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RÍMINI 2015 UMA PRESENÇA NO OLHAR EXERCÍCIOS DA FRATERNIDADE DE COMUNHÃO E LIBERTAÇÃO

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  • RMINI 2015

    UMA PRESENA NO OLHAR

    EXERCCIOS DA FRATERNIDADE DE COMUNHO E LIBERTAO

  • UMA PRESENA NO OLHAR

    Ex E rc c i o s d a Fr at E r n i d a d E

    d E co m u n h o E Li b E rta o

    RMINI 2015

  • Traduo de Paulo Pacheco e Solange Siquerolli.

    2015 Fraternit di Comunione e Liberazione

  • Por ocasio do curso anual dos Exerccios espirituais para os mem-bros da Fraternidade de Comunho e Libertao, que acontece em R-mini, Sua Santidade, Papa Francisco, espiritualmente partcipe, envia o seu cordial pensamento e seus melhores votos, desejando aos numerosos participantes e aos tantos que esto conectados via satlite abundan-tes frutos de descoberta interior da fecundidade da f crist, sustentada pela certeza da presena do Cristo ressuscitado. O Santo Padre invoca os dons do Divino Esprito por um generoso testemunho da perene no-vidade do Evangelho, nas pegadas deixadas pelo benemrito sacerdote monsenhor Luigi Giussani. E enquanto pede que perseverem na orao pelo seu ministrio universal, invoca a celeste proteo da Virgem Santa e concede, de corao, ao senhor e a todos os presentes, a implorada beno apostlica, estendendo-a, de bom grado, a toda a Fraternidade e seus entes queridos.

    Cardeal Pietro Parolin, Secretrio de Estado de Sua Santidade15 de abril de 2015

  • Sexta-feira, 24 de abril, noiteNa entrada e na sada:

    Ludwig van Beethoven, Sinfonia n. 6 in fa maggiore, op. 68 PastoraleRiccardo Muti Filarmonica della Scala

    Spirto Gentil n. 11, Philips

    n INTRODUO

    Julin Carrn

    No temos necessidade de nada mais, no incio deste nosso gesto, do que gritar e pedir o Esprito para que remova de ns tudo aquilo que est parado, tudo aquilo que no est disponvel, toda a nossa distra-o e abra toda a nossa espera, como me escreve uma de vocs: uma daquelas manhs nas quais voc no consegue se levantar a no ser se for buscando-O. E vai Missa pedindo ao Senhor para encontr-Lo ali, em casa, onde a cada dia comea o desafio da vida. Voc no sabe ainda como estar diante do seu filho, de forma que tudo injusto e tudo raiva, tudo pedido; no sabe, e no entanto, queima no corao aquele pedido de amor, ainda hoje. Na espera daqueles trs dias, os Exerccios da Fra-ternidade, to preciosos e indispensveis, tudo queima de pedido, de uma falta: pedido por aqueles rostos ainda buscados, no caminho, como voc; pedido por um abrao que quereria para sempre, e que ainda busca, para aqueles que ama, para o mundo inteiro; sede de escutar, memorare, re-cordar, que nunca suficiente. Queima ainda aquele amor a Cristo, Sua companhia, que voc busca ainda aos cinquenta anos e do qual nunca est plena.

    com este pedido, com esta espera que se torna pedido, que ns invocamos o Esprito para que leve a bom termo esta nossa, ainda que frgil, tentativa de nos dispormos a acolher aquilo que o Senhor nos dar nestes dias.

    vinde, Esprito criador

    Por ocasio do curso anual dos Exerccios Espirituais para os mem-bros da Fraternidade de Comunho e Libertao, que acontece em R-mini, Sua Santidade, Papa Francisco, espiritualmente partcipe, envia o seu cordial pensamento e seus melhores votos, desejando aos numerosos

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    participantes e aos tantos que esto conectados via satlite abundantes frutos de descoberta interior da fecundidade da f crist, sustentada pela certeza da presena do Cristo ressuscitado. O Santo Padre invoca os dons do Divino Esprito por um generoso testemunho da perene novidade do Evangelho, nas pegadas deixadas pelo benemrito sacerdote monsenhor Luigi Giussani. E enquanto pede que perseverem na orao pelo seu mi-nistrio universal, invoca a celeste proteo da Virgem Santa e concede, de corao, ao senhor e a todos os presentes, a implorada beno apost-lica, estendendo-a, de bom grado, a toda a Fraternidade e seus entes que-ridos. Cardeal Pietro Parolin, Secretrio de Estado de Sua Santidade.

    Como o telegrama do Santo Padre assinala, no incio dos nossos Exer-ccios, estamos ainda imersos na luz da noite de Pscoa. Toda a noite pas-cal foi dominada pela luz do Crio Pascal, pela luz que Jesus ressuscitado introduziu para sempre na histria. luz deste fato que a Igreja olha para tudo, pode olhar para tudo. Porque somente quando aparece defi-nitivamente a luz da ressurreio de Jesus que ns podemos compreender aquilo que no conseguiramos entender sem ela: o significado ltimo de tudo. Por isso, naquela noite, justamente a partir do presente, daquele momento no qual dominada pela luz da Ressurreio (que dita o mto-do para olhar para tudo), a Igreja nos faz olhar para toda a histria, que, a partir da criao, adquire toda a sua luminosidade: a histria na qual se revela finalmente aos nossos olhos a positividade ltima da realidade.

    Na luz da Ressurreio, podemos olhar de frente para a pergunta mais urgente do homem: verdadeiramente, vale a pena ter nascido? a pergunta que nos assalta quando a vida, mesmo com toda a sua beleza, com toda a sua promessa, nos encurrala: por que vale a pena ter nasci-do? A esta pergunta, que o homem se pe sobre a prpria vida, pode-se encontrar uma resposta cheia de significado somente na luz da noite de Pscoa. Porque no teria valido a pena ter nascido se no tivssemos a esperana de uma vida realizada, para sempre. Como nos recorda a Car-ta aos Hebreus, viver seria uma condenao, porque todos viveramos no medo da morte, sob esta espada de Dmocles que paira sobre ns. Ao invs, ns podemos reconhecer a positividade ltima da criao, da vida do homem, da vida de cada um de ns, luz da vitria de Cristo, porque ali encontra resposta completa a grande pergunta sobre o significado da nossa vida. De fato, diz o canto da Proclamao da Pscoa: de que nos valeria ter nascido, se no nos resgatasse em seu amor?1. Sem a ressur-reio de Cristo, o que seria a vida, qual seria o seu significado?

    1 Proclamao da Pscoa, in Missal Romano, Viglia Pascal.

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    A luz que domina a noite de Pscoa nos permite compreender toda a histria da salvao, desde a libertao da escravido do Egito at toda a histria dos profetas, uma histria que no tem outra finalidade do que a de nos fazer entrar na lgica do desgnio de Deus que se revelou lentamente no tempo.

    As leituras bblicas da Viglia Pascal nos mostraram qual paixo Deus tinha pelos homens a ponto de Se interessar pela sorte de um povo insig-nificante como o de Israel, mostrando a todos que Ele no indiferente ao sofrimento dos homens. Deus comea a responder de um modo con-creto, particular, a este sofrimento e no abandona mais os Seus filhos. E mesmo se tantas vezes pudessem se sentir abandonados, como uma mulher abandonada e de alma aflita, Deus insiste com eles atravs dos profetas, como, por exemplo, Isaas: Pode-se repudiar uma mulher des-posada na juventude?. E, no entanto, diz o Senhor, Por um breve ins-tante eu te abandonei, com imensa compaixo volto a acolher-te. [...] por um pouco, ocultei de ti minha face, mas com misericrdia eterna compa-deci-me de ti, diz teu salvador, o Senhor. Deus tranquiliza o Seu povo: Podem os montes recuar e as colinas abalar-se, mas minha misericrdia no se apartar de ti, nada far mudar a aliana de minha paz, diz o teu misericordioso Senhor2.

    Quando essas palavras adquirem verdadeiramente significado, se no com aquele fato, o fato potente da ressurreio de Cristo? Do contrrio, permaneceriam belas palavras para uma consolao sentimental, mas no fundo no constituiriam uma reviravolta crucial, decisiva, no introdu-ziriam na vida algo de verdadeiramente novo. S o fato da Ressurreio projeta sobre elas toda a luz necessria e as enche de significado. E, ento, podemos entender porque Jesus havia dito aos seus discpulos: Felizes os olhos que veem o que vs estais vendo! Pois eu vos digo: muitos profe-tas e reis quiseram ver o que vs estais vendo, e no viram; quiseram ou-vir o que estais ouvindo, e no ouviram3. Os profetas eram parte desta histria, tinham vivido parte desta histria, desejaram ver a sua realiza-o, mas no a viram. Por isso, Jesus diz a ns: Felizes vs que vistes!; Ele o diz a ns que o vimos, que vimos a realizao do Seu desgnio!

    Por isso, a Igreja, na noite de Pscoa, tem a luz para olhar tudo, todo o escuro, tudo aquilo que ns, homens, recusamos olhar porque no te-mos resposta, a comear do nosso mal. Porque esta a noite... em que a coluna luminosa as trevas do pecado dissipou, e aos que creem no Cristo

    2 Is 54,6-8.10.3 Lc 10,23-24.

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    em toda a terra, em novo povo eleito congregou! noite em que Jesus rompeu o inferno ao ressurgir da morte vencedor. Diante desta luz, o povo explode num grito de alegria: De que nos valeria ter nascido se no nos resgatasse em seu amor?. luz deste evento, a Igreja e todos ns, se verdadeiramente o Senhor nos d a graa de um mnimo de conscincia, podemos dizer: Deus, quo estupenda caridade vemos no vosso gesto fulgurar: no hesitais em dar o prprio Filho para a culpa dos servos resgatar4.

    Tendo no olhar Cristo ressuscitado, a Igreja de tal forma capaz de olhar tudo, que ousa dizer uma coisa sobre o nosso pecado que, aos olhos da nossa razo, parece paradoxal: culpa to feliz!. um novo olhar sobre o mal, que, de repente, percebido como um bem: culpa to feliz que h merecido a graa de um to grande Redentor!. Continua a Proclamao da Pscoa: S tu, noite feliz, soubeste a hora em que o Cristo da morte ressurgia. E este o mistrio daquela noite: esta noite lava todo o crime, liberta o pecador dos seus grilhes [no simplesmente o podemos olhar, mas podemos ver at mesmo a sua derrota], enche de luz e paz os coraes5.

    Como no ser gratos, se ns nos deixamos iluminar pela luz que o evento da Ressurreio introduz para sempre na vida e na histria? Por isso, no h circunstncia pela qual algum possa passar, no h difi-culdade ou mal que algum tenha nas costas que devam ser censurados, que sejam to grandes a ponto de no poderem ser olhados, desafiados, luz da vitria de Cristo ressuscitado. luz da Ressurreio podemos olhar tudo, amigos, porque nada est excludo dessa vitria. Peamos ao Senhor para sermos to simples a ponto de aceitar esta luz: que entre nas dobras mais ntimas e mais escondidas do nosso ser!

    O que celebramos na noite de Pscoa apenas um fato do passado, uma recordao devota, um gesto ritual que repetimos todos os anos? A essa pergunta no se pode responder com uma reflexo ou com um racio-cnio abstrato. Nenhum pensamento poderia satisfazer a urgncia pun-gente dessa pergunta, nenhum raciocnio conseguiria atenu-la. O que documenta a verdade, isto , a realidade, daquilo que celebramos na Ps-coa? S um fato: o evento de um povo, como aquele que vimos na Praa So Pedro. Um povo que confirma e grita a realidade da Ressurreio.

