EIS UM GRANDE ESCRITOR - Hemeroteca Digitalhemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/...Em 1960,...

1
'' " 22 JORNAL DA TARDE T erça -feiro, 27-7- 71 O E STADO DE S. PAULC EIS UM GRANDE ESCRITOR Agora. Jos(• Car doso Pi res vai deixa r jo r nal, un iwrs id ade , Li sboa . para ir viver num peq ueno su bürbio da cap ital. Só vai esl'l'l'\' l'r e viver da l itNat ura " embora mode stame nt e" . É hoj e o es cr it or ma is fa moso de Po rt ugal, principal mente d ev ido a O Delfim, de scobe r to recentem ente pelos Ch egou a vez d os brasileiros de s cobr irem O Delfim e Ca rdo so Pires. 45 ano s, pa rece ndo ter 10 a ml·nos. H livros - um e sg otado e outro pro ibido p ela cens ura po r tugu esa- Jos( · Cardoso Pires foi es tud a nte de Ciência s, oficia l-pilôto de um ea rgueiro. intér p rete , e ditor de rev ist a. secrl'l á ri o de edit ôra. profe ssor de ing s. pu b li cit ário. Em 1960, fun dou a n·vi sta "Almana que", de on de sa iu o grupo Al manaque " (Cardoso P ires, Alex an dre O'Neill, Abe la i- r a). Su a es tr éia, com Os caminheiros e outros contos t 1946 ), t eve a b(•nçiio d os neo-real is ta s, que domin avam a li teratura portuguêsa da é po ca: ou tro livro de contos, Histórias de amor 11952 ). foi pro ibido poi· motivos mora is e pol ít icos. O Anjo An- corado. seu p rimeir o roman ce, de 1958, foi r ece bido exce pcio- nalme nte pel a c rít ica e es em 3a edição. · O rende r dos heróis foi o livro seg uinte : uma peça "em tr ês pa 1 't es e u m epí l ogo, con c lu ído em apot eose g ro tesca " , d is- sec a nd o a mitifi cação do herói em Portuga l. O ensa io A carti- lha do Marialva tam m é de 1960. Três an os ma is ta rde . Ca rdoso Pi'res publicou o romance O hóspede de Job q ue ga nhou o prémio Castelo Branco , tr adu- z id o cm rios pa íses europeus. Ant es de O hóspede, saiu Jogos de Azar, col etânea de con tos que incl ui u alguns tr abal hos de Os Cam inheiros. O Delfim é de 1968. Todos os livr os de JoCardoso P ire s estão à ven da em São Paul o. Além de O Delfim, pode- se com prar as edições por- t ug u êsas de Moraes Edi t ore s, na Livra ri a Ta nag ra- R. Xãvi er de· Toil •do, 137. O hóspede de Job cu s ta CrS 18,00: O anjo anco- rado, CrS 10, 50: O render dos heróis, CrS 19,50: Jogos de Azar , CrS 19.50: O Delfim, Crs 19,50 e Cartilha do Marialva, CrS 12.00. J osé Ca rdoso Pire s esaprese ntado . Agora, uma en- tr evista com ê le : Seguram ente que o En g e- n.h eiro aprende ti em criança a ceri mónia da ceia do Natal e q He a repetiu até a mort e do pai. que foi lenta e dolo- rosa. Hidrosopi a. como não podia deixar de ser. E talv ez haja aí quem ainda se lembre do velho a dirigir-s e para a mesa do banquete por en tr e filas de criados, ar ras de sua e11 orme barr iga d'agua. Que péso. que sacri.fício - e êl e s orriden te . Então os Céus e a Terra alegravam-se. no dizer dos queru bins das alturas. e o vendedor das lotarias .. Jde O Delfim) Oua t e s eu todo de tr a balho? l'ma d as coisas qut• mai s faz mal (• !ornar not as pat·a ('str e \'N fit <;i w. Sl · o est ritor se esqucee u ele a lg uma coi- '" qu e ;tt lw u impor ta nte . (· po rqu e ela não era t ão t•ss e nc ia l ass im . l l<i mui l as obras pre judi cadas po 1> isso. documen- t ai .... ronw nt l'S com l'XCt'Pse[• nci as . O impor ta nte e a l'or<;a do on scit•nlt•. l'a ra mim. t amh(• m n;"t o l' possÍ \'e l s er escritor dP f im de , eman a. Cert<t \'l' Z. es taYa t•mprl •ga do < ·ol11o int é rprete de uma c<nnpanhia de <t \'iaeito norte-a merica na. Pa ra escreve r os (•onto ... <} (• Jogos de Aza r. pe dia lice n<; a para ral tar um d ia, ma ' ,·olta\·a d al i a oito . O pri nwiro di a (• só para ver. se <t- da p ta r : l'SlTl'\'e r (• o qut se pa ssa a seg uir. Às v[•zcs, e scre vo durant e 12 dia s. Sem pre mui to dent g ar. com sempr e Pre ciso escre v er só, e acho que a p essoa dc- \'l' de ita r e estar eonven c ida de que escre\·eu uma ob ra- I prima: m as. no ou t ro dia , no se ac har que aqui lo tu - do não va le nada. Qual sua s itu ação no qu a dro da lite ratura portugu êsa? \1 inha obra um pr od uto exte rio r ao nco-r ea lismo. E\·iden tt' ml nte. p t• lo g rande impact o qu e a litera tura n<• n-real isla i l'l·e anos 40-50: qu ando t• streei . fu i b as ta nte apo iado pl'los neo-rcali.;las. obra pode a ss im, s er int er- pn· tada eomo u ma (·ont inuidadc histórica dessa esc ola. Ma s eu e minh a ger ação deixamos as preocupões na - do nco -r ea lismo e ass umimos uma c on sc iência do pa ís o nde \'ive mos. Nós entramos. nos preocupamos co m a \'l- ri a port ugu êsa. P or tu ga l í. · o país de qu e mais gos to , a vida , porlugu êsa í.• a qu e m ai s me int eressa. Mas a re prese nt ação I it e r á ri a cios pro bl emas de ssa \' ida não pode se r direta. imedi ata. Sou um esc ritor "engagí.' '. s ou cid ad ão q ue to ma pa rtido <' lll t udo qua nt o se p assa na minh a te rra. mas isso não ijucr di ze r qu e se r dl it a tal coisa na su pe rfície da obra . · . Po r qu e, de rep ente, sua obra e a ltt eratur a portugu esa , em gera I, cha mou a ate n ção dos ce ntros cultura is e uropeu s? A Eu r op a tem ,; e ca r acte ri zado por esta1· pop re el e en ac ão: a França. que (• uma esp (•e iL' de bõl sa de valôres dos csc rito rL 'S .