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EM BUSCA DE UMA TRAJETÓRIA DO VISÍVEL: DESENHOS ANARQUISTAS E ANTICLERICAIS AO REDOR DO MUNDO Caroline Poletto 1 O presente artigo pretende, através de um enfoque transnacional, demonstrar os ganhos e avanços que tal tipo de análise pode proporcionar para a historiografia do movimento operário, uma vez que, através desse olhar ampliado, é possível perceber como os desenhos, artefatos importantes da imprensa libertária e anticlerical, circularam e foram (re) utilizados, adaptados e modificados por essa imprensa ao longo dos anos. Para dar conta desse objetivo, serão analisados alguns desenhos (alegóricos ou não) que circularam em periódicos anarquistas e anticlericais argentinos, espanhóis e brasileiros durante as três primeiras décadas do século XX; de forma a tentar mapear, mesmo que sucintamente, parte do caminho percorrido por esses traços repletos de significado e conteúdo combativo, tratando a imprensa libertária com um viés internacionalista, já que ela mesma se constituía através de intercâmbios e redes globais. Através desse estudo também se pode perceber mais claramente a dinâmica da imprensa libertária e anticlerical, as trocas constantes, a existência de uma rede de comunicação e transmissão de dados de certa forma eficaz (tendo em vista as investidas repressivas por parte dos Estados em desarticular essa rede) e a tentativa empregada por essa imprensa subalterna de criar um imaginário próprio, condizente com suas bandeiras de luta. [...] novos movimentos de trabalhadores e a crescente consciência da interdependência mundial (One World) pareciam exigir um novo tipo de historiografia, uma história que “ultrapassasse” o trabalho tradicional da América do Norte e da Europa, incorporando as suas conclusões em uma nova abordagem orientada globalmente. Isto é, na verdade, um projeto extremamente ambicioso, que mal começou. Muitos dos objetivos desta nova partida precisam de elucidação. Estamos em uma situação excitante de transição, na qual a disciplina está envolvida em sua reinvenção. A “velha” e a “nova” história do trabalho dão espaço à história do trabalho “global”. (LINDEN, 2010, p. 51) Nesse contexto, o estudo dos periódicos anarquistas sob um olhar transnacional fornece possibilidades de entender essa imprensa como ela mesma se autodenominava: internacionalista e para todos, ou seja, não era uma imprensa destinada a ficar trancafiada dentro dos limites da nação ou região, pelo contrário, se dirigia a um grupo/ público ampliado: os trabalhadores do mundo. De forma que “o internacionalismo não permaneceu restrito à sua retórica ou aos seus artefatos culturais; foi vivenciado nessas práticas cotidianas. Foi um componente tático na dinâmica do movimento” (GODOY, 2013, p.50). 1 Doutoranda no PPGH da Unisinos RS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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EM BUSCA DE UMA TRAJETÓRIA DO VISÍVEL: DESENHOS ANARQUISTAS E

ANTICLERICAIS AO REDOR DO MUNDO

Caroline Poletto1

O presente artigo pretende, através de um enfoque transnacional, demonstrar os

ganhos e avanços que tal tipo de análise pode proporcionar para a historiografia do

movimento operário, uma vez que, através desse olhar ampliado, é possível perceber como os

desenhos, artefatos importantes da imprensa libertária e anticlerical, circularam e foram (re)

utilizados, adaptados e modificados por essa imprensa ao longo dos anos. Para dar conta desse

objetivo, serão analisados alguns desenhos (alegóricos ou não) que circularam em periódicos

anarquistas e anticlericais argentinos, espanhóis e brasileiros durante as três primeiras décadas

do século XX; de forma a tentar mapear, mesmo que sucintamente, parte do caminho

percorrido por esses traços repletos de significado e conteúdo combativo, tratando a imprensa

libertária com um viés internacionalista, já que ela mesma se constituía através de

intercâmbios e redes globais. Através desse estudo também se pode perceber mais claramente

a dinâmica da imprensa libertária e anticlerical, as trocas constantes, a existência de uma rede

de comunicação e transmissão de dados de certa forma eficaz (tendo em vista as investidas

repressivas por parte dos Estados em desarticular essa rede) e a tentativa empregada por essa

imprensa subalterna de criar um imaginário próprio, condizente com suas bandeiras de luta.

[...] novos movimentos de trabalhadores e a crescente consciência da

interdependência mundial (One World) pareciam exigir um novo tipo de

historiografia, uma história que “ultrapassasse” o trabalho tradicional da

América do Norte e da Europa, incorporando as suas conclusões em uma

nova abordagem orientada globalmente. Isto é, na verdade, um projeto

extremamente ambicioso, que mal começou. Muitos dos objetivos desta nova

partida precisam de elucidação. Estamos em uma situação excitante de

transição, na qual a disciplina está envolvida em sua reinvenção. A “velha” e

a “nova” história do trabalho dão espaço à história do trabalho “global”.

