Elias Norbert Mozart Sociologia de Um Gc3aanio

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    Este livro um brilhante estudo sobre avida e o gnio criativo Wolfgang AmadeusMozart, escrito por um dos mais impor-tantes pensadores sociais de nosso tempo.Autor de vasta obra sociolgica at recen-temente pouco divulgada, o surpreenden-te e inovador Norbert Elias tambm foium amante da msica, considerando-aindissoluvelmente ligada ao tipo de so-ciedade e poca em que era produzida.

    Mozart foi educado na tradio da m-sica de corte, numa sociedade que con-siderava os msicos como trabalhadoresmanuais, e de quem se esperava apenasque produzissem entretenimento parauma audincia cortes. Ao longo de suavida, esteve constantemente em busca detrabalho, porm o nico emprego queconseguiu foi o de organista na pequenacorte de Salzburgo.

    Ao descrever como o compositor tentoulevar em Viena uma vida de msico au-tnomo, Norbert Elias esclarece que sna gerao seguinte - a de Beethoven - que foram criadas condies necessriaspara esse gnero de atividade. Mozartfracassou, argumenta ele, porque deu umpasso no sentido da independncia numasociedade que ainda no estava preparada

    para tal. A rejeio da aristocracia de Vie-na, as dvidas cada vez maiores e nenhu-ma perspectiva de satisfazer seus desejosmais ntimos fizeram com que Mozartmorresse com o sentimento de que suaexistncia social naufragara e de que suavida s e tornara vazia de significado.

    Como mostra o autor, a . situao deMozart era muito peculiar. Embora fos-se socialmente dependente e subordina-

    do corte de aristocratas, a conscinciade seu extraordinrio talento musical fez

    MOZARTSociologia de um gnio

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    Norbert Elias

    MOZARTSociologia de um gnio

    Organizado porMICHAEL SCHRTER

    Traduo:SRGIO GES D E PA U L A

    Reviso Tcnica:RENATO JANINE RIBEIRO

    Z R

    Rio de Janeiro

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    Publicado originalmente sob o ttuloMozart, Zur Soziologie eines Gentes

    po r Suhrkamp Verlag, de Frankfurt, Alemanha

    Copyright 1991, Norbert Elias StichtingEdited b y M ichael S chrter

    Copyright da edio brasileira 1994:

    Jorge Zahar Editor Ltda.rua Mxico 31 sobreloja20031-144 Rio de Janeiro, RJ

    tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800e-mail: [email protected]: www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados.A reproduo no-autorizada desta publicao, no todo

    ou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

    Capa: Gustavo Meyer

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato N acional dos Editores de Livros, RJ

    Elias, N orbertE4lm Mozart, sociologia de um gnio / N orbert Elias; organizado por Michael

    Schrter; traduo, Srgio Ges de Paula; reviso tcnica, Re nato Janine R ibeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

    Traduo de: Mozart, Zur Soziologie eines G eniesISBN 978-85-7110-302-3l. M ozart, Wolfgang A madeus, 1756-1791 - Bibliografia. I. Schrter, M ichael.

    II. Ttulo. III. Srie.CDD: 927.8

    94-1558 CDU: 92(MozART)

    Sumrio

    Parte IREFLEXES SOCIOLGICAS SOBRE MOZART

    Ele simplesmente desistiu 9Msicos burgueses na sociedade de corte 15Mozart se torna artista autnomo 32

    Arte de arteso e arte de artista 45O artista no ser humano 53Os anos de formao de um gnio 67A juventude de Mozart entre dois mundos sociais 86

    Parte II

    A revolta de Mpzart: de Salzburgo a Viena Completa-se a emancipao: o casamento de Mozart 130O drama da vida de Mozart:uma cronologia sob a forma de notas 135

    Duas notas 140

    Posfcio do organizador 141

    ndice 145

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    P A R T E I

    REFLEXES SOCIOLGICASSOBRE MOZART

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    Ele simplesmente desistiu

    Wolfgang Amadeus Mozart morreu em 1791, aos 35 anos, e foienterrado numa vala comum a 6 de dezembro. Qualquer quetenha sido a doena aguda que contribuiu para seu prematurofalecimento, o fato que, antes de morrer, Mozart vrias vezesesteve prximo do desespero. Aos poucos, foi se sentindo der-rotado pela vida. Suas dvidas aumentavam. A famlia se mudavade um lugar para outro. O sucesso em Viena, que para ele talvezsignificasse mais do que qualquer outro, jamais se concretizou.A alta sociedade vienense deu-lhe as costas. O rpido avanode sua doena fatal pode muito bem estar ligado ao fato de que,para ele, a vida perdera o valor. Sem dvida alguma, morreucom a sensao de que sua existncia social fora um fracasso.Falando metaforicamente, morreu pela falta de significado desua vida, por ter perdido completamente a crena de que seusdesejos mais profundos seriam satisfeitos. Duas fontes de suadeterminao de viver, dois mananciais que alimentavam seusentimento de auto-estima e importncia, estavam quase secos:

    o amor de uma mulher em quem pudesse confiar, e o amor dopblico vienense por sua msica. Por algum tempo ele gozarade ambos; e ambos ocupavam o lugar mais alto na hierarquiade seus desejos. H muitas razes para se crer que, em seusltimos anos de vida, ele sentia cada vez mais que perdera os dois.Esta era a sua tragdia e a nossa enquanto seres humanos.

    Hoje, quando o simples nome de M ozart para muitos se tornousmbolo do maior prazer musical que nosso mundo conhece,pode parecer incompreensvel que um homem dotado de taispoderes mgicos de criatividade pudesse ter encontrado morteprematura levando consigo para a sepultura inimaginveiscriaes musicais ainda por compor porque a falta de amor

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    e generosidade das pessoas aprofundou as suas dvidas quantoao valor e o significado de sua vida. Pode parecer especialmentedifcil acreditar-se nisto quando o interesse apenas por suaobra, e no pelo ser humano que a criou. Quanto a esse aspectono devemos nos iludir julgando o significado, ou falta designificado, da vida de algum segundo o padro que aplicamos nossa prpria vida. preciso indagar o que esta pessoaconsiderava ser a realizao ou o vazio de sua vida. M ozart tinhaplena conscincia de seu raro dom, e transmitiu-o tanto quantopde. Boa parte da vida trabalhou incansavelmente. Seria teme-rrio afirmar que ele no tivesse conscincia de que sua msicapassaria para a posteridade. Mas no era o tipo de pessoa paraquem a idia de ser reconhecido pelas geraes futuras trouxesseconsolo pela falta de reconhecimento que suportou nos ltimosanos de vida, especialmente em sua cidade adotiva, Viena. Afama pstuma significava relativamente pouco para ele, enquanto

    a fama em vida significava tudo. Lutou por ela com plenaconscincia de seu prprio valor. Necessitava, porm, da confir-mao imediata desse valor, especialmente por amigos e conhe-cidos. No fim da vida foi abandonado por quase todos os queantes tinham sido seus amigos ntimos. A culpa no era s deles as coisas no eram to simples assim. Mas no h dvida deque sua solido redobrou. Talvez ele tenha simplesmente desis-tido. "O rpido declnio final de Mozart", escreveu um de seusbigrafos, "aps longos perodos de trabalho intenso raramenteinterrompidos por doenas ou indisposies; sua breve agonia,quase precipitada; sua morte sbita aps um coma de apenas

    duas horas tudo isso pede uma explicao melhor do que afornecida pela medicina tradicional." 1Alm disso, h muitas evidncias de que Mozart andava ator-

    mentado por dvidas cada vez maiores quanto ao afeto e mesmoa fidelidade de sua Constanze, a quem amava apesar de tudo.Posteriormente, o segundo marido dela afirmou que ela sempretivera mais respeito pelo talento do que pela pessoa de Mozart.2

    1 Wolfgang Hildesheimer, Mozart, trad. ingl. de Marion Faber Londres/To-ronto/Melbourne: 1983, p.355 [ed. bras.: Mozart, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1991, p.290].

    2 Citado po r Hildesheimer, Mozart, p.244 [ed. bras.: p.201].

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    N o entanto, sua percepo deste talento parece ter dependidomenos da compreenso da msica do que do sucesso que elaalcanasse. Quando o sucesso diminuiu, quando a corte vienen-se, que antes o patrocinava, abandonou aquele artista intransi-gente em favor de compositores mais triviais, a viso que Cons-tanze tinha de seu talento ficou abalada, sem dvida, comotambm sua viso da pessoa. A pobreza cada vez maior dafamlia, correspondendo ao apreo pblico cada vez menor pelamsica de Mozart, no final de sua vida, deve ter esfriado aindamais os sentimentos de Constanze, os quais nunca foram dosmais profundos. Assim, os dois fatores que privaram de sentidoa vida de Mozart a perda do reconhecimento do pblico e oarrefecimento do afeto da esposa ligavam-se entre si . Eramduas camadas inseparveis, interdependentes, no sentimento devazio que o dominou em seus ltimos anos.

    Por outro lado, Mozart era uma pessoa que sentia uma insacivelnecessidade de amor, tanto fsico como emocional. Um dossegredos de sua vida era provavelmente a sensao que tinha,desde a mais tenra idade, de que ningum o amava. Talvez muitode sua msica tenha sido uma procura constante de afeto, abusca de estima por parte de um homem que, desde a infncia,nunca esteve seguro de merecer o amor daqueles que significa-vam tanto para ele e que, em alguns aspectos, sentiu poucoamor por si mesmo. Embora a palavra "tragdia" soe aqui umtanto banal e grandiosa, pode-se afirmar, com alguma justia,que o lado trgico da existncia de Mozart deve-se ao fato de

    que ele, desde jovem, em sua luta por conseguir o amor daspessoas, no se sentiu amado por ningum, nem mesmo por siprprio. Sem dvida alguma, o tipo de carncia do qual sepode morrer. Tudo indica que no fim M ozart vivia em estado desolido e desespero. Sabia que morreria em breve; em seu casoisto provavelmente significava que desejou morrer, e que, decerta maneira, escreveu o Rquiem para si mesmo.

