Ensaio Sobre a Serenidade
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HEIDEGGER E O DIÁLOGO:
O PERCURSO DE UMA DISCUSSÃO ONTOLÓGICA NO ÂMBITO DE UM DIÁLOGO
ACERCA A SERENIDADE
Por Francisca Rutigliano
O Diálogo Para a discussão da serenidade, proposto por Heidegger, inscreve-se na
história do pensamento sob a forma oracular seja da poesia seja do fragmento filosófico. Não
há que se esperar encontrar nele proposições demonstradas; a ele tudo o que se pode solicitar
é a indicação dos problemas obnubilados no conjunto de questões que compõem o âmbito de
interesse do pensamento, e os sinais de um caminho que torne possível a meditação enquanto
ampliamento no seio destas questões.
Propomo-nos aqui a acompanhar passo a passo, como ouvintes diligentes, o
ensinamento destes problemas tanto no que concerne a seu obscurecimento no curso da
história quanto à apreciação das questões que lhe são concernentes avaliando as
consequências dela haver sido procedida sem qualquer inquietação por respeito a eles. O
propósito deste ensaio é simplesmente seguir o percurso meditativo das personagens dos seus
três interlocutores e contemplar na dramatização da consideração dos temas privilegiados o
repatriamento de tais problemas e o reconhecimento de sua cidadania no seio da Filosofia.
Em obediência ao seu propósito, o Diálogo acolhe enquanto tarefa a discussão da
problemática em que se circunscreve a questão acerca da essência do pensamento. No âmbito
desta problemática, duas questões estão já previamente imbricadas: a questão da essência ela
mesma e a questão da essência do pensamento. Guia no interior deste círculo hermenêutico,
enquanto indicador e sinalizador permanente, o Diálogo adota a orientação metodológica de
conduzir à discussão acerca da essência estabelecendo de partida a distinção necessária entre
esta e o ente do qual ela possa ser questão. E para que esta distinção se esclareça o diálogo
procura discutir o problema da essência em vista do essencial dela mesma, o que não significa
nada outro que discuti-lo em vista do Ser.
Historicamente desenraizado de sua origem e desviado de seu curso próprio, o
problema da essência tem sido desdobrado impropriamente mantendo ocultos tanto o seu
desenraizamento quanto o seu desvio sob a reiterada apresentação das mais genéricas
considerações acerca do ente. Nesta exaustiva reiteração de questões sobre “o quê” e “o
como” do ente, nesta ciranda metafísica, em que se dá o esquecimento do Ser e ato contínuo a
alienação do pensamento ao ente, vê-se precisamente o claudicação deste pensamento e a
2
postergação esmorecida de sua possibilidade essencial, qual seja, o ampliamento; e justo pelo
adiamento de seu retorno ao seu curso próprio. O intuito do Diálogo é indicar este desvio do
problema da essência, que é, ao mesmo tempo, o desvio histórico do próprio pensamento, e
assinalar para o seu âmbito próprio de possibilidade.
Assim, o Diálogo inicia-se trazendo à luz não um algo a ser apreendido e
reapresentado por um pensamento espectador, mas apenas um estranhamento produzido por
sua prescrição, a primeira vista incompreensível, para tomar a questão da essência
desvinculada de seu horizonte habitual de perspectivação, o homem: “a reflexão se torna
inevitável”, faz notar a personagem do professor, “que talvez com a questão acerca da
essência” não seja possível pensar a partir do homem.1
Com esta forma de inauguração singular, o diálogo indica que a sua orientação
perspectiva é concedida pela questão do Ser ela mesma. Pois tal prescrição para tomar a
essência em si mesmo enquanto questão não poderia proceder senão do próprio Ser, que
invoca o pensamento a erguer a vista do domínio estreito do ente e a se dispor à meditação. A
prescrição para meditar a essência do homem sem mediar-se pelo homem, meditar a essência
do pensamento sem visar o pensamento, não é mais que o assinalamento de uma direção
própria para tomar-se a questão do pensamento sob uma perspectiva outra que a da tradição –
o que não significa aqui nenhuma pretensão revolucionária, nenhuma negação da história,
mas apenas o aconselhamento a um necessário recordar de um esquecimento ele próprio
esquecido de si: o recordar do esquecimento do Ser. Pois, precisamente na tradição que
oculta o esquecimento do Ser o que fundamentalmente é obnubilado é o problema da
distinção entre Ser e ente.
Na perspectiva da tradição filosófica, a essência é compreendida enquanto uma
qualidade última do ente que o distingue seja genérica seja especificamente de todo outro
ente; a essência é pressuposta, portanto, como a identidade fundamental do ente com ele
mesmo. Desde esta pressuposição, a questão sobre a essência recebe a orientação de ser
tratada sob a perspectiva do próprio ente. Entretanto, se o pensamento se dispõe a saltar para
fora do âmbito do desvio que percorre a tradição e meditar sob a perspectiva do Ser, verifica-
se que a essência só revela o essencial de si por diferenciação do que ela própria distingue (o
ente) enquanto distinção de si mesma. Amparado nesta compreensão do Ser, a personagem do
professor avalia: “Se o pensamento é o distintivo da essência do homem, com maior razão, o
1 Zur Erörterung der Gelassenheit – Aus einem Feldweggespräch über das Denken. p. 29 Verlag Günthe: Neske
Pfullingen, 1959. Sechste Auflage, 1979
3
essencial desta essência, a saber, a essência do pensamento, só pode ser percebida se
desviarmos o olhar do pensamento.”2
Pensada sob a perspectiva do homem, a essência do pensamento perde a sua qualidade
de questão própria e deturpa na equívoca configuração formal de um dado geral, a partir do
qual o ente homem pode ser distinguido de todo outro ente sem, por isto mesmo, lograr ver o
caráter distintivo de sua própria essência em sua distinção de si mesmo. E na medida em que a
essência ela mesma perde o seu direito de questão ela perde ao mesmo tempo a justificação de
sua determinação a partir do seu próprio Ser. Mas, o abdicar da determinação da essência a
partir do seu próprio Ser é uma ocorrência que concerne tão-somente a um destino histórico
do Pensamento ocidental, enraizado na tradição do Pensamento grego, e aprofundado a partir
da época em que o Ser se desdobra na história projetando o advento Moderno, que visa
instituir o homem, o ente, enquanto índice de determinação, isto é, fundamento do próprio
Ser.
Tomando a essência do pensamento por identidade ao pensamento, a tradição
metafísica, isto é, a tradição que transcorre na reiterada pergunta pelo “o que é o ente”,
identifica esta essência à vontade, através da qual o pensamento é determinado por referência
à espontaneidade enquanto a qual ele próprio vem se reapresentando historicamente para si a
sua ação de representar. Tal espontaneidade demonstrativa de um ato originário de vontade,
constitui-se permanentemente enquanto um querer: pensar é querer e querer é pensar.
Emergente na instituída espontaneidade tornada característica do seu pensamento, o homem
em sua condição de fundamento do Ser é, por extensão, relevado à causa incondicionada de
todo o determinável possível.
A suposta estranha prescrição para tomar a questão da essência do pensamento fora
da esfera do homem é, enfim, a sinalização para se voltar sobre a questão da essência do
pensamento fora da referência da vontade e, assim, do querer. Deste modo, mais um
estranhamento se impõe a partir de um sinal no diálogo: assinala-se a necessidade de pensar a
possibilidade e sob a possibilidade de um não-querer.
Não-querer significa por um lado um querer que se pronunciando sobre o querer o
recusa, significa, assim, a recusa do querer, e, por outro lado, significa aquilo que não se dá no
interior da vontade. Com estas duas definições recíprocas acerca do não-querer, o diálogo
indica implicitamente dois problemas que concernem respectivamente à definição da própria
essência do pensamento e à condição de possibilidade de sua investigação. E aqui reside um
2 idem, ibidem.
4
problema que não podia vir à luz na questão da essência do pensamento ao longo da tradição,
porquanto a determinação do pensamento através da vontade o mantinha mesmo fora de
questão: Ambas as definições, ao conduzirem o discurso sobre o pensamento para fora do
horizonte familiar da tradição, despojam o discurso de seu recurso operativo, ou seja,
despojam-no da possibilidade de representar o pensamento, através de proposições
demonstráveis. E isto, porque se a essência do pensamento deve ser visada fora do paradigma
da vontade, sob a perspectiva de um não-querer, a sua abordagem não pode mais ser
procedida através do modelo formal da investigação, fundado na representação. Uma vez que,
ao querer se impõe a necessidade de negar o não-querer seja como um nada fora de questão
seja como uma mera oposição lógica de si e, em conseqüência, de desconhecê-lo enquanto
possibilidade positiva de determinação, a espontaneidade, o querer atribuído ao pensamento
enquanto sua característica essencial se invalida como possibilidade de determinação própria
do não-querer, invalidando-se por extensão como possibilidade de determinação da própria
essência do pensamento. Precisamente porque ambas as definições do não-querer visado na
essência do pensamento o alija de partida do fundamento da vontade, o caminho investigativo
que leva à fonte, a essência, não pode seguir ele mesmo o curso espontâneo (volitivo) da
representação, o qual não é outro que a prática operativa de articular e demonstrar proposições
sob os princípios reguladores da não contradição e da identidade. Por outro lado, do ponto de
vista do fundamento do não-querer, portanto da não espontaneidade, da não vontade (caso a
espontaneidade só possa ser concebida enquanto característica originária da vontade e esta
exclusivamente enquanto atributo do sujeito) o pensamento não deverá mais se determinar
senão enquanto puro e simples ampliamento no cerne da totalidade, isto é, na clareira do Ser.