    Mas, para poder colher, em toda a sua densidade, aquilo que nos acon-teceu na Praa So Pedro, temos que olhar para um outro fato, um outro

    4 Proclamao da Pscoa, in Missal Romano, Viglia Pascal.5 Idem.

    Sexta-feira, noite

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    evento de povo, acontecido h dois mil anos, que testemunha e confirma a ressurreio de Jesus: o Pentecostes. Quando chegou o dia de Pente-costes, os discpulos estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do cu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam. Ento apareceram lnguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Esprito Santo e comearam a falar em outras lnguas, conforme o Esprito os inspirava. Moravam em Jerusalm judeus devotos, de todas as naes do mundo. Quando ouviram o barulho, juntou-se a multido, e todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discpulos falarem em sua prpria lngua. Cheios de espanto e de admirao, diziam: Esses homens que esto falando no so todos galileus? Como que ns os escutamos na nossa prpria lngua? Ns que somos partos, medos e elamitas, habi-tantes da Mesopotmia, da Judeia e da Capadcia, do Ponto e da sia, da Frgia e da Panflia, do Egito e da parte da Lbia, prxima de Cirene, tambm romanos que aqui residem; judeus e proslitos, cretenses e ra-bes, todos ns os escutamos anunciarem as maravilhas de Deus na nossa prpria lngua!. Todos estavam pasmados e perplexos, e diziam uns aos outros: Que significa isso? Mas outros caoavam: Esto bbados de vinho doce.6

    Como vemos, j desde o incio, desde o primeiro instante, no basta estar diante do fato, ainda que seja assim, imponente. preciso a liber-dade para reconhecer o significado que o fato mesmo grita. Para desco-bri-lo preciso um homem verdadeiramente voltado a tomar conscincia de todos os fatores daquele evento, com aquela inteligncia positiva, com aquela inteligncia pobre, pronta para a afirmao afetuosa do real, na qual consiste o terreno sobre o qual se exalta a f7. Somente assim, algum poderia encontrar resposta para a pergunta que aquele fato pro-vocava: O que significa esta reunio de pessoas?, e verificar a razoabi-lidade das possveis interpretaes, como aquela de que aqueles homens estivessem embriagados.

    a esta pergunta, sua urgncia, pergunta que nasce do fato impres-sionante do Pentecostes, que Pedro responde com o seu discurso, relatado nos Atos dos Apstolos: Pedro, de p, junto com os onze apstolos, levantou a voz e falou multido: Homens da Judia e todos vs, que residis em Je-rusalm, seja do vosso conhecimento o que vou dizer. Escutai-me com toda

    6 At 2,1-13.7 GIUSSANI, Luigi. La familiarit con Cristo: Meditazioni sullanno litrgico. Cinisello Balsamo (Mi): San Paolo, 2008, p. 105.

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    a ateno. Estes aqui no esto embriagados, como podeis pensar, pois no so mais que nove da manh [um pouco cedo para estarem embriagados!]. Est acontecendo o que foi anunciado pelo profeta Joel: Nos ltimos dias, diz o Senhor, derramarei do meu Esprito sobre toda carne, e vossos filhos e fi-lhas profetizaro, os vossos jovens tero vises e os vossos ancios tero sonhos; mesmo sobre os meus escravos e escravas derramarei do meu Esprito, naqueles dias, e profetizaro. E mostrarei prodgios no cu, em cima, e sinais na terra, embaixo, sangue e fogo e nuvem de fumaa. O sol se transformar em trevas e a lua, em sangue, antes que venha o grande e glorioso dia do Senhor. E todo aquele que invocar o nome do Senhor ser salvo. Homens de Israel, escutai estas palavras: Jesus de Nazar foi um homem credenciado por Deus junto de vs, pelos milagres, prodgios e sinais que Deus realizou entre vs por meio dele, como bem o sabeis. Deus, em seu desgnio e previso, determinou que Jesus fosse entregue pelas mos dos mpios, e vs o matastes, pregando-o numa cruz. Mas Deus o ressuscitou, libertando-o das angstias da morte, porque no era possvel que ela o dominasse. Pois Davi diz a seu respeito: Eu via sempre o Senhor diante de mim, porque est minha direita, para que eu no vacile. Por isso alegrou-se meu corao e exultou minha lngua; mais ainda, minha carne repousar na esperana. No abandonars minha alma no mundo dos mortos nem deixars o teu Santo conhecer a decomposio. Deste--me a conhecer caminhos de vida e me enchers de alegria com a tua presena. Irmos, seja-me permitido dizer-vos, com toda liberdade, que o patriarca Davi morreu e foi sepultado, e seu sepulcro est entre ns at hoje. Ora, ele era profeta e sabia que Deus lhe havia jurado solenemente que um de seus descendentes se sentaria no seu trono. Assim, ele previu a ressurreio do Cristo e dela que disse: no foi abandonado no mundo dos mortos, e sua carne no conheceu a decomposio. De fato, Deus ressuscitou este mesmo Jesus, e disso todos ns somos testemunhas. E agora, exaltado pela direita de Deus, ele recebeu o Esprito Santo que fora prometido pelo Pai e o derra-mou, como estais vendo e ouvindo. Pois Davi no subiu ao cu, mas ele diz: Disse o Senhor ao meu Senhor: senta-te minha direita, at que eu ponha teus inimigos como apoio para teus ps. Portanto, que todo o povo de Israel reco-nhea com plena certeza: Deus constituiu Senhor e Cristo a este Jesus que vs crucificastes. Quando ouviram isso, ficaram com o corao compun-gido e perguntaram a Pedro e aos outros apstolos: Irmos, que devemos fazer? Pedro respondeu: Convertei-vos, e cada um de vs seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdo dos vossos pecados. E recebereis o dom do Esprito Santo8.

    8 At 2,14-38.

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    Somente a ressurreio de Cristo pode dar razo adequada para aquele fato. Diante da sua imponncia, Pedro no pode ficar parado num nvel fenomnico ou sociolgico de interpretao. Nele prevalece a ten-so exasperada a dizer o Seu nome: s Cristo ressuscitado, pela fora do Seu Esprito, pode ser a explicao adequada do povo nascido da Pscoa. Pedro todo dominado pela presena de Cristo ressuscitado e pode olhar para a realidade sem ficar na aparncia, vencendo qualquer tipo de inter-pretao redutiva. Ele no consegue olhar nada, se no com a presena de Cristo ressuscitado no olhar.

    Amigos, s um olhar como este que pode introduzir-nos com-preenso adequada, sem redues, daquilo que aconteceu na Praa So Pedro. Ns fazemos parte do povo nascido da Pscoa de Cristo. Cada um de ns pode fazer a comparao entre a conscincia com a qual viveu o evento de povo acontecido em Roma no dia 7 de maro e a conscincia de Pedro diante do evento de povo do Pentecostes.

    Por isso, os dias de Pscoa, amigos, so o paradigma do viver cris-to. Tentemos imaginar como as aparies de Jesus ressuscitado, um dia depois do outro como nos recorda a liturgia , deviam acometer os apstolos! O que era, para eles, a vida, se no o impor-se da Sua presena viva, se no viver com a Sua presena no olhar? No podiam mais apa-g-Lo dos seus olhos.

    O Mistrio no o desconhecido; o desconhecido na medida em que se torna contedo de experincia sensvel. um conceito muito im-portante: por isso, se fala do mistrio da Encarnao, do mistrio da Ascenso, do mistrio da Ressurreio. Deus como Mistrio seria uma imagem intelectual se parssemos na frase assim como dita: Deus Mistrio.9

    Dom Giussani sublinha com fora: O Deus vivo o Deus que Se revelou na Encarnao: na morte e na ressurreio de Cristo. O Deus verdadeiro Aquele que veio entre ns, tornado sensvel, tocvel, visvel, audvel. O Mistrio [...] se tornou experimentvel, se tornou presena na histria do homem. [...] A Ressurreio o cume do mistrio cristo. Tudo foi feito para isto, porque isto o incio da glria eterna de Cristo: Pai, chegou a hora, glorifica o Teu Filho. Tudo e todos temos um senti-do neste acontecimento: Cristo ressuscitado. A glria de Cristo ressusci-tado a luz, o colorido, a energia, a forma do nosso existir, do existir de todas as coisas10.

    9 GIUSSANI, 2008, p. 69.10 Idem, pp. 69, 71.

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    Cada um pode ver como viveu os dias de Pscoa. Para os discpu-los foram o prevalecer da presena de Cristo ressuscitado no olhar e na conscincia. E para ns? O que aconteceu em ns? Na nossa vida, h facilmente uma fuga, uma falta de memria, um deixar para l, como diz logo depois Dom Giussani: A centralidade da ressurreio de Cristo diretamente proporcional nossa fuga, como que de um incgnito; para ns, tantas vezes, como se Cristo faltasse, como se fosse um in-cgnito, no uma presena assim familiar, que nos atrai e nos enche de Si. nossa falta de memria dela, timidez com a qual pensamos na palavra e somos como que repelidos para longe dela: a isto diretamente proporcional a decisividade da Ressurreio, como proposio do fato de Cristo, como contedo supremo da mensagem crist, contedo no qual se torna verdadeira aquela salvao, aquela purificao do mal, aquele renascimento do homem, para o qual Ele veio.11

    Continua Dom Giussani: Est no Mistrio da Ressurreio o cume e o ponto alto da intensidade da nossa autoconscincia crist, por isso da autoconscincia nova de mim mesmo, do modo com o qual olho todas as pessoas e todas as coisas a comear por mim mesmo! No h um outro olhar, amigos! No h um outro olhar verdadeiro sobre ns, sobre a re-alidade, sobre as coisas, sobre as pessoas, sobre a histria, depois da res-surreio de Cristo como evento histrico, se no aquilo que tem, na Sua presena, a luz para olhar tudo. Porque est na Ressurreio, sublinha Dom Giussani, a chave da novidade do relacionamento entre mim e mim mesmo, entre mim e os homens, entre mim e as coisas. Mas, essa a coisa da qual mais fugimos. como que a coisa se quiserem, mesmo respeitosamente mais deixada de lado, respeitosamente deixada na sua aridez de palavra intelectualmente percebida, percebida como ideia, exa-tamente porque o cume do desafio do Mistrio nossa medida. [...] O cristianismo a exaltao da realidade concreta, a afirmao do carnal, tanto que Romano Guardini diz que no h nenhuma religio mais mate-rialista [ou seja, ligada realidade concreta, carne] do que o cristianis-mo; a afirmao das circunstncias concretas e sensveis, de forma que a pessoa no sente anseio de grandeza quando se v limitado naquilo que deve fazer: aquilo que deve fazer, mesmo se pequeno, grande, porque ali dentro vibra a Ressurreio de Cristo. Imersos no grande Mistrio. esbanjar algo do Ser, dilapidar o Ser da Sua grandeza, da Sua potncia e do Seu senhorio; lentamente esvaziar o contedo e fazer definhar o Ser, Deus, o Mistrio, a Origem e o Destino, se ns no nos sentimos imersos

    11 Idem, p. 71.

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    neste Mistrio, no grande Mistrio: a Ressurreio de Cristo. Imersos, como o eu imerso no tu pronunciado com todo o seu corao, como a criana quando olha a me, como a criana sente a me.12

    preciso, por isso, que a inteligncia da criana [...] seja recuperada em ns, para poder olhar as coisas de modo verdadeiro. Chama-se f a inteligncia humana quando, permanecendo na pobreza da sua nature-za original [como nfora vazia pela manh], toda preenchida por outro, j que em si vazia, como braos escancarados que ainda tm que abra-ar a pessoa que esperam. No posso me conceber a no ser imerso no Teu grande Mistrio: a pedra descartada pelos construtores deste mundo, ou por cada homem que imagina e projeta a sua vida, se fez a pedra angu-lar, sobre a qual unicamente possvel construir. Este Mistrio Cristo ressuscitado o juiz da nossa vida; Ele, que a julgar inteira no fim, a julga dia aps dia, de hora em hora, de momento em momento, sem soluo de continuidade. Quero sublinhar que este v-Lo como o Res-suscitado [...] um juzo: ressuscitaste, Cristo. Este reconhecer o que aconteceu dEle, dEle morto, um juzo [...], [isto ] um ato do intelecto que rompe o horizonte normal da racionalidade e agarra e testemunha uma Presena que, de todos os lados, ultrapassa o horizonte do gesto humano, da existncia humana e da histria. [...] por graa que ns po-demos reconhec-Lo ressuscitado e que ns podemos imergir-nos no Seu grande Mistrio; por graa que ns podemos reconhecer que, se Cristo no tivesse ressuscitado, tudo seria vo, v seria a nossa f, ou seja, dizia So Paulo, v seria a nossa afirmao positiva, segura, alegre, v seria a nossa mensagem de felicidade e de salvao, e vs estareis ainda em vossos pecados, isto , na mentira, no no-ser, no no conseguir ser.13

