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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 71, agosto1999 EDITORIAL “F reud vive. Uma das razões pela qual acho que ele está vivo é o número de obituários escrito sobre ele.” Esta afirmação de Peter Gay – numa reportagem publicada na revista Veja de 19 de maio último – encontra sua verificação plena no nosso país. O encontro de mais de seiscentas pessoas em Porto Alegre, organizado pela APPOA, em outu- bro passado, convocando diversas disciplinas para debater as conseqüên- cias que, para o sujeito, acarretam as transformações recentemente opera- das no valor simbólico do trabalho; o encontro no Rio de Janeiro sobre psicanálise de crianças, em agosto de 98, com mais de oitocentos colegas; o recente – aconteceu em Recife na terceira semana de junho - V Forum Brasileiro de Psicanálise organizado por 23 instituições psicanalíticas do Brasil sobre o desamparo com a participação de 700 psicanalistas. A cons- tância da presença de mais de 200 pessoas (entre educadores e psicana- listas) no seminário mensal de clínica do Lugar de Vida no Instituto de Psi- cologia da USP já no seu terceiro ano consecutivo. A proliferação de cursos de pós graduação em teoria psicanalítica em qualificadas universidades nas mais importantes cidades do país. A recente reunião de centos de co- legas psicanalistas, psicólogos, psiquiatras e historiadores ao redor da pre- sença de Elizabeth Roudinesco – historiadora da psicanálise -. A convocatória de diversos seminários com centos de colegas para o próxi- mo mes de agosto, nas mais diversas cidades com a participação de Ro- lando Chemama, Charles Melman, Marie Cristine Laznik, Jean Jacques Rassial, Juan David Nassio, Isidoro Vegh, Gerárd Pommier, Eric Porge. Como já o vem fazendo regularmente ao longo das últimas décadas, vários colegas de nossa Instituição, e outros como, notadamente, Ivã Corrêa, Jacques Laberge, Eduardo Vidal, Cristina Kupffer, Aurélio de Sousa, Mar- cos do Rio Teixeira, Euvaldo Mattos, Urania Tourinho Peres, Ricardo Goldenberg, Rodolfo Ruffino, Octávio de Sousa, entre muitos outros. Estes são alguns dos indicadores que, entre dezenas de eventos e encontros como os aqui brevemente mencionados, demonstram a vigorosa atividade que a psicanálise – especialmente a claramente comprometida com a leitu- ra de Freud e Lacan - provoca em torno de sua transmissão e seus efeitos na clínica e na cultura contemporánea. Certamente, a constante atividade

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EDITORIAL

“Freud vive. Uma das razões pela qual acho que ele está vivo é onúmero de obituários escrito sobre ele.” Esta afirmação de PeterGay – numa reportagem publicada na revista Veja de 19 de maio

último – encontra sua verificação plena no nosso país. O encontro de maisde seiscentas pessoas em Porto Alegre, organizado pela APPOA, em outu-bro passado, convocando diversas disciplinas para debater as conseqüên-cias que, para o sujeito, acarretam as transformações recentemente opera-das no valor simbólico do trabalho; o encontro no Rio de Janeiro sobrepsicanálise de crianças, em agosto de 98, com mais de oitocentos colegas;o recente – aconteceu em Recife na terceira semana de junho - V ForumBrasileiro de Psicanálise organizado por 23 instituições psicanalíticas doBrasil sobre o desamparo com a participação de 700 psicanalistas. A cons-tância da presença de mais de 200 pessoas (entre educadores e psicana-listas) no seminário mensal de clínica do Lugar de Vida no Instituto de Psi-cologia da USP já no seu terceiro ano consecutivo. A proliferação de cursosde pós graduação em teoria psicanalítica em qualificadas universidadesnas mais importantes cidades do país. A recente reunião de centos de co-legas psicanalistas, psicólogos, psiquiatras e historiadores ao redor da pre-sença de Elizabeth Roudinesco – historiadora da psicanálise -. Aconvocatória de diversos seminários com centos de colegas para o próxi-mo mes de agosto, nas mais diversas cidades com a participação de Ro-lando Chemama, Charles Melman, Marie Cristine Laznik, Jean JacquesRassial, Juan David Nassio, Isidoro Vegh, Gerárd Pommier, Eric Porge.Como já o vem fazendo regularmente ao longo das últimas décadas, várioscolegas de nossa Instituição, e outros como, notadamente, Ivã Corrêa,Jacques Laberge, Eduardo Vidal, Cristina Kupffer, Aurélio de Sousa, Mar-cos do Rio Teixeira, Euvaldo Mattos, Urania Tourinho Peres, RicardoGoldenberg, Rodolfo Ruffino, Octávio de Sousa, entre muitos outros. Estessão alguns dos indicadores que, entre dezenas de eventos e encontroscomo os aqui brevemente mencionados, demonstram a vigorosa atividadeque a psicanálise – especialmente a claramente comprometida com a leitu-ra de Freud e Lacan - provoca em torno de sua transmissão e seus efeitosna clínica e na cultura contemporánea. Certamente, a constante atividade

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NOTÍCIASEDITORIAL

de estudo, pesquisa, debate e trabalho clínico que desdobram regularmen-te ao redor de 250 colegas na APPOA, mais os colegas do Espaço Psica-nalítico de Ijuí, os grupos de estudo de Caxias, de Chapecó, de Santa María,de São Leopoldo, de Rio Grande, e de outras cidades de Rio Grande doSul, formam parte dessa “usina” de reflexão crítica, transformação da clíni-ca e torsão necessária do discurso social, que a produção freudiano-lacaniana tem sustentado nesta segunda metade do século.

As conseqüências disso ? : Uma maior aproximação à verdade que,se não tem efeitos tecnológicos (como aquelas minúsculas “verdades obje-tivas”), certamente tem efeitos éticos. Uma tangência com o real que, senão poupa todo sofrimento (como a ciência promete mas não cumpre) aomenos coloca o sintoma do sujeito no viés de seu próprio desejo, ou seja,no máximo de liberdade – e no mínimo de dor - à que ele pode aspirar.

ATIVIDADE ABERTA DO SEMINÁRIO MEMÓRIAS

Receberemos no dia 30 de agosto o artista plástico Richard Johnque apresentará um pouco de sua trajetória de produção artística. Teremosa oportunidade de debater com ele algumas preocupações presentes emseu trabalho e que estamos desenvolvendo no seminário: a questão daorigem, a função da memória e o lugar da imagem. Richard John apresen-tou ano passado sua dissertação de mestrado no Instituto de Artes UFRGSintitulada: As Faces da Origem: Morfologias possiveis para uma poéticadas identificações. Convidamos a todos para esta interlocução que certa-mente será promissora.

Dia: 30 de agostoHora: 21 horasLocal: Sede da APPOAAna Costa, Edson Sousa, Lucia Pereira

EXERCÍCIOS CLÍNICOS

No mês de junho, tivemos a estréia de um novo lugar de trabalho naAPPOA, que denominamos de Exercícios Clínicos. Desse acontecimentopode-se pensar muitas coisas, que certamente irão se desdobrando aolongo dos próximos encontros. Uma das questões, diz respeito à indaga-ção sobre o que se transmite numa apresentação pública de casos. Sepudéssemos situar um “pai primevo” seria certamente Charcot e a exibiçãodo corpo histérico. No caso, a “exibição” produzia uma determinada unida-de curiosa: a platéia consistia num desdobramento do corpo histérico, comosacrifício necessário à autorização do mestre. Os Exercícios Clínicos intro-duziram um “mediador” entre o real da clínica (que fica como resto para oanalista) e a necessidade de exibição (que todos temos, por sinal). Proce-de-se da seguinte maneira: o analista que tenha uma indagação de suaprática, que queira tornar pública, convida um ou dois colegas a quem diri-ge sua questão. Esses colegas têm a função de “mediadores”, ou seja, detransmitir a questão, sem respondê-la, aos outros que escutam (no caso, o

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público). Assim, não se trata de um debate de “saberes”, como ocorre numaapresentação pública de mesa redonda. A transmissão que se produz aí,evoca, em cada um dos que escutam, o retorno do impossível que caracte-riza sua própria prática. O tema desse primeiro encontro dizia respeito aosefeitos do pedido de abstinência na clínica com drogaditos. Pode-se dedu-zir os efeitos do que tenha sido a transmissão no encontro, na medida emque se chegou à enunciação, ao final, do que é o princípio que faz funcionaruma análise: a necessidade de abstinência do analista, em relação ao queo provoca a passar ao ato com seu paciente.

ROLAND CHEMAMAUM QUESTIONAMENTO LACANIANO NA ATUALIDADE

O trabalho com o psicanalista Roland Chemama parte da iniciativade Instituições Psicanalíticas e Universitárias para discutir questões con-temporâneas da clínica psicanalítica. Essa proposta enlaça a própria clíni-ca, a instituição e conseqüentemente, a transmissão da psicanálise. Comesse intuito, teremos momentos diferenciados, mas partindo sempre doexame da incidência das mudanças culturais nas configuraçõespsicopatológicas. Na atualidade, essas constatações nos chegam atravésda clínica, como, por exemplo, no estudo de casos de neurose obsessivaem mulheres, nos quais a “bela histérica” cede lugar à eficiente obsessiva.Para tanto, é preciso retomar a metapsicologia freudiana e seus conceitos,como a clivagem do eu e a técnica psicanalítica. Algumas ponderaçõessobre o Brasil também se viabilizam, partindo da concepção de Chemama,de que alguns autores advindos da sociologia e antropologia - os quaisescreveram sobre o Brasil - criaram um “romance nacional” ou mito coletivoda representação que o País compõe de si mesmo, gerando efeitos sobreo sujeito, o grupo produtor dessa representação e a prática da psicanálise.

CAXIAS DO SUL12/08 – 19h e 30min – Discussão Clínica: Neurose obsessiva feminina hojeLocal: Hotel Cosmos – Rua 20 de setembro, 1563Inscrições: Sede da APPOAValores: associados da APPOA - R$ 45,00 / não associados - R$ 50,00

PORTO ALEGRE – APPOA

14/08 – 15h e 30 minReunião do Cartel do Interior, com apresentação de um caso clínico por parte deum membro do Cartel e discussão com R. ChemamaLocal e inscrições: Nova Sede da APPOAValor: R$ 15,00 – (vagas limitadas)

17/08 – 18h – Reunião da Mesa Diretiva (aberta a membros e participantes daAPPOA), com participação de R. Chemama. Entre outros assuntos, serão discuti-dos os possíveis projetos de trabalho entre AFI e APPOA.Local: Nova Sede da APPOA

17/08 – 20h e 30min – Reunião exclusiva para membros e participantes da APPOA,com intervenção de R. Chemama sobre o tema: O pai e o mestre na transmissãoda psicanálise.Local: Nova Sede da APPOA

18/08 – 20h e 30min – Conferência: Indagações sobre o Brasil e sua aposta paraa psicanáliseLocal: Hotel Everest – Salão Rio Grande do Sul – Rua Duque de Caxias, 1357Valores:Associados da APPOA - (cada atividade) - R$ 20,00Associados da APPOA - (duas atividades) - R$ 30,00Estudantes de graduação por conferência - R$ 22,00Profissionais por conferência - R$ 35,00Inscrições e informações: sede da APPOA

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NOTÍCIAS

CARTEL BRASIL 500 ANOS

MUDANÇA DE ENDEREÇOIeda Prates da Silva informa seu e-mail: [email protected] M. Surreaux informa o endereço do seu consultório, Rua Nova York, 10/705Rosane Monteiro Ramalho informa seu e-mail: [email protected] Gomes Víctora informa o novo endereço do Consultório: R. Joaquim Nabuco,15 (esquina Lima e Silva), conjunto 204.

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SEÇÃO TEMÁTICA

CONTINUAÇÃO DA BIBLIOGRAFIA

SEÇÃO TEMÁTICA

500 ANOS RE-INVENTANDO UM BRASIL

No início deste ano, visando ao futuro aniversário de quinhentos anosdo descobrimento do Brasil e antecipando o tema do Congresso daAPPOA do ano 2000, iniciamos o cartel sobre este tema. As discus-

sões cada vez contam com maior número de participantes, e têm nos esti-mulado a pesquisar, a trocar idéias, e a trabalhar.

Temas como a questão do Outro e a função da lei, as marcas dosimbólico, implícitas na língua, no sentimento de nacionalidade, namarginalidade, na “malandragem”, o racismo “cordial” (existe?!), a miscige-nação entre as raças; e por outro lado, o imaginário do corpo/terra do Brasil,e a linguagem das artes – são alguns dos tópicos debatidos nesse espaço.

Neste número do Correio trazemos uma mostra do caminho que inici-amos a trilhar, tanto pelos textos de Roland Chemama e Ângela JesuínoFerretto, de Paris (que na França participam do ciclo de conferências-deba-tes: “A questão do Outro na América Latina”), quanto dos colegas CarmenBackes, Alfredo Jerusalinsky, Conceição Beltrão e Mario Fleig. Estes traba-lhos nos apresentam um olhar sobre as questões da brasilidade, do desco-brimento ao contemporâneo; modulado pelos efeitos da prática psicanalíti-ca.

A particularidade desta seção temática é que ela inaugura uma trocade publicações com os colegas da AFI, através do Cartel da América Latina.Em função da discussão temática comum, os textos deste número serãolançados também em francês. Além disto, pretendemos que este seja oprimeiro passo de uma série que antecipará nosso Congresso.

BIBLIOGRAFIACALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil! notas de um psicanalista europeu via-jando ao Brasil. São Paulo. Editora Escuta;1991.PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. SãoPaulo. Companhia das Letras, 1997.

Ligia Gomes Victora e Robson de Freitas Pereira

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ção do Outro. Esse Outro, como vocês sabem, podemos entendê-lo emdiversos sentidos. Digamos pelo menos que se trata do lugar do significante,mas também do lugar da lei. O que dizer disso, a partir do Brasil?

Vocês sabem, sem dúvida, que já existem muitos estudos que colo-caram em destaque certas particularidades do laço simbólico no Brasil.São às vezes textos de psicanalistas, mas também livros de historiadores,de sociólogos, de antropólogos. Na primeira categoria destes eu situaria olivro de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil.

É notável ver com que clareza Sérgio Buarque de Holanda põe emdestaque certos traços da cultura brasileira que podem nos interrogar comopsicanalistas.