    At que ponto so fidedignos os retratos que temos de M ozart,especialmente do jovem M ozart, uma questo ainda em aberto.M as um dos traos que o tornam mais atraente, ou, se preferirem,mais humano, que ele no tinha um desses semblantes heri-cos, como as bem conhecidas fisionomias de Goethe ou de

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    Beethoven, que os marcavam como homens de gnio, fossequando entravam num recinto, ou quando punham o p na rua.O rosto de Mozart nada tinha de herico. O nariz proeminente,carnudo, que parecia inclinar-se em busca do queixo levementeerguido para cima, perdeu algo de suas grandes dimenses medida que o rosto engordou. Por cima do nariz, vigiavam olhosmuito alertas e vivazes, ao mesmo tempo maliciosos e sonhado-res ainda um pouco tmidos no jovem de 24 anos que apareceno retrato de famlia feito por Johann Nepomuk delia Croce; 3mais seguros, porm ainda com o ar sonhador e maroto, emretratos posteriores. Os quadros pouco mostram um lado de Mo-zart que escapa observao na seleo de obras ditadas pelogosto do pblico de concerto, mas que merece meno para darvida a M ozart como homem. o bufo que nele havia, o palhaoque saltava sobre cadeiras e mesas, que dava cambalhotas ebrincava com as palavras e, evidente, com os sons. No podemosentender completamente Mozart se esquecermos que existiamaspectos ocultos em sua personalidade mais bem caracterizadospela afirmao posterior Lacbe, Bajazzo(Ria, palhao), ou pelamemria da no-amada e enganada Petrushka.

    Aps sua morte, a esposa afirmou "lamentar" muito por M ozartquando este se viu "logrado". 4 pouco provvel que ela no otenha "logrado" (se que a palavra apropriada) ou que ele oignorasse assim como pouco provvel que ele tenha seabstido inteiramente de conduta semelhante com outras mulhe-res. Mas isto se aplica aos ltimos anos, quando, as luzes lenta-mente se apagavam em sua vida, quando a sensao de no seramado, de ser um fracasso, ou seja, sua tendncia depressivaeternamente presente aflorou, impelida pelos reveses profissio-nais e infortnios domsticos. Naquele momento, veio luz adiscrepncia to marcante em Mozart entre uma vida socialcheia de significado quando vista objetivamente, mais precisa-mente a partir de uma perspectiva do "ele", e a vida cada vezmais sem significado, quando vista da perspectiva do "eu", ouseja, do ponto de vista de seus prprios sentimentos.

    3 Cf. a reproduo em Hildesheimer, op. cit., aps a p.152 [ed. bras.: p.64].4 Hildesheimer, op. cit., p. 244 [ed. bras.: p.201].

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    A princpio, tudo correu bem por vrios anos. A estrita disci-plina imposta por seu pai deu frutos. Converteu-se em autodis-ciplina, capacitando o jovem a trabalhar, depurando e transfor-mando em msica as fantasias que nele fervilhavam, sem queperdessem a espontaneidade ou a inventividade. Seja como for,Mozart teve de pagar caro pelas vantagens alcanadas graas aseu talento em consumar suas fantasias pessoais.Para se compreender algum, preciso conhecer os anseiosprimordiais que este deseja satisfazer. A vida faz sentido ou nopara as pessoas, dependendo da medida em que elas conseguemrealizar tais aspiraes. Mas os anseios no esto definidos antesde todas as experincias. Desde os primeiros anos de vida, osdesejos vo evoluindo, atravs do convvio com outras pessoas,e vo sendo definidos, gradualmente, ao longo dos anos, naforma determinada pelo curso da vida; algumas vezes, porm,isto ocorre de repente, associado a uma experincia especial-mente grave. Sem dvida alguma, comum no se ter conscin-

    cia do papel dominante e determinante destes desejos. E nemsempre cabe pessoa decidir se seus desejos sero satisfeitos,ou at que ponto o sero, j que eles sempre esto dirigidospara outros, para o meio social. Quase todos tm desejos claros,passveis de ser satisfeitos; quase todos tm alguns desejos maisprofundos impossveis de ser satisfeitos, pelo menos no presenteestgio de conhecimento.

    N o caso de Mozart, tambm estes ltimos desejos podem serpercebidos; e so responsveis, em grande medida, pelo cursotrgico de sua vida. H termos tcnicos estereotipados quedenotam os aspectos de seu carter a que se alude com esta

    afirmao. Poderamos falar, por exemplo, de uma estrutura depersonalidade manaco-depressiva com caractersticas parani-des; suas tendncias depressivas teriam sido controladas, poralgum tempo, pela capacidade de transformar sonhos diurnosmusicais de um modo orientado pela realidade e pelo sucessodela resultante. Porm, depois, as tendncias autodestrutivas,particularmente as que lutavam contra o sucesso no amor e navida social, passaram a dominar. Sem dvida, a forma especialque tais tendncias assumem no caso de Mozart sugere quetalvez seja necessria uma classificao um pouco diferente.

    Ao que parece, Mozart, embora orgulhoso de si e de seusdons, no tinha, no fundo do corao, nenhum amor por si

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    mesmo e pode-se muito bem imaginar que ele no se achavaparticularmente digno de amor. No era de aparncia atraente. primeira vista, seu rosto era pouco sedutor; possvel quedesejasse um rosto diferente quando se olhava no espelho. Ocrculo vicioso inerente a tal situao ocorre quando o rosto eo fsico da pessoa esto distantes de seus desejos e despertamdesprazer, em parte porque algo de seus sentimentos de culpa,de sua secreta averso por si mesma, neles se expressa. Quais-quer que tenham sido as razes, nos anos finais, quando suaaparncia estava se deteriorando, seu sentimento de no seramado claramente aparecia com mais fora, junto com um desejoigualmente forte e no satisfeito de ser amado, em vrios planos pela mulher, por outras mulheres, por outras pessoas emgeral, ou seja, ser amado como homem e como msico. Suaimensa capacidade de sonhar em estruturas sonoras estava aservio deste secreto anseio de amor e afeto.

    Claro, este sonho em padres sonoros era tambm um fim emsi mesmo. A rica abundncia de sua imaginao musical diluiupor algum tempo, ao que parece, sua amargura em relao falta ou perda de amor. Pode ter refreado a constante suspeitade que o amor da mulher tivesse migrado para outros homens,e seu atormentado sentimento de no ser totalmente digno doamor dos outros um sentimento que concorreu para que osoutros afastassem dele seu amor e afeto, e contribuiu para abreve durao de seu grande sucesso, que logo se desvaneceucomo uma quimera.

    A tragdia de Bajazzo apenas uma imagem. Mas ajuda aesclarecer a conexo entre o Mozart bufo e o grande artista,entre a eterna criana e o homem criativo, entre a paspalhicede Papageno e a profunda seriedade do desejo de morte dePamina. Um homem pode ser um grande artista, o que no oimpede de ter algo de palhao. O fato de ser realmente umvencedor, e de representar um inegvel benefcio para a huma-nidade, no impede que se veja como um perdedor, e portantoque se condene a ser um perdedor na realidade.

    A tragdia de Mozart, que em parte foi deste tipo, fica facil-mente oculta dos ouvintes pelo carter sedutor de sua msica.Isto prejudica nosso envolvimento com ele. No pode ser muitocorreto separar desta maneira o artista do homem, retrospecti-vamente. Deve ser difcil, afinal de contas, amar a arte de Mozartsem sentir um pouco de amor pelo homem que a criou.

    Msicos burgueses nasociedade de cone

    Mozart s emerge claramente como um ser humano quando seusdesejos so considerados no contexto de seu tempo. Sua vida um estudo de caso de uma situao cuja peculiaridade muitasvezes nos escapa, j que estamos acostumados a operar comconceitos estticos. Mozart era um representante musical do

    rococ ou do sculo XIX burgus? Sua obra foi a ltima mani-festao de uma msica pr-romntica "objetiva", ou ela jmostra sinais do "subjetivismo" que despontava?

    O problema que tais categorias no nos levam muito longe.So abstraes acadmicas, que no fazem justia ao carter-pro-cesso dos dados sociais observveis a que se referem. Subjacentea elas est a idia de que a metdica diviso em pocas, quenormalmente encontramos nos livros de histria, se adapta per-feitamente ao curso real do desenvolvimento social. Cada figuraconhecida pela magnitude de sua realizao definida, ento,como o ponto alto de uma poca ou outra. No entanto, apsum exame mais acurado, no raro que as realizaes notveisocorram mais freqentemente em pocas que poderiam, nomximo, ser chamadas de fases de transio, caso usemos oconceito esttico de "pocas". Em outras palavras, tais realizaessurgem da dinmica do conflito entre os padres de classes maisantigas, em decadncia, e os de outras, mais novas, em ascenso.

    Isto certamente vale para o caso de Mozart. O alvo de seusdesejos, e as razes pelas quais contrariamente ao julgamentoda posteridade no final da vida ele se sentiu um fracasso,no podem ser entendidos adequadamente se no for conside-rado este conflito de padres. O conflito no acontecia apenasno campo social mais amplo, entre os valores e ideais das classes

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    aristocrticas da corte e os dos estratos burgueses; as coisas noeram to simples. Ocorria tambm no interior de muitos indiv-duos, inclusive do prprio Mozart, como um conflito que per-passava toda a sua existncia social.

    A vida de Mozart ilustra nitidamente a situao de gruposburgueses outsiders numa economia dominada pela aristocraciade corte, num tempo em que o equilbrio de foras ainda eramuito favorvel ao establishment corteso, mas no a ponto desuprimir todas as expresses de protesto, ainda que apenas naarena, politicamente menos perigosa, da cultura. Como um bur-gus outsider a servio da corte, Mozart lutou com uma coragemespantosa para se libertar dos aristocratas, seus patronos e se-nhores. Fez isto com seus prprios recursos, em prol de suadignidade pessoal e de sua obra musical. E perdeu a batalha como, pode se afirmar com a presuno da viso a posterior,era de se esperar. No entanto, aqui, como em outros casos, talpresuno esconde a estrutura do que agora chamamos de"histria". Tambm impede nossa compreenso do significadoque, num tempo passado, o curso dos eventos tinha para osprprios seres humanos que os viviam.

    N um contexto diferente, j falei sobre a estrutura do conflitode padres entre a corte e os grupos burgueses. 5 Tentei demons-trar que na segunda metade do sculo XVIII conceitos como"civilidade" ou "civilizao", por um lado, e "cultura", por outro,eram usados na Alemanha como smbolos de padres diferentesde comportamento e de sentimento. Foi possvel mostrar que ouso de tais palavras refletia a tenso crnica entre os crculosdo establishment corteso e os grupos burgueses outsiders. Istotambm chamou a ateno para certos aspectos das implacveislutas de classe entre as classes mdias e a aristocracia (queremontam s origens das cidades medievais da Europa). Assimcomo a estrutura das sociedades europias, o carter social dosdois grupos mudou de maneira especfica em seus sete ou oitosculos de luta uma luta que finalmente chegou ao fim nosculo XX com a ascenso das duas classes econmicas e a

    5 Norbert Elias, State Formation and Civilization, Oxford, 1982, Cap. l [ed.bras.: O processo civilizador Formao do Estado e Civilizao. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1993].

