Em Busca do Lúcifer Histórico

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1 EM BUSCA DO LÚCIFER HISTÓRICO Shirlei Massapust Escultura de rosto humano achada em Hazor. Quase nunca se fala na hipótese da existência de um “Lúcifer” histórico. Ele não é um anjo, óbvio, mas sim o homem que deu origem ao mito. Eu sou filósofa e comecei pesquisando a mitologia tradicional, mas ao longo dos anos tive a oportunidade de ler certos trabalhos que me fizeram mudar de opinião. Um deles foi um artigo publicado no número 118 do periódico The Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft (ZAW) onde o professor Saul M. Olyan, que leciona História na Brown University, demonstra que o sujeito da oração do versículo 19 de Isaías 14 não pode ser nenhum rei conhecido e que este protagonista fora inequivocamente sepultado; ao passo que a tradição rabínica afirma ser ele o rei Nabucodonozor, cujo cadáver teria apodrecido ao relento. Saul M. Olyan não traduziu, mas delatou incorreções e eu decidi tentar traduzir Isaías 14 porque um sepultamento digno não muda só a tradução de uma frase. Isto muda o contexto por inteiro. O vilão se torna mocinho. A guerra vira paz. Deixa de existir fundamento bíblico para o mito do anjo diabólico. Consultei cada palavra em mais de três dicionários, comprei livros específicos e imprimi tudo que veio na busca do Google Acadêmico. Variantes medievais não me interessam. Foram encontradas vinte e cinco cópias do Livro de Isaías em Ḫirbet Qumrân e outra no Wadi Murabba‘at. Todos datam por volta do ano 100 a.C., mas infelizmente apenas três copias (1Q Isa a , 4Q Isa c e 4Q Isa e ) contém o capítulo 14 no todo ou em partes. Eugene Ultrich publicou fotos coloridas nos volumes X e XXXII do periódico Discoveries in the Judaean Desert (DJD), editado pela Universidade de Oxford. Fotos legíveis em preto e branco de IQ Isaª também foram publicadas por Millar Burrows e John Trever na coletânea The Dead Sea Scrolls of St. Mark’s Monastery. Estes manuscritos possuem um sistema ortográfico e morfológico muito diferente do códice Firkovich B 19 (1008 d.C.) 1 , mas é possível regredir o texto corrente para preencher as lacunas deixadas por uma costura no couro do manuscrito 1Q Isa a quando as palavras deformadas pela textura irregular parecem equivalentes. Somente uma palavra na décima quinta linha da coluna XII não pôde ser reconstituída com base em fontes posteriores porque ela é um 1 BROYLES, Craig C. & EVANS, Craig A. Writing & Reading the Scroll of Isaiah: Studies of an Interpretative Tradition. New York, Brill, 1997, Vol 2, p 502.

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Pesquisa independente baseada em fatos plausíveis sobre Isaías 14.

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EM BUSCA DO LÚCIFER HISTÓRICO Shirlei Massapust

Escultura de rosto humano achada em Hazor.

Quase nunca se fala na hipótese da existência de um “Lúcifer” histórico. Ele não é um anjo, óbvio, mas sim o homem que deu origem ao mito. Eu sou filósofa e comecei pesquisando a mitologia tradicional, mas ao longo dos anos tive a oportunidade de ler certos trabalhos que me fizeram mudar de opinião. Um deles foi um artigo publicado no número 118 do periódico The Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft (ZAW) onde o professor Saul M. Olyan, que leciona História na Brown University, demonstra que o sujeito da oração do versículo 19 de Isaías 14 não pode ser nenhum rei conhecido e que este protagonista fora inequivocamente sepultado; ao passo que a tradição rabínica afirma ser ele o rei Nabucodonozor, cujo cadáver teria apodrecido ao relento.

Saul M. Olyan não traduziu, mas delatou incorreções e eu decidi tentar traduzir Isaías 14 porque um sepultamento digno não muda só a tradução de uma frase. Isto muda o contexto por inteiro. O vilão se torna mocinho. A guerra vira paz. Deixa de existir fundamento bíblico para o mito do anjo diabólico. Consultei cada palavra em mais de três dicionários, comprei livros específicos e imprimi tudo que veio na busca do Google Acadêmico.

Variantes medievais não me interessam. Foram encontradas vinte e cinco cópias do Livro de Isaías em Ḫirbet Qumrân e outra no Wadi Murabba‘at. Todos datam por volta do ano 100 a.C., mas infelizmente apenas três copias (1Q Isaa, 4Q Isac e 4Q Isae) contém o capítulo 14 no todo ou em partes. Eugene Ultrich publicou fotos coloridas nos volumes X e XXXII do periódico Discoveries in the Judaean Desert (DJD), editado pela Universidade de Oxford. Fotos legíveis em preto e branco de IQ Isaª também foram publicadas por Millar Burrows e John Trever na coletânea The Dead Sea Scrolls of St. Mark’s Monastery.

Estes manuscritos possuem um sistema ortográfico e morfológico muito diferente do códice Firkovich B 19 (1008 d.C.)1, mas é possível regredir o texto corrente para preencher as lacunas deixadas por uma costura no couro do manuscrito 1Q Isaa quando as palavras deformadas pela textura irregular parecem equivalentes. Somente uma palavra na décima quinta linha da coluna XII não pôde ser reconstituída com base em fontes posteriores porque ela é um

1 BROYLES, Craig C. & EVANS, Craig A. Writing & Reading the Scroll of Isaiah: Studies of an Interpretative Tradition. New York, Brill, 1997, Vol 2, p 502.

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termo de três consoantes, iniciado por alef (א) – possivelmente אבל no sentido de “rito funerário2” – que inexiste nas versões mil anos mais novas. Esta é minha reconstituição do documento enviado de presente para o Rei de Babel:

Conteúdo correspondente a Isaías 14:4b-15 no manuscrito 1Q Isaª

Col. Linha XII 6 4 ואמרת איכה שב

XII 7 נוגש שבתה מרהבה 5 שבר יהוה מטה רשעים שבט מושלים 6 מכה עמים

XII 8 בעברה מכת בלתי סרה רודה באף גואים מרדף בלי חשך 7 שקטה נחה XII 9 כול הארץ פצחו רינה 8 גם ברושים שמחו לך ארזי הלבנון מאז שבתה

XII 10 ולוא יעלה הכורת עלינו 9 שאול מתחת רגזה לכה לקרת בואך עורה לכה XII 11 רפאים כול עתודי ארץ הקימה מכסאותם כול מלכי גואים 10 כלם יענו

XII 12 ויאמדו אליך גם אתה חליתה כמונו אלינו נמשלת 11 הורד שאול

XII 13 גאונך המית נבלתך תחתיך יצע רמה ומכסיך תולעה 12 היך נפלתה XII 14 מהשמיש היליל בן שחר נגדעתה לארץ חולש על גוי 13 אתה אמרתה

XII 15 בלבבכה השמים אעלה ממעלה לכוכבי אל ארים כסאי א[בל] בהר XII 16 מועד בירכתי צפון 14 אעלה על במתי עב אדמה לעליון 15 אך אל שאול

XII 17 תורד אל ירכתי בור

Descobri que realmente 1Q Isaª, o manuscrito completo mais antigo que

existe, descreve uma modalidade de sepultamento quando o ministro religioso fala para um cadáver anônimo: יורדי אל אבני בור כפגר מובס — “Seque [e] seja descido para a cisterna pedregosa, múmia liofilizada” (Col. XII: 23). E também no momento onde Enlil Ben Šaḥar descobre que irá morrer e afirma: ארים כסאי — “Eu construirei meu trono” (Col. XII: 15), ao que os repāim confirmam: בור Então para a cova foi descido, para o fundo do“ — אך אל שאול תורד אל ירכתיorifício da cisterna” (Col. XII: 16-17). הורד שאול גאונך — “Seu luxo desceu à cova” (Col. XII: 12-13). Antes de morrer Enlil Ben Šaḥar caminhou a pé subindo até Tel Dan. Logo, ele provavelmente partiu da cidade mais próxima, ao sul, que é Hazor onde o arqueólogo Yigael Yadin achou cisternas funerárias.

A profissão de Enlil Ben Šaḥar foi rasurada no hebraico moderno onde ele deixou de ser um “mestre de obras” (נוגש) para se tornar um “cobrador de impostos” (נגש). É por isso que hoje confundem o falecido com o Rei de Babel.

Os antigos assentamentos israelitas possuíam cisternas edificadas sobre pedreiras compostas de calcário intercaladas com giz e outras variedades que não precisavam de massa impermeabilizante, mas onde não existiam pedreiras impermeáveis as cisternas eram revestidas com cimento de pedra calcária. Todas eram escavadas na forma de orifícios largos com profundidade de oito a nove metros. O topo tinha a forma de abóbada ou sino com um buraco no centro protegido por uma tampa de pedra. A residência do clã ficava acima e ao redor da cisterna subterrânea. Yigael Yadin encontrou tantos esqueletos dentro de cisternas em Hazor que seria impossível duvidarmos da existência de cisternas funerárias no Vale Huleh. Na de nº 9024 havia grande quantidade de esqueletos acompanhados por abundantes oferendas mortuárias e amuletos da era do bronze. Numa cisterna vizinha (9027) encontraram o esqueleto duma mulher deitada numa profundidade de cinco metros abaixo do topo3. Por causa

2 KIRST, Nelson e outros. Dicionário Hebraico – Português & Aramaico – Português. Petrópolis, Vozes, 1994, p 2. 3 YADIN, Ygael. Hazor: The rediscovery of a great citadel of the Bible. Jerusalem, Weidenfeld and Nicolson, 1975, p 123-125.