Vejamos como o diálogo nos conduz nesta direção.
Do que acabamos de considerar podemos concluir que restituir à essência o seu
estatuto de questão exige visá-la por distinção à espontaneidade de um sujeito-causa, e tal
exigência implica, necessariamente, no afundamento dos alicerces do discurso erguido
enquanto representação. A restituição intentada impõe que a meditação se oriente sobre solo
a-fundado, o que supõe uma preparação do pensamento para tanto. Ciente da dificuldade de
tal contexto investigativo, o Diálogo procura esclarecer o sentido e o motivo da relação entre
ambas às definições do não-querer. A personagem do cientista é quem sugere o sentido
próprio desta relação:
Presumo certo, quando determino a relação de um não-querer com o outro do
seguinte modo? Vós quereis um não-querer no sentido da recusa ao querer, para que
nós, avançando através da perquirida essência do pensamento, a qual não é um
5
querer, possamos consentir-nos isto ou ao menos, preparar-nos para tanto. [HEIDEGGER, 1979, p. 31]
Esta preparação rumo à possibilidade de investigação da essência do pensamento num
do contexto metodológico distinto daquele da metafísica, o Diálogo a põe em cena com bela
plasticidade. Assumindo a palavra poética, instituidora como a vê Hölderlin, as personagens
indicam os movimentos do pensamento na busca por se conduzir fora dos parâmetros da
representação. O cientista atribui ao irromper da noite o favorecimento de sua interpretação
atinada acerca da relação recíproca entre ambos os sentidos do não-querer. Esta personagem
encena no diálogo um passo importante possível à própria ciência frente ao pensamento: o
cientista, embora dramatizando a vertente mais conflitada do pensamento, é aqui quem salta
primeiro sobre a Tradição, ao depor o projeto ocidental de reiterar o Mito da caverna, quando
concede à noite o seu lugar de possibilitação do pensamento3. Outro movimento deste
pensamento em busca do mesmo salto se traduz na fala da personagem do professor, que
atribui o propósito do dizer do cientista também à circunstância de estarem “à ampla distância
da morada dos homens”.4 – Um movimento que dista muito da tradição filosófica, em que se
inaugura a prática do diálogo sob o elogio de seu percurso com vista à cidade. No Banquete,
diz Glauco a Apolodoro: “perfeitamente apropriado é o caminho da cidade a que falem e
ouçam os que nele transitam”5.
Assim, sob a escolta inusitada da noite e a propícia distância da cidade, os
interlocutores anuem sobre a difícil tarefa de trazer a meditação sobre as veredas do não-
querer. Esta instigante tarefa traz à presença a questão radical preparada no Diálogo: a
serenidade. Eis a passagem discreta para um pensamento posto em aporia diante da interdição
do seu parâmetro formal de desdobramento: a serenidade se apresenta enquanto a fonte
essencial do pensamento ocultada pelo fluxo vertiginoso do querer. Introduzida sutilmente no
Diálogo, a palavra se faz presente reclamando já a sua determinação fenomenológica.
No intuito de tal determinação, os interlocutores começam por procurar desvincular o
fenômeno de qualquer figura subjetiva: a serenidade não é passível de ser causada,
despertada, ou alcançada em e por um agente; a relação da essência do pensamento com o
fenômeno deve ser antes a de consentimento – a serenidade é uma questão de permissão. Se a
serenidade “não desperta em nós a partir de nós”, se não é passível de ser conseguida, mas
3 O dizer do cientista consoa, neste momento, com o dizer do poeta. Vejamos essa consonância com Guimarães
Rosa: “O azul sugere e recorda. Mas só do nenhum verde é que saem as vivas aparições”. (Ave Palavra. In Obra
completa. Riop de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994) 4 Zur Erörterung der Gelassenheit – Aus einem Feldweggespräch über das Denken. p.31 5 Platão. O Banquete, p. 38. In Os Pensadores. S. P. Nova Cultural, 1991
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tão-só permitida, então se assinala, ainda que de modo ambíguo, a possibilidade de investigar
o fenômeno fora do âmbito da vontade – ambíguo, pois os amigos sabem que o consentimento
proporcionável à serenidade pode sempre ser apreendido na esfera da vontade. Sustentando o
esforço de manter um curso livre para a investigação, a personagem do erudito medita nestes
termos a questão da reportação ainda oculta do pensamento à serenidade: “Na verdade, eu
ainda não sei o que quer dizer a palavra serenidade; mas, mais ou menos presumo que ela
desperta quando é permitido à nossa essência consentir-se o que não é um querer.”6
A serenidade irrompe no diálogo enquanto questão no instante preciso em que se
aclara a aporia de um pensamento destituído de seu fundamento histórico, o querer, e que,
neste contexto mesmo, reclama para si o imperativo de um não-querer. Trazida no justo
momento de uma aporia, a serenidade se mantém à primeira vista enredada ela própria
enquanto conceito nesta aporia. Pois se a serenidade concerne ao consentimento daquilo que
não seja um querer, se ela mesma não corresponde ao feito de um agente, ela se mostra, tanto
quanto o não-querer ao qual se vincula, distinta do conceito mater do pensamento, a
espontaneidade, a partir da qual este é determinado enquanto um representar. Tal aporia
esclarece aqui com plena precisão em que contexto compreensivo, a personagem do professor
prescrevia, no início do Diálogo, como condição prévia para pensar a essência do
pensamento, a necessidade de desviar o olhar do pensamento. Esta aporia é assumida na fala
da personagem do cientista quando, após alguma meditação dos interlocutores sobre o sentido
fenomenológico da palavra por respeito às suas possibilidades próprias, ele pondera:
O que a palavra serenidade não deve nos nomear, é para mim nos mais diversos
aspectos claro. Mas, ao mesmo tempo, eu sei cada vez menos do que falamos.
Procuramos, pois, determinar a essência do pensamento. O que a serenidade tem a
ver com o pensamento? [HEIDEGGER, 1979, p. 34]
É a personagem do professor quem começa por corroborar este aspecto de aporia que
assume a questão da serenidade, para logo a seguir assinalar a possibilidade própria do
entretenimento do pensamento com a serenidade, quando procura responder ao impasse que
propõe o cientista, sugerindo-lhe ao mesmo tempo uma perspectiva: “Nada, se
compreendermos o pensamento pelo conceito vigente enquanto um representar. Mas, talvez a
essência do pensamento, a qual procuramos em primeiro lugar, esteja admitida na
serenidade.”7.
6 Zur Erörterung der Gelassenheit – Aus einem Feldweggespräch über das Denken, p. 32 7 idem, p. 34
7
Sustentando sua plasticidade impecável no curso de sua dramatização da própria
preparação para uma investigação não metafísica da essência do pensamento, o Diálogo lança
luz sobre as dificuldades concernentes a tal propósito. E à personagem do cientista,
precisamente por sua condição histórica, é quem cabe apresentar com toda propriedade estas
dificuldades a primeira vista indicativas de verdadeiras aporias. Pondo em cena a perspectiva
da habitual representação, a personagem pondera de modo previsível: “Com a melhor boa-
vontade, eu não sou capaz de me representar esta essência do pensamento”.8 Ao que o
professor, numa perspectiva outra, replica: “Justamente porque esta sua melhor boa-vontade e
a forma do seu pensamento enquanto representação lhe opõem obstáculos a isto”9.
Enfim, após algumas considerações com vista à destituição dos aspectos metafísicos
atribuídos à serenidade, o Diálogo inaugura a forma metodológica própria da investigação da
essência por respeito ao seu caráter de distinção de si mesma por diferenciação do seu ente
concernente. Quando a personagem do cientista inquire de seus interlocutores sobre o que
devem fazer frente à aporia que irrompe na exigência de meditar a serenidade, proposta
enquanto essência do pensamento, sem o recurso de atribuir a esta essência as reconhecidas
características formais deste, a resposta que se apresenta é surpreendente. “Não devemos fazer
nada, mas esperar.”10 Mais uma estranha prescrição se impõe: no desdobramento da
problemática da serenidade assinala-se a espera. Eis aqui o ponto a partir do qual se apresenta
a passagem para uma investigação orientada pela questão do Ser. Com o recurso da espera é
possível avançar na essência do pensamento procedendo a um percurso outro que aquele da
identidade. A espera nomeia propriamente a serenidade proposta enquanto a essência de um
pensamento visado nos parâmetros de um não-querer, e, desta forma, nomeia precisamente o
caráter distintivo da essência do pensamento por referência a este mesmo.