(LINDEN, 2010, p. 51)

Nesse contexto, o estudo dos periódicos anarquistas sob um olhar transnacional

fornece possibilidades de entender essa imprensa como ela mesma se autodenominava:

internacionalista e para todos, ou seja, não era uma imprensa destinada a ficar trancafiada

dentro dos limites da nação ou região, pelo contrário, se dirigia a um grupo/ público ampliado:

os trabalhadores do mundo. De forma que “o internacionalismo não permaneceu restrito à

sua retórica ou aos seus artefatos culturais; foi vivenciado nessas práticas cotidianas. Foi um

componente tático na dinâmica do movimento” (GODOY, 2013, p.50).

1 Doutoranda no PPGH da Unisinos –RS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Além dessa intenção de abranger questões relativas ao “internacionalismo cultural”

anarquista e anticlerical, o presente trabalho pretende se basear em representações visuais,

tendo em vista que a contemporaneidade não escapa às imagens, uma vez que se vive na era

do visual, em que os televisores e computadores emitem centenas de imagens por minuto, de

maneira que seu estudo também reflita uma carência atual de orientação; carência essa que

impulsiona os seguintes questionamentos: como essas imagens circulam e se reproduzem

tanto no espaço (diferentes cidades e países) como no tempo? O que permanece? O que se

transforma? Como se dá o processo de (re) apropriação, (re) construção imagética? Qual a

importância do recurso visual nesse tipo de imprensa? As imagens detêm a primazia da

comunicabilidade? As representações visuais podem ser trivialmente reduzidas em palavras?

Como representações do mundo, as imagens figurativas têm no real o seu

referente, seja para confirmá-lo, transfigurá-lo, negá-lo, combatê-lo, seja para

acenar a outros mundos possíveis, e pode-se dizer que o modo de representar

uma realidade faz parte do comportamento social de uma época.

(PESAVENTO, 2008:104).

De forma que o presente texto pretende se “enquadrar” entre os novos estudos e

problemáticas possibilitados por esse “novo olhar” sobre as fontes do anarquismo e do

anticlericalismo, uma vez que procura demonstrar o interesse pelos estudos de circulação de

ideias nessa imprensa subversiva, as tentativas investidas por essa imprensa na formação de

uma cultura e estética própria, a importância da utilização da imagem para a formação dessa

cultura libertária e anticlerical e a conseqüente (des) construção do “outro” baseada na

formação de estereótipos claramente verificados. Alerta-se ainda o fato de que, ao analisar

elementos do discurso estético propagandístico dos periódicos libertários e anticlericais em

questão, se estará comparando/analisando discursos políticos que precisam constantemente se

reafirmar para enfrentar os discursos dominantes (discursos dos periódicos burgueses, da

imprensa oficial, do Estado, da Igreja, etc). De forma que a tentativa de desconstrução dos

seus inimigos é evidente nas páginas da imprensa libertária e anticlerical, sendo, ela própria,

um dos objetivos principais dos periódicos aqui tratados. As investidas de desumanização do

outro são claramente verificadas, uma vez que se está em guerra permanente contra esse outro

que tanto prejudica a evolução humana e a revolução social (segundo a visão anarquista e

anticlerical).

A característica fundamental do discurso político é que este necessita para

sua sobrevivência impor a sua verdade a muitos e, ao mesmo tempo, é o que

está mais ameaçado de não conseguir. É o discurso cuja verdade está sempre

ameaçada em um jogo de significações. Ele sofre cotidianamente a

desconstrução, ao mesmo tempo só se constrói pela desconstrução do outro.

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É portanto, dinâmico, frágil e, facilmente, expõe sua condição provisória.

(PINTO, 2006: 89)

E em guerra, como se sabe, “não se limpam armas”, “tiram-se as luvas”, que

é como quem diz: adeus sutilezas, olá simplificações. O outro passa a ser o

inimigo, pelo que não só é permitido como até útil desumanizá-lo. O que só é

justo porque, desde logo, o nosso inimigo é desumano – não são as suas

ações a prova mesma disso? É de uma lógica à prova de bala: se o meu

inimigo é desumano, eu não faço nada de mais em desumanizá-lo. Na

verdade, limito-me a tirar-lhe a máscara (ou a retirar os óculos que me

vendavam os olhos) e a vê-lo tal qual ele é: a encarnação do Mal, uma besta

fétida, um macaco, um inseto contaminado, um polvo tentacular. (ZINK,

2011:52)

Tendo essas questões em vista se partirá para a análise de dois exemplos concretos e

de duas “ideias-imagens” que foram constantemente empregas nos periódicos aqui analisados:

a primeira delas está intimamente ligada ao estereótipo clerical criado e fomentado pelos

veículos da imprensa anticlerical, cuja imagem reflete vários abusos da Igreja, sendo o roubo

um dos mais destacados deles; e a segunda diz respeito à utilização da alegoria feminina como

porta-voz da Revolução Social, visualizada, principalmente, nos exemplares em homenagem

ao Primeiro de Maio.