Esses traços se ordenam em torno da noção do “homem cordial”. Éuma noção bem conhecida, mais que é preciso não compreender apressa-damente. Ela designa, por certo, as qualidades de afabilidade, de hospitali-dade e de generosidade. Porém, para o próprio autor a cordialidade seopõe antes de mais nada à “polidez”. A polidez comporta regras, eventual-mente ritos, em todo caso uma certa forma de compulsão. Quanto à cordi-alidade, ela se concebe antes como a expressão de uma emoção direta eviva.

Sérgio Buarque vai mostrar, a partir disso, o quanto o brasileiro éhabitualmente rebelde a tudo aquilo que pode lhe surgir como uma conven-ção social. Poder-se-ia segui-lo no detalhe, e em particular no detalhe dalíngua, no emprego muito corrente dos diminutivos, dos prenomes, dotuteamento. O mais importante, para nós, talvez seja a idéia segundo aqual trata-se, em todos os casos, de reduzir ao mínimo a distância quepode separar um sujeito do outro. A inimizade pode ser, aliás, nesse senti-do tão “cordial” como a amizade. O que é rejeitado, em contrapartida, étudo aquilo que não poderia ser reconduzido à esfera do íntimo, do familiar,do privado. Em suma, trata-se sempre de fazer do outro um semelhante.Vê-se o quanto todo laço parece antes dever assumir uma forma imaginá-ria, vê-se o quanto o lugar parece estreito para os laços simbólicos.

No que concerne aos psicanalistas, devo dizer que aprendi bastanteao ler a pequena obra de Contardo Calligaris, que se chama Hello Brasil!, e

ONDE SE INVENTA O BRASIL?1

Roland ChemamaTradução de Francisco Settineri

De início, se vocês permitem, gostaria de propor uma questão prévia. De que modo estou autorizado a falar desses problemas essenciais, relativos ao Brasil, problemas que anunciamos no breve

texto que vocês sem dúvida leram2? Fui algumas vezes ao Brasil, aprendoa sua língua, mas não reconheço em mim nenhuma competência particu-lar, e tenho muito poucos conhecimentos. A única coisa, então, que poderiame autorizar, é que o Brasil me põe a trabalhar. Quando um psicanalista seacha confrontado com um tema que o faz trabalhar, o efeito desse encontroé que ele pode retomar, um pouco como um analisante, algumas questõessem dúvida essenciais para todos nós. Espero que seja evidente que édisso que se trata.

Aliás, eu e Angela Jesuíno-Ferretto tivemos diversas discussões, emque propusemos juntos alguns problemas. E depois combinamos que, pelofato de que eu iria falar de questões talvez menos precisas do que ela, eufalaria primeiro.

De que iremos falar? Lembremos o próprio título do ciclo: o Outro naAmérica Latina. Não se trata apenas de nos perguntarmos como funciona adimensão do Outro na América Latina, mas também de ver como o quepode se passar nesse ou naquele país pode interrogar nossa representa-

SEÇÃO TEMÁTICA CHEMAMA, R. Onde se inventa o Brasil?

1 Esse texto reproduz uma conferência feita na Maison de l’Amérique Latine, em Paris, em 17de maio de 1999, no quadro de um ciclo sobre “o Outro na América Latina”. Esta exposiçãofoi seguida de uma exposição feita por Angela Jesuíno-Ferretto.2 Eis o texto que anunciava as duas exposições:Tornou-se banal perguntar-se sobre o que, no Brasil, poderia constituir uma lei simbólica.Deve-se denunciar, como às vezes se faz, uma carência que seria claramente visível, tantono nível social como na esfera privada?Tentar-se-á antes fazer valer, tanto nos escritos eruditos como no discurso corrente, o quepoderia constituir uma outra forma de sustentar RSI: mestiçagem dos corpos, mistura deimaginários, sincretismo religioso, romance nacional ou mito coletivo.

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Brasil, seriam de início essas elaborações de alcance teórico, essas obrasde sociólogos ou de historiadores, por que não de psicanalistas, também,obras que contribuem para a produção daquilo que eu poderia chamar deromance nacional ou de mito coletivo.

Vou tentar explicitar tudo isso.Porque, de saída, dar a essas obras um valor desse gênero? É que,

me parece, elas desempenham um papel bem diferente de um papel mera-mente teórico. Sérgio Buarque sublinhou o lugar que os intelectuais podemter na sociedade brasileira. Por certo, ele mesmo pode às vezes falar des-se lugar de uma maneira crítica, sublinhando o fato de que esses intelectu-ais desenvolvem freqüentemente um pensamento afastado da realidade.Mas isso não reduz nem um pouco a importância do que está aqui em jogo.Tudo se passa como se uma sociedade cujos marcos simbólicos precisa-mente não estão bem assegurados, uma sociedade que se pergunta sobresua identidade, devesse forçosamente ir buscar em alguns autores impor-tantes, mas também em todos aqueles que se inspiram neles, uma repre-sentação de si mesma que pudesse aliviar a própria carência. É precisodestacar, nesse sentido, o fato de que o atual presidente do Brasil é elepróprio um intelectual formado na reflexão sociológica. Eu não escondereide vocês que a questão “onde se inventa o Brasil?” pode remeter, entreoutras coisas, ao título de uma conferência que ele pronunciou no InstitutoRio Branco, na época em que era Ministro das Relações Exteriores do Bra-sil. Essa conferência se intitulava, com efeito: Livros que inventaram o Bra-sil. Esses livros são sobretudo os de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque deHolanda e de Caio Prado Júnior. Parece-me que o título da conferência deFernando Henrique Cardoso fala bastante bem do papel que ele reconhe-cia a eles. Esses livros sem dúvida não criam o Brasil em sua realidadesocial e econômica. Mas eles criam a representação que o Brasil dá de simesmo, e sabe-se que uma representação não deixa jamais de ter efeitossobre o indivíduo ou sobre o grupo social que a produz.

Aliás, para falar dessa representação, eu utilizo precisamente asexpressões “romance nacional”, ou ainda “mito coletivo”. Estou bem cons-ciente de que isso arrisca parecer metafórico. Digamos que eu tente apre-

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que infelizmente não possui tradução francesa. Contardo Calligaris, que seinterroga igualmente sobre a questão da lei simbólica no Brasil, remonta àcolonização, a um colonizador que procurava antes gozar do corpo de umanova terra que estava à sua disposição, do que transmitir um imperativopaterno (o de seu país de origem), um imperativo que teria limitado seugozo. É verdade que Contardo Calligaris distingue o colonizador do colono,que veio posteriormente, e que buscava, antes de gozar, ser reconhecido,obter um nome. Ocorre que o que predomina, segundo ele, no Brasil, é aesperança de realizar o sonho de um gozo absoluto, esperança que nãopoderia fundar um verdadeiro imperativo simbólico.

Aliás, parece-me que não se deveria esquecer um outro aspectodessa questão, sobre o qual Calligaris insiste de saída. Aquilo de que, deacordo com ele, o Brasil seria carente, a partir do momento em que o colo-nizador procura gozar, e não transmitir uma lei, aquilo, pois, de que é ca-rente, é também um significante que teria valor de significante nacional, umtraço que cada um poderia reconhecer como tal. Para Contardo Calligaris,a ausência desse traço, ou melhor, desse um traço, é que compromete apossibilidade de uma umtegração. Vocês entendem o jogo de palavras:não se trataria de uma dificuldade de integração, uma dificuldade em uni-formizar as diversas etnias que compõem o Brasil, trata-se de uma dificul-dade relativa ao próprio um.

Deve-se então ficar nisso? Não o creio, e não penso, aliás, que essaseja a última palavra das obras que acabo de citar. Mas me parece, sobre-tudo, que a própria existência de obras desse tipo nos fornece um elementode resposta às questões que tentamos propor.

O que quero dizer? Pois bem, penso que é tempo, sem dúvida, deformular aqui a minha hipótese, hipótese que hoje quero sustentar.

O que gostaria de dizer, a propósito do Brasil, é que ele não nosconfronta com o que seria uma pura carência no nível da lei simbólica. Elenos faz, antes, ver como, no lugar em que a lei simbólica surge como pre-cária, podem se constituir formações substitutivas. Estas podem ser dediversas ordens, e tentaremos dar uma idéia delas. Pareceu-me que o quepoderia assumir o valor de formações substitutivas de uma lei simbólica no

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gica de mito”. É certo que também não pretendo analisar aqui um mito àmaneira dos antropólogos. Mas ocorre que Lacan disse que o complexo deÉdipo tinha valor de mito, e que ele igualmente fez menção daquilo que elechama de “o mito individual do neurótico”. O mito, para ele, é pensado comoexpressão, expressão de uma verdade que não poderia ser dita de outromodo. A verdade assume a forma de uma ficção, ou, melhor ainda, de umasérie de ficções pelas quais um sujeito - por exemplo o pequeno Hans -elabora sua história.

Em suma, o mito carregaria o traço de uma questão não resolvida,mas de uma questão que está, por assim dizer, em andamento. Eu diria,então, que ele pode carregar esse traço para um povo, do mesmo modoque para um sujeito. Vocês vêem que eu inverto aqui o sentido da importa-ção do conceito.

O que é que, no Brasil, tem valor de mito coletivo? Pois bem, semdúvida, antes de mais nada, precisamente a questão da mestiçagem, àqual já comecei a fazer alusão.

A mestiçagem é por certo uma realidade no Brasil, e sabe-se quecomplexidade ela pode ter, pois o Brasil é feito, em graus diversos, de umamiscigenação muito grande entre brancos, negros e índios. Porém, o quepode antes nos ocupar é que ela assume uma dimensão imaginária parti-cular, a de representar o que haveria de específico na nação brasileira.. Elaa assume nessas obras às quais já fiz alusão, mesmo na de Caio PradoJúnior, apesar de sua orientação marxista. Nesse sentido, ela representaum valor, uma representação do que os brasileiros consideram como bomem seu próprio país.

Eu poderia citar, por certo, longas páginas a propósito dessa exaltaçãoda mestiçagem, nesses autores aos quais já me referi, ou em outros, maiscontemporâneos, como Da Matta. É preciso destacar que esse tema vaibem além do que se poderia crer inicialmente. A mestiçagem é igualmentea coexistência, em uma mesma cultura, de palavras, de objetos, de costu-mes oriundos dos índios, dos africanos, dos europeus. A idéia, ainda maisprecisamente, é de que as crenças e os costumes se misturam intimamen-te, e Angela irá nos falar disso a propósito do sincretismo religioso. Mas

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ender, de modo talvez analógico, algo que conhecemos bem em nossostratamentos, mas que também possui, sem dúvida, uma realidade no nívelsocial.

Vocês sabem que Freud fala de romance familiar a propósito do quea criança pode imaginar de suas origens. Ela não seria a filha de seus pais,teria uma origem mais prestigiosa, real, por exemplo. Ou ainda, ela seria ofruto de uma aventura amorosa secreta de sua mãe, etc. A esse respeito,então, eu colocaria em destaque não o caráter errôneo dessas representa-ções, mas seu valor fantasmático. Trata-se de uma construção imagináriaque vem sempre responder a um desejo, ou sustentar um desejo. Em suma,trata-se de um fantasma. Ora, quando se lê, por exemplo, o livro de Gilber-to Freyre, Casa Grande e Senzala, que em francês recebeu o nome de“Maîtres et esclaves” (Senhores e Escravos), tem-se a forte impressão,para além da seriedade de suas referências históricas, de se descobrir umtexto que pode ter um valor fantasmático dessa ordem. Charles Melmanfalava, a esse respeito, de uma “obra lírica sobre o nascimento do Brasil”.Esse livro, ele dizia, “conta que o Brasil é o fruto de um português lúbrico,que só pensava naquilo, e de uma bela índia besuntada de vermelho, e quepenteava delicadamente os cabelos na água de um rio”. É verdade queisso é perfeitamente legível no livro de Freyre, e pode-se mesmo ir além.Freyre faz também, de fato, a genealogia do próprio português, este sermetade europeu, metade africano. Assim, antes mesmo de falar da belaíndia – a mãe do brasileiro – ele evoca sua avó paterna, essa “mouriscaencantada”, “tipo delicioso de mulher morena de olhos negros, totalmenteenvolta em um misticismo sexual”, etc. Eu encurto a descrição, não falo emparticular do que se poderia chamar de tio judeu do colonizador português,mas retornaremos ao que o romance nacional tende a estabelecer.

Falei aliás de mito coletivo, e a própria expressão poderia parecercuriosa. Virgínia Hasenbalg me fez saber de um artigo de Carlos Hasenbalg,que se chama “Entre o mito e os fatos: racismo e relações raciais no Brasil”.Carlos Hasenbalg, que fala de mito a propósito do tema da democraciaracial no Brasil, diz que utiliza esse termo “para lembrar a distância entrerepresentação e realidade” e não “para fazer referência à noção antropoló-

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enfrentamento, às vezes violento, entre o colonizador branco e o índio,assim como, por certo, entre o branco e o escravo negro, parece-me queesse enfrentamento não se dava, ao mesmo tempo, sem uma certa proxi-midade entre aquele que dominava e o que era dominado. Essa proximida-de, e podemos certamente criticar suas formas, quando se tratava, porexemplo, de utilizar sexualmente a mulher de cor, ou ainda de usar o pe-queno escravo negro como saco de pancadas do jovem senhor branco.Mas me parece que ela deixa sua marca no próprio sujeito brasileiro. Emsuma, haveria bem uma barra entre a posição do senhor e a do escravo,mas essa barra poderia igualmente estar situada no interior de um mesmosujeito. Por exemplo, nesse ou naquele caso, o negro constitui, em umsujeito brasileiro branco, o que é ao mesmo tempo rejeitado e buscadoinconscientemente, o que constitui o objeto de uma fascinação tanto realquanto não pode ser aparente.

Ora, dispomos de um conceito para pensar o que vem separar, emum mesmo sujeito, duas correntes psíquicas diferentes, é o de clivagem.

É preciso então pensar o mito da mestiçagem a partir desse conceitode clivagem. Por certo, ele vem denegar diferenças sociais que não sãonegligenciáveis. Mas ele só tem essa função. Ele dá, sem dúvida, um equi-valente daquilo que constitui uma falha no nível de um significante daumtegração. A questão poderia ser, aliás, para os que estão habituados aesse tipo de formulação, a questão poderia ser, pois, saber se essa suplên-cia é da ordem do imaginário ou do “sinthoma”. Uma outra questão, masdesta é Angela que falará, seria saber se a alteridade denegada nãoretornaria de maneira persecutória.

