EDUCAÇÃO BILÍNGUE E OS DESAFIOS DA INCLUSÃO DA LÍNGUA ...
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CAPOEIRA
Revista de Humanidades e Letras
ISSN: 2359-2354 Vol. 6 | Nº. 1 | Ano 2020
Fernando Jorge Pina Tavares
EDUCAÇÃO BILÍNGUE E OS DESAFIOS DA INCLUSÃO DA LÍNGUA NATIVA CABO-
VERDIANA NOS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM - ESTADOS UNIDOS
DA AMÉRICA
Bilingual Education and the Challenges of Inclusion of the Cape Verdean Language in the Teaching and Learning
Processes-United States of America ____________________________________
RESUMO O presente artigo tem como foco principal o estudo sobre a edu-
cação bilíngue desenvolvida nos Estados Unidos da América des-
de 1968, com particular incidência na região de Nova Inglaterra,
onde se concentra uma grande diáspora cabo-verdiana. O objetivo
da pesquisa é conhecer experiências didáticas cuja língua e cultu-
ra cabo-verdianas são veiculadas no ensino e aprendizagem em
escolas do Estado de Massachusetts, com o intuito de confrontá-
las com experiências neocoloniais de ensino, remanescentes em
Cabo Verde, mormente no período pós-colonial. Trata-se, do pon-
to de vista metodológico, de um estudo de tipo etnográfico apli-
cado à pesquisa educacional, considerando o cotidiano escolar
como espaço privilegiado de produção de saberes pedagógicos. O
estudo visa, sobretudo contribuir com dados teóricos e empíricos
para a descolonização do currículo escolar em Cabo Verde.
PALAVRAS-CHAVE: Educação; (re)africanização; descoloni-
zação;
___________________________________
ABSTRACT This article focuses on the study of bilingual education developed
in the United States of America since 1968, with particular focus
on the New England region, where a large Cape Verdean diaspora
is concentrated. The objective of the research is to know didactic
experiences whose Cape Verdean language and culture are con-
veyed in teaching and learning in schools of the State of Massa-
chusetts, with the intention of confronting them with neocolonial
teaching experiences, remaining in Cape Verde, especially in the
post-colonial period. From a methodological point of view, this is
an ethnographic study applied to educational research, consider-
ing school daily life as a privileged space for the production of
pedagogical knowledge. The study aims, above all, to contribute
with theoretical and empirical data to the decolonization of the
school curriculum in Cape Verde.
KEY-WORDS: Education; (re)Africanization; decolonization.
Site/Contato
www.capoeirahumanidadeseletras.com.br [email protected]
Editores Fábia Barbosa Ribeiro [email protected]
Marcos Carvalho Lopes [email protected] Pedro Acosta-Leyva
Fernando Jorge Pina Tavares
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 153
EDUCAÇÃO BILÍNGUE E OS DESAFIOS DA
INCLUSÃO DA LÍNGUA NATIVA CABO-VERDIANA
NOS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM -
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
Fernando Jorge Pina Tavares1
Introdução
À diferença dos demais países africanos de expressão portuguesa, em Cabo Verde, o po-
voamento e a formação da sociedade ocorreram de forma peculiar, no contexto da colonização
europeia da África. Enquanto os outros países africanos já eram habitados por comunidades “au-
tóctones” antes da “invasão” dos colonizadores europeus, Cabo Verde não era habitado no perí-
odo pré-expansionista europeu. O povoamento das ilhas teve início entre 1460 e 1462 com a
constituição, pela Coroa Portuguesa, de capitanias hereditárias que determinaram a exploração
econômica do arquipélago constituído por dez ilhas. Segundo as fontes históricas oficiais, o po-
voamento do arquipélago de Cabo Verde começou com a vinda de colonos europeus de origem
predominantemente portuguesa e africanos escravizados provenientes da costa ocidental africa-
na, mais precisamente, da região dos então chamados “Rios da Guiné”. A partir desse período
desencadeou-se um processo de miscigenação racial e cultural, marcado pelo cruzamento do
homem branco europeu com a mulher africana escravizada, iniciando, assim, um processo de
crioulização, que teve como consequência a formação de uma sociedade crioula cingida pela
identidade linguística.
A gênese e evolução da língua e cultura crioulas, no território cabo-verdiano, desenrola-
ram-se num contexto multirracial e multicultural de dominação e de resistência, marcado pelo
encontro e desencontro de culturas dominantes e subalternas, transformando o Arquipélago
Atlântico num verdadeiro espaço de miscigenação crioula nos trópicos. É, portanto, ilusória, a
ideia postulada pelo colonizador e reproduzida, na atual conjuntura histórica, por certa elite polí-
tica e “intelectual” cabo-verdiana, de que existe uma “unidade nacional” em Cabo Verde, como
se o processo de crioulização estivesse desenrolado de forma pacífica e isenta de conflitos. Trata-
1Professor Adjunto e diretor do Centro de Estudos Africana (CEA) na Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Campus do Malês, Bahia. Possui Pós-Doutorado em Educação pela
Universidade da Pensilvânia, Filadélfia, USA; Doutorado e Mestrado em Educação pela Universidade de São Paulo;
Especialização em Formação de Professores pela Universidade do Minho, Portugal e Licenciatura em Ensino de
Filosofia pela Universidade São Francisco, São Paulo. Coordena o Grupo de Pesquisa “Pedagogia Sankofa e
Descolonização do Saber e do Currículo Escolar em África e na Diáspora Africana”, vinculado ao Diretório de
Pesquisa do CNPq.
Educação bilíngue e os desafios da inclusão da língua nativa cabo-verdiana nos processos de ensino e aprendizagem – Estados Unidos da América
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se, na verdade, de um argumento estratégico forjado, sobretudo pelas elites políticas, tanto no
contexto colonial, quanto no contexto pós-colonial, no sentido de justificar a ideia de “Nação”,
cuja construção simbólica se torna propícia à dominação e/ou governação por qualquer organiza-
ção política, no território cabo-verdiano.
É factível que a nação cabo-verdiana começou a erigir-se desde os primórdios da coloni-
zação do arquipélago, muito antes da organização do Estado, decorrente da autodeterminação
política ocorrida em 1975. Todavia, não significa que a formação da nação tenha sido forjada,
isenta de conflitos étnico-raciais tendo em vista a diversidade de povos e culturas dominantes e
subalternas envolvidos no processo da formação social cabo-verdiana. Não se deve ignorar a
existência de conflitos étnicos em Cabo Verde, sobretudo, se considerarmos a forma violenta
como se processou a formação social cabo-verdiana por via escravocrata e, posteriormente, pela
forma como a língua e cultura crioula foram subjugadas às condições subalternas, no contexto da
institucionalização da escola e do português como Língua Oficial do Ensino. A verdade é que, o
colonizador soube camuflar esse conflito e a escola foi o espaço privilegiado de produção e re-
produção da ideologia necessária à sua dissimulação.
Enquanto porta-voz da cultura dominante e língua legítima, a escola cabo-verdiana é per-
passada por um conflito sociolinguístico, transformando-se num espaço de excelência da aliena-
ção linguística e cultural. Torna-se assim pertinente um estudo como este que visa contribuir
com dados teóricos e empíricos com o intuito de desconstruir narrativas historicamente reverbe-
radas segundo as quais a língua cabo-verdiana carece de condições técnicas para a oficialização e
veiculação como língua de ensino e de aprendizagem nas escolas. É com este propósito que rea-
lizamos o presente estudo nos Estados Unidos da América, onde a experiência da educação bi-
língue possibilita o uso da língua cabo-verdiana como veículo de ensino e de aprendizagem em
escolas que atendem educandos oriundos da imigração cabo-verdiana residente no Estado de
Massaschusetts.
O crioulo de Cabo Verde foi uma das primeiras línguas estrangeiras de matriz africana a
ser veiculada como língua de ensino e aprendizagem em escolas americanas, em especial nos
estados de Massachusetts e Rhode Island, como decorrência da aplicação da Lei Bilingual
Education Act, aprovado pelo Congresso Norte-Americano nos finais da década dos anos
sessenta do Século XX. Com quase três séculos de emigração para os Estados Unidos, os cabo-
verdianos constituem uma das mais sólidas comunidades na América do Norte, com uma longa
tradição ligada à sua história e cultura. A emigração das ilhas de Cabo Verde para os Estados
Unidos começou nos meados do século XVIII, com a pesca da baleia no Atlântico. Os baleeiros
americanos iam pelo Atlântico Sul e paravam em Cabo Verde para se abastecerem de água e
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alimento e aproveitavam para recrutar operadores de navios. No regresso traziam muitos cabo-
verdianos conhecidos por serem bons marinheiros.