O roubo abençoado

O primeiro exemplo apresenta a circulação de imagens anticlericais tanto em veículos

anarquistas como em outros de caráter predominantemente anticlerical. A incorporação de

periódicos anticlericais na presente análise é importante, pois esses estabeleciam intensos

contatos tanto com os periódicos libertários como com os colaboradores destes e, assim como

os anarquistas o fizeram, constituíram um imaginário próprio ligado às suas crenças e

percepções. Além disso, essa relação de proximidade existente entre anarquistas e

anticlericais no decorrer do século XX ainda foi pouco explorada pela historiografia e se

acredita que há muito a ser dito sobre essa afinidade (embora nem todo anticlerical seja

anarquista, uma vez que o anticlericalismo é um movimento complexo e incorporador de

distintas tendências).

El anticlericalismo desarrolló un imaginario propio, reproducido en prácticas,

rituales, sociabilidades, medios de difusión e instituciones que habilitaron su

permanencia y reproducción en el tiempo. Una verdadera cultura anticlerical

se consolidó en distintos espacios sociales iberoamericanos. […] Los ámbitos

de sociabilidad propios de la modernidad: masonería, sociedades de

librepensadores, organizaciones vinculadas al socialismo o al anarquismo

sirvieron para transmitir un ideario y un conjunto de imágenes compartidas.

(DI STEFANO; ZANCA, 2013, p.19-20)

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As imagens anticlericais foram uma constante tanto nos periódicos analisados de

Buenos Aires, Madri, São Paulo como nos de Porto Alegre. O ataque à Igreja era direto e

forte, de maneira que a crítica era facilmente entendida e visualizada. Vale ressaltar ainda que

o aspecto visual representado pelo desenho tinha uma grande importância nos periódicos

desse período, uma vez que ele é um forte elemento doutrinador, dotado de crítica mordaz,

irônica, satírica e principalmente humorística do comportamento humano; ainda mais num

contexto rodeado por analfabetos, em que muitas vezes o traçado dos caricaturistas era o

único elemento do periódico que atingia esse público desprovido das habilidades da leitura e

da escrita. As imagens apresentam ainda um forte poder de sedução e comoção, bem como o

caráter do imediato, ou seja, transmitem suas mensagens numa fração de segundos e se fixam

na mente do seu observador. Pesavento, ao elencar as características do discurso visual,

constata que:

E a essa condição de retenção de memória e de potencial evocativo, talvez

pudéssemos agregar mais uma propriedade que caracteriza as imagens: elas

seduzem, cativam, encantam; elas possibilitam uma comunicação imediata;

são intensas; despertam a atenção; prendem o olhar; emocionam. [...] Assim,

na sua propriedade de sedução, as imagens detêm uma primazia em

comunicabilidade. Elas circulam mais, atingindo um público mais amplo de

receptores. Afinal, se nem todos leem livros ou revistas, todos veem imagens

e as armazenam na memória. (PESAVENTO, 2008, p.119)

Figura 1: O “burro” roubado Figura 2: O “burro” roubado

Fonte: El Motín, 05/01/1911 nº1 p.1 Fonte: A Lanterna, 18/01/1934 nº370 p.1

Podemos englobar, dentre essas imagens “sedutoras” de que fala Pesavento, as

imagens anticlericais que circularam intensamente em várias partes do globo durante as três

primeiras décadas do século XX. Uma das imagens anticlericais mais difundida na imprensa

anarquista e anticlerical é aquela que alude ao roubo clerical, ou seja, aquela em que a figura

clerical realiza o papel de ladrão enquanto que, ao fiel, cabe a personificação daquele que é

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enganado, roubado. Temos assim, nas figuras 1 e 2, o fiel retratado com cara de burro – um

forte indicativo da imbecilidade e ingenuidade deste – sofrendo a ação de roubo por parte do

clérigo. Este, por sua vez, rouba o bolso do fiel enquanto o distrai apontando para o sétimo

mandamento que diz exatamente o inverso daquilo que ele (o clérigo) pratica: “- não

furtarás”. Os demais dizeres escritos na caixa de doação continuam a ironizar o pobre fiel:

