Economia Política: os descaminhos da crítica

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  Economia Política os desc minhos d crític Eleutério F S Prado  Professor  Titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA!USP)

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Economia Politica. Critica

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  • Economia Poltica: os descaminhos da crtica

    Eleutrio F. S. Prado

    Professor Titular da Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade da Universidade de So Paulo (FEA-USP)

  • Economia Poltica: os descaminhos da crtica Resumo: O artigo toma como bem difcil a correta compreenso da dialtica de O capital e, assim, da crtica da Economia Poltica. Com a inteno de mostrar quo arisca e rdua essa dificuldade, apoia-se principalmente na tradio brasileira de leitura das obras de Marx que versam especificamente sobre o modo de produo capitalista. E, para melhor exp-la, examina alguns pontos usualmente tomados como dificuldades importantes nos debates. Para faz-lo, questiona certas teses de autores marxistas renomados que versam sustenta-se que se equivocam sobre o mtodo desse autor.

    Palavras chaves: 1. Mtodo dialtico. 2. Capitalismo. 3. Karl Marx.

    Political Economy: when the critique goes astray Abstract: This article considers the correct understanding of the dialectics found in The Capital and, thus, of the critique of Political Economy, as a very difficult endeavor. In order to show how elusive and hard is this effort, the paper mainly draws from the Brazilian tradition of reading the works of Marx that specifically deal with the capitalist mode of production. With this intention, it examines some methodological points usually taken as crucial difficulties in the debates. In order to do this, it questions certain theses of renowned Marxist authors that deal with this authors method and argues that they are wrong .

    Keywords: 1. Dialectic method. 2. Capitalism. 3. Karl Marx.

  • az tempo que os saberes especializados e os saberes filosficos quase no andam juntos no campo econmico. certo que a organizao do conhecimento por si mesma funciona para excluir a possibilidade de

    que existam pessoas capazes de trabalhar na interseco desses dois saberes (FAUSTO, 1983, P. 20). certo que Economia e Filosofia se constituem hoje como esferas de conhecimento to separadas que parece impossvel existir algum capaz de poder domin-las com profundidade ou pelo menos com a profundidade necessria para um trabalho frutfero, criativo e renovador. Em particular, possvel diagnosticar que a crtica da economia poltica saber que obviamente exige o concurso de domnio do saber econmico e de domnio da dialtica no caminha de modo seguro. Talvez se possa dizer mesmo que, em certos casos, caminha desastradamente. Por um lado, a teoria econmica se tornou cada vez mais um saber altamente tcnico, especializado e formalizado e, por outro, a dialtica hegeliana e marxiana se mostrou de difcil apreenso precisa e manejo rigoroso. No que se refere a essa ltima, a dificuldade no se encontra s no despreparo daqueles versados em Economia. O acompanhamento do debate filosfico mostra que existem dificuldades histricas e polticas, alm das conceituais e intelectuais na compreenso da dialtica. De qualquer modo, a linguagem hegeliana e marxiana barreira de difcil transposio, principalmente para aqueles que esto obrigados por profisso a tratar de questes inerentes prtica utilitria na esfera econmica da sociedade.

    Um texto contemporneo fornece aqui o ponto de partida para questionar o desenvolvimento da crtica da economia poltica, depois de Marx: Fronteiras da Economia Poltica de Carchedi (1991). Este autor marxista inicia o seu livro sem se omitir a respeito desse tema to difcil. Diante da contraposio entre compreender a dialtica apenas como um modo de pensar ou essencialmente como um modo de ser, ele opta pela primeira alternativa. Para Engels, segundo

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    ele, a dialtica o modo de ser da natureza e o pensamento dialtico no mais do que a reflexo da dialtica da natureza. Pondo-se do lado oposto quele de um dos fundadores do marxismo, Carchedi prefere enxerg-la como um modo de ver ou de interpretar a realidade. Afinal, pergunta, como vemos a realidade quando a pensamos em termos da dialtica marxiana? (CARCHEDI, 1991, P. 1).