De qualquer modo, o mito da mestiçagem parece bem ter por funçãoprincipal responder à questão da identidade. É preciso então tentar ser umpouco mais preciso sobre essa questão.

Sabe-se que, com muita freqüência, quando um povo procura forjarsua identidade, ou se confortar em uma identidade, ele o faz opondo-se aseus vizinhos mais próximos. A dimensão do Outro é então lançada sobrea dimensão do estrangeiro, e é a xenofobia que vem para o primeiro plano.Parece-me que este não é o caso do Brasil. É significativo, nesse sentido,

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pode-se igualmente lembrar a imagem que Da Matta fornece a partir doque ele considera como o prato nacional brasileiro: o feijão-com-arroz, emque o negro e o branco se misturam em um só prato, uma massaindiferenciada.

Entretanto, é preciso dizer, de imediato, que essa representação damestiçagem é muitas vezes denunciada, não sem razão, comoexageradamente otimista, do mesmo modo que, aliás, a representação quea acompanha, a de uma democracia racial no Brasil. É por isso que se falade mito no sentido de uma mistificação. Esse mito seria feito para esconderas profundas diferenças sociais entre os grupos raciais, que não seriam tãomisturados como se diz.

Foram criticadas igualmente as conseqüências políticas de um talmito. Pôde-se assim destacar, a partir de diversas pesquisas, que mesmoquando os negros e os mestiços tomam consciência de uma situação des-favorável, eles rejeitam a idéia de que uma solução poderia ser propiciadapela ação de um movimento no qual somente eles participassem. Do mes-mo modo, o fim das injustiças deve se inscrever no quadro de um povopensado antes em sua unidade do que em suas contradições.

O que pensar de tudo isso? Parece-me que a posição do analistanão pode ser aqui de denunciar a mentira, como se tratasse apenas de umfalso semblante que não tivesse nenhuma consistência. É claro que é pre-ciso antes considerar que esse mito exprime e produz algo de essencialpara o sujeito brasileiro.

É sobre isso que eu poderia ser tentado a retomar, mas sem dúvidadesviando um pouco, o que Melman tinha dito sobre o discurso do mestreno colonialismo. Eu não terei tempo de explicar, para os que talvez não aconheçam, a formalização lacaniana do discurso do mestre. Digamos quese, em todo discurso, é preciso distinguir de um lado um lugar de onde issocomanda, e de outro um lugar em que isso deve obedecer, Melman afirmaque no colonialismo uma barra vem separar esses dois lugares. Em suma,esses dois lugares seriam mais claramente opostos do que em outras for-mas de organização social.

Ora, se é incontestável que a história brasileira mostra bem um

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FERRETO, A. J. Outro: instruções de uso.

OUTRO: INSTRUÇÕES DE USO 1

Angela Jesuino Ferretto

Gostaria de começar com um pouco de literatura, com um pequenotrecho de Grande Sertão : Veredas. Primeiro porque é sempre umprazer ler e reler Guimarães Rosa, segundo porque é sempre muito

instrutivo no que nos diz respeito.Para os que não conhecem este livro, vou me servir do prefácio da

tradução francesa para situá-lo. Este prefácio escrito por Mario Vargas Lhosacoloca em evidência ao menos três leituras possíveis para este romancecaudaloso, organizado entorno de um vasto monólogo proferido porRiobaldo, o narrador. Segundo Lhosa, este livro é ao mesmo tempo umromance de aventuras, um labirinto verbal e uma longa interrogaçãometafísica sobre o bem e o mal.

Para o que nos interessa aqui, gostaria de me deter nesta últimapossibilidade de leitura visto que alguns críticos chegam a afirmar que « overdadeiro tema de Grande Sertão : Veredas é a possesão diabólica ». Éverdade como diz Lhosa que « o monólogo de Riobaldo reúne dúvidas einquietudes, formula várias afirmações obscuras sobre a existência do de-mônio com quem o narrador fêz ou acreditou fazer ou quer fazer crer a seuouvinte que ele concluiu um pacto ». « O espírito satânico de Riobaldo,continua Lhosa, se contenta em lançar de tempos em tempos, em geral nosmomentos chaves da ação, um sinal furtivo mas indubitável, uma frasecomo uma fugitiva pata de bode, uma alusão ou uma lembrança flutuantetal um pronto cheiro de enxôfre que é o bastante para provocar um estre-mecimento, um arrepio indicando que alguma coisa ou alguém de intangí-vel e no entanto de poderosamente real está ali, girando em volta ».

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que o modernismo, que orientou por muito tempo a vida intelectual, tenhaconstituído ao mesmo tempo uma recuperação da memória nacional e umaabertura para a modernidade européia. Pôde-se às vezes criticar a repre-sentação da relação com o outro que existe nos Manifestos antropofágicos.Todos concordarão, de qualquer modo, que essa representação não com-porta nenhuma rejeição do Outro.

Eis, pois, o que gostaria de tentar dizer sobre o Brasil, sobre umcerto número de discursos em que se inventa o Brasil. E acrescentariaainda uma outra coisa, para concluir. Dado que sabemos que em nossassociedades européias a lei simbólica também tende a se fragilizar, poderiaser o caso de que tivéssemos a aprender alguma coisa com um país comoo Brasil, ou seja, com um país que teve de forjar uma representação de sique não era inicialmente evidente. É uma questão que deveria certamenteser retomada mais longamente.

1 Conferência proferida na Maison de l’Amérique Latine em maio de 1999 junto com a confe-rência de R. Chemama : Aonde se Inventa o Brasil ?

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Este tipo de questão não é uma exclusividade dos personagens deGuimarães Rosa. Ela reaparece com a mesma força em um romance bemrecente - O Matador - de Patrícia Melo.

Se desta vez se o narrador se questiona :« ...pensei que alguém, sei lá o quê, alguma coisa invisível poderia

estar contra mim, eu acreditava nisso, no invisível, no inferno, eu batia namadeira três vezes, eu não passava embaixo de escada, eu não dava risa-da na sexta-feira, não usava o número 13, eu não jogava sal na mesa, eunão fazia nada disso. »

Se ele tenta a seu modo rezar, apelar para a religião :« Resolvi procurar um pai-de-santo. Ele me mandou tatuar uma es-

trela de sete pontas no meu pau, vai doer, ele disse, você vai desmaiar dedor, mas é necessário fechar seu corpo. »

Ele também responde :« Só há uma explicação :Destino. Antes da gente nascer, alguém,

sei lá quem, talvez Deus, Deus define direitinho como é que vai foder a suavida. É isso. Era a minha teoria. Deus só pensa no homem quando tem quedecidir como é que vai destruí-lo. Quando ele não tem tempo, faz umaguerra, um furacão e mata um monte, sem ter que pensar em nada. Emmim, ele pensou . »

Como vocês podem ver, viver é também aqui muito perigoso e aindamais se eu suponho que o Outro quer acabar comigo. Será que podemosencontrar na clínica um eco deste Outro ameaçador esboçado na literatu-ra ? Será que na clínica viver é tão perigoso quanto na ficção ?

Na verdade o que a realidade clínica nos ensina, pelas articulaçõesque ela revela, vem esclarecer a ficção.

Eu tive como paciente há algum tempo atrás, uma jovem brasileiraque vivia já a alguns anos em Paris e que veio me ver com uma questãobem particular : viver para ela era muito perigoso, mas não em todo lugar.Assim que ela desembarcava no Brasil, ela se sentia ameaçada de morte eassim que ela voltava para a França as ameaças pareciam se acalmar umpouco e quando isto não acontecia, quando a ameaça se fazia presentetambém na França, era antes uma ameaça de ordem sexual que vinha à

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Eis aí em que contexto escolhi algumas linhas para introduzir minhasquestões sobre o Outro no Brasil :

« Hem ? Hem ? O que mais penso, testo e explico : todo-o- mundo élouco. O senhor, eu,nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece prin-cipalmente de religião : para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sarada loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma... Muita religião, seumoço ! Eu cá não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo águade todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezocristão, católico, embrenho a certo ; e aceito as preces de compadre meuQuelemém, doutrina dele de Cardéque. Mas, quando posso, vou noMindumbim, onde um Matias é crente metodista : a gente se acusa de pe-cador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quietame suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório.Eu queria rezar - o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que leide Deus é privilégios, invariável. E eu ! Bofe ! Detesto ! O que sou ? - o quefaço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço,executado. Eu ? - nõtresmalho !

Olhe : tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as re-zas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês - enco-menda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, umrosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E estou, jámandeirecado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvide que reza também com grandes meremências, vou efetuar com ela tratoigual. Quero punhado dessas, me defendo em Deus, reunidas de mim emvolta...Chagas de Cristo !

Viver é muito perigoso... querer o bem com demais força, de incertojeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar ».

Por que essa necessidade de reza ? O que o leva a beber água detodo rio ? Por que uma só reza, uma única religião não é o suficiente ?Viver é muito perigoso, nos lembra Riobaldo. Mas de onde vem este perigoque está em todo lugar e que mesmo um « querer o bem com demais for-ça » pode despertar ? De quê seria preciso se proteger sem descanso?Sem descanso assegurar-se dos favores ?

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além da geografia é sobretudo a mudança de língua que lhe permite fazer apartilha ou a barragem. Por exemplo : será que nesta língua, que não é alíngua materna, todo este imaginário fantástico poderia se « implantar » ?Apaciente responde : « acho que aqui ninguém acredita em alma ».

A última observação concerne o desencadeamento desta estória : amoça recusa a ajuda de um pai-de-santo e, pronto ! Ela é ameaçada demorte ! Temos vontade de dizer que isso responde em outro lugar... Essame parece, é toda a questão da estrutura dessa paciente : aonde isso res-ponde ?

Mas finalmente, quando é que se vai procurar um pai-de-santo noBrasil ? Quanto a isso, gostaria de me servir de uma pequena estória tiradadesta vez da clínica da vida quotidiana no Brasil, uma estória muito interes-sante porque ela coloca em concorrência o pai-de-santo e o psicanalista.Trata-se de uma moça da burguesia branca de uma grande cidade brasilei-ra que começou a ter uma série de acidentes domésticos o suficientementegraves para que ela temesse por sua vida. Ela decide então procurar umpai-de-santo e depois de algumas consultas, alguns banhos e algumasoferendas, tudo volta ao normal. Alguns anos depois, a mesma moça seencontrando num estado que chamaríamos de depressivo, vai consultarum psicanalista. Vocês vêem, Riobaldo tinha razão, bebe-se água de todosos rios ! Mas o que esta estória vem contar é que talvez não se vai consul-tar um pai-de-santo ou um psicanalista pelas mesmas razões !

O que é um pai-de-santo ? Em primeiro lugar, este termo é a tradu-ção, que devemos ao sincretismo religioso, do termo yorubá : babalorixá .Esta tradução faz de cara uma equivalência entre os Orixás, os deuses daÁfrica, e os santos católicos. O babalorixá ou a ialorixá são os sacerdotesdo Candomblé, religião afro-brasileira presente desde o século XVII no nossoterritório e de início proibida pela polícia, proibição vigente até por volta de1950, para hoje florescer junto a todas as camadas sociais e a toda côr depele, pelo menos numa certa parte do país.

Não vale a pena aqui dar uma de antropólogo, mas é preciso aomenos um pouquinho de antropologia para que se possa compreender comoisso funciona, porque formulo a hipótese de que a figura do Outro que o

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tona. Por outro lado, todas as entrevistas que pude fazer com esta moçaobdeceram a um roteiro idêntico : ela entrava no consultório e sem maispreâmbulos, me contava uma cena de violência da qual ela teria sido vítimano Brasil. Se a cena nunca era a mesma, a paciente assinalava a cada vezo caráter gratuito da violência que ela tinha sofrido.Estas cenas falavam detodos os clichês da violência social no Brasil : violência sexual, policial,roubo de criança na maternidade, ameaça de morte com um revólver, etc..

Talvez ainda uma observação : ao final destas poucas entrevistas, apaciente foi passar algum tempo no Brasil e de volta a Paris, ela veio mever uma última vez para me dizer que as coisas andaram melhor do quedas suas precedentes estadias no Brasil. Ela me explicou que ia bem e quenão precisava mais de mim, o que não achei oportuno colocar em questão.Não preciso dizer que recebi esta paciente face a face, que ela me falavaem português e que minha intervenção limitou-se a uma escuta que pode-ria qualificar de acolhedora.

Gostaria no que diz respeito a este caso, insistir num único ponto : acircunscrição geográfica da ameaça de morte e sua báscula numa ameaçasexual. No Brasil, é sempre um homem, um pequeno outro que através deseu olhar é portador desta ameaça : alguém pode matá-la, sem razão, « depura malvadeza » como ela mesmo diz. Porém esta idéia aparece nummomento preciso de sua estória e num contexto particular. Ela estava nacasa de sua mãe numa cidadezinha do interior do Brasil, onde ela encon-trou sua irmã que se tratava com um pai-de-santo. Este pai-de-santo queriaa todo custo que a paciente viesse « consultá-lo » dizendo-lhe que algumacoisa não andava bem para ela. A paciente recusa categoricamente e al-guns dias depois, a ameaça faz sua primeira aparição. Por outro lado, oque ela descreve desta cidadezinha e também de sua mãe, corresponde aum mundo de assombrações, de fantasmas, de almas, de visões da Vir-gem Maria e de lobisomens. O que me parece importante assinalar no quediz respeito ao nosso tema desta noite, é que para esta moça o olhar de umhomem toma no Brasil o sentido de uma ameaça de morte, enquanto quena França este olhar pode ser investido de um sentido sexual, nem queseja ainda sob a forma de uma ameaça. Podemos formular a hipótese que

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Porém, qual é o papel do Orixá ? Trata-se de fazer com ele um pactoprotetor mas o que é embaraçante é que esse deuses são ao mesmo tem-po protetores e portadores de doenças. Eles são sempre mais ou menosambivalentes. O Orixá pode trazer doença ou curar, ele é todo poderoso...quando ele não é homenageado sua ira pode ser desencadeada visto queele só subsiste se for venerado, se recebe os alimentos sagrados que otornam forte, se suas pedras são lavadas no sangue dos animais sacrifica-dos, se ele encarna-se no corpo do « filho ou filha- de- santo » donde aimportância do transe. A relação do sujeito com seu Deus funciona de caraa partir deste casal antinômico proteção/ perseguição cujo limite permane-ce muito frágil embora codificado.