    Msicos burgueses na sociedade de corte 17

    des-funcionalizao da nobreza enquanto estrato social. Em todaesta longa luta de classes podem se observar conflitos entrepadres diferentes, bem como uma aproximao e uma fusoentre os padres dos grupos burgueses e nobres. Foi o solo emque se desenvolveu o absolutismo aristocrtico, 6 do mesmo modoque o absolutismo burgus e proletrio de nossos dias surgiu

    das lutas entre estes dois estratos econmicos.M as at agora no nos falta apenas um estudo global sobre ocurso e a estrutura do longo conflito de classes entre a nobrezae a burguesia nas sociedades europias (e outras); faltam-nos,tambm, estudos sobre muitos aspectos individuais das tensessociais que aqui nos interessam. A vida de Mozart ilustra umdestes aspectos de maneira verdadeiramente paradigmtica odestino de um burgus a servio da corte no final do perodo,quando, em quase toda a Europa, o gosto da nobreza de corteestabelecia o padro para os artistas de todas as origens sociais,acompanhando a distribuio geral de poder. Isto se aplicava

    especialmente msica e arquitetura.N os campos da literatura e da filosofia era possvel, na Ale-manha da segunda metade do sculo XVIII, liberar-se do padrode gosto aristocrtico-corteso. As pessoas que trabalhavam emtais setores podiam chegar ao seu pblico atravs dos livros; e,como j havia um pblico leitor bastante grande e crescente emmeio burguesia alem desse perodo, ali puderam surgir, rela-tivamente cedo, formas culturais especficas de cada classe. Taisformas satisfaziam os padres de gosto dos grupos burgueses,no-cortesos, e expressavam sua crescente confiana face aoestablishment aristocrtico dominante.

    Com respeito msica, a situao ainda era muito diferentenaquela poca especialmente na ustria e em sua capital,Viena, sede da corte imperial, como, em geral, tambm nospequenos pases alemes. Tanto na Alemanha como na Franaas pessoas que trabalhavam neste campo ainda eram fortementedependentes do favor, do patronato e, portanto, do gosto dacorte e dos crculos aristocrticos (e do patriciado burgus ur-bano, que seguia seu exemplo). Na verdade, mesmo na geraode M ozart, um msico que desejasse ser socialmente reconhecido

    6 Cf. Norbert Elias, Oxford: T he Court Society, 1983.

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    como artista srio e, ao mesmo tempo, quisesse manter a si e sua famlia, tinha de conseguir um posto na rede das instituiesda corte ou em suas ramificaes. No tinha escolha. Se sentisseuma vocao que o levasse a realizaes notveis, quer comoinstrumentista, quer como compositor, era praticamente certoque s poderia alcanar sua meta caso conseguisse um cargo

    permanente numa corte, de preferncia uma corte rica e espln-dida. Nos pases protestantes havia tambm a oportunidade deocupar a posio de organista de igreja e regente em uma dascidades grandes e semi-autnomas, normalmente governadas porum grupo de patrcios. Mas mesmo a, como podemos ver pelavida de Telemann, por exemplo, ao procurar um posto de msicoprofissional era vantajoso j ter ocupado anteriormente um cargosimilar numa corte.

    O que chamamos de corte principesca era, essencialmente, opalcio do prncipe. Os msicos eram to indispensveis nestesgrandes palcios quanto os pasteleiros, os cozinheiros e os

    criados, e normalmente tinham o mesmo status na hierarquia dacorte. Eles eram o que se chamava, um tanto pejorativamente,de criados de libre. A maior parte dos msicos, sem dvida,ficava satisfeita quando tinha garantida a subsistncia, como asoutras pessoas de classe mdia na corte. Entre os que no sesatisfaziam estava o pai de Mozart. Mas ele tambm se curvou,sem querer, a circunstncias a que no podia escapar.

    Esta era a estrutura fixa em cujo interior cada talento musicalindividual tinha de se manifestar. No possvel compreendera msica daquela poca, seu "estilo", como muitas vezes se diz,sem ter em mente, de maneira clara, tal estrutura. Mais tarde

    voltaremos a isto.O destino individual de Mozart, sua sina como ser humanonico e portanto como artista nico, foi muito influenciado porsua situao social, pela dependncia do msico de sua pocacom relao aristocracia da corte. Aqui podemos ver como, ano ser que se domine o ofcio de socilogo, difcil elucidaros problemas que os indivduos encontram em suas vidas, noimporta quo incomparveis sejam a personalidade ou realiza-es individuais como os bigrafos, por exemplo, tentamfazer.7 preciso ser capaz de traar um quadro claro das pressessociais que agem sobre o indivduo. Tal estudo no umanarrativa histrica, mas a elaborao de um modelo terico

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    verificvel da configurao que uma pessoa neste caso, umartista do sculo X VIII formava, em sua interdependncia comoutras figuras sociais da poca.

    Em 1777, aos 21 anos, Mozart pediu dispensa a seu emprega-dor, o prncipe-bispo de Salzburgo (depois de lhe ter sidorecusado um pedido de frias); partiu, ento, animado, feliz,cheio de esperanas, para tentar um posto, primeiro na corte deMunique, depois com os patrcios de Augsburgo, em Mannheime em Paris, onde esperou em vo um homem cada vez maisamargo nas antecmaras de damas influentes e de fidalgos;finalmente retornou, desapontado e contra a vontade, a Salzbur-go, onde foi nomeado regente da orquestra e organista da corte tudo isso bastante conhecido. Mas o significado de talexperincia para o desenvolvimento pessoal de Mozart eportanto para seu desenvolvimento como msico ou, colocandode maneira diferente, para o desenvolvimento de sua msica no pode ser percebido de maneira realista e convincente casose descreva apenas o destino da pessoa individual, sem apre-sentar tambm um modelo das estruturas sociais da poca,especialmente quando levam a diferenas de poder. S dentroda estrutura de tal modelo que se pode discernir o que umapessoa como Mozart, envolvida por tal sociedade, era capaz defazer enquanto indivduo, e o que no importa sua fora,grandeza ou singularidade no era capaz de fazer. S ento,em suma, possvel entender as coeres inevitveis que agiamsobre Mozart e como ele se comportou em relao a elas secedeu sua presso e foi assim influenciado em sua produomusical, ou se tentou escapar ou mesmo se opor a elas.

    N o a menor das razes para sua tragdia o fato de Mozarthaver tentado, pessoalmente e em sua obra, romper as barreiras

    7 A sociologia normalmente tida como uma disciplina destrutiva e redutora.N o partilho desta viso. Para mim, a sociologia uma cincia que deverianos ajudar a entender melhor, e explicar, o que incompreensvel em nossavida social. por isso que escolhi o subttulo aparentemente paradoxal "Asociologia de um gnio". No meu propsito destruir o gnio o u reduzi-loa outra coisa qualquer, mas tornar sua situao humana mais fcil de entender,e talvez ajudar, de maneira modesta, a responder pergunta do que se deveriater feito para evitar que acontecesse um destino como o de Mozart. A oapresentar sua tragdia como tento fazer e apenas u m exemplo de umproblema mais geral , pode ser que as pessoas se tornem mais conscientesda necessidade de se comportar com maior respeito em relao aos inovadores.

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    da estrutura social de poder atravs de seus prprios esforosindividuais, enquanto ainda estava fortemente atado ao gosto desua sociedade atravs de sua imaginao e conscincia musicais e o fato de t-lo feito numa fase do desenvolvimento socialem que a estrutura tradicional de poder estava virtualmenteintacta.

    A maior parte das pessoas que seguia uma carreira musical erade origem no-nobre, ou, em nossa terminologia, burguesa. Sequisessem ter xito na sociedade de corte, e encontrar oportu-nidades para desenvolver seus talentos como msicos ou com-positores, eram obrigadas, por sua posio inferior, a adotar ospadres cortesos de comportamento e de sentimento, no ape-nas no gosto musical, mas no vesturio e em toda a sua carac-terizao enquanto pessoas. Em nossos dias, tal necessidade deadaptar-se s demandas do establishment, seguindo a distribuio

    de poder, mais ou menos dada como bvia pelas pessoassocialmente dependentes. Os empregados de uma grande em-presa ou loja de departamentos, especialmente quando queremser promovidos, logo aprendem a ajustar seu comportamento aopadro da empresa. Mas em sociedades onde h um mercadorazoavelmente livre de oferta e demanda e mesmo, em algumasreas, de empregos para profissionais, a diferena de poder entreo establishment econmico e os outsiders muito menor do quea existente entre governantes absolutistas ou seus conselheirose os msicos de sua corte muito embora os artistas famosose Ia mode pudessem tomar certas liberdades. O clebre Gluck,

    um homem de origem pequeno-burguesa que absorveu as suti-lezas dos padres dominantes com grande verve tanto no gostomusical como no comportamento pessoal, conseguia, como qual-quer outro corteso, fugir disso, sendo, s vezes, at grosseiro.Havia, portanto, no apenas uma nobreza de corte, mas umaburguesia de corte.

    At certo ponto o pai de Mozart pertencia a esta classe. Eleera empregado, ou, mais precisamente, funcionrio do arcebispode Salzburgo, que era, naturalmente, o prncipe governante deum pequeno Estado. Como todos os governantes do tipo, oarcebispo tinha, mesmo que em escala reduzida, todo o aparatooficial que era parte e obrigao de uma corte absolutista,

    Msicos burgueses na sociedade de corte 21

    inclusive uma orquestra. Leopold Mozart era regente-substituto.Tais cargos eram ocupados e pagos de maneira semelhante dos empregados numa empresa privada do sculo XIX. Os sinaisde subordinao que se esperavam de um empregado da corteeram provavelmente ainda mais evidentes, dada a maior diferen-a de poder, assim como os gestos de superioridade por parte

    dos governantes, tidos por naturais.8

    Talvez se deva acrescentar que as relaes entre senhores eserviais at os de nvel mdio, como Leopold M ozart erammuito mais pessoais, mesmo na corte imperial de Viena e certa-mente na pequena corte do arcebispo de Salzburgo, do que asrelaes entre diretores e gerentes de uma grande empresacomercial de nossos dias. Em geral, os prprios prncipes deci-diam as nomeaes para suas orquestras. A distncia social eraimensa, mas a distncia espacial, muito pequena. As pessoasestavam sempre juntas, o senhor estava sempre por ali.

    Embora a situao social comum de um msico no tempo deMozart fosse a de servial da corte, onde recebia ordens de umindivduo todo-poderoso situado muito acima na hierarquia,havia, mesmo assim, excees no interior de tal sociedade. Certosmsicos agradavam tanto ao pblico da corte por seu talentoespecial como virtuose ou como compositor, que sua fama seespraiava para alm da corte local onde estavam empregados,chegando aos mais altos nveis da sociedade. Em tais casos, omsico burgus era tratado quase como igual pelos nobres dacorte. Era chamado para tocar nas cortes dos poderosos, comoaconteceu com M ozart; imperadores e reis exprimiam abertamen-te prazer com sua arte e admirao por suas realizaes. Tinhapermisso para jantar mesma mesa normalmente em trocade uma execuo ao piano; muitas vezes se hospedava em seuspalcios quando viajava e assim conhecia intimamente seu estilode vida e seu gosto.