    Dom Giussani no usa meios termos: Sem a Ressurreio de Cristo, s h uma alternativa: o nada. Ns nunca pensamos nisto. Por isso, pas-samos os dias com aquela covardia, com aquela mesquinhez, com aquela negligncia, com aquela instintividade obtusa, com aquela distrao re-pugnante na qual o eu [...] se dispersa. De forma que, quando dizemos eu, ns o dizemos para afirmar um pensamento nosso, uma medida nossa (chamada tambm de conscincia) ou um instinto nosso, um de-sejo nosso de ter, uma reivindicada, ilusria posse. Fora da Ressurreio de Cristo, tudo iluso: ela nos jogueteia. Iluso uma palavra latina que tem como sua ltima raiz a palavra jogo: somos jogueteados, joguetea-dos por dentro, iludidos. -nos fcil olhar todo o ilimitado rebanho dos

    12 Idem, pp. 71-72, 76.13 Idem, pp. 76, 78.

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    homens na nossa sociedade: a grande, ilimitada presena das pessoas que vivem na nossa cidade, das pessoas que vivem perto de ns [...], das pessoas mais estreitamente prximas de ns em casa. E ns no podemos negar experimentar esta mesquinhez, esta sordidez, esta negligncia, esta distrao, esta perda total do eu, este reconduzir-se do eu a afirmao violenta e presunosa do pensamento que vem [...] ou do instinto que pretende agarrar e possuir algo que ele decide que lhe prazeroso, satisfa-trio, til. [...] Nunca a palavra pedir, rezar, solicitar se torna to decisiva como diante do mistrio de Cristo ressuscitado. 14

    Por isso, prossegue Dom Giussani, para imergir-nos no grande Mis-trio devemos suplicar, pedir: pedir, essa a riqueza maior. [...] O realis-mo mais intenso e mais dramtico pedi-Lo.15 Como escrevia Santo Agostinho: Se o seu desejo est diante dele [o Mistrio], ele que v no segredo o ouvir. [...] O seu desejo a sua orao [o seu pedido]; se cont-nuo o seu desejo, contnua tambm a sua orao. [...] Se no quiseres parar de rezar, no cesses de desejar.16

    Que gratido imensa e sem limites ouvir essas coisas, dar-se conta de que ainda uma vez Cristo se torna assim abertamente presente! Ne-nhuma notcia comparvel a esta: Cristo presente ainda tem piedade de ns. assim que Ele continua a ser o primeiro, que Ele nos primerea. Com essa Presena no olhar, ns podemos olhar e julgar tudo; podemos ter um olhar cheio dessa luz sobre o nosso tempo, sobre o vazio, sobre a violncia, sobre a tribulao, sobre a impacincia.

    Esse olhar pode nos ajudar a entender tambm toda a densidade do que vivemos na Praa So Pedro. So tantos os sinais do acontecimento que Roma foi para ns, como muitos escreveram. Vocs, como eu, o sa-bem bem. Voltando de carro, diz sinteticamente um de vocs, junto com amigos, havia um clima diferente: era flagrante que, naquele dia, havia acontecido algo a todos ns. So tantos os sinais de que do dia 7 de maro no ficou apenas um impacto momentneo sentimental, mas que ele determinou um olhar novo sobre a vida.

    O que aconteceu na Praa So Pedro? O papa no nos falou simples-mente. Com ele, vivemos um gesto que para usar a sua expresso nos descentrou, nos trouxe uma vez mais ao centro e nos fez experimentar Cristo em ao. No h um outro ponto de partida alm dessa expe-rincia para olhar tudo o que aconteceu. Papa Francisco fez acontecer

    14 Idem, pp. 78-79, 81.15 Idem, p. 81.16 SANTO AGOSTINHO. Comentrio aos Salmos (1-50). So Paulo: Paulus, 1997 (Sl 37,14).

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    aquilo do que nos falou: um encontro, um encontro cheio de piedade, de misericrdia. o mesmo mtodo da noite de Pscoa. Por isso, luz da experincia feita que podemos entender aquilo que nos disse, inclusive o seu chamado converso, para no perder o centro, Cristo, em tudo aquilo que fazemos.

    Percebi, em alguns, um certo maravilhamento diante desse chamado converso. Mas, amigos, seria presunoso pensar que ns no precisamos de converso, que no exista nada em ns que deva ser mudado. Quem de ns no tem necessidade de converso? Por isso, escutando as vrias reaes, veio-me em mente um trecho da Carta aos Hebreus que cita os Provrbios, que acredito que poder nos ajudar a ler o discurso do Papa com a postura justa: Portanto, com tamanha nuvem de testemunhas em torno de ns, deixemos de lado tudo o que nos atrapalha e o pecado que nos envolve. Corramos com perseverana na competio que nos proposta, com os olhos fixos em Jesus, que vai frente da nossa f e a leva perfeio. Em vista da alegria que o esperava, suportou a cruz, no se importando com a infmia, e assentou-se direita do trono de Deus. Pensai, pois, naquele que enfrentou uma tal oposio por parte dos pe-cadores, para que no vos deixeis abater pelo desnimo. Vs ainda no resististes at ao sangue, na vossa luta contra o pecado, e j esquecestes as palavras de encorajamento que vos foram dirigidas como a filhos: Meu filho, no desprezes a correo do Senhor, no te desanimes quando ele te repreende; pois o Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como filho (Pr 3,11-12). para a vossa correo que sofreis; como filhos que Deus vos trata. Pois qual o filho a quem o pai no corrige? Pelo contrrio, se ficais fora da correo aplicada a todos, ento no sois filhos, mas bastardos. [...] Deus, porm, nos corrige em vista do nosso bem, a fim de partilharmos a sua prpria santidade. Na realidade, na hora em que feita, nenhuma correo parece alegrar, mas causa dor. Depois, porm, produz um fruto de paz e de justia para aqueles que nela foram exercitados.17

    Prestemos ateno na diferena entre certas reaes nossas ao discur-so do Papa e a reao de Dom Giussani depois do reconhecimento da Fraternidade de Comunho e Libertao, no dia 11 de fevereiro de 1982. Assim, cada um de ns pode fazer a comparao.

    O ato da Santa S erige e confirma em pessoa jurdica para a Igre-ja universal a associao leiga denominada Fraternidade de Comunho e Libertao, declarando-a, para todos os efeitos, Associao de Direi-

    17 Hb 12,1-11.

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    to Pontifcio e estabelecendo que seja reconhecida por todos como tal. [Mas], o texto do decreto [de reconhecimento] vinha acompanhado por uma carta, endereada a Dom Giussani, do cardeal Rossi, na qual se fazia uma lista de recomendaes entre as quais: a coerente afirmao do prprio carisma deve evitar tentaes de autossuficincia; o reco-nhecimento da natureza eclesial da Fraternidade implica uma sua plena disponibilidade e comunho com os Bispos, com o Supremo Pastor da Igreja frente; os sacerdotes devem estar a servio da Unidade; e todos os membros no devem impedir que a f mantenha toda a sua fora de irradiao sobre a vida e assim por diante. Giussani lembrar de ter dito ao cardeal Rossi, quando lhe entregou a carta, que gostaria de pu-blic-la, e de ter ouvido o purpurado responder: No, no a publique! Porque os malevolentes podem interpretar mal as recomendaes que nela esto escritas. Pelo contrrio, para Giussani, a carta justamente um exemplo da maternidade com a qual a Igreja consegue, quando h pastores como o Cardeal, acompanhar os seus filhos. Naquele ponto, o Cardeal consentiu que se publicasse.18

    Por que temos tanto medo de acolher os chamados de ateno do Papa e reconhecer os nossos erros? um sinal de que a nossa consistncia ainda est naquilo que fazemos, naquilo que temos, isto , que nos deslo-camos de Cristo. Por isso, nunca temos paz em ns, nem letcia: porque no colocamos a consistncia naquilo que nos aconteceu, nEle que nos aconteceu.

    Por que o Papa e Dom Giussani no tm esse medo? Porque, para eles, a certeza colocada em outra coisa diferente daquilo que fazem e tm. Escutem o que diz Giussani me parece um juzo crucial para comear bem esses dias de Exerccios e parar olhar tudo luz da ressurreio de Cristo: Normalmente, [...] a consistncia [...], ns a buscamos naquilo que fazemos ou naquilo que temos, que o mesmo. Assim, a nossa vida nunca tem aquele sentimento, aquela experincia da certeza plena, que a palavra paz indica, aquela certeza e aquela plenitude [...], aquela certeza plena, [...] sem a qual no h paz [...], no h alegria. No mximo, che-gamos satisfao naquilo que fazemos, satisfao conosco mesmos. E estes fragmentos de satisfao naquilo que fazemos, ou naquilo que somos no resultam em nenhuma alegria e nenhuma felicidade, nenhum senso de plenitude seguro, nenhuma certeza e nenhuma plenitude. isto o que perdemos! A certeza algo que ocorreu a ns, aconteceu a ns, entrou em ns, foi encontrado por ns: [...] a consistncia da nossa pessoa

    18 SAVORANA, Alberto. Vita di don Giussani. Milo: BUR, 2014, pp. 602-603.

    Sexta-feira, noite

  • Exerccios da Fraternidade

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    [...] [] algo que nos aconteceu [...], Algum nos aconteceu. [...] Vivo, no eu, mas este [Cristo] que vive em mim.19

    O Papa e Giussani podem olhar para tudo porque esto certos de Cristo e da Sua misericrdia. O Papa pode at dizer: E, por isso, s ve-zes, vs me ouvistes dizer que o lugar privilegiado do encontro com Jesus Cristo o meu pecado.20 No podemos imaginar nada de mais liberta-dor, para poder olhar a ns mesmos, para poder olhar tudo aquilo que somos, at mesmo aquilo que no conseguiramos olhar! Que experincia o Papa fez para chegar a dizer isso diante de mundo? O lugar privilegia-do do encontro o afago da misericrdia de Jesus Cristo em relao aos meus pecados.21 Na base de sua audcia, est a certeza de Cristo. a mesma audcia da Igreja que, na noite de Pscoa, grita a todo o mundo: culpa to feliz que h merecidoa graa de um to grande Redentor!. No devemos censurar nada; nada est excludo deste olhar, deste abrao cheio de piedade.

    A censura de ns mesmos, o medo, a falta de audcia confirmam o quanto ns nos afastamos de Cristo, o quanto estamos distantes dEle e o quanto estamos centrados em ns mesmos: no Cristo o centro do viver! De fato, somente quem no tenha se afastado de Cristo no ter medo de olhar tudo, at mesmo o prprio mal. Quanta necessidade temos de estar descentrados de ns mesmos para que Ele volte a ser o centro, a ponto de nos permitir olhar tudo, justamente tudo! Jesus Cris-to sempre o primeiro, antecipa-nos, espera por ns, Jesus Cristo prece-de-nos sempre; e quando ns chegamos, Ele j est ali nossa espera.22 Quem pode imaginar um presente maior do que este para si mesmo, para a prpria vida? Algo de mais til para comear esses dias?

