Encarte especial - Lane vale

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Rio Branco – Acre, DOMINGO, 12 e SEGUNDA-FEIRA, 13 de maio de 2013 1 Página 20 www.pagina20.com.br ENCARTE ESPECIAL Histórias de perdas, separações e recomeço de vida de quem teve que continuar a caminhada sozinho

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ENCARTE ESPECIAL

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�LANE [email protected]

Existem duas situações de per-das a que todos estão sujeitos a passar: morte e separação. Experiências que muitas ve-zes causam dores profundas no corpo e na alma, gerando

sentimentos tão confusos que se misturam em uma gama variada de sensações, como impo-tência, medo, culpa, dúvida, solidão, amargu-ra. A pergunta muitas vezes não é sobre como lidar com essa nova situação, mas como conti-nuar vivendo depois dos ventos tempestuosos de um rompimento.

Recomeçar muitas vezes se torna tarefa difícil. O medo, sentimento já citado acima, é um dos reflexos mais atenuantes nessa nova caminhada. A perda de um emprego ou de qualquer bem material, por exemplo, pode abalar a família inteira, que a partir dali certamente encontrará dificuldades para re-organizar a vida.

Mas, tratando-se da perda de um grande amor que não deu certo, ou da morte que chegou repentina e prematura, o sentimento passa a ser pesado e muito, muito dolorido. A dor é tão intensa e profunda que chega ao ponto de ser suficiente para pensar em desistir de lutar ou de continuar a viver. A saudade decorrente de uma grande separa-ção pode levar a desequilíbrios emocionais irrecuperáveis.

Algumas pessoas, o que é bastante co-mum após perdas como essa, desejam até a morte e chegam ao extremo tentando sui-cídio. Acreditam que, somente assim, a dor sufocante, o aperto no peito, o desânimo, a saudade e as lágrimas cessarão. O que dizer a alguém que está acometido de tal senti-mento? Que conselho magnífico seria sufi-

ciente para amenizar o sofrimento de quem perdeu o chão, o rumo e o sentido da vida?

Especialistas psíquicos, em alguns casos, podem ser o norte para um recomeço ou, quem sabe, uma válvula de escape para aliviar tais sensações. Já para outros, o refúgio em igrejas e novas experiências espirituais são uma das formas encontradas para dar os primeiros passos sozinhos, buscando incessantemente preencher com a espiritualidade os espaços va-zios e cicatrizar as feridas de um coração que em algum momento da vida se partiu.

O poeta e escritor Carlos Drummond de Andrade, em uma de suas obras, faz re-ferências à arte do recomeço. Cita que não importa em que momento da vida a pessoa parou, em que momento da vida se cansou, o importante é que sempre é possível e ne-cessário recomeçar.

Na forma literária parece fácil, como os bons conselhos após uma dolorosa separa-ção. Quem já passou ou passa por isso sabe que, na prática, ainda que possível seja, é uma matemática bem mais complicada de resolver. Um problema que talvez apenas o tempo consiga trazer as repostas.

Recomeçar, entretanto, é sempre um pro-cesso difícil, principalmente quando é necessá-rio refazer-se interiormente, juntando os peda-ços, colando o que sobrou, porque dificilmente será possível sair inteiro novamente. É como um vaso que se quebra em mil pedaços. Colar os estilhaços requer paciência e persistência e, acima de tudo, a consciência de ter aprendido alguma coisa a respeito daquela experiência.

Separar aquilo que se encontrava ante-riormente misturado ao outro certamente é a tarefa mais difícil quando uma convivência chega ao fim e a pessoa precisa continuar a caminhada sozinha, já que seguir adiante é a única opção diante de uma situação em que não existem mais voltas.

Alguns anos atrás, uma edição especial do jornal Página 20 reportou, em alusão ao Dia dos Namo-rados, histórias de relacio-namentos que sobrevive-ram ao tempo. Casados há 60 anos, Esperança Torres e Raimundo Messias fo-ram os protagonistas de uma linda história de amor intitulada “Eternos Na-morados”, publicada no dia 11 de junho de 2010.