“dinheiro de São Pedro para as almas benditas”. Assim, a representação visual,

conjuntamente com os breves escritos que funcionam como legenda (pois conduzem o olhar),

alertam, ironicamente, para os abusos cometidos pelo clero no que concerne ao

enriquecimento ilícito, uma vez que tanto o dinheiro doado pelos fiéis como aquele

imperceptivelmente furtado serviriam exclusivamente para aumentar as riquezas dos clérigos

e para ser utilizado em benefício da classe religiosa e não em benefício dos fiéis ou de pessoas

carentes em geral. A tradução para o português dos dizeres contidos na imagem original (do

jornal espanhol El Motín) é bastante fiel à esta. Apenas se verifica a incorporação de um

título à imagem que reforça a crítica contida no traçado do caricaturista: “exercícios práticos

de educação clerical”.

Importante ainda salientar dois aspectos acerca das figuras acima: o primeiro diz

respeito à circulação e permanência da representação visual na imprensa contestatória, já que

ela foi visualizada em 1911 no jornal anticlerical de Madri El Motín e, reproduzida

novamente, mais de duas décadas depois, em 1934, no periódico anticlerical paulista A

Lanterna. A imagem é reproduzida no jornal paulista sem mencionar a origem da mesma

(essa falta de referência à fonte original era muito comum na imprensa anticlerical e,

principalmente, na anarquista). O segundo aspecto que merece destaque concerne à utilização

da linguagem irônica na imagem anticlerical, de forma que a própria burla do fiel enganado se

traduz em uma crítica feroz tanto ao comportamento clerical como ao do ingênuo fiel. Embora

a ironia possa, na maioria das vezes, confundir os significados, percebe-se que a ironia aqui

utilizada está desprovida da sua profundidade embaraçadora, uma vez que a ironia “pode

zombar, atacar e ridicularizar; ela pode excluir, embaraçar e humilhar. Isso também pode

irritar e não necessariamente num nível altamente intelectual” (HUTCHEON, 2000:33). A

ironia na representação acima é explícita, uma vez que ela afirma o contrário daquilo que

realmente acontece (na indicação do mandamento “não furtarás”), evidenciando uma

discrepância entre aquilo que parece ser verdade (o dito) e o que realmente ocorre (que

aparece somente quando se revela a ironia da enunciação):

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A ironia é comumente utilizada como um instrumento que consiste em dizer

o contrário daquilo que se pensa, deixando entender uma distância

intencional entre aquilo que dizemos e aquilo que realmente pensamos. Por

esse caráter dúbio, a ironia é vista como a arte de satirizar com alguém ou

com alguma coisa, com vista a obter uma reação do leitor, ouvinte ou

interlocutor. É, pois, uma estratégia retórica e estrutural que pode ser

utilizada, entre outras formas, com o objetivo de denunciar, de criticar ou de

censurar algo. (AGRA, 2009: 193)

A ironia também se fará presente nas figuras 3 e 4, as quais também aludem ao roubo

clerical. De forma que a ironia não está ligada, necessariamente, à zombaria, ao

descompromisso, ao descaso, a um simples jogo de palavras sem propósitos; podendo, pelo

contrário, realizar uma crítica severa e bastante séria através da inversão de valores, da

confusão de significados.

Muitos adversários do pós-modernismo consideram a ironia como sendo

fundamentalmente contrária à seriedade, mas isso é um equívoco e uma

interpretação errônea sobre a força crítica da dupla expressão. Conforme

Umberto Eco disse a respeito da sua própria metaficção historiográfica e de

sua teorização semiótica, o “jogo da ironia” está intrinsecamente envolvido

na seriedade do objetivo e do tema. (HUTCHEON, 2000:62)

Figura 3: O Paraíso dos padres Figura 4: O Paraíso dos pobres de espírito

Fonte: Lúcifer, 20/09/1907 nº02 p.3 Fonte: Revista Liberal, fevereiro 1921, nº1 p.3

Nas figuras acima, a figura clerical está distraindo o fiel que se encontra em posição de

oração (com as mãos juntas em sinal de contemplação) e roubando seu bolso. A representação

visual é bastante semelhante àquela das imagens 1 e 2. No entanto, nessa representação,

merece destaque a forma física exagerada da figura clerical (gordo, corpulento). Nesse

sentido, para ilustrar a figura clerical os desenhistas exageravam nos seus traços físicos para

aludir a vícios sociais e desvios que estes sujeitos cometiam. Ou seja, ridicularizavam e

exageravam os traços físicos para traduzir questões /problemas sociais. Não quer dizer, na

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prática, que todos os padres/bispos eram obesos, mas há um exagero proposital, a fim de

transpor uma característica física para um tipo de comportamento baseado em exageros e

excessos. De acordo com Bergson o exagerado tamanho dos padres transmitiria comicidade à

caricatura, uma vez que “é cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de

uma pessoa estando em causa o moral” (BERGSON, 1987:33). Também merece destaque o

fato de o jornal anticlerical Lúcifer de Porto Alegre citar, na edição de 1907, o nome do

jornal que publicou a imagem originalmente e que serviu de fonte para o periódico gaúcho.