Dizia também que este mundo do candomblé fora dos cultos, dasfestas públicas,era reservado aos iniciados. Evidentemente, existem dife-rentes graus de iniciação mas me parece que o que é buscado nestes dife-rentes níveis de iniciação, é uma identificação máxima do fiel com o Orixá.Na verdade trata-se de imitar este Deus, de incorporá-lo, de ser seu cava-lo, « cavalo do santo ». A cada grau da iniciação, estabelece-se um laçomais profundo entre o fiel e seu Orixá e quanto mais estreito é o laço, maiso fiel tem obrigações e tabus a respeitar. E ele que se cuide se ele nãorespeitar tudo isso ao pé da letra ! A partir do reconhecimento da filiação,trata-se de seguir à risca o que quer o Orixá, já que sabemos o que ele quergraças ao jôgo do Ifá e que uma vez que sabemos o que ele quer, podemossatisfazer seus desejos. O avesso da medalha, como se sabe, é que esteDeus protetor que pode servir de guiar a cada encruzilhada em que a sub-jetividade está em jôgo, pode se revelar terrificante, se incompleto, se algolhe falta.

Creio então que o que o candomblé propõe deve sua eficácia ao fatoque se aceitamos o culto dos Orixás, sabemos então exatamente a quesanto nos devotar e que com isso conseguimos parar o motorzinho da pa-ranóia. Dito de outra forma, o candomblé vem de uma certa maneira orga-nizar, codificar, ritualizar esta perseguição, vem dar conta desta figura doOutro como ameaçadora - mas e sómente se - aceitamos por outro lado, virmoldar nosso eu inteiramente segundo a imagem deste Outro prêt-à-porter

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candomblé propõe é o emblema daquilo com o que lidamos na sociedadebrasileira quer ela seja leiga ou católica. E penso que é justamente por issoque o candomblé dá certo.

A primeira coisa a saber é que o candomblé é um mundo de hierar-quias, comandado por regras severas, muito rico do ponto de vista ritual elitúrgico e reservado aos iniciados, em todo o caso no que concerne oscultos privados às divinidades.

Segunda coisa boa a saber é que na África o Orixá é a aliança entreum antepassado longíquo, fundador da linhagem familiar e uma força danatureza. Neste sentido os Orixás são deuses de clãs que viveram a vidaterrestre e que foram divinizados depois da morte.

Quando se passa da África para o Brasil, os clãs desaparecem naconfusão, na mistura das etnias já que a escravidão vem detruir a socieda-de tribal. No Brasil, os Orixás parecem manter seus mitos de antepassadosdivinizados mas em contrapartida perdem suas características de chefe delinhagem para aparecerem então, únicamente, como personificação dasdiversas forças da natureza.

Esta parece-me ser uma mudança importante na medida em que osujeito no Brasil vai ter que se encarregar sózinho do culto do Orixá, o seu,em seu próprio nome. Não é mais a tarefa da família, do clã, mas encargodo indivíduo. No Brasil se o ritual dá lugar aos antepassados, o sujeito che-ga sem capital. A instauração dos antepassados da linnhagem é o resulta-do da iniciação. É preciso entender que no Brasil quando alguém chega porqualquer razão que seja no candomblé (e pode ser uma razão terrível comoesta descrita por Roger Bastide : « você está doente de uma dessas doen-ças estranhas que lhe consomem como um monstro do interior, que lhefazem rir ou chorar sem motivo ou correr como um louco ?É que um Orixájá preparou seu ninho nos ramos entrelaçados de sues órgãos ») a primei-ra questão colocada é a questão da filiação. De que « santo » ele é filho ? Aquem pertence sua cabeça ? Podemos pensar que a partir deste momentoinstaura-se uma filiação mítica, mistica, redobrada pelo laço social estabe-lecido dentro do « convento » (pai-de-santo, mãe-de-santo, irmão de san-to). Enfim uma filiação, uma árvore genealógica, mitos e legendas.

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por ele, de ser engolido na sua guela. »Viver é muito perigoso e é preciso beber água de todo rio. Riobaldo

tinha razão e o personagem de O Matador também. O que esta escriturapermite articular a partir deste corte entre S1 e S2 é uma figura do Outrocomo ameaçador e compósito. Ameaçador pois S1 não está em relaçãocom S2,não vem controlar as « forças obscuras », e compósito porque estaescritura vem instaurar uma heterotopia que Melman comenta largamenteno texto intitulado O Complexo de Colombo e que ele analisa de uma ma-neira ainda mais radical em semináros mais recentes nos quais ele desenvolea idéia de que a América Latina é o futuro da Europa.

Se admitimos a desagregação do Simbólico ou se vocês preferirema falência do discurso em controlar o Real, a questão é para mim a deinterrogar o lugar do Imaginário na subjetividade instaurada pela coloniza-ção.

Este longo caminho pareceu-me impor-se para sensibilizá-los à ma-neira pela qual isso responde não só no Real mas também no registro doImaginário. Podemos pensar que a questão do discurso sobre a mestiçagem,a mistura, seria uma maneira de responder a este corte entre S1 e S2 ?Uma maneira de se virar com isso ? De compor com isso ? Porque, naverdade, podemos pensar que é isso que vem manter a unidade nacional.O imaginário nacional é alimentado por esse discurso da mestiçagem. Comodiz muito bem Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro, « a mestiçagem noBrasil não é punida, é louvada ». Ainda segundo ele, dada a transfiguraçãoétnica imposta pela destribalização forçada do índio, pela desafricanizaçãodo negro e pela deseuropeização dos brancos, « estamos condenados ainventar uma nova etnicidade englobadora de todos eles ».

Há também a questão da fortuna do Barroco na América Latina. Se «o Barroco coloca a questão do heterogêneo com a acuidade da ordem darazão » como nos dizia Christiane Lacôte em sua conferência, se a subjeti-vidade barroca não pode ser pensada em termos de dialética, de contradi-ção mas antes em termos de hiato, podemos compreender porque ele tevetanto êxito em nossas terras. Por outro lado, é preciso dar ouvidos ao quediz Lezama Lima se queremos compreender o lugar do barroco na América

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que é o Orixá.Ainda uma pequena observação sobre o candomblé para falar muito

rapidamente do sincretismo religioso do qual ele foi objeto ou o fruto, já nãosei muito bem.É verdade como disse antes, que este culto foi durante muitotempo proibido e que a religião católica era a única a ser admitida.Explica-se então o sincretismo, que cria uma correspondência entre os deuses daÁfrica e os santos católicos, como sendo a única maneira de fazer sobrevi-ver mesmo de forma mascarada, o culto dos Orixás. Porém os própriosantropólogos concordam em dizer que esta correspodência era baseadaem detalhes superficiais que relacionavam certos aspectos característicosdos deuses com certos detalhes das imagens que representavam os san-tos. A assimilação era apenas aparente. O mais interessante é que os an-tropólogos chegam a dizer que uma vez suspensa a interdição do culto« os negros nascidos no Novo Mundo e criados num igual respeito pelasduas religiões terminaram por considerar o sincretismo afro-católico comosendo uma realidade ». A nuance me parece aqui digna de nota !

Então, será que com isso, com o candomblé e o sincretismo, pode-mos dizer que matamos dois coelhos com uma cajadada só ?

Este longo caminho para sensibilizá-los a uma escritura que vocês jáconhecem, escritura proposta por Charles Melman há dez anos atrás numtexto que se chama Casa Grande e Senzala : S1 | S2

$|aGostaria de retomar ainda uma vez esta escritura para me deter, no

que diz respeito à questão do Outro na América Latina, neste corte entreS1 e S2 inscrito pela barra vertical. Atiro a atenção de vocês para o fato deque esta escritura não é a escritura de um discurso a mais e nem mesmosimplesmente de um discurso, pois ela não está apta a produzir laço social,o que é próprio de todo discurso. A meu ver, esta escritura seria antes aescritura da falência do discurso. Quando Melman comenta esta escrituraele diz o seguinte :

« Neste dispositivo que eu escrevi no quadro, o Outro é sempre ogrande Outro, sempre ameaçador, sempre habitado por forças obscurasque o mestre não conseguiu civilizar.Corro sempre o risco de ser absorvido

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Gostaria de concluir com um comentário do poeta brasileiro Manoelde Barros sobre Guimarães Rosa : « Precisamos de um escritor como você,Rosa,para frear com a sua estética, sua linguagem calibrada, os excessosde natural. Temos que enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, aponto que esse verbo possa transfigurar a natureza. Humanizá-la. »

Quando li esse trecho pela primeira vez, fazem alguns anos, anoteinum canto da página : a questão de Rosa é a de apreender o Real por umexcesso de sentido, por um excesso de Imaginário injetado na língua ; é aquestão do real que induz a forma literária.

Vale,se vale.Paris,maio de1999.

Bibliografia :

Melman, Ch., Le complexe de Colomb, inD’Un inconscient pos-colonial s’il existe,Paris,AFI,1995Melman, Ch., Casa Grande e Senzala inD’Un inconscient pos-colonial s’il existe,Paris,AFI,1995Lacôte C.,Fortune du Baroque inD’Un inconscient pos-colonial s’il existe,Paris,AFI,1995Bastide R., O Candomblé da Bahia, São Paulo, Editora Nacional, 1978Bastide R.,Images du nordeste mystique en noir et blanc,Paris, PandoraEditions,1978Fuentes C.,Le sourire d’Erasme, Paris, Gallimard,1992Rosa, João Guimarães, Grande Sertão :Veredas,Rio de Janeiro, 1984Rosa, João Guimarães,Diadorim, Paris, Albin Michel,1991Barros, Manoel,O livro das Ignorãças, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1994Bonnefoy, Y.direção,Dictionnaire des mytologies, Paris, Flamarion,1981Ribeiro, Darcy, O povo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1990Lima, JoséLezama, Oppiano Licario, Paris, Seuil,1991Gruzinski, S., La pensée métisse, Paris, Fayard,1999Melo, Patrícia, O Matador, São paulo, Companhia das Letras, 1995

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Latina. É preciso lê-lo, ele que chama o barroco americano « Nosso SenhorBarroco » e o erige em a « Arte da Contra-conquista ». E o que é a Arte daContra- conquista ? É « a criação de uma cultura indo-afro-ibero-america-na, que não anula mas que ao contrário amplia e reforça a cultura do Oci-dente mediterrâneo na América. Trata-se de um barroco doloroso : ele seapresenta como uma abrogação sincrética, como lugar aonde os Deusesantigos podem encontrar o novo Deus católico e aonde o sexo pode sereconhecer na morte ». É também uma busca silenciosa da identidade na-cional. Segundo Severo Sarduy, Lezama nunca pensou buscar fora da ima-gem o que constitui o substrato de Cuba. O projeto de Lezama é « construirum sistema poético fundado na imagem »., projeto no qual a única certezaé que « o impossível é englutido pela imagem como infinita possibilidade,pela luz do possível, sempre susceptível de se multiplicar em côr ».

Será que podemos pensar então em termos de poder daimagem ?Será que é forçando a carta do imaginário que tentamos controlareste Real múltiplo em relação ao qual o verbo parece falhar ?

Será que não é esta heterotopia que nos faz ter dois sobrenomespara no final das contas ser o nome o que conta ? Eu notava quanto a istonum outro trabalho, que o nome próprio no contexto da colonização pareciaperder esta função de indicar um lugar originário do sujeito, de lhe garantirum lugar simbólico no Outro, como se não tivéssemos sido adotados numaoperação simbólica de nominação. Acrescentava na mesma ocasião, queo apelo ao pai imaginário só podia ser então mais gritante. É disso que setrata nas rezas de Riobaldo ? É disso que se trata na proliferação das sei-tas no Brasil ?

Se para nós, o início não era o verbo mas a falência do discurso quea colonização instala, o que dizer do depois ? Depois, é um laço socialsustentado pela violência, é a tomada do poder com instrumentos reais,mas é também um Imaginário transbordante cujos efeitos penso que aindanão começamos a medir. O que está em jogo é a maneira como enoda-seRSI, e o papel que cada registro, Real, Simbólico e Imaginário passa a ter.A minha aposta é que talvez a escritura desse nó, quiçá particular, possanos auxiliar numa leitura da nossa realidade clínica e social.

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com o mesmo destino: fundar uma identidade própria que se opusesse aopoder, ancorada em um traço de igualdade.

Vários autores, de diferentes campos do saber, dedicaram-se à des-crição do que é ser brasileiro, através da acentuação de alguma qualidadepsicológica ou caracterológica. Por exemplo, a interpretação naturalista dizque o brasileiro é alegre, cordial, preguiçoso, malandro, pouco sério, contraa moral civilizada, em função de características de raça, sexualidade, entreoutros. Já a interpretação histórico-crítica considera um único elemento,como por exemplo, o preconceito de raça, o patriarcado, a mentalidadecolonial, para generalizar e garantir a identidade “original” brasileira.

O que é ser brasileiro? Ser brasileiro é o mesmo que ser seringueiro,mineiro, carvoeiro. É aquele que explora o produto que lhe dá o nome. Aorigem da palavra brasileiro está na designação que se dá àqueles queexploravam o pau-brasil, donde também, depois, se originaria o nome Bra-sil. Porém, o nome Brasil já existia muito antes, por volta do Século IX, nacartografia européia que designava ser este o nome de uma ilha paradisíacado Atlântico. Poder- se-ía argumentar, então, que associar o nome brasilei-ro ao ato de exploração, esquecendo que o nome Brasil já existia muitoantes, seria atender a este caráter exploratório/capitalista que, muitas ve-zes, se insiste em colocar na origem da nação?

Voltando à questão anterior: o que é dos brasileiros, na medida emque o produto que, supostamente, lhes dá o nome não existe mais? Essa éa pergunta de quem se vê acossado a dar conta de uma identidade nacio-nal, partindo de uma extinção, uma falta, uma ausência. A busca de umaidentidade nacional pode gerar saídas como a de rejeitar tudo o que é ex-terno, com a conseqüente busca de uma originalidade interna. Mas, comodiz Octavio Souza, “... a diferença não se presta a fundar identidades.”Essa identidade – baseada na diferença – seria buscada na contraposiçãoao modelo europeu: ser diferente dele, ou seja, rejeitar o que vem de fora e,talvez, na mesma medida, salientar ufanisticamente uma característica pró-pria.

A busca da identidade nacional baseada na diferença é, por vezes,levada a uma intensidade tal que alguns autores, como, por exemplo,

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“O QUE É SER BRASILEIRO 500 ANOS DEPOIS?”