Infelizmente, Raimun-do já não está entre a fa-mília. Faleceu ano passado, dia 8 de janeiro, e deixou sua amiga, amante e com-panheira sozinha. Dona Esperança, hoje com 79 anos, já não aparenta ser aquela senhora segura, sor-ridente e feliz de quando vivia ao lado do esposo,

quando foi entrevistada pela primeira vez.

Atualmente, mora com uma das netas que ajudou a criar. Teve nove filhos com Raimundo e se lembra de to-dos os momentos que passou ao lado do bom e fiel compa-nheiro. Se emociona, e tam-bém se entristece ao falar do amado. Sua voz, já gasta pelo tempo, chega a silenciar ao caí-rem das lágrimas. A morte, que não espera nem quer negociar, apareceu de repente na vida do casal e acabou por derrotar toda a esperança e fé na vida da metade que continuou a viver.

A impossibilidade de não poder nunca mais conversar com a pessoa que foi embora, ouvir sua voz, saber sua opi-nião ou tocá-la é devastadora para aquele que ficou. Uma foto, uma música, um aroma

Uma triste Esperança...DONA Esperança Torres e o amado Raimundo Messias. O casal foi protagonista de uma linda história de

amor intitulada “Eternos Namorados”, publicada no dia 11 de junho de 2010

Fotos: Regiclay Saady

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ou mesmo um objeto são su-ficientes para lembrar o ente querido. Conversando com Esperança, é possível perce-ber em seu semblante que a dor pela ausência de Raimun-do reaparece a cada instante e é cada vez mais feroz.

“A dor é uma estrada que não tem fim. A morte levou embora meu coração, meu parceiro, ami-go e confidente. Juntos, éramos fortes e capazes de superar tudo, inclusive a perda de um filho. Hoje, sozinha, espero apenas a morte chegar para cessar essa dor cortante dentro de mim. Foi tudo muito rápido. Ele estava bem e de repente vieram aquelas dores terríveis. Ainda no hospi-tal ele só me pedia para ficar ao seu lado, mas não me deixaram entrar na UTI para segurar sua mão”, desabafa.

A morte entra de uma for-

ma tão brutal na vida das pessoas que chega a corro-er o coração e estraçalhar os sonhos de quem não sabe como vai fazer a partir dali para sobreviver à perda. A culpa pode ser outro fator dominante nessa nova fase repleta de emoções tremen-damente dolorosas, pois é muito comum sustentar o pensamento de que “pode-ria ter sido feito mais” para a pessoa viver.

“Como continuar a vi-ver sem a pessoa que era o motivo do nosso viver? É uma dor que vai ficar em meu peito enquanto eu ainda respirar. Só Deus para me confortar e me dar forças para acordar todas as manhãs sabendo que ele já não mais estará entre nós”, lamenta Esperança.

Uma triste Esperança...DONA Esperança Torres e o amado Raimundo Messias. O casal foi protagonista de uma linda história de

amor intitulada “Eternos Namorados”, publicada no dia 11 de junho de 2010

Quando um filho morrePara muitas mães que per-

deram um filho, enfrentar os primeiros momentos de luto pode ser algo eterno. Apren-der a viver de novo sem um pedaço de si é semelhante ao lema dos Alcoólicos Anôni-mos: “só por hoje”. A cultu-ra do “vamos lá, vamos para frente” costuma não funcio-nar com quem perdeu um fi-lho e tem que sobreviver dia após dia a sua dor.

Dona Francisca de Assis conhece bem esse sentimen-to dilacerante, que chega a sufocar-lhe a alma. Atualmen-

te, ela vive uma avalanche de emoções que tentam se adap-tar a um coração que nunca mais será o mesmo. A filha, Olizângela da Silva Lopes, morreu aos 17 anos. A jovem foi brutalmente assassinada e até hoje os motivos do crime ainda são um mistério.