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da idade nenhuma destas poderia ser exatamente a cisterna mencionada em 1Q Isaª, mas certamente seguiam as regras do mesmo costume. Cisternas funerárias foram mencionadas até em textos próximos da era cristã, malograda a difusão dos cemitérios fora das cidades a partir do início da Idade do Ferro.

FIGURA: Esqueleto de uma jovem mulher encontrado entre as camadas de terra duma cisterna (9027), em Hazor, pelo arqueólogo Yigael Yadin e sua equipe.

TRONOS SIMBÓLICOS: Quando Enlil Ben Šaḥar desejou agir como um

aristocrata ( ) ele não estava ameaçando usurpar a posição de YHWH, mas simplesmente expressando a intenção de se unir aos repāîm. Depois que Enlil construíu seu trono (כסא) os espíritos de todos os repāîm levantaram dos seus tronos (מכסאותם); ou seja, as almas levantaram dos seus caixões de madeira. Compare com esta oração egípcia:

Fórmula para impedir que seja roubado a N. o seu lugar que é o

seu trono, no reino dos mortos. – Que ele diga: “O meu lugar é o meu trono! Vinde, fazei círculo à minha volta! Eu sou o vosso senhor, deuses; vinde, depois de mim! Eu sou o filho do vosso senhor; vós pertenceis-me, (pois) foi o meu pai que vos criou”.4 Em 1Q Isaª o termo hebraico “trono” (כסא) é o mesmo usado para

designar qualquer assento (cadeira, poltrona, bancos, etc.), mas creio que isso deve ser uma metáfora para o caixão onde o corpo jaz deitado porque existiam caixões em Hazor. Não existiam sarcófagos de pedra iguais aos extraídos dos túmulos de Tiro, nem de ouro e prata iguais aos de alguns faraós egípcios. Neste momento os repāim (רפאים) – que são os fantasmas dos antepassados – recebem Enlil Ben Šaḥar na “necrópole” (שאול) e conversam sobre a avaliação do de cujo. Cada um dos mortos convocados para a assembléia está falando com e sobre todos os outros, pois no início está escrito: “Todos se cumprimentam, questionando mutuamente” (כלם יענו ויאמדו אליך).

4 O LIVRO DOS MORTOS DO ANTIGO EGIPTO. Trd. Maria Helena Lopes. Lisboa, Assírio & Alvim, p 1991, p 80.

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NINGUÉM SUBIU OU CAÍU DO CÉU: Para preparar seu “trono” numa

cisterna funerária preexistente, que será seu lugar no reino dos mortos, seria necessário usar o espaço físico acima de outra camada inferior preenchida com terra e pedras. Dentro deste contexto “elevar o nível de profundidade kôchevêi ‘el” (אעלה ממעלה לכוכבי אל) significa alojar seu caixão e demais pertenças na camada acima de outra onde estão enterradas pessoas pré-mortas. Não seria preciso exumar ninguém porque cisternas funerárias tinham em média quatro metros de diâmetro, variando entre oito e nove de profundidade. Ou seja, havia espaço suficiente para enterrar comodamente um monte de caixões.

Provavelmente Kôchevêi El (כוכבי אל) era o nome de um clã do qual a família de Enlil Ben Šaḥar era agregada ou afim. Noutra hipótese a cisterna funerária alheia poderia estar abandonada por motivo de mudança do clã para outro país ou de falta de descendentes vivos. Enlil Ben Šaḥar achou-a, tomou posse e reformou-a, sem se incomodar em dividir espaço com os despojos de alguns heróis nacionais cujo pai hipônimo fora transformado em lenda urbana.

POLÊMICA SOBRE O VIZINHO DO ANDAR DE BAIXO: O historiador

Matthew Black foi o primeiro a constatar que כוכבאל é insofismavelmente o singular compacto da expressão כוכבי אל que aparece na Bíblia hebraica (Isaías 14:13) e no manuscrito 1Q Isaª (Col. XII, linha 15)5. Matthew Black, Józef Tadeusz Milik e Florentino García Martínez, concordaram em reconstituir a frase כוכבאל אלף נ[חשי כוכין] do manuscrito 4Q202 (Col III:3) com base em Syncellus 8.36, no sentido de informar que Kôkabel “ensinou os sinais dos planetas de órbita interior7” aos habitantes de Tel Dan8. Adicionalmente foi sujerida relação de causalidade com outra passagem do livro astronômico:

5 BLACK, Matthew. The Book of Enoch or I Enoch: A New English Edition. Boston, Brill, 1997, p 120. 6 Syncellus 8.3 fala do ensinamento dos sinais (σημειωτικά) da astrologia (άστρολογία). Siam Bhayro comentou que se “poderia esperar que כוכבאל fosse listado como professor de astrologia”, mas existem controvérsias porque no Codex Panopolitanus o suposto astrólogo preferiu ensinar semiótica (τά σημειωτικά) enquanto Baraquel (ברקאל), um suposto lapidário, passou a ensinar astrologia (άστρολογίας). Nas numerosas versões etíopes Kôkabel e Baraquel também trocam de papéis. (BHAYRO, Siam. The Shemihazah and Asael Narrative of 1 Enoch 6-11. Germany, Ugarit-Verlag Münster, 2005, p 75 e 154). A tradição popular afirma que essas pessoas se tornaram anjos após a morte. Numa versão Kôkabel se mudou para as terras do sul onde se tornou um dos Príncipes dos Magistrados (Shariem Shetoriem). Baraquel preencheu o cargo vago passando a representar Mercúrio [Kôkab] uma vez por ano. (SAVEDOW, Steve. The Book of Angel Rezial. San Francisco, Weiser Books, 2001, p 15, 25 e 99). No Sepher Há-Razim V:10-14 outros dezenove príncipes continuam revezando porque o Príncipe BRKY‘L (ברכיאל) só faz este trabalho no complicado mês de Adar, décimo terceiro do calendário judaico: “Se você quer saber qual o mês de sua morte, ou o que acontecerá em qualquer mês, ou em que mês choverá, ou quando o grão germinará, ou quando a oliveira frutificará, ou em qual mês os reis sairão para a guerra, ou em qual mês haverá epidemia entre os homens ou doença no rebanho, (...) ou qualquer outra coisa que você queira [saber]; pergunte a eles”. (Sepher Há-Razim V:15-19. Em: MORGAN, Michael A. Sepher Há-Razim: The Book of the Mysteries. California, Scholars Press, 1983, p 74). 7 Era costume entre os trabalhadores sair de casa quando os planetas de órbita interior, Mercúrio e Vênus, apareciam no horizonte antes do Sol. Mas o complemento ēl (אל) faz com que kôchevêi’el (לכוכבי אל) e Kôkabel ( כוכב) se tornem adjetivos especialíssimos não aplicáveis a planetas ou estrelas. || O Targum de Isaías 14:12 cita ḵoḵāḇ noǥhā’ na frase em que o Rei da Babilônia, novo protagonista da estória alterada, afirma ser “Vênus entre os (ככוכב נגהא)planetas de órbita interior” (ככוכב נגהא בין כוכביא) e a tradicional equiparação poética do observador com o astro observado veio daí. (STENNING. J. F. The Targum of Isaiah. London, Oxford, 1953, p 48-49). Antigamente Mercúrio era chamado de Ḵoḵāḇ e Vênus de Ḵoḵāḇ Noǥhā’. O Talmude Bavli (Shabbos 156a) compilou um horóscopo onde “quem nasce na hora de Mercúrio” (האי מאן רבכוכב) está predestinado a ser um homem sábio. Por outro lado, “aquele que nasce na hora do planeta Vênus” (נוגה האי מאן רבכוכב) será um homem varonil e promíscuo porque a chama da paixão queima dentro de si. (STIEGLITZ, Robert R. The Hebrew Names of the Seven Planets. Em: Journal of Near Eastern Studies, Vol. 40, No. 2. EUA, The University of Chicago Press, Apr., 1981, p 135; GOLDWURM, R' Hersh. Talmud Bavli: The Schottenstein daf Yomi Edition – Tractate Shabbos. Brooklin, Artscroll, 2004, 156a3). 8 MILIK, J.T. The Books of Enoch: Aramaic Fragments of Qumrân Cave 4. Oxford University, 1976, p 20, 158 e 159.

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] שמיא קד]מיא ובאדין] יעב]תר E os planetas de órbita interior“ — וכוכ]בין] נזחו

adentraram as primeiras portas do firmamento” (4Q211, frag 1, col II:4).9

Em bom português, entendemos que Kôkabel fixou o horário de trabalho dos madeireiros, e de toda a gente, entre as 6h da manhã e 6h da tarde. De acordo com a biografia não autorizada – parcialmente produzida ou copiada por escribas do clã Bnei Šaḥar, donos da gruta 4Q –, era um “vigilante” que exercia sua função social no Monte Hermon, possivelmente vigiando quem estava trabalhando. No início Kôkabel (כוכבאל) era o quarto colocado numa lista de vinte chefes de clãs subordinados ao comandante Šemîḥazah (שמיחזה)10, mas a liderança local parecia ser breve ou rotativa, pois Šemîḥazah, Aśael e Kôkabel foram todos referidos como líderes comunitários no espaço de uma geração. A menção ao último chefe, preservada apenas em siríaco, diz o seguinte:

Sobre Kokabel, que era líder de duzentos, é dito que ensinou astronomia aos filhos dos homens, concernente ao movimento de translação, contando 360 dias.