    Mas, no acaba aqui, no s isso. Porque sem a experincia da misericrdia no somente eu no encontro paz, mas sobretudo no co-nheo Cristo verdadeiramente. As pessoas honestas, diz Pguy, no apresentam aquela abertura produzida por uma ferida espantosa, por uma misria inesquecvel, por um arrependimento invencvel, por um ponto de sutura eternamente mal feito, por uma inquietude mortal, por uma ansiedade recndita invisvel, por uma amargura secreta, por uma precipitao perpetuamente mascarada, por uma cicatriz eternamente mal curada. No apresentam aquela abertura para a graa que o pe-

    19 GIUSSANI, 2008, pp. 25-26.20 FRANCISCO. Discurso ao Movimento de Comunho e Libertao, 7 de maro de 2015.21 Idem.22 Idem.

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    cado, essencialmente. [...] As pessoas honestas no se deixam banhar pela graa.23

    O Papa nos disse: S quem foi acariciado pela ternura da miseri-crdia conhece verdadeiramente o Senhor24. Sem a experincia da mi-sericrdia, no conhecemos Cristo! Fora o engano e a ingenuidade de pensarmo-nos sem pecado, se no experimentamos e no reconhecemos a Sua misericrdia, nunca poderemos nunca mesmo! saber quem Cristo. A falta de experincia da Sua misericrdia confirma o quanto estamos afastados, descentrados, desviados de Cristo.

    Que consolo, ento, reler o relato do fariseu e da mulher pecadora, para comear esses dias!

    Um fariseu convidou Jesus para jantar. Ele entrou na casa do fari-seu e sentou-se mesa. Havia na cidade uma mulher que era pecadora. Quando soube que Jesus estava mesa na casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro, cheio de perfume, postou-se atrs, aos ps de Jesus e, chorando, lavou-os com suas lgrimas. Em seguida, enxugou-os com os seus cabelos, beijou-os e os ungiu com o perfume. Ao ver isso, o fariseu que o tinha convidado comentou: Se este homem fosse profeta, saberia quem a mulher que est tocando nele: uma pecadora! Ento Jesus falou: Simo, tenho uma coisa para te dizer. Ele respondeu: Fala, Mestre. Certo credor, retomou Jesus, tinha dois devedores. Um lhe devia quinhentas moedas de prata, e o outro cinquenta. Como no tives-sem com que pagar, perdoou a ambos. Qual deles o amar mais? Simo respondeu: Aquele ao qual perdoou mais. Jesus lhe disse: Julgaste corretamente. Voltando-se para a mulher, disse a Simo: Ests vendo esta mulher? Quando entrei na tua casa, no me ofereceste gua para lavar os ps; ela, porm, lavou meus ps com lgrimas e os enxugou com seus cabelos. No me beijaste; ela, porm, desde que cheguei, no parou de beijar meus ps. No derramaste leo na minha cabea; ela, porm, ungiu meus ps com perfume. Por isso te digo: os muitos pecados que ela cometeu esto perdoados, pois ela mostrou muito amor. Aquele, po-rm, a quem menos se perdoa, ama menos. Em seguida, disse mulher: Teus pecados esto perdoados. Os convidados comearam a comentar entre si: Quem este que at perdoa pecados? Jesus, por sua vez, disse mulher: Tua f te salvou. Vai em paz!.25

    23 PGUY, Charles. Nota congiunta su Cartesio e la filosofia cartesiana. In: PGUY, Charles. Lui qui. Milo: BUR, 1997, pp. 474-475.24 FRANCISCO. Discurso ao Movimento de Comunho e Libertao, 7 de maro de 2015.25 Lc 7,36-50.

    Sexta-feira, noite

  • Exerccios da Fraternidade

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    Quem conhece mais a Jesus? Quem pode experimentar um amor maior e viver aquela moralidade sobre a qual nos falou o Papa? Aquele a quem muito perdoado, ama muito. Como podia, aquela mulher, amar to intensamente? Pela conscincia que tinha de j ter sido toda perdoa-da, porque havia conhecido aquele homem. Que audcia! A audcia que lhe vem do fato de ter sido perdoada a faz entrar naquela casa e cumprir aquele gesto sem precedentes. Havia um lugar no qual tinha sido acolhi-da com todo o seu mal, tinha se sentido abraada por um olhar cheio de misericrdia. Por isso, no tinha medo de olhar o prprio pecado. Des-centrada de si e do seu pecado, toda determinada pelo olhar de Cristo, aquela mulher no podia mais olhar nada sem Cristo no olhar. Essa a libertao que Cristo traz para a nossa vida, seja l qual for o nosso mal.

    Peamos que Cristo domine de tal forma esses dias que possam retor-nar para casa livres.

    Um gesto dessas dimenses no possvel sem a contribuio de cada um de ns. Como?, perguntava-se Dom Giussani nos Exerccios da Frater-nidade de 1992. Com uma s coisa: com o silncio. Que, pelo menos por um dia e meio [...], saibamos descobrir e nos deixar afundar dentro do si-lncio! Nele, pensamento e corao, a percepo daquilo que nos circun-da e, por isso, o abrao fraterno, amigvel com as pessoas e com as coisas se exalta. Que, em um dia e meio ao longo de todo um ano, nos deixemos levar pelo esforo, pela fadiga deste silncio!. Perderemos o melhor, se no dermos espao possibilidade de que aquilo que nos acontece nos penetre at o miolo. O silncio no o no falar; o silncio estar com o corao e a mente cheios das coisas mais importantes, aquelas nas quais, normalmente, nunca pensamos, mesmo sendo o motor secreto atravs do qual fazemos tudo. Nada daquilo que fazemos nos basta, satisfatrio [...], razo exaustiva para faz-lo [...]. [Pelo contrrio], o silncio [...] coin-cide com aquilo que ns chamamos memria, para deixar entrar este olhar. Por isso, insistimos para que o silncio seja respeitado na sua na-tureza [...], mas tambm para que seja salvo o contexto atravs do qual a memria pode ser til: o no falar inutilmente. Recomendamos o silncio sobretudo durante os deslocamentos; porque, assim, quando entrarmos no salo, a memria ser favorecida pela msica que ouviremos ou pe-los quadros que veremos; nos disporemos assim a olhar, a escutar, a ouvir com a mente e com o corao aquilo que, de algum modo, Deus nos propor. E conclua: Devemos ter uma grande compaixo por aquilo que nos proposto e pelo modo com o qual nos proposto; a inteno boa, quer o seu bem, lhe quer bem. Seria muito melanclico no poder

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    fazer outra coisa, mas aquilo que fazemos juntos, neste dia e meio, ape-nas um aspecto do grande gesto amoroso com o qual o Senhor ainda que voc no se d conta disso empurra a sua vida em direo quele Destino que Ele26.

    26 GIUSSANI, Luigi. Dare la vita per lopera di un Altro: Exerccios espirituais da Fra-ternidade de Comunho e Libertao. (Notas das meditaes), Rmini, 1992; suplemen-to de CL-Litterae Communionis, n. 6, 1992, pp. 4-5.

    Sexta-feira, noite

  • SANTA MISSALiturgia da Missa: At 9,1-20; Sl 116 (117); Jo 6,52-59

    HOMILIA DE PADRE STEFANO ALBERTO

    Pode-se pensar estar cheios de zelo pelo Senhor, como Saulo, e no ver nada. Pode-se pensar fazer tudo pelo Senhor, como Saulo, e estar distan-tes de Cristo. Quanto mais se pensa ser justo, tanto mais se age e mais se faz o mal. Saulo se prepara para perseguir mulheres, crianas, famlias. Mas, acontece algo de absolutamente imprevisvel. E o mais impressio-nante que o Senhor Jesus Se manifesta dentro da resistncia de Saulo, dentro do orgulho de Saulo, dentro da fria do perseguidor. Jesus o agar-ra e muda a sua vida. No h escutamos isso outro modo para mudar: aceitar essa identificao do Senhor com a nossa vida, com o nosso mal; aceitar este dom total que Ele oferece a cada um de ns.

    No podemos interpretar aquilo que escutamos Jesus dizer na sina-goga de Cafarnaum: Aquele que de mim se alimenta viver por meio de mim. Aquele que de mim se alimenta: essa identificao de Cristo che-ga a ser comida e bebida para ns pecadores, para ns pobrezinhos. Essa identificao de Cristo com aquele que agarra o mtodo com o qual Ele vence a histria, com o qual venceu o grande perseguidor tornando-o o maior missionrio da histria da Igreja: Saulo se torna Paulo. Aquele que de mim se alimenta viver por meio de mim.

    Na grande pergunta de Jesus a Saulo Por que me persegues? Mas, eu persigo os Teus! est todo o mtodo. A iniciativa de Cris-to se identifica com aquele que ele escolhe e agarra. No somos salvos por quem ns escolhemos, por quem pensamos. A potncia redentora de Cristo, o perdo de Cristo, a inteligncia nova de Cristo, a fora nova de Cristo, em Paulo tem o rosto de Ananias, no incio temeroso de receber esta misso.

    E, para ns, qual o rosto de Cristo? Essa a grande alternativa pos-svel: resistir, como os doutores em Cafarnaum Como que ele pode dar a sua carne a comer? ou aceitar a simplicidade, a radicalidade, a potncia vivificante desse mtodo Quem vos recebe, a mim recebe. Quem recebe quem eu envio entre vs, me recebe. Quem escuta quem eu escolhi entre vs, me escuta. E quem no o escuta, no me escuta.

    Uma presena no olhar o que cada um de ns deseja e grita. Mas, para que isto acontea devemos simplesmente reconhecer e acolher o olhar daquela Presena.

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  • Sbado, 25 de abril, manhNa entrada e na sada:

    Franz Schubert, Sonata para harpa e pianoforte, D 821Mstislav Rostropovich, violoncello Benjamin Britten, pianoforte

    Spirto Gentil n. 18, Decca

    Padre Pino. Jesus Cristo nos precede sempre, nos primerea; e quando ns chegamos, Ele j nos estava esperando.1

    Angelus

    Laudes

    n PRIMEIRA MEDITAO

    Julin Carrn

    O centro um s, Jesus Cristo

    Sio vinha dizendo: O Senhor me abandonou, o Senhor esqueceu-se de mim! Acaso uma mulher esquece o seu nenm, ou o amor ao filho de suas entranhas? Mesmo que alguma se esquea, eu de ti jamais me esquecerei!2

    Este o olhar que nos oferecido uma vez mais a cada manh, que nos permite olhar para tudo diversamente. O que perdemos quando no acolhemos, em cada manh, esta positividade ltima Eu de ti jamais me esquecerei como ponto de partida para entrar no real! Quanto mais a pessoa se d conta disso, tanto mais entende que se h algo que vale / habitar a Tua casa, onde oferecida uma vez mais esta conscincia a cada dia; todo o resto banal.3 com este olhar que podemos olhar para tudo.

    1 Cfr. FRANCISCO, Discurso ao Movimento de Comunho e Libertao, 7 de maro de 2015.2 Cfr. Is 49,14-15.3 CHIEFFO, Claudio, Errore di prospettiva, Canti, Societ Cooperativa Editoriale Nuovo Mondo, Milo 2014, p. 225.

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  • Exerccios da Fraternidade

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    1. Um estranho obscurecimento do pensamento

    a) Um passo necessrio em cada encontro nosso a identificao do pro-blema, a situao na qual nos encontramos, como Dom Giussani nos educou incansavelmente a fazer: para poder caminhar, preciso se dar conta do contexto no qual somos chamados a viver, dos desafios que nos dizem respeito, das redues nas quais tropeamos, j que no h vida abstrata, no h caminho, no h vocao e testemunho fora da hist-ria, fora das circunstncias e dos condicionamentos nos quais estamos, das fraquezas e dos fracassos que mais nos caracterizam, dos perigos que mais frequentemente corremos.

