa busca (a saber, a busca pela essência da filosofia) está no
estudo da cultura greco-romana antiga. Além de serem
Yuri Galvão Almeida
168
imprescindíveis para a compreensão da identidade ocidental de
nosso tempo, são também as testemunhas mais palpáveis da
gênese, ou do projeto inicial da filosofia. Portanto, o que é
proposto é um retorno à tradição filosófica. Nessa herança de
nossos antepassados encontra-se o conteúdo e a metodologia
do que podem vir a ser as aulas de filosofia no ensino médio. O
conteúdo sendo os clássicos, como Platão e Aristóteles, por
exemplo, e o método sendo o exercício de leitura e de
interpretação dessas obras.
A vela que ora acende-se frente à escuridão lançada
pela pergunta é bem pequena e talvez a luz que lança mal valha
o esforço de escrever esse breve ensaio. No entanto, defende-se
que esse simples retorno aos clássicos, à medida que vir se
desenvolvendo, pode ser uma direção segura e vigorosa para
encontrar-se um caminho para o ensino de filosofia. Assim esse
que vos escreve vem procurando fazer, desde que seu pai
despertou-lhe de seu sono e disse: vá ler os clássicos!
Referências
PLATO, Republic (book II, 376e). In: Complete Works/Plato;
Indianapolis, Indiana, Hackett Publishing Company, 1997.
CEPPAS, Filipe, Anotações sobre o ensino da filosofia no
Brasil, In: Filosofia: ensino médio / Coordenação, Gabriele
Cornelli, Marcelo Carvalho e Márcio Danelon. Coleção
explorando o ensino; v. 14. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria da Educação Básica, 2010.
A importância do estudo
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CARVALHO, Marcelo; SANTOS, Marli. O Ensino da
Filosofia no Brasil: três gerações. In: Filosofia: ensino médio /
Coordenação, Gabriele Cornelli, Marcelo Carvalho e Márcio
Danelon. Coleção explorando o ensino; v. 14. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2010.
BRASIL. [Lei Darcy Ribeiro (1996)]. LDB: Lei de diretrizes e
bases da educação nacional [recurso eletrônico] : Lei nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional. (Série legislação; n. 130). 10. ed.
Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2014.
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