No caso em questão trata-se do jornal Asino de Roma. Já na reprodução da imagem em 1921,

pela Revista Liberal, também de Porto Alegre, não há menção da aparição da imagem no

jornal italiano Asino e nem no Lúcifer. No entanto, pela menção do jornal italiano no Lúcifer

se constata que a imagem circulou pelo menos em dois países distintos e por mais de duas

décadas: Itália (Roma) e Brasil (Porto Alegre). As legendas das duas representações, embora

diferentes, mantém a mesma linha de raciocínio: mostrar que a garantia do paraíso celestial

era apenas mais uma falácia dos clérigos para garantir os prazeres terrenais deles próprios. A

figura 3 traz como legenda o seguinte diálogo entre padre e fiel: “-Olha lá em cima... – Mas

eu não vejo nada. – Pois...aquele é o Paraíso”. Já o desenho da Revista Liberal apresenta a

seguinte constatação como legenda: “Lá em cima está o Paraíso, o reino dos pobres

d’espírito”. Talvez essa suave mudança nas legendas seja um indício, ou uma tentativa, de

manter certo grau autoral em cada publicação. No mesmo sentido, a Revista Liberal não

copia o título que acompanha a imagem no exemplar do Lúcifer (O Paraíso dos Padres),

deixando a imagem sem titulação.

Percebe-se assim, na estética anticlerical, a constante utilização da ironia, bem como

de exageros físicos nas representações visuais que pretendiam aniquilar, ridicularizar a figura

clerical. Outras representações anticlericais criticam o ensino católico, marcado pela

obediência cega e outras ridicularizam a figura clerical através da representação desta com

traços animalescos: porcos, burros, aranhas, entre outros, debochando e transmitindo ideia de

perigo através desses riscos dotados de humor e sarcasmo. No segundo exemplo de circulação

e permanência na estética libertária e anticlerical, os traços irônicos estarão menos presentes,

enquanto a crença fervorosa e sempre otimista na Revolução Social se destacará em

representações utópicas.

A Libertadora: a utilização da alegoria feminina como estratégia discursiva

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Um tipo de representação visual bastante significativa devido à sua recorrência nos

exemplares referente ao Primeiro de Maio apresenta os ideais de liberdade e justiça através da

figura feminina. A alegoria feminina é utilizada para caracterizar a liberdade, a justiça, a

revolução social e a anarquia. Martins (2009), no seu estudo acerca das caricaturas anarquistas

encontradas nos periódicos de São Paulo e Rio de Janeiro entre o período de 1910 a 1920, dá-

se de encontro, assim como a presente análise, com a figura feminina representando alegorias

e afirma que a utilização da figura feminina expressando um ideal, ou “aquilo que deve vir a

ser atingido, almejado” tem origem ainda na tradição clássica da época da Grécia Antiga, mas

foi consideravelmente difundida alcançando uma maior expressão na França. De acordo com

Carvalho “[...] da Primeira à Terceira República, a alegoria feminina domina a simbologia

cívica francesa, representando seja a liberdade, seja a revolução, seja a república” (1992:505).

Burke reforça a assertiva acima quando afirma que “conceitos abstratos têm sido

representados através da personificação desde a época da Grécia antiga, se não antes. As

figuras da Justiça, da Vitória, da Liberdade, etc. são usualmente femininas” (2004:76). Isso

demonstra que as alegorias libertárias eram, na sua maioria, (re) criações de simbolismos

antes empregados pela tradição revolucionária francesa, e essa, por sua vez, inspirava-se nas

representações da Grécia Antiga de ideais abstratos como a Liberdade, a Justiça e a Igualdade.

As imagens que seguem, além de estamparem a alegoria feminina como representante

da Liberdade e da Revolução Social, também estão dotadas de uma crença utópica na vitória

da Anarquia, que se elevaria sob os escombros da sociedade capitalista. “[...] As utopias são a

mais pura manifestação do desejo, surgindo como forma de evasão de uma realidade

considerada insatisfatória. Nesse sentido a utopia se pressupõe totalizante da alteridade em

relação ao mundo vivenciado” (SCHMIDT, 1999: 117). A utopia libertária também inventa

seus inimigos: o Estado, a Igreja, a polícia ou os militares, a tríplice sustentadora do

capitalismo. “Toda escatologia, toda utopia deve inventar a face de um adversário para

imputar-lhe o atraso da felicidade universal. Toda utopia é, portanto, maniqueísta”

(STAROBINSKI, 1988:148).