Siam Bhayro foi enfático ao afirmar que “eles não são anjos” e que um

vigilante עירין / עיר era uma espécie de sacerdote que interpretava sonhos e previa o futuro, semelhante ao bārû babilônio11. Os fragmentos gregos de 1 Enoch

6:7 no comentário de Syncellus e no Codex Panopolitanus os descrevem como αρχοντων αυτων12. Ou seja, eram patriarcas (αυτων), chefes de clãs, que se reuniam em assembléia de forma análoga aos arcontes (αρχοντες) da Grécia. Portanto se, e

somente se, כוכבי אל for o clã de כוכבאל, esse é o tipo de vizinho13 que Enlil Ben Šaḥar encontrou em sua nova velha morada para a eternidade.

PANOS DE SEDA: No contexto de 1Q Isaª tanto o protagonista quanto

os repāim são enterrados em cisternas funerárias. Talvez todos estejam dentro da mesma cisterna, ocupando diferentes níveis14. À primeira vista parece que lá existia todo tipo de defunto, variando desde a múmia liofilizada (עמך הרגתה) até o mais maltratado, mas eu desconfio da prosopopéia onde pupas e larvas forram a cama dum defunto nas traduções das bíblias modernas.

Repare que em Êxodo 25:4 o bicho da seda (Bombyx arrindia)15 fazedor de panos tomou emprestado o nome hebraico do Kermes vermilio (תולעה),

9 MILIK, J.T. The Books of Enoch. Oxford, Oxford University Press, 1976, p 296. 10 BHAYRO, Siam. The Shemihazah and Asael Narrative of 1 Enoch 6-11: Introduction, text, translation and commentary with reference to Ancient Near Eastern and Biblical Antecedents. Germany, Ugarit-Verlag Münster, 2005, p 132. 11 BHAYRO, Siam. The Shemihazah and Asael Narrative of 1 Enoch 6-11. Germany, Ugarit-Verlag Münster, 2005, p 23. 12 BHAYRO, Siam. The Shemihazah and Asael Narrative of 1 Enoch 6-11. Germany, Ugarit-Verlag Münster, 2005, p 61. 13 Quando um fantasma é transformado em anjo pela tradição popular às vezes ele ganha a partícula El (אל) no fim do nome. Então não é impossível que o nome do anjo ḤLY’L (חיליאל) que aparece no Sepher Há-Razim III:47, junto com Baraquel e outros nomes conhecidos, tenha resultado do truncamento de HLYLY (היליל) com El (אל). (MORGAN, Michael A. Sepher Há-Razim: The Book of the Mysteries. California, Scholars Press, 1983, p 64 e 89). 14 Se por acaso todos fossem parentes de Kôkabel isso explicaria por que um tópico da tradição oral da cultura yazīdī, compilado por Isya Joseph em 1919, afirma que o ferreiro Aśael era na verdade um humano descendente em linha paterna de Šehar Ben Jebr. (JOSEPH, Isya. Devil Workship: The Sacred Books and Traditions of the Yezids. Boston, R. G. Badger, 1919, p 37-38). 15 Dicionários costumam indicar que o towla (תולעה) bíblico, citado em Êxodo 25:4 e Isaías 14:11, é a espécie chinesa Bombyx mori, mas, considerando que os egípcios e habitantes das áreas de influência cultivavam mamona roxa (Ricinus

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cujas fêmeas produzem corante carmesim, porque ambos são úteis ao ofício do tecelão. Portanto nada impede que o casulo (רמה) de towla (תולעה) citado em Isaías 14:11 se refira à matéria prima usada para produzir tecidos de seda. Assim podemos interpretar a frase תחתיך יצע רמה ומכסיך תולעה imaginando um caixão forrado de seda, com o ocupante coberto (ומכסיך) do mesmo pano.

Não está claro se Enlil Ben Šaḥar ostentava ataduras ou mortalha de seda ou ambas as coisas. O padrão iconográfico das imagens de Osíris, que normalmente servia de modelo para as vestes dos mortos no Egito, também era conhecido em Israel e se manteve estável durante cinco séculos.

Rosto duma estátua de Osíris esculpida em faiança (séc. 9

ou 10 a.C.) e estátua de bronze de Osíris (séc. 4. ou 5

a.C.) cujos pés e a serpente decorativa da coroa (uraeus) foram danificados. Ambas foram encontradas em Tel Dan.

Foram extraídas duas estatuetas de bronze de Osíris16 de um depósito

(favissa) do complexo religioso de Tel Dan soterradas numa camada datada entre os séculos 5 e 4 a.C. Outras peças depositadas num jarro na Área T incluíam restos de três estatuetas de faiança representando alguém segurando uma flor de lotos, uma pessoa ou divindade com um macaco no colo e uma cabeça de Osíris ornado com sua coroa branca e olhos pintados com o tradicional delineador preto17. Tudo isso indica que os israelitas conheciam o costume funerário egípcio onde os devotos seguravam flores de lótus, o deus

communis) para usar o óleo das sementes na iluminação, etc., e que outra espécie de bicho da seda (Bombyx arrindia) migrada da Índia habita a folhagem desta planta, eles certamente teciam a seda daqueles casulos gratuitos. 16 Embora esse não pareça ser o caso de Tel Dan, onde nenhuma representação de Osíris foi achada dentro de túmulos, às vezes aquele tipo de estatueta representava homens fantasiados. Isto acontecia muito no Egito: Neste mundo os símbolos da nobreza só podiam ser ostentados pelos faraós. Porém na morte o par de cetros (khereb e heqa) eram adereços de domínio público. Na tumba de Ihmotep, por exemplo, foi achada uma figura shabit devidamente paramentada com os cetros reais e a coroa branca para permitir ao espírito do arquiteto que reinasse numa realidade alternativa, num reino de faz de conta. (TIRADRITTI, Francesco & LUCA, Araldo De. Tesouros do Egito do Museu Egípcio do Cairo. Trd. Maria de Lourdes Giannini. São Paulo, Manole, 1998, 122). 17 BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 177 e 214.

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Thot comparecia na forma de um primata babuíno e, após invocar o Deus dos Mortos e os quarenta e dois juízes do tribunal divino, o espírito declarava merecer a vida eterna por não haver cometido pecados18.

PROTEÇÃO DO CAIXÃO: 1Q Isaª menciona algo que parece o nome

dum óleo inseticida. Fora de Isaías 14:4 existem somente duas outras menções a madhēbāh (מרהבה), nas linhas 3.25 e 12.18 do manuscrito 1QHª, ambas com sentido incerto, em paralelo a palavras que costumam ser traduzidas como “tumulto” e “ruína”19. A comunidade acadêmica não sabe o que isto é, mas é óbvio que madhēbāh estava revestindo o caixão dum instrutor de madeireiros que tinha a obrigação de saber que o óleo das sementes de Madhuca longifolia é bom para tratar madeira contra cupins.

Naquela época a árvore Madhuca longifolia era mais conhecida pelo seu nome sânscrito mấdava ( ), sendo cultivada no Egito e talvez numa cidadela rural não muito distante de Hazor, chamada Mādabā (מהדבא), citada na oitava linha da Estela de Mesha. Isso seria útil e barato para Enlil Ben Šaḥar. Logo, é possível que a palavra מרהבה seja a transliteração do sânscrito .

RESINA LACA: A décima linha da coluna XII de IQ Isaª menciona duas

vezes o termo לכה referente à resina laca secretada por algumas espécies de insetos dos gêneros Metatachardia, Laccifer, Tachordiella, Austrotacharidia, Afrotachardina, e Tachardina, entre eles o Kerria lacca que se reúne aos milhares em certas árvores e é comumente cultivado para produzir resina em escala industrial. Na primeira referência a resina laca foi processada para produzir goma laca e usada no clareamento da cavidade da cisterna funerária.

Na última referência a resina foi usada na produção de cosmético para passar na pele (עורה לכה). A mesma substância é utilizada em cosméticos até hoje, além de servir para tingir lã e seda.

Considerando que a goma laca é um verniz vermelho transparente, para clarear algo e/ou alguém com tinta e/ou cosmético seria necessário adicionar pigmentos claros (por exemplo, pó de giz ou cal) e outros ingredientes.

Resina secretada por insetos Kerria lacca. (Foto: 2012 © Jeffrey W. Lotz)

18 TIRADRITTI, Francesco & LUCA, Araldo De. Tesouros do Egito do Museu Egípcio do Cairo. Trd. Maria de Lourdes Giannini. São Paulo, Manole, 1998, 301. 19 SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 130, nota 1.

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LUZES ACESAS: É pena que não esteja descrito em detalhes o que foi feito quando Enlil Ben Šaḥar “pediu para iluminar” (אמרתה בלבבכה) uma cavidade cujo fundo poderia estar a oito ou nove metros de profundidade. O mais provável é que tenha usado lâmpadas de óleo extraído das sementes de rícino (Ricinus communis)20. Ele precisava de luz para enxergar o que fazia no interior da cisterna funerária e solicitou que seus assistentes iluminassem ali onde estava trabalhando, nivelando a terra arremessada para dentro do buraco e pintando. Acender fogueiras produtoras de fuligem ou tochas que deixam cair resíduos prejudicaria o trabalho de pintura do chão. Lâmpadas de óleo fariam menos fumaça sem produzir lixo. Lâmpadas de óleo eficientes foram achadas em abundância nos sítios arqueológicos de Tel Dan e Hazor.