Não-querer: serenidade: espera, isto significa a caracterização própria de um
pensamento que deve ser determinado em sua essencialidade por respeito ao seu Ser e não por
respeito a si mesmo enquanto ente. Em seu desdobramento histórico, o pensamento tem se
feito determinar enquanto a espontaneidade de uma vontade. Tal determinação, em que é
visada nada menos que uma incondicionalidade ôntica na qual se distinguiria o seu caráter
essencial, tem permitido ao pensamento atribuir para si a condição de determinante
transcendental, isto é, de condição de possibilidade não ôntica de determinação do ente em
8 idem, ibidem 9 idem, ibidem 10 idem, p. 35
8
geral. Mas a determinação em questão só tem sido possível sob a pena do esquecimento do
Ser, o que significa dizer que ela se possibilita no curso de uma deriva.
Deambulando na amplidão da clareira do Ser, o pensamento, visando à identidade em
sua prática de determinação, se apresenta para si mesmo na forma do representar
transcendental-horizontal, ou seja, apresenta-se enquanto o concessor simultâneo da
possibilidade e do horizonte para a insurgência do ente, possibilidade e horizonte estes
pretendidos enquanto a fonte e o curso transcendentes para o ente. Nestes termos, o
pensamento se reconhece na proposição: o pensamento é a representação transcendental-
horizontal do ente em geral. O sentido próprio deste representar, no qual o pensamento se
representa para si, a personagem do erudito o caracteriza:
Este representar nos põe, por exemplo, a arbóreo da árvore, o teor de cântaro do
cântaro, o teor de casca da casca, o pedregoso da pedra, o vegetoso do vegetal, o
animalesco do animal, enquanto aquele panorama no qual entrevemos, quando esta
coisa em aparência de árvore, aquela coisa em aparência de cântaro, esta em
aparência de casca, tal em aparência de pedra, muita em aparência de vegetal, muita
em aparência de animal nos é contraposta. [HEIDEGGER, 1979, p. 36]
Reiterando interminavelmente a sua atividade operativa de fundar e fundamentar a
identidade na apreciação da essência do ente e projetando neste esta própria atividade
operada sobre si mesmo, o pensamento excede com o seu horizonte representado e
representante a aparência do objeto, antecedendo-a com a concessão da essência
identificadora do objeto posto, e adianta-se à percepção do objeto transcendendo-o a partir
da representação prévia dele fornecida pela presença de sua essência, isto é, da representação
prévia do dado geral de sua distinção por referência a todo outro ente.
Indicando o sentido próprio do ato representativo do pensamento enquanto
constituição de horizonte e possibilidade representados para a transcendência, indicando o
modo pelo qual os objetos são fundados enquanto tal e recobertos, assim como a sua própria
representação, pelo horizonte e pela transcendência, o que o Diálogo procura dar a
compreender mais fundamentalmente é a ocultação histórica do caráter próprio do horizonte e
da transcendência enquanto questão, e isto pelo fato de sua determinação, ser orientada por
consideração aos objetos e ao representar, o que significa dizer o mesmo que, prescrita pelo
princípio da identidade, em que se funda a representação. Sobre esta ocultação, observa a
personagem do professor: “(...) aquilo que faculta ao horizonte ser o que ele é de maneira
alguma foi ainda experimentado”.11
11 idem, 37
9
Desocultar o caráter próprio do horizonte e da transcendência corresponde a desfazer
um nó boreal. O diálogo só pode fazê-lo de forma lenta e metódica. O primeiro passo é
indicar o aberto de que se constitui o horizonte enquanto a fonte da autonomia deste frente ao
que é entrevisto no seu interior, pois como o elucida a personagem do professor:
O horizonte característico é, por conseguinte, apenas o lado virado para nós de um
aberto que nos circunda cujo panorama é preenchido na aparência disto que aparece
enquanto objeto ao nosso representar. [HEIDEGGER, 1979, p. 37]
O segundo passo, portanto, é indicar o aberto ainda enquanto a fonte da autonomia da
aparência dos objetos oferecida pelo panorama do círculo, desvinculando esta aparência do
suposto ato poiético de um sujeito. Afirmar que o aberto que constitui o círculo de visão não
forma parte no que se entrevê através dele é assinalar que este aberto não é ele próprio efeito
de um ato de representação que determine as formas possíveis de um entrever. Por outro lado,
afirmar que a aparência dos objetos não se constitui de um ato de ponência cumpridor de um
panorama, ele mesmo conformado a um representar preestabelecido, é indicar que a aparência
orientadora, concedida pela presença prévia da essência do que é entrevisto, não é tampouco
originariamente o efeito de um ato intencional de representação; e é assinalar,
simultaneamente, que a possibilidade de uma aparência só pode ter procedência no próprio
aberto do qual o horizonte forma parte. Sem um aberto prévio não seria possível sequer uma
um ato intencional de representação, pois não haveria a possibilidade mesmo de configuração
de um horizonte sob qualquer forma suposta.
Aqui, mais uma vez é preciso ter em consideração que a questão do Ser ela mesma é o
leitmotiv desta problematização. Meditar o caráter essencial do horizonte exige tomar a sua
essência sob a perspectiva radical, ou seja, não dicotômica, da diferença, para que se possa
compreendê-lo por relação ao seu aberto constitutivo: “O horizonte é, por conseguinte, ainda
algo outro que o horizonte. Mas este outro, após o que foi dito, é o outro dele mesmo, e, por
isto, o mesmo que ele é”.12 Tal perspectiva do horizonte enquanto o outro de si mesmo, abre a
problemática do que seria a distinção própria entre ipseidade e identidade, ao mesmo tempo
em que aponta para a possibilidade de abordagem do aberto num contexto distinto daquele em
que a incondicionalidade se apresenta enquanto o pressuposto da liberdade expressa na
vontade. Deste modo, o aberto se revela como a questão prioritária quando o pensamento tem
que se haver com a problemática do horizonte.
12 idem, p. 38
10
Neste ponto da abordagem se reitera a dificuldade de proceder à investigação sobre
solo outro que o da metafísica. Faz-se mister nomear um tal aberto que se apresenta como a
condição de possibilidade do horizonte da representação. Contudo, a nomeação já se faz
sempre enquanto uma operação metafísica, na qual um “conhecido” é oferecido como apoio à
antecipação (representação) de tudo o que se possa oferecer à compreensão. Além disto, o
aberto em questão já se apresenta encerrado numa ambigüidade: oferece-se ao mesmo tempo
enquanto a fonte para um horizonte e horizonte da representação ele próprio. É a personagem
do cientista que, agora, repetindo a perspectiva própria da Tradição encena tal dificuldade.
Sem o solo firme de um já conhecido, a personagem busca âncora na perspectiva histórica
disponível, fundada ela mesma na representação preconcebida do fato de uma
intencionalidade, e inquire: “O que é propriamente este aberto, se considerarmos que também
enquanto horizonte do nosso representar ele pode aparecer?”.13
A imediata e regular questão “o que é” aponta para a solicitação implícita de uma
proposição possível, no interior da qual um ente reclamado a vir à fala o venha
concretamente. À primeira vista, o diálogo parece não poder escapar a esta fôrma
predeterminante. Com efeito, a personagem do professor sentencia que tal aberto afigura-se
como uma região. Entretanto, o caráter específico do predicado atribuído já o denota estranho
a pretendida função de predicação: a região é enquanto este aberto isto “pela magia da qual
tudo que lhe pertence a ele retorna e nele repousa”.14 O predicado, enfim, não é nenhum
ente, que possa por sua vez redobrar sobre si a prática predicativa. Como o representar pode
recobrir esta estranha região, este estranho ente, com sua representação? A região não é, se
por Ser se exige a apresentação de algo portador de atributos predicativos. A região reconduz
e reabriga no aberto, que afigura tudo o que a ele pertence. Reconduzir ao aberto é destituir da
representação. Nestes termos, a região, conforme mesmo ao seu caráter de Ser, dá-se
enquanto o aberto, que se constitui como o regionalizante próprio a si mesmo. O essencial
desta região de todas as regiões ônticas possíveis é a regionalização, isto é, o resgate de tudo
detido de modo uniformizado e numerado nas fileiras dispostas da representação, em todas as
suas formas desdobradas na Tradição.
Por respeito à ambigüidade que encerra o sentido próprio do aberto em questão, isto é,
por respeito à circunstância de que ele também pode aparecer enquanto horizonte da
representação é na consideração feita pela personagem do professor, seguida da refutação do
cientista ao parecer do erudito, que se pode contemplar a sinalização de uma passagem para
13 idem, Ibidem 14 idem, ibidem
11
fora desta ambigüidade. Replicando à apreciação do erudito, que caracteriza esta
regionalização procedida pela região nos mesmos termos que o horizonte da representação,
isto é, enquanto a fonte a partir da qual é concedido o aspecto dos objetos num panorama
demarcador, e, desta forma, caracteriza-a enquanto o que se confronta à representação, o
professor faz ver a apreciação daquele se sustenta na concepção de que a relação que o
horizonte entretém com o representar pode ser tomada como modelo exemplar para
determinar o aberto. E a personagem do professor o faz notar ainda que, ao tomar como ponto
de partida o entretenimento do horizonte com o representar, o erudito se impede de pensar o
que é antes o aberto em que se funda a possibilidade deste entretenimento. A personagem do
cientista, nesse momento, num esforço mais concentrado do que o do erudito para meditar a
questão sem recorrer ao socorro habitual do reconhecimento, refuta a precipitação deste em
reconhecer na região o caráter de confrontação concernente ao seu horizonte. Consentindo-se,
mais uma vez, como no início do Diálogo, marchar em solo desconhecido, o cientista reafirma
a questão e pergunta o que significa a palavra região.