A introdução da língua cabo-verdiana como veículo de ensino e de aprendizagem nas
principais escolas dos estados de Massachusetts e Rhode Island parece ser uma conquista resul-
tante de um processo de luta e resistência de alguns ativistas no seio da comunidade de imigran-
tes cabo-verdianos, em defesa da equidade de acesso à educação para os filhos de imigrantes. A
luta foi também pelo reconhecimento do papel histórico dos cabo-verdianos na formação socioe-
conômica e cultural dos Estados Unidos, principalmente na região de New England, onde se
concentra um grande contingente populacional de imigrantes, tão expressivo que quase equivale
ao número de habitantes residentes em Cabo Verde. Aliás, Cabo Verde se destaca, no contexto
das migrações internacionais, por ter uma população diaspórica superior à população residente
no Arquipélago. Esse fato explica, em certa medida, a introdução da língua cabo-verdiana como
língua de ensino no caso dos Estados Unidos.
É a partir desse lugar que desenvolvemos o presente estudo, com o intuito de entender-
mos os fundamentos político-ideológicos e didáticos do programa Bilingual Education, no senti-
do de confrontá-lo com as situações de dominação e colonialidade remanescentes e perpetuadas
no pensamento educacional em Cabo Verde no contexto da África pós-colonial. O estudo da
educação em África e na diáspora africana nos coloca perante o seguinte dilema: como preservar
e valorizar os saberes tradicionais nativos das culturas locais africanas, modernizando os siste-
mas escolares? Esta indagação deve orientar o presente estudo que tem como foco os processos
educacionais em Cabo Verde que também podem ser confrontados com a situação da educação
nos demais Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) bem como na diáspora afri-
cana do Recôncavo da Bahia.
Volvidos mais de quatro décadas sobre a independência dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa, denota-se que a sua autodeterminação política não engendrou o renascimento
cultural africano endógeno, como preconizavam o Movimento Pan-africano e o Movimento
Nacionalista Africano que defendiam a libertação total da África do jugo colonial europeu e a
(re)africanização das mentes, mediante a africanização da educação (CABRAL, 2013). Na
esfera específica da educação, constata-se uma reforma curricular pós-colonial incompatível com
a realidade cultural endógena dos países envolvidos. A educação, e mais precisamente, a escola,
continua reproduzindo conteúdos curriculares eurocêntricos, herdados da ex-metrópole
colonizadora, sendo que as línguas e as outras formas de manifestação culturais nativas são ainda
excluídas dos processos de ensino e de aprendizagem.
Na Região do Recôncavo Baiano, habitada por um grande contingente populacional
afrodescendente, verifica-se uma situação similar à dos Países Africanos de Língua Oficial
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Portuguesa. Apesar da Lei 10.639/03 estabelecer a obrigatoriedadedo ensino de história e cultura
africana e afro-brasileira nas escolas, constata-se que as culturas de matriz africana são ainda
excluídas em grande parte dos estabelecimentos de ensino. Mesmo quando os aportes culturais
de matriz afro-brasileiros como capoeira, candomblé, samba etc, são superficialmente abordados
em algumas escolas, mas como efemérides, enfrentam barreiras e preconceitos impregnados de
ideologias culturais eurocêntricas.
Na perspectiva de Cheikh Anta Diop (1989), entre os povos africanos e as diásporas ne-
gro-africanas existem relações comuns de pertencimento à ancestralidade africana. Tais caracte-
rísticas podem ser potencializadas para a construção de um currículo escolar intercultural, fun-
damentado nos princípios da “pluriversalidade” (RAMOSE, 2011:10-11).
Esse projeto curricular deve focalizar o renascimento cultural africano e o pan-
africanismo como locus enunciativo para construir uma pedagogia da descolonização, capaz de
promover a desocidentalização do pensamento educacional e a descolonização dos currículos
escolares em África e na diáspora. Trata-se, para o presente estudo, de um projeto educacional
afrocentrado, comprometido com a superação do eurocentrismo dominante no pensamento edu-
cacional africano e a “valorização da experiência africana” (ASANTE,1991).
A realização da pesquisa na Burke High School e Brockton High School tem sido uma
oportunidade ímpar para o estudo de políticas e práticas educacionais multiculturais bem
sucedidas em contextos migratórios e diaspóricos, como o programa Bilingual Education, que
poderá ser tomado como paradigma para se repensar a educação em Cabo Verde, em particular,
nos demais PALOP e no Recôncavo, cujas políticas e práticas curriculares são ainda fortemente
impregnadas pela colonialidade. Para além de nos possibilitar o debate com professores, alunos e
dirigentes das escolas supracitadas, tivemos, também, a possibilidade de realizar estudos de tipo
etnográfico sobre políticas e práticas curriculares inovadoras em escolas frequentadas por
estudantes oriundos de comunidades imigrantes que poderão nos auxiliar na proposição de
projetos educacionais alternativos, centrados na descolonização do currículo escolar e no
enfrentamento do racismo epistémico, a partir desse outro lugar de fala.
Estudos preliminares empreendidos no Burk High School evidenciam as múltiplas vanta-
gens da educação bilíngue e multicultural, sobretudo para estudantes filhos de imigrantes recém-
chegados aos Estados Unidos, que não possuem a proficiência no Inglês. O presente estudo tem
como principal objetivo compreender em que medida a experiência do ensino bilíngue desenvol-
vido em escolas que tem educandos cabo-verdianos imigrantes nos Estados Unidos da América
pode ser tomado como exemplo para a desconstrução do eurocentrismo impregnado no sistema
educacional cabo-verdiano, o qual considera a língua nativa crioula como sendo inviável enquan-
to idioma de ensino e aprendizagem nas escolas. O objetivo da pesquisa é de contribuir com da-
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dos teóricos e empíricos para a descolonização do currículo escolar em Cabo Verde. Este objeti-
vo perseguido no decorrer da pesquisa do tipo etnográfico tem orientado o presente estudo que
visa compreender a educação cabo-verdiana no contexto africano, tendo como foco o sistema
cultural africano e o paradigma da afrocentricidade centrados na valorização da experiência afri-
cana, na descolonização do currículo escolar e educação antirracista.
Nos Estados Unidos da América iniciamos a pesquisa em duas escolas localizadas no
estado de Massachusetts, onde se concentra o maior contingente de imigrantes oriundos de Cabo
Verde. Assim, após contatos preliminares com professores, intelectuais e líderes comunitários
vinculados à associação dos imigrantes cabo-verdianos residentes nas cidades de Boston e
Brockton, contactamos alguns professoresde de origem cabo-verdiana que fizeram as mediações
necessárias junto às direções das escolas que nos autorizaram a realização da pesquisa
etnográfica nesses estabelecimentos de ensino.
A razão que motivou o presente estudo foi a descoberta do uso da língua nativa cabo-
verdiana (crioulo) como língua de ensino em escolas que atendem estudantes do Ensino
Fundamental e Médio nos Estados de Massachusetts e Rhode Island, nos Estados Unidos da
América. Com base na Lei Bilingual Education Act de 1968, os estados e distritos escolares, com
o intuito de melhorar o desempenho escolar, sobretudo no que concerne ao domínio do inglês,
tem a prerrogativa de desenvolver recursos didácticos específicos e diversificados, consoante as
realidades sociais das escolas e dos estudantes.
É neste âmbito que a partir da independencia de Cabo Verde em 1975, a língua cabo-
verdiana foi introduzida como idioma de ensino e aprendizagem, com estatuto de língua
primeira, em parceria com o inglês, desta feita ensinada como segunda língua. É importante
referir que os estudantes de origem cabo-verdiana que frequentam as classes bilíngues são
estudantes recém-chegados aos Estados Unidos e, por isso, não possuem proficiência no inglês.