    Era caracterstico do grande artista burgus de corte viver, atcerto ponto, em dois mundos. Toda a vida e a obra de Mozart

    8 Por razes semelhantes, os deveres eram menos especializados. Bach,quando foi nomeado organista da corte de Weimar, do muito piedoso duqueWillhelm-Ernst, e ra obrigado a vestir u m uniforme da guarda aduaneira e tocarflauta na pequena orquestra de cmara.

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    foram marcadas por esta ciso. 9 Por um lado, ele se movia emcrculos da aristocracia de corte, cujo gosto musical adotou ecujo padro de comportamento deveria seguir. Por outro, elerepresentava um tipo especfico daquilo que somos obrigados adesignar atravs de um termo extremamente precrio, a "peque-na burguesia" de sua poca. Ele era membro do crculo dos

    empregados de nvel mdio, o que poderia ser chamado domundo "de escada abaixo". 10 Na Inglaterra, o padro dominantede comportamento e de sentimento era, em grande parte e demodo caracterstico, transferido para o pessoal empregado dacasa aristocrtica (poucos podem rivalizar-se ao mordomo inglsde tipo antigo quanto aos conhecimentos sobre o comportamentopadro dos cavalheiros, a no ser os porteiros dos hotis inter-nacionais). No era o que acontecia, at onde podemos ver, naustria dos Habsburgo. O padro de comportamento normalentre os conhecidos dos pais de Mozart diferia muito intensa-mente, como veremos adiante em detalhes, dos padres da cortearistocrtica.

    Leopold Mozart, servial de prncipes e burgus de corte, noapenas educou musicalmente o jovem Wolfgang nos termos dogosto corteso, como tambm buscou conformar seu comporta-mento e sentimentos ao padro da corte. No que se refere tradio musical, foi muito bem-sucedido. Mas, quanto ao com-portamento e aos sentimentos, sua tentativa de fazer dele umhomem do mundo fracassou lamentavelmente. Tentou ensinar-lhe a arte da diplomacia de corte, a bajulao atravs doscircunlquios adequados, e conseguiu o oposto. Wolfgang Mo-

    9 A ciso certamente no uma caracterstica apenas de Mozart; tanto elacomo sua influncia sobre a caracterizao pessoal se encontram em outrosartistas e intelectuais burgueses na sociedade de corte. Um exemplo bemconhecido aconteceu quando Voltaire desafiou um nobre bem-nascido paraum duelo, por se sentir insultado, e o nobre mandou um de seus lacaiosdar-lhe um a surra na rua, como sinal de que encarava como um a arrognciao desafio por um burgus. O fato de que pessoas da classe burguesa dotadasde um especial talento intelectual ou artstico fossem recebidas quase comoiguais em alguns salons de Paris e por alguns nobres italianos ou alemespode fazer-nos facilmente esquecer que, p or todo o sculo X VIII, e em vastasreas da Europa a t 1918, os burgueses eram tidos e tratados pelos governantescomo cidados de segunda classe, como pessoas de camadas inferiores.10 Este mundo "do rs do cho" , sabemos, assunto de muitas comdiasinglesas e de muitas piadas.

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    zart continuou tendo um comportamento totalmente franco edireto; assim como mostrava uma imensa espontaneidade desentimento em sua msica, era extraordinariamente rude em suaconduta pessoal. No conseguia esconder o que sentia, nemmostr-lo de forma insinuante, e detestava qualquer forma derelao humana que o forasse a usar de circunlquios e eufe-

    mismos, a fazer rodeios. Embora tivesse crescido margem deum a pequena corte e mais tarde tivesse viajado de uma cortepara outra, jamais adquiriu a polidez especial do corteso; nuncase tornou um homem do mundo, um homme du monde, umcavalheiro, no sentido que tinha esse termo no sculo XVIII. Adespeito dos esforos do pai, manteve por toda a vida a carac-terizao de uni burgus de classe mdia.

    Sua atitude comportava fissuras internas. Tinha conscincia dasuperioridade que a polidez cortes conferia, e impossvel queno tenha sentido o desejo de provar que era um cavalheiro,um honnte homme, um homem de honra. Refere-se com muita

    freqncia sua "honra" este conceito central do padroaristocrtico foi absorvido na auto-imagem de Mozart. verdadeque ele no o usava exatamente no sentido do modelo corteso;queria, com isso, expressar seu desejo de ser tido como igualpelas pessoas da corte. E, como tinha algo de ator, naturalmentetentava representar o papel do corteso. Desde cedo aprendeua se vestir maneira da corte peruca inclusive e semdvida tambm aprendeu a maneira certa de andar e de devolverum cumprimento. Mas pode-se imaginar que o gozador que havianele logo comeou a debochar dos ares e das afetaes da corte.

    Muito j se escreveu sobre o papel que o ressentimento de M ozartcom respeito nobreza da corte teve em sua msica. Mas nadade confivel se pode dizer sem que se investigue como Mozartvia a si mesmo em relao classe dominante de seu tempo.

    Sua situao era muito peculiar. Embora fosse um subordinado,socialmente dependente dos aristocratas da corte, a clara nooque tinha de seu extraordinrio talento musical levava-o a sesentir igual, ou mesmo superior a eles. Era, numa palavra, um"gnio", um ser humano excepcionalmente dotado, nascidonuma sociedade que ainda no conhecia o conceito romnticode gnio, e cujo padro social no permitia que em seu meio

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    houvesse qualquer lugar legtimo para um artista de gnio alta-mente individualizado. Pode-se imaginar agora: o que isto sig-nificou para Mozart e para seu desenvolvimento em termoshumanos? Claro, podemos apenas formular hipteses; faltam asevidncias (embora no inteiramente). Mas basta ter em contaesta estranha situao, de certa maneira nica, para chegar a

    uma chave vital na compreenso de M ozart. Sem tal reconstruo,sem uma noo da estrutura de sua situao social um gnioantes da poca dos gnios , nosso acesso a ele fica bloqueado.

    A reao do prprio Mozart a esta situao era multifacetada.Conceitos em preto e branco, como "amizade" ou "inimizade",so inadequados aos conflitos e tenses que aqui nos interessam.Mozart viveu a ambivalncia fundamental do artista burgus nasociedade de corte, que pode ser resumida na seguinte dicoto-mia: identificao com a nobreza da corte e seu gosto; ressenti-mento pela humilhao que ela lhe impunha.

    Comecemos pelo aspecto mais bvio: sua crescente animosi-

    dade contra os aristocratas da corte, que o tratavam como inferior.Pode ser que este tenha sido um fenmeno de gestao longa.O prodgio de origem relativamente humilde no poderia tersido completamente poupado de algo que naquele tempo ocorriacom naturalidade maioria dos nobres da corte, como parte deseu repertrio social: o tratamento condescendente, a humilhaodo burgus.

    O desagrado de Mozart com o tratamento altaneiro que lheera conferido pelos nobres da corte aparece muito claramentenas cartas de seu perodo parisiense. Ele era obrigado a visit-lose a fazer o mximo para obter seus favores, pois estava procu-

    rando emprego e precisava da recomendao deles. Se nestaviagem ele no conseguisse uma posio, teria de voltar aSalzburgo, famlia, ao pai que tinha dado a maior parte dodinheiro para a viagem e possivelmente ao prncipe-arcebispoque ditava o tipo de msica que ele devia escrever e tocar. Ascondies em Salzburgo eram como uma priso para ele. Porisso, em Paris era obrigado a fazer visitas cerimoniosas a senhorase cavalheiros importantes, que o tratavam como ele era narealidade, um servial se bem que no exatamente no mesmotom em que tratavam seus cocheiros. Afinal de contas, escreviaboa msica. Mas Mozart sabia que a maioria, se no todos aquelesa que queria agradar, tinha apenas uma remotssima noo de

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    sua msica, e nenhum reconhecia seu excepcional talento. Pode-se imaginar que se conscientizou de seu talento poca de seussucessos como menino prodgio. A conscincia da extraordinrianatureza de sua imaginao musical deve ter se formado gra-dualmente, com muitas dvidas. E agora ele, que a seus prpriosolhos nunca deixou de ser um prodgio, precisava ir de uma

    corte a outra implorando por um posto. provvel que notivesse previsto tal coisa. Suas cartas refletem um pouco destedesapontamento e constrangimento.

    Depois de Paris, parece ter tido cada vez mais a impressode que no era apenas esta ou aquela corte aristocrtica que oirritava e humilhava, mas que todo o mundo social em que viviaestava, de alguma maneira, errado. Isto no deve ser mal inter-pretado. At onde sabemos, Mozart no tinha interesse pelosideais polticos ou humanitrios gerais, mais abstratos. Seu pro-testo social expressava-se, no mximo, em comentrios como:"Voc sabe muito bem que os melhores e mais verdadeiros

    amigos so os pobres. A riqueza no sabe o que significaamizade." 11 Achava injusto o tratamento que recebia, irritou-see lutou contra ele sua maneira. Mas foi sempre uma luta muitopessoal. E esta no foi a menor das razes pelas quais deveriaser derrotado.

    Acrescente-se, como j foi dito, sua falta de elegncia descon-trada, da finura e da destreza necessrias em escaramuas ver-bais, nos crculos cortesos, para saber navegar ao largo dosrecifes ocultos e dos abismos at o objetivo desejado. difcilsaber se ele no queria ou no conseguia assimilar o padro desentimento e de comportamento corteso, to necessrio quanto

    suas qualificaes musicais para ser bem-sucedido na procurade uma colocao. Talvez as duas coisas, falta de vontade eincapacidade, andassem juntas. Seja como for, vemos a os

    11 Cf. Hildesheimer, op. cit. , p.89 [ed. bras.: p.78]. A citao de uma cartade 7 de agosto de 1778: T he Letters of Mozart and bis Family (organizadascronologicamente, traduzidas e organizadas por Emily Anderson), Londres,1985, p.593. (A partir de agora, referidas como IMF; as citaes de cartas sotiradas desta fonte. Referncias correspondncia de Mozart sem citao sode: Mozart, Briefe und Aufzeichnungen, edio completa, reunida e anotadapor Wilhelm A . Bauer e Otto Erich Deutsch [e Joseph Heinz Eibl], 7 vols.,Kassel/Basle/Londres/N ova York 1962-75). Apenas o volume e as pginas soapresentados nas notas.