    Portanto, a primeira contribuio que nos damos est no juzo, na conscincia dos dados, da realidade na qual o Mistrio nos faz viver. Por-que a primeira e mais grave dificuldade na qual nos encontramos no , em primeiro lugar, de carter moral, mas cognitivo como estamos vendo na Escola de Comunidade, no incio do terceiro captulo de Por que a Igreja.

    Um fato que todos vimos, do qual todos participamos , o gesto de Roma, nos ajuda a entender o tipo de dificuldade que caracteriza o contexto no qual vivemos e que chamamos no ltimo ano, a partir da interveno sobre a Europa, de colapso das evidncias. Com efeito, nem mesmo um gesto imponente e pblico como aquele acontecido na presena de todos e de modo pelo menos aparentemente inequvoco pode interromper a multido de interpretaes, mesmo que opostas entre si. Por qu? aqui que vem tona a dificuldade de que falamos, relativa s evidncias. Roma apenas um exemplo impressionante daquilo que nos acontece em cada coisa que vivemos.

    O que a evidncia?, perguntava-se Dom Giussani. A evidncia uma presena inexorvel!. E acrescentava: Dar-se conta de uma presen-a inexorvel! Abro os olhos diante desta realidade que se me impe.4 A evidncia implica, portanto, dois termos: de um lado, a presena, o impor-se do fato, da realidade; do outro, o nosso abrir os olhos para ela, o dar-se conta dela. Na evidncia esto sempre em jogo dois fatores: a realidade e o eu de cada um de ns.

    Falar de colapso das evidncias no significa, ento, afirmar que a realidade desapareceu (foi por demais bvio para todos que a Praa So Pedro era realidade) ou que a estrutura humana se enfraqueceu, que a ontologia se alterou: significa dizer que o nosso reconhecimento dela se

    4 GIUSSANI, Luigi, O senso religioso, Universa, Braslia 2009, p. 157.

  • enfraqueceu, a nossa capacidade de v-la e de capt-la no seu significado, na sua natureza, no seu rosto autntico. Est em questo o dar-se conta daquilo que temos diante de ns, daquilo que somos. Por isso este o ponto no basta a objetividade que acontece diante de ns. Para reco-nhec-la preciso algo de outro, preciso uma abertura, uma disposio do sujeito, uma genialidade em ns, como diz Giussani: o senso das coisas que nos vem ao encontro, da realidade que nos alcana, captado, com efeito, na medida da evoluo do senso religioso, ou seja, na medida do senso do eu que cada um tem.

    Assim, diante de Roma, diante da vida religiosa que a Igreja, devemos registrar, em primeiro lugar, uma dificuldade de inteligncia, uma fadiga devida falta de disposio do sujeito em relao ao objeto que ele deve julgar: uma dificuldade de inteligncia causada por uma si-tuao no desenvolvida do senso religioso. Isso pode acontecer diante da Igreja assim como se apresenta hoje e, analogamente, diante da mo-dalidade com a qual a Igreja nos alcana atravs do Movimento. sinto-mtico que, hoje, quem tem dificuldade com a Igreja, tenha dificuldade tambm com o Movimento. A falta de educao do senso religioso natu-ral nos leva muito facilmente a sentirmos distantes de ns realidades que, ao contrrio, esto radicadas dentro da nossa carne e do nosso esprito.5

    A nossa dificuldade de inteligncia, a nossa dificuldade para compre-ender, , ao mesmo tempo, filha de uma influncia do contexto, do cli-ma que respiramos e de uma no educao do senso religioso; por isso, depende tambm da nossa cumplicidade, de uma falta de compromisso nosso, de uma superficialidade presunosa nossa.

    b) Por um estranho obscurecimento do pensamento6, em ns e em tor-no de ns tantas evidncias desmoronaram; e entre elas desmoronou at mesmo a evidncia do eu, mesmo em ns, que no somos impermeveis s solicitaes que recebemos. O critrio necessrio para relacionar-se com tudo o senso do eu que cada um de ns tem: para entender um filho assim como para captar a profundidade de um poema ou o alcance daquilo que um amigo ou a sua mulher lhe comunicam. Sem eu, no h tu, mas somen-te aridez nos relacionamentos. Quem sou eu? O que verdadeiramente de-sejo? Hoje, justamente isto se tornou obscuro. Cada um adverte em si um impulso, um anseio, uma vontade de ser, de se realizar, de se afirmar. Mas,

    5 GIUSSANI, Luigi, Por que a Igreja, Companhia Ilimitada, So Paulo 2015, p. 21.6 BENTO XVI, Luz do mundo. O Papa, a Igreja e os sinais dos tempos. Uma conversa com Peter Seewald, Paulinas, So Paulo 2011, p. 43.

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  • Exerccios da Fraternidade

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    do que feito este impulso, para onde se dirige, o que pode, verdadeira-mente, satisfaz-lo? Nada menos evidente do que isto. Sabe-se aquilo que os outros querem de ns como preciso ser, o que preciso pensar , mas no se sabe aquilo que se , no nos mais evidente. O contedo da palavra eu , frequentemente, apenas uma conveno social.

    Eis como Giorgio Gaber o expressa: Busco um gesto, um gesto na-tural / para estar seguro de que este corpo meu. / Busco um gesto, um gesto natural / inteiro como o nosso eu. // E, ao contrrio, no sei nada; estou em pedaos; no sei mais quem sou / entendo apenas que continu-amente eu me condiciono / deve ser como um homem, como um santo, como um deus / para mim, sempre h o como e no h eu...7. E, no en-tanto, mesmo que eu esteja em pedaos, no posso no posso! tirar de mim o fato de que eu quero ser eu inteiro, em cada gesto que vivo.

    O homem contemporneo (ou seja, cada um de ns) parece ter se tor-nado estrangeiro para si mesmo, nada lhe menos evidente do que o con-tedo da palavra eu, das suas dimenses essenciais; move-se com se no tivesse uma bssola profunda. este o grande drama. Todo o resto so consequncias. Por isso, Giussani dizia h alguns anos: No [h] [...] mais nenhuma evidncia real, a no ser a moda8. Aquela natureza do eu exi-gncias e evidncias originais , que deveria ser a bssola para se orientar na vida, ofuscada e substituda pela moda. E se ns no nos damos conta de que a questo que esta bssola, esta natureza do eu, volte a ser capaz de reconhecer a realidade, coisa alguma, ao alguma que possamos ima-ginar poder oferecer uma contribuio real para a situao do homem.

    O que fica anestesiado , em primeiro lugar, a capacidade de captar a evidncia em referncia a si mesmos, e, portanto, o exerccio da razo, do senso crtico. Consequentemente, incrementa-se a acomodao aos es-quemas, o hbito gregrio e diminui a autonomia do juzo, da tomada de posio. a razo pela qual Dom Giussani afirma que no se trata de uma fraqueza tica, mas de energia da conscincia9, aquela energia com a qual olhamos os filhos, com a qual vocs olham a mulher ou o marido, com a qual olham as circunstncias, com a qual olham a realidade, os desa-fios do viver. O colapso das evidncias no uma filosofia abstrata, mas uma situao existencial na qual nos encontramos todos como dado de partida , cujas razes afundam num longo percurso (que acenamos outras vezes e que est documentado no terceiro captulo do Por que a Igreja).

    7 Cerco un gesto, un gesto naturale, letra e msica de GABER; G. e LUPORINI; A., 1973.8 GIUSSANI, Luigi, Lio rinasce in un incontro (1986-1987), Bur, Milo 2010, p. 182.9 Idem, p. 181.

  • c) Hoje, mais do que nunca, podemos reconquistar aquela clareza que nos falta apenas a partir de dentro da experincia. A situao no se resolve estudando uma antropologia ou uma moral: da experincia que deve-mos aprender quem somos, entender o que est altura do problema da vida e o que no est. Por isso, no se trata de substituir um discurso por um outro, mas de nos sustentarmos numa ateno nossa experincia, de nos ajudarmos a olhar. O que emerge de mim, da minha natureza, naquilo que vivo, observando-me em ao? O caminho para o verdadeiro uma experincia. Se voc quer fazer um caminho que o leve sempre mais a uma clareza, deve viver de tal modo quer dizer, de tal forma seriamen-te que possa conquistar, a partir de dentro da sua experincia, aquela clareza que lhe falta. Porque a fonte de cada evidncia a experincia. A experincia [de fato] o tornar-se evidente da realidade.10

    Portanto, preciso descobrir, a partir de dentro da experincia, que a vida a minha, a sua feita de um desejo de felicidade que nada con-segue realizar, aplacar, de uma sede de significado total, exaustivo, na au-sncia do qual o homem se perde e pode desencadear-se a pior violncia. Devemos descobrir em ns o desejo da bela dita por que tanto anseia / A mortal natureza de que fala Leopardi , e que este desejo de ser felizes atormenta os homens desde que o mundo mundo.11 No preciso tomar como boas, passivamente, as afirmaes que ouvimos ou que lemos, no se pode ser agitado pelas teses dos outros. No preciso considerar bvio o desejo de felicidade s porque Leopardi quem fala dele. No , em primeiro lugar, Leopardi, o poeta, a dizer que o homem atormentado pelo desejo da felicidade e da verdade: a nossa vida mes-ma que o grita! E, por isso, podemos ler Leopardi (ou outros) e encon-trarmo-nos nele, sentirmo-nos expressos nele mais adequadamente do que ns seramos capazes de fazer. No mesmo sentido, no estamos aqui, agora, tomando partido, para dizer que o homem inelutvel exigncia de um significado: a vida pesada e sofrida que o diz dramaticamente, o mal-estar profundo de tantos jovens de hoje. Porque no se vive do nada. Ningum pode estar de p, ter uma relao construtiva com a rea-lidade, sem alguma coisa pela qual valha a pena viver, sem uma hiptese de significado.12

    10 GIUSSANI, Luigi, In cammino (1992-1998), Bur, Milo 2014, p. 315.11 LEOPARDI; Giacomo, Al Conte Carlo Pepoli, vv. 24-25; 28-29.12 CARRN; Julin, O desafio do verdadeiro dilogo depois dos atentados de Paris, Corriere della Sera, 13 de fevereiro de 2015, p. 27.

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  • Exerccios da Fraternidade

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    d) O que nos ajuda a sair deste estranho obscurecimento de que falava Bento XVI, deste ofuscamento? Quais so os aliados da descoberta de si, de uma tomada de conscincia de si? Como pode emergir e se tornar potente o reconhecimento daquilo que somos? A conscincia da nossa humanidade deve ser, de fato, como diz Dom Giussani, constantemente solicitada e ordenada13, quer dizer educada, para despontar e perma-necer viva. O que educa o senso religioso?

    O grande aliado dito com uma palavra sinttica da qual devemos descobri toda a riqueza a realidade (O chamado de ateno tambm no feito diretamente por Deus [...]. O chamado de ateno que pe em movimento o senso religioso do esprito humano vem de Deus atravs da realidade criada14).

    Realidade quer dizer tudo aquilo que existe, tudo aquilo que acon-tece, as solicitaes que recebemos, as circunstncias atravs das quais passamos, os golpes da vida, aqueles desejados e aqueles indesejados (pensemos, por exemplo, nos eventos trgicos destes dias e em todos aqueles que afligem a vida de cada um): quantas vezes nos damos conta de que justamente aqueles golpes que no quereramos nos escancara-ram a uma conscincia incomparvel de ns mesmos, que sem eles no existiria, introduziram o nosso eu numa profundidade de descoberta de si antes desconhecida. Ento, entendemos como Dom Giussani tem razo quando diz que a nica condio para ser sempre e verdadeiramente religiosos vivermos sempre intensamente o real. A frmula do itinerrio rumo ao significado da realidade viver o real sem censuras, isto , sem renegar nem esquecer nada. No seria, com efeito, humano, ou seja, ra-zovel, considerar a experincia limitando-se sua superfcie, crista de sua onda, sem descer profundidade do seu movimento.15

    Uma amiga me escreve: Depois das intervenes de ontem noite no jantar dos Bancos de Solidariedade, intu um pouco mais porque, nesses ltimos meses, estou vivendo a caritativa com mais letcia; e no enten-dia por que, dadas as circunstncias. Em novembro, diagnosticaram a filha de um amigo com leucemia: com ele, h dez anos, levo as cestas bsicas a trs famlias da nossa regio e, inicialmente, para alm da dor por esta notcia, de forma egosta pensei no fato que seria difcil sem a sua ajuda; fazer esta caritativa tinha se tornado um pouco uma rotina e,

    13 GIUSSANI, Luigi, Na origem da pretenso crist, Companhia Ilimitada, So Paulo 2012, p. 121.14 GIUSSANI, Luigi, O senso de Deus e o homem moderno, Bur, Milo 2010, p. 26.15 GIUSSANI, Luigi, O senso religioso, op. cit., p. 166.