    Admitindo corretamente que o mtodo de Marx est contido em O Capital, para explicar o conceito de dialtica Carchedi retorna formula genrica do valor de troca: 20 varas de linho vale um casaco. E, a partir dela, mas se concentrando nos dois papis desempenhados pelas mercadorias, busca mostrar as caractersticas que julga centrais ao mtodo marxiano. Vale-se para tanto, extensamente, de citaes do prprio Marx1 tiradas do primeiro captulo dessa obra, mais precisamente, da seo forma simples, singular ou acidental do valor contida no captulo sobre a mercadoria: o valor da primeira mercadoria apresentado como valor relativo ou ele se encontra na forma relativa de valor. A segunda mercadoria funciona como equivalente ou encontra-se em forma equivalente (MARX, 1983, I-1, P. 54). Do texto de Marx, extrai ento cinco pontos que trata como princpios genricos; desses cinco mencionam-se aqui apenas trs deles que permitem um contraste mais agudo entre o original e sua interpretao.

    Primeiro, ele ressalta o carter estrutural dessa relao: forma relativa e forma equivalente pertencem uma outra, se determinam reciprocamente, so momentos inseparveis da expresso de valor (Marx, 1983, I-1, P. 54). Marx se refere obviamente forma simples e acidental de valor, mas Carchedi tira da um princpio abstrato e vlido em geral: mais genericamente assevera todas as partes da realidade esto ligadas por interdependncia existencial mtua (CARCHEDI, 1991, P. 291). Note-se em adio que Marx complementa a sentena acima ressaltando que so momentos inseparveis, porm, ao mesmo tempo, so extremos que se excluem mutuamente e se opem, isto , plos da mesma expresso de valor (MARX, 1983, P. 54).

    Segundo, ele aponta que a realidade em geral est sempre estruturada como potncia ou como efetividade. Marx trata estritamente da contradio contida

    1 As citaes de Marx feitas por Carchedi foram traduzidas da verso brasileira de O Capital

    (1983); as referncias s pginas dessa obra em portugus em que constam as citaes foram devidamente assinaladas.

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    na mercadoria e como ela se revela externamente, mas Carchedi enxerga na citao que se segue outro princpio abstrato e geral. A citao:

    a anttese interna entre valor de uso e valor, oculta na mercadoria, , portanto, representada por meio de uma anttese externa, isto , por meio da relao de duas mercadorias, na qual uma delas, cujo valor deve ser expresso, funciona diretamente apenas como valor de uso; a outra, ao contrrio, na qual o valor expresso, vale diretamente apenas como valor de troca (MARX, 1983, I-1 P. 63).

    A interpretao: a forma relativa (...) e a forma equivalente... esto contidas potencialmente tanto no linho como no casaco... Em termos mais gerais, a realidade duplamente aquilo que se realizou a si mesmo e aquilo que est potencialmente presente (CARCHEDI, 1991, P. 292).

    Terceiro, como Marx emprega as expresses determinante e determinada em muito momentos de sua obra, Carchedi prope que toda realidade pode ser hierarquizada por relaes de causalidade: um modo mais geral de afirm-lo vem a ser dizer que algumas partes da realidade so determinantes e que outras so determinadas (CARCHEDI, 1991, P. 292). Curiosamente, ele enxerga esse princpio na seguinte frase do prprio Marx a respeito ainda da forma simples de valor: A primeira mercadoria representa um papel ativo, a segunda um papel passivo (MARX, 1983, I-1, P. 54). Note-se, porm, que Marx diz a simplesmente que o valor de uma das mercadorias expresso no corpo material da outra, enquanto que o valor dessa outra permanece oculto; os termos ativo e passivo no se referem relao de causalidade, mas forma contraditria de se expressarem na relao.2

    Em resumo, Carchedi acredita ter Marx construdo um mtodo estrutural na compreenso e na crtica do capitalismo. Estaria ele certo? Configurar-se-ia em O Capital certa espcie de teoria que poderia ser especificada por meio de princpios gerais?