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    sintomas de um conflito de padres que se travava tanto em seuinterior quanto entre ele e as demais pessoas. M ozart gostava dese vestir elegantemente, moda da corte. Mas no tinha nenhumaaptido especial para aquelas habilidades que teriam conquistadoas pessoas acima dele naqueles crculos, e das quais dependiamuito, para ter satisfeitos seus pedidos. E faltava-lhe quase por

    inteiro aquele conhecimento especfico das pessoas, que permitiaaos cortesos identificar imediatamente os que, por seus critrios,pertenciam ou no a seu crculo, e a ajustar em funo dissoseu comportamento em relao a eles.

    Mozart procurando emprego em Paris o tipo de episdio deque no se esquece facilmente. Ficou irritado e magoado como tratamento que recebeu e realmente no tinha a menor idiado que estava acontecendo. Sua solitria revoluo, sua tentativade sair daquela situao em que dependia de um aristocrata seusuperior, com direito de controlar sua msica, lentamente come-ava a tomar forma.

    De qualquer modo, essa camada de sua revolta pessoal estavaclara e indissoluvelmente ligada a outra, a revolta contra o pai.Leopold Mozart tinha educado o filho para a carreira de msiconuma sociedade de corte. Lembremos que, do ponto de vistasociolgico, seu comportamento se encontrava bastante prximoda antiga tradio dos ofcios artesanais. 12 No interior de talestrutura era comum o pai assumir o papel de mestre e ensinarao filho as artes do ofcio, talvez at mesmo desejando que algumdia o filho excedesse sua prpria percia. Sem dvida teremosum quadro mais completo e bem-acabado da peculiaridade datradio musical dos sculos XVII e X VIII na corte e na igreja se tivermos em mente que a msica ainda mantinha muitodo carter de ofcio, e que, especialmente nos crculos cortesos,ela era marcada por uma agudssima desigualdade social entreprodutor da arte e patrono.

    Leopold Mozart ainda tinha razes muito firmes em tal tradio.Criou o filho de acordo com este padro. Era parte dele uma

    12 Tal tradio explica por que famlias de artistas como os Mozart, ou osBach so to comuns na Alemanha.

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    posio social como msico de corte. O total fracasso da dis-pendiosa tentativa do filho em busca de um cargo em lugarescomo Paris constituiu um amargo desapontamento para ele.Conseguiu persuadir o prncipe-arcebispo de Salzburgo a receberde volta o fracassado fujo, como regente da orquestra e organistada corte, em reconhecimento a seus brilhantes dotes. Assim, noincio de 1779, Wolfgang Mozart estava de volta cidade natal,sob a superviso direta do pai e sob as ordens de seu antigosenhor, que era tambm o senhor de Leopold Mozart. Nestasegunda fase de Salzburgo, Mozart escreveu o que seria a ltimade suas peras ao estilo corteso tradicional, Idomeneo, umaopera seria, cujo libreto, de acordo com os padres da corteabsolutista, louvava adequadamente o prncipe por sua gentilezae generosidade.

    Em 1781, poucos meses aps a primeira apresentao deIdomeneo, Mozart rompeu com o prncipe-arcebispo; com amaior dificuldade obteve sua dispensa atravs do expediente dofamoso "chute no traseiro". Foi o clmax de sua revolta pessoalcontra a imposio de um papel subordinado, como servial deum senhor absoluto.

    O pai de Mozart ainda era, de maneira mais ou menos segura,um burgus da corte. Como construo social, uma corte prin-cipesca tinha uma forma estritamente hierrquica, a de umapirmide aguda. Leopold Mozart se encaixava nesta estrutura,no sem problemas, no sem a vulnerabilidade do outsider. Massobre ele o poder da configurao era inescapvel. Conhecia seulugar, dedicava-se a ele de corpo e alma e esperava o mesmodo filho. Esperava grandes realizaes de Wolfgang de pre-ferncia numa corte maior do que Salzburgo, talvez a corte bvarade Munique, ou mesmo Paris; tais eram as ambies do pai. Ofilho no as satisfez. Seu fracasso nas cortes alems ou com ospatrcios de Augsburgo no era, de todo, irremedivel. Mas agoraWolfgang Mozart pedia demisso a seu empregador de Salzburgo.Do ponto de vista do pai, era um passo incompreensvel; o filhoestava prejudicando gravemente sua carreira, suas perspectivascomo msico de corte. De que iria viver?

    Como se v, a revolta do filho era dirigida igualmente contrao pai, o burgus de corte, e contra o arcebispo, o governanteda aristocracia da corte.

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    Mais uma vez, com aquela pretenso de quem vive numapoca posterior, podemos dizer retrospectivamente que, dentroda estrutura existente da sociedade austraca em geral e daprofisso de msico em particular, a revolta pessoal de Mozarttinha poucas possibilidades de alcanar o fim desejado. Mas oque teramos perdido se ele no tivesse tentado Pois incon-

    cebvel pensar que o rompimento de uma das figuras maisconhecidas do mundo musical de seu tempo com as condiesnormais de servio, com o esquema socialmente prescrito de suaprofisso, no tivesse afetado sua obra como compositor.

    Vale a pena observar a escaramua de Mozart com o arcebispode Salzburgo de uma distncia um pouco maior, num contextomais amplo. Atravs deste conflito no microcosmo da corte deSalzburgo veremos ento, representados por dois indivduos, osconflitos maiores no macrocosmo da sociedade da poca. Vemos

    que, no sentido mais amplo, havia um conflito entre um prncipe,um membro da alta nobreza que tambm era alto dignitrio daIgreja, e um membro da pequena burguesia, cujo pai tinhaascendido do status de arteso ao de servial da corte.

    N o entanto, a frmula pr-fabricada sobre a ascenso daburguesia em decorrncia de uma necessidade interna do de-senvolvimento social na segunda metade do sculo XVIII, der-rotando uma nobreza feudal j solapada pela mudana econ-mica da Revoluo Francesa, tende hoje em dia a ser aplicadade maneira to mecnica e rotineira que se perde de vista ocomplexo curso dos acontecimentos reais. Os problemas obser-

    vveis dos seres humanos so categorizados por conceitos declasse rebaixados a clichs, como "nobreza", "burguesia", "feu-dalismo" e "capitalismo". Categorias como estas bloqueiam oacesso a uma maior compreenso do desenvolvimento da msicae da arte em geral. Esta s possvel se a discusso no serestringir aos processos econmicos ou aos desenvolvimentosda msica, e se, ao mesmo tempo, for feita uma tentativa deiluminar o destino das pessoas que produziam msica e outrasobras de arte no interior de uma estrutura social em transfor-mao.

    N a juventude de Mozart, o poder dos monarcas absolutos eda aristocracia de corte (que algumas vezes confundida com

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    a nobreza de um estgio diferente do desenvolvimento social, anobreza feudal da Idade Mdia) ainda estava completamenteintacto. Relativamente intocado pela Revoluo Francesa, conti-nuou a existir por toda a vida dele no Imprio Habsburgo, bemcomo em muitas regies da Itlia e da Alemanha. Ali, como emoutros lugares, o establishment corteso se aferrava a sua posio

    de grupo social de nvel mais elevado, com um domnio que slentamente foi se esvaindo, at bem adiantado o sculo XIX e,em alguns casos, como nos grandes imprios europeus, at aguerra de 1914-18. bem verdade que nos Estados europeus asrelaes de fora mudaram neste perodo, o mesmo ocorrendocom a posio social dos artistas e o carter das artes. Mas asmudanas estruturais nas artes no incio e em meados do sculoX IX dificilmente podem ser compreendidas se forem carateriza-das apenas como "burguesas" e se for esquecida a influnciadas cortes aristocrticas.

    O conflito de Mozart com seu empregador, e na verdade asua vida inteira, mostra de maneira paradigmtica como o msicoburgus daquela poca mas no o escritor burgus depen-dia de um emprego na corte, ou pelo menos junto a um patri-ciado de corte. Mas na Alemanha (incluindo a ustria) e na Itliahavia uma soluo possvel para os msicos, uma chance deprocurar um outro emprego, para quem no estivesse satisfeitocom o que tinha. Essa oportunidade estava ligada estruturapeculiar de governo em tais territrios (e no ascenso daburguesia) e foi da maior importncia para o desenvolvimentoda msica nas regies alems e italianas.

    As fracassadas tentativas de integrao, ao Norte e ao Sul dosAlpes (tanto pelo governo central imperial como pelo papista),dos territrios que sucederam ao Sacro Imprio Romano deramorigem a vrios pequenos Estados, de menor nvel de integrao.N os pases que foram centralizados mais cedo, especialmenteFrana e Inglaterra, havia desde o sculo XVII uma corte quesuplantava todas as outras casas nobres em poder, riqueza einfluncia cultural. A Alemanha e a Itlia, em contraste, estavamfragmentadas em um nmero quase incalculvel de estab-lishment' cortesos ou urbanos. Para dar um exemplo: na pocade Mozart a pequena rea que hoje em dia a Subia estavadividida em 96 domnios diferentes 4 prncipes da Igreja, 14prncipes seculares, 25 senhores de terras, 30 cidades imperiais

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    e 23 prelados. 13 Em muitos desses territrios soberanos, osgovernantes absolutos mantinham uma organizao oficial queinclua, como item essencial de prestgio, uma orquestra perma-nente e remunerada. Essa multiplicidade constitua o aspectodistintivo da paisagem musical na Alemanha e na Itlia.

    N a Frana e na Inglaterra, as posies musicais decisivasestavam concentradas nas capitais, Paris e Londres, em resultadoda centralizao estatal. Nesses pases, portanto, um msico dealto nvel no tinha escapatria caso lhe acontecesse uma desa-vena com o prncipe seu empregador. No havia cortes quepudessem rivalizar com a do rei em poder, riqueza e prestgio,que pudessem, por exemplo, dar abrigo a um msico francscado em desgraa. Na Alemanha e na Itlia, porm, havia dziasde cortes e cidades que concorriam pelo prestgio e, portanto,pelos msicos. No exagero atribuir, entre outras coisas, aextraordinria produtividade da msica de corte nos territriosdo primeiro Imprio alemo a esta situao rivalidade pelo

    prestgio das muitas cortes e, conseqentemente, ao grandenmero de postos musicais. 14A configurao assim exposta constitua a precondio para

    o nmero relativamente grande de msicos profissionais quenaquela poca trabalhavam na Itlia e na Alemanha. Era tambmum fator que fortalecia os msicos em suas negociaes com osempregadores. Se um artista empregado na corte francesa renun-ciasse a seu posto, sua nica possibilidade de ganhar a vida serianuma corte fora da Frana, o que, aos olhos da maioria dosartistas franceses, significava um rebaixamento. Na Itlia e naAlemanha, era diferente; conhecemos muitos casos de artistasartesos que se desentenderam com seu senhor e se transferirampara um territrio diferente. Quando Michelangelo entrou emconflito com o Papa, foi para Florena e recusou-se a seguir os

    13 Arthur Hutchings, Mozart derMensch, Baarn 1976, p.ll.14 A comparao com a Inglaterra, onde, parte as importaes, produziu-sepouca msica notvel no sculo XVIII, sugere que a maior produtividademusical nos estados do antigo Sacro Imprio Romano tambm esteve ligadaa outra peculiaridade estrutural, a relao diferente entre nobreza e burguesianas duas reas. Na Alemanha, as barreiras entre as duas classes eram relati-vamente altas, com poucos pontos de encontro. A subordinao social epoltica dos burgueses nobreza, especialmente nobreza da corte, era muitomais estrita e mais pronunciada do que na Inglaterra.