- a meu \'l'r . inf e li zm e nt e- - l' de uma pob reza at roz na Como êlcs têm de ex po rt ar c ultur a. mteres sa m -. e por p aí.o; es que não r eco nhe ciam até há po uco . Van os probl e- m as el e ordem po lít iea t i\·cram influê nci a: Port ugal. _ um pe- qu e no país. à s Yo lt as com uma guer ra c olo nial c om tr es fren- tL' S. dc;.pe rtou uri osicl ad t• dt• sab t• r o qu e aco n tece Pl11 seu ter- ritóri o. José Cardoso Pires O HÓSPEDE DEJOB Tudo cheaa at é êl es com uma clareza terr ível. em os s ons, decifram os passos como num livro abert o. Ago- ra sen te m rolar o cascalho, patadas nervosas: os guardas sobem com ce rt eza a ladeira da ca sa do s Sotas para procu- rarem avist ar. dêsse alto. a estrada da Vila e a patrulha que os virá render. Agora ad- mitamos que param no largo junt o do poço, que se ouve um corpo salt ando para o chão: alguém se a peou. Irá dar água à m ontada ou pas- se ar a para descansar as perna s? (de O spe de de Job) Qu ais e scri to res tivera m in fluên cia sôb re sua obra? Escritor por t U).(UL'S que me te nh a interessa do , não eomo i nflu ê n c ia . ma s c omo ensino de esc rit a: fe rn ão Mcn- d l•s Pint o. irônico em re la ção a sí mesmo; te nh o s i do pro- rcssor de Lite ratura Po rt ugu êsa, tend o uma visão heré ti - ca em r el ac;ão a e l a . Hoje , sou mais t ocado por um cin eas- ta qu e por um esc rito r. Por e_ xemp lo, Miche langelo A nto- nioni. Qua ndo comece i, gostava mui to dos escritor es anglo- ame ri ca nos. como resposta à influ ê nci a geral, que era a fr ancesa. Fa ulkn er. He min gway. por exemp lo. Ma is p er to do meu gõsto: Ste ph en Cran e, que a in da hoj e, considero ext remame nte per igoso. para um esc rit or. se fi xar. Que esc ritores o impo rtant es em Po rtuga l, a tu a lme nt e? E uma perg un ta clássica, ma s clàssi ca me nte difí cil de re spond e r. Na minh a ger ão -- é na tu ral que me esqueça dt • noml'S -- posso falar de a lg un s do mov imento "Al ma na- que": Augusto A be la ira. Alexa ndre O'Ne ill , o t ea trólogo Stt au l\l onte ir o. Num plano bas tante dif erente do nos so mo- \·imcnto. Ur bano Tavares Rodri gue s: no ca mp o experimen- ta L Hc rbcrt n I kld e1· . .ftíliu Mo rei ra: de •ge r ação mais Ye lha. Ca rlos de Ol i\'d ra. Ah'l'S Rc cl oL Outro nonw imp ortanle: Almei da Fa ria . Seu s livro s exi sti am no BrasiL ma s foi pr eciso que fôsse des cobe rto na F rança para qu e fala ss em dêle aqu i. Jo Cardoso Pi re s é um grande es crito r e não corre o ri s co de ser mal traduzido : e s cr eve em portugu ês. Hoje , auto g rafa se u últ i mo livro , O Delfim , na Li vraria T eix eira. As 18 ho ras. Por que tantas mulheres escrevendo ficção e poesi a de qual i dade em Portugal? uma eonti sla exce pcion al, Mari a Judi te de Carva lho. Se mp re hou ve gr a nd es e sc ritoras em Po rtu ga l, mas a go ra é qu e ap arece u um conj un to dl' mu lheres-eserit or as de nível im- port ante. Nenhuma mai s do qu e Ma r ia .Judit e de Ca rva lh o. Isso p ode se r visto como um re fl exo da nov a s itua- ção da mu lher portu gu és a: nesta nova revisão cons tituci on al, a mulh er tem ma is d ireitos, não todos os n l•ces!;á ri os . O acesso ao e mpr êgo. es pecialme nt e. Quais suas primeiras experiências de escritor? co mo aluno do li ce u. di ri gi uma l ·evista inf a nti L Come- cei a e sc rever em 1945 e. dt•pois de um ano. publique i Os cam i- nheiros e oútros contos. Anot a va os muit os liv ros qu e lia, fazia Pub liquei Os caminheiros co m dinh eiro e mpr es- ta do por out r os esc rit ore s. E hoje, que prêmios tem? Em que pa íses foi traduzid o? Ten ho o Pn :• m i o Caste lo Bra nco (de 1963/ 64 . com O hós- de Job ) l' o Prémio dos Sup lemen tos Liter ários. Nunca con co rri a nenh um pré mio ofi cial, nem da Aca demia. Fui trdu zi cl o na Espanha. Fr an ça. Itália. Aleman ha. Rumen ia. Hu n• gri a. Ch ecosl ováqui a. URSS, Inglate r ra . Bn·v<'ml·nt e O Delfim sepub li ca do nos Estad os Unid os pe la Ed ito ra ·Knopf. José Cardoso Pires O ANJO ANCORADO De pé. em pleno areal devo- rado pelGs unl ws dos cardos e pe los v emos de todo o ano, mais nleg r e se tronava a fi- gura dela. Trazia um casaco de inv erno e. por baixo, cami- sola e calças de passeio, tudo de bonitas côres. Por essa razão. e tamb ém por ser bem f eita de formas, mui to es- guia, m uito ágil, era um g rito de vida a t umular ent re tan- ta deso lação. Girava nos cal- canhares, de casaco ab ert o ao v ento, à roda, à roda, como ttma criança no recre io. bom, é livr e" ... (de o Anj o Ancora do) Al ém de e sc rito r, você foi pr ofessor e dr a ma tur go. P ret en- de continu ar ne ssas ativid ades? O teatr o não me interessa. pri nci pa lmen te pe las c on di çõ es com que se faz te at ro em Port uga l. Minha con cepção de teatro mud ou: ac ho que é uma men sage m qu e se começa a escrever no palco. co m os a tore s. e na di sc ussão com o blico. Só po sso ser um esc r itor de teatro, volt an do ao comêço da Idade i\locl er- na, à Ren asce n ça . A Gil Vice nt e ou Sh ake pea re. Gil fêz um teatro mod er no. de ntr o do se u tempo. Os autos foram e sc rit os de nt ro do princíp io da discussão com o público. I s'io du rava at i. qu e o autor consid erass<• que sua obra alca n çara ta ct o d efini tivo. Te rmin ado meu con t rato no King 's Coll ege da Uni ve rsidade dl• Lon dres. aca bou minh a ca rrei ra de p ruressor. Ago ra so esc r evl:' Quais os s eus planos ago ra ? Vou me fixar em Port uga l. mas n ão vou fazer j orna li smo. e crcwr ci. Como n ão de Lisboa. V()U num lu a 40 km da ca pit al, Ráb ida, p or qu est ão de tranq uil idade. Não consi go escrever em c asa, preciso de uma cer ta pers pectiva, de um iso lame nto . En qua nt o escri to r, o homem é um animul sol it ário. Qu ando comou a esc rever O Delfim, quanto tempo le- vou? Comece i a escreve r em 1964, él e foi publi cado em 1968. Hou ve mu itos int e rvalos n esses qu a tr o anos: esc re vi ver sões do l ivr o, ante s da de finiti va . Na sua opin ião, o que ê O De lfim ? Ap a1 ·ent eme nt e é uma história de exe m plo e cas tigo. uma hi stóri a po licial de um ··ma ri a lva " qu e se en volve num c rime. Mas, a m d as ap arê ncias, é hi st óri a de um tempo a bs- traio, mais de c lima, ch e iro , uma insôn ia onde estão tôclas as trans fi g urações. Ga fe i ra , onde se passa O Delfim, é r ea l? Não, é um te rrit ó ri o míti co qu e formei com a pala vra ga fe mais o sufixo eira, qu e signifi ca conjunt o, popul açã o. É ta mbém par a ori en ta r e rr adame nt e o le itor , para ele ficar sem sabe r se houve ou n ão o cr ime, tõda a história. Um ca so cur ioso a p ro- pósito: tenh o um arti go, publicado no jo rnal ''Notícia s do Por- to". com um professor fala ndo sôb re o Abad e , a monog rafia do Abade. corrig indo -me, di zendo que fi z citações e rradas. etc. :\1as tu do isso, e u que inve nt e i. são livr os irrea is. Que é "maria lva"? i\lar ia lva é uma figu ra sociológ ica po rtugu esa, qu e rep re- sent a a id ade di a cont emp orân ea em Portug al , no ca mpo po- líti co p sicol ógico, econõmico e até literá rio . Ser ia uma espéc ie de s ímbo lo do "mac his mo ·· portu gu ês, qu e estud ei em aspe ct os como o do contra to de casame nt o, que é um cont ra to de pro - pried ade, como o da aut o ridad e, do pate rnalis mo em re laç ão à mu lher. Em A Ca rti l ha do Marialva fiz uma invocação do passa- do para afirma r o presente; a partir da revisão de vári as pers- pe ct iva s, vi o comport ame nto de hoje, dêste te mpo e des ta hora, explicando as mo tivações d êsse com port a mento . José Cardoso Pires JOGOS DE AZAR Ao longo do caminho , es- palham- se, pqui e al i, a.s da- mas acabadas d e sair de cer- tos lugares d e camaradagem e de bela d iversão, damas essas que são, afina!, as amo- rosas no t urnas da cidade. Tôdas ttsam os nomes de Li- sete, Carmen ou Ceuzinha, e tôdas têm aqu ê!e desenho, os g estos e os modo s de se mo- v ere m e de parare m na estra- da qu e d istinguem as amoro- sas n ot urnas entr e tôdas as mulh eres. Alguém a firmou ( ou é confusão minha?) que por estas paragens anda à !ta o fantasma do Rocinan- te .. . (Jogos de Azar) Acha que O Del f im pode a judar na penet ração da li· tera tura por tugu êsa no Brasi l? Es pe ro qu e sim, es tou convenci do que sim. Com pou- cas ex cc<;õcs. a literatura po rtugu êsa é conh e cid a no Bra- sil cm pe r íodo bas ta nt e histó ri co: há uma sé ri e d e precon- ce itos. espec ialmente com r cl ac J 10 ao linguaja r. qu e di sfar- ça m a ve rda d,l! ira r ea lidade po rtugu ésa . Há uma idé ia de - fo rmada da literal ura portuguesa c ont e mporân ea . Pensa-se que é retó ri ca . empo lada, un iv ersi ri a, como se o p s esti- vesse parado. Um país abe rto, que tem g ente c omo Vieira da Silva em p intura, marcha nd s inte rna ciona is, um F er- n an do Lopes Gr aça na sica, não é um país de po bres coi- t ados. A coisa mais im po rt a nt e é o Bras il prec isar se at ua- liza r cm relão a Po rtuga l·. Um pa ís vo, cheio de vida c potencial, ta mbém tem de estar a tu alizado com re lação a Portuga l. Os portugu êse s est ão muito mais a tu alizados com re lão ao Brasil. Gosta ri a que houvesse um en te ndim e nto ma is a ut ê nti co e p ro fundo elo que o qu<' há a tua lment c. Está e screv endo alg um livro? Ilá cin co meses não es crevo nada, mas meu próx imo r oman ce es em el abo r ação. teve alg uma obra fi lmada? Ve ndi os dire itos de O anjo ancorado, mas o fi lme não roi fei to. Gosta ria de ver minh as o bras fi lmad as cxclu s iva- me ntl por ca usa elo d inh ei ro . Ac ha ri a melho r tra ba lh ar com um r ea lizador, como Antonioni, Jea n-Luc Goelarei ou Elto Pe t · i. O BRASfL AI NDA NA O DE SCOBRIU ÊS TE " MARAVILHOSO PORTUGUES Um escntor co mp le xo co mo Co mus, it·ôn i co como Günt her Gross, transcendental co mo Colv no o p ortugu ês JqCa rdoso P res. Leitur a o brigató ri o, se gundo Léo Gilson Ribeiro. Há uma surprêsa imensa es· pera ndo por todos os que enter · raram a lit eratura portuguesa ju nto com o caixão funer ário de Eça de Queiroz. An, que desco- b- erta fenomenal aguard a todos os qu e acnavam que o sol lite· rár io de Lisboa emiti a seus últi· mos r aios fortes com os roman - ces e cont os de Miguel Torga, Aqu il ino Ri b eiro, Ferreira de Cas tro, Joaqu im Paço D'Arcos! País voltado de costas para as su as raízes, o Brasil desconn ece um grande escr itor português con temporâneo, pa lpàvelmente vivo - e extraordinário: José Cardoso Pires. Depois que a Itália e a França ce le b rara m seus li vros, cnega até nós, por êsse desv io pico, uma de seus criações ma is per- feitas e inqu ietantes, O Delfim. (Editõra Ci vilização Brasileira , CrS 12,00 ). José Oa rdoso Pires aos 45 anos de i dade e ap enas com êste ro ma n ce , demo nstra que está a par da.s mais revolucio- nárias técnicas do est ilo a tu al pr opostas por A lain Robbe-Gril- let , por Cort ázar, por Nabokov. Focaliza um Port ugal de noje, invadido p or motocicletas ale- mãs em aldeias de a rquite tu ra mourisca, por juke-boxes im- portadas por emi grantes que foram para a França e para os Estados Unidos - um país do passado q ue medita sua nist o- ria , aprof unda a aná li se filosófi- ca da condição numana na lati- tude social e c ultural de Por t u- ga l do século XX. São demasiado ricos os mo- ti vos qu e José Cardoso Pires aborda em seu mag istral ro- ma nce para se rem sintet izados num a resenna forçosame n te breve. Complexo como Ca mus, irónico como Günt er Grass, tra nsce ndental como Calvino, José