O objetivo da pesquisa é de confrontar essa experiência em crioulo viabilizada nos
Estados Unidos, com a experiência neocolonial remanescente em Cabo Verde, onde o português
assume estatuto de Língua Oficial de Ensino e Aprendizagem, sendo que o crioulo é excluído
dos estabelecimentos de ensino, sob o argumento de que se tratando de um dialeto de origem
afro-portuguesa, não agrega condições sócio-psico-linguísticas como língua de ensino. O
propósito desta investigação é desconstruir essa narrativa legada pela ideologia colonial e que
vem sendo reapropriada e reproduzida pela nova elite política e intelectual dirigente no período
pós-colonial.
Educação bilíngue e os desafios da inclusão da língua nativa cabo-verdiana nos processos de ensino e aprendizagem – Estados Unidos da América
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A metodologia utilizada para a realização do presente estudo foi a abordagem de tipo
etnográfico aplicado à pesquisa educacional, considerando a sala de aula e o cotidiano escolar
como espaços privilegiados de produção de saberes pedagógicos. Com esse intuito privilegiamos
as técnicas de observação participante e entrevistas livres materializadas em histórias de vidas,
autobiografias e narrativas pessoais dos sujeitos envolvidos na construção social da escola e nos
processos de ensino e aprendizagem. A pesquisa foi realizada nos Estados Unidos e em Cabo
Verde entre 2018 e 2019, sendo que no presente artigo abordamos preferencialmente a situação
da educação bilíngue que ocorre nos EUA.
A abordagem sobre a pesquisa realizada em Cabo Verde será objeto de publicação num
outro artigo. Nos Estados Unidos observamos duas escolas - Burk High School e Brockton High
School – respetivamente localizadas nas cidades de Boston e Brockton, no estado de
Massashusetts. Essas escolas concentram o maior contigente de estudantes de origem cabo-
verdiana desprovidos de proficiência em inglês, razão pela qual privilegiam a oferta de classes
bilíngues. Em cada uma das escolas foram entrevistados 10 alunos num universo de 35 alunos
por sala, perfazendo-se um total de 20 alunos e 4 professores do programa bilíngue.
Em Cabo Verde realizamos a pesquisa em duas escolas, uma no Conselho de Ribeira
Grande de Santiago e outra na Cidade da Praia, capital de Cabo Verde. A escola da Ribeira
Grande configura-se como sendo uma escola da periferia urbana, sendo que a escola da cidadde
da Praia, uma escola de elite. De entre as questões colocadas nas entrevistas, destacamos:
Descreva a importância da classe bilíngue para o seu aproveitamento escolar; Explique a
relevância da aula de cultura cabo-verdiana para a sua formação;
O objetivo das questões foi no sentido de averiguarmos em que medida a frequência às
classes bilíngues e a aula de cultura cabo-verdiana favorecem o aproveitamento escolar dos
educandos com fraca proficiência na língua inglesa, bem como a sua (re)ontologização subjetiva
no que concerne à preservação da identidade crioula e africana. Importa explicitar que dada à
similitude das respostas, selecionamos as representações que mais atendem aos objetivos do
presente estudo, isto é, compreender a pertinência de um programa educacional cuja língua
nativa cabo-verdiana é veiculada como primeira língua de ensino e aprendizagem e a
importância dessa experiência para a descolonização da educação e do curículo escolar em Cabo
Verde.
Para o desenvolvimento do presente estudo, abordamos, em primeira mão, a Lei de
Educação Bilíngue de 1968 - Bilingual Education Act -, no sentido de compreendermos o seu
alcance inclusivo e sócio-cultural, para em seguida analisarmos os seus resultados em escolas da
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diáspora cabo-verdiana, bem como a sua possível contribuição paraa reforma curricularem Cabo
Verde.
Educação Bilíngue e Ensino da Língua Cabo-Verdiana: Desafios para a Descolonização do
Currículo Escolar em Cabo Verde
A Lei Bilingual Education Act (BEA), também denominado “Título VII das Emendas do
Ensino Fundamental e Secundário de 1967”, foi a primeira Legislação Federal dos Estados
Unidos que reconheceu as “Necessidades Limitadas de Estudantes que Falam Inglês” (LESA). O
BEA foi introduzido em 1967 pelo Senador Ralph Yarborough no Texas e foi aprovado por 90%
do Congresso dos Estados Unidos, tendo sido assinado pelo presidente Lyndon B. Johnson a dois
de Janeiro de 1968. Enquanto em alguns estados, como Califórnia e Texas, e em vários distritos
escolares locais já havia políticas e programas destinados a atender às necessidades educacionais
especiais de alunos do ensino fundamental e médio não fluentes no idioma inglês, este ato
sinalizou que o governo federal também reconheceu a necessidade e o valor dos programas
bilíngues de educação pública nos EUA.
Passado nos calcanhares do Movimento dos Direitos Civis, o seu objetivo era fornecer
aos distritos escolares fundos federais, na forma de doações competitivas, para estabelecer
Programas Educacionais Inovadores para “alunos com capacidade limitada de falar inglês”
(STEWNER-MANZANARES, 1988).Nesse sentido, Bilingual Education Act (BEA) foi uma
peça importante da legislação educacional dos Estados Unidos de América. Sua aprovação
indicava como observa Petrzela:
Uma mudança da noção de que os estudantes deveriam ter oportunidades educacionais
iguais no sentido de que a política educacional deveria trabalhar para equalizar os
resultados acadêmicos, mesmo que tal equidade exigisse o fornecimento de diferentes
ambientes de aprendizagem (PETRZELA, 2010).
Por outro lado, essa lei introduziu mudanças nas perspectivas culturais em relação à
diversidade e à imigração. Segundo Petrzela (2010), “O BEA foi uma mudança importante em
relação ao sentimento anticomunista do final dos anos 50, em que qualquer coisa estrangeira era
suspeita, o que destruíra muitas tentativas anteriores de educação bilíngue”. Nestes termos, a Lei
Bilingual Education Act reconheceu que o governo federal era responsável pela educação dos
imigrantes nos EUA e abriu as portas para projetos de educação bilíngue nos níveis local,
estadual e federal.Como bem observam Weise et Garcia,
Essa legislação, promulgada com êxito em lei, em grande parte graças aos esforços dos
falantes de espanhol, tornou-se uma parte importante da polêmica entre a assimilação e
o multiculturalismo e o papel da educação em idiomas na sociedade estado-unidense
(WEISE et GARCIA, 1998).
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Os autores observam também que em sua forma original, o BEA desafiou de muitas
maneiras as teorias assimilacionistas e o conceito de mistura dos EUA, na medida em que
promoveu a celebração de diferenças e diversidade linguística e cultural dos EUA. Importa,
todavia, observar que em sua forma final, quando foi aprovado, o BEA não mencionou a
importante ligação entre língua e cultura, deixando vaga a esfera da língua. Na pesprspectiva dos
autores supracitados, o ato abriu, também, uma necessidade maior para a requisição de
professores que pudessem ensinar línguas e outros conteúdos dentro de um idioma além do
inglês. Consequentemente, impôs uma demanda cada vez maior sobre o sistema de ensino desde
1968, pelo que até os dias de hoje há escassez de professores para esses cargos altamente
especializados.
Rodriguez (1968) observa que um dos argumentos recorrentes nesse período era do ponto
de vista cultural, “o fato de o ensino de uma determinada língua possibilitar também o ensino de
seus valores específicos”, o que agrega vantagens para a preservação da identidade do aluno. Por
exemplo, no contexto da diáspora cabo-verdiana, esse foi um dos argumentos contundentes
defendidos pelos ativistas que lutaram pela introdução do crioulo no lugar da Língua Portuguesa,
que inicialmente era veiculada no ensino bilíngue. Reitere-se, como já foi referido, que Bilingual
Education Act não previa, no seu âmbito, o ensino das línguas “étnicas” e muito menos a
dimensão cultural específica das línguas “minoritárias” que vieram a ser introduzidas nos
programas específicos dos diferentes distritos escolares. O Ato previa, tão somente, a introdução
de mecanismos didáticos e metodológicos que fomentassem a melhoria do ensino e da
aprendizagem do inglês.