    Msicos burgueses na sociedade de corte 31

    beleguins papais enviados para traze-lo de volta. B ach, ao rompercom seu empregador, o duque de Weimar, demitiu-se do postoe usou seus contatos para conseguir uma posio em outra corte.O duque, furioso, mandou encarcer-lo por insubordinao, masBach resistiu obstinadamente, conseguindo, por fim, a liberdade.

    Neste ltimo episdio, muito grande a semelhana com o

    caso de Mozart. Mas tais incidentes no so importantes apenaspara os bigrafos ou para o destino do msico envolvido. Elessomente se esclarecem se so compreendidos como caracters-ticos das diferenas de estrutura e de poder presentes na socie-dade de corte.

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    Mozart se torna artistaautnomo

    A deciso de Mozart de largar o emprego em Salzburgo signifi-cou, na verdade, o seguinte: ao invs de ser o empregadopermanente de um patrono, ele desejava ganhar a vida, da pordiante, como "artista autnomo", vendendo seu talento comomsico e suas obras no mercado livre.

    N a Alemanha do sculo XVIII, existia uma espcie de mercadolivre para os produtos literrios, em conexo com a proliferaode pequenos Estados. Havia formas primitivas de uma indstriaeditorial, ou seja, empreendimentos comerciais mais ou menosespecializados, ligados impresso, distribuio e venda de obrasliterrias. Crescia o pblico burgus instrudo e interessado emlivros alemes muitas vezes em deliberado contraste com anobreza de corte, basicamente interessada, na poca, nos escritosfranceses. Desta forma, surgiu no sculo XVIII a figura social do"escritor autnomo" de modo apenas ^experimental, pois,como se pode supor, ainda era muito difcil para um profissionalmanter-se e sua famlia com a renda de livros vendidos nomercado, sem a ajuda de algum patrono nobre. A vida de Lessing um bom exemplo. De qualquer maneira, havia um mercadolivre. Existia um pblico de burgueses instrudos, espalhados portoda a Alemanha, com renda suficiente para comprar livros edesejosos de faz-lo. O carter e a forma do movimento literrioalemo na segunda metade do sculo XVIII refletiam esta com-posio social.

    N a esfera da msica, esse desenvolvimento encontrava-serelativamente atrasado. A deciso de Mozart de se estabelecercomo artista autnomo ocorreu numa poca em que a estruturasocial ainda no oferecia tal lugar para msicos ilustres. O

    Mozart se torna artista autnomo 33

    mercado de msica e suas instituies correspondentes estavaapenas surgindo. A organizao de concertos para um pblicopagante, e as atividades editoriais na venda de msicas decompositores conhecidos, mediante adiantamentos, se encontra-vam, na melhor das hipteses, em seus estgios mais iniciais.Especificamente, faltavam ainda em grande parte as instituies

    necessrias para que o mercado ultrapassasse o nvel local.15

    Naustria e em muitos territrios alemes, a grande maioria dosconcertos e, acima de tudo, das peras (principal interesse deMozart como compositor), era organizada para um pblico deconvidados e financiada por aristocratas da corte (ou patrciosurbanos). 16 de se duvidar que naquela poca outro msicoaltamente qualificado tenha envidado tais esforos para tornar-seindependente do patronato e da posio, segura, de servidor dacorte.

    Assim, soubesse ou no disto, Mozart estava correndo um riscoextraordinrio quando rompeu com seu patrono, pondo em jogo

    sua vida e toda a sua existncia social.Suas idias quanto ao futuro no eram, provavelmente, muitoprecisas. A situao em Salzburgo tornara-se insustentvel olado negativo estava bem claro para ele; para entender sua pessoae sua situao importante imaginar como Mozart se sentia. Seuempregador determinava quando e onde deveria fazer um con-certo e, muitas vezes, o que compor. Isto no era nada raro.Provavelmente eram esses os termos usuais de um contrato detrabalho. Aceitando as condies de seu ofcio, todos os msicosprofissionais com empregos permanentes viveram, exatamentecomo ourives ou pintores, sob restries que Mozart j no

    15 Mozart no fez o arranjo para piano de O rapto do serralho com a rapidezsuficiente assim, dois editores se apressaram em oferec-lo no mercadosem pagar-lhe nem um tosto. N o havia proteo legal. Para cada uma desuas peras ele provavelmente recebeu apenas u m nico honorrio, emborapudesse ter recebido mais se fosse tambm o seu regente.16 O desenvolvimento do concerto musical aconteceu em trs estgios bemntidos: concertos para u ma audincia de convidados, depois por subscrio,e finalmente para um pblico pagante n o conhecido. N a poca de Mozartainda no se chegara ao ltimo estgio, pelo menos em Viena. Ele prpriotinha de arcar com os riscos de seus concertos da a necessidade depagamentos adiantados, pois a subscrio mostrava se havia um nmerosuficiente d e pessoas interessadas, evitando assim que o evento desse prejuzo.

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    tolerava. Alguns deles, como Couperin ou Johann Sebastian Bach,tinham produzido grandes obras. possvel que Mozart tenhase desentendido com um empregador particularmente intratvel,mas esta no a questo. O decisivo que, em seus objetivose anseios pessoais, em sua concepo do que fazia ou nosentido, ele antecipou as atitudes e os sentimentos de um tipo

    posterior de artista. Institucionalmente, a situao que prevalecia sua poca ainda era a do artista assalariado, oficial. Mas aestrutura de sua personalidade era a de algum que desejava,acima de tudo, seguir sua prpria imaginao. Em outras pala-vras, Mozart representava o artista livre que confia acima de tudoem sua inspirao individual, numa poca em que a execuoe a composio da msica mais valorizada pela sociedade re-pousavam, a bem dizer, exclusivamente nas mos de msicosartesos com postos permanentes, seja nas cortes ou nas igrejasdas cidades. A distribuio social de poder que se expressavanesse tipo de produo musical estava, de modo geral, intacta.

    Apesar de toda a sua despreocupao, Mozart tinha algumasidias acerca de seu futuro. Suas esperanas se depositavam noque talvez seja melhor descrito como a alta sociedade vienense.Nela, os grupos mais importantes eram as famlias da nobrezade corte, entre os quais tinha conhecidos e amigos. Para comear,queria tentar ganhar a vida dando aulas de msica e concertos,sendo convidado a participar destas atividades nas casas desenhoras ou cavalheiros bem situados que as organizariam paraele. Pretendia manter "academias" concertos cuja renda iadiretamente para o bolso dos msicos e ainda conseguirsubscries para imprimir as partituras de suas composies. Eleera, como bem sabia, muito popular na sociedade vienense.Alguns membros destes crculos j tinham lhe prometido apoio.Alm do mais, gozava de considervel reputao fora de Viena.M as no h dvida de que depositou toda a alma no sucessona capital austraca.

    Por alguns anos este sucesso realmente se materializou. A 3de maro de 1784 Mozart escreveu para o pai dizendo quedeveria dar, nas trs ltimas quartas-feiras da Quaresma, trsconcertos por subscrio, para os quais j contava com cemassinantes e talvez conseguisse mais trinta. Estava tambm pla-nejando duas academias para as quais precisava de "coisas

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    novas". Pela manh, dava aulas de piano e quase todas as noitestocava em casas nobres. 17 Os assinantes temos algumas listas tambm eram nobres. Mas, a 12 de julho de 1789, mencionaao mercador Michael Puchberg que um novo concerto porassinaturas havia fracassado, j que s tinha um nome na lista:Herr van Sweiten, um conhecido seu.18 A sociedade vienensetinha se afastado dele, o Imperador frente.

    19

    Podemos reconhecer aqui a peculiaridade do mercado queMozart tinha sua disposio. Mesmo como "artista autnomo"ele ainda dependia, como qualquer artista arteso, de um limi-tado crculo local de clientes. E tratava-se de um crculo bastantefechado, fortemente integrado. Se corresse o rumor de que oimperador no tinha um msico especialmente em conta, a boasociedade simplesmente o deixava de lado.20

    A o considerar a existncia de Mozart como "artista autnomo",deparamos novamente com a profunda ambivalncia que eracaracterstica de sua atitude em relao aristocracia da corte eque deveria determinar sua vida inteira. Ela se compunha devrias facetas.

    Como j foi dito, de alguma maneira Mozart tinha absorvidoo padro de comportamento da classe dominante de sua poca.A o mesmo tempo, sua imaginao musical era formada e im-pregnada pelo modo tradicional de compor da aristocracia decorte. M uito embora um homem como Beethoven tenha rompido

    17 III, p. 303 e seg.18 IV, p. 92.19 O momento crucial provavelmente foi As bodas de Fgaro, cujo tema escolhido pelo prprio Mozart foi considerado politicamente suspeito,segundo o ponto de vista absolutista. Um nobre anotou em seu dirio dapoca que havia assistido pera e tinha sicb ennuyiert (Hildesheimer, op.cit, p.199). Isto no significa, como est algumas vezes traduzido, que eletinha se "aborrecido", mas sim que ele tinha se "irritado".20 Talvez a frustrao experimentada por Mozart com esses acontecimentos,sua sensao de desnorteamento, tenha sido ainda mais difcil de suportarporque ele foi um dos primeiros compositores do perodo moderno, seno oprimeiro, cuja imaginao ultrapassou em muito os hbitos de seus ouvintes.O destino do artista abandonado por seu pblico ainda no podia ser vistocomo um fenmeno recorrente. Mozart, sem dvida, deve t-lo percebidocomo algo que afetava apenas a ele.

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    com esta tradio, Mozart nunca o fez. Desenvolveu suas possi-bilidades individuais de expressar sentimentos na estrutura dospadres antigos nos quais crescera. E precisamente porque aordenao seqencial dos motivos que nele surgiam foi desen-volvida no interior do padro tradicional, que sua msica toacessvel e tem um apelo to duradouro.

    A obra musical mais prezada na escala de valores da sociedadeda corte era a pera. Em conformidade com tal valorizao social,compor peras tinha para Mozart o valor emocional da mais altarealizao pessoal. Porm institucionalmente, uma pera, com aimensa despesa que acarretava, estava atrelada quase exclusiva-mente s cortes era diferente de uma pea, por exemplo, quepoderia ser encenada por uma companhia ambulante de atores.A pera era uma forma de entretenimento adequada aristocraciade corte. Mozart, que decidira ser um artista "livre", tinha emparte abraado a tradio musical da corte entre seus ideais,como parte integrante de sua prpria personalidade.