JÓIAS MASCULINAS: A primeira pergunta deve ter sido dirigida ao anfitrião da solenidade, recém falecido, que estava vestido de forma tão perfeitamente adequada que os repāim exclamam admirados: “Até vossas jóias são como as nossas, para nos imitar!” (גם אתה חליתה כמונו אלינו נמשלת). O termo que descreve as jóias de Enlil Ben Šaḥar integrava o jargão específico do culto nos bāmoṯê, designando qualquer peça diferente de brincos que fosse composta por filamentos (compare חליתה com o feminino ו em Oséias 2:13). As jóias tradicionais de ocorrência mais freqüente em Tel Dan e Hazor eram compostas de contas de cornalina e faiança branca. Pedras brutas ou lapidadas de ágata, cristal, ametista, lapis lazuli e vidro existiam em menor quantidade. A prata e o ouro eram raríssimos. Os repāim concluíram que o imitador parecia bom o bastante para habitar entre eles. “Seu luxo desceu à cova” (הורד שאול גאונך) tal como um merecedor do título ‘elyōn (לעליון).

SACRIFÍCIO RITUAL: O livro dos sacrifícios das sombras (spr.dbḥ.ẓlm)

de Niqmaddu (KTU 1.161) diz que um sacrifício pacificador (šlm) foi realizado no cemitério (rpi.arṣ) de Ugarit para honrar os repāim (rpi) quando Niqmaddu faleceu. Considerando que o māšāl ou epitáfio móvel compilado em 1Q Isaa, coluna XII, linhas 6 a 23, descreve o mesmíssimo padrão de ritual funerário, é sensato supor que o mestre de obras e instrutor de madeireiros Enlil Ben Šaḥar também recebeu um sacrifício pacificador ou expiatório. O trecho onde afirmam que “todos os bodes deste chão” (כול עתודי ארץ) pertencem aos repāim sugere a preferência pelo sacrifício do bode (Capra hircus) e usa sentido figurado, como em Ezequiel 34:17 onde as diferentes castas israelitas são comparadas a ovelhas, carneiros e bodes. Desta forma o bode se confundia com o morto21.

20 O rícino (Ricinus communis) é uma euforbiácea conhecida pelos Egípcios como planta oleosa, usada na antiguidade

principalmente para iluminação. Na Ásia cultivava-se sobre a planta um determinado bicho da seda (Bombyx arrindia) e as folhas de rícino contêm um corante azul-turquesa. Heródoto (século v a. C.) atesta que o rícino se cultivava no Egito. Dioscórides (século I d. C.) também o menciona. No papiro de Ebers está escrito que o óleo de rícino se empregava como ungüento para o cabelo. 21 Figurativamente o bode era o chefe do clã ou da nação, mesmo que fosse um conquistador estrangeiro. Por exemplo, o Livro de Daniel narra um sonho profético sobre um gigantesco bode (צפ ר) que chifra as estrelas (כוכב ם ) do exército do céu (צב שמ ם) para derrubá-las (Daniel: 8:8-10). O anjo Gabriel explica que aquele bode estrangeiro representa a Grécia e as estrelas são todos os povos que os gregos chamavam de bárbaros (Israel incluso). Hyan Maccoby levantou a hipótese do sorteio do bode-expiatório e da pomba no rito de purificação do leproso substituir o sacrifício humano. (MACCOBY, Hyan. The Sacred Executioner. New York, Thames and Hudson, 1982, p 35-36). Noutro episódio bíblico os irmãos de José sepultaram-no vivo numa cisterna seca e executaram um bode (ש ר ז ם) para representá-lo na morte (Gênese 37: 22-31).

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A arqueologia comprova o costume de enterrar famílias importantes em covas coletivas onde depositavam oferendas, a exemplo da Tumba 1025 de Tel Dan, onde foram encontrados ossos de dois bodes ou ovelhas, um gamo (Dama dama), uma adaga e restos de outras oferendas22.

No texto em análise, extraído de 1Q Isaa, a carniça (נבלתך) assediada por insetos que zumbem (המית) é o animal sacrificado para convocar as almas dos repāim e conquistar a simpatia dos jurados que absolvem o morto. Horas depois da realização do despacho da oferenda, a carniça zune (המית נבלתך) ou

parece zunir por causa da reunião de insetos voadores. (Quando mais oferendas, mais moscas eram atraídas. É por isso que em II Reis 1:13 o clero israelita chama o deus de um bem sucedido templo de Ekon de “Senhor das Moscas”).

Moscas não sobrevivem em áreas situadas quatro mil metros acima do nível do mar, mas elas conseguem chegar ao Monte Hermon cujo pico tem menos de três mil metros. As cisternas funerárias tinham que ser lacradas com camadas de terra e pedra. Senão, além de assediar as oferendas, as moscas poriam ovos nas múmias. No Egito as moscas eram representadas em jóias, murais, etc. É preciso ter sensibilidade artística para reconhecer a beleza das formas e sons de um inseto tão perigoso para a saúde humana.

1) Estatueta de bode mais ou menos contemporânea achada em Hazor por Yigael Yadin dentro duma bolsa junto com uma estatueta de macaco, guizos, contas e pedras brutas23. 2) Pingente

de mosca de ouro achado no túmulo egípcio da Rainha Ahhotep, que morreu entre 1550 e 1525

a.C. (Peça do acervo do Museu do Cairo, JE 4694 = CG 52671). Pingentes idênticos eram dados como condecoração militar da “ordem das moscas douradas” oferecida pelo rei aos soldados

que se destacavam em batalha, inclusive contra os hicsos que supostamente ocuparam Israel24.

LOCALIZAÇÃO DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO: Analisando criticamente

o māšāl nós percebemos que é impossível confundir ‘elyōn (לעליון) com o epíteto de deus Elohim (אלהים). Certamente ‘elyōn se refere à altitude de Tel Dan, pois a cidade está situada numa área da Galiléia chamada de Galil Elyon Ou seja, o que lemos em Isaías 14:14 até hoje é uma expressão . ו ג))onde o falante promete que irá se comportar conforme os usos e costumes dos cidadãos que viviam na Alta Galiléia (אדמה לעליון), notadamente em Tel Dan.

22 BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994, p 57. 23 YADIN, Ygael. Hazor: The rediscovery of a great citadel of the Bible. Jerusalem, Weidenfeld and Nicolson, 1975, p

225. 24 LUCA, Araldo de; TIRADRITI, Francesco e outros. Tesouros do Egito. Trd. Maria de Lourdes Gianni. São Paulo,

Manole, 1998, p 286.

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Resumindo: Não há guerra no céu. Traduzir על במתי עב por expressões surrealistas como “subirei acima das nuvens” não faz o menor sentido. Acontece que עב é um termo incomum para nuvens. Este vernáculo costuma indicar uma floresta ou a terra barrenta encharcada pela chuva.

Definitivamente bāmoṯê (במתי) também não é o verbo subir. E eu não seria a primeira pessoa a imaginar que todos os tradutores “podem ter optado pela omissão de uma palavra incompreensível25”. O fato do plural bāmoṯê anteceder o singular ‘āḇ demonstra tratar-se de um conjunto de coisas menores dentro de uma coisa maior. Ou seja, o sítio arqueológico pode ser reconhecido pela existência de mais de um bāmāh dentro da cidade escondida na floresta.

O bāmāh era um altar ao ar livre26 numa cidade rodeada por uma reserva ecológica27. A raiz bāmâ se refere aos órgãos internos, lombo ou parte do corpo de um vertebrado que tenha bastante carne, preferencialmente localizada na parte inferior do corpo, mais preferencialmente ainda na parte traseira. Os altares de YHWH (único deus mencionado neste texto) foram chamados de bāmoṯê porque funcionavam como uma espécie de churrasqueira e eram neles que os sacerdotes sacrificavam e coziam os animais28. Somente o sacrifício expiatório não era comido pelos ministros religiosos e suas famílias.

Está escrito que o lugar freqüentado por Enlil Ben Šaḥar ficava na pedreira ao norte (בירכתי צפון) da montanha da congregação (בהר מועד). No Salmo 48:3 a expressão yarkethê ṣāpôn (ירכתי צפון) se repete, provavelmente se referindo ao mesmo sítio arqueológico. Diante do exposto parece seguro afirmar que este local seja Tel Dan: Única cidade fortificada israelita possuidora de altares (bāmoṯê), escondida na floresta, no sopé do Monte Hermon. Nela tudo foi construído com pedregulhos empilhados. Talvez seja por isso que em 1Q Isaª existe um contraste vertical entre as expressões “pedras ao norte” Mais que isso: Antes do .29(ירכתי־בוד) ”e “pedras da cisterna (ירכתי צפון)andarilho subir a pé na direção norte ele deveria estar na cidade situada mais abaixo e ao sul, chamada Hazor, onde aparentemente residia ou trabalhava.