    Carchedi volta ao primeiro captulo, mas ao focar a discusso da forma simples de valor, pula um dos momentos mais significativos na apresentao de

    2 Uma boa apreenso do mtodo de Marx, a qual se contrape inteiramente de Carchedi,

    encontra-se no texto A crise na crtica economia poltica (Grespan, 2000). A crtica ao texto de Carchedi ser feita aqui expondo alguns elementos reflexivos da dialtica marxiana de um modo muito menos detalhado.

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    O Capital em que o mtodo marxiano se revela. Trata-se da passagem em que Marx vai da anlise da mercadoria para a dialtica da mercadoria e que est logo na primeira seo do primeiro capitulo. A anlise mostra que a mercadoria valor de troca e valor de uso e que este ltimo est assentado nas propriedades materiais da riqueza em todas as formas sociais. J o valor de troca precisa ser examinado com referncia ao modo de produo capitalista. O valor de uso a tambm suporte do valor de troca. At esse ponto da argumentao, o mtodo se mantm dentro dos limites do entendimento. No que se segue, entretanto, ser preciso prestar ateno ao movimento do que exprimido na prtica social mercantil e o que est implcito em suas formas de manifestao. Pois, como diz Fausto, o ponto essencial no nvel lgico (...) que no pode haver compreenso da dialtica, sem o movimento do que exprimido (posto) e do que no exprimido (pressuposto) (FAUSTO, 1983, P. 19).

    De incio, o valor de troca aparece diz Marx referindo-se sua apreenso como algo meramente positivo como relao meramente quantitativa e flutuante. E o termo aparece tem a um papel central j que denota a existncia de diferena entre a manifestao e aquilo que se manifesta, mas que no foi ainda apresentado. Nessa perspectiva continua o valor de troca parece ser algo fortuito e puramente relativo. O entendimento considera, ento, que pensar em algo imanente como fundamento do valor de troca cair em contradio. Para no desafiar tal abismo e se manter em terreno seguro, ele se contenta em explanar essa relao grosso modo por meio da anlise de oferta e demanda e de noes de equilbrio, tal como atesta a histria da anlise econmica como um todo. O segredo dessa histria, porm, consiste simplesmente em omitir a anlise qualitativa da relao de valor de troca.

    O valor de troca, pois, parece ser algo puramente quantitativo. Ora, para a dialtica, o que parece no necessariamente . Eis que preciso assumir a contradio, mas no aquela que o entendimento evita, ou seja, aquela que aqui se manifesta como apreenso do valor de troca como se ele fosse,

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    imediatamente, expresso de valor intrnseco, o que, alis, nunca ocorre.3 Entre um e outro, entre o valor de troca e o valor, tem de existir uma relao de negao, pois, o primeiro est explcito na relao entre duas mercadorias quaisquer e o segundo fica a implcito. Em consequncia, vem a ser necessrio examinar melhor o valor de troca e se concentrar primeiro em seu aspecto qualitativo. As mercadorias postas nessa relao so qualitativamente distintas quanto ao valor de uso, mas se apresentam como equivalentes. Logo, so a tanto iguais como diferentes, mas isto significa que no podem s-las no mesmo aspecto: so diferentes enquanto valores de uso, mas iguais enquanto valores. H uma contradio e ela s pode ser encarada como realmente existente. Quanto se verifica que uma mesma mercadoria, para manter relaes com as outras mercadorias, tem de ter diversos valores de troca, -se levado concluso: por conseguinte, primeiro: os valores de troca vigentes da mesma mercadoria expressam algo igual; segundo, porm: o valor de troca s pode ser o modo de expresso, a forma de manifestao de um contedo dele distinguvel (MARX, 1983, I-1, P. 46). So, pois, iguais quanto ao contedo de valor, mas desiguais quanto s propriedades materiais que fazem com que sejam bens. Desse ponto em diante, Marx vai mostrar, seguindo sempre um caminho lgico, que esse contedo e s pode ser o trabalho humano, mas no enquanto algo concreto, mas como substncia social ou trabalho abstrato. A abstrao que constitu o trabalho como valor , assim, uma abstrao feita pelo prprio processo social mais a frente em O Capital se compreender que se trata do processo social do capital , de tal modo que tem, por isso, o carter de abstrao real.