“Dormindo ou acorda-da, já não faz mais dife-rença. Já não sou quem eu fui um dia. Roubaram meu coração e hoje sou apenas uma casca - vazia por den-tro e morrendo aos poucos por toda essa angústia de

Era tarde de domingo. Ape-sar das poucas nuvens que es-tavam no céu naquele 24 de março de 2013, o dia ficou en-coberto de muita tristeza. No saguão do hospital, uma senho-ra clamava pela vida do filho, que acabara de sofrer um grave acidente de trânsito.

Seu nome é Ednea Rodri-gues Dias. Infelizmente, Celso Fernandes de Almeida Car-doso Júnior, 23 anos, acabou não resistindo aos ferimentos e morreu poucas horas depois de dar entrada no pronto-socorro. Pastora da Igreja Batista, Ednea se agarrou em Deus para sobre-viver após a perda.

Amparada na fé, ela se man-tém firme: “Mesmo quando uma mãe carrega no ventre por nove meses o filho, e após vin-te e três anos esse filho morre, Deus continua sendo Deus. Ele está no controle dos incontrolá-veis momentos de nossas vidas. Está no controle do alicerce, da fundação, da nossa existên-cia. Se o sofrimento vier, se a provação chegar, se a cura não acontecer, se um acidente lhe ti-rar aquilo que você tem de mais precioso na vida, saiba que no projeto do Reino, além do ho-rizonte, além da sua e da minha visão, além da nossa limitada realidade do momento, o nome do nosso Deus será glorificado. E glorificar o nome de Deus é a minha prioridade”, declama.

Essa mãe, cuja fé lhe trouxe amparo e uma força difícil de descrever, têm, apesar do luto que reflete em sua alma, um olhar de paz, uma voz doce e uma palavra de conforto quan-do se refere ao luto de outras mães. “A gente busca o confor-to na Palavra de Deus, e o Se-nhor sempre vem e nos confor-ta. O triste é saber que muitas mães passam pelo mesmo luto

não ter respostas. Queria saber por que fizeram ta-manha maldade com minha filha”, balbucia Francisca, em tom de resignação.

Não há sofrimento na terra que o céu não possa curar. (A Cabana)

que eu estou passando, mas, in-felizmente, não conhecem essa Palavra. E isso é triste - não sa-ber onde seu filho está, e o que vai te dar conforto”, diz Ednea.

Em meio a tanto sofrimento, a fé de uma mãe realiza milagres. Até garantir o perdão ao que parecia imperdoável: “No meu coração de mãe não existe ódio, somente tristeza. Já liberei perdão para esse homem que atropelou e matou meu filho, mas busco a jus-tiça do poder público pela morte de um jovem cidadão carioca que se considerava acreano, por amar este Estado”, surpreende.

Para Ednea Dias, ter raiva é querer culpar alguém. É procu-rar um responsável pela dor. Ter raiva é pensar que poderia ter sido diferente se a pessoa não tivesse errado nisso ou naquilo. “Perdoar não significa esque-cer, tampouco não sofrer nunca mais. Deixar esse sentimento ruim ir embora é fazer as pa-

zes com o tempo, com as novas chances para quem ficou.” Na quarta-feira, 24 de abril, coinci-dentemente o dia em que nossa equipe foi entrevistá-la, comple-tava-se um mês que o filho havia morrido. Ednea disse que seu luto externo acabará ali.

“O que precisamos apren-der é descansar na vontade de Deus. Hoje faz um mês que devolvi meu filho para que o Senhor cuidasse dele por mim. Durante esse tempo de dor, descobri que o amor de Deus por mim é tão grande que dei-xou que um dos seus anjos permanecesse nesta terra jus-tamente na minha casa, na mi-nha família, me chamando de mãe. Encerro aqui o meu luto coletivo, para viver um coração completamente agradecido a Deus pelo privilégio de ser es-colhida. Eternamente grata a Deus. Obrigada, Senhor, em nome do seu filho Jesus.”