Carmen Backes

“Seu filho, crioulo, nascido na terra nova, racialmente puro oumestiçado, este sim, sabendo-se não-africano como os ne-gros boçais que via chegando, nem branco, nem índio e seusmestiços, se sentia desafiado a sair da ninguendade, cons-truindo sua identidade. Seria, assim, ele também, umprotobrasileiro por carência.”

Darcy Ribeiro

Em fins do século XV, os povos peninsulares enfrentavam-se comuma campanha de expulsão das minorias étnicas e religiosas. De-pois de ter convivido durante anos com diferenças de todas as or-

dens, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição encarregou-se de afugentarpara o Novo Mundo aventureiros, comerciantes e conquistadores que, jun-to, trouxeram os impuros de sangue, os hereges, os desterrados.

Os colonizadores impuseram ao Novo Mundo conquistado um siste-ma econômico – baseado na exploração –, dogmas religiosos e um estilode vida, e também para cá transferiram suas leis discriminatórias: os cha-mados impuros, hereges e desterrados continuaram tão discriminados comono Velho Mundo, acrescidos aqui, ainda, dos índios e negros. A missãocivilizadora a que os conquistadores se propuseram respondia a seus inte-resses de expansão econômica, que implicava a destruição do que se apre-sentava como diferente.

O Brasil estaria, então – desde sempre e numa tentativa de livrar-sedesses modelos discriminatórios dominantes –, defrontado com um grandedesafio: construir uma sociedade onde os impuros, os diferentes, os ou-tros, fossem todos iguais – como apregoava o espírito catequista e comoditava a herança deixada por espanhóis e portugueses que resistiram, nãosucumbindo à dominação. Enfrentado com a intolerância que desejava pre-servar a identidade, a pureza da raça, entre outros aspectos, viu-se depois

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II“Uma coisa é saber da história segundo historiadores, e outra é vê-la

através dos olhos que a viram.” Essa bela frase abre o catálogo alusivo àexposição da obra do pintor holandês Albert Eckhout (integrante da cortede Maurício de Nassau, que governou o Brasil entre 1637 e 1645), realiza-da na XXIV Bienal de São Paulo, que traz à tona, nas suas telas sobre ocotidiano brasileiro, todo o imaginário do nascedouro do Brasil e parte des-sa história. Estes originais permanecem até hoje no Museu Nacional deCopenhague e são tidos, oficialmente, como o testemunho mais antigo quese conseguiu resgatar sobre os primórdios da colonização.

“Não existem reencontros imediatos com o passado, como se estepudesse voltar no seu frescor primeiro, como se a lembrança pudesse agar-rar uma substância, mas há um processo mediativo e reflexivo, um cuidadode fidelidade teológica e/ou política a uma promessa de realização sempreameaçada, pois passada no duplo sentido de vergangen (passado/desapa-recido).” (GAGNEBIN, 1996,p.17)

Embora concordemos com Gagnebin, será que a busca ansiosa pe-los originais, a procura do fato correto, a ânsia de saber o que realmenteaconteceu, o resgate integral da história, sem permitir nenhuma invençãoou reformulação, também não diria respeito às atuais reescrituras da “fun-dação do Brasil”, junto com a “paixão pelas datas redondas” – quinhentosanos? A tela pintada “naquela época”, assim como os documentos rigoro-samente resgatados e compilados, mais do que outras coisas, nos permiti-riam visualizar aquelas imagens/memórias brasileiras. As lacunas que teri-am ficado, obras do esquecimento ou do recalque, funcionando como ver-dadeiras manchas para uma imagem total, precisariam ser completamentepreenchidas.

Antes de Eckhout e mesmo antes do descobrimento, várias “ima-gens” nos são fornecidas sobre o nascimento da América e, posteriormen-te, do Brasil. A viagem de Colombo, iniciada em outubro de 1492, umaviagem reta, sempre para a frente, como a grande metáfora da modernidade,funcionando como paradigma para o sujeito moderno, igualmente diz res-peito ao fim de um mundo fechado e ao abandono “da casa materna e

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DaMatta chegam a sugerir critérios quantitativos de comparação entre po-tenciais econômicos de diferentes países. De acordo com esses critérios, oque diferenciaria um inglês de um francês, por exemplo, seria unicamente otamanho de seus cofres. O Brasil, segundo ele, deixaria sempre a desejarnos critérios quantitativos, mas teria a vantagem dos critérios qualitativos,que levariam em conta “a comida deliciosa, a música envolvente, a sauda-de que humaniza o tempo e a morte e os amigos que permitem resistir atudo”. Ora, qualquer país poderia ser medido pelos critérios qualitativos, enão só o Brasil. Porém, o mais delicado dessa questão da qualidade é queela faz retornar a fundação da identidade no exotismo, tema esse muitobem trabalhado por Octavio Souza em Fantasia de Brasil (1994).

Haveria uma posição subjetiva que fosse comum a todos? Essa per-gunta pareceria apontar diretamente para a busca da identidade, ainda queela se fundasse em uma “posição subjetiva”, conceito esse que tambémprecisaria ser melhor definido. Talvez pudéssemos pensar, não em dar umaresposta sobre a dúvida quanto à identidade, mas em fazer uma análisedos avatares identificatórios na história brasileira, levando em conta que oprocesso que resulta na homogeneização é uma empresa do poder, princi-palmente do colonialismo.

Octavio Souza também comenta que “os diversos critérios propos-tos para o estabelecimento da identidade nacional ao longo da história nun-ca foram amplos o suficiente para incluir o diverso das manifestações cultu-rais do país”. Caberia acrescentar ainda que, talvez mesmo sendo bastan-te amplos, não atingiriam esse “tipo ideal e total”.

“A inscrição dos sujeitos, homens ou mulheres, no discurso do Ou-tro, não é rigidamente fixada. Ela passa por modificações ao longo da histó-ria que (...) alteram certamente o uso da língua e, com isso, os lugares quea cultura confere aos sujeitos.” Que os brasileiros ocupem ora um lugar,ora outro

“depende, em última instância, das ‘práticas falantes’, que, por suavez, correspondem a tentativas de responder a deslocamentos ocorridosna sociedade ao longo do tempo – os quais, estes sim, escapam ao contro-le das vontades dos sujeitos.” (KEHL, 1998, p.29),

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conquistada a partir do original europeu, talvez funcione como a “imagemapaziguadora”, da qual nos fala Caillois, ou seja, aquilo que buscamos paraacalmar nossa ânsia pelo ser. Porém, o que também nos diz este autor, éque esta imagem alcançada só se consegue numa “despersonalização”,ou que, “a vontade do ser de perseverar em seu ser, se consome exaltan-do-se e o atrai já secretamente em direção à uniformidade que escandalizasua imperfeita autonomia.” (CAILLOIS, 1986, p.68)

Três dos quadros de Eckhout no catálogo citado não retratam a “na-tureza” do Brasil menino, mas sim a imagem de negros do Congoempertigados em roupas nobres européias – veludo com enfeites de ouro eprata, gibão de brocado e chapéu de pele de castor, ornado com plumasvermelhas. Estas pinturas, talvez, hoje, nos remetessem aos “napoleõesretintos” do carnaval de Chico Buarque, numa referência às esdrúxulascópias do modelo original.

No retorno da corte de Nassau para a Holanda, sua casa em Haia –cuja construção iniciara antes da vinda ao Brasil – estava pronta. Prontapara a festa “em que índios tapuias, por ele trazidos, executaram, nus,danças selvagens que chocaram a modéstia puritana. (...) O salão de en-trada tinha o teto pintado com as aves da terra [do Brasil] e, das paredes,pendiam os painéis de Eckhout.” (VALLADARES; M. F., 1998, p.22)

BIBLIOGRAFIA:CAILLOIS, Roger. Mimetismo e Psicastenia Legendária. Che Vuoi?, São Paulo,v.1, n.0, 1986.DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco, 1986.GAGNEBIN, J. M. Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janei-ro, Imago, 1997._________. História e Narração em W. Banjamin. São Paulo, Perspectiva, 1994.KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. Rio de Janeiro, Imago, 1998.RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.SOUZA, Octavio. Fantasia de Brasil. São Paulo, Escuta, 1994.VALLADARES, Clarival do Prado; MELLO FILHO, Luiz Emygdio de. Albert Eckhout: Presença da Holanda no Brasil, Século XVII. 3.ed. Rio de Janeiro, Alumbramiento,1998.

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paterna”. Usando essa metáfora filial, também poder-se-ia pensar no Es-treito de Gibraltar como a alegoria da saída uterina. A descoberta do NovoMundo já estava carregada, de antemão, de todo esse imaginário fantásti-co, cercado de imagens nebulosas e paradisíacas.

As imagens, as fantasias, os fatos relatados, lidos ou transmitidos degeração para geração, as peças dos museus, dão conta da tentativa derestituição de um passado mais ou menos vergonhoso, mais ou menosbrilhante, mais ou menos imperativo, mais ou menos cerceante para o su-jeito. Esse é o grau de liberdade que resta a cada um: articular sua históriade uma forma singular. Talvez se pudesse dizer que a escolha das ima-gens, dos fatos e das peças não depende do gosto ou da vontade...

A busca incessante pela identidade pode ser contraposta com a ques-tão da pregnância da imagem no Brasil. Para isso, são oportunas as pala-vras de SOUZA (1994, p.188-189):

“... qualquer identidade só pode ser procurada no registro do visível,da mostração de uma uniformidade que, só podendo ser adquirida no regi-me do gozo, embota o fazer das pluralidades construtivas de qualquer so-ciedade. Oposta à requisição de identidade, coloca-se a possibilidade dereferência ao ‘um’ nacional que, ocupando para a nação o lugar que o idealde ego ocupa para o sujeito, inaugura um campo do dizer, e de todas asinstâncias nas quais a pluralidade dos dizeres podem sustentar um fazercoletivo que leve em conta a comunidade de destino que nos faz povo, enão massa. No entanto, uma tal referência não pode ser buscada, nemmuito menos mostrada, pois é apenas eficiente, não manifesta. É o caso depararmos de querer ser brasileiros, pois brasileiros já somos, para o pior oupara o melhor. O importante é recusarmos expressar nossa singularidadede modo simplesmente visível. Não se trata de mostrar o que nos constitui,mas sim de falar a partir disso.”

Segue SOUZA (1994) dizendo que identidade e imagem são solidá-rias, questões com as quais o brasileiro se vê às voltas, pareceria quedesde seu “nascimento”.

Porém, pode a imagem auferir identidade? Talvez somente na suacondição mimética que, evidentemente, não se reduz à imitação. A mímeses

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BELTRÃO, C. e FLEIG, M. Barroco missioneiro...

em decorrência da ação dos invasores e de outro lado o missionário jesuí-ta, cuja posição subjetiva já é antecipada por Francisco de Borja, quandoalerta o Pe. Provincial sobre o fascínio pelo martírio e aconselha precau-ções:

“Não se exponham facilmente a perigo notável de vida entre gentenão conquistada, porque embora seja proveitoso para eles [os missionári-os] morrer logo nesta busca do divino serviço, não seria útil para o bemcomum pela muita falta que há de operários (...).” (Suess, 1992, p. 562)

A expressão “morrer logo nesta busca do divino serviço” destaca adinâmica da entrega do corpo enquanto corpo crístico, e isso nos apontapara o elemento central da estrutura fantasmática barroca, e que perpassaigualmente a obra do Pe. Antonio Ruiz de Montoya, A conquista espiritualda América (1639), o texto mais antigo sobre o sul do Brasil, escrito emestilo barroco e fruto da ação efetiva em favor da libertação do índio. Essetexto era endereçado ao Rei de Espanha, para que autorizasse aos indíge-nas o uso de armamentos em defesa contra os ataques dos paulistas eencomendeiros espanhóis.

Ao descrever o martírio do Pe. João del Castillo, Montoya não sepoupa de detalhes sádicos, bem ao estilo corrente dos escritos da época,que se prestam a elevar ainda mais a alma ditosa do supliciado: “Cansa-ram-se os algozes em arrastá-lo, sem que se cansasse o santo em tormen-to tão cruel.” (p. 228). Em contrapartida, a morte no leito era indesejável,como ocorre com o Pe. Martinho Urtazun. “Lastimava-se por morrer emleito, que não passava de um colchãozinho e duma rede: o que ele julgavaser muito regalo, porque queria morrer arrastado e feito em pedaços porJesus Cristo.” (p. 71) Alguns meses após sua morte, numa aparição paraum missionário desesperançado diante dos trabalhos entre os gentios, ani-mando-o a perseverar, lhe diz: “Desta glória gozam aqueles que trabalhampor Deus.” (p. 72)

Logo o outro goza quando está a serviço do Outro, quer seja naentrega do corpo na posição do missionário, apontada no texto de Borja, naexpectativa de morte por martírio ou na intenção de conseguir que o indíge-na se entregue ao gozo de Deus, como aparece na carta do Pe. Roque

SEÇÃO TEMÁTICA

BARROCO MISSIONEIRO: TRAÇOS QUE INVENTAM O BRASIL

Conceição Beltrão e Mario Fleig

A fundação simbólica do Brasil, objeto de extensos estudos, não éum feito unitário, mas se trata de um processo no qual devem serconsideradas muitas fundações, sustentadas pela matriz do discur-

so barroco, pelas utopias milenaristas que tomavam o espírito ibérico epelas forças da Contra-reforma.

Nossa pretensão não é fazer um ensaio histórico e muito menosantropológico, mas apenas levantar algumas hipóteses a respeito dos efei-tos subjetivos da conquista espiritual da América através de uma pérolabarroca que é o fantasma do missionário jesuíta, primeiro europeu a pene-trar e se estabelecer no sul do Brasil.

Embalados pelas ondas do Atlântico e sob à Instrução do Geral daCompanhia de Jesus, Pe. Francisco de Borja, desembarcam nas terras doNovo Mundo os Jesuítas encarregados da Conquista Espiritual da Améri-ca. Uma parte desse projeto de fundação, são os Trinta Povos da ProvínciaJesuítica do Paraguai, que se localizava na Bacia do Rio do Prata ecorresponde atualmente a parte do território do Paraguai, Brasil e Argenti-na. Esses povoados iniciam no século XVI (1607), em terras então perten-centes à Espanha, de acordo com a divisão determinada pelo tratado deTordesilhas (1494), firmado entre as coroas ibéricas, e se encerra em de-corrência do Tratado de Madrid (1750), com a redistribuição de territórios,que provoca o enfrentamento bélico dos indígenas contra os exércitos ibé-ricos unidos. O início do fim (1768) do projeto jesuítico se dá com a expul-são dos jesuítas e o genocídio dos índios catequizados.