    Logo, a dialtica no nem um modo de ser da natureza ou da sociedade independente da prxis social nem um modo de ver relativo a determinada prtica de indivduo, coleo de indivduos ou certa classe social. Vem a ser, isto sim, um modo de desenvolver uma compreenso terica de determinado objeto em que, ao mesmo tempo, se faz a crtica das compreenses existentes desse

    3 Marx bem explcito sobre isto: as mudanas reais na grandeza de valor no se refletem, nem

    clara e nem completamente, em sua expresso relativa ou na grandeza do valor relativo. O valor relativo de uma mercadoria pode mudar, apesar de seu valor permanecer constante. Seu valor relativo pode permanecer constante, apesar de mudar o seu valor... (MARX, 1983, P. 58). A igualdade de valores nos dois lados do valor de troca apenas pode impor-se enquanto tendncia estatstica.

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    mesmo objeto. A dialtica marxiana visa especificamente o modo de produo e circulao de capital e, assim, ela se pe como teoria crtica do capitalismo e como crtica da economia poltica clssica e da economia poltica vulgar (GRESPAN, 2001). Conforme Marx, a primeira dessas duas investiga os nexos internos do modo de produo capitalista, enquanto que a segunda pesquisa apenas os nexos aparentes, buscando compreender apenas os funcionamentos do sistema. Na histria do capitalismo e do pensamento econmico essa ltima se consagra como cincia positiva que se interessa apenas pelo que est posto e pelas regularidades (causalidade aparente) a observveis em princpio. E, ao faz-lo, compreende o sistema do capital como naturalidade no contraditria e no sujeita a crises que se projeta, por isso, na eternidade. Ademais, desenvolve-se em vrios ramos tendo como alicerce comum a preferncia por enxerg-lo a partir dos indivduos e das empresas individuais, por meio de algum conceito de equilbrio (PRADO, 2007).

    Marx no adota um mtodo nem mesmo, rigorosamente, um suposto mtodo hegeliano para aplic-lo ao objeto de seu interesse terico como se ele fosse um instrumento geral para desenvolver o conhecimento cientfico. certo que investe o sistema categorial da lgica de Hegel na crtica da Economia Poltica. Porm, no se entenda por isso que submete a realidade investigada aos conceitos dessa lgica; pois, ao contrrio, no faz outra coisa do que mostrar que essa realidade, quando vem a ser estudada cientfica e rigorosamente, requer ela mesma que seja apresentada por meio da concatenao categorial exposta na obra daquele filsofo.

    Para compreender essa realidade, Marx estuda em primeiro lugar toda a cincia relevante, toda contribuio expressiva, no s para apreender com elas, mas tambm para ressaltar as suas deficincias. Como pensador da tradio filosfica alem, em particular de Hegel, sabe que a cincia do entendimento se pauta pela adeso lgica da identidade como norma reguladora. E que, em seu esforo para evitar a contradio, ela cai muitas vezes, inevitavelmente, em contradio ou se repete por meio de tautologias. A crtica da cultura, da cincia e da filosofia depositadas aos poucos pelas geraes passadas, a qual fora desenvolvida por Hegel, mostrara j ostensivamente que a apreenso de certos objetos como objetos adequadamente conhecidos exigia admitir que eles mesmos fossem portadores de contradies reais. Pois, as incoerncias

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    encontradas nos discursos e entre os discursos que se esforavam para apreend-los apenas se dissipavam e se mostravam como quiproqus inteligveis, no como absurdos, quando eram apreendidas como expresso das tenses existentes nos prprios objetos e responsveis pelo seu prprio desenvolvimento.