Cardoso Pires ultrapassa as dimensões físi cas de Po rtu- ga l para assu mir s ua posição legítima de gra nde escritor eu- ropé u dês te fina l de século. Mas para nós s ua gra ndeza mai or está em t er construído, com o idioma portug uês, e stas 183 - ginas angusti ada s, profunda s, líricas, mel an cólicas, de ini gua- l áve l mestria voca bular . Para ci tar só um as pecto - dos muitos - q ue fo rmam o mosaico colorido e espl êndido de O Delfim: o tema do Tempo, quando uma l agart i xa se es poja ao sol sõbre uma an tiqu íssima inscrição latina na cidade de Gafeira, funda da pelos roma- nos. Desafio qualquer compara- ção com qualqu er a utor v ivo - Manuel Puig, Aleio Carpent ier, J uan Rulfo, Jorge Luís Borges, Car io Emí lio Gad da - ,capaz de s uperar a perfeição clássica dêste trecho : "O ten·eiro estava como se imagina. Argolas inú- tei s, sol a pino; as ta- bernas sono l en tas, os mesmos car tazes de pólvora c de ad ubo do ano passado c, ao fund o de certa loja , o Reged or , de cha- péu na ca beça , a guar da r o bal- cão. Para lá da porta, a muralh a conti nuava com a sua lenda c o seu orgu lho na ou tra extr emi· dadc do la rgo. Como se disses- se: "Quod sc ri psi" · - e sse um imponente eco roma- no." O q ue escrito em mim, está escrito há mais de vinte sé- culos e há·de perdurar. Quer os vossos delfins estejam mor tos ou vivos; que1 · o fumo dos vos- sos me venh a tu rvar o rosto; qu er os eruditos da re- gião, abades c outros que tais, me lancem as excom unhões que me lançarem . - eu, muralha, posso bem com as arrogâncias, e estou. "Qu od scri psi, scrip- si". Só acato as razões da Madre Natur eza, as ervas que me aga- salh am c a compa nhia dos bi- chos s il enciosos. Esta lagart ix a, por exemp lo. E e ra ve rdade. Espalmada na inscrição impe ri al, havia uma lagartixa. Parda, imóvel, pare- cia um estilhaço de ped ra bre outra pedra maior e mais Jn- ti ga, mas, como tõdas as la gar- tixas, um esl il haço senstvel e vivaz debaixo daqu ele sono apa- re nte. Pensei: o te mpo, o tempo amesqu inh ado. Ficamos fre nt e a ft·c ntc, à luz do mei o-dia. Eu , sen hor esc r itor da comarca de Portugal, c por- tanto animal tol erad o, à mar - g em, e e la, ser humilde, por- tuguês, que habita r uínas de Hi stória; que cump re uma exis· tência en tr<: p edras e sol, e se resigna (é es p antoso >; que é, ela p rópria , um f ragmento de pedra gerado na pedra -- um resto final, u ma sob ra; q ue se al imenta de nada I de quê> e é rápida no despe rt ar , e sagaz. e lad ina , embora votada ao iso- lame nto de uma memória do Império; que não tem voz, ou a perdeu, ou não se ouve ... La- gartixa, me u brasão do tempo . Posso encontrá-la ama nhã no mesmo sítio ttalvez lá esteja ainda ) ou n as traves do solar da lagoa, ou num buraco da adega que foi o bodegón das mi nhas ceias do ano passado com o en- ge nh eiro e nunca mais o será. Posso, si mbol i came nte, supô-l a no a lto do por tal, imposta sõbre a legenda Ad Usum Delph ini, porque em todos êsses lu gares ela estará perfeita na sua mo- stia abstr ata como a ima- g em de um tempo ou de u ma i dade em que os anos escor rem alheios à mão do h omem e em que a e rva cr esce e morre e se diz: Afinal, também temos Pri- maver a". Misto de nouveau -r oman - em que o auto r se coloca como obse rvador, segu ndo os ditames da écolc du r egare! a tual pari - sien se - ; de irón ico romance policial de mistério sõbre dois cr imes; de ap ree nsão profunda d as repe rcussões humanas da dep!!nncia política de um país com re l ação a out ros; ro- mance social sem pa nfl etar i smo esquerdlzante; criação estilís- ti ca do mais alto nível ex istente desde qu e a língua portuguêsa sep arou-se do ca stel hano na era medieva l, O Delfim é o ma is impo rtante, o ma is ang u stiante documento literá r io que nos vem de Po rt ugal desde A Ihts- tra Casa de Ramires e A Ci dade e as rras ou do exi stencialis· mo niili sta dos poemas de Fer· nando Pessoa. Mesmo para um Bras il que conta com um <:õu imarães Rosa, um Carlos Drummond de An· drade- é o Inverno da Desco- berta de 1500: a constatação de que Portugal co ntinua es plendi- damente vivo na área que fo i sempre a de seu maior triunfo: a palavra. País pequ eno, pobre, espoliado, sua gran deza - co- mo a da Grécia Antiga e dos judeus q ue criaram a Bíblia - é tôda int eri or e perene: está cifrada nos grandes poetas, ro· mancistas e contistas desde o século XII até hoje. Fora de quaisquer enfoques polít i cos, de quaisquer ju lga · mentos a priorísticos, acima de qu alquer conceito de di t adura , de tota lit arismo como sufoca- dor da liberdade cr iadora, José Ca rdoso Pires - não nesita em af irmar o equ i valen te, em qualidade e grandeza de con· •cepção à Solz jenitsyn no out ro extremo da esc'a la polít ica. O leitor brasileiro tem um en- contro im p ortan te marcado com uma das int eligênci as sen· veis mais incisivas da Europa - um encon tro na nossa pró· pria língua, sem o infer no das traduções deturpadoras, sem a ada ptação a ambiente e valôres f ra nceses, ingléses, italianos ou al emães. Enqu anto outras in s- t auram um Renascime nto cien- tífico no es paço - ati ngi ndo a Lua, desve ndando novas galá- xias -, o peq uenino Portugal ancestral d es ·ce ao interior da efémera dimensão humana : a passa gem do homem pe lo t em- po, pelo se u país, pela sua épo- ca. E reve la uma grandeza sin- fónica, madura; perfei ta como êste Delfim, de leitu ra não indispensável e urgente : de lei- tu ra oxigenante para o intelec- to, o coração e o espír ito embo- tados pela poluição de pse udo- livros e pseudo- artes. f.