A conquista espiritual, protagonizada pelos jesuítas, contrariamenteà conquista armada, se faz essencialmente pela persuasão. Quanto à ques-tão da violência, podemos concordar com Hegel, que o encontro de cultu-ras não acontece sem violência. Mas nesse encontro específico, temos deum lado as populações indígenas, povo semi-nômade, disperso e indefeso

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nada mais que os padres em sua condição humana de pregação com seuspesados hábitos e seus gestos rituais. Os corpos e as vestes voluptuosasficam por conta dos missionários. Se assim era, então o que sustentava aposição de poder dos missionários, mesmo sendo tão poucos em cada umdos Povos? Os indígenas, na descrição de Montoya, não eram nada ingê-nuos, tolos ou bons selvagens, mas homens espertos e capazes de perfí-dia, cujas elites negociaram, através dos missionários, a condição de súdi-tos do Rei. Nos Trinta Povos não se encontrava a riqueza mineral que ca-racterizou o barroco tanto no restante do Brasil como em outras partes daAmérica. Mesmo assim, a opulência arquitetônica foi construída, apesar dagrande escassez de ferramentas. Consideramos que aquilo que sustentapor 150 anos esse projeto educacional diz respeito ao caráter fantasmáticoinscrito pelo missionário. Montoya refere episódios de chefes indígenas re-negados que repetiam os rituais e gestos episcopais, em templos construídosfora dos redutos da catequese, em sincretismo com sua própria religião.Nos martírios descritos por Montoya, os índios rebeldes queriam destruiros objetos sagrados (a voz do missionário, os ornamentos e paramentos eigualmente os objetos do culto, como a patena e o cálice). Essas duassituações apontam para aquilo através do qual o poder dos missionáriosera sustentado: a voz e o escópico.

Ao ler Montoya, encontramos a mesma fantasmática do missionário,em sua entrega sacrificial a Deus, também na descrição de casos particula-res de possessão demoníaca, pequenos atos infracionais do cotidiano, in-duzidos por um demônio enganador, nos rituais de canibalismo dos indíge-nas, bem como na invasão de bandeirantes e encomendeiros, na capturade índios. Em todos esses relatos, retorna sempre o mesmo fantasma daescravidão, de um corpo despossuído de poder sobre seu destino e postoa serviço do gozo do Outro. Isso resulta numa posição de proteção diantedo desamparo. Talvez seja pela mesma posição diante do desamparo queo indígena se deixava tomar pelo fantasmática barroca do missionário. Po-demos lembrar também do que correntemente se chama a “conversão doduque de Gandía”, que ao ver os estragos que a morte produzira na belezae juventude de Isabel de Portugal, imperatriz da Alemanha e rainha da

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Gonzalez, na qual escreve também que já tem ciência que vai ser martiri-zado:

“Porque é certo que Nosso Senhor tomou este meio (o temor e medodo espanhol) por seus desígnios secretos para que esses pobres cheguema seu conhecimento e se faça algo com eles. Não penso outra coisa emquase quarenta anos que lido com eles muito de perto.” (Suess, 1992, p.968)

Voltando aos fundamentos da constituição do fantasma missionário,na posição de conquistador espiritual, encontramos os elementos propos-tos pelo Concílio de Trento, que resultam na cena barroca. Como nos de-monstra Cacho (1995), a posição conciliar sobre a necessidade das obrascontra a justificação (isto é, a salvação do cristão) apenas pela fé (posiçãoda Reforma) e sobre a iconografia religiosa determinam o surgimento dobarroco. Desse modo, é explícita a relação entre a arte barroca e a militânciacatólica da Contra-reforma: Afirmação da criatura, das obras e da tradiçãoeclesial contra a posição luterana que propunha soli Deo, sola fides, solaScriptura.

Lacan propõe uma definição do barroco que vem em nosso auxílio:“O barroco é a regulação da alma pela escopia corporal.” (Lacan, p. 158) Aescopia corporal é aquilo que aparece, que se faz visível através da ence-nação, da obra, enfim, da arte, é o que vai regular a alma, isto é, determinara subjetividade barroca, seu ser. Não há oposição entre aparecer e ser. C.Lacôte (1995) retoma o barroco, mostrando como a aparência implica oser, caracterizando uma concepção de verdade barroca que não exclui aaparência. A insistência da Contra-reforma nas obras e nos gestos estabe-lece uma seqüência lógica: imitar os gestos, fazer os gestos e induzir o ser.

No barroco missioneiro, somente nas obras reconhecidas como dejesuítas, principalmente do Irmão Brassanelli, que esculpiu o majestosoSão Francisco de Borja, e nas esculturas indígenas copiadas de modeloeuropeu, encontramos as contorções de dor e êxtase. Entretanto, quantomais o indígena se distancia do modelo, mais encontramos feições pláci-das sem o enlevo do gozo frente à agonia, não conseguindo reproduzir oimaginário artístico da Contra-reforma. Esculpiam o que viam da santidade,

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Rei e a Deus. É essa posição do Outro, enquanto aquilo que constitui osujeito, nos permite ler a fantasmática do missionário: “Desta glória gozamaqueles que trabalham por Deus.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCACHO, Jorge. “La grâce du baroque est-elle l’oeuvre torse du concile deTrente?” In: D’un inconscient post-colonial, s’il existe. Paris: AFI, 1995, p.371-391.KERN, Arno Alvarez. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: MercadoAberto, 1982.LACAN, Jacques. Mais, ainda. Seminário 20. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.LACÔTE, Christiane. “Fortunes du Baroque”. In: D’un inconscient post-co-lonial, s’il existe. Paris: AFI, 1995, p. 325-345.LOYOLA, S. Inácio. Exercícios espirituais. Porto Alegre, 1966.RUIZ DE MONTOYA, Padre Antônio. A conquista espiritual. 2ª ed. PortoAlegre: Martins Livreiro, 1997.SUESS, Paulo. A conquista espiritual da América Espanhola. 200 docu-mentos - Século XVI. Petrópolis: Vozes, 1992.

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Espanha, se firmou nele o propósito de renunciar ao mundo, vindo a serSão Francisco de Borja.

A representação do êxtase, da agonia e da existência do cadavéricona morte, são elementos emergentes no imaginário do século XVI e queencontram sua representação nas artes, na literatura e no culto religioso.Frente a esse real, dá-se a entrega do corpo ao Outro, numa tentativa degarantir uma barreira simbólica através do bem e do belo. Duas formas deentrega do corpo ocorrem na conquista da América: a entrega pelo martírioou a entrega no combate armado, como ocorrera também nas Cruzadas.Importa observar que em ambos os casos o europeu atravessou o oceanomovido por essa mesma fantasmática. Essa é a regulação da subjetividadepela doutrina cristã que “não fala senão da encarnação de Deus num cor-po, e supõe mesmo que a paixão sofrida por essa pessoa tenha constituídoo gozo de uma outra.” (Lacan, 1982, p. 154) Entre outros tantos ditadospopulares semelhantes, há no Brasil um que diz: “Para que um goze, outrotem que sofrer”. Isso revela a lógica da alma barroca. Existe uma grandediferença entre ter construído o palco do cristianismo barroco e já ter nasci-do cristão e barroco. A história da fundação do Brasil nos remete ao proble-ma da filiação na modernidade e ao problema crucial na clínica psicanalíti-ca: onde não há um pai, é possível inventá-lo?

O barroco missioneiro, e o mesmo também pode valer para o barro-co no Brasil e na América, oferece uma escrita resultante da arte retórica,plástica e musical trazida pelo europeu que se compõe às formas peculia-res de escrita tribal. A enebriante beleza da composição cênica do barroco,mesclada à primitividade do indígena artífice não deve nos paralizar numexame de suas manifestações no elo do imaginário. A exuberância do ima-ginário presentifica o real enquanto morte e desamparo, do europeu herdei-ro das grandes pestes e do indígena confrontado com o risco das novasepidemias. A composição de tradições e referências antagônicas atravésdo imaginário barroco permitiu o surgimento de novas formas de operaçãoda função paterna. É isso que sustentou a comunidade missioneira, quenão era uma “república guarani” e muito menos uma simples transposiçãode utopias renascentista, mas a construção de uma coletividade referida ao

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JERUSALINSKY, A. A psicanálise e o cocar...

mártir, mera resignação sem perspectiva. É exatamente nisso que reside apequena diferença entre os atos de “entrega”, do Tché Guevara, no mo-mento de sua execução, e o dos judeus do Holocausto no momento deentrada nos “banhos”.

A pequena diferença, já que ambas passagens do sujeito se consti-tuem no ato diante da impossibilidade de se sustentar numa fala diante oOutro. Essa mesma pequena diferença entre os 2000 tenochkas que nemtentaram fugir quando os conquistadores de Hernán Cortés os massacra-ram na Noite Triste de México, e o grito desafiante de Tupac Amarú quandoos descendentes de Francisco Pizarro deram a ordem de partida aos qua-tro cavalos que o esquartejaram nas quatro direções do Perú.

O desconhecido poeta que deixou sua testemunha sobre a NoiteTriste no códice azteca “Tchilam-Balam”1, escreve: “... o sol já não era osol, nem a lua era mais a lua. Eles haviam matado nossos deuses.” Reve-lava assim o drama do colonizado, sem pai nada fazia mais sentido. Nãohavia mais suporte para a função simbólica necessária que situava os ho-mens e as coisas na cultura.

Prestativos, os colonizadores, vão logo oferecer seu próprio pai. ouseja, seu próprio deus suposto mais sábio, mais verdadeiro, mais correto.Virão os mestres-missionários com seu onomástico de novos nomes paratodo mundo. Com um novo mapa universal do corpo erótico. Com sua va-cas, ferros e santos. E, sobre tudo, com as escrituras que contém todo osaber.

Já não haverá lugar para as penas, os deuses-pássaros, ou os con-tos das sucuris. Quanto mais, a eles estará reservado um lugar nos musséusmas não mais nos céus. Lembrança exótica de até que extremos podechegar o arbitrário do significante para situar a posição do pai, ou até mes-mo de multiplicar-lo.

SEÇÃO TEMÁTICA

A PSICANÁLISE E O COCAR(OS LIMITES ÉTICOS DO DISCURSO COLONIAL)

Alfredo Jerusalinsky

Na obra de Jacques Lacan encontramos que o registro do real severifica no impossível. Esse impossível, porém, não tem uma únicaacepção. A começar pelo impossível fáctico, que se encontra no

conceito de prematuração, no escrito de O Estadio do Espelho onde o limi-te faz borda no corpo. A seguir pelo impossível ôntico do Seminário XI,onde a impossibilidade de junção entre ser e sentido da fundamento à teo-ria da alienação. O impossível lógico, no adendo ao Seminário da CartaRoubada, onde temos a combinatória lógica mínima de quatro como bordainferior a toda e qualquer possibilidade de operação significante. O impos-sível gnósico, no seminário O Saber do Psicanalista, onde fica clara a im-possibilidade de junção entre saber e verdade – algo que já tinha ficadoexplícito no seu escrito Ciência e Verdade. E, por último o impossível ético,no que vai do Seminário XX à XXIII, da fronteira entre o sujeito e o gozo, atéo limite de James Joyce para se representar na língua – reconhecendonisso o antecedente da diferença entre a cegueira de Tiréssias e a de Èdipono Seminário da Transferência, e da distancia entre o amor e o ato, noSeminário da Ética.

Anotações prévias, essas, que nos servem de fundamento para propôrque quando o sujeito não pode suportar-se na ordem significante, ele pas-sa ao ato, num confronto desigual com o impossível en todas as suasacepções. Ato que, nesse viés, constitui uma tentativa póstuma do sujeitode provocar no Outro o traço necessário – ou seja na posição certa – paraassegurar sua persistência. Dito de outro modo, causar no Outro o eco(lálico) que testemunhe (no discurso) da extensão de sua presença subje-tiva para além da existência de seu ser. Se, por um lado, é tal a perspectivado mártir ou do herói, certamente é também a única alternativa da vítimaencurralada nessa impossível escolha entre o abismo ou a loucura. Embo-ra, é claro, sua opção pelo ato seja para ela mesma, contrariamente a do

1 Códice que foi uma das poucas peças literárias produzidas pelos Aztecas que escapou daqueima determinada pela igreja, e que foi encontrado, coberto de pô, na década de 1930numa biblioteca da Bélgica, sem que ninguém possa dar conta de como foi parar ali.

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tência à univocidade dessa identificação: o creol como nova lingua no Caribe,as práticas religiosas mixtas com forte conteúdo de justaposição de diver-sas culturas africanas (Umbanda, Candomblé, Vudú), e a re-introdução daprática das máscaras pela via do carnaval, a transformação da música e dagramática. No que diz respeito à colonização espanhola, a escasa importa-ção de escravos e a prática de extermínio sistemático da população indíge-na impediú a constituição de formas resistenciais de cultura do colonizadooriginário, mas surgiú o gaúcho como forma de afirmação “nacional” dacolónia contra a metrópole.

Quando Charles Melman afirma a impossibilidade da passagem dosignificante que faz a referência ao nome (S 1), para o saber (S 2), nodiscurso colonial – no seu artigo sobre O Complexo de Colombo -2 justifi-cando que na ausencia de pai, a claudicação da função simbólica levaria ocolonizado a uma posição de loucura, já que se veria na necessidade deadotar como próprio um pai e um saber que não lhe são próprios, o quesurge como questionamento é se na inversão da produção da posiçãopsicótica, provocada pela resistência do colonizado e a dúvida do coloniza-dor, não havería, à partir da terceira geração a produçõ de um novo eixo dacultura local.

Eis aqui que queremos abrir uma novo capítulo para a análise dacondição colonial do discurso. Até que ponto aquela dúvida do colonizador,articulada à resistência do colonizado abre as chances para uma nova cul-tura ? É claro que se viermos a responder de modo positivo a essa pergun-ta estaríamos diante da produção de novas formas de saber.

De fato, a cultura européia tende a constituir-se ao redor de um paiúnico (o Papa é seu melhor testemunho) ordenando o discurso numa supo-sição de saber universal. A psicanálise, especialmente a partir de Lacanquestiona a universalidade arsitotélica re-lançando a questão do pai e domestre na sua singularidade.