    Ao assumir que os objetos contm contradies, passa-se a compreender porque eles no se submetem inteiramente aos discursos analticos. Ao se desdobrar os objetos em polaridades que se pertencem e que se opem entre si uma das quais se apresenta como realidade posta e a outra, como realidade pressuposta , a cincia pode ir mais longe na apreenso do prprio objeto, escapando tambm das contradies vulgares. Por isso, ao estudar a cincia econmica de seu tempo, Marx busca sempre encontrar os limites do pensamento meramente analtico, esteja examinando textos de economia poltica clssica ou de economia vulgar. E os encontra deparando-se com as suas contradies. Foi isso o que se viu anteriormente na anlise e na dialtica da mercadoria. tambm por isso que se pode resumir o mtodo marxiano, como tem sido ressaltado por muitos autores, pela afirmao de que toda cincia seria suprflua, se a forma de aparecimento e a essncia das coisas coincidissem imediatamente. Em contraposio ao pensamento rigoroso e que vai s ltimas consequncias, a economia vulgar se sente vontade na forma de manifestao alienada das relaes econmicas, em que estas so, prima facie, contradies totais e absurdas (MARX, 1983 III-2, P. 271).

    Em resumo, o mtodo marxiano o mtodo da crtica interna, ou seja, daquela abordagem que toma os resultados do melhor entendimento de determinada realidade como vlidos at certo ponto para desenvolv-los mais e mais at chegar a concluses que os contradizem (GRESPAN, 2002, P. 28). Ele no segue, pois, um modelo pr-definido que se impe externamente ao objeto; ao contrrio, ele interior ao objeto. Ele tambm no segue uma ordem lgica pr-definida na crtica do conhecimento recebido; ao contrrio, a lgica apresentada na exposio dialtica decorre do duplo propsito de suprimir as contradies formais do entendimento cientfico comum e de tornar a realidade inteligvel enquanto totalidade. Parte de certas representaes, mas no comea nem por princpios, axiomas ou dados empricos; eis que principia pela mercadoria, mas pressupondo j o capital como totalidade. Por isso mesmo esse ponto de

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    partida ser negado no desenvolvimento da obra. O mtodo marxiano acolhe no discurso as contradies do objeto porque s assim consegue apreend-lo adequadamente. Nesse sentido, pe-se ele mesmo como momento do objeto. A apresentao dialtica passagem da aparncia essncia, mas a aparncia permanece como aparncia (FAUSTO, 1983, P. 145).

    A obra O Capital pode ser entendida como um relato de autoesclarecimento. H um sujeito pressuposto, o homem autnomo e emancipado. H um sujeito negado como sujeito e que est posto como predicado de uma relao social que se repe com certo automatismo. O sujeito do modo de produo capitalista a relao de capital e no o homem. Por isso tem razo Kosik quanto afirma que essa obra apresenta a odissia de uma prxis histrica que comea sua viagem de peregrinao nas formas fetichistas dessa relao social, ou seja, nas formas mercadoria, dinheiro, capital constante, capital varivel, etc. para chegar aos poucos compreenso dos contedos dessas formas. No trajeto, compreende a explorao, a alienao, a pobreza endmica, a violncia da reproduo em processo, as crises, etc., preparando-se para fazer a revoluo social (KOSIK, 1969, P. 139-168).