  • aparentemente, para mim estava indo bem assim. Passada esta fase inicial de desnimo, aconteceu que me perguntei seriamente o que queira dizer fazer caritativa, o que a realidade, neste momento, pede a mim, e o que queira dizer compartilhar minha necessidade com a das famlias que en-contro mensalmente, com os meus alunos, a minha famlia, os amigos. A realidade, paradoxalmente, se tornou mais interessante, sim, interessante! Olhar como o meu amigo e sua mulher olham para a sua filha me faz pensar que h um olhar bom que vem antes e que o que desejo tambm para mim. Saio de casa cheia de letcia, no porque as coisas estejam indo bem ou estejam indo como eu tenho em mente, mas porque eu estou mais presente, tem a minha humanidade mais presente, tem a curiosidade de ver como o Bom Deus me surpreende, e a certeza de que foi Ele quem me deu a possibilidade de encontrar justamente aquelas famlias ali e viver este gesto com aqueles amigos ali, que so, para mim, o rosto bom de Jesus.

    O belo do caminho que fazemos que tudo isso faz parte da aventura da renovada descoberta de quem somos, do despertar constante do nosso eu. Como vemos, a experincia que me faz dar-me conta de quem sou verdadeiramente. No a imagem que eu fiz de mim, no a reduo que fiz daquilo que sou. Que erro grosseiro cometemos continuamente: identifi-car aquilo que somos com aquilo que pensamos ser, como se fosse o seu pensamento a lhe dizer quem voc e no a experincia! Por isso, na experincia do viver que acontece a descoberta da realidade e do meu eu.

    De dentro de todas as nossas tentativas de nos acomodarmos, de calar a ns mesmos, emerge inexorvel outra vez o abismo da vida16, de que fala Miguel Maara, a profundidade inteira do nosso eu. As nossas ten-tativas se demonstram insuficientes, falhas, mesmo quando tm sucesso e tudo fica bem no apenas quando acontece uma doena ou um desas-tre, mas tambm quando tudo correu bem. Porque, como dizia Leopardi, Ai, no imo do peito, grave, duro, imoto, / Como coluna adamantina, o tdio / Imortal se firmou e nada pode / Contra ele o juvenil vigor17. Po-demos fazer de tudo, mas um tdio invencvel, grave, bem firme, imvel como coluna de ao se instala no corao, e contra ele nada pode, nem mesmo a nossa juventude. Eu como a erva amarga da rocha do tdio18, dizia ainda Miguel Maara depois de todas as suas aventuras.

    16 MILOSZ, O.V., Miguel Maara, Mefiboseth, Saulo di Tarso, Jaca Book, Milo 2001, p. 28.17 LEOPARDI, Giacomo,Al Conte Carlo Pepoli, vv. 72-73.18 MILOSZ, O.V., Miguel Maara, op. cit., p. 27.

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    Se, portanto, de um lado, ns nos encontramos, hoje, tendo que fazer uma enorme fadiga para recuperar as evidncias perdidas (estamos na situao existencial descrita pelo exemplo que Giussani d em Por que a Igreja, daqueles alpinistas que tm muita dificuldade para chegar ao ataque da parede rochosa, para se colocarem na posio adequada para comear a escalada), de outro lado, justamente na experincia do tdio e da desiluso, da tristeza ou do peso da vida, comea a se tornar notvel em contraluz esta sede que o eu, a realidade do corao, o nosso teci-do ltimo. De fato, em toda a desiluso, em todo o tdio, h algo que se anuncia; apesar de tudo se arruinar, h algo que permanece. Atravs daquela desiluso e daquele tdio, da percepo da inconsistncia e de precariedade, abre caminho a evidncia do meu eu como desejo de felici-dade. impressionante ver alguns exemplos disso.

    Fiquei tocado com uma cano de Vasco Rossi, Dannate Nuvole, na qual o cantor conta a experincia que faz de si mesmo e da vida: Quan-do caminho sobre estas / Danadas nuvens / Vejo as coisas que fogem / Da minha mente / Nada dura, nada dura / E disto sabes / Porm / Nunca te habituas [por qu? o que, em ns, teimosamente, nos impede de nos ha-bituar?] // Quando caminho neste / Vale de lgrimas / Vejo que tudo deve se / Abandonar / Nada dura, nada dura / E disto sabes / Porm / Nunca te habituas // Quem sabe por qu? (3x) [ das vsceras da experincia que fazemos que nasce este quem sabe por qu?] // Quando quero dizer a verdade / Estou confuso / No estou seguro / Quando me vem em mente / Que nada existe / S fumaa / Nada de verdadeiro / Nada verdadeiro, nada verdadeiro / E talvez o sabes [mas, se nada verdadeiro...] / Porm / Tu continuars [por qu?] // Quem sabe por qu? (3x) // Quando me vem em mente / Que nada existe / S fumaa / Nada de verdadeiro / Nada dura, nada dura / E disto sabes / Porm / Tu no te rendes // Quem sabe por qu? (9x) // Quando me vem em mente / Que nada existe19. O que descobre um homem, na prpria experincia, mesmo quando fala assim negativamente do viver? O que resiste apesar da sua filosofia, do seu nii-lismo (nada verdadeiro, nada dura)? Mas nunca se rende, quem sabe por qu?. Tudo pode se arruinar, eu posso pensar o que quer que seja, deixar-me arrastar por aquilo que todos dizem, fazer-me esmagar at mesmo pelo meu niilismo, mas h em mim algo que derrota o niilis-mo: que eu no me rendo. Tu no te rendes // Quem sabe por qu?.

    E quando a pessoa tenta evitar esta tomada de conscincia, nem mes-mo isto pode anular a evidncia daquilo que somos. Guccini descreve-o

    19 Dannate Nuvole, letra e msica de ROSSI, Vasco, 2014.

  • bem em Canzone per Piero: Eu digo sempre no quero entender, mas como um vcio sutil e, quanto mais penso / mais descubro em mim este vazio imenso e, como remdio, apenas o dormir. / E, depois, cada dia volto a despertar e permaneo incrdulo, no gostaria de me levantar, / mas vivo ainda e esto ali me esperando.... O que? As minhas perguntas, o meu nada, o meu mal....20 Quanto mais se vai a fundo, mais nos descobrimos com a surpresa daquilo que no havamos reconhecido no incio: o dado! Apesar de toda a nossa confuso, algo resiste como dado! Descubro-o em mim ali, diante de mim. E assim se nos reapresentam, depois de um longo e conturbado percurso, as evidncias que caracterizam o nosso eu.

    possvel at mesmo fazer coisas para no pensar, mas a dor explode no peito, como canta Amy Winehouse em Wake up alone (Acordo sozi-nha): Tudo vai bem durante o dia, me mantenho ocupada / Empenhada o bastante para no ter que pensar onde ele esteja / Estou muito cansa-da de chorar, / Quando me recupero, mudo completamente de humor // Estou bem, limpo a casa, pelo menos no estou bebendo / Vou para l e para c, assim no tenho que pensar em pensar / Aquele mudo sentido de alegria que cada um experimenta / Desaparece to logo o sol se pe // Este rosto nos meus sonhos me agarra as vsceras / Me inunda de terror [...] / E acordo sozinha // Se eu fosse o meu corao eu preferiria estar sem paz / [...] Esta dor no meu peito, agora que meu dia terminou / [...] Me inunda de terror.21

    realidade, ao chamado de ateno que coloca em movimento a nos-sa humanidade e a conscincia de ns mesmos, ao complexo de eventos, de solicitaes e de provocaes que chamamos realidade pertence, de modo original e essencial, tambm e sobretudo, a trama de encontros que caracterizam a nossa vida e lhe permite o desenvolvimento. Como diz Giussani, o homem se desenvolve por relacionamento, por contato com ou-tro. O outro, to originariamente necessrio para que o homem exista, que necessrio tambm para que o homem se torne verdadeiro, torne-se sempre mais si mesmo.22

    Se olharmos para como, em ns, se revela e se afirma o eu, a consci-ncia de ns mesmos, deveremos dizer: o nosso eu emerge na medida da provocao que o alcana e que aceita. O eu, o senso religioso, a prpria humanidade, ativa-se a partir da solicitao que recebe da realidade, e

    20 Canzone per Piero, letra e msica de GUCCINI, 1974.21 Wake Up Alone, letra e msica de WINEHOUSE, Amy e ODUFFY, P, 2006.22 GIUSSANI, Luigi, Introduzione alla realt totale. Il rischio educativo, suplemento de Tracce-Litterae Communionis, n. 4, abril de 2006, p. 5.

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    em primeiro lugar daquele ponto nela que se revela indispensvel para o desenvolvimento de si e de todas as suas estruturas, quer dizer: o outro, os outros, as relaes fundamentais, o contexto humano, os encontros que marcam e acompanham o seu crescimento e o seu ser no mundo. neste nvel de profundidade que se coloca a educao, a sua necessidade e a sua influncia determinante.

    Como sublinha Giussani, a experincia humana original, ou seja, o senso religioso, aquele complexo de evidncias e de exigncias pelas quais eu sou homem, s existe ativamente dentro da forma de uma provoca-o. No existe, se no age. E continua: A nossa conscincia original no age, a no ser dentro da forma de uma provocao, quer dizer, dentro da modalidade na qual solicitada. [...] Se a estima que provocada em mim pela mentalidade mundana, eu enfrento o problema do meu pai, da minha me, da mulher, do homem, dos filhos, de tudo, atravs da men-talidade mundana que me provocou. Se o encontro que fao, pelo contr-rio, com Cristo, com Sua Presena, ento eu vou ao encontro de tudo com a minha experincia humana provocada, movida por este encontro. A nossa experincia original se coloca diante de todas as coisas por uma promessa que tem dentro, que lhe foi feita. O que chamo provocao como que uma forma que a faz agir.23

    Os encontros que fazemos representam a forma da provocao que faz agir, que faz existir ativamente, que move a experincia original que est em ns. Por isso, Dom Giussani nos falou sempre daquela lei que vale para todos e para qualquer homem em qualquer tempo e cultura: O eu renasce num encontro.24 Um homem vive o percurso da descoberta de si, de uma tomada de conscincia de quem e daquilo que o realiza, de modo tanto mais completo, quanto mais alcanado por uma provo-cao adequada e a aceita.

    O que reprope a vida aos nossos olhos e ao nosso corao com se-riedade?. O que nos permite reapropriarmo-nos de ns mesmos, alcan-ar uma verdadeira clareza sobre o nosso destino e sobre o caminho que nos conduz a ele? Como diz Dom Giussani, s um acontecimento, s o encontro com Cristo.25 A reconquista da evidncia do eu, de uma clare-za sobre si, da profundidade do desejo, o resgate da capacidade mesma da evidncia so tornados possveis, em ltima instncia, somente por um acontecimento, por um encontro.