A Lei Bilingual Education Act é federal, contudo, os estados e distritos escolares têm
autonomia para definirem estratégias didácticas adequadas à sua aplicação, de acordo com as
suas especificidades, porém respeitando os preceitos consagrados pela constituição federal a
respeito do ato. Segundo Pina (2018), somente os estados que apresentam uma forte tradição de
imigração tais como New York, Road Island, Massachusetts, Flórida e Califórnia promovem
quotas direcionadas à educação bilíngue, destinadas, sobretudo a estudantes descendentes de
imigrantes oriundos do “Terceiro Mundo”. No Estado de Massaschusetts, por exemplo, a lei
estabelece que numa classe com mais de 18 alunos, cuja língua nativa não é o inglês, o ensino
deve ser bilíngue, isto é, as aulas devem ser ministradas em língua nativa dos alunos, como
primeira língua, e em inglês norte-americano, como segunda língua. Esse princípio contraria de
certa forma, o BEA, que na sua acepção original aprovada em 1968, privilegiava apenas o
aprimoramento do inglês, sem especificar que tal aprimoramento implicasse o ensino de línguas
nativas dos estudantes migrantes.
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O enorme fluxo de imigrantes estrangeiros dessa categoria, residentes na região de New
England, coloca as escolas em situação de permanentes conflitos étnicos e raciais o que implica
uma abordagem intercultural da educação e do ensino, como forma de dirimir a violência, a eva-
são e a exclusão social nesses estabelecimentos de ensino. A implementação da Lei de educação
bilíngue nos estados que constituem essa região surge como resposta às lutas dos diversos mo-
vimentos sociais e minorias étnicas que pugnaram pela instauração da equidade de direitos edu-
cacionais.
No Estado de Massaschusetts as lutas pela definição de políticas e práticas pedagógicas
mais compatíveis com as demandas de uma comunidade educativa fortemente marcada pela mul-
ticulturalidade e a consequente necessidade de execução prática da Lei, começou no início da
década de 1970 e foi uma batalha travada por ativistas da própria comunidade de imigrantes. Os
ativistas que mais lutaram em defesa do programa foram os cabo-verdianos e os haitianos que
constituem maioria entre as comunidades oriundas do “Terceiro Mundo”, com maior fluxo de
imigração no Estado de Massachusetts.
Em Massachusetts, inicialmente, o programa bilíngue adotou a Língua Oficial não nativa,
isto é, a Língua Portuguesa, para escolas que atendem alunos descendentes da comunidade cabo-
verdiana, e a Língua Francesa, para escolas que atendem crianças descendentes da comunidade
haitiana. Segundo Pina:
No caso cabo-verdiano, inicialmente, o programa bilíngue era ministrado por professo-
res portugueses. Foi com o advento da independência de Cabo Verde em 1975 que os
ativistas cabo-verdianos começaram a lutar pela adoção de sua língua nativa, o crioulo,
nos programas de educação bilíngue. Vivendo nos Estados Unidos, na situação de imi-
grantes, os cabo-verdianos foram aprimorando a consciência de que já não precisavam
do português como Língua Oficial. (PINA, 2018).
Precisavam, sim, do crioulo sua língua nativa e símbolo de sua identidade; e do inglês-
americano, principal instrumento de sua integração na cultura e no mundo do trabalho dos Esta-
dos Unidos da América. Cabe ainda observar que apesar de articularem a mesma Língua Portu-
guesa, os imigrantes cabo-verdianos e portugueses que residiam na mesma região de New En-
gland eram considerados diferentes, do ponto de vista étnico-racial. Portanto, mesmo quando
Cabo Verde se encontrava sob o domínio colonial português, os cabo-verdianos residentes nos
EUA nunca foram identificados como portugueses e, sim, como cabo-verdianos e, mais precisa-
mente, como “crioulos”, no sentido étnico e racial do termo. O aprimoramento da consciência
étnico-racial crioula, em alguns segmentos intelectuais da comunidade cabo-verdiana, favoreceu
a sua demarcação cultural e identitária face à língua e cultura portuguesa, razão pela qual, muitos
ativistas começaram a questionar nos seguintes termos: se Cabo Verde se tornou independente de
Portugal, por que haveremos de continuar a escolarizar os nossos filhos, utilizando, para o efeito,
a mesma língua que os colonialistas portugueses usaram para nos oprimir” (PINA, 2018).
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Esse argumento foi, provavelmente, a causa determinante da vitória dos ativistas na luta
pela adoção da língua crioula no programa Bilingual Education, tanto em Massachusetts como
em Rhode Island, estados onde se concentra o maior efetivo de imigrantes cabo-verdianos nessa
região de New England. Uma eventual desaprovação da língua crioula nas escolas bilíngues dei-
xaria os estudantes cabo-verdianos em situação de dupla opressão: primeiro, como imigrantes, na
condição de grupo minoritário; segundo, na condição de dependência cultural, pelo fato de serem
escolarizados em duas línguas estrangeiras, português e inglês, com as quais não se identificam
do ponto de vista étnico. No caso do inglês, se justifica a escolarização nesse idioma, enquanto
Língua Oficial dominante do país acolhedor e, portanto, instrumento indispensável à integração
dos estudantes na sociedade norte-americana. No caso do português, não se justifica a escolari-
zação nesse idioma visto que vivendo definitivamente no território norte-americano, os estudan-
tes cabo-verdianos não precisam mais do português como Língua Oficial.
No estado de Massachusetts, a educação bilíngue é considerada uma modalidade de edu-
cação especial e os alunos que dela se beneficiam são tidos como pessoas com necessidades es-
peciais de educação. Por esse motivo, as escolas que promovem a educação bilíngue dispõem de
um orçamento maior que as outras, o que tem causado muita polêmica, sobretudo considerando a
origem étnico-racial dos beneficiários do programa. Furtado (2018) observa que existe uma dis-
puta recorrente entre professores e dirigentes escolares defensores do programa e alguns agentes
do departamento da educação do Estado, oponentes do programa bilíngue.
Essa oposição é ainda mais recorrente entre os adeptos do Movimento “English First” que
advogavam contra a manutenção da educação bilíngue no sistema de ensino norte-americano.
Esse movimento estava inserido na onda do racismo institucional que vinha assolando a socieda-
de estadunidense, legitimada com a aprovação da “Proposition 187” pelo ex-governador da Cali-
fórnia, Pete Wilson. Trata-se deum movimento político-ideológico racista, radicada na ala con-
servadora do Partido Republicano, conhecida por “Nova Direita”.
A título de ilustração transcreve-se a seguir algumas narrativas controversas representa-
das por personalidades da nova direita conservadora, manifestamente contrárias à presença de
imigrantes estrangeiros oriundos, sobretudo do ex- “Terceiro Mundo”. Por exemplo, John Silber,
então presidente da Boston University, perguntou durante sua campanha para governador de
Massachussets:
Por que Massachussets repentinamente tornou- se tão popular para as pessoas que estão
acostumadas a viver em um clima tropical? Assombroso. Deve haver uma assistência
social que atue como imã e que atraia até aqui, e agora mesmo estou realizando um es-
tudo para descobrir qual é esse imã. Por que Lowel tem que ser a capital cambojana da
América? (THE BOSTON GLOBE, 26-01-1990 Apud (IMBERÓN,2000).
Na mesma Perspectiva, David Duke que foi um candidato republicano nas prévias para a
presidência de 1990, proferiu a seguinte sentença:
Fernando Jorge Pina Tavares
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 163
A América está sendo invadida por bordas de gente suja do Terceiro Mundo e a cada
hora que passa nosso bem-estar econômico, nosso patrimônio cultural, nossa liberdade e
nossas raízes raciais estão sendo empurradas para o esquecimento (THE BOSTON
GLOBE, 24-10-1991 apud IMBERÓN,2000).
Ainda, em programas de Rádio como o de Rush Limbaugh cujo propósito fundamental
consiste em exacerbar a estrutura racista da sociedade estadunidense, proliferam também esses
sentimentos racistas, conforme ficou demonstrado durante a emissão de uma reunião na cidade
Brockton, Massachusetts, quando uma ouvinte telefonou e comentou: “Por que temos de manter
estes bilíngues? Primeiro, deveríamos cuidar de nós mesmos”. “Em Brockton, o problema são os
haitianos, os hispanos e os que procedem de Cabo Verde, que estão arruinando nosso bairro”. A
perversidade da perseguição de outros modelos culturais fica descaradamente exemplificada por
David Duke quando afirma: “São eles! Eles são o que não funciona na América! Estão roubando
os empregos de vocês e absorvendo seus impostos, estão vivendo dos vale-refeição, bebendo vi-
nho barato e tendo filhos às nossas custas” (THE BOSTON GLOBE, 24-10-1999 apud
IMBERÓN,2000).