Transcript of EIS UM GRANDE ESCRITOR - Hemeroteca Digitalhemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/...Em 1960,...

Page 1: EIS UM GRANDE ESCRITOR - Hemeroteca Digitalhemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/...Em 1960, fundou a n·vista "Almanaque", de onde saiu o '·grupo Almanaque" (Cardoso Pires, Alexandre

· ~

''

"

22 JORNAL DA TARDE Terça - feiro , 27-7-71 O ESTADO DE S. PAULC

EIS UM GRANDE ESCRITOR

Agora. Jos(• Ca rdoso Pire s vai de ixa r jornal, un iwrs idade, Lisboa. para ir viver nu m peque no su bürbio da capital. Só va i esl'l'l' \'l'r e viver da litNatura "embor a modes tame nte". É hoje o escr it or ma is fa moso de Port uga l, principalmente devido a O Delfim, descoberto rece n temente pelos francese~ .

Chegou a vez dos bras ilei ros descobrirem O Delfim e Cardoso Pires. 45 anos, parecendo ter 10 a ml·nos. H livros -um esgotado e outro proibido pela cens ura por tug uesa- Jos(· Cardoso Pires fo i es tuda nte de Ciê nc ias, oficia l-pilôto de um ea rg ue iro. intérprete, editor de revista. secrl'lá rio de editôra. professor de ing lês. publi citá ri o.

Em 1960, fundou a n·vis ta "Almanaque ", de onde sa iu o '·grupo Almanaque" (Cardoso P ires, Alexandre O'Ne ill, Abela i­r a). Sua estré ia, com Os caminheiros e outros contos t 1946), teve a b(•nçiio dos neo-real istas, que dom inava m a literatura port ug uêsa da época: out ro li vro de contos, Histórias de amor 11952). fo i proibido poi· mot ivos mora is e pol ít icos. O Anjo An­corado. seu p rimeiro romance, de 1958, fo i rece bido exce pc io-na lmente pela crít ica e es tá em 3a edição. ·

O render dos heróis fo i o livro seguinte : uma peça "em t rês pa 1't es e u m epí logo, concluído e m apoteose grotesca" , d is­secando a mitificação do he ró i em Portuga l. O ensa io A carti­lha do Marialva também é de 1960.

Três anos ma is tarde. Ca rdoso Pi'res pub licou o romance O hóspede de Job q ue ganhou o prémio Cas te lo Branco, tradu­zido cm vúrios paíse s europeus. Antes de O hóspede, saiu Jogos de Aza r, coletânea de contos que incl uiu a lgu ns trabal hos de Os Caminheiros. O Delfim é de 1968.

Todos os livros de José Cardoso P ires estão à venda e m São Paulo. Além de O Delfim, pode-se comprar as edições por ­t ug uêsas de Moraes Editores, na Livraria Tanagra- R. Xãvier de· Toil•d o, 137. O hóspede de Job custa CrS 18,00: O anjo anco­rado, CrS 10,50: O render dos heróis, CrS 19,50: Jogos de Azar, CrS 19.50: O Delfim, Crs 19,50 e Cartilha do Marialva, CrS 12.00.

José Ca rdoso Pires está apresentado. Agora, uma en­trevist a com ê le :

S eguram ente que o En ge­n.h eiro aprende t i em criança a cerimónia da ceia do Natal e qHe a r epet iu at é a morte do pai. que foi lenta e dolo­rosa. Hidrosopia. como não podia deixar de ser . E talv ez haja aí quem ainda se lembre do velho a dirigir-s e para a mesa do banquete por entre filas de criados, arras de sua e11orme barr iga d'agua. Que péso. que sacri.fício - e êle sorridente. Então os Céus e a Terra alegravam-se. n o dizer dos querubins das alturas. e o vendedor das lotarias .. Jd e O Delfim)

Oua t e seu método d e trabalho? l'ma das coisas qut• mais faz ma l (• !ornar notas

pa t·a ('stre \'N fit<;iw . Sl· o estrit o r se esqucee u ele a lguma coi­' " que ;tt lw u importa nte. (· po rque e la não era tão t•sse nc ia l ass im. l l<i mui las obras prejudicadas po 1> isso. documen ­tai .... ronw ntl'S com l'XCt'Pse[• nci as. O importa nte e a l'or<;a do (·onsc it•nlt• . l ' a ra m im. tamh(• m n;"to l' possÍ\'e l ser escritor dP f im de , emana. Cert<t \'l'Z. es taYa t•mprl•gado <·ol11o inté rprete de uma c<nnpanhia de <t \' iaeito norte-americana . Pa ra escreve r os (•o nto ... <} (• Jogos de Aza r. pedia lice n<;a para ra ltar um d ia, ma ' sú ,·ol ta \·a dal i a oito. O pri nwiro dia (• só para ve r . se <t­

dap tar : l'SlTl'\'e r (• o qut• se passa a seg ui r . Às v[•zcs, escrevo durant e 12 dias . Semp re muito dentgar. com versõe~ sempre \·a ri:~das. Preciso e screver ~empre só, e acho que a pessoa dc­\'l' ~l' de itar e estar eonvencida de que escre \·e u uma obra-

I prima: m as. no out ro dia , no se d~tar, acha r que aqui lo tu­do não va le na da.

Qual sua s ituação no quadro d a lit e ratura portuguêsa? \ 1 inha obra (· um produ to ex te rior ao nco-realismo.

E\· identt'ml•nte. toe:~d:~ pt• lo grande impact o que a lite ra tura n<•n-real is la il'l·e no~ anos 40-50 : qua ndo t•streei . fu i bas tante apo iado pl'los neo-rca li.;las. ~linh a obra pode assim, ser inter­pn ·tada eomo uma (·ont inuidadc his tór ica dessa escola .

Ma s eu e minha geração de ixamos as preocupações na­tura l ist a~ do nco-rea lismo e assumimos uma consciênc ia do país onde \' ive mos. Nós entra mos. nos preocupamos com a \ ' l ­

ria portu guêsa. Portuga l í.· o país de que ma is gos to , a vida ,porluguêsa í.• a que mais me interessa. Mas a representação I it e rária cios p roblemas dessa \' ida não pode ser dire ta. imedia ta.