Recordado à força do diálogo, o erudito traz auxílio fecundo: “Na forma antiga se
dizia região [Gegnet] e se pensava a livre amplidão. Algo se deixa deduzir disto para a
essência do que gostaríamos de nomear a região?”15 O auxílio da personagem é precioso
porque lança luz sobre o sentido originário da palavra alemã Gegend (região), mas, ainda
mais fundamentalmente, porque indica com este sentido originário da palavra que o caráter de
contraposição aderido a ela é fixado historicamente pela própria tradição metafísica. A
contraposição indicada na palavra Gegend se origina do mesmo modo que a indicada na
palavra latina contrate, a qual se apresenta como termo para a idéia de extensão anteposta. A
região pensada no sentido alemão do termo (Gegend), se visada sob a ótica da metafísica,
apresenta-se ainda enquanto a paisagem anteposta de um contexto demarcado de
perspectivação. Mas tal contexto demarcado que, visado desde uma perspectiva ôntica
orientada pelo paradigma da extensio apresenta a região enquanto um horizonte remete,
contudo, para o sentido mais originário, não demarcado, da região, isto é, para a paisagem,
não meramente anteposta, mas total, no âmbito da qual uma paisagem anteposta, ou seja,
demarcada, podes se apresentar. Este sentido de paisagem total repousa tácito desde sempre
na palavra Gegnet, desde a sua formação arcaica enquanto livre amplidão. Contudo,
apreendê-lo requeria apreciá-la sob a ótica do Ser e não do ente. Entretanto, foi orientado pela
perspectiva ôntica em que a região se apresenta enquanto contexto demarcado, que a
15 idem, p. 39
12
personagem do erudito a apreciou, por referência ao horizonte, como aquilo que vindo ao
encontro se confronta à representação.
Tomando o sentido o mais originário da região enquanto a livre amplidão, que afinal
assinala para a paisagem total que abarca o horizonte do representar, o diálogo dá mais um
passo no sentido da determinação essencial da região, trazendo-a para a perspectiva do tempo.
Com efeito, se do ponto de vista imediatamente ôntico a paisagem total se apresenta enquanto
extensão, visada do ponto de vista fenomenológico, ou seja, do Ser, ela revela a sua
constituição própria enquanto movimento de tempo originário.
Ao discutir agora o caráter regionalizante essencial à região, as personagens já haviam
avaliado anteriormente que o seu regionalizar característico consistia no recolhimento pelo
aberto de todo o anteposto pelo representar, consistia, desta forma, no resgate reiterado do que
veio à presença por força da objetivação. Se considerarmos que a objetivação está fundada
sobre o paradigma formal da extensão, sob a qual o próprio fenômeno do tempo encontra a
sua possibilidade de representação, compreendemos que o regionalizar concernente ao aberto
não é nada outro que o reconduzir o representado para fora da fôrma da extensão e, assim,
liberá-lo deste limite formal de sua representação. O que significa doá-lo de novo à meditação
concedendo, ao mesmo tempo, ao pensamento a possibilidade de exercer a sua “atividade”
essencial: o ampliamento na espera.
A espera, trazida anteriormente enquanto questão aparentemente excedente à
serenidade, pode agora revelar o seu sentido destinado na plástica do Diálogo. A espera é a
compostura própria (dito em termo alemão, Gestell) sobre a qual uma forma própria pode se
dá ao pensamento em seu exercício necessário de encontro e aproximação do ente. Com a
espera, o diálogo expõe um meio e uma condução para pensar a problemática que envolve as
questões acerca da essência do pensamento, a qual implica tanto a questão da serenidade que
a articula, quanto a do não-querer que a viabiliza, sob o fundamento do tempo, o qual se
apresenta aqui com o sentido originário de duração – permanecimento de si. É mister,
portanto, tomar a livre amplidão, o âmbito radical do pensamento, sob a perspectiva do tempo
próprio para ver iluminada a questão concernente ao sentido essencial do pensamento e da
condição mesma do ente de sua reportação.
Tendo presente este contexto problemático, a personagem do professor encaminha: “A
região, como se nada se dê, reúne o que quer que seja ao que quer que seja e todos um ao
outro ao permanecer em si mesmo na quietude. Regionalizar [gegnen] é o reunidor reabrigar
13
à ampla quietude no instante”.16 O essencial da região, o reabrigar à ampla quietude no
instante, revela que a livre amplidão, esta característica insigne da região, constitui-se
enquanto a dobra permanente de Ser e tempo, a qual envolve e desenvolve o fenômeno
próprio do pensamento. A livre amplidão, o aberto no qual o pensamento deve poder se
desdobrar enquanto ampliamento se abre apenas através da instância deste pensamento na
quietude de si mesmo. Desta forma, este aberto antes de se constituir enquanto uma extensão
intuída de modo tributário da certeza do pensamento de si mesmo, se constitui mais no
ampliamento facultado ao pensamento para o prolongamento do seu livre ensimesmar-se.
Manter-se em si mesmo, ensimesmar-se, significa bem ao contrário que qualquer idéia de
interiorização: significa ampliar-se a si mesmo, em si mesmo.
Se a livre amplidão não se determina enquanto a extensio ela não pode ser visada
enquanto campo ideado sob a forma da extensão para a representação do pensamento.
Pensada sob a perspectiva de sua constituição temporal, a livre amplidão, à distinção do seu
horizonte concebido enquanto horizonte do representar, se recolhe, não vem ao encontro e as
coisas que possam aparecer no seu âmbito de possibilidade não podem surgir sob a forma de
objeto, pois que no recolhimento próprio à livre amplidão não cabe a prática espontânea da
representação. Este recolhimento, que algo outro não é que a serenidade para livre amplidão
dista inteiramente de uma atividade poente de ob-jetos. Na livre amplidão, as coisas não se
postam mais contrapostas, apenas jazem “se com isto pensamos o repouso, que é nomeado no
discurso da quietude”.17
A perspectiva do tempo que orienta o Diálogo fornece a compreensão precisa do
sentido da região enquanto livre amplidão. O pensamento enquanto dobra de Ser e tempo,
tomado, portanto, fora dos parâmetros da representação, deve poder ser determinado,
enquanto o a-contecimento de si mesmo. Acontecer é o sustentar-se de um permanecer que
por isto mesmo pode recolher e conter neste próprio permanecer, na quietude, portanto, o
ente em repouso. Tomar o ente na perspectiva do repouso é visá-lo como algo outro que um
objeto erigido, posto. É tomá-lo tão-só por referência à instância da amplitude à qual o
pensamento concerne e deve poder ampliar. Contudo esta referência não cabe ser procedida
ao modo de uma identificação formal; o ampliamento que recolhe o ente em seu regresso à
sua autopertença não caracteriza o ente, apenas o pensamento, e é antes a autêntica condição
da possibilidade de sua ipseidade. Pois, contendo-se em seu ampliamento essencial, o
pensamento, sem representar, deixa-ser o ente no instante de sua própria amplitude
16 idem, p. 40 17 idem, ibidem
14
(totalidade). O pensamento ao permanecer no ampliamento de si mesmo faculta ao ente
regressar (mover-se) à condição de seu repouso (permanecer) próprio enquanto tal – de seu
Ser.
O diálogo perspectiva, assim, o repouso e o movimento, o recolhimento e o
ampliamento na complementaridade de um mesmo fenômeno. O tempo que regula o
pensamento enquanto livre amplidão implica o repouso e o movimento em seu Ser: o repouso
é sempre o repouso que constitui a instância do ampliamento de si mesmo; é desta forma o
movimento deste ampliamento. E aqui se encontra o sentido originário da espera que anuncia
o tempo próprio do pensamento. A espera se constitui apenas enquanto a instância do
ampliamento, instância esta que sustentada consiste no próprio recolhimento do pensamento
enquanto serenidade. A espera subtrai o pensamento da representação ao permitir que ele
permaneça em si, isto é, que ele retorne (repita) ao seu ampliamento, sendo tal retorno o
característico do recolhimento concernente ao ampliamento essencial do pensamento. Esta é a
compostura originária de um tempo que pode se temporalizar enquanto tempo próprio. Isto é,
por referência ao seu Ser mesmo e não antes ao ente ou a um horizonte projetado por reflexão.
Se a espera é a compostura de um tempo, ela não pode ser caracterizada por um ato de
vontade, o qual implica sempre em sua ação a expectativa de um ente. A espera não espera
coisa alguma; não tem objeto algum. A espera temporiza de-liberando o alcance (o aberto) do
ampliamento possível ao pensamento.
O vínculo intrínseco que o pensamento entretém com a espera, ou seja, com a
temporização originária dele mesmo, constitui o seu consentimento à serenidade, mas isto
significa o consentimento do seu retorno a ele próprio. Consentida por meio da espera, a
serenidade se dá bem enquanto o livre prolongamento do pensamento descarregado de
representação – de objeto. O que não quer dizer esvaziado de questão e de problema.