Figura 5: Folheto “El Cancionero Revolucionario”

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Fonte: Biblioteca Criolla – Instituto Iberoamericano de Berlin

A mulher visualizada na Figura 5 representa a alegoria da liberdade e aparece

destruindo os símbolos dessa sociedade maligna que a precede (leis, armas, coroa) enquanto

seu olhar ao horizonte alude à Nova Era. A figura feminina traz a luz e a sabedoria

necessárias para construir a nova sociedade sobre os escombros da antiga. Além disso, a

imagem apresenta vários traços da cultura clássica, que se traduziam tanto nas vestes da

mulher, como na coluna em estilo jônico na qual a mulher aparece apoiando a sua mão direita

e na tocha erguida bravamente (a tocha da sabedoria). Vale lembrar que a própria

representação da tocha está ligada à significação de armamento, uma vez que ela é a arma

utilizada por Hércules contra a hidra na mitologia grega. De acordo com Suriano, a utilização

da figura feminina para representar a liberdade seria também uma (re) significação de uma

imagem do cristianismo, de forma que a ideologia libertária, ao (re) significar tanto imagens

quanto o próprio vocabulário cristão, invade a esfera do sagrado e procura conferir um sentido

político para as crenças míticas.

En realidad, la mujer, representativa de la libertad, era la resignificación

profana de una imagen de claro simbolismo espiritual utilizada por la

iconografía cristiana. En ella, la heroína coloca sus pies sobre un hombre o

serpientes y dragones en clara alusión al triunfo del bien sobre el mal. En

nuestra imagen la mujer-libertad (el bien) está parada sobre los símbolos de

la sociedad capitalista (el mal). (SURIANO, 2001:304).

Esse quadro, descrito acima por Suriano, apresenta a Libertadora (a alegoria feminina)

sobre os escombros do capitalismo e começou a circular ainda nos tempos da Primeira

Internacional e, de lá para cá, foi amplamente difundido e modificado. Uma dessas

modificações aparece no Suplemento de La Protesta de 1899 (de Buenos Aires) e está

assinado por Marius, um dos colaboradores do suplemento. Segundo Suriano, Marius realiza

algumas modificações na imagem que circulara na Europa nos tempos da Internacional,

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mantendo sua essência. Infelizmente não se teve acesso ao referido exemplar do Suplemento

de 1899, no entanto, Suriano descreve detalhadamente a representação visual:

La iconografía anarquista local, que generalmente reproducía la circulante en

Europa, también abonaba la imagen violenta y generalmente hacía referencia

a la destrucción del capitalismo. Precisamente, una imagen de profusa

difusión en la prensa libertaria porteña titulada “El derrumbe de la sociedad

burguesa” mostraba en su centro a la mujer, símbolo de la libertad, que con la

antorcha en alto guiaba al proletariado hacia su redención; parada sobre los

emblemas más representativos del sistema (semejantes a escombros): la cruz

y la mitra papal de la iglesia, la espada y las insignias militares del ejército

así como la galera y el bastón del burgués. Completaban la alegoría, a cada

costado de la libertad, los edificios en ruinas de la cárcel y los tribunales. Así,

el mensaje que se desprendía de la imagen era sencillo, claro, contundente y

de enorme peso simbólico: los enemigos más odiados del anarquismo yacían

a sus pies destruidos en forma drástica por la revolución social. (SURIANO,

2001, p.303-304).

Uma nova adaptação dessa imagem aparece num folheto intitulado “El Cancionero

Revolucionário”, que foi impresso em Barcelona no ano de 1909 e circulou por Buenos

Aires; além da imagem, o folheto era composto por poemas e canções revolucionárias que

eram escritos em duas línguas: italiano e espanhol, se destinando também ao público

imigrante de Buenos Aires, ainda não dominante do idioma portenho. No entanto, não se sabe

se esse folheto chegou a circular em Barcelona ou se apenas foi ali impresso para, logo em

seguida, ser remetido à América. Encontrou-se um desses folhetos na Biblioteca Criolla

(coleção particular do cientista alemão Lehmann-Nietsche que reúne folhetos, poemas e

canções que circularam em Buenos Aires nas décadas iniciais do século XX)2.