DATAÇÃO DA NARRATIVA: Embora a datação do couro do manuscrito

disponível (150-100 a.C.) ultrapasse em demasia a data presumível dos fatos narrados, o epitáfio de Enlil Ben Šaḥar obviamente provém de uma época em que ainda se fazia juízo de valor positivo dos bāmoṯê “que tanto nojo causavam aos últimos profetas30” e era permitido sepultar os mortos no fundo seco duma cisterna na pedreira (אבני בור), descidos pelo orifício da cisterna (ירכתי בור).

Considerando o conteúdo do prólogo nós poderemos supor que o Rei de Babel não recebeu o segundo documento (relativo a fato ainda não acontecido) e que Enlil Ben Šaḥar morreu depois do início da reforma de Tel Dan, começada por volta de 789 a.C., e antes do mês de setembro de 745 porque foi nesta 25 VAUGHAN, Patrick H. The Meaning of ‘Bāmâ’ in the Old Testament: A study of etymological, textual and archeological evidence. London, Cambridge University Press, 1974, p 89, nota 2. 26 LWRY, Samuel. Maṣṣēbāh and Bāmāh in 1Q IsaiahA 6:13. Em: Journal of Biblical Literature, vol. 76, nº 3 (setembro de 1957), p 225-232. 27 FRAZER, J.G. El Folklore em el Antiguo Testamento. Trd. Gerardo Novas. México, Fondo de Cultura Econômica, 1981, p 452-459. 28 A forma de construir e administrar o altar de sacrifícios é descrita no Livro do Êxodo, do capítulo 25 ao 31. 29 JENSEN, Joseph. Helel Ben Shaḥar (Isaiah 14:12-15) in Bible and Tradition. Em: BROYLES, Craig C. & EVANS, Craig A. Writing and Reading the Scroll of Isaiah: Studies of an interpretative tradition. New York, Brill, 1997, p 341 30 FRAZER, J.G. El Folklore em el Antiguo Testamento. Trd. Gerardo Novas. México, Fondo de Cultura Econômica, 1981, p 458.

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data que Nabonasar rompeu a aliança da Babilônia com a jurisdição de Israel31 e sem um pacto de aliança não haveria razão para um israelita peticionar ao Rei de Babel solicitando parecer jurídico sobre o tópico da alforria de escravos32.

A referência a um grande abalo sísmico ( ארץה no documento em (המרגיז anexo remete à época do reinado de Jeroboam II em Israel (789-748) e Uzziah em Judá (785-733), quando um terremoto de magnitude estimada por volta de 8.2 na escala Richter despedaçou as casas das pessoas em Hazor33 e Tel Dan34, entre outros sítios arqueológicos. Se o registro constante numa das fontes de Flávio Josefo estiver correto, aquele tremor de terra específico aconteceu no ano 733, quando causou a queda de uma pedra do teto de um templo sobre a cabeça de Uzziah e incapacitou o antigo rei de Judá para o exercício do governo. (Antigüidade Judaica, Livro 9, capítulo 10: 225-226)35.

MORTE PREMEDITADA: De acordo com Raymond Leeuwen o verbo ḥlš (חלש) é o antônimo de gbr (גבר) e ambos representam o fracasso ou a vitória em qualquer situação36. Embora não seja dedutível a priori, a proposta de traduzir o verbo ḥlš (חלש) como o ato de perder a partida num jogo parece encaixar no contexto de IQ Isaª e é a única hipótese que não exige nenhuma emenda ou rasura na frase. A informação sobre o uso diplomático dum jogo de azar seguido da morte do perdedor, no contexto de Isaías 14:12, provém de um debate entre rabinos registrado no Codex Munich 95 (1369), pertencente ao acervo da Biblioteca de Munique (Nº. 236). Nesta cópia do Talmude foi firmado consenso de que o jogo supostamente descrito era o mesmo praticado entre a classe sacerdotal e as famílias judaicas medievais para repartir a comida. (Shabbos, 149b)37. Investigando as motivações de outros sorteios seguidos de morte fica demonstrado que o jogo aparece como uma solução extrema38 para o estado de necessidade. Por exemplo, Josué sorteou um soldado para expiar a culpa coletiva do exército pela derrota de Israel na primeira batalha contra Hai. Logo depois suas tropas venceram a guerra (Josué 8:29).39

31 A antiguidade do estreito relacionamento entre Babilônia e Israel está atestado pelo obelisco de Kalah, exposto no Museu Britânico, que retrata Jeú (842-815), rei de Israel, prostrado diante de Salmanasar III, pagando-lhe tributo. (SAMPAIO, Fernando G. A História do Demônio. Porto Alegre, Garatuja, 1976, p 28). 32 O cânon hebraico moderno exclui o verbo ultrajar (מקומם) de Isaías 14:3, existente no manuscrito 1Q Isaª. O termo no tempo perfeito, reflexivo, com sufixo. De acordo com o prólogo, a Casa de (יחלוה) é o verbo mendigar והתנחלוםJacó (בית יעקוב) costumeiramente escravizava o ḫapiru (עברי): Obreiro ultrajado e reduzido à mendicância. O remetente israelita desejava que o Rei de Babel atuasse como árbitro na solução do conflito, mantendo o direito dos pais que pagassem o resgate das mães de filhos comuns. A referência וררים בנוגשיהם (1Q Isaa) ou 4) וררו בנוגשיהםQ Isac) diz respeito aos filhos das escravas, futuros mestres de obras ( גשנו ). Neste tópico, R. Ḥiyya comenta sobre Isaías 14:2 que era permitido manter relacionamento sexual com uma escrava após o terceiro mês de cativeiro. (PISKA 12:17. Em: BRAUDE, William G. Pĕsiḳta dĕ-Raḇ Kahăna. Philadelphia, The Jewish Publication Society, 2002, p 322). 33 YADIN, Ygael. Hazor: The rediscovery of a great citadel of the Bible. Jerusalem, Weidenfeld and Nicolson, 1975, p 149-150. 34 BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalém, The Israel Exploration Society, 1994, p 254. 35 JOSEPHUS, Flavius. The Works of Josephus. Trd. William Whiston. USA, Hendrickson, 1987, p 260-261. 36 LEEUWEN, Raymond C. Van. Isa 14:12, Ḥôlēš ‘al gwym and Gilgamesh XI, 6. Em: Journal of Biblical Literature, Vol. 99, Nº 2 (Jun., 1980), p 176-177. 37 GOLDWURM, R' Hersh (ed.) Talmud Bavli: Tractate Shabbos. Brooklin, Artscroll, 2004, 149b3. 38 Um exemplo extremo: Flávio Josefo narrou a estória de certas famílias que se impressionaram de tal forma com a declaração da guerra na primavera do ano 73 que resolveram evitar o sofrimento maior optando por morrer antes da chegada do exército romano. Eles elegeram por sorteio dez homens que os matariam. Cumprida esta tarefa, os dez eleitos tiraram a sorte novamente para selecionar um ente eles para abater aos outros nove. Finalmente o último cometeu suicídio. Este episódio foi testemunhado por uma idosa que se escondeu numa caverna subterrânea para escapar do martírio coletivo (Guerra Judaica, Livro 7, Capítulo 9: 395-397. Em: JOSEPHUS, Flavius. The Works of Josephus. Trd. William Whiston. USA, Hendrickson, 1987, p 769). 39 TIERNEY, Patrick. O Altar Supremo: Uma história de sacrifício humano. Trd Dílson Bento de Faria Lima. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993, p 418.

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Na frase נגדעתה לארץ חולש על גוי (Col XII:14), se o verbo ḥlš (חלש) se referir a um jogo de azar isto deve ser interpretado como o episódio da morte do indivíduo “sorteado pelas costas”. Se Enlil Ben Šaḥar existiu nós sabemos que o lugar onde ele afirmou que subiria é um sítio arqueológico hoje chamado de Bamah B na Área T ao norte de Tel Dan. Cerca de quinze metros a sudoeste do bāmāh existe um altar coberto (sala 2844). Provavelmente ele esperou ali enquanto os sacerdotes tiravam sua sorte dentro de outro cômodo (Nº 9024) anexo ao muro. Por esta razão creio que a melhor interpretação da frase seja: “Você se prostrou ao solo [enquanto o sacerdote jogava o dado longe de sua vista], sorteado pelas costas”. O escriba que registrou o suposto pensamento dos repāim sobre esta situação desconfia do jogo de azar e põe na boca dos santos aquilo que não poderia dizer de outra forma: Que o resultado foi manipulado e que o próprio sacerdote estaria de má fé.