    Idntica fixao se revelava em sua atitude pessoal com opblico mesmo depois de ter rompido com o arcebispo.Quando Mozart estava a ponto de dar este passo, um membroda corte de Salzburgo advertiu-o, com viso quase proftica, deque o favor da sociedade cortes em Viena era muito volvel:"Aqui a fama de uma pessoa no dura muito", disse ele, "depoisde alguns meses os vienenses querem algo novo." 21 Mas Mozarttinha colocado todas as suas esperanas de xito no pblicovienense, na opinio pblica da alta sociedade da capital. Estefoi claramente um dos maiores desejos de sua vida e umadas mais importantes razes para sua tragdia.

    Sugeri no comeo que no se pode determinar, a partir daperspectiva do "ele", o que algum sente quando satisfaz seusdesejos, ou quando se v impossibilitado de realiz-los. Deve-setentar entender isso a partir do ponto de vista da primeira pessoa,da perspectiva do "eu". Acontece, com muito mais freqnciado que se pode imaginar, de algum se empenhar com fervorem ser aplaudido por seu crculo imediato de amigos e conhe-cidos; no reconhecimento e aclamao pela cidade onde vive; e

    21 Ver p. 118 abaixo.

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    que o sucesso em qualquer outro lugar do mundo no compensea falta de sucesso, ou mesmo a rejeio que experimente nocrculo mais restrito a que se esteja ligado. Pode-se verificar algodesta constelao de fatos na vida de Mozart.

    Seguindo esta linha descobrimos tambm que a atitude esituao de Mozart no pode ser adequadamente compreendidase sua posio em relao sociedade de corte for vista comopuramente negativa uma rejeio do tipo comumente encon-trado na literatura burguesa alem da segunda metade do sculoXVIII.22 Sua rebelio pessoal contra a humilhao e a repressoque sofria nos crculos cortesos, seja ao procurar emprego, sejacomo empregado, tinha, primeira vista, alguma coisa em co-mum com a revolta, principalmente nas partes no-austracas doimprio alemo, que encontrava expresso na literatura huma-nitria cujos conceitos bsicos eram educao (Bildung) e cultura(Kultur). Como os burgueses pioneiros deste movimento filos-fico e literrio, Mozart insistia em sua dignidade humana, inde-pendentemente de origem ou posio social. Ao contrrio dopai, nunca aceitou em seu ntimo a posio de inferioridade.Nunca se conformou com a condescendncia com que ele e suamsica eram tratados.

    Mas, no caso de Mozart, o ressentimento e a amargura comos aristocratas que lhe davam a entender que, em ltima anlise,ele era apenas um subordinado, uma espcie de bem qualificadoprovedor de entretenimento, s muito marginalmente encontrava

    22 interessante destacar esta diferena. Pois uma das mais espantosaspeculiaridades das dcadas de 1770 e 1780 na Alemanha o fato de que osdois mundos em que Mozart vivia, o mundo dos burgueses de corte e o dosaristocratas de corte, praticamente no foram alcanados, ao que se sabe, pelagrande onda do movimento literrio e filosfico alemo que estava acontecendonaquele momento. N a dcada de 1770, quando muitos jovens alemes seentregavam excitao do Sturm und Drang Goethe publicou Gtz em1773, Sturm un d Drang, de Klinger, apareceu em 1774, De r H ofmeister e DieSoldaten, de Lenz, em 1776 e 1778, respectivamente o jovem Mozart tevexito, especialmente na Itlia, m as tambm na A lemanha, c om peras no estilotradicional. Em 1778, ano em que foi publicado a Crtica da razo pura deKant, Idomeneo, escrito por encomenda da corte da Baviera, teve sua primeiraapresentao em Munique. uma das melhores e mais inventivas peras deMozart, inteiramente conforme ao estilo da corte e, no entanto, nica em seudesenvolvimento da velha tradio.

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    justificativas em princpios gerais. Ele no buscou, para dar basea tais sentimentos, qualquer ideologia de uma humanidade uni-versal. Sua falta de interesse em tais ideais era outro fator adistingui-lo de Beethoven, no apenas no plano individual, masno das geraes. At onde podemos ver, seu sentimento deigualdade, e sua insistncia em ser tratado como igual, parecemter se baseado primariamente na msica sua obra e suasconquistas. Desde cedo, ele estava consciente do alto valor desua msica, e portanto de si prprio. Seus sentimentos negativose sua revolta contra os aristocratas que o tratavam com desprezoeram apenas uma face da moeda. No podemos entender bema vida de Mozart, ou sua obra, a no ser que percebamos comoera ambgua sua atitude em relao sociedade de corte.

    At certo ponto, ele nutria os mesmos sentimentos de conflitoem relao ao pai. Mas, aqui, desde cedo o impulso de liberdadedominou de maneira muito clara a despeito de seus protestosde obedincia e devoo. O comportamento de Mozart pareceindicar que os componentes negativos de seus sentimentos emrelao ao pai exacerbaram-se gradualmente, muito embora suaconscincia nunca lhe tenha permitido abandonar a postura defilho devotado.

    N a relao de Mozart com a classe dominante com cujoscomponentes tinha de lidar enquanto burgus, i.e., enquantopessoa de origem mais baixa o lado positivo de tais senti-mentos ambivalentes provavelmente permaneceu mais forte doque em relao ao pai. No contexto de uma relao outsider-es-tablishment 2^ e estamos aqui tratando com tal relao istono raro; neste aspecto, tambm, o caso individual tem umcerto significado paradigmtico.

    Como muitas pessoas na posio de outsider, Mozart sofriacom as humilhaes impostas pelos nobres da corte, e se irritavacom elas. Mas, ao lado de tais reaes hostis classe mais alta,estavam presentes fortes sentimentos positivos: era precisamenteseu reconhecimento que ele desejava, era precisamente por elesque queria ser visto e tratado como homem de igual valor, por

    23 Sobre a teoria de tais relaes, cf. Norbert Elias e John Scotson, Etablierteund Aussenseiter, Frankfurt am Main 1990.

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    suas realizaes musicais. Tal ambivalncia se expressou, porexemplo, em sua enrgica antipatia por quem lhe garantia umemprego na corte, e em seu desejo simultneo de ganhar, como"artista autnomo", os favores do pblico vienense, predomi-nantemente composto de aristocratas da corte.

    O tipo de sentimentos e a atitude que encontramos aqui so

    um exemplo de uma situao que freqentemente se observaem conexo com um certo tipo de relao outsider-establishment.Pessoas com a posio de outsiders em relao a certos gruposestabelecidos, mas que se sentem seus iguais ou mesmo supe-riores, por suas realizaes pessoais ou, algumas vezes, atmesmo por sua riqueza, s vezes reagem rancorosamente shumilhaes a que esto expostas; podem tambm estar plena-mente conscientes dos defeitos do grupo estabelecido. Mas en-quanto o poder do establishment permanecer intacto, tanto elecomo seu padro de comportamento e sentimento podem exer-cer uma atrao muito forte sobre os outsiders. M uitas vezes o

    maior desejo destes serem reconhecidos como iguais poraqueles que os tratam, to abertamente, como inferiores. Acuriosa fixao dos desejos dos outsiders pelo reconhecimentoe aceitao do establishment faz com que tal objetivo se trans-forme no foco de todos os seus atos e desejos, sua fonte designificado. Para eles, nenhuma outra estima, nenhum outrosucesso, tm tanto peso quanto a estima do crculo em que sovistos como outsiders inferiores, quanto o sucesso em seu estab-lishment local. Precisamente este sucesso foi, afinal, negado aMozart.

    Como o sucesso de sua msica em Viena se revestia para elede especial importncia, seu posterior fracasso nesta cidade oafetou ainda mais profundamente. Nos ltimos anos de vida,alcanou considervel xito em outras cidades do Imprio ale-mo, mas, ao que parece, isto no conseguia compensar suagradual perda de popularidade em Viena. O fato de a sua msicaser compreendida pela sociedade vienense conferia sua vidaum,sentido especial, assim como a incompreenso dos mesmoscrculos e o rompimento de muitos contatos pessoais (para oque, sem dvida, ele contribuiu) significaram para ele uma perdade sentido igualmente pesada. Tal experincia foi decisiva nasensao de falta de sentido e no desespero que parecem t-lodominado no final da vida, desgostando-o amargamente e final-

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    mente privando-o de coragem para continuar a luta e enfrentara doena que o atacou.

    O fato de Mozart ter desistido de seu posto relativamente segurona corte do prncipe-bispo de Salzburgo, para tentar ganhar a

    vida em Viena, certamente no significa que ele planejasse,naquele estgio, construir para si prprio uma posio de "artistaautnomo", mesmo no sentido limitado em que Beethoven eoutros clebres artistas do sculo XIX foram capazes de fazer.Os msicos que desejam divulgar suas obras e ganhar dinheirocom elas sempre so mais dependentes da colaborao de outraspessoas do que seus colegas poetas ou pintores. Se eles prpriosno forem capazes de desempenhar as funes de organizadoresde concertos, regentes, diretores de pera etc., precisam deoutras pessoas que o faam, para que as composies alcancemum pblico mais amplo. Precisamos levar em considerao tal

    necessidade de cooperao, com todas as tenses e possibilida-des de conflito que contm, para conhecer as perspectivas dexito profissional de Mozart quando abriu mo de seu postocomo empregado permanente da corte.

    O desenvolvimento do mercado de msica de alta qualidadetem, no geral, a mesma estrutura e direo, a mesma ordemseqencial que os mercados de outros tipos. Hoje em dia h ummercado internacional para as criaes musicais de Mozart, mash tambm para algumas obras de compositores contemporneosque tiveram acesso s principais salas de concerto do mundo es transmisses pelos meios de comunicao, numa luta muitocompetitiva. O mercado potencial que aguardava M ozart, quandotrocou a carreira de msico da corte pela de artista relativamenteautnomo, era, dissemos, muito mais restrito. As instituiescapazes de montar peras, bales e obras orquestrais de grandesdimenses ainda estavam, em grande parte, limitadas a cidadesdotadas de cortes, como Munique, Mannheim, Berlim ou Praga. poca de Mozart, Viena, sede da corte imperial, tinha umaposio de destaque entre as demais, enquanto os movimentosculturais, principalmente na literatura e na filosofia, que flores-ciam em outras regies alems, e que se dirigiam a um pblicoburgus externo s cortes, eram um tanto estiolados em Viena.Como audincia para a msica de elite da poca, do tipo da que

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    Mozart escrevia, a sociedade aristocrtica de corte ainda desem-penhava o papel principal.