De acordo com Gloria Chicote, sabe-se que esse folheto foi impresso em Barcelona

em 1909 e é de autoria do artista (espanhol, francês, algeriano ou marroquino, não há

consenso sobre sua nacionalidade nas fontes pesquisadas) Ângelo de Las Heras ou Lasheras,

demonstrando assim a existência de uma importante rede de trocas na imprensa subalterna

que englobava e conectava as cidades de Barcelona e Buenos Aires. Infelizmente, no artigo de

Glória Chicote, não é mencionado o ano preciso em que esse folheto foi encontrado em

Buenos Aires e coletado por Lehmann Nitsche, mas se acredita que ele tenha sido encontrado

em solo portenho logo após sua impressão em Barcelona. Sobre o desenhista Angelo Las

Heras sabe-se que:

Segundo a polícia, sua origem é incerta, provavelmente tendo nascido em

Marrocos. Em 1936, quando Angelo foi preso, contava com 46 anos e

2 Para informações mais detalhadas sobre a coleção da Biblioteca Criolla ver CHICOTE (2011) e LISI &

MORALES-SARAVIA (1987).

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declarou ao delegado ter chegado no Brasil há 43 anos e só ter passado para

as fileiras anarquistas há oito anos. Ou seja, Angelo Las Heras chegou ao

Brasil por volta de 1893, com três anos de idade, e tornou-se anarquista em

meados de 1928. (SILVA, 2005, p.69)

Mais curioso ainda é o fato de Angelo Las Heras ter vivido, praticamente quase toda a

sua vida no Brasil (emigrou para esse país quando tinha apenas 3 anos de idade) e, tudo leva a

crer, que realizava as atividades de propaganda ácrata desde as cidades brasileiras em que

fixou residência, articulando uma rede de trocas que englobava tanto a Espanha (local de

impressão de folhetos) como a Argentina (local de distribuição dos impressos). A imagem

acima ganha popularidade no Brasil na década de 1930 e muitos autores acreditam que ela

começou a circular apenas nesse momento, quando, na realidade, ela já se difundira vinte anos

antes, através do folheto “El Cancionero Revolucionário”.

No mesmo ano da impressão do folheto, 1909, essa imagem de autoria de Las Heras já

está sendo divulgada na imprensa libertária brasileira, mais especificamente no jornal A Luta

de Porto Alegre, em um exemplar especial de 1º de Maio, o que demonstra a rápida circulação

que essa alegoria teve nos veículos da imprensa libertária, bem como a aparição do desenho

primeiramente num jornal gaúcho de caráter mais local e, somente alguns anos depois, nos

jornais anticlericais e libertários paulistas. De forma que um provável caminho (porém não o

único possível) percorrido por essa alegoria possa ser o seguinte: Barcelona, Buenos Aires,

Porto Alegre e São Paulo.

Figura 6: A Libertadora

Fonte: A Luta, 1º de maio de 1909 nº44 p.01

A imagem estampada na primeira página do jornal A Luta apresenta uma

incorporação de elementos visuais em comparação à imagem original publicada no folheto

“El Cancionero Revolucionário” uma vez que o fundo da imagem passa a contar com um

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tribunal e com uma outra construção em ruínas (elementos ausentes no folheto, porém

presentes na imagem de Marius no Suplemento de La Protesta de 1899, descrita por

Suriano).

Figura 7: A Libertadora e retratos de heróis libertários

Fonte: A Lanterna, 1º de Maio de 1916, nº289 p.04

Conforme visto acima, a imagem de Angelo las Heras foi encontrada na capa do

periódico gaúcho A Luta durante o 1º de Maio de 1909 e é reproduzida novamente no

periódico anticlerical paulista A Lanterna no primeiro de Maio do ano de 1916 (Figura 7) e,

outra vez mais, reproduzida nos anos de 1917 e 1927 no periódico anarquista paulista A

Plebe; o que demonstra a grande circulação e repetição dessa imagem na imprensa operária

(lembrando também da sua aparição na forma de folheto em Buenos Aires nas décadas

iniciais do século XX). Além dessa constante circulação e permanência da imagem nas

páginas da imprensa subversiva também é importante observar o fato de que, embora a

imagem fosse a mesma, cada periódico modificava sua apresentação: seja através de

incrementos ou supressões de elementos na imagem ou na mudança dos títulos e ou das

legendas que acompanhavam a representação iconográfica. Temos assim, na figura 7, a

incorporação dos retratos de pensadores anarquistas ao redor da imagem criada por Las

Heras, emoldurando a mesma.

O desenho de Las Heras é (re) apropriado, no ano de 1921, pelo periódico portenho La

Protesta e, embora apareça assinado pelo pseudônimo J.Speroni, percebe-se que a imagem

foi, possivelmente, inspirada nos traços do folheto “El cancionero revolucionário” ou ainda

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na imagem de Maurius, do Suplemento de La Protesta de 1899. Na (re) criação de Speroni o

desenho original é reproduzido com traços mais simples e grosseiros e ocorre a adição de

novos elementos à representação visual no fundo da imagem, a qual passa a apresentar os

enforcados de Chicago, ao mesmo tempo em que altera o cabelo solto da alegoria feminina

pelo preso; a impressão de movimento que o cabelo solto concedia à representação se mantém

através da tocha que deixa de estar estaticamente erguida para encontrar-se em movimento na

mão esquerda da mulher, enquanto a mão direita está com o punho fechado. No entanto, a

essência da imagem é a mesma: a vitória da anarquia e o início da nova sociedade. Há,

portanto, uma (re) apropriação, uma (re) criação da imagem de Las Heras pelo artista do

periódico argentino.