A desconfiança foi motivada pelo fato de Enlil Ben Šaḥar não ver o jogo, precisando permanecer numa posição de prosternação total similar à aṣṭāṅga dos hindus onde mãos, peito, fronte, joelhos e pés tocam o solo. Ele ficou deitado num chão de barro batido pintado com a mesma tinta usada para pintar o lugar dos mortos, diante de um altar rasteiro composto de cinco pedras mal arrumadas. Ali se queimava carne e incenso. Ao invés de rodar um pião de marfim de dente de hipopótamo decorado com trevo de quatro folhas (tradição antiga) o sacerdote provavelmente usou este dado de faiança azul (costume novo), cuja soma de cada lado com o seu oposto é igual a sete:

Esta é a foto do único dado encontrado entre as pertenças do sacerdote

armazenadas num cômodo conexo ao norte da sala do altar40. Repare que as faces 1 e 5 são convexas e, portanto, este dado é notoriamente viciado. O resultado do jogo – possivelmente realizado pelo sacerdote Immadiyo, em cujo cômodo particular encontraram o referido dado – foi tão ruim41 quanto o prognóstico do Maskīl de Ḫirbet Qumrân na carta entregue ao clã Bnei Šaḥar onde o próprio líder comunitário informa que deus “rebaixou o lugar de Šaḥar” .42(בתהום מת]חת]) ”para o “mais profundo abismo ([מת[חת שם השחר)

40 O arqueólogo Avraham Biran descreveu a descoberta da seguinte forma: “North of the altar room was a small annex reached though a doorway 90 cm wide, with an ashlar sill. Here we found a die made of blue faience or frit which may have served the priests in divination. The spots indicating the numbers are inlaid in white and every two opposing facets add up to the number seven” (BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 199). 41 Talvez essa família tivesse tanto azar porque a profissão de “mestre de obras” (נוגש) era herdada de pai para filho. De acordo com o parecer de Francesca Stavrakopoulou sobre Josué 6:26 e 1 Reis 16:34, os construtores estavam expostos ao regramento ético da classe e, à época, era esperado que eles fossem capazes de proteger suas obras ofertando sacrifícios humanos: Quando o arquiteto Hiel reconstruiu Jericó ele foi amaldiçoado ante YHWH e incumbido de sacrificar dois de seus filhos. Abiram, o primogênito, foi enterrado sob a pedra de fundação. Seu irmão Segub foi enterrado sob o portão principal da cidade. (STAVRAKOPOULOU, Francesca. King Manasseh and Child Sacrifice: Biblical Distortions of Historical Realities. New York, Walter de Gruyter, 2004, p 186-187). 42 4Q Mysteriesª (4Q298). Em: MARTÍNEZ, Florentino García & TIGCHELAAR, Eibert J. C. The Dead Sea Scroll Study Edition: Volume 1 (1Q1 – 4Q273). New York, Brill, 1997, p 656-657.

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Sabendo que morreria em breve, Enlil Ben Šaḥar começou a preparar a cisterna funerária propícia elevando o nível, pintando, mobiliando com caixão, etc. Ele deve ter enchido o lugar de jarros e coisinhas. Então morreu de causa desconhecida. A ocorrência dos verbos nafalta נפלתה e ḥlš חלש tão próximos implica na dedução lógica de que ele enfraqueceu após haver sido forte.

NÃO HÁ NECESSIDADE DE ACATAR A HIPÓTESE DE SACRIFÍCIO

HUMANO: Creio que traduzir o verbo ḥlš (חלש) como o prognóstico negativo da leitura ritualística de um jogo de azar que previu a morte do consulente não implica em aceitar a hipótese de sacrifício humano43 sugerida pelo Talmude em Shabbos, 149b. Em última analise o sacerdote Immadiyo, ou outro, pode ter previsto a morte do consulente no jogo e acertado por coincidência.

Quantas vezes os quiromantes modernos vêem que a linha da vida acaba em tal época? E quantas vezes pessoas que jogam tarô tiram a carta da morte? Não é difícil acertar que fulano morrerá em breve quando a queixa indica que o consulente pegou uma pneumonia ou outra doença grave andando na neve.

SIGNIFICADO DO NOME DE ENLIL BEN ŠAḥAR: Em hebraico o imperativo היליל é uma forma relacionada (hiph'il) do verbo chorar44. Naquela época o cuneiforme illil, comumente aportuguesado para Enlil, era o nome de um monte de pessoas, fantasmas, deuses, etc.45, assim como hoje Maria é nome de um monte de portuguesas, beatas, santas, etc. Por isso creio que Enlil Ben Šaḥar seja um nome próprio masculino singular que não deve ser traduzido nem interpretado, mas sim transliterado. Para todos os israelitas era prática normal alguém ser conhecido como o filho de seu pai. A inclusão de um patronímico geralmente indica ou insinua que a pessoa seja de alto status social46. Logo, certamente Enlil é intitulado Ben Šaḥar por ser filho legítimo de um homem chamado Šaḥar47. (A propósito, a análise filológica comprovou que o escriba de 1Q Isaª também pertencia ao clã Bnei Šaḥar48, não sendo impossível que Enlil fosse tataravô do tataravô do pai do seu último biógrafo).

43 O sacrifício expiatório de seres humanos em Israel não foi comprovado. Enquanto a historiadora Francesca

Stavrakopoulou, entre outros, afirma que a Bíblia descreve tais sacrifícios, Avraham Biran, entre outros, rebate que inexistem inequívocas provas arqueológicas da realização de sacrifícios humanos. 44 GESENIUS, Wilhelm. Commentar über den Jesaia. Leipzig, Friedr. Christ. Wilh. Vogel, 1821, p 480. 45 GALLAGHER, Willian R. On the Identity of Helel ben Sahar of Is. 14:12-15. Em: Ugarit-forschungen, nº 26. Alemanha, Verlag Butzon & Bercker Kevelaer, 1994, p 145. 46 GOODMAN, Martin. A Classe Dirigente da Judéia: As origens da revolta judaica contra Roma, 66-70 d.C. Trd. Alexandre Lissovsky e Elisabeth Lissovsky. Imago, p 124. 47 Este nome próprio masculino singular deriva do substantivo šaḥar (שחר), referente à coloração multifacetada que o céu assume durante o crepúsculo e a aurora. No idioma dos índios tupi o mesmo fenômeno era chamado de “céu vermelho” (ibiporanga). Gibson se equivocou ao associar este Šaḥar, pai de Enlil, com o semideus Šaḥar, meio-irmão de Šalem, mencionado nas placas CTA 23 e KTU 1.23 de Ugarit. (GIBSON, J. C. L. Canaanite Myths and Legends. London, T & T Clark, 2004, p 29, nota 1). Pelo abismo temporal que separa ambas as fontes aquele ente mitológico pode ser, na melhor das hipóteses, somente o pai hipônimo do clã Bnei Šaḥar. 48 Em Ḫirbet Qumrân existe uma montanha cheia de cavernas que funcionava como um shopping de manuscritos. Nós sabemos que a livraria-editora (אוצר בינות) da quarta caverna pertencia ao clã dos Bnei Šaḥar (בני שחר), emigrado de Israel, pois eles guardaram uma missiva criptografada, notóriamente de caráter privado, contendo “palavras do Maskīl para todos os Bnei Šaḥar” ([דבר]י משכיל אשר דבר לכול בני שחר). (4Q298. Em: MARTÍNEZ, Florentino García & TIGCHELAAR, Eibert J. C. The Dead Sea Scroll Study Edition: Volume 1. New York, Brill, 1997, p 656-657). A análise filológica determinou que os manuscritos catalogados como 1Q Isaa e 1QS, achados na 1ª caverna, foram escritos em ortografia idêntica à da fonte donde foi copiado 4Q Enc, produzido para o comércio na 4ª caverna. (MILIK, J.T. The Books of Enoch: Aramaic Fragments of Qumrân Cave 4. Oxford University Press, 1976, p 23). Portanto é provável que a narrativa do funeral de Enlil Ben Šaḥar tenha sido preservada, copiada e vendida pelo próprio clã dos Bnei Šaḥar. Eles também são autores de todas as cópias dos livros de Enoch (somente descobertos naquela loja).

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CETRO QUEBRADO: A frase שבר יהוה מטה רשעים שבט מושלים descreve um cetro quebrado. Está escrito: “Quebrou-se [o cajado de] YHWH [chamado de] cetro pacificador, [e] báculo dos legisladores”. Se Enlil Ben Šaḥar existiu nós sabemos que o lugar onde ele afirmou que subiria é um sítio arqueológico hoje chamado de Bamah B na Área T ao norte de Tel Dan. Este templo foi erigido durante o reinado de Ahab, por volta de 860-850 a.C. Ele foi atacado durante a guerra contra os arameus, no início do séc. 8 a.C., e reformado a mando do rei Jeroboam II, que subiu ao trono em 785 a.C., defendeu Israel e conquistou várias nações. Cerca de quinze metros a sudoeste do bāmāh existe um altar coberto (sala 2844). Provavelmente Enlil Ben Šaḥar esperou ali enquanto os sacerdotes tiravam sua sorte jogando um dado dentro de outro cômodo (Nº 9024) anexo ao mesmo muro que protege o bāmāh.

A única peça que restou dum cajado quebrado jazia enterrada debaixo das pedras do altar do templo, onde recebia oferendas. Seria o cetro de YHWH?

FIGURAS: 1) Peça oca de bronze achada sob o altar na sala 2844. Pode ser o topo de um cetro

ou talvez as quatro cabecinhas de leão prendessem mais alguma coisa acima. 2) Altar dentro da sala 2844 na Área T ao norte de Tel Dan. A fotografia foi tirada por Avraham Biran durante

as escavações, antes da alteração do aspecto do sítio arqueológico pela remoção do altar e seus utensílios. (Fotos © Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion).

Em 1989 a expedição arqueológica de Avraham Biran descobriu a sala

2844 soterrada sobre extratos de terra de diferentes épocas. Na camada que preservou resquícios da época que interessa a este artigo foi descoberto um jarro cheio de cinzas de incenso e restos de ossos, três pazinhas de ferro usadas para mexer oferendas no fogo e depositar as cinzas naquele jarro, mais um altar composto de cinco pedras. Quando o altar foi removido para exibição no Skirball Museum foi descoberta a peça de bronze dum cetro de madeira! Por óbvio, enterrar um cetro debaixo dum altar significava fazer com que o objeto fosse costumeiramente adorado como um deus e recebesse as oferendas.