EDNEA Dias se apoio em Deus para superar a perda do filho

FRANCISCA de Assis perdeu a filha Olizângela da Silva aos 17

anos de idade

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É preciso lutar para que o coração não se empedre para receber o amor daqueles que ficaram. A exemplo de Ednea, é preciso ter a consciência de que a amargura provocada pela morte precisa ser superada, na medida do possível e aos pou-cos, pois a vida continua reser-vando alegrias e doçuras.

A fé nunca deve ser abala-da e não se pode deixar abater além da conta pela solidão e a tristeza já incorporadas. São

dicas valiosas em qualquer recomeço. Continuar enxer-gando a luz no fim do túnel é fundamental. Em alguns ca-sos, se a pessoa conseguir ver na perda novas possibilidades, a dor pode servir como mola propulsora para uma mudança de visão e atitudes, aquela tão propalada “virada de mesa”.

Foi o que aconteceu com a aposentada Ideuzuíte Araújo, 71 anos, viúva duas vezes. O último marido foi assassina-

do há seis anos. Surpreenden-temente, ela não se entregou à perda e encontrou forças dentro de si para vencer a tristeza e ser feliz.

“Não queria me transfor-mar em uma velhinha cha-ta e ranzinza. Sinto falta do meu companheiro, que já se foi, mas aprendi a ser feliz sozinha. Me recusei a ficar trancada em casa, ou na casa dos meus filhos, e fui buscar minha felicidade. Aqui no

Um passo de cada vez: é assim que se aprende a andarSenadinho, no CRAS, ou onde tem alegria eu estou no meio”, conta.

Hoje, vaidosa e cheia de novos amigos, Ideuzuíte participa de várias atividades promovidas pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e sempre às quartas e sextas-feiras está dançando no Senadinho. Ela encontrou na turma da terceira idade uma oportuni-dade de recomeçar.

IDEUZUÍTE Araújo encontrou na turma da terceira idade uma

oportunidade de recomeça

Não importa quão devagar se vá, desde que nunca pareSurpreendentemente, Francisca, Ideuzuite,

Ednea e Esperança não se afundaram em suas perdas, mas encontraram forças dentro de si para vencer a tristeza. Cada uma a seu modo, mas todas com o mesmo propósito: supera-ção. O luto familiar nunca acaba, é para sem-pre, mas, como já foi dito antes, é preciso seguir em frente, reencontrar o eixo de apoio entre os membros familiares, especialmente em Deus.

Sofrer faz parte do processo de cura, e cada pessoa leva um tempo diferente para superar o trauma. Haverá dias em que não se terá forças

para sair da cama. Dias em que não vai que-rer falar com ninguém. Dias em que sentirá o cansaço na alma. Dias em que o desgaste por tantas pressões vai sugar suas forças. Dias em que se chegará ao limite de querer desaparecer do mundo. Pois a saudade será insuportável, e nesses dias, as fotos, uma peça de roupa ou qualquer objeto do ente querido serão como oxigênio para trazer alento à cicatriz indelével de uma dor eterna.

Entretanto, é preciso viver, apesar do luto. Isso é que possibilita o desapego, a libertação da

morte, para que novas vidas possam nascer. O trabalho do luto é aprender a dizer sim - tanto para a vida quanto para a morte. Tudo que tem um início fatalmente terá um fim, já que uma vida não é senão um breve instante na eternidade, in-dependentemente de quanto dure esse instante.

A aceitação é o processo que torna as pesso-as capazes de ver, tocar, falar sobre a morte e ao mesmo tempo deixá-la ir para onde tiver que ir, longe de seus domínios. As tristezas serão ape-nas histórias para se contar. Já as boas ficarão guardadas para sempre em suas memórias...