Sou um escritor "e ngagí.' '. sou cidad ão q ue toma p artido <' lll t udo qua nto se passa na minha te rra . ma s isso não ijucr dizer que se rdl it a ta l coisa na su perfície da minh~ obra. · . •

Por que, d e repent e , sua obra e a ltte r atura portuguesa , e m gera I, chamou a atenção dos centros cultura is europeus?

A Europa te m ,;e caract erizado por e sta1· popre ele en acão : a F ra nça. que (• uma esp(•eiL' de bõlsa de valôres dos c sc ritorL'S.- a meu \'l'r . infe lizme nte - - l' d e uma pobreza a t roz na lk~·ito . Como ê lcs tê m de export a r cultura. mt eressam-. e por paí.o;e s que não reconheciam a té há pouco. Va n os proble­m as ele ordem po lít iea t i\·cram influê ncia : Port ugal. _um pe­queno pa ís. às Yo lt as com uma gue r ra colonial com tres fre n­tL'S. dc;.pe rtou (·urios icladt• dt• sa bt• r o que acontece Pl11 seu ter­

r itório.

José Cardoso Pires

O HÓSPEDE DEJOB

Tudo cheaa até êles com uma clareza t errível. L êem os sons, decifram os passos com o nu m livro ab erto. Ago­ra sentem rolar o cascalho, patadas nervosas: os guardas sobem com cert eza a lad eira da casa do s Sotas para procu­rarem avistar. d êsse alto . a estrada da Vila e a patru lha que os virá render. Agora ad­mitamos que param no largo junto do poço, que se ouve um corpo saltando para o chão: algu ém se apeou. Irá dar água à montada ou pas­sear a pé para descansar as pernas? (de O Hóspede de Job)

Quais escrito res tiveram influência sôb re sua obra? Escritor port U).(UL'S que me tenha interessado, não

eomo influênc ia . mas como ens ino de escrita : f e rnão Mcn­dl•s Pinto. irôn ico em re lação a s í me smo ; te nho s ido pro­rcssor de Lit eratura Port uguêsa, tendo uma visão heré ti­ca em relac;ão a e la . Hoje, sou ma is tocado por um cineas­ta que por um escritor . Por e_xemp lo, Michelangelo A nto­nioni. Qua ndo comece i, gost ava muito dos escritores anglo­americanos. como r esposta à influê ncia ge ra l, que e ra a fra ncesa . Fa ulkne r . He mingway. por exemplo. Ma is perto do me u gõsto: Stephe n Cra ne, que a inda hoje, cons ide ro ext remame nte perigoso. para um escrit or . se fixar.

Que escritores são importantes em Portuga l, atua lme nte? E uma pe rgunta c láss ica , mas c làss icame nte difíc il de

responde r. Na minha geração -- é natu ra l q ue me esq ueça dt• noml'S -- posso fala r de a lg uns do moviment o "Almana­que": Aug us to A bela ira . Alexandre O'Neill , o teatró logo Stt a u l\lont e iro. Num p la no basta nt e dife re nte do nosso mo­\·imcn to. Urbano Tavares Rodrig ues: no campo experime n­ta L Hc rbcrtn Iklde1· . .ftíliu Morei ra : de •ge ração ma is Yelha. Ca rlos de Oli\'dra. A h 'l'S RccloL Out ro nonw importa nle : Alme ida F aria .

Seus livros já existia m no Br asiL mas foi preciso que fôsse de scobe rto

na F rança para que falasse m dêle aqui. José Cardoso P ires é um grande

escrito r e não corre o risco de ser m a l traduzido: e screve em port ug u ês.

Hoje, autografa seu último livro, O Delfim, na Livraria Teixeira . As 18 hor a s .

Por que há tantas mulheres escrevendo ficção e poesi a de qual idade em Portugal?

Há uma eonti s la exce pcional , Maria Judi te de Car valho. Se mpre houve grand es escritoras e m Portuga l, mas só agora é que apareceu um conj un to dl' mulhe res-eserito ras de n íve l im­portant e. Nenhuma mais n•presenta ti ~.a do que Ma r ia .Judite de Carva lho. Isso pode ser visto com o um re fl exo da nova s itua­ção da mu lher portuguésa : nes ta nova re visão cons titucional, a mulhe r tem ma is d ireitos, não todos os nl•ces!;á rios. O acesso ao e mprêgo. e spec ia lme nte.

Quais suas primeiras experiências de escritor? Só como aluno do liceu. d irig i uma l·evista infa ntiL Come­

ce i a escre ve r em 1945 e. dt•pois de um ano. publique i Os cam i­nheiros e oútros contos. Anotava os mu itos livros que lia, fazia apontamento~. Publ iqu e i Os caminheiros com dinhe iro empres­tado po r out ros esc ritore s.

E hoje, que prêmios já tem? Em que pa íses foi traduzid o? Tenho o Pn:•m i o Castelo Bra nco (de 1963/64. com O hós­de Job) l' o Pré mio dos Suple me ntos Lit e rários. Nunca

concorri a ne nhum pré mio ofic ia l, ne m da Academ ia. Fui tra· duzi clo na Espa nha. França . Itá lia. Alemanha. Rumenia. Hun• gr ia. Checos lováquia. URSS, Ing late r ra . Bn·v<'ml·nte O Delfim será publ icado nos Estados Unidos pe la Edito ra ·Knopf.

José Cardoso Pires

O ANJO ANCORADO

De pé . em pleno areal d evo­rado pelGs un lws dos cardos e pelos v emos de t od o o ano, mais nleg r e se tronava a fi­gura dela. Trazia u m casaco de inverno e. por baixo, cami­sola e calças de passeio, tudo de bonitas côres. Por essa razão. e também por ser bem f eita de formas, muito es­guia, muito ági l, era um grito de vida a tumular entr e tan­ta desolação. Girava nos cal­canhares, d e casaco ab erto ao v ento, à roda, à roda, com o ttma criança no recreio. " É bom , é livr e" ... (de o Anjo Ancorado)

Além d e escr itor , você fo i professor e dra mat urgo. Preten­de continuar ne ssas atividades?

O teatro não me inte ressa. principa lmente pelas condições com que se faz teat ro em Port uga l. Minha concepção de teatro mudou: acho q ue é uma mensage m que se começa a e screver no pa lco. com os a tores. e na discussão com o pú bl ico. Só posso ser um escr itor de teatro, vol tando ao comêço da Idade i\locler­na , à Re nascença. A Gil Vicente ou Shake peare . Gil Vicen t ~

fêz um teatro moderno. dentro do seu tem po. Os autos foram escritos de nt ro d o princípio da d iscussão com o público. Is'io du rava a t i.• que o a utor cons iderass<• que sua obra a lcançara e~ tacto defini t ivo . Termin ado me u cont rato no King's College da Univers ida de dl• Londres. aca bo u minha ca rre ira de pruressor. Agor a so escrevl:'rü

Quais os seus plan os agora? Vou me f ixar em P ortugal. mas não vou fazer jornalismo.