Intrigado, seu descobridor Avraham Biran percebeu a semelhança entre a peça de bronze extraída do altar da sala 2844 e o topo dum cetro portado por uma deusa anônima representada numa imagem produzida pelo rolamento de um sinete cilíndrico datado por volta de 2360-2180 a.C.49 Ele declarou:

When we removed the stones of the altar for exhibition in the Skirball Museum in Jerusalem, the head of a scepter was discovered on the floor below.

49 A deusa entronada que porta o outro cetro de formato incomum está sentada diante de um devoto que segura uma criança enquanto entorna o conteúdo líquido de uma taça sobre as chamas do altar. Atrás dele há uma fila de espera. (New York, Pierpont Morgan Library. Impressão de sinete cilíndrico. Altura: 3,7 cm; Diâmetro 2,5 cm. Corpus, 245). O cetro dela não parece com o de nenhum governante humano, mas também não parece tanto assim com este.

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Made of bronze and hollow in the center, it is 9 cm. high and 3.7 cm. wide. Four badly corroded figures, possibly representing lion heads, jut out from the top of the artifact. Below the figures, three circular grooves from four veins, or rings, a motif that appears three more times on the scepter head. The middle section consists of a protruding bronze ring with silver leaves, and the base is a protruding flange. The discovery of the scepter head caused much excitement, for here was the head or top of a scepter similar to those held by kings and priests — and in the least one case, by a goddess50.

Scepter heads have been found in a number of excavations. (…) Some especially significant scepter tops were discovered by Henry Layard in 1850 in the northwest palace of Nimrud in Mesopotamia. These scepter tops were also made of bronze, sometimes inlaid with iron. Inscribed names appeared on four of them. It is possible that a name — or something else — is inscribed on our scepter head. We will know for sure only after experts remove the corrosion on the scepter head and complete their laboratory analysis.

Scepters appear most commonly in ancient texts and glyptic art as symbols of earthly rules, but in at least one case a cylinder seal displays a scepter in the hand of a goddess. Because our scepter head was found beneath an altar we can speculate that it may have belonged to a priest at Dan. Perhaps future finds will substantiate this conjecture51.

Esse objeto cuidadosamente velado e adorado poderia estar relacionado

a YHWH de forma direta (se pertenceu a uma estátua de YHWH) ou indireta (se era um espólio de guerra cuja vitória fora atribuída à proteção de YHWH). A ambigüidade do escriba que fala em cetro pacificador (ם שר טמ) e báculo dos legisladores (ם שמ טבש), confusamente, advém da incapacidade da testemunha de enxergar debaixo do solo do altar da sala 2844 – onde só havia os restos dum único cetro –, estando acostumado a ver cetros em pares sendo chamados por adjetivos análogos, a exemplo dos paramentos do Príncipe da Morte citados num tablete achado em Ugarit:

mt.wšr.ytb. bdh.ḫṭ.tkl. bdh ḫṭ.ủlmn.

Mot e Šar quedaram. Numa mão o cetro do luto. Noutra mão o cetro do véu de viúva52.

Pode não ser inútil mencionar a existência de um mito universal sobre

cetros capazes de dar aos seus detentores o poder de convocar e comandar os mortos. No século X o geógrafo árabe Massudi registrou a descoberta de um templo, numa montanha da Boêmia, onde “previa-se o futuro e conjurava-se a má sorte”. No centro da estrutura erguia-se “a estátua de um velho apoiado num cajado que lhe servia também para fazer saírem esqueletos de túmulos53”. Numa obra indiana do séc. VI o “cetro da morte” é um “estranho cetro adornado com um crânio no topo” que pertenceu ao deus da morte, Yama, até o dia em que ele foi assassinado pelo maligno Mahiṣa. O espólio foi reivindicado

50 BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 198. 51 BIRAN, Avraham. Tel Dan Scepter Head. In: BIBLICAL ARCHAEOLOGY REVIEW. January/February 1989, p 31. 52 CTA 23:8. Em: Gibson, J. C. L. Canaanite Myths and Legends. Londres, T & T Clark, 2004, p 123. 53 PENROSE, Valentine. A Condessa Sanguinária. Trd. Regina Grisse Agostinho. São Paulo, Paz e Terra, 1992, p 30.

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por Kᾱlῑ, a deusa da guerra, que complementou seu terrível visual adornando-se com um colar de cabeças encolhidas (Devῑ-Mᾱhᾱtmya 2.22 e 7.6)54.

CONCLUSÃO: Os antigos egípcios acreditavam que o espírito humano é composto de três partes chamadas ka, ba e akh. Quando morremos o akh vai a julgamento na corte celeste enquanto os dois outros elementos permanecem na terra. Uma múmia dotada de ka, ba e akh é auto suficiente. Por outro lado, a que teve o akh condenado à segunda morte é estraçalhada pelos espíritos famintos. O ba era representado por um homem pássaro. “Ele podia esvoaçar à vontade, mas sempre retornava ao cadáver, seu perpétuo poleiro”55.

Em Ugarit e Israel existia um esquema idêntico onde o morto era chamado de rāphā (plural repāim). J. N. Ford compilou e publicou um vasto material sobre o chamamento dos repāim no estimado periódico acadêmico Ugarit-Forschungen56. R. Mark Shipp traduziu o Livro do Sacrifício das Sombras (RS 34.126/KTU 1.1161) do Rei Niqmaddu, que é o único exemplar completo dum rito igual ao resumo de 1Q Isaª (Col XII, linha 6-17) que se tem notícia57.

Assim como os egípcios escreviam livros dos mortos, em Ugarit redigia-se um texto convidando os residentes veteranos da “cidade dos repāim” (rpi arṣ) – cemitério, necrópole ou cisterna funerária – a recepcionar o novato. O titulo hebraico que 1Q Isaa deu a este tipo de documento foi māšāl (המשל), mas o nome da congregação dos repāim permaneceu inalterado. Primeiro o ministro religioso fala com quem irá depositar o recém falecido na cisterna funerária e recolocar a pedra que serve de tampa sobre a cisterna:

Entoai lamentações [pelo falecimento — ואמרת איכה שב נוגש שבתה מרהבהdo ente querido durante o funeral], feche [a tampa da cisterna onde] o mestre de obras jaz deitado sobre [um caixão de madeira dedetizado com óleo de sementes de] mấdava (Madhuca longifólia) [e] ore [desta maneira]:

מכה עמים בעברה מכת בלתי סרה רודה באף גואים מרדף בלי חשך YHWH quebrou o cetro da — שבר יהוה מטה רשעים שבט מושליםcondenação, báculo da pacificação [que jaz enterrado abaixo do altar]. [Saiba que] uma ventania furiosa e incessante castigava aquela equipe inabalável. [Enlil Ben Šaḥar não se intimidou com o perigo e] perseguiu os companheiros com firmeza, sem arroxear [de frio]! הארץ פצחו רינה Toda área estava silenciosa. Rinnah58 podou [um — שקטה נחה כולcipreste pensando que fosse um cedro e o instrutor fez mofa ironizando a situação. Daí a prosopopéia:]

ברושים שמחו לך ארזי הלבנון מאז שבתה ולוא יעלה הכורת עלינו Até seus Cedros do Líbano (Cedrus libani) se alegraram — גםpelo cipreste (Cupressus sempervirens). [As árvores favorecidas

54 COBURN, Thomas B. Encontering the Goddess: A translation of the Devῑ-Mᾱhᾱtmya and a study of its interpretation. Ney York, State University of New York, 1991, p 41 e 61. 55 A ERA DOS REIS DIVINOS: 3000-1500 a.C. Trd. Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro, Abril, 1991, p 74. 56 FORD, J. N. The “Living Rephaim” of Ugarit: Quick or Defunct? Em: Ugarit-Forschungen, Band 24 (1992), p 73-101. 57 RS 34.126/KTU 1.1161, linha 18. Em: SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 57. 58 Estou em dúvida se Rinnah é o nome do discípulo inepto que confundiu madeira de cedro com cipreste de baixo valor ou se o mestre chamou-o de “palhaço”. Nos tempos bíblicos Rinnah (רינה) era um nome masculino proveniente do radical רנה (alegria) e indica um “cantor alegre”. Um dos descendentes de Judá tinha este nome (I Crônicas 4:20).

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pelo erro deveriam estar a falar com as desfavorecidas]: “Desde quando desabaste nenhum lenhador subiu para nos cortar!”

Algum parente ou conhecido narrou um episódio que revela a coragem,

resistência física, perícia técnica e o bom humor do falecido diante de tarefas perigosas, estafantes e dificílimas. O mestre de obras (נוגש) instruiu um grupo de companheiros (גואים) sobre como escolher, identificar e coletar madeira para a construção civil. Pode-se dizer que eles eram estagiários aprendendo um ofício sob a supervisão do instrutor. Os jovens madeireiros tinham um medo justificável do vento que uiva. Nas partes mais importantes da cordilheira do Líbano (לבנון) a ventania é mais perigosa do que a neve e pode congelar alpinistas ineptos em poucos minutos. Estudos demonstram que ventos de cinqüenta quilômetros por hora são comuns quando o tempo está bom, ao passo que as geadas atingem velocidades particularmente destrutivas que vão de cem a cento e cinqüenta quilômetros por hora59.