O Diálogo dramatiza o sentido da serenidade, no que tange ao repouso e ao
movimento implicados neste fenômeno, propondo uma associação inteiramente poética entre
o caminho e o percurso concreto da sua própria ocorrência. O caminho se expõe como o
repouso essencial que implica o percurso, o movimento, de pró-adução do diálogo, produção
que só é possível pela meditação própria, franqueada na condição do pensamento se dar
enquanto serenidade. Pois o próprio diálogo ampliado sobre o caminho percorrido se dá
enquanto tal meditação. Não por outro motivo, este caminho, que não é outro que o caminho
singular do pensamento, é dramatizado na figura do solitário e lento caminho do campo; no
caminho livre das edificações monumentais da representação. À pergunta do erudito sobre
15
“Onde passa este caminho, e onde repousa o movimento que lhe é conforme?”18, o professor
deve ter que responder: “Onde senão na livre amplidão, por respeito a qual a serenidade é o
que ela é”.19
Sobre o tempo próprio da espera, sobre a instância no ampliamento, dá-se a serenidade
para livre amplidão; dá-se o curso e percurso do pensamento. Se a serenidade é o nome mais
apropriado para esta sustentação fundamental do movimento e repouso constitutivos da
meditação, isto não pode ser decidido senão fora da perspectiva metafísica da linguagem,
onde as palavras não se fazem efeito de um ato denominativo, mas mostram-se procedentes de
uma assinalação, onde luz, já desde sempre implicados, o nomeável, o nome e o nominado, na
região própria da palavra, a qual não comporta nenhum sujeito denominador. Uma
assinalação que só pode ser percebida por um pensamento instante na livre amplidão, isto é,
prolongado na serenidade, e que, tão somente nestas condições, pode receber da região da
palavra todo o denominado assinalado, enquanto um simples “ouvir a resposta devida sobre a
palavra”20, e redizê-la apenas enquanto um “repetir da resposta ouvida”.21
Esta questão acerca da adequação do fenômeno à sua denominação vem ao diálogo
com o intuito de desfazer uma das muitas falsas questões apresentadas como problema pela
metafísica. Esta questão só vem se reafirmando na história como questão legítima porque é
inquirido, sob a ótica da metafísica, quem tem lugar lógico privilegiado na formalidade da
prática denominativa, o sujeito ou a linguagem. O sujeito põe incondicionalmente a palavra
ou a põe já sob o pressuposto da palavra? A uma perspectiva que não abriga sujeito e objeto,
esta questão se revela sem propósito. A única questão concebível é a de considerar o que seja
em seu ser próprio o que se apresenta sempre já denominado.
Assim, o Diálogo reconduz sua marcha e se aplica a considerar mais amplamente o
Ser da serenidade denominada nele. Se o Ser da serenidade, do recolhimento, se manifestou
enquanto espera, instância, se esta instância sustenta o prolongamento reiterado do
ampliamento possível ao pensamento, isto significa que a espera é o reportamento essencial
do pensamento à a livre amplidão, isto é, ao aberto que o possibilita enquanto ampliamento. A
espera, sustentando o ampliamento, se consente a livre amplidão e consentindo-a permite ao
aberto reinar enquanto o aberto que é.
O Diálogo marca aqui a distinção de sua orientação fundamental das possíveis
orientações postas à disposição pela Metafísica. Não é uma identidade formal o que rege o
18 Idem, p. 45 19 Idem, Ibidem 20 idem, p. 47
16
entretenimento do pensamento e do aberto que é contextura. É antes um entretenimento de
apropriação, um a-contecimento originário necessariamente a-contecente enquanto reiteração,
que dá provas que o próprio é sempre o caso de uma remissão parental. O pensamento reitera
o seu aberto de possibilidade ao ampliar-se e este aberto vigorando enquanto livre amplidão
reitera o pensamento enquanto ampliamento possibilitado. Mas, tal reiteração é, enquanto
serenidade, sempre o consentimento da espera para livre amplidão. Esta remissão complexa
que entretém o pensamento e a livre amplidão sob o fundamento da espera e da serenidade dá
a ver o sentido fenomenológico fundamental dos fenômenos entretidos: a serenidade só pode
ser compreendida enquanto a recolhimento de um mesmo, o qual só pode se dar enquanto
reiteração de um ampliamento; a espera só se deixa fixar em seu sentido essencial enquanto
instância em tal reiteração; o pensamento enquanto ampliamento reiterado só se faz
compreender enquanto serenidade e nestes termos enquanto consentimento da livre amplidão
de seu irrompimento possível.
Aqui é ratificada a recusa a um suposto caráter de espontaneidade do pensamento. Se a
serenidade deve ser consentida, a possibilidade de tal consentimento repousa apenas na livre
amplidão ela mesma. Assim, ao consentir a serenidade, o pensamento já estava admitido na
livre amplidão. Entrar na livre amplidão é proceder a um desdobramento de ampliamento que
leva o pensamento a manifestar-se em concernência à sua condição de possibilidade, isto é, ao
seu aberto. Ainda que o pensamento se detenha no horizonte da transcendência representando-
se para si mesmo enquanto essência pensante, no sentido do representante transcendental, ele
não deixa de estar dentro da sua condição de possibilidade, apenas mantém-se como que fora
na medida em que não se possibilita enquanto meditação e fica restrito a representação
concedida pelo círculo parcial do aberto voltado para o seu re-presentar. A personagem do
professor ensina sobre a permanência do pensamento na livre amplidão:
Não estamos jamais fora da livre amplidão, conquanto nos mantenhamos no
horizonte da transcendência enquanto essência pensante, o que significa ao mesmo
tempo enquanto representante transcendental. Mas o horizonte é o lado da livre
amplidão voltado ao nosso re-presentar. A livre amplidão nos circunda e se mostra a
nós enquanto horizonte.” [HEIDEGGER, 1997, p. 48]
Nesta última frase do professor está bem indicado o problema do vínculo que o
pensamento entretém com o aberto de sua possibilidade e, simultaneamente, com a coisa. A
livre amplidão é a forma do Ser da clareira, o aberto, que se oculta na medida mesmo em que
faculta tanto o horizonte quanto a descerramento do ente. A livre amplidão “que se mostra a
21 idem, Ibidem
17
nós enquanto horizonte” é o propriamente oculto na ocultação da clareira. Não é, portanto, a
clareira o que se oculta, mas antes ela oculta o que lhe é o mais próprio, seja mostrando-se
enquanto horizonte seja descerrando a coisa no seu interior.
É, com efeito, no interior desse jogo de cerração e descerramento que o pensamento se
atém, ou melhor, pode se ater no entre constituído no jogo. Assumindo-se enquanto
representante transcendental, isto é, enquanto o próprio horizonte da representação e
abismando-se no ente anteposto desencoberto, o pensamento está “fora” da livre amplidão
pelo simples fato de não se consentir a ela. Todavia, enquanto representante transcendental, o
qual é o ponto de partida inevitável, já que, como ensina Hölderlin, “no princípio o espírito
não está na fonte”, ascendendo para fora do horizonte da representação, o pensamento está na
livre amplidão. E o está precisamente enquanto espera. Porque a espera constitui o próprio
desprendimento da ligação transcendental ao horizonte.
Aqui o diálogo realiza mais um movimento na determinação da serenidade enquanto
reiteração da espera, da instância na livre amplidão. O primeiro momento fenomenológico da
serenidade se constitui desse desprendimento da ligação transcendental do pensamento ao
horizonte. Mas a serenidade não se determina a partir deste desprendimento, determina-se
antes a partir da própria livre amplidão e é dela que recebe o seu movimento e orientação para
esta. Isto quer dizer que a serenidade não se determina por negação ao horizonte. Mais uma
vez a personagem do professor ensina:
“A serenidade vem a partir da livre amplidão, porquanto subsiste nesta, para que o
homem permaneça sereno e, na verdade, para que o permaneça através desta aqui
mesma. Uma vez que pertence originariamente à livre amplidão ele está em sua
essência sereno para ela. Ele a pertence, uma vez que é de início a-propriado e, na
verdade, por ela mesma.” [HEIDEGGER, 1997, 49]
Retoma-se aqui agora, de modo propriamente relacionado, o que foi observado
anteriormente em vista da análise estrutural dos conceitos: a serenidade na qual o homem
pode desdobrar o seu Ser próprio é sempre um modo próprio do acontecimento, isto é, ela é a
apropriação originária que a-contece enquanto reiteração de uma remissão parental. As
personagens do cientista e do professor concluem com rigor o esclarecimento do sentido
próprio da permanência do pensamento na livre amplidão em seu como e em seu porque. O
cientista explicita com precisão a observação do erudito de que a denominação da espera
sobre o fundamento da livre amplidão é uma denominação recíproca:
Mas, somente quando a serenidade, sobre o fundamento da pertença à livre
amplidão, desprende-se do representar transcendental-horizontal, o qual é a essência
do pensamento até aqui reinante, o pensamento a partir um tal representar
18
transforma-se em serenidade na espera sobre a livre amplidão. [HEIDEGGER,
1997, p. 50]
A tal explicitação o professor concede o acabamento:
A essência desta espera, contudo, é a serenidade para livre amplidão. Mas, porque a
livre amplidão é isto, a serenidade se pertencer mais e mais, porquanto se deixe
repousar em si, a essência do pensamento repousa nisto que a livre amplidão, se eu
posso falar nesses termos, amplia em si a serenidade. [HEIDEGGER, 1997, 50]
O diálogo retoma neste ponto a tarefa de proceder à determinação da essência do
pensamento sob o imperativo da radicalização da diferença. Como observa a personagem do
professor, a espera determinada enquanto forma genuína do pensamento não é o fundamento
da determinação de sua essência, o pensamento só pode receber a sua determinação a partir da
livre amplidão a qual se dá enquanto o outro dele mesmo. O que significa dizer primeiramente
que o pensamento só é enquanto espera por diferenciação de sua essência. E em segundo
lugar, que esta diferenciação não pode ser concebida enquanto uma oposição formal, mas
antes como um caso de retorno contínuo da fonte propiciadora sobre o seu próprio curso; deve
ser concebida pura e simplesmente enquanto acontecimento: a dobra permanente sobre a qual
se renovam ininterruptos o domínio e o alcance do dá-se de Ser e tempo.