    A o abrir mo do detestado servio de corte, Mozart no ficouindependente da audincia da corte. Pelo contrrio, acima detudo, foram membros da sociedade aristocrtica vienense, taiscomo o prncipe G allitzin ou a famlia Thun, que nele desper-taram a idia de ganhar a vida de modo independente com omercado musical local, sem empregador ou renda garantida.Pode ser que tambm esperasse encomendas da famlia imperial o que, dentro de certos limites, realmente aconteceu. Ou quecontasse com uma posio na corte imperial o que, tambmdentro de certos limites, conseguiu. Pois certamente no seopunha em princpio a postos permanentes, e na verdade passoua vida procura de um. Mozart no assumiu a posio de "artistaautnomo" apenas porque assim quis; isso aconteceu porqueele, simplesmente, no suportava mais o trabalho na corte deSalzburgo.

    Por outro lado, a viso do artista famoso e independente,viajando por diversos pases, de corte em corte, por algum tempotambm tinha seduzido seu pai. E como Mozart, em criana, jtinha provado a vida sem empregador permanente, com suaspenas e gozos, em que ia de uma "boa sociedade" para outra,seria surpreendente se tal possibilidade no lhe tivesse ficadona mente como alternativa mais satisfatria do que o servio nacorte. muito clara a influncia decisiva desse perodo sobre ocarter de Mozart. Muitas e muitas vezes lutou pelo fulgor doaplauso entusiasmado que conhecera quando criana.

    E sabia muito bem que continuava a merec-lo. Nunca tevem opinio de si mesmo ou de sua obra e poucas vezes relaxouem seu trabalho artstico. Sua educao bsica ajudou-o a adquirira capacidade de improvisar musicalmente ao gosto da poca,ou seja, da maneira exigida pelos padres da classe dominante.N o que se referia msica, ainda se tinha como certo que oartista devia seguir o gosto da audincia, socialmente superior.A estrutura de poder que dava nobreza de corte precednciasobre todas as outras classes tambm determinava que tipo demsica um artista burgus poderia tocar nos crculos cortesose at que ponto suas inovaes poderiam ir. Mesmo como "artistaautnomo", Mozart estava preso a tal estrutura.

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    Mozart sempre desejou poder criar livremente, seguir suas vozesinteriores sem se preocupar com os compradores. 24 Mesmo emSalzburgo, suas melhores peas foram as que escreveu parapessoas a quem queria agradar, quando podia soltar as rdeasda imaginao. Acreditava que teria esta possibilidade em Viena.M as ali tambm foi obrigado a fazer concesses. Tomemos po r

    exemplo alguns concertos para piano que comps em meadosda dcada de 1780. Para ele, era uma necessidade vital que taisobras satisfizessem o gosto do pblico, j que dependia da rendade suas "academias".

    A 11 de dezembro de 1784, completou um concerto em f maior (K 459), com tambores e trombetas tocando tutti, o qualapresentou seis anos mais tarde em Frankfurt, na coroao doimperador Leopoldo II. Trata-se de uma obra escrita acima detudo para o pblico, com bravado e virtuosidades ostentatrias.Mas, como se enfastiado por essa subordinao de seus poderescriativos a uma fora maior, como se estivesse se rebelando, dois

    meses mais tarde escreveu um concerto para piano inteiramentediferente, o concerto em r menor (K 466). Em parte, trata-sede uma obra de intensidade dramtica, apaixonada. Percebe-seque ele est inteiramente indiferente ao que as pessoas possampensar. Est escrevendo msica como a sente, talvez at mesmocom a inteno consciente ou inconsciente de chocar pourpater Ia noblesse. No ficou mais popular com esta obra, eprecisava de dinheiro. Incidentalmente, este o nico concertoque se tornou bem conhecido no sculo XIX. Mas Mozart noprosseguiu nessa direo, pelo menos de imediato. No invernoe primavera de 1785/6, escreveu trs novos concertos, sobre osquais Alfred Einstein fala em seu inteligente livro:

    Os dois primeiros [em mi bemol, K 482 e em l, K 488] do-nos aimpresso de que ele sentiu ter ido talvez longe demais, ter confiadodemais no pblico vienense, ter ultrapassado os limites da msica"social" ou, dizendo-o de maneira mais simples, que ele viu que

    24 Seus padres de sublimao eram peculiares. Quando compunha pera,e estava limitado apenas pelo libreto (que sempre escolhia com muito cuidado,de modo a satisfazer suas necessidades), o texto claramente soltava as rdeasde sua imaginao. Sua msica flua espontaneamente, realando as palavrasgraas a sua magia. No acontecia bem assim com outros tipos de msica.

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    a estima do pblico minguara, e buscava conquist-la de volta comobras que, com certeza, fariam sucesso. 25

    Em 1789 Mozart foi a Berlim, onde o rei da Prssia, violon-celista, encomendou seis quartetos de cordas e seis sonatas fceispara a filha, que tocava piano. Portanto, ele tinha encomendas.M as pode-se ver Mozart conscientizando-se do fato de que, paraeste patrono, teria que simplificar o que ouvia, e isso no lheinteressava mais. No queria simplificar. Queria seguir suas vozesinteriores e escreve- Ias. De modo que terminou apenas trs dosquartetos para a corte de Brandenburgo e somente uma dassonatas para piano. A necessidade de escrever para si mesmo,uma caracterstica geral dos msicos de hoje, se afirmava cadavez mais.

    Beethoven nasceu em 1770, quase 15 anos depois de Mozart.Conseguiu, no com facilidade, mas com muito menos proble-mas, aquilo pelo que Mozart inutilmente lutou: liberou-se, emgrande parte, da dependncia do patronato da corte. Foi, assim,capaz de seguir a prpria voz em suas composies ou, maisexatamente, a ordem seqencial de suas vozes interiores, e noo gosto convencional de seus fregueses. Beethoven teve muitomais oportunidades de impor seu gosto ao pblico musical.Diferentemente de Mozart, foi capaz de escapar coero deter de produzir msica na situao de subordinado a um empre-gador ou patrono muito mais poderoso; ao invs disso, pdecompor msica, se no exclusivamente, mas pelo menos atcerto ponto, como artista autnomo (como chamaramos hojeem dia) para um pblico relativamente desconhecido. Uma pe-quena citao deve bastar para ilustrar a diferena. Em junho de1801, Beethoven escreveu para o amigo Wegeler:

    Minhas composies me rendem bastante; e posso dizer que recebomais encomendas do que me possvel satisfazer. Alm disso, paratodas as composies posso contar com seis ou sete editores, ouat mais, se quiser; as pessoas no vm mais me propondo acertos,eu defino o preo e elas pagam. De modo que voc pode ver queme encontro numa boa situao. 26

    25 Alfred Einstein, Mozart, his Character, bis Work (trad. para o ingls porA. Mendel e N . Broder), Londres/Toronto /Melbourne/Sidney 1946, p.309-26 The Letters of Beethoven, reunidas, organizadas e traduzidas por EmilyAnderson, vol. I, Londres 1961, p.58.

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    Mozart sonhou em chegar aonde Beethoven triunfalmenteanuncia ter chegado; e quem sabe isso tivesse acontecido, casotivesse tido a coragem de viver mais tempo. Seguindo o modocorrente de pensamento, ficamos tentados a pensar que com amesma idade de 31 anos, Mozart, como Beethoven, poderia terchegado a uma posio em que os editores competissem porsua obra se houvesse se adaptado melhor ao gosto do pblico.N o entanto, no se deve ceder to rapidamente presso con-vencional que nos leva a explicar tais diferenas nas carreirasde duas pessoas basicamente pelas diferenas individuais, e aabandonar explicaes baseadas em mudanas estruturais nasociedade. Depois de morto, Mozart alcanou muito sucesso. Oque lhe faltou, na poca em que viveu, foi um maior desenvol-vimento na rea de publicaes musicais que Beethoven indicana carta acima (e a difuso de concertos para uma audinciacomposta de pagantes, e no de convidados). Na verdade,poucas afirmaes destacam de maneira mais intensa a profundamudana estrutural na posio social do artista do que esta: "as

    pessoas no vm mais me propondo acertos, eu defino o preoe elas pagam."Alm disso, a mudana sugerida nesta afirmao no se refere

    apenas posio social do artista. Com ela, o padro de criaoartstica, ou, dito de maneira diferente, a estrutura da arte,tambm mudou. Mas tais conexes no esclarecem bem se atransio da produo artstica feita para um empregador oupatrono conhecido, para a produo artstica dirigida a umpblico pagante, do patronato para o mercado livre mais oumenos annimo, considerada meramente como evento econ-mico. Assumir esta viso negligenciar um ponto essencial:tratava-se de uma mudana estrutural na relao das pessoasumas com as outras, que pode ser definida com preciso. Emparticular, envolvia um ganho de poder pelo artista com relaoa seu pblico. Esta mudana humana, esta modificao no equi-lbrio de poder no apenas entre indivduos enquanto tais,mas entre indivduos enquanto representantes de diferentes fun-es e posies sociais, entre pessoas na condio de artistas epblico no pode ser compreendida enquanto nosso padrode pensamento insistir em desfiar apenas abstraes desumani-zadas. S podemos fazer-lhe justia se tivermos, diante dos olhos,exemplos claros, e se tentarmos visualizar o que esta mudanasignificou para as pessoas envolvidas.

    Arte de artesoe arte de artista

    A o decidir abandonar o servio em Salzburgo e confiar seu futuros boas graas da alta sociedade vienense, sem qualquer empregoestvel, M ozart estava dando um passo muito incomum para ummsico de seu nvel naquele tempo mas que foi da maiorimportncia para sua produo musical. Pois o padro de pro-duo musical de um artista da corte que trabalhasse para um

    empregador determinado, seguindo suas instrues e atendendoa suas necessidades, diferia extremamente, devido composiosocial especfica em que sua msica tinha funo, do novopadro que gradualmente se formou ao se tornar regra a pro-duo musical feita por artistas relativamente livres e que com-petiam por um pblico essencialmente annimo. Dizendo istoem termos tradicionais: a mudana de posio social e de funodos compositores alterou tambm o estilo e carter de suamsica. A especial qualidade da msica de Mozart sem dvidaalguma decorre da singularidade de seu talento. Mas a maneirapela qual este talento se expressou em suas obras est associada,

    de modo muito ntimo, ao fato de que ele, msico de corte,procurasse alcanar o status de "autnomo" cedo demais, porassim dizer, numa poca em que o desenvolvimento social jpermitia tal passo mas ainda no estava, institucionalmente,preparado para o mesmo.

    N o entanto, a dificuldade e o arrojo de tal passo s ficamclaros se considerados no contexto mais amplo do desenvolvi-mento q