Como faz notar Macedo:
O racismo e o alto nível de xenofobia que presenciamos de forma recorrente nos Esta-dos Unidos não são atos isolados de indivíduos marginalizados ou pouco importantes.
Ao contrário, esses indivíduos são representativos de um esforço de todos os segmentos
da sociedade dominante orquestrado para livrar uma guerra contra os pobres e contra as
pessoas que, em virtude de sua raça, etnia, linguagem e classe, são consideradas e trata-
das, na melhor das hipóteses, como cidadãos de segunda e, na pior, como inimigos na-
cionais responsáveis por todos os males da sociedade norte-americana (MACEDO,
2000).
Nessa perspectiva, há uma “guerra cultural” que é a palavra chave que provoca a aprova-
ção do racismo e constitui um dos desafios mais urgentes que os educadores têm que enfrentar
nos Estados Unidos. Para essa guerra cultural, é primordial a criação e a existência de uma lin-
guagem ideologicamente codificada que realiza, pelo menos, duas funções fundamentais: por um
lado, encobre o racismo cru que caracteriza os Estados Unidos e, por outro, perpetua insidiosa-
mente a ruptura e a desvalorização das identidades étnicas e raciais. O que é importante, nesse
sentido, é a compreensão do antagonismo e das tensões geradas pela presença de diferenças cul-
turais que coexistem assimetricamente em termos de relações de poder. Deste modo, torna- se
necessário analisar a controvérsia sobre o multiculturalismo e o papel da linguagem na desuma-
nização de outros modelos culturais.
Educação Bilíngue no Imaginário coletivo da Comunidade Escolar
No contexto da educação bilíngue, verifica-se que as duas línguas - crioulo e inglês - en-
volvidas nos processos de ensino e aprendizagem não detêm igual estatuto. Mesmo que teorica-
Educação bilíngue e os desafios da inclusão da língua nativa cabo-verdiana nos processos de ensino e aprendizagem – Estados Unidos da América
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mente se atribua certa prioridade à língua materna do aluno como primeira língua de ensino, tra-
ta-se, na prática, de uma primazia esporádica. Na verdade, o inglês é a língua dominante em to-
das as modalidades do sistema de ensino norte-americano; mesmo que não seja considerado co-
mo Língua Oficial, é o idioma que todas as camadas sociais devem aprimorar, enquanto instru-
mento de integração social e cultural. Por exemplo, as entrevistas realizadas com estudantes de
ascendência cabo-verdiana, na escola “Jeremiah E. Burke High School” revelaram que uma
grande maioria de jovens frequentam a escola, mais com o intuito de aprimorar o idioma norte-
americano, do que com a intenção de obter um diploma de high school. O aprimoramento do
inglês como meio de acesso ao mercado de trabalho e aos “benefícios” sociais da escola e outras
instituições, são os fatores determinantes da grande demanda de jovens pelo High School.
Entre os estudantes de ascendência cabo-verdiana, muitos são imigrantes “indocumenta-
dos” e acreditam que o domínio do idioma norte-americano poderá ajudá-los no processo de le-
galização. O desejo de afirmação socioeconômica que no caso vertente pode ser interpretado por
“american dream” constitui o objetivo predileto dos estudantes imigrantes e, para a realização
desse desiderato, é crucial o domínio do inglês. Eles têm plena consciência que, no contexto so-
cial norte-americano, dificilmente conseguem aceder a um estatuto social e profissional que vá
além dos limites de imigrantes, socialmente inseridos na categoria de “minorias étnicas”. Nesse
sentido, quase sempre se acomodam a valores e ambições “fúteis”, próprios do mercado capita-
lista, do mundo do trabalho e do consumismo.
Portanto, os jovens frequentam a escola mais com a ambição de dominar a língua e inse-
rir-se no mercado de trabalho. Essa ambição cria, na maior parte dos casos, certa idolatria pelo
idioma norte-americano, fazendo com que muitos estudantes abandonem as classes bilíngues pa-
ra se dedicarem exclusivamente às classes monolíngues, com o intuito de “dominar o inglês”. A
preferência pelo inglês, manifestado por muitos jovens, encontra certa legitimação no seio de
algumas famílias que preferem que seus filhos sejam escolarizados no idioma norte-americano,
chegando, por vezes, a dizer que “crioulo se aprende em casa”. Torna-se, assim, evidente que o
programa Bilingual Education encontra oposição não só nos setores políticos conservadores da
nova direita, como também no seio de seus próprios “beneficiários” diretos, entre os quais, alu-
nos e pais de alunos, inseridos na categoria de imigrantes.
Entrevistas realizadas com agentes das escolas Jeremiah E. Burke High School e
Brockton High School e da comunidade de imigrantes revelam posições contraditórias e, por ve-
zes, ambíguas, em relação à educação bilíngue e, mais concretamente, ao ensino em língua nati-
va. Salvaguardando a posição postulada pela maioria dos professores que praticamente só reco-
nhece vantagens à educação bilíngue, passamos a analisar as posições manifestadas pelos agen-
Fernando Jorge Pina Tavares
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tes tanto da esfera pública escolar quanto da comunidade cabo-verdiana residentes em Massa-
chusetts.
Do ponto de vista teórico, quase todos os beneficiários diretos da Bilingual Education re-
conhecem a importância do programa, pelo fato de não só beneficiar os alunos desprovidos de
proficiência no inglês como também favorecer a preservação da identidade linguística e cultural
crioulas. Nesse sentido, se pode dizer que há certa unanimidade de posições entre os agentes so-
ciais da escola: dirigentes, professores, pais e alunos. Porém, do ponto de vista prático se notam
divergências, tanto de posições como de atitudes, com relação ao programa.
Da entrevista realizada com alunos das escolas Jeremmiah e Brockton é possível identifi-
car dois universos distintos: aqueles que concordam plenamente com o programa e aqueles que
não concordam. Via de regra, aprovam o programa bilíngue aqueles alunos recém-chegados aos
Estados Unidos e apresentam grandes dificuldades de expressão oral e escrita em idioma norte-
americano. Essa categoria discente, estigmatizada pelas escolas sob o estereótipo de “alunos es-
peciais”, constitui o universo maioritário, beneficiário do programa. Trata-se, na verdade, de alu-
nos que dificilmente conseguiriam assimilar os conteúdos programáticos da escola, caso o ensino
desses conteúdos não fosse bilíngue, isto é, em crioulo e em inglês. Mas, é essa categoria de alu-
nos que nos interessa, sobretudo, para os objetivos do estudo em curso, cujas vantagens analisa-
remos mais adiante.
Entre a categoria discente que reprova o programa bilíngue, identificamos dois grupos: no
primeiro grupo se incluem aqueles alunos que possuem certo domínio do inglês e, por essa razão,
entendem que não precisam da língua crioula como veículo de aprendizagem na escola; a justifi-
cativa apresentada por esse grupo é a que se tornou popular no imaginário social da diáspora ca-
bo-verdiana nos Estados Unidos, segundo a qual “crioulo se aprende em casa”. Esse grupo pode
ser considerado sob dois pontos de vistas: assimilado sob o ponto de vista da cultura norte-
americana e alienado sob o ponto de vista da cultura cabo-verdiana. No segundo grupo estão
aqueles alunos que possuem um domínio razoável do inglês, porém, reprovam o programa bilín-
gue pela precariedade de sua organização didática, isto é, professores mal preparados e falta de
material didático em crioulo.
Atente-se a seguir ao depoimento do estudante Tavares (2002), sujeito de nossa interlo-
cução: “O problema das classes bilíngues é a falta de preparação dos professores e a carência de
livros didáticos em crioulo”. Portanto, esse grupo aceitaria o programa se eventualmente houves-
se uma organização mais eficiente do mesmo. As justificativas apresentadas por esse grupo cons-
tituem, portanto, uma crítica à ineficiência do programa. Se para este último grupo a oposição ao
programa está relacionada com a sua deficiente organização didática e administrativa, já para o
primeiro grupo oponente, as atitudes assumidas estão enraizadas em preconceitos socialmente
Educação bilíngue e os desafios da inclusão da língua nativa cabo-verdiana nos processos de ensino e aprendizagem – Estados Unidos da América
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construídos na família e na comunidade. As críticas dirigidas à Bilingual Education apresentam
um enfoque comum e, geralmente, são subscritas tanto pelo universo dos sujeitos que estão de
acordo com a continuidade do programa quanto pelo universo daqueles que se opõem à sua con-
tinuidade. Essas críticas podem ser resumidas em três pontos fundamentais:
Deficiente qualidade de ensino bilíngue, sobretudo em relação à língua nativa; Professo-
res ineficientes e despreparados do ponto de vista didático; Carência de recursos finan-ceiros e materiais didáticos destinados à organização pedagógica do ensino bilíngue,
principalmente na sua vertente língua materna (TAVARES,2018; FREDERICO,
2019).