Esta diferenciação da essência é o princípio formal da determinação recíproca entre o
pensamento e a livre amplidão, diferenciação que só pode ser procedida pela pertença da
essência ao seu âmbito de possibilidade, o qual sendo o outro do seu mesmo é também o
mesmo dela mesmo, sem, contudo, subsumir-se nela nem anular sua diferença própria. A
essência do pensamento é a espera para livre amplidão, esta espera só tem lugar sobre o
ampliamento da livre amplidão e somente nestes termos pode ser denominada enquanto
serenidade. Por outro lado a livre amplidão só pode se manter aberta, isto é, só pode-ser, na
medida em que o pensamento se amplia no seu âmbito de ampliação. Assim, nem cabe tomar
os momentos estruturais do pensamento enquanto termos isolados e subsistentes por si, nem
cabe tomar o seu princípio de possibilidade enquanto condição meramente formal de
determinação.
Retorna a dificuldade observa desde o início da apresentação do diálogo: não existe
recurso através da representação para pensar o sentido próprio da serenidade, da livre
amplidão e do ampliamento concernente a ambos. E muito menos é possível pensar por meio
da representação a relação entretida entre a região da livre amplidão e a coisa desencoberta
nela.
19
A serenidade se configurou, enquanto a essência do pensamento, o ampliamento para
livre amplidão. E, apenas enquanto ampliamento da serenidade, o pensamento é serenidade
para livre amplidão, o que significa dizer que a serenidade não subsiste por si num
pensamento ele mesmo subsistente. Se o ampliamento concerne ao vínculo que a livre
amplidão entretém com a serenidade, ele não pode configurar o vínculo que a região da livre
amplidão entretém com a coisa, pois o ampliamento da livre amplidão é uma possibilidade
própria do pensamento enquanto ampliamento da serenidade. O vínculo entretido entre a
região da livre amplidão com a coisa deve, contudo, ser observado enquanto serenidade, nisto
que esta, a partir do seu ampliamento, enquanto estadia na espera, pode se configurar
enquanto permanência e nestes termos condiciona a coisa a coisa, já que esta aqui, por não
pensar, não pode ser pensada por ela mesma enquanto coisa. Condicionar, isto é, propiciar a
condição, contudo, não é produzir nem fazer, não é causar, enfim; também não é um
possibilitar no sentido que a representação se dá de um possibilitar transcendental. É deixar-
ser a coisa enquanto tal. Mas, deixar-ser a coisa enquanto tal é necessariamente não torná-la
objeto como condição restritiva para que ela permaneça enquanto coisa. A personagem do
professor orienta a questão:
As coisas são, manifestamente, coisas através da região da livre amplidão, como se
mostrou em nosso diálogo anterior, na permanência do cântaro no vasto da livre
amplidão. Entretanto, a região da livre amplidão não causa nem produz a coisa,
menos ainda a livre amplidão produz a serenidade. Ela também, no ampliar, não é
horizonte para a serenidade, como também não o é para as coisas, quer possamos
experimentá-las apenas como objetos quer as pensemos como “coisas em si”
ajustadas aos objetos. [HEIDEGGER, 1997, 52]
Quando a personagem do professor ressalta que a região da livre amplidão, ao facultar
a permanência necessária para que a coisa seja não o faz ao modo da produção seja da coisa
seja da serenidade que fundamenta tal permanência, quando faz notar que o ampliamento da
região da livre amplidão não é horizonte para a serenidade nem para as coisas, quer estas
últimas sejam experimentadas enquanto objeto quer enquanto coisas em si ajustadas aos
objetos, ele esta procurando distinguir o vínculo que a região da livre amplidão entretém com
a serenidade de uma relação causal de efeito no que concerne ao ampliamento da serenidade,
portanto ao fundamento de uma permanência, e, no que concerne ao condicionar da coisa pela
serenidade, distinguir tal vínculo de uma relação horizontal-transcendental. Assim, o vínculo
pensado aqui nem pode ser visado como uma relação ôntica nem ontológica (no sentido
metafísico deste termo), as quais uma e outra são sempre representações de uma mera relação
representada em ambas as perspectivas pela própria representação.
20
Se o vínculo que a região da livre amplidão entretém com a serenidade não permite se
configurar enquanto relação causal de efeito nem enquanto relação horizontal-transcendental,
a fortiori o vínculo que a região da livre amplidão entretém com a coisa não pode ser pensado
nem enquanto ôntico nem enquanto ontológico. A livre amplidão não produz a coisa nem se
dá enquanto horizonte transcendental para a sua representação. O vínculo que a região da livre
amplidão entretém com a serenidade que se amplia sobre ela ampliando-a simultaneamente
compreende-se apenas enquanto ampliamento e com a coisa esta relação compreende-se
enquanto serenidade. E isto significa, do ponto de vista de um tempo próprio: esta relação é,
enquanto acontecimento, a sustentação de uma duração, o recolhimento e a contenção na
quietude da coisa no repouso de seu poder-ser próprio. Repita-se o que foi dito acima:
“contendo-se em seu ampliamento essencial, o pensamento, sem representar, deixa-ser o ente
no instante de sua própria amplitude. O pensamento ao permanecer no ampliamento de si
mesmo faculta ao ente regressar (mover-se) à condição de seu repouso (permanecer) próprio”.
E aqui se revela o Ser próprio da condição. As personagens do Diálogo indicam o âmbito da
questão: O cientista avalia: “O que o condicionar é, devemos, por conseguinte, primeiro
aprender a pensá-lo”22; ao que o professor acrescenta: “ao aprendermos a experimentar a
essência do pensamento...”23; e o erudito conclui: “portanto, esperar com base na condição e
no ampliamento”.24
Aqui o Diálogo fixa o ponto de partida desde o qual é possível pensar o fundamento
do pressuposto estabelecido pela tradição acerca do vínculo que o homem entretém com a
coisa. Este vínculo que ganhou a cunhagem de uma relação exemplar entre um Eu e o seu
objeto fundou-se na reportação positiva do pensamento Físico à natureza, reportação esta
sustentada na clássica cunhagem da essência do homem enquanto animal racional. O
pressuposto vigente do vínculo do homem com a coisa em termos de relação entre o Eu e o
objeto corresponde, portanto, à possibilidade metodológica concernente à análise da
matemática Ciência da Natureza que pôs como parâmetro para o conhecimento a exatidão
matemática e o experimento. Fundado numa tal possibilidade, o pressuposto em questão
constitui-se em uma apreciação histórica.
Aqui o Diálogo procede a uma digressão, como procedimento metodológico em vista
de um melhor esclarecimento do fato do pressuposto sujeito-objeto ter se constituído numa
apreciação história. O sentido do que seja histórico é fixado no Diálogo tendo em vista apenas
22 idem, p. 54 23 idem, ibidem. 24 idem, ibidem
21
um modo possível do conhecimento e do seu ampliamento. O histórico não é abordado aí por
respeito às ocorrências e fatos do mundo, e, muito menos às produções culturais do homem. O
Diálogo encontra nesta altura ocasião de esclarecer que histórico em seu sentido
fenomenológico se diz tão-somente das aberturas de épocas que constituem as próprias
doações da clareira do Ser, enquanto as perspectivas, destinadas, da compreensividade. Se a
história diz respeito apenas às aberturas perspectivas da compreensividade, se não concerne
originariamente aos fatos e feitos do homem, ela só pode repousar com todos os seus modos
de conhecimento concernentes na livre amplidão. A personagem do professor o resume com
precisão: “A história repousa na livre amplidão e nisto que se dá enquanto a livre amplidão,
que se destinando ao homem o amplia em sua essência”.25 A livre amplidão, a clareira do Ser,
concerne, assim, a doação própria do Ser destinada ao homem em vista do ampliamento de
sua essência, isto é, do pensamento (aqui concebido por respeito à sua própria essência, a
serenidade). E a história, por sua vez, só pode ter o seu fundamento fenomenológico na livre
amplidão enquanto curso do seu destinamento, e isto significa ao mesmo tempo enquanto
discurso de suas épocas (aberturas).