Acontece uma simplificação da imagem e isso, de maneira alguma, pode ser entendido

como carência de espírito artístico ou subestimação do papel da estética no jornal La

Protesta, uma vez que o mais importante na arte anarquista é o conteúdo e não a forma.

Aliás, essa última deveria ser a mais singela possível e garantir, através de traços pouco

complexos, a transmissão dos ideais ácratas.

Figura 8: A libertadora por J. Speroni

Fonte: La Protesta, 1º de Maio de 1921 nº3866 p.01

A relação com o Primeiro de Maio é nítida na própria imagem, tanto por trazer escrito

“1º de Mayo” quanto pela representação dos enforcados, ao fundo da imagem. Os enforcados

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podem ser entendidos como um acréscimo na imagem, caso parta-se da suposição de que o

desenho inspirador de Speroni tenha sido a criação gráfica de Las Heras. A postura da mulher,

na representação icônica, transmite a ideia de ação, tanto pelo punho cerrado quanto pela

tocha em movimento.

O jornal paulista A Plebe, na edição de 1924, traz novamente a imagem da figura

feminina pisando sobre as armas do capitalismo, da destruição, da guerra (canhão, revólver,

espada, faca) e, enquanto esmaga essas armas, a alegoria feminina segura, fervorosamente, os

instrumentos com os quais construirá a Nova Sociedade (pá, picareta, enxada, entre outros).

Ocorre novamente uma (re) criação, uma modificação na forma como a alegoria feminina é

utilizada pela imprensa libertária; muito embora a mensagem continue sendo similar:

necessidade de destruição para criar. A própria legenda traduz esse ato duplo de

destruição/criação: “A revolução social tende para o extermínio dos instrumentos da

opressão e da barbárie dignificando as ferramentas do trabalho útil e fecundo para o bem

estar de toda a humanidade”. Nessa representação a tocha erguida pela alegoria feminina (no

desenho de Las Heras) é substituída por ferramentas de trabalho que servirão para construir a

nova sociedade Uma observação mais atenta da imagem permite perceber que a alegoria

feminina está com a boca aberta, o que alude diretamente ao ato de gritar, de evocar os

operários para a ação, de forma que a imagem também passa, através de uma gestualidade

específica, uma ordem ao observador atento. A boca aberta da alegoria não é, de forma

alguma, uma casualidade estética, mas sim um ato intencional do seu criador. A mesma

imagem aparecida em 1924 no jornal paulista A Plebe é, alguns anos depois, novamente

visualizada no jornal anarquista espanhol Tierra y Libertad. É estampada nesse jornal no

ano de 1937, o que demonstra a permanência dessa imagem na imprensa anarquista. O

desenho não sofre modificações, mas a legenda sim.

Figura 9: A Revolução Social Figura 10: Revolução Social x Fascismo

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Fonte: A Plebe, 1º de Maio de 1924 nº234 p.03 Fonte: Tierra y Libertad , 1/05/1937 nº16 p.09

A legenda também faz alusão direta a nova vida que se ergueria após a revolução

social e adiciona um inimigo à representação visual: o fascismo. Elemento ausente das

imagens libertárias até a década de 30, quando passa a aparecer constantemente. A legenda

faz a seguinte previsão (sempre otimista) do futuro “nuestra guerra contra el fascismo

internacional y contra las democracias capitalistas es la muerte de la civilización burguesa.

Nuestra vitoria levantará un nuevo mundo de trabajo, paz y orden social. ¡Nuestro triunfo

hará vivir una nueva civilización! ¡A LA VICTORIA! Trata-se de mais uma imagem que

reforça a crença na revolução social e na força do operariado e que, ao mesmo tempo,

incorpora inimigos contemporâneo s (no caso, o fascismo) à uma representação visual antiga,

conferindo novos usos à imagem e a ligando às novas interpretações; de forma que há sim

permanências valorosas na estética libertária e anticlerical, mas há também acréscimos,

alterações, incorporações.

Tanto a ligação da figura clerical com o roubo e com uma vida de excessos, como a

utilização da alegoria feminina como anunciadora da Revolução Social contribuem para a

formação de um imaginário próprio que procurava tanto destruir seus inimigos e a sociedade

vigente como apontar para um futuro próximo, para a nova era.

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