Além do quadro ilustrativo das precárias condições pedagógicas e organizacional da edu-
cação bilíngue, torna-se necessário, nesse contexto, analisar a condição didática do crioulo no
panorama sociolinguístico das escolas onde realizamos a pesquisa. Apesar de o crioulo ser por-
tador de um alfabeto fonético-fonológico que possibilita a sua comunicação escrita estandardiza-
da, não possui ainda uma cultura escrita socializada entre a comunidade linguística cabo-
verdiana. A escrita estandardizada da língua crioula ainda se dá de forma muito embrionária,
mormente nas escolas bilíngues da comunidade cabo-verdiana residente em New England e entre
alguns escritores cabo-verdianos que postulam a sua oficialização no sistema de ensino e na lite-
ratura de um modo geral. A inexistência de uma cultura escrita do crioulo constitui um dos maio-
res entraves, tanto no que se refere à sua didática nas escolas, quanto à sua socialização e aceita-
ção como Língua Oficial. No mesmo sentido que não existe uma cultura escrita, também não
existe uma experiência prático-pedagógica do crioulo, isto é, o fato de os professores cabo-
verdianos não terem sido alfabetizados em crioulo dificulta também a sua didática nas escolas.
Relativamente às experiências didáticas do crioulo que vem sendo realizadas nas escolas
bilíngues de Massachusetts, constatamos que apesar das aulas serem ministradas quase sempre
em crioulo, os manuais didáticos estão escritos em inglês. Às vezes, os professores fazem a tra-
dução de determinados conteúdos programáticos para o crioulo, porém, isso não constitui uma
prática institucionalizada. A carência de material didático em crioulo representa, para os alunos
novos que não dominam o idioma norte-americano, uma enorme lacuna na aprendizagem dos
conteúdos. Via de regra esses alunos são mais vulneráveis ao fracasso e à evasão escolares. A
ausência de uma cultura escrita e a carência de material didático em crioulo dificultam o desen-
volvimento de estratégias didáticas adequadas, passíveis de promover uma educação bilíngue
eficiente e eficaz, fazendo com que o programa Bilingual Education se desenrole num quadro de
contradição.
Os Sentidos da Educação Bilíngue
Fernando Jorge Pina Tavares
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 167
As ambiguidades e os constrangimentos inerentes à educação bilíngue constituem, no en-
tanto, fatores acidentais, externos ao programa. Para o presente estudo, importa analisar a Lei
Bilingual Education Act na sua essência, isto é, a partir dos efeitos produzidos por um projeto
político e pedagógico que adota o crioulo cabo-verdiano como língua de ensino e a importância
desses efeitos no aproveitamento escolar dos alunos com deficiência em inglês e na preservação
da identidade cultural crioula enquanto valor agregado. Por outro lado, devemos ressaltar a im-
portância da experiência do ensino bilíngue para a descolonização do currículo em Cabo Verde.
Nas pesquisas realizadas em escolas de Cabo Verde, constatamos que a hegemonia da
Língua Portuguesa, enquanto Língua Oficial da escola acaba afetando a autoestima do aluno, ge-
rando um sentimento de inferioridade em relação à sua língua nativa. Nas escolas bilíngues de
New England, a situação se afigura substancialmente diferente das escolas cabo-verdianas, por-
quanto incluem a língua crioula nos processos de ensino e aprendizagem. Com efeito, e não obs-
tante a supremacia do inglês no contexto norte-americano, verifica-se que o fato das escolas ado-
tarem o crioulo como língua de ensino, gera uma situação de empoderamento favorável à autoes-
tima do aluno, na medida em que contribui para a assunção da sua identidade étnico-racial criou-
la. Por outro lado, o fato de a maioria dos estudantes que frequentam o ensino bilíngue não pos-
suir proficiência no inglês, o ensino em língua cabo-verdiana (crioulo) facilita a sua aprendiza-
gem e o aprimoramento dos conteúdos pedagógicos.
Adicionadas às classes bilíngues com uma vertente didática em crioulo, as escolas ofere-
cem aos alunos cabo-verdianos e/ou descendentes uma disciplina intitulada “Cultura Cabo-
Verdiana”. Entre as classes observadas no decurso da pesquisa etnográfica, constatamos que esta
é a disciplina que mais atrai o interesse dos alunos. Tratando-se de um curso que versa sobre a
história e a cultura popular cabo-verdianas, gera uma participação massiva e entusiástica dos
alunos. O curso é frequentado por todos os alunos de ascendência cabo-verdiana matriculados,
inclusive aqueles que não costumam frequentar as classes bilíngues. Registramos, outrossim,
presenças esporádicas de outros alunos afrodescendentes norte-americanos e etnias migrantes.
Importa, por conseguinte, analisar as motivações que levam esses alunos a se interessarem tanto
pela aula de cultura cabo-verdiana.
Para Silva (2018), professora responsável pela disciplina de cultura cabo-verdiana, o ob-
jetivo do curso é promover nos alunos a preservação da consciência histórica cabo-verdiana em
particular, e africana em geral. Subjacente ao interesse explícito de preservar o vínculo histórico
e cultural com o seu país de origem, percebe-se de forma implícita, na motivação de cada aluno,
o desejo de afirmação da identidade étnico-racial crioula e africana. A sua inserção na sociedade
norte-americana não favoreceu a ruptura cultural com Cabo Verde. Vivendo em uma sociedade
complexa e multirracial, permanentemente atravessada por conflitos étnico-raciais, esses jovens
Educação bilíngue e os desafios da inclusão da língua nativa cabo-verdiana nos processos de ensino e aprendizagem – Estados Unidos da América
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experimentam um “mal estar identitário” (TAVARES, 2018) que os fazem sentir-se estran-
geiros nos Estados Unidos de América, mesmo aqueles, que do ponto de vista legal, tenham na-
turalidade ou nacionalidade americana. É, provavelmente, o sentimento de insegurança étnico-
racial derivado de certa recusa de “abrigo identitário” que move esses jovens a procurarem na
história e cultura de seu povo, formas de afirmação simbólica da identidade. O desejo de afirma-
ção simbólica da identidade racial e cultural explica, talvez, a motivação e o interesse desses alu-
nos pela aula de cultura cabo-verdiana.
O fato de a escola adotar a língua e a cultura nativas do aluno como matérias de estudo do
currículo, representa uma dimensão axiológica altamente positiva para os educandos, gerando
um sentimento nacionalista que favorece a sua identificação com a cabo-
verdianidade. A língua e a cultura cabo-verdianas tornam-se, deste modo, instrumentos de medi-
ação e (re)construção da identidade, porquanto incorporam um sentido valorativo atribuído pela
escola. Essa afirmação se torna evidente pela forma como cada aluno expressa a sua identidade
crioula, aderindo ao curso de cultura cabo-verdiana. No contexto educacional bilíngue e multi-
cultural, a escola constitui, assim, um espaço de (re)afirmação das identidades, favorecendo aos
alunos a oportunidade de (re)viverem experiências que, de alguma forma, fazem parte de sua an-
cestralidade.
Os extratos de entrevistas, a seguir, ilustram as representações de alguns alunos entrevis-
tados em relação à (re)afirmação da identidade crioula no cotidiano escolar:
“A aula de cultura cabo-verdiana é importante porque aqui nós podemos conversar e in-
teragir em crioulo com o professor colocamos nossas dúvidas em crioulo, sem comple-
xo de cometer erros de linguagem; assim é melhor que em Cabo Verde” (FREDERICO,
2019).
“Essa aula é muito legal porque aprendemos a nossa cultura original, vestimos nossas
roupas tradicionais, dançamos nossas músicas, convivemos com nossas mulheres e di-
vertimo-nos em crioulo; isso que importa” (TAVARES, 2018).