Retornamos aqui ao encaminhamento inicial do Diálogo. Se a história não radica no
homem, uma vez que este não realiza sua essência na racionalidade do animal (natureza) e
não pode se oferecer, deste modo, como índice da história; se a essência do homem se
assinala enquanto a serenidade para livre amplidão; se esta serenidade evocada constitui-se no
desprender-se do representar transcendental, certo é que a fonte da história, a livre amplidão,
exclui em absoluto de sua caracterização necessária todo e qualquer indício de vontade. A
personagem do erudito conclui: “Já isto do ampliamento da livre amplidão, bem como da
condição se excluírem essencialmente de todo positivar e de todo causar, anuncia quão
decididamente é estrangeira a cada qual toda e qualquer forma de vontade”.26
Ao proceder à completa desvinculação da essência do pensamento, a serenidade para
livre amplidão, de todo e qualquer ato de vontade, o Diálogo granjeia a possibilidade de
fundamentar a distinção da essência do pensamento do ente em geral. A vontade só pode ser
suposta na essência do pensamento porquanto este seja visado enquanto operador da
positividade. Querer é querer o positivo e a positividade como um elemento seu. Daí que o
horizonte transcendental, ao qual o querer concerne, seja sempre o horizonte de possibilidade
do ente.
25 idem, p 57 26 idem, p. 58
22
Mas, qual seria o cunho próprio desta essência do pensamento que deve e pode ser
diferenciada da vontade? O Diálogo o responde com as mesmas palavras proferidas desde Ser
e tempo. O cunho da essência do pensamento distinto da representação é a deliberação. A
palavra filosófica quer significar acerca desta questão: a sustentação enquanto de-liberação de
um abrimento de-liberado para o aberto. A personagem do erudito orienta o diálogo neste
ponto: “Dever-se-ia então pensar a palavra ‘deliberação’, como ela é pensada, por exemplo,
em Ser e tempo: enquanto o assumido abrir-se próprio do Dasein para o aberto...”27; e a
personagem do professor conclui reiterando o sentido deste aberto: “enquanto o qual nós
pensamos a livre amplidão”.28
Deliberação e aberto, sustentação e clareira: no cunho próprio do pensamento distinto
de todo querer e na sua possibilidade destinada repousam o sentido mais temprano da verdade
enquanto descerramento e desocultamento. Mas descerramento e desocultamento, os quais
implicam, todavia, o ente, só se esclarecem pela procedência de um ampliamento de-liberado
e sustentado. O que significa que repousa na livre amplidão, isto é, na deliberação de um tal
ampliamento e da serenidade ela própria, a essência oculta da verdade enquanto
descerramento e desocultamento. A verdade só pode ser enquanto tal porque tem a sua
essência sustentada, assumida pelo Da-sein enquanto serenidade para livre amplidão. O que
implica dizer que a verdade essencial concerne apenas ao Ser e desta forma dista inteiramente
de uma vontade que é sempre vontade para o ente, para o positivo. E isto, precisamente,
porque o Da-sein, que deve e pode sustentar tal verdade, não é nenhum índice cognitivo pré-
constituído, mas é antes o ser-no-aberto que constitui o Dasein, o Ser-existente, enquanto
permanente ampliamento neste próprio aberto. De modo que, se numa perspectiva horizontal-
transcendental, o descerramento e o desocultamento do ente podem se configurar enquanto
uma despreservação sua no seio da livre amplidão, numa perspectiva fenomenológica radical,
este descerramento e desocultamento seus deverão se afirmar antes enquanto preservação e
concernência do ente na livre amplidão de sua condição facultada.
Se retomarmos o que se expôs acima quando se caracterizava o sentido próprio da
serenidade enquanto o recolhimento e repouso do pensamento em si mesmo, se considerarmos
o que acabamos de observar acerca da deliberação e do aberto que constituem conjuntamente
a possibilidade do pensamento enquanto pertença da serenidade à livre amplidão (ao seu
aberto destinado) e condição do ente, compreendemos amplamente a meditação que encerra
as falas das três personagens. O cientista discorre: “Então, a essência do pensamento, a saber,
27 idem, p. 59 28 idem, ibidem
23
a serenidade para a livre amplidão, seria a deliberação para a verdade essencial”.29 O
professor acrescenta à problematização: “Na serenidade poderia se ocultar uma perseverança,
que repousa verdadeiramente nisto que a serenidade está sempre interior à sua pura essência e,
perseverando, se atém a ela”.30 O erudito mais uma vez conclui: “Isto seria uma conduta que
não se pavonearia em uma atitude, mas se recolheria no recato, que continuamente
permaneceria o recato da serenidade”.31
A este caráter próprio da serenidade de recato e sustentação em vista do ampliamento
da livre amplidão, este sentido o mais essencial do pensamento que o distingue inteiramente
da vontade, a ele a personagem do erudito sugere um verso com o nome de instância. E a
personagem do professor acolhe este nome enquanto a denominação própria para a “genuína
essência da espontaneidade do pensamento.”32 Vale a pena trazer o verso à presença [Cf. p.
60]:
Instância
Sempre para uma verdade solitária
Acolher a salvo
A verdade essencial,
Por ampla permanência,
Amanhe o pensante coração
Na simples paciência
Da generosidade única
De o nobre recordar.
Contemplando a palavra poética que o verso resguarda acerca da instância, o erudito
conclui: “O pensamento seria, segundo as linhas mencionadas, o recordar afim com o
nobre”.33 Aqui, abre-se o momento mais poético do Diálogo, quando a instância do
pensamento, o seu exercício sublime de sustentação, de de-liberação, se revela enquanto o
recordar de uma nobreza. Recordar este que constitui a “simples paciência” da espera. O
pensamento é nobre enquanto “instância da serenidade para livre amplidão” e esta instância é
o reiterado recordar de sua espera essencial.
29 idem, ibidem 30 idem, ibidem 31 idem, ibidem 32 Idem, p. 60 33 idem, ibidem
24
Recordar é reiterar o movimento de retorno, não a uma fonte apartada, mas o de uma
fonte permanente. Recordar é repetir o acontecer da deliberação e sustentar, mantendo-se no
acontecer, este a-contecimento. Nesta sustentação da deliberação pelo recordar da espera
essencial, a serenidade revela a sua afinidade com o nobre, o qual é sempre a afinidade com a
própria deliberação de sua essência. As personagens do erudito e do professor orientam a
questão: o erudito: “Nobre é o que tem procedência”.34 Professor: “Não só a tem, mas
encontra-se na procedência de sua essência”.35 E esta procedência, na medida em que o
homem em sua essência é pertença da livre amplidão, é precursora, isto é, está doada de
antemão ao recordar. Está doada, não num índice representado, mas no imemorial, desde
onde a essência do pensamento é facultada à livre amplidão por esta própria; desde o lugar
impensável onde o pensamento propriamente começa. Este a-contecer do homem pela livre
amplidão, a apropriação de sua essência à sua região própria é o dá-se da serenidade ele
mesmo.
Neste ponto do diálogo, mais uma questão se impõe para o esclarecimento. Observou-
se acima que apenas sob o imperativo da diferença seria possível esclarecer o sentido próprio
da copertença que determina previamente a conexão necessária entre o pensamento e a sua
essência. Pela diferenciação do outro de seu mesmo, isto é, pela diferenciação de sua essência,
o pensamento se dá, enquanto ampliamento, como sustentação da serenidade para livre
amplidão. Tal sustentação da serenidade para livre amplidão, configurando-se enquanto
deliberação para a verdade essencial, funda e fundamenta a copertença da essência do
pensamento e da verdade, a qual enquanto descerramento e desocultamento revela ser um
modo mesmo do Ser da livre amplidão. Foi observado também que esta diferença em que se
funda a possibilidade de uma copertença só pode ser contemplada como um caso de retorno
contínuo da fonte propiciadora sobre o seu próprio curso. Assim, a verdade, o modo do Ser da
livre amplidão enquanto descerramento e desocultamento, e o pensamento, o ampliamento da
serenidade para a livre amplidão, implicam-se e sustentam-se mutuamente para serem
enquanto tal o mesmo do outro, a diferenciação permanente do mesmo. Contudo, a tradição
ensinou que o caráter distintivo da verdade é a sua independência frente ao homem. Pois seja,
frente ao homem, mas jamais frente à essência do homem. A personagem do professor ensina
com todo o rigor:
(...) a essência do homem é facultada unicamente na livre amplidão e, portanto,
empregada por ela, porque o homem por si mesmo nada pode sobre a verdade e
34 idem, p. 61. 35 idem, ibidem.
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porque esta permanece independente dele. A verdade só pode manter-se aberta
independente do homem, porque a essência do homem enquanto serenidade para
livre amplidão é empregada por esta no ampliamento e em prol da condição. A
independência da verdade frente ao homem é, portanto, notoriamente, uma ligação
com a essência do homem, ligação que repousa no ampliamento da essência do
homem na livre amplidão. [HEIDEGGER, 1979, p. 63-4]
Nesta independência da verdade frente ao homem repousa também o sentido essencial
da liberdade deste. A instância na sua procedência, isto é, a espera é sempre a possibilidade
insigne do homem, Na qual ele pode assumir a si mesmo ou se furtar de si mesmo.
Assumindo esta espera, instando na serenidade, o homem amanha
o seu pensante coração
na simples paciência
da generosidade única
de o nobre recordar.