SEÇÃO TEMÁTICA

Confrontado com tal estranhamento, até que ponto chega a certezado colonizador acerca de seu próprio Deus ? Logo após as primeiras déca-das de paranóia, surge a tolerância para a mixenagem dos símbolos. Obarroco toma as frutas locais. Os santos mostram rostos de pretos e índios.O paraíso vira floresta. O diabo veste armadura. Tolerância ou dúvida ?

A prática de terra arrasada e de extermínio que caracterizou a pre-sença do colonizador em América à respeito da população que já se encon-trava nestas terras, adquire algumas particularidades no que se refere àimportação de escravos. Se no primeiro caso a única chance de substituiruma cultura por outra era a destruição da anterior, no segundo couve orecurso de distribuir os africanos pelos territórios escravagistas tomando aprecaução de dispersar os das mesmas tribos. Impedia-se com isso queconservassem a referência à mesma língua e aos mesmos valores simbó-licos, reduzindo desse modo a resistencia à cultura que o amo pretendiaimpôr. Mesmo os nomes eram trocados, incluíndo-se neles a referência aoamo ou à finca de sua pertença. Cuidadosamente era impedida a constitui-ção da continuidade de uma filiação. E a sexuação tendia a ser substituidapor uma prática sexual reprodutiva, exceto, é claro, quando se tratava desatisfazer o gozo do amo.

Se estabelece assim uma re-montagem da cena feudal através dacasa Senzala. O paizinho passa a ser o fazendeiro, que adquire podermesmo sobre os padres, governando assim também a posição do Deus-Pai.

A convocação da identificação ao amo fica assim irrecusável: priva-dos de sua referência cultural inicial, sem nome, e sem Nome-do-Pai a nãoser o do amo, produze-se inevitavelmente a troca de língua e a troca dereligião. Curiosamente o fanatismo religioso é muito mais acirrado entre osescravos. Isso se explica pela peremptória necessidade de preencher ovazio deixado pelos seus deuses mortos. A ausência de nome leva a efei-tos paradoxais, como por exemplo o acontecido na revolução negra deHaití. Após exterminar todos os brancos da ilha, os negros adotam o nomee sobrenome de seus antigos amos.

Sabemos que os escravos desenvolveram formas culturais de resis-

JERUSALINSKY, A. A psicanálise e o cocar...

2 “D’un Inconscient pós colonial, s’il exist” – Edição da Association Freudiènne Internationalecom a colaboração da Maison de l’Amerique Latine – París – France.

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AS CRIANÇAS E O PARAÍSO

Julieta Jerusalinsky

Ao chegar em casa depois de assistir o filme “A vida é bela” encontrona porta o Jornal “Folha de São Paulo” que situa em primeiro planouma foto de Pinochet e Margaret Thatcher. Alguns dias depois (24/

3) a foto da capa é a de uma criança sentada diante de 2.100 cruzes depo-sitadas diante do Parlamento em Londres para simbolizar as vítimas do ex-ditador Augusto Pinochet.

São nesses momentos que nos detemos a pensar o quê a produçãoartística denuncia de uma verdade social e o quê ela pode com isto nosensinar, para além de uma forçada e pouco produtiva discussão a respeitode qual é “o melhor filme”.

De fato, pudemos assistir por ocasião na última entrega do Oscar a 3filmes: “A vida é bela”, “Central do Brasil” e “Filhos do Paraíso”, um italiano,um brasileiro e um iraniano respectivamente. Chama particularmente a aten-ção o fato de que três filmes, de três diferentes lugares do mundo, tenhamsituado simultaneamente no centro de sua produção artística a questão dainfância. Mas não se trata de qualquer questão relativa á infância, porquecada um, a seu modo, fala-nos do lugar da criança diante de certos eventoshistóricos e sociais: o fascismo italiano, os efeitos da miséria que acaba porsituar muitas crianças em uma exclusão social, e a violência e o rompimen-to de laço social com que se deparam as crianças do terceiro mundo.

Sabemos que “ A vida é bela” é uma ficção, que o que ali ocorre seriaimpossível. Mas isso quer dizer que esse filme nos conte uma mentira? Elenos fala da função dos adultos de manter a infância em um certo âmbito deproteção das violências do mundo. Será que isto é possível?

A produção própria da infância é o brincar, é por meio do brincarsimbólico que a criança pode ir elaborando as diferentes marcas que rece-be da transmissão parental e do social. Freud fala-nos que se trata de rea-lizar ativamente o que se viveu passivamente, e nisto o que está em jogo éa construção de uma versão própria desse sujeito face a essa transmissão.

SEÇÃO TEMÁTICA

A forclusão, quando ela opera – e certamente um processo de con-quista e colonização é um desses casos – provém de um apagamento dafunção simbólica do significante na inscrição fantsmática da terceira gera-ção de antecessores. Curiosamente, quando se trata da imigração assisti-mos ao mesmo fenômeno mas na sua inversa: a terceira geração apareceintegrada na cultura local, abandonado as referências á cultura dos avôs. Éassim que surgem os sujeitos que ocupam de um modo puramente simbó-lico os lugares intermediários entre a população originária da colónia e aimigração de colonizadores: o gaúcho como mixenagem dos colonizadoresagricultores e os indios “pampas”, nómade mas trabalhador. Respresentante,sem dúvida – veja-se a historia da Revolução Farroupilha – de uma nova“nacionalidade”. É assim, também, que se produz a transformação da lín-gua vinda da metrópole e que as práticas religiosas adquirem uma novarefrência mitológica.

Que o colonizador resista o surgimento de novas formas de saber, eaté mesmo a “deformação” que se opera na transmissão dos saberes origi-nários da “madre pátria” demonstram que eles, nesse viés, estão mais dolado de uma lingua exercida como materna que numa posição precisamen-te paterna na transmissão. Por isso, cuando o colonizado recebe a trans-missão de um saber, nem que seja o psicanalítico, sob a forma de umdiscurso materno, não pode fazer outra coisa senão barrar-lo, para que eleopere simbólicamente como uma nova forma de saber. E se o colonizadorse agarra a sua suposta condição de mestre permanente, corresponde entãoo ato de seu corte, nem que os efeitos de esse ato devam esperar por umaterceira geração.

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real da relação sexual fala-nos dos elementos que estão em jogo nela,como a atração, e fala-nos também do laço que une um casal, o amor.Enfim, não é em sua descrição minuciosa que se encontra o suporte sim-bólico de um ato.Certamente esta explicação não será válida para sempree a criança voltará a perguntar, e em outro momento talvez peça outro tipode elementos. O fato é que isto produz um efeito bastante interessante,pois quando uma criança formula uma pergunta é porque está formulandohipóteses a respeito de um fato e requer de novos elementos para confir-mar sua hipótese ou por perceber que há algum elemento que está criandodesequilíbrio cognitivo. Muitas vezes as explicações mais minuciosas cien-tificamente,. longe de possibilitar à criança formular suas hipóteses, aca-bam por paralisar suas investigações.

Quando o pai diz a Josué que o que ocorre no campo de concentra-ção é um grande jogo onde alguns mandam, gritam, perseguem o que eleestá dizendo é uma mentira absoluta? No fundo, o que está em jogo ali nãoé um grande jogo perverso –o do fascismo- onde se trata de usar o poderem benefício do seu próprio gozo subjugando os outro ao seu bel-prazer?

Mas as crianças estão atentas, elas estão á captura do “sentido davida” nos fatos e seus entreditos. Penso no Josué angustiado que em certomomento pergunta (no caminhão que os leva ao campo de concentração)para onde estão indo e diz ao pai – por seu lado, preocupado demais emevitar sofrimentos para levar a sério a angustia do filho- que não está gos-tando, que quer ir para casa que está na hora daquilo terminar. Por sinal,uma criança muito diferente daquela do maníaco final onde afirma, comaprovação da mãe, que venceram. Mas até que ponto um pai pode fazer avida bela ao seu filho?

Lembro de uma inscrição que foi anonimamente pichada na porta deuma instituição em Buenos Aires dedicada ao trabalho com os problemasda infância esta pichação dizia o seguinte: “ o morno vazio das coisas...assinado: os sujeitos”. Essa pichação, com a qual nos encontrávamos to-dos os dias que entrávamos e saíamos da instituição, revelava a nossatarefa, pois justamente se há algo que diz respeito ao campo da infância eletem a ver com tornar este vazio das coisas um pouco mais morno para que

SEÇÃO DEBATES

Melanie Klein vai nos dizer que o brincar na cena terapêutica comcrianças é o que eqüivale à associação livre no adulto: ali ficam em jogo asredes de conexões significantes inconscientes. Ao observar o brincar sim-bólico de uma criança estamos diante de sua rede de representações.

Mas o que diferencia a cena do brincar do fazer dos adultos? Justa-mente o brincar, o “faz de conta” se situa como um ensaio, uma produçãoque não implica o risco. Campo onde a criança pode ir jogando sua identi-ficação, sua filiação e sua sexuação, sem ainda ter que de fato responderpor elas diante do social. No faz de conta pode-se casar, ter filhos, serbombeiro, super homem, pirata, odalisca, princesa, viajante do tempo, pode-se matar e morrer e começar tudo de novo. Pode-se parar a brincadeira nahora em que o lobo vai pegar a chapeuzinho se isto desperta certa angústiaem sua representação.

Mas não se trata de forma alguma de uma produção ingênua, pelocontrario, sabemos quanto o brincar das crianças denuncia – como umaprodução do inconsciente- a verdade familiar e a verdade social.

Por isso mesmo quando falamos de que os adultos oferecem as cri-anças certa proteção diante do sem sentido de alguns acontecimentos davida ou da violência de alguns eventos, o que está em jogo é uma mentira?Se trata justamente de por uma verdade a funcionar mas com um certoanteparo simbólico, com alguns elementos que permitam à criança poderdar conta disso.

Por exemplo, quando uma criança pergunta de onde veio e comonasceu será que é dos espermatozóides que está nos perguntando ou estános perguntando o que ocorreu entre o pai e a mãe que fez com que elenascesse. Em termos simbólicos o que é verdadeiro? Que o pai introduziuo pênis na vagina da mãe, e após certa fricção ejaculou sêmen liberandouma série de espermatozóides que fecundaram o óvulo? Ou que o pai gos-ta muito da mãe, que acha ela muito bonita e por isso o pai presenteou umasementinha que se misturou com outra sementinha da mãe, fazendo umbebê pequeninho e como a mãe também gosta do pai e queria ter um filhocom ele fez com que essa sementinha crescesse em sua barriga?

Esta segunda explicação ainda que não contemple a organicidade

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A BORBOLETA

A última, precisamente a última.De um amarelo tão brilhante .Talvez se as lágrimas do soltocassem a pedra branca...

Tão, tão amarelaVoava, se movia rapidamente em direção ao alto.Foi embora, certamente queria dar ao mundoum beijo de despedida.

Faz sete dias que moro aquiTrancado neste guetoMas encontrei a minha gente aqui,As flores e o branco galho da castanheira do pátio me chamam.Não tenho visto mas borboletas

Aquela foi a últimaAs borboletas não vivem aqui, no gueto.

No campo de concentração de Terezim, além de crianças havia adul-tos, muitos dos quais notáveis intelectuais, artistas e cientistas do seu tem-po. Esses adultos, preocupados com a depressão que tomou conta dascrianças, passaram a lhes propor diferentes atividades, como teatro, jo-gos, oficinas de pintura e literatura, além de aulas das mais diferentes ma-térias escolares das quais as crianças viam-se privadas.

Assim, as crianças de Terezim tiveram aulas com excelentes pro-fessores. Esses adultos, mesmo diante da morte, não renunciaram à suatransmissão, eles tentaram por todos os meios fazer a vida um pouco bela,pois sabiam que manter acesos os sonhos é o único modo de não ficarmorto em vida. E, note-se bem que faziam isto, não desmentindo a verdadeeminente da morte, não simplesmente acumulando as crianças de conhe-

SEÇÃO DEBATES

um sujeito possa advir.Isso está num campo muito diferente do que tentar manter as crian-

ças em uma espécie de paraíso. Sabemos dos desastrosos efeitos parauma criança quando os adultos ficam em uma posição de poupa-la de todoe qualquer sofrimento, imperativo ou proibições que implicam crescer. Noâmbito dos problemas do desenvolvimento encontramos muitas vezes fra-ses do tipo “coitadinho, já tem tantas dificuldades, para quê exigir-lhe algomais? vamos deixar que seja feliz”. Ocorre que, deste modo, a criançatermina por ficar excluída da lei que faz, de cada um, um sujeito com esco-lhas e que permite a inserção como cidadão: fora disso só resta um lugarpara ela, o paraíso, o paraíso dos bobos.

Resta ainda para outros - poupados de toda e qualquer desgraça darealidade- a tentativa desesperada de tentar convocar a lei pela realizaçãode atos transgressores, para ver se nem que seja queimando índios estalei comparece e permite o armado de uma borda entre o princípio do prazere uma realidade perante a qual temos que nos responsabilizar por nossosatos.

Em Praga, dentro do único cemitério destinado aos judeus que fo-ram condenados a viver em regime de exclusão social no gueto, há, hojeem dia, uma exposição permanente de desenhos realizados por criançasno campo de Concentração de Terezim. Terezim, situado a 60 quilômetrosde Praga funcionava como um campo de concentração de passagem, ouseja, como ante-sala da morte.

Poucas crianças sobreviveram –de 15.000 que por ali passaram so-mente 100 saíram com vida, das outras não há nem túmulos. De algumas,ficou o testemunho em poesias e desenhos (muitos dos quais anônimos)que nos falam da saudade de casa, da família reunida em torno da mesa,de brincar no jardim, do sonhado reencontro com os pais, da sujeira, dafome, da tristeza, da doença, do que representava nesses tempos ser ju-deu, dessa filiação que levava o signo da morte. Uma criança deixou regis-trada a seguinte poesia:

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SEÇÃO DEBATES

zes, não há ninguém que possa pegá-las pela mão e levá-las de volta acasa, presenteá-las com um peão e um trocadilho -como no filme “Centraldo Brasil”-, que possa diante de tantas perdas e privações devolver-lhes adimensão da infância. É certo que se trata de uma infância na qual, se avida tem algum brilho, não é em função da ignorância absoluta de todo equalquer sofrimento, mas da beleza que provém de uma escolha realizadacom a sustentação de valores éticos por parte dos adultos, ainda que dian-te das mais terríveis condições. E nisto os ensinamentos transmitidos aosdois Josués são muito diferentes.