    23 GIUSSANI, Luigi, Dallutopia alla presenza (1975-1978), Bur, Milo 2006, p. 193.24 Cfr. GIUSSANI, Luigi, Lio rinasce in un incontro (1986-1987), op. cit., p. 182.25 GIUSSANI, Luigi, In cammino (1992-1998), op. cit., p. 142.

  • Se ns ganhamos ou podemos ganhar outra vez uma conscincia mais completa do nosso corao, do complexo de exigncias e de evidncias no qual ele consiste, por aquela provocao que o encontro com Cris-to, com a Sua presena real na histria (no uma imaginao, mas um acontecimento agora, um encontro vivo). Quanto mais conscientes dis-so, tanto mais entendemos que, na poca do colapso das evidncias, o problema verdadeiramente radical que exista, que se comunique aquela provocao adequada que pode favorecer o real resgate de uma percep-o de si mesmos. So certos encontros, de fato, pela provocao que representam, que colocam em ao, de forma completa, a conscincia originria de ns mesmos, que fazem emergir o nosso eu das cinzas do nosso esquecimento, das nossas redues. Os fatos de Paris primeiro, a irrupo contnua da violncia e das perseguies nesses nossos tempos recentssimos esto diante de ns para documentar a urgncia deste teste-munho, de presenas que provoquem o despertar do humano. Os cristos que vivem na prpria pele a fria da violncia so um exemplo disso que nos enche de gratido.

    Uma de vocs conta: Este ano foi um pouco difcil, me dei conta de que, no fim, flutuei! [...] A audincia em Roma, a assembleia dos Bancos de Solidariedade, a Escola de Comunidade me mostraram pessoas cheias de letcia e trabalhando com a prpria vida, e me fizeram sentir uma in-veja louca, a ponto de me fazer dizer: eu tambm quero ter esse olhar! Eu tambm desejo esse abrao! Estes gestos me ajudaram a levar a srio ou-tra vez a minha necessidade e a desejar buscar, em cada momento, quem pode responder a esta necessidade. Jesus me reconquistou! incrvel se dar conta de que os mesmos gestos, as mesmas situaes podem mudar quando a pessoa desejosa, quando a pessoa necessitada... a realidade provoca, mas se eu no estou presente pode acontecer qualquer coisa que eu no me darei conta! No que, antes, Jesus no existisse, mas eu no O via porque nem mesmo O buscava! Recomecei tambm a levar a cesta bsica, porque o problema no mais encontrar o tempo para fazer este gesto (algo a mais no dia!), mas deixar-se ajudar por este gesto a ter sem-pre presente a prpria necessidade. Tendo este desejo de ser abraada por Ele em cada momento, pela manh, ainda antes de comear a preparar o caf da manh e comear logo a organizar o dia, pedi a meu marido para rezar o Angelus comigo, para que todo dia fosse vivido na certeza de que Ele venha a encontrar cada um de ns como Ele achar melhor, assim como me escreveu um amigo.

    Ou ento, um outro escreve: Nestes ltimos dias no conseguia, fran-camente, entender por que os meus amigos davam tanta importncia ao

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    encontro de Roma com o Papa, e, ao mesmo tempo, gestos como a Cole-ta de Alimentos e a assembleia dos Bancos de Solidariedade escapuliram. Coisas belas, mas julgava que a minha satisfao estivesse em algo outro. Na segunda-feira aps a Pscoa, enquanto eu dava um passeio, encontrei no parque perto de casas dois amigos meus com seus quatro filhos, um dos quais, de no mais que trs anos, tem leucemia; depois de dois anos de cuidados, agora, a situao mudou dramaticamente e, para ele, no h mais esperanas de cura. Quando os vi de longe, desejei fortemente mudar o caminho para evitar encontr-los; pensava tambm que, evitan-do-os, os deixaria tranquilos, mas era eu que queria ficar tranquilo, que no queria estar diante deles. Depois, porm, fui at eles e sua milagrosa serenidade me tocou. Enquanto o menino e seus irmos se divertiam no escorregador, a me me disse: Que sol bonito est fazendo hoje!. Nos dias que se seguiram, essa frase voltava continuamente minha mente: quem pode permitir que uma me, que sabe que seu filho vai morrer, diga que sol bonito? Poderia maldizer tudo. Ao invs, aqueles meus dois ami-gos eram mais felizes do que eu! O encontro com eles como se me tivesse aberto os olhos ao verdadeiro valor do encontro com o Papa: eu estava ali, com tantas pessoas, para encontrar Quem, hoje, permitiu quela me dizer: Que bonito o sol!. Eu tenho apenas que ser leal.

    No uma imaginao, mas um acontecimento agora, como sem-pre nos dissemos, que faz renascer a conscincia da nossa humanidade: Quando encontrei Cristo, me descobri homem.26

    2. Uma mo que o oferece agora

    Depois do encontro, pareceria tudo no lugar. Ns O encontramos... To-dos sabemos, por experincia, que no assim. A dificuldade para enten-der, a incapacidade de captar as evidncias permanece mesmo depois do encontro. Vimos isto quando trabalhamos o terceiro captulo de Por que a Igreja, no qual Dom Giussani, logo no incio, nos ajuda a nos darmos conta da nossa dificuldade de captar o significado de palavras direta-mente ligadas experincia crist27. Mesmo neste nvel, em suma, h um colapso das evidncias, uma dificuldade para entender o que nos aconte-ceu de modo apaixonado, persuasivo, imponente e nico. Para cada um

    26 Cfr. VITTORINO, Mario, In Epistola ad Ephesios, Liber secundus, in Marii Victo-rini Opera exegetica, cap. 4, v. 14.27 GIUSSANI, Luigi, Por que a Igreja, op. cit., p. 51.

  • de ns o encontro com Cristo foi a maior evidncia da vida. Nenhuma outra comparvel a esta. E, no entanto, quantas vezes nos deslocamos, nos afastamos de Cristo, sem nem mesmo nos darmos conta. E surpre-endemos tambm em ns depois do encontro e diante dele aquele obscurecimento, aquela tendncia a decair, a nos perder, a obscurecer e a nos obscurecer, ao qual acenamos. Encontramos em ns uma facilidade para o ofuscamento, para a confuso, a ponto de no conseguir mais ver as coisas evidentes, por uma espcie de fraqueza, de obtusidade. E a coisa mais surpreendente que isto pode acontecer e acontece mesmo no que diz respeito Igreja e ao Movimento.

    Mesmo aqui se reprope e emerge, portanto, o vnculo entre o fato e o reconhecimento dele, entre a presena inexorvel e o dar-se conta dela (do seu significado, do seu alcance), entre a verdade e a liberdade.

    A experincia da audincia com o Papa, em Roma, teve o valor pe-daggico de um gesto no qual cada um pde se surpreender em ao, verificando se estava naquela posio de sintonia original (de que fala Por que a Igreja) que permite entender, ou ento se se descobriu bloque-ado por uma obtusidade, por uma dificuldade insupervel para entender. Todos puderam ver o que aconteceu na Praa. Mas, nem tudo acabou na Praa. No havia ainda terminado o encontro e j comeavam as diversas reaes e interpretaes do evento e das palavras do Papa. Naquele exato momento, cada um pode ver se a experincia vivida era de tal forma clara e consistente a ponto de se manter diante das vrias interpretaes, as de dentro e as de fora. Nem mesmo um acontecimento dessas dimenses, a participao em um gesto assim imponente e integralmente humano, poupou nem nunca poder poupar a ningum a fadiga de acertar as contas com a experincia vivida e, a partir dela, julgar quais das interpre-taes que apareceram dava a razo adequada do fato.

    A experincia vivida em Roma documenta que a participao no ges-to no coloca a palavra fim na questo, sobre o que acontece. Como para o cego de nascena: a cura no foi o fim, mas o ponto de partida, o incio da luta para reconhecer a verdade, a realidade daquilo que havia acontecido com ele. Quem, portanto, tendo ido embora da Praa, espe-rava que um juzo de autoridade do Movimento resolvesse as ques-tes e tornasse claras as coisas sem que se envolvesse, pde verificar at que ponto no assim (neste caso, no faltou nem mesmo um juzo de autoridade, to logo terminou o gesto, na forma de um comunicado de imprensa nosso; mas isto no basta).

    Aqui se evidencia o nexo entre o primeiro e o segundo ponto do per-curso que estamos fazendo: assim como uma clareza completa a respeito

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    do nosso eu s tornada possvel por um acontecimento, por um encon-tro, ao mesmo tempo, para nos darmos conta de que, depois do encontro, nos perdemos, perdendo o caminho, temos necessidade que reacontea o encontro, ou seja, o mesmo acontecimento do incio, de to profunda que a nossa necessidade, de tanto que sem limites a nossa fraqueza mortal, como diz a liturgia. No nos damos conta sozinhos. Temos ne-cessidade de um outro, de uma presena integralmente humana.

    Pelo que podemos reconhecer esta presena? Pelo fato que ela nos descentra das nossas redues, das nossas distraes para nos reconduzir ao centro, Cristo. E como nos descentra, como nos reconduz a Cristo? Acontecendo. Simplesmente acontecendo. O cristianismo sempre um acontecimento. Sem que isso reacontea constantemente, na primeira curva, estaremos fora da estrada. Por isso, uma ingenuidade terrvel pensar que ns j sabemos, como se o j saber pudesse evitar o desloca-mento, o sair da estrada. Mas, uma consolao ver que isto j acontecia aos apstolos com Jesus: eles, que foram os primeiros a fazer o encontro excepcional com a presena viva de Cristo, se deslocavam continuamente, exatamente como ns.

    a) O deslocamento dos discpulosEm tantos episdios do Evangelho somos colocados diante do desloca-

    mento dos discpulos e ao contnuo report-los ao centro por parte de Jesus.Citamos tantas vezes, nestes anos, o retorno dos apstolos, que Ele ha-

    via enviado para pregar, para anunciar o Reino. Retornam todos anima-dos, mas j deslocados, desequilibrados sobre outra coisa, e Jesus deve report-los ao centro: No vos alegreis porque os espritos se submetem a vs. Antes, ficai alegres porque vossos nomes esto escritos nos cus 28, isto , foram escolhidos.

    E ainda: Joo disse a Jesus: Mestre, vimos algum expulsar dem-nios em teu nome. Mas ns o proibimos, porque ele no andava conosco. Como veem, eles tambm tinham alguns problemas de autoreferencialida-de... Jesus, porm, disse: No o proibais, pois ningum que faz milagres em meu nome poder logo depois falar mal de mim. Quem no contra ns, est a nosso favor29.

    Os episdios continuam: A me dos filhos de Zebedeu, com seus fi-lhos, aproximou-se de Jesus e prostrou-se para lhe fazer um pedido. Ele perguntou: Que queres? Ela respondeu: Manda que estes meus dois

    28 Lc 10,20.29 Mc 9,38-40.

  • filhos se sentem, no teu Reino, um tua direita e outro tua esquerda. No que os outros discpulos fossem muito diferentes de ns, por isso... Quando os outros dez ouviram isso, ficaram zangados com os dois ir-mos. E Jesus os corrige: Sabeis que os chefes das naes as dominam e os grandes fazem sentir seu poder. Entre vs no dever ser assim. Quem quiser ser o maior entre vs seja aquele que vos serve.30

    s vezes, o obscurecimento daqueles que seguiam Jesus chega a um ponto tal que quando ia se completando o tempo para ser elevado ao cu, Jesus tomou a firme deciso de partir para Jerusalm. Enviou ento mensageiros sua frente, que se puseram a caminho e entraram num povoado de samaritanos, para lhe preparar hospedagem. Mas os samari-tanos no o queriam receber, porque mostrava estar indo para Jerusalm. Vendo isso, os discpulos Tiago e Joo disseram: Senhor, queres que mandemos descer fogo do cu, para que os destrua? Ele, porm, voltou--se e os repreendeu 31. At ao ltimo continuavam a se deslocar dEle.