Só e crcwrci. Como não go~ta de Lisboa. V()U vív~r n um lu ~·· a 40 km d a capital, Rábida, por questão de tra nquil ida de . Não cons igo escrever em casa, preciso de uma certa perspectiva, de um isolamento. Enquanto escritor , o homem é um animul sol itá r io.

Quando começou a escrever O Delfim, quanto tempo le­vou?

Comecei a escrever e m 1964, éle foi publicado em 1968. Houve m uitos interva los nesses quatro anos : escrevi ve rsões do l ivro, antes d a de finitiva .

Na sua opinião, o que ê O De lfim ? Apa1·ente mente é uma his tór ia de exem plo e cas tigo.

uma história policia l de um ··maria lva" que se envolve num crime . Mas, a lém d as a parências, é história de um tempo abs­tra io, mais de clima, che iro, uma insôn ia onde es tão tôclas as trans figurações.

Gafe ira, onde se passa O De lfim , é real? Não, é um território mítico que forme i com a pa lavra gafe

ma is o su fixo eira, que s ignifica conjunto, população. É também para orientar erradam ent e o le itor, para e le fica r sem saber se houve ou não o crime, tõda a h istór ia. Um caso curioso a pro­pós ito : t enho um artigo, publicado no jornal ''Notícias do Por­to" . com um professor fa lando sôbre o Abade , a monografia do A bade . cor r ig indo-me, dizendo que fi z citações e rradas. e tc. :\1as tudo i sso, e u que invente i. são livros irreais.

Que é " maria lva" ? i\la r ialva é uma figura sociológica portuguesa, que repre­

senta a id ade média conte mporânea em Portugal , no campo po­lítico psicológico, econõm ico e at é lite rário. Ser ia uma espécie de s ímbolo do "mach ismo·· português, que estudei em aspectos como o do contra to de casamento, que é um contrato de pro­pr ie dade, como o da autoridade , do pate rna lismo e m relação à mu lhe r . Em A Carti lha do Marialva fiz uma invocação do passa­do pa ra afirma r o presente; a partir da revisão de vá r ias pers­pect ivas, vi o comportamento de hoje, dêste te mpo e desta hor a, explicando as motivações dêsse comportamento.

José Cardoso Pires

JOGOS DE AZAR

Ao longo do caminho, es­palham-se, p qui e ali, a.s da­mas acabadas d e sair d e cer­tos lugares d e camaradagem e de bela diversão, damas essas que são, afina!, as amo­rosas noturnas da cidade. Tôdas ttsam os n om es de Li­se te, Carmen ou Ceuzinha, e tôdas t êm aquê!e desenho, os gestos e os m odos de se mo­verem e de pararem na estra­da que distinguem as amoro­sas noturnas entre tôdas as mulher es. A lguém afirmou (ou é confusão minha?) que por estas paragens anda à sô!ta o f antasma d o Rocinan­t e ... (Jogos de Azar)

Acha q ue O Delfim pod e a juda r na penet ração da l i· t e ra tura portuguêsa no Brasil?

Espe ro que s im, es tou convencido que s im . Com pou­cas excc<;õcs. a lite ra tura portuguêsa é conhecida no Bra­s il cm per íodo basta nte his tó rico : há uma série d e precon­ce itos. especia lme nt e com rclacJ 10 ao linguajar . que disfar­çam a verdad,l! ira rea lidade portuguésa. Há uma idé ia de­fo rmada da lite ra l ura por t uguesa cont e mporâ nea. Pensa-se que é re tórica. empolad a , un iversi tária , como se o país esti­vesse parado. Um país abe rto, que tem gente como Vieira d a S ilva em p intura , ma rchands inte rnaciona is, um Fer­nando Lopes Gr aça na mús ica, não é um país de pobres coi­tados . A coisa mais importante é o Bras il precisar se a t ua­lizar c m re lação a Portuga l·. Um país nôvo, che io de vida c poten c ia l, t a mbém tem de es tar a tua lizado com re lação a Portuga l. Os portuguêses estão m u ito ma is a tua lizados com re lação ao Brasil. Gostaria que houvesse um entendime nto ma is a utêntico e pro fu ndo elo q ue o qu<' há a tualmen tc.

Está e screvendo a lgum livro? Ilá c inco meses não escrevo nad a, ma s me u próximo

romance está em e laboração. Já t eve a lg uma obra fi lmada? Vend i os d ire itos de O anjo a ncorado, ma s o fi lme não

ro i fei to. Gosta ria de ver minhas obras fi lmadas cxclus iva­mentl• por ca usa elo d inheiro. Acharia melhor trabalhar com um realizador, como Ant onion i, Jea n-Luc Goelarei ou E lto Pet · i.

O BRASfL A INDA NAO DESCOBRIU ÊSTE

" MARAVILHOSO PORTUGUES

Um e scn tor comp lexo como Co mus, it·ôn ico como Günthe r Gross, transcendental co mo Colv no o português Jqsé Ca rdoso P res. Leitura o brigatório, segundo Lé o Gilson Ribeiro .

Há uma surprêsa imensa es· perando por todos os que enter· raram a literatura portuguesa junto com o caixão funerário de Eça de Queiroz. An, que desco­b-erta fenomenal aguarda todos os que acnavam que o sol lit e· rár io de Lisboa emitia seus últi· mos raios fortes com os roman­ces e contos de Miguel To rga, Aquil ino Ribeiro, Ferreira de Cast ro, Joaqu im Paço D'Arcos!

País voltado de costas para as suas raízes, o Brasil desconnece um gra nde escritor português contemporâneo, palpàvelmente vivo - e ext rao rdinário: José Cardoso Pires.

Depois que a Itália e a França ce lebraram seus liv ros, cnega até nós, por êsse desv io típico, uma de seus criações ma is per­fe itas e inqu ietantes, O Delfim. (Editõra Civilização Brasile ira, CrS 12,00).

José Oa rdoso Pires aos 45 anos de idade e apenas com êste romance, demonstra q ue está a par da.s mais revolucio­nárias técnicas do est ilo atual propostas por A lain Robbe-Gril­let , por Cortázar, por Nabokov. Focaliza um Portugal de no je, invadido por mot ocicletas a le­mãs em a ldeias de a rquitetura mour isca, por juke-boxes im­portadas por emigrantes que fo ram para a França e para os Estados Unidos - um país do passado q ue medita sua nisto­ria, aprofunda a aná lise f ilosófi­ca da condição numa na na lati­tude social e cultural de Port u­ga l do século XX.