“Eu não me lembrava mais do meu país de origem. Depois de frequentar a aula de cul-tura cabo-verdiana resolvi ir (re)conhecer minha terra e me identifiquei muito com a
cultura; agora vou a cabo verde com frequência” (MONIZ, 2019).
Na pesquisa de campo, observamos que a escola trabalha frequentemente com autobio-
grafias e histórias de vida, principalmente nas aulas de língua e literatura. No caso da Brockton
High School, as histórias se reportam a personalidades e imigrantes de ascendência cabo-
verdiana, “bem sucedidos” do ponto de vista da inserção na sociedade norte-americana; e as au-
tobiografias constituem, geralmente, espaços de partilha de experiências de vida, em que tanto
professores quanto alunos, compartilham suas trajetórias e histórias de vida. Como faz notar Fur-
tado (2018), trata-se de estratégias pedagógicas que visam reforçar a autoestima dos educandos.
Tratando-se de estudantes migrantes, em muitos casos trabalhadores com precárias con-
dições acadêmicas, a escola se vê na obrigação moral e pedagógica de estimulá-los a prossegui-
Fernando Jorge Pina Tavares
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 169
rem os estudos, apresentando-lhes modelos de vida bem sucedidos. A educação bilíngue assume
particular, relevância ética e pedagógica no empoderamento de estudantes socialmente desfavo-
recidos. Citando Freire e Macedo (1990), a Bilingual Education empodera o aluno para “leitura
da palavra” mediante “leitura do mundo”. Essas vivências constituem experiências pedagógicas
revolucionárias, na acepção da “Pedagogia Crítica” postulada por FREIRE e MACEDO (1990),
GIROU (1999) e McLAREN (1997).
A possibilidade de o aluno discutir temas referentes à história e cultura do seu país e do
seu povo, de interagir com professores e companheiros de classe em sua língua nativa, em um
país estrangeiro, sem o risco de cometer erros e o constrangimento da hipercorreção, à semelhan-
ça do que acontece nas escolas em Cabo Verde gera um sentimento de autoestima altamente po-
sitivo em relação aos seus referenciais culturais endógenos. A educação bilíngue possibilita, des-
te modo, que a escola construa paradigmas epistemológicos consentâneos com os referenciais
culturais do aluno.
Uma experiência didática bilíngue que adota o crioulo como uma das línguas do ensino,
constitui uma estratégia política e pedagógica paradigmática para se repensar o sistema educativo
cabo-verdiano, a partir da ideia de uma reforma curricular fundamentada na pluriversalidade
(Ramose, 2011) e na descolonização do currículo escolar. Trata-se de um projeto político e pe-
dagógico inovador e desafiante para os atores responsáveis pela construção social da escola em
Cabo Verde particularmente, e em África e na diáspora africana em geral.
Não obstante as contradições e lacunas inerentes ao programa Bilingual Education, trata-
se de um programa educacional inclusivo de grande alcance na história moderna dos Estados
Unidos da América. O seu advento é o culminar das lutas civis empreendidas pelas minorias
étnicas estado-unidensena defesa dos direitos democráticos, numa sociedade historicamente
marcada pelo racismo institucional e pela supremacia da branquitude, enquanto sistema de
dominação. Em relação aos benefícios apropriados pelos estudantes oriundos das classes
populares e migrantes estrangeiros, no que concerne ao acesso à educação, importa ressaltar o
fato desses estudantes poderem ter acesso a um sistema educacional que possibilita o ensino e a
aprendizagem em sua língua nativa, destacando o valor agregado que essa modalidade de ensino
aporta para o resgate e a preservação da sua identidade cultural. No caso concreto dos estudantes
oriundos das comunidades migrantes cabo-verdianas do estado de Massachusetts, ressaltamos o
fato de esse programa ter possibilitado o ensino em língua crioula de Cabo Verde, uma
experiência inédita, que deve servir de paradigma para se repensar os rumos da educação no
território cabo-verdiano.
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Considerações Finais
No contexto cabo-verdiano o projeto pedagógico focado numa reforma curricular, centra-
da na valorização do crioulo enquanto língua nativa, tem no seu bojo o paradigma da afrocentri-
cidade, na medida em que se trata de uma proposta que visa a valorização da experiência africa-
na e de (re)africanização das mentes, sendo este último postulado, o ideário da luta de libertação
liderado por Amílcar Cabral e outros líderes africanos. No contexto sociolinguístico cabo-
verdiano, a língua crioula constitui um dos maiores legados da resistência africana no arquipéla-
go, de modo que a sua introdução no sistema de ensino, visa o resgate e a preservação da nossa
identidade cultural. Uma identidade cuja matriz civilizatória se encontra alicerçada na ancestrali-
dade africana.
Como referimos na introdução do presente estudo, o nosso interesse em pesquisar o pro-
grama Bilingual Education nos Estados Unidos de América, teve como propósito conhecer expe-
riências pedagógicas bem sucedidas cujo crioulo é veiculado como língua de ensino. O resultado
do estudo nos permite constatar a importância da língua nativa no sucesso escolar dos alunos,
pelo que representa um tamanho desafio para as autoridades cabo-verdianas responsáveis pela
definição de políticas educacionais e curriculares.
Cabo Verde atravessa um período histórico desafiante, do ponto de vista da consolidação
do estado-nação, de direito democrático participativo, em que as grandes decisões políticas re-
querem um diálogo permanente com a sociedade civil. O impasse político e ideológico em torno
da oficialização da língua materna e sua introdução no sistema de ensino, afeta sobremaneira a
preservação e valorização de um património histórico e cultural portador da memória nacional.
Se a função da educação e do currículo escolar consiste na transmissão do legado históri-
co e cultural de um povo, de uma geração para outra, é necessário que a língua crioula integre o
sistema curricular nacional, enquanto património nacional cabo-verdiano. A língua é um patri-
mónio cultural e a educação deve ser emanação da cultura enquanto síntese dinâmica da socieda-
de e da história.
As pesquisas efetuadas em escolas de Cabo Verde revelaram que não obstante a hegemo-
nia da Língua Oficial Portuguesa proibir, teoricamente, a veiculação da língua materna no espaço
escolar, o crioulo é veiculado, na prática, o “tempo todo”, tanto na relação social vertical, quanto
na relação social horizontal. Essa prática revela, outrossim, a dimensão prescritiva e autoritária
da Língua Portuguesa nas escolas cabo-verdianas. Trata-se de uma prática ideológica legada pe-
las relações sociais do colonialismo, todavia reproduzida pelo sistema de ensino, numa espécie
de “neocolonialismo tardio”. Na relação vertical o professor interage em crioulo com os alunos,
Fernando Jorge Pina Tavares
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 171
dentro da sala de aula, em duas situações: primeiro, no desenvolvimento de determinadas ativi-
dades didáticas, tais como arte dramática ou dinâmicas de grupo etc., em que se torna necessário
explicar detalhadamente os procedimentos a serem seguidos; segundo, fora da sala de aula, nos
espaços do recreio, no ambiente de “descontração”. Na relação horizontal os alunos interagem
com os colegas sempre em crioulo, tanto dentro da sala de aula, quando se comunicam entre si,
quanto fora da sala de aula, porém dentro do recinto escolar, nos espaços do recreio; denota-se
que os professores veiculam o crioulo também quando se comunicam com os colegas de profis-
são ou com o seu superior hierárquico, tanto dentro, como fora da sala de aula. Esses dados per-
mitem concluir, que apesar da supremacia ideológica da Língua Portuguesa na sociedade e no
sistema de ensino cabo-verdianos, o crioulo é, na prática, a língua veicular predominante das re-
lações e práticas sociais cotidianas, tanto dentro quanto fora do espaço escolar.
A alternância de esferas interativas verificadas nas escolas pesquisadas revela também
uma relação sociolinguística de “diglossia” (DUARTE, 1998) no espaço escolar, visto que as
duas línguas veiculadas não detêm igual estatuto. Isto é, apesar do crioulo ser a língua veicular
predominante na sociedade e nas escolas, o português é a língua dominante, utilizada não só co-
mo veículo de comunicação nas instituições e espaços oficiais de prestígio, como também, en-
quanto instrumento de poder e diferenciação social, pelas categorias dominantes da sociedade,
nas quais se inclui também a categoria docente.