    Poderamos continuar toda a manh relatando episdios desse tipo, reportados no Evangelho. At ltima cena: um instante depois de ter confessado a Jesus que O amava (Tu me amas?. Sim) e ter ouvido dizer Segue-me, Voltando-se, Pedro viu que tambm o seguia o dis-cpulo que Jesus mais amava, e perguntou a Jesus: E este, Senhor, que ser dele? Jesus respondeu: Se eu quero que ele permanea at que eu venha, que te importa?.32

    Sem se dar conta, insensivelmente, os apstolos se deslocavam do cen-tro, se desequilibravam sobre outro, recolocavam em outro a sua consis-tncia. Que consolao ver que somos como eles, e que Jesus no se es-pantava com seu desvio, mas os reportava, a cada vez, de volta ao centro! Mesmo que teu pai e tua me te abandonem, eu nunca te abandonarei.

    b) O nosso deslocamentoTambm conosco acontece como aos discpulos (o problema, ateno,

    no que nos desloquemos, mas que ns neguemos nos termos desloca-do, porque isto tambm acontece). Por isso, assim como aos discpulos, tambm a ns preciso o encontro com uma presena presente, que nos descentre de ns mesmos para nos fazer retornar ao centro, Cristo. o que Giussani fez conosco. Se repercorrermos a nossa histria, como fize-mos com a dos discpulos, nos encontraremos diante dos mesmos fatos,

    30 Mt 20,20-21.24-26.31 Lc 9,51-55.32 Jo 21,17.19-22.

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    do mesmo deslocamento, e estaremos tambm ns na presena de um homem que constantemente nos reconduz ao centro.

    Os chamados de ateno que encontramos ao longo da nossa histria so exemplificaes que podem nos ajudar a verificar em que medida aquelas tentaes identificadas por Dom Giussani so tambm nossas, hoje, nos dizem respeito no presente. Retornemos a alguns momentos nos quais Dom Giussani nos reconduziu ao centro.

    Nos primeiros Exerccios da Fraternidade, em 1982, logo depois do reconhecimento pontifcio, Dom Giussani comea a falar, deixando to-dos em dificuldade. As pessoas tinham chegado animadas podera-mos dizer porque a Igreja tinha, finalmente, reconhecido o Movimen-to. Mas, Dom Giussani confessa: Eu me sinto um pouco embaraado e confuso ao iniciar, porque me vm mente com insistncia os nomes dos meus primeiros alunos33. Para introduzir o motivo da falta de jeito, cita uma frase de Joo Paulo II: No haver fidelidade [...] se no se encontrar no corao do homem uma pergunta, para a qual s Deus oferece resposta, ou melhor, para a qual s Deus a resposta34. Depois disso, observa: Desde os bancos da escola, sobre os quais nos encon-tramos, at companhia de hoje [...], a seriedade desta pergunta hu-mana que surpreendo em mim nesta manh, sentindo-a em toda a sua exigncia, em toda a sua fora, em toda a precariedade de consistncia que ela tem na vida de um homem. Eis, portanto, porque sentiu-se tre-mer: O que me faz tremer, nesta manh, realmente a surpresa que uma grande distncia possvel de mim mesmo, porque a minha pessoa aquilo que deve se tornar: o homem um projeto, a sua definio vem da realizao desse projeto. O pensamento desta manh me faz surpreen-der assim normalmente distante daquilo que, mesmo intencionalmente, assim insistentemente, retomo, medito de novo e lano uma vez mais aos outros para meditarem. Assim, julga a vida de tantos na Fraternidade: Vocs cresceram: na medida em que garantiram para si mesmos uma capacidade humana na prpria profisso, existe, como que possvel, uma distncia de Cristo [...], o nosso corao est como que isolado, melhor, Cristo fica como que isolado do corao, exceto nos momentos de cer-tas aes (um momento de orao, ou um momento de compromisso, quando acontece uma reunio geral, quando precisa puxar uma Escola

    33 GIUSSANI, Luigi, A familiaridade com Cristo, Passos-Litterae communionis, feve-reiro 2007. Cfr. SAVORANA, Alberto, Vita di don Giussani, op. cit., p. 605.34 JOO PAULO II, Homilia na Cidade do Mxico, durante a viagem na Repblica Domi-nicana, Mxico e Bahamas, 26 de janeiro de 1979.

  • de Comunidade, etc.). Mas h, como consequncia desta, um distancia-mento a mais, que se revela num ulterior e definitivo embarao entre ns falo tambm de maridos e esposas num ulterior e definitivo embarao recproco, que torna distante o aspecto definitivo do corao de um do aspecto definitivo do corao do outro, exceto nas aes comuns (susten-tar a casa, cuidar dos filhos, etc.).35

    Quinze anos antes, no dia 19 de novembro de 1967, apenas dois dias depois da ocupao da Universidade Catlica, durante o retiro de Ad-vento do Grupo Adulto, Dom Giussani julga a reao tida pelos uni-versitrios do Movimento naquela circunstncia: E assim, mesmo a inteligncia da situao e das coisas a fazer que uma inteligncia diversa, mais aguda, porque uma inteligncia ditada pelo ponto de vis-ta de Deus nos faltou to facilmente porque no O esperamos [no esperamos Deus] dia e noite. Com efeito, se O tivssemos esperado dia e noite, mesmo a postura dos nossos na sua convivncia na Univer-sidade Catlica teria sido diferente; foi muito generosa, mas quanto foi verdadeira?. E, referindo-se ainda a quem participou da ocupao, dis-se: A verdade do gesto no nasce da astcia poltica, do contrrio o nosso discurso se confunde com o dos outros e se torna instrumento do discurso dos outros. Podemos fazer as nossas coisas e assumir como pa-radigma, sem que nos demos conta, o de todos, o paradigma oferecido por todos os outros. do esper-Lo dia e noite que se distingue o nosso discurso, as nossas aes.36

    A ocupao da Catlica se torna, para Dom Giussani, uma ocasio preciosa para aprender algo de decisivo para si: Verdadeiramente esta-mos na condio de estar na vanguarda, os primeiros daquela mudana profunda, daquela revoluo profunda que nunca estar digo: nunca naquilo que de exterior, como realidade social, pretendamos que acon-tea; de fato, nunca estar na cultura ou na vida da sociedade, se no estiver primeiro [...] em ns. Se no comear entre ns este sacrifcio de si... No um bolo a ser dado, mas [] uma revoluo de si, no conceber--se sem pr-conceito, sem tentar salvar algo antes.37

    Em 1973, cinco dias depois do grande encontro no Palalido de Milo, Dom Giussani exprime o seu desapontamento porque aquilo que acon-

    35 GIUSSANI, Luigi, A familiaridade com Cristo, Passos-Litterae communionis, feve-reiro 2007. Cfr. SAVORANA, Alberto, Vita di don Giussani, op. cit., p. 605.36 Retiro de Advento do Grupo adulto, Milo, 19 de novembro de 1967, in SAVORA-NA, Alberto, Vita di don Giussani, op. cit., p. 391.37 Idem, p. 392.

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    teceu, tendo sabido que os aplausos mais convencidos haviam sido dirigi-dos s propostas polticas que haviam lanado sombra sobre aquilo que deveria ser um gesto pblico de testemunho da f: O que privilegiado em ns no Cristo, no o fato novo: pessoal, ainda no acreditamos. A ideologia nos invade de tal forma, que aquilo que s poderia ser secun-drio comparado comunho porque que voc tenha uma opinio di-ferente da minha, isto natural se torna prevalente operativamente, no juzo que se d, e na ao que se segue, at ao ponto que a comunho no tem mais espessura.38

    Pelo que Giussani era dominado enquanto nos corrigia assim? Pelo acontecimento de Cristo, pela paixo por Cristo, pela Sua presena, pela Sua memria. No havia se deslocado de Cristo! Por isso, podia reco-nhecer, a cada vez, que o nosso corao como que isolado, ou melhor, Cristo fica isolado do corao.39

    c) O formalismo e a estagnao da novidadeH um sintoma que tambm um risco permanente deste afasta-

    mento do motivo pelo qual tudo comeou: o formalismo. Desde os pri-meirssimos anos de vida do Movimento, Dom Giussani hipersensvel ao perigo sempre ameaador de perder o frescor da experincia original, de deslocar a ateno do motivo pelo qual tudo nasceu e pelo qual as pessoas aderiram, se envolveram. O que as atraiu no foram frmulas ou rituais associativos, no foi uma organizao: foi um acontecimento vivo que investia a sua vida. Por isso, sempre percebeu como mortal o risco do formalismo.

    J em 1962, quando j estava em ato uma grande riqueza expressiva, com muitas iniciativas, encontros pblicos, publicaes etc., e GS estava se afirmando sempre mais em Milo e em outras partes da Itlia, Gius-sani, dirigindo-se a um grupo de responsveis de ento, assinala que como que fossilizada a experincia original que nos fez entrar, se cristali-zou. De fato, sublinha: possvel se tornar fidelssimos no uso de um mtodo como frmula e transmiti-lo, aceit-lo, sem que este mtodo con-tinue sendo inspirador de um desenvolvimento: um mtodo que no de-senvolva uma vida um mtodo sepulcral, silicificao (petrificao). Este o motivo pelo qual os encarregados pensam em sua responsabili-

    38 Quarta escola de comunidade, Milo, 20 de maio de 1973, in SAVORANA, Alberto, Vita di don Giussani, op. cit., p. 468.39 GIUSSANI, Luigi, A familiaridade com Cristo, Passos-Litterae communionis, feve-reiro 2007. Cfr. SAVORANA, Alberto, Vita di don Giussani, op. cit., p. 605.

  • dade como extrnseca e no como mtodo de vida para si, em primeiro lugar. Assim, isso se torna um desgaste e um peso.40

    Qual o efeito do usar o mtodo como frmula? A estagnao da novidade, isto , o enrijecimento da vida. Para Giussani, liberdade de esprito a capacidade de mudar, e ao invs deve constatar que se ri-dos no encontrar a correspondncia sempre nova: as coisas no esto pa-radas um instante. Ele chama ateno, por isso, ao fato de que a novi-dade enriquecida por aqueles que vm pela primeira vez, por quem no tem as nossas ideias e que, exatamente a sua experincia, nos obriga novidade da meditao, daquilo que est tambm em ns, para impostar as coisas para eles. Ns, porm, [...] impostamos tudo como se todos es-tivessem conosco (isto , com as nossas ideias), esquecendo-nos deles. Pelo contrrio, o nosso mtodo tem necessidade de homens autnticos, comprometidos com a nossa humanidade, eis o nosso defeito. Por isso, o seu convite um s: Coloquem-se dentro da experincia com a hip-tese de GS: Deus se encarnou, tinha olhos, ossos, msculos....41

    Dom Giussani retorna, em muitas ocasies, sobre o risco do forma-lismo, por exemplo durante a Equipe dos Universitrios, de fevereiro de 1983. [O] formalismo [...] se identifica normalmente no aderir a formas, sem que estas formas sejam propostas, isto , se tornem aquilo que ori-ginalmente so: uma proposta para a vida. O que esta ao que estamos fazendo muda na vida? Esse ajuntamento de pessoas em torno dos CP [Catlicos populares, associao estudantil nascida de CL nos Anos 80], para as eleies, o que muda na vida?42. Para Giussani, importante esta observao, contida numa interveno que, sob a nota de uma difi-culdade a fazer se tornar experincia, acusa, em primeiro lugar, o forma-lismo no aderir comunidade. Com efeito, explica, voc no est legal porque faz a Escola de Comunidade, no est legal porque participa da Santa Missa com o prprio padre, no est legal porque faz a panfleta-gem ou cola do lado de fora o tatze-bao. Esta pode ser a formalidade com a qual a pessoa paga o pedgio para a realidade social a que adere. Mas, quando se torna experincia tudo isso? Quando diz algo a voc e move (movimento) algo em voc [...]. O nosso primeiro perigo, portanto, o form