São demasiado ricos os mo­tivos que J osé Cardoso Pires aborda em seu mag istra l ro­mance para serem s intet izados num a resenna forçosame nte breve. Complexo como Camus, irónico como Günter Grass, transcendental como Ca lvino, José Cardoso Pires ultrapassa as d ime nsões físicas de Portu­gal para assumir sua posição legítima de grande escritor eu­ropéu dês te final de século. Mas para nós sua grandeza ma ior está em ter construído, com o idioma português, estas 183 pá­ginas angustiadas, profundas, líricas, me lancólicas, de in igua­lável mestria vocabular.

Para citar só um aspecto -dos muitos - que formam o mosaico colo rido e esplêndido de O Delfim: o tema do Tempo, quando uma lagartixa se espoja ao sol sõbre uma antiqu íssima inscrição lat ina na cidade de Gafeira , fundada pelos roma­nos. Desafio qualquer compara­ção com qualquer autor vivo -Manuel Puig, Aleio Carpent ier, J uan Rulfo, Jorge Luís Borges, Cario Emílio Gadda - ,capaz de superar a perfeição clássica dêste trecho:

"O ten·eiro estava como se imagina. de~e rto . Argolas inú­te is, sol a pino ; as me~mas ta­bernas sonolentas, os mesmos cartazes de pólvora c de adubo do ano passado c, ao fundo de cer ta loja, o Regedor, de cha­péu na cabeça, a guarda r o bal­cão. Para lá da porta, a muralha continuava com a sua lenda c o seu orgu lho na outra extremi· dadc do largo. Como se disses­se: "Quod scr ip~i. scripsi" · - e fôsse um imponente eco roma­no." O que e~tá escr ito em mim, está escrito há mais de vinte sé­culos e há·de perdurar. Quer os vossos delfins estejam mortos ou vivos ; q ue1· o fumo dos vos­sos tracton~s me venha turvar o rosto; quer os eruditos da re­gião, abades c outros que tais, me lancem as excom unhões que me lançarem . - eu , mu ralha, posso bem com as arrogâncias, e cá es tou . "Quod scrips i, scr ip­si". Só acato as razões da Madre Natureza, as ervas que me aga­salham c a companhia dos bi­chos s ilenciosos. Esta lagartixa, por exemplo.

E e ra verdade. Espalmad a na inscr ição imperial, havia uma lagart ixa . Parda, imóvel, pare­cia um estilhaço de pedra sôbre outra pedra maior e mais Jn­tiga, mas, como tõdas as lagar­tixas, um esl il haço senstve l e vivaz debaixo daquele sono apa­rente. Pe nsei: o tempo, o no~su tempo amesqu inhado.

Ficamos frente a ft·cntc, à luz do me io-d ia. Eu, senhor escr itor da comarca de Portugal, c por­tanto animal tolerado, à mar­gem, e e la, ser humilde, por­tuguês, que habita ruínas de Histór ia; que cumpre uma exis· tência entr<: pedras e sol, e se resigna (é espantoso >; que é , ela própria , um fragmento de pedra gerado na pedra -- um resto final, uma sobra; q ue se alimenta de nada Ide quê > e é rápida no despertar, e sagaz. e ladina, embora votada ao iso­lamento de uma memór ia do Império; que não tem voz, ou a perde u, ou não se ouve ... La­gart ixa, meu brasão do tempo. Posso encontrá-la amanhã no mesmo sítio ttalvez lá esteja a inda ) ou nas traves do solar da lagoa, ou num buraco da adega que já foi o bodegón das minhas ceias do ano passado com o en­genheiro e nunca mais o será. Posso, simbol icamente, supô-la no alto do porta l, imposta sõbre a legenda Ad Usum Delphini, porque em todos êsses lugares ela estará per feita na sua mo­déstia abstrata como a ima­gem de um tempo ou de uma idade em que os anos escor rem alheios à mão do homem e em que a e rva cresce e morre e se d iz: Afinal, também temos Pri­mavera".

Misto de nouveau-roman -em que o auto r se coloca como observador, segundo os d itames da écolc du regare! atual pari­s iense - ; de irónico romance policial de m istério sõbre dois crimes; de apreensão profunda das repe rcussões humanas da dep!!ndéncia política de um pa ís com relação a outros; ro­mance socia l sem panfletarismo esquerdlzante ; criação estilís­tica do mais alto nível existente

desde que a língua portuguêsa separou-se do castelhano na era medieval, O Delfim é o mais importante, o mais angustiante documento literá rio que nos vem de Portugal desde A Ihts­tra Casa de Ramires e A Cidade e as Sérras ou do existencialis· mo niil ista dos poemas de Fer· nando Pessoa.

Mesmo para um Brasil que conta com um <:õuimarães Rosa, um Carlos Drummond de An· drade- é o Inverno da Desco­berta de 1500: a constatação de que Portugal continua esplendi­damente vivo na á rea que fo i sempre a de seu maior triunfo: a palavra. País pequeno, pobre, espoliado, sua grandeza - co­mo a da Grécia Antiga e dos judeus q ue criaram a Bíblia ­é tôda interior e perene: está cifrada nos grandes poetas, ro· mancistas e contistas desde o século XII até hoje.

Fora de quaisquer enfoques políticos, de quaisquer ju lga· mentos a pr ior íst icos, acima de qualquer conceito de ditadura, de tota litarismo como sufoca­dor da liberdade criadora, José Cardoso Pires - não nesita em afirmar -é o equ ivalente, em qualidade e grandeza de con· •cepção à Solz jenitsyn no outro ext remo da esc'a la política.

O leitor brasileiro tem um en­contro im portant e marcado com uma das inteligênc ias sen· síveis mais incisivas da Europa - um encontro na nossa pró· pr ia língua, sem o inferno das traduções deturpadoras, sem a adaptação a ambiente e valôres franceses, ingléses, italianos ou a lemães.

Enquanto outras naçõe~ ins­tauram um Renascimento cien­t ífico no espaço - atingindo a Lua, desvendando novas galá­xias -, o pequenino Portuga l ancestral des·ce ao interior da efémera dimensão humana: a passagem do homem pelo t em­po, pe lo seu país, pela sua épo­ca. E revela uma grandeza s in­fónica, madura; perfeita como êste Delfim, de leitura não só indispensável e urgente: de lei­t ura oxigenante para o intelec­to, o coração e o espír ito embo­tados pela poluição de pseudo­livros e pseudo-artes.

f.