Tudo tem limite diz a amiga a Dora –no Filme Central do Brasil- quandoesta troca uma criança por uma TV de 29 polegadas com controle remoto.

Tudo tem limite até mesmo a fantasia! –poderíamos dizer tambémao outro Josué- mas os finais premiados em Hollywood não querem sabernada disso.

Para aqueles preocupados com as crianças a pergunta insiste...O que poderiam desenhar as crianças de rua? os filhos dos sem

teto, os filhos dos sem terra, os filhos dos desaparecidos, as crianças exter-minadas? Será que para estas crianças há ou poderá haver alguma vezborboletas amarelas? Será que elas tem preservada sequer a possibilida-de de que com esta faltas posa se fazer poesia?

BIBLIOGRAFIAFreud, Sigmund. Mais além do princípio do prazer, Obras CompletasKlein, Melanie Psicoanálsis de Niños tomo 2 editorial PaidósO infantil Boletim da Associação Psicanalítica de Porto AlegreNo hé visto mariposas por aqui, Publicação do Museu Judeu de Praga.

cimentos que poderiam lhes ser úteis caso ficassem vivas, mas abrindonesta transmissão o resguardo de espaços próprios da infância, onde elaspudessem elaborar seu sofrimento. Assim, na oficina de pintura de FrielDicker-Brasdejs o que se ofertava era muito mais que papel e tinta (semprebastante escassos, por sinal), mas a possibilidade de que as crianças, atra-vés da poesia ou pintura pudessem plasmar seus anseios, seus sofrimen-tos e suas fantasias.

Contraditoriamente, esse esforço dos adultos inicialmente condena-do e proibido, foi posteriormente aproveitada pelos nazistas como basepara uma propaganda muito mais do que enganosa que situava Terezimcomo uma espécie de “Campo de concentração Modelo”.

Nesses desenhos de crianças assassinadas, nos campos de con-centração mantidos como museus, nos diferentes relatos, punições e in-vestigações, podemos nos encontrar não só com restos do horror de umaguerra mas com o testemunho de quanto tempo se leva para purgar umaviolência social tão terrível quanto a do nazismo. Por mais duro que seja,por mais tempo que leve, é justamente ao poder se contar e recontar essahistória que se faz possível elaborá-la, ao invés de ficar somente na melan-colia, no sem nome do sofrimento.

Paradoxalmente, aqui, na América Latina, em países onde ocorre-ram verdadeiros genocídios, encontramos o ocultamento da verdadetravestido de democracia. A lei do “punto final”, “obediência devida”, e “in-dulto” concedido aos torturadores, muito longe de esclarecer os eventoshistóricos e realizar alguma justiça que seja, estes procedimentos, ao im-pedir a elaboração de uma violência social, condenam a sociedade ao riscode sua repetição. Trata-se de um ponto final imposto onde não se deu lugara elaboração de um texto.

Durante os governos ditatoriais da América Latina muitos adultosforam mortos, muitas crianças ficaram sem pais, centenas também desa-pareceram1. Hoje em dia, diante de um sistema econômico mundial do qualuma grande maioria permanece excluída adultos e crianças continuam aser exterminados de fome, de miséria, de doença e de pobreza. Criançasficam a deriva diante de um laço social corroído onde, na maioria das ve-

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1 Calcula-se, só na Argentina, que entre 15.000 e 30.000 adultos desapareceram. Há 195 deprocessos de crianças roubadas. Tem-se documentação de 250 jovens entre 15 e 18 anosdesaparecidos, entre outros dados estarrecedores. Ver mas dados da CONADEP emwww.nuncamais.arg

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SEÇÃO DEBATES

FAZER A AMÉRICA

FAUSTO, Boris. (org.) Fazer a América. Cidade, editora,ano.???p.

Este livro originou-se do seminário “Fazera América”, realizado pelo Memorial daAmérica Latina em agosto de 1993, no

qual reuniram-se especialistas em torno do tema“imigração em massa para a América Latina,ocorrido entre as últimas décadas do séc. XIX eas três primeiras do séc. XX”. Segundo o autor,o tema pode ser abordado a partir de enfoquesdiversos -, sempre buscando compreender as

Assim, a migração, segundo ele, não começa até que as pessoas descu-bram que não conseguirão sobreviver com seus meios tradicionais em suascomunidades de origem. Num número menor de casos, dá-se a migraçãoou porque as pessoas são perseguidas por sua nacionalidade - como asminorias dentro de uma cultura nacional maior – ou por seu credo religiosominoritário (judeus, por exemplo) q é atacado pelo grupo religioso domi-nante.

Cabe lembrar, como diz este professor, que desde o início, o Hemis-fério Ocidental era exatamente o oposto da Europa em termos do relacio-namento terra-trabalho. Quer dizer, na Europa, a terra era cara e a mão-de-obra, barata. Na América, a terra era abundante e estava disponível.Entretanto, a mão-de-obra era escassa; portanto, cara. Poderíamos nosperguntar aqui, como poderia ser escassa se havia cerca de 50 milhões deíndios na América em 1492? Ele nos diz que o isolamento das populaçõesamericanas, em relação às doenças européias significava que as doençasendêmicas comuns na Europa tornavam-se epidêmicas, quando infectavamos índios americanos (por volta de 1650, a população indígena americanareduziu-se a menos de cinco milhões).

Outro aspecto interessante que este autor nos traz, é que o acessoà terra era possível não apenas em terras livres da fronteira, mas tambémnas regiões habitadas que produziam bens agrícolas para exportação.Mesmo em regiões com mão-de-obra barata contratada ou migração sub-sidiada e contratos fixos, era possível obter terra poucos anos após a mi-gração inicial. Enfatiza aqui, que as condições locais de trabalho nas Amé-ricas determinaram os fluxos da imigração estrangeira e seus padrões fi-nais de sucesso e que, portanto, “o desenvolvimento nas Américas estábaseado grandemente nesta imigração ”

O único grupo de imigrantes - neste caso, originalmente forçado -que não alcançou o êxito possível pelas condições do mercado foi o dosafricanos e seus descendentes. Cabe salientar, que existiu todo o tipo depreconceito contra todos os estrangeiros em todas as nações americanas,mas não era um discriminador tão impressionante quanto o preconceitoracial.

RESENHA

1 Professor de História da Colombia University.

raízes mais profundas de um movimento migratório transoceânico, de di-mensões até então desconhecidas -,tanto no que diz respeito às condi-ções socioeconômicas existentes na Europa e no continente asiático quantonos países de recepção, bem como adotar um enfoque micro-histórico,acompanhando-se trajetórias familiares nas duas pontas da cadeia migra-tória. Diante das múltiplas possibilidades de abordagem do tema da imi-gração, ele tentou evitar uma excessiva diversidade, tomando como ver-tente básica as etnias imigrantes e sugerindo um futuro estudo comparati-vo, ou caminhos para questões subjacentes - como a integração e a cons-trução de novas identidades. O livro inicia com um texto de Herbert S.Klein1, questionando-se sobre o porquê das pessoas migrarem. Essa ques-tão, segundo o autor, envolve o peso dos fatores de expulsão ou de atra-ção e a maneira como se equilibram. Entretanto, salienta que a maioriados migrantes não desejam abandonar suas casas nem suas comunida-des. Se pudessem escolher, todos- com exceção dos poucos que ansei-am por mudanças e aventuras - permaneceriam em seus locais de origem.

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O livro segue com textos interessantíssimos sobre a imigração euro-péia na Argentina, com alguns indicadores estatísticos, dando mais subsí-dios para estudos e pesquisas. Em função de nosso congresso, me detiveem alguns tópicos referentes à imigração no Brasil.

Segundo estudos de Joaquim da Costa Leite2, na era das grandesmigrações da segunda metade do século XIX e começos do século XX, aemigração portuguesa foi transatlântica, tendo o Brasil como destino princi-pal e quase exclusivo (de 1855 a 1914, 1,3 milhões de saídas - sendo que90% deles para o Brasil). No entanto, não podemos esquecer que, segun-do o professor, as migrações não acontecem em função exclusiva da ne-cessidade ou da oportunidade, mas, sim, da conjugação, em situações con-cretas, da necessidade com a oportunidade.

Aponta que, numa observação empírica, a coincidência dos picos deimigração foi confirmada por uma análise mais cuidada, em que se de-monstrou que as entradas de portugueses nos EUA, no Brasil e na Argen-tina não estavam correlacionadas entre si, mas com a imigração de outrasorigens à chegada a cada um dos países do continente americano. Variavano tempo, fundamentalmente, em resposta à atração das oportunidadesnos países de destino. Quer dizer que apesar das dificuldades nas terrasde origem, os emigrantes conseguiam esperar o melhor momento.

Muito interessante, também, o movimento migratório japonês para oBrasil, contado por Célia Sakurai3 que se indaga sobre como imigrantes,com uma bagagem cultural e histórica tão diferente, poderiam vir a fazerparte do tecido social, sem entrar em conflito com a sociedade que os rece-bia. Ela diz que a imigração japonesa diferencia-se das outras que esco-lhem o Brasil, por se estruturar desde o início por meio de orientações,ajuda e gerência dos representantes do governo japonês. É uma imigraçãosubsidiada e estimulada por ambas as pontas da corrente: Brasil e Japão,já que cada país tem os seus interesses próprios, que se coadunam com o

momento histórico em que se desenrola. Alguns pontos que foram aborda-dos neste texto: A pressão populacional do Japão, decorrente da elevaçãoda qualidade de vida; o processo de inserção do Japão na economia mun-dial capitalista, com leis de incentivo a emigração oficial; a economia cafeeirado Brasil, necessitando de muita mão-de-obra; o terremoto de 1923; etc. Emuitos outros aspectos da atuação japonesa a nível econômico esociocultural, que permeaream o conjunto da sociedade brasileira, contri-buindo de alguma forma na construção social do Brasil Moderno.

É claro que houve uma reação contra a presença de japoneses, emdecorrência da discussão européia em torno da questão racial e da eugenia.A miscigenação foi malvista pelos brancos, especialmente os norte-ameri-canos, que segregavam espacialmente os japoneses em seu território. Esteassunto tem repercussões no Brasil, onde a elite da recém proclamadarepública entende a necessidade de branqueamento da população comoum ponto crucial para a conformação da nova nação. Então, o que dizer daintrodução oficial de não-brancos num país onde a miscigenação entrebrancos e negros é um problema para a época? Já em meados do séculoXIX havia surgido no Brasil uma discussão sobre a possibilidade de trazertrabalhadores de origem asiática para o país, no momento da pressão in-glesa, para pôr fim ao tráfico de escravos africanos. Cogitou-se trabalha-dores chineses como substitutos dos escravos africanos, mas, em vista deexperiências em outras partes do mundo, temeram-se conflitos raciais e adegenerescência da população brasileira em contato com “raças inferio-res”. O problema da substituição da mão-de-obra escrava foi resolvido coma arregimentação de imigrantes de origem européia, particularmente, ositalianos e espanhóis para o Cento-sul do Brasil.

O livro dá um panorama geral da imigração espanhola e suas reper-cussões no Brasil; fala um pouco da história dos Sírios e Libaneses e seusdescendentes na sociedade paulista- em que nos fornece um bom exem-plo de como os grupos étnicos estiveram distantes de se apresentar coe-sos. Para Oswaldo M.S.Truzzi4, seria mais real apreendermos as comuni-2 Professor da Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Economia) e Universidade de

Aveiro.3 Pesquisadora do IDESP (Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos de São Pau-lo) e do CEMI (Centro de Estudos Migratórios Internacionais), Unicamp.

3 Professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e pesquisador do Idesp (Insti-tuto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo)

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dades de imigrantes como arenas disputadas, onde conviveram lado a ladopioneiros e recém-chegados, bem sucedidos, desafortunados e remedia-dos, proprietários e trabalhadores, tradicionalistas e modernizadores. Acolônia sírio-libanesa entendeu, rapidamente, que a verdadeira integraçãonuma sociedade como a brasileira teria de passar, necessariamente pelamobilidade econômica e social. Neste sentido, revelaram-se bastante prag-máticos, assumiram uma postura agressiva, conquistadora, em relação aposições de maior prestígio na estrutura social; o livro segue falando daimigração dos judeus; italianos - sendo o maior grupo aportado no Brasilentre 1819 e 1940; imigração no Uruguai e Cuba. Não podemos deixar denos deter um pouco na colonização alemã no Brasil, com o texto de GiraldaSeyferth4. Lembrando-nos da introdução dos casais açorianos no Rio Grandedo Sul e Santa Catarina, na segunda metade do século XVIII, como a pri-meira experiência de colonização com vistas ao desenvolvimento da agri-cultura e ao povoamento de território (dois mil casais vindos da ilhas Aço-res para o Rio Grande do Sul, entre 1734 e 1800). A relevância da imigra-ção alemã não tem relação com a representavidade numérica, muito aquémdos contingentes oriundos de países latinos como a Itália, a Espanha ePortugal. Sua importância no contexto imigratório brasileiro tem a ver coma forma de participação no povoamento dos três estados do Sul, em zonaspioneiras, constituindo uma sociedade culturalmente diversa que, por suaespecificidade étnica, visível também na organização comunitária dos imi-grantes que se dirigiam para centros urbanos, chamou a atenção dos naci-onalistas brasileiros e, inclusive, criou situações de conflito que perduraramaté a década de 1940.

Esta pesquisadora aponta que a política imigratória foi praticamentea mesma para todos - quer dizer, o modelo de povoamento e concessão deterras consignado em lei e imposto pelo Estado; as diferenças é que estãorelacionadas com a influência de cada tradição nacional, refletidas na orga-nização social e étnica.

Entretanto, salienta que o critério mais carregado de significado sim-bólico ainda é a ancestralidade, ou seja, a “origem comum” que alimenta acrença no pertencimento a uma comunidade étnica.

5 Professora e pesquisadora do Programa de Antropologia Social do Museu Nacional do Riode Janeiro

Hoje, quando vemos centenas de seres humanos num vôo rumo adestino desconhecido, ou por pressões demográficas, degradaçãoambiental, pauperização absoluta ou relativa, guerras, aspiração legítimade viver segundo os padrões ocidentais, só confirmamos que não há nadaque consiga conter o movimento migratório no mundo.

Acredito que para os que ficam, também, há uma grande viagem decoragem e muitas conquistas. Pois há muito o que fazer nesta terra de 500anos para nos defender de ter que rumar para um destino desconhecido enão pertencer mais à comunidade em que5 nascemos.

Luzimar Stricher

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AGOSTO - 1999

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