    Erros examinados

    O que foi aqui apresentado bem insuficiente enquanto apresentao do mtodo de Marx; entretanto, bem suficiente como introduo discusso de alguns grandes erros encontrveis na histria do marxismo quanto ao que vem a ser a crtica da economia poltica. Inicia-se esse estudo considerando o livro A economia poltica do rentista (Crtica da economia marginalista) de Nikolai Bukharin, divulgado em 1919, e que tinha por objetivo fazer uma crtica abrangente da economia burguesa do ltimo quartel do sculo XIX e comeo do sculo XX (BUJARIN, 1974). Ele faz crtica acusando as idias adversrias de se originarem de posies de classe e por se pautarem por mtodos inadequados. Em seqncia, examina-se a validade do ponto central do livro A acumulao do capital de Rosa Luxemburg, o qual veio a luz em 1912 (LUXEMBURG, 1984), com o objetivo de dar uma contribuio significativa teoria do imperialismo. Essa autora, com base em anlise de equilbrio, faz crtica errnea ao prprio

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    Marx desenvolvendo a tese de que o capitalismo se esgota sem mercados externos; no seu entender, seria isto o que explica a existncia necessria da interveno internacional dos estados mais fortes nos mais fracos. Depois, discute-se a tese de Isaak Rubin sobre a ligao intrnseca entre valor e fetichismo, exposta em A teoria marxista do valor (1980), obra clssica do marxismo publicada em russo na segunda metade dos anos 1920. Esse autor d proeminncia ao fetichismo da mercadoria, mas o fundamenta na natureza mercantil do capitalismo, contrariando Marx que o apresenta como iluso real que decorre da forma que assume os produtos do trabalho nesse modo de produo. Finalmente, examina-se o modo como Ernest Mandel faz a ligao entre as leis de movimento do capitalismo e a histria do capital em O capitalismo tardio, de 1972, para chegar noo de onda longa de crescimento econmico.

    Anlise de posio de classe

    de Bukharin, no comeo do sculo XX no prefcio edio russa, o autor menciona que a obra foi concluda em 1914 , uma das primeiras tentativas de dar prosseguimento a crtica da economia poltica tomando por modelo as Teorias da Mais-Valia e O Capital. Nesse prefcio de A economia poltica do rentista, ele diz que o seu objetivo vem a ser fazer uma avaliao aguda e sistemtica da teoria econmica da burguesia moderna. Observa, inicialmente, que se encontra na literatura marxista recebida dos antecessores dois tipos de crtica: uma delas exclusivamente sociolgica e outra exclusivamente metodolgica (BUJARIN, 1974, P. 16). A primeira busca derrubar a concepo adversria mostrando que se origina de posio de determinada classe social. Ainda que possa ser justa, pois expresso terica da classe progressista frente aos modos de pensar das classes conservadoras, o seu defeito aponta seria que assim se desinteressa pela crtica minuciosa da estrutura interna do sistema (idem, P. 16). A segunda busca minar o edifcio terico adversrio mostrando que os seus pressupostos metodolgicos so errneos. Ainda que apontar a falsidade do mtodo seja necessrio preciso examinar a teoria visada para descobrir as suas contradies formais e sua

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    incapacidade de compreender e explicar certos fenmenos. Em concluso, depreende-se que o marxismo deve prover uma crtica detalhada das teorias recentes, crtica que tanto de ordem sociolgica quanto metodolgica, mas tambm crtica de todo sistema, at as suas ramificaes mais importantes (idem, P. 16). Ao manifestar assim o seu propsito, fica j evidente que esse marxista histrico mantm-se na crtica externa e no confronto de posies irredutveis.

    mrito de Bukharin que ele tenha feito enorme esforo para estudar a economia poltica burguesa depois de Marx. Em suas investigaes encontra duas alternativas ao marxismo: aquela fornecida pela escola histrica alem e aquela desenvolvida pela escola austraca de economia poltica. No plano sociolgico, a primeira para ele expresso ideolgica do protecionismo da burguesia industrial alem que temia a competio da indstria inglesa, mais avanada no desenvolvimento das foras produtivas. O nacionalismo germnico se manifestava ento como negao de universalidade s teorias econmicas abstratas e pelo desenvolvimento de conhecimento monogrfico, voltado para as caractersticas histricas e locais da Alemanha. J a escola austraca que se concentra na formulao de teorias abstratas sobre o funcionamento do mercado, em contraposio com a economia poltica inglesa que se voltara principalmente para a compreenso da produo capitalista, expressa a ideologia do burgus j eliminado do processo de produo (idem, P. 34). Dito de outro modo, ela vem a ser a economia poltica do rentismo e do capitalismo financeiro, tal como esses fenmenos foram compreendidos por muitos autores marxistas no comeo do sculo XX. Mesmo que esse tipo de argumento sociolgico possa ter algum valor na compreenso das posies na luta social, a crtica feita escola austraca em especial mostra-se bem forada: eis que associa o rentismo ao consumo4 e no aos juros, dividendos, etc. como