Isso é o bastante para erodir pedras, mas os obreiros itureus e israelitas aprenderam a domar o vento para explorar recursos naturais nas montanhas. Eles estudavam as direções onde venta mais e projetavam paredes reforçadas em assentamentos temporários que sobem até acima dos 2.000 metros. Enlil Ben Šaḥar era um dos homens que andavam por ali tranqüilos e fazendo piadas sobre os ineptos que confundem cipreste barato, vulgarmente conhecido como “cedro bastardo”, com o cedro verdadeiro que ele saberia identificar... Nada poderia ser mais heróico que a atitude deste trabalhador destemido!

O problema é quem vive essa viva pode morrer de mil causas diferentes e de alguma coisa ele morreu. Então escreveram o chamamento dos repāim (mortos antigos) para recepcionar o mais novo rāphā (recém falecido). Ainda deve existir uma cópia do modelo original deste texto escrito em proto-hebraico perto do caixão de Enlil Ben Šaḥar, se a erosão não houver destruído:

O subsolo da necrópole foi clareado com verniz de — שאול מתחת רגזה לכהgoma laca. עורה לכה — A pele foi pintada com cosmético feito à base de resina laca. לקרת בואך — A cidade te recepciona60. כול מלכי גואים !Todos os bodes da região — כול עתודי ארץ !Repāim — רפאים אליך !Todos os grandes reis levantaram dos seus tronos — הקימה מכסאותם :Todos se cumprimentam, questionando mutuamente — כלם יענו ויאמדו ,Até vossas jóias são como as nossas“ — גם אתה חליתה כמונו אלינו נמשלתpara nos imitar?” הורד שאול גאונך — “Seu luxo desceu à necrópole!” נבלתך .Sua [oferenda de] carne zune [pela reunião de insetos voadores] — המית Abaixo [tecidos feitos de] casulos [de bicho — תחתיך יצע רמה ומכסיך תולעהda seda] forram sua cama, um cobertor de seda! Enlil Ben — היך נפלתה מהשמיש היליל בן שחר נגדעתה לארץ חולש על גויŠaḥar perdeu o jogo! Você se prostrou ao solo azarado pelas costas? Você pediu para iluminarem [o interior da cisterna — אתה אמרתה בלבבכהfunerária]. השמים אעלה ממעלה לכוכבי אל — Informou a subida do nível de terra acima [daquele onde jazem] os santos astrônomos (kôchevêi’el).

59 DAR, Shimon. Settlements and Cult Sites on Mount Hermon, Israel: Ituraean culture in the Hellenistic and Roman periods. Trd. M. Erez. (BAR International Series 589). Oxford, Tempus Repartvm, 1993, p 7. 60 No códice Firkovich B19A verifica-se a substituição de עורה por עורר que, em sentido jurídico, indica o ato de apresentar uma contestação como defesa processual.

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Fiz meu jazigo e preparei meu“ — ארים כסאי אבל בהר מועד בירכתי צפוןfuneral na montanha da solenidade [que é o Monte Hermon], na pedreira ao norte [da cidade]. אעלה על במתי עב אדמה לעליון — Subi aos altares (bāmoṯê) ocultos pela floresta, me radiquei na Alta [Galiéia]”. Então para a necrópole foi descido, para o — אך אל שאול תורד אל ירכתי בורfundo do orifício da cisterna.

A meu ver a narrativa do funeral de Enlil Ben Šaḥar termina neste ponto,

pois o documento descreve a morte de um cidadão conjugada com um funeral bem sucedido, perfeito e completo, com direito a leitura do tradicional texto do chamamento dos repāim e avaliação favorável. Pois assim como os egípcios escreviam livros dos mortos, muito cedo, em Ugarit, as famílias dos finados já escreviam “Livros do Sacrifício das Sombras”61, invocando os repāim para um banquete de oferendas durante o qual era julgada a aptidão dos recém falecidos para unir-se a eles62. Em 1Q Isaa o narrador assegura a Enlil Ben Šaḥar que “os repāim contestam por ti” (עורה לכה רפאים). Ou seja, os outros mortos peticionam perante YHWH assegurando a integridade moral do recém falecido durante seu julgamento da mesma forma que os quarenta e dois juizes do tribunal divino egípcio faziam perante Osíris.

Shlomo Yitzḥaqi cita um fragmento do livro Shem Ephraim, onde o anjo da morte acorda e agrupa os repāim no contexto de Isaías 1463. De acordo com J. T. Milik, o comandante dos repāim israelitas era o anjo Rafael ( פ .64(ר

EPÍLOGO: Pouco tempo depois da morte de Enlil Ben Šaḥar o cômodo

onde o sacerdote Immadiyo tirava a sorte dos consulentes foi soterrado por uma enxurrada de lama. Isto preservou o dado e outros objetos para nós vermos, mas o sacerdote perdeu tudo que tinha. Anos depois, em 733 a.C., a própria cidade combaliu durante um grande abalo sísmico ( ארץה e o (המרגיז caso foi anotado abaixo da narrativa do funeral de Enlil Ben Šaḥar por causa da pertinência temática (ambos os documentos falam sobre repāim e cisternas funerárias). Não traduzirei o documento anexo, pois é impossível que Enlil Ben Šaḥar, pré-morto, tenha participado da catástrofe. Ele morreu num prazo variável de doze a cinqüenta e seis anos antes. Contudo os espíritos vivem para sempre e, em 733 a.C., todos os repāîm pré-mortos foram advertidos por um vidente ou profeta a nunca mais revelar o nome da semente que fraciona as pedras (הרגתה לוא יקראו לעולם זרע מרעים). De acordo com um conto folclórico do Talmude a função do Rei dos Mortos65, construtor de cisternas, era revelar o nome aramaico da espiga shamir (שמירא) e ensinar como o pássaro Duchifat (Upupa epops) a usava: “ומנקיט מײתי ביורני מאילני ושדי התם — Ele a

61 Este Livro do Sacrifício das Sombras (RS 34.126/KTU 1.1161) foi transliterado e traduzido em: SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 54-60. 62 RS 34.126/KTU 1.1161, linha 18. Em: SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 57. 63 ROSENBERG, Rabbi A. J. Isaiah: A New English Translation. Brooklyn, Judaica Press, 2007, Vol 1, p 125, nota 9. 64 MILIK, J.T. (Ed.). The Books of Enoch: Aramaic Fragments of Qumrân Cave 4. Oxford University, 1976. XV, p 174. 65 O tratado Gittin passou a constar no Talmude a partir do Codex Munich 95, escrito entre 1340 e 1370, inexistindo no Codex Florence datado de 1177. Mas é provável que a estória tenha migrado do folclore persa para a tradição rabínica um pouco antes desta época, pois Mawlānā Rūmī (1207-1273) narrou-a parcialmente nos mesmos detalhes, exceto pelo fato do rei dos shedim ser alcunhado de Sahar ao invés de Ashmodai. (NICHOLSON, Reynold A. The Mathnawí of Jalálu’ddin Rúmí: Translation of Books III and IV. Cambridge, Gibb Memorial Trust, 1930, p 343; RUMI, Jalaluddin. Masnavi. Trd. Mônica Cromberg e Ana Sarda. Rio de Janeiro, Edições Dervish, 1992, p 219).

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leva para as montanhas onde não há vegetação, ומנח לה אשינא דטורא — a deixa sobre o cume da montanha, ופקע טורא — até abrir rachaduras na pedreira. יטומנק מײתי ביזרני מאילני ושדי התם — Então ele coleta sementes das árvores, joga-as ali e elas brotam. והוי ישוב — [A montanha] se torna verdejante. והײנו דמתר גמינן נגר טורא — É por isto que chamamos [Duchifat] de quebrador de montanhas” (B. Gittin 68a-b)66.

Era crença geral que os mortos podiam se comunicar com os vivos em sonhos ou pela arte dum médium em sessões espíritas. Uma das funções dos repāim era ensinar técnicas que permitem aos vivos realizar milagres científicos; ou, neste caso particular, revelar um método de redução do esforço humano na extração de pedras para a construção civil. Plantar milho comum (Zea mays) em pequenas rachaduras naturais ou fendas artificiais abertas com cuias de madeira molhada faz com que as raízes germinem na pedra desprendendo os blocos da montanha. A arqueologia comprova que tal método era largamente usado no mundo antigo. No caso de 1Q Isaa o ministro religioso tomou a precaução de proibir a revelação do nome da semente destruidora ou semente esmigalhadora (זרע מרעים) por ignorar a verdadeira causa do pior terremoto da história de Israel, temendo que o uso da técnica fragilizasse a pedreira e fizesse os pedregulhos caírem nos lugares errados. Por exemplo, bem em cima da cidade. Os israelitas acataram o tabu com tanta firmeza que embora o milho continuasse a ser conhecido e cultivado, nenhum manuscrito nomeou-o antes da era cristã. Na parábola do Talmude o furto da espiga pelos humanos fez a estória terminar tragicamente, com o suicídio de Duchifat envergonhado pela impossibilidade de cumprir a promessa de dar a espiga ao Mestre do Mar67.

66 GOLDWURM, R' Hersh (ed.) Talmud Bavli: Tractate Gittin. Brooklin, Mesorah Publications (Artscroll), 2001, p 68b1. 67 GOLDWURM, R' Hersh (ed.) Idem, p 68b1.