O homem, então, pode presumir a nobreza de sua essência e presumir mesmo a
amplitude do instante, porque instante ele próprio na espera poderia esperar o mais
longamente. Nesta reiteração da espera, neste recordar que o mantém na nobreza de sua
procedência, o homem teria então o seu Dasein projetado e lançado para e sobre o seu Ser o
mais próprio. E aqui o seu Dasein se abriria e se ampliaria sobre a liberdade a mais plena – do
ponto de vista do caráter positivo desta liberdade, dando começo ao que quer que seja
concernente ao seu princípio projetivo a partir de si (de sua essência) e do ponto de vista do
seu caráter negativo, livre dos constrangimentos da vontade e, assim, livre da representação e
do seu horizonte parcial. Sustentado, instante, em sua essência, livre da vontade impositiva,
afim com o nobre, o homem instaria na própria gratidão agraciadora que, enquanto caráter
essencial da livre amplidão, é ao mesmo tempo atribuição e retribuição de Ser e tempo
próprios, isto é, livres.
Sobre a gratidão que o homem sereno experimentaria, é necessário que se diga ainda
que ela é o agradecimento espontâneo da própria concernência deste homem à livre amplidão
a partir da qual se amplia o seu Ser. Tal gratidão não agradece nunca por um algo, agradece
apenas por poder agradecer, ou seja, por instar concernente e, assim, gozar da serenidade
facultada pelo ampliamento do homem no aberto de sua essencialidade. Mas, o
agradecimento espontâneo no qual o homem poderia instar tem sua raiz unicamente na livre
amplidão ela mesma; ela concerne inteiramente à gratuidade da permanente atribuição e
retribuição de Ser e tempo pelo acontecimento, o próprio da livre amplidão. É nestes termos
que o sentido fundamental da gratidão é precisamente o sentido da essência do pensamento, a
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serenidade na espera, e é neste sentido que a sua espontaneidade se distingue em absoluto da
vontade, se é que esta deva se manter, ela própria, reduzida à função de uma faculdade prática
imanente a uma consciência constituída na forma de um Sujeito da representação. Vale
observar neste contexto que a vontade, vista desde tal perspectiva, só pôde ser suposta pela
Metafísica como o caráter essencial do pensamento à custa do fato deste aqui haver sido
contemplado ele mesmo enquanto representação; mas para que este arranjo fosse possível a
espontaneidade, característica da livre amplidão, teve que ser primeiramente ela atribuída à
forma do Ser deste pensamento representativo, o que manteve obscurecido, por todas as
épocas da Representação, o seu fundamento próprio. Ainda por respeito à Metafísica, é
preciso dizer, portanto, que gratidão é algo inteiramente distinto de vontade e vice-versa. E
supor que isto, uma vez compreendido, teria evitado que tivesse lugar tanta controvérsia por
respeito à vontade; a idéia de uma consciência infeliz (Hegel) e de uma vontade revoltada
(Camus) teria, talvez, encontrado uma abordagem muito mais favorável às necessidades da
existência e do pensamento se a espontaneidade tivesse se apresentado como um problema de
análise antes que como uma mera evidência disponível para dar forma à vontade.
Retomando o percurso meditativo do Diálogo, vemos que tão logo este encontra na
gratidão o sentido último da essência do pensamento enquanto serenidade, a personagem do
cientista encontra a ocasião para levantar a última questão, a qual retorna sobre a problemática
inaugurada no Diálogo. Tão próximos estão os interlocutores da essência da livre amplidão e,
contudo, tão distantes se sentem dela própria. O que se dá então entre a essência e o Ser? O
que se dá com a essência da livre amplidão, que se diferencia do ente diferenciando-se em si
mesma? O próprio cientista assinala: “Mas a livre amplidão e sua essência podem não ser
coisas diferentes, caso possa haver-se falado aqui de coisas”.36 E a personagem do erudito
arremata: “O mesmo da livre amplidão é presumivelmente sua essência e o mesmo dela
mesma”.37 Considerando de partida que a livre amplidão não é nenhum ente, é possível
compreender que a relação entre ela e sua essência se dá enquanto jogo de proximidade e
distância, que é bem o modo de dá-se de Ser e de tempo, que por sua vez é bem o modo do
dar-se diferenciado do Mesmo fundado no acontecimento.
Tal proximidade e tal distância não concernindo a ente algum tampouco podem ser
pensadas enquanto termos isolados por relação à livre amplidão. Proximidade e distância é o
modo do Ser da livre amplidão se dá enquanto Ser regionalizante. A personagem do professor
esclarece com propriedade: “a livre amplidão tudo regionalizando, tudo conjuga e faculta a si
36 idem, p. 65. 37 idem, ibidem
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mesma retornar à quietude própria no Mesmo”.38 Este Ser regionalizante, que revela a livre
amplidão enquanto “a proximidade do distante e o distante da proximidade”, mostra o caráter
próprio do acontecimento no interior do qual Ser e tempo acontecem enquanto alcance e
expansão. O homem, concernido à livre amplidão, postado enquanto Da-sein na clareira do
Ser, dramatiza, com o seu existir compreensivo em vista do seu poder-ser factício, a
proximidade do distante (da essência) da livre amplidão ao projetar-se deliberado para o Ser
transcendendo o ente, e dramatiza o distante (o Ser) desta proximidade concedida enquanto
distância ao retornar necessariamente lançado ao ente para, a partir dele, reiterar o
movimento transcendente do pensamento, movimento no interior do qual a livre amplidão
procede à regionalização onde Ser e ente se conjugam em sua diferença e através da qual ela
pode retornar a quietude do seu Mesmo. Isto dito de modo mais esclarecedor, esse projetar-se
deliberado para o Ser, no qual a livre amplidão revela o seu caráter de proximidade da
essência, o pensamento o procede se ampliando na espera da serenidade, ou seja, instando no
retorno a si mesmo; a distância do Ser de sua essência, (seu mesmo), o pensamento a sofre na
sua permanência já prévia no lançamento, condição única desde a qual ele pode retornar
continuamente a si. Em Ser e tempo se reiterava o sentido desta proximidade e desta distância
quando se reafirmava instante: “O Dasein é um ente que em seu Ser marcha para este próprio
Ser”. A marcha do Ser para o Ser, para o seu Mesmo diferenciado é o fato ontológico peculiar
da proximidade do distante e do distante da proximidade, que concernirá sempre à ocorrência
do Um diferenciando-se em si mesmo – ocorrência que somente a um ente é dada acordar-se:
ao Dasein, precisamente por seu Ser enquanto Da-sein.
Procedida à destruição ontológica da argamassa que sustentava a representação
histórica do pensamento enquanto vontade e operatividade lógica, as personagens do Diálogo
podem agora se inquirir acerca de uma denominação última da essência do pensamento e do
seu correspondente conhecimento. E aqui se encena sob uma luz bem delineadora o passo de
volta tantas vezes invocado pela Filosofia que orienta o curso destas personagens. O dizer
grego, Heráclito o mostra, manifesta esta denominação da essência do pensamento solicitada
no Diálogo com a palavra Ἀγχιβασίη, o dizer alemão a manifesta com a palavra Herangehen.
As palavras grega e alemã se traduzem em português com a palavra aproximação. Nos três
idiomas as palavras trazem a indicação da ambigüidade manifesta no próprio dizer do
fenômeno nomeado. Aproximação, visada na perspectiva metafísica que instituiu o
pensamento e o conhecimento sobre o fundamento da vontade e da lógica, é manifestada
38 idem, p. 66
28
enquanto a investida que o pensamento procede sobre o ente no intuito de contra pô-lo
previamente organizado, investida esta que pretende ser legitimada enquanto conhecimento
verdadeiro. Visada na perspectiva fenomenológica que orienta este Diálogo, a palavra
aproximação é manifesta por seu dizer precisamente enquanto o “ir-à-vizinhança”, o que
caracteriza propriamente o fenômeno da proximidade e da distância constitutivas do
desdobramento próprio à livre amplidão. Ir-à-vizinhança longe de ser uma investida é antes
um admitir-se e sustentar-se no entre possível facultado ao pensamento e ao conhecimento
pela serenidade enquanto ampliamento de seu movimento de espera onde repousa a condição
de retorno do ente ao repouso de seu Mesmo.
Aproximação enquanto instância no entre, enquanto sustentação de proximidade e
distância é a compostura que constitui a forma originária que põe o pensamento livre e em
concernência ao ente, do mesmo modo que põe o ente livre e em concernência ao
pensamento, por possibilitar a este aqui a sua marcha precursora para o Ser. No entre de Ser e
ente, o pensamento prolonga seu ampliamento possível e sustenta o Ser do ente, sustentando
assim a própria condição deste enquanto coisa.
A imagem que o Diálogo oferece desta aproximação só poderia ser de feitio poético. É
a noite que tudo amalgama, que tudo amplia, que tudo condiciona avizinhando todas as
distâncias sem destituí-las; é a noite que insta oculta no interior do próprio dia engendrando
em silêncio perpétuo toda a transformação, todas as possibilidades do dizer de manifestar; é a
noite que enquanto puro Ser, puro tempo desdobra para olhos discípulos, para olhos de sábios
e poetas, para olhos capazes da admiração, o espetáculo eternamente inaugural da
aproximação: A noite que guarda o sentido último da espera e da serenidade, da gratidão e da
nobreza que nos doando procedência nos reclama o permanente recordar.
Agosto de 2014.
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BIBLIOGRAFIA:
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Estrelas, 2113
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