A diglossia inerente à sociolinguística cabo-verdiana encontra originalidade na esfera pú-
blica escolar, por ser esse o espaço em que a supremacia da Língua Portuguesa adquire legitimi-
dade. Considerando que toda a ação educativa do sistema escolar cabo-verdiano tende a mobili-
zar recursos ideológicos no sentido de motivar o aluno para o aprimoramento da Língua Oficial e
desmotivá-lo no uso da língua nativa, torna-se evidente que a assimetria estatutária entre o criou-
lo e o português é produzida e legitimada pela escola.
Essa desigualdade gera na mente da criança complexos e preconceitos sobre sua língua
nativa que passa a ser percebida como substrato inferior de sua identidade cultural. As escolas
cabo-verdianas tornam-se, deste modo, espaços de censura e alienação culturais, impedindo o
aluno de aprender livremente em sua própria língua materna e impondo-lhe uma língua que não
o identifica do ponto de vista étnico. Essa imposição desvirtua o sentido da relação pedagógica
na sala de aula, que se torna uma relação autoritária, marcada pela intransigência da hipercorre-
ção característica dos processos de ensino da Língua Oficial, em sociedades pós-coloniais. Nos
termos postulados por Candau (2001), a cultura escolar se sobrepõe, assim, à cultura da escola,
numa relação de dominação e de imposição.
Além de facilitar a adaptação dos alunos na assimilação dos conteúdos curriculares, ficou
comprovado, nas pesquisas de Massachusetts, que a educação bilíngue favorece também a pre-
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servação da identidade linguística e cultural crioulas. A preservação da língua crioula torna-se
por demais necessária no contexto sociolinguístico cabo-verdiano, num momento em que, a ele-
vação dos índices de alfabetização a um efetivo cada vez maior da população, tem como conse-
quência, a “invasão” de léxicos da Língua Portuguesa na língua crioula, perigando, assim, a iden-
tidade da língua nativa cabo-verdiana.
As pesquisas sociolinguísticas empreendidas, em Cabo Verde, desde a independência na-
cional, no campo da tradição oral, da gramaticalização e do alfabeto fonético e fonológico para a
escrita do crioulo (Alupek), comprovam, definitivamente, que o crioulo não é um dialeto, mas
sim uma língua, com identidade própria e aberta à evolução como qualquer outra língua moder-
na, possuindo, deste modo, todas as condições para ser veiculado como língua de ensino nas es-
colas.
O confronto dos indicadores teóricos e empíricos provenientes das pesquisas efetuadas
em Cabo Verde e nos Estados Unidos da América, deixa antever que a exclusão da língua cabo-
verdiana do sistema de ensino é um problema essencialmente político e ideológico, legado pelo
colonialismo e que vem sendo perpetuado por uma “vanguarda” e uma categoria social dominan-
te, culturalmente assimilada e alienada. Nesse sentido, resta concluir, que a viabilização do cri-
oulo, como veículo de ensino nas escolas cabo-verdianas, depende tão somente da conscientiza-
ção dos agentes sociais dominantes da sociedade e, fundamentalmente, da iniciativa dos dirigen-
tes políticos nacionais na mobilização de recursos com vista à inclusão da língua materna no sis-
tema de ensino.
As medidas de políticas concernentes à aplicação da Lei Bilingual Education Act, nos
impõe igualmente a uma interperlação aos protagonistas da educação brasileira, no que se refere
à aplicação da Lei 10.639/03 sobre o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas
instituições de ensino. Essa lei foi instituída em 2003 e, em 2004 foi publicado o parecer
CNE/CP n.3/2004 que instituiu as Directrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Observa-se, entretanto, que nem os poderes públicos federal, estaduais e municipais, nem as
instituições de ensino criaram condições materiais efetivas tais como, capacitação de professores,
produção de material didáctico, desenvolvimento curricular etc., para a sua viabilização nas
escolas brasileiras.
Considerando que a Lei 10.639/03 é decorrente das lutas dos movimentos sociais,
sobretudo, do Movimento Negro Brasileiro, cabe a esse movimento uma ação itinerante de
resistência e proatividade na mobilização dos insumos necessários à aplicação e
operacionalização da Lei. Essa proatividade passa pelo enfrentamento e resistência ao racismo
Fernando Jorge Pina Tavares
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 173
institucional e epistémico impregnados na sociedade brasileira que impede a inclusão dos aportes
culturais de matriz africana, afro-brasileira e indígenas nos currículos escolares. Nesse sentido, a
experiência do programa Bilingual Education Act que vem sendo implementada desde 1968,
com vista a dirimir as desigualdades no acesso ao aproveitamento escolardas minorias étnicas,
nos Estados Unidos de América, pode servir como paradigma para o desenvolvimento de
políticas públicas de inclusão das populações afro-brasileira e indígenas no sistema escolar
brasileiro.
A situação da inclusão cultural nos demais países africanos de Língua Oficial Portuguesa
é idêntica aos cenários cabo-verdeano e afro-brasileiro, na medida em que as línguas e os demais
aportes culturais africanos continuam sendo excluídos dos sistemas educacionais dos PALOP. A
diversidade étnica, com repercussão direta na diversidade linguística desses países, torna-se,
paradoxalmente, um dos maiores obstáculos à realização do projeto nacionalista africano do
retorno às fontes culturais e de (re)africanização dos espíritos no continente africano (CABRAL,
2013). No caso da Guiné Bissau, a situação se afigura mais pragmática, visto que apesar da
diversidade das línguas denominadas, indevidamente, étnicas ou tribais, existe o crioulo que é a
língua da unidade nacional, que poderia ser oficializada e introduzida no sistema de ensino
guineense. A situação de São Tomé e Príncipe é muito similar ao cenário caboverdeano, visto
que o crioulo veiculado nesse arquipélago poderia ser oficializado e introduzido no sistema de
ensino. Os casos, aparentemente, mais complicados são os de Angola e Moçambique, países da
África Austral, com uma diversidade de línguas “étnicas” e/ou regionais, que implicam o
desenvolvimento de políticas educacionais descentralizadas e consentâneas com a diversidade
cultural reinante nesses países. Neste sentido, as províncias e/ou distritos escolares devem ser
dotadas de instrumentos de gestão escolar autónoma e descentralizada, de forma a incluir as
línguas étnicas nos seus respectivos projetos políticos e pedagógicos. Essas medidas políticas
requerem a mobilização de recursos humanos e financeiros, sem precedentes, para desencadear
reformas educacionais e curriculares centrados nos princípios panafricanistas da unidade do
sistema cultural africano e da valorização da experiência africana. Cabe um estudo mais
aprofundado sobre o estado da arte da educação em cada um dos países africanos e da diáspora
africana do Recôncavo da Bahia, com vista à identificação das suas especificidades culturais,
condição para a proposição de políticas educacionais consentâneas com a sua realidade
endógena.
Esperamos que as discussões teóricas e empíricas abordadas no presente estudo possam,
de alguma forma, contribuir para o aprimoramento da consciência histórica, sobre o papel e a
importância das línguas e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas no desenvolvimento de
sistemas educacionais pluriversais e democráticas, comprometidas com a (re)africanização das
Educação bilíngue e os desafios da inclusão da língua nativa cabo-verdiana nos processos de ensino e aprendizagem – Estados Unidos da América
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mentes e a descolonização do saber e dos curricula escolares, nos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguuesa (PALOP) e na diáspora africana do Recôncavo da Bahia.
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exclusão da língua materna do sistema de ensino no Período Pós-Colonial. Tese de
Doutorado, São Paulo, FE-USP, 2004
Fernando Jorge Pina Tavares Professor Adjunto e diretor do Centro de
Estudos Africana (CEA) na Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira (UNILAB), Campus do Malês,
Bahia. Possui Pós-Doutorado em Educação
pela Universidade da Pensilvânia, Filadélfia,
USA; Doutorado e Mestrado em Educação
pela Universidade de São Paulo;
Especialização em Formação de Professores
pela Universidade do Minho, Portugal e
Licenciatura em Ensino de Filosofia pela
Universidade São Francisco, São Paulo.
Coordena o Grupo de Pesquisa “Pedagogia
Sankofa e Descolonização do Saber e do
Currículo Escolar em África e na Diáspora
Africana”, vinculado ao Diretório de Pesquisa
do CNPq..
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