    4 Para caracterizar a mais geral o campo no qual exerce sua atividade o rentista, diz

    Bukharin digamos que a esfera do consumo. A vida inteira do rentista se passa no consumo e a psicologia do consumo em estado puro constitui seu estilo particular de vida (BUJARIN, 1974, P. 31)

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    seria mais correto.5 Ademais, e isto o prprio autor reconhece, ele nunca atinge a lgica da teoria tomada como adversria.

    No plano metodolgico, Bukharin contesta a escola histrica por sua averso teoria abstrata e ao saber nomolgico; em ltima anlise, ela renega a cincia moderna. Considera, porm, a escola austraca como adversria mais perigosa, pois ela se utiliza do mtodo abstrato e dedutivo, que tambm segundo ele empregado pelo marxismo. De modo curioso, este autor sustenta que a psicologia de classe fornece a orientao geral do pensamento, inclusive a perspectiva lgica da cincia que se pe no entendimento da realidade. E, nesse sentido, ele vem afirmar que a escola austraca est em anttese perfeita com as concepes proletrias do marxismo: a primeira opta pelo subjetivismo, pela perspectiva no-histrica e pelo ponto de vista do consumo, enquanto que a segunda reza pelo objetivismo, pela perspectiva histrica e pelo ponto de vista da produo. De modo mais esclarecedor, afiana que essas duas ideologias diferem em razo de adotarem diferentes fundamentos ltimos: enquanto o marxismo reconhece a primazia da sociedade sobre o indivduo, o individualismo burgus declara a primazia do indivduo sobre a sociedade.

    Ora, a dialtica marxiana no nem um individualismo e nem um holismo; diferentemente, caracteriza-se por suprimir essas polaridades absolutas. No reduz a sociedade aos indivduos que a compem, nem absorve estes ltimos no todo social como se fossem meras funes desse todo. Para ela, por exemplo, os indivduos econmicos enquanto tais passam a existir de fato no capitalismo, mas, contraditoriamente, atuam como suportes de relaes sociais. Ademais, se as vontades das pessoas moram nas mercadorias, estas ltimas para realizarem seus prprios destinos nos mercados dependem inteiramente da agncia das pessoas e estas, como se sabe, tambm podem dizer no.

    Da crtica metodolgica, Bukharin desce para a crtica da teoria do valor, elemento central de toda compreenso da vida econmica da sociedade moderna. O marxismo e a escola austraca esto em campos tericos contrapostos. Como parte da existncia de diferentes vises de mundo e de

    5 Conforme Marx, o valor de uso nunca deve ser tratado (...) como meta imediata do

    capitalismo (MARX, 1983, I-1, P. 129). Logo, o consumo no pode ser meta de uma frao da classe capitalista.

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    teorias em contraposio, chega a um impasse: se o conceito de valor de Marx no tem nenhum ponto em comum com o de Bhm-Bawerk, como possvel a crtica? (idem, P. 63). Encontra entre um e outro, entretanto, um objetivo cientfico comum e este vem a ser a busca de explicao para os preos de mercado: eis que o valor sempre algo que regula o intercmbio de mercadorias. A escola subjetivista, de um lado, reduz a anlise dos preos valorizao individual, enquanto que o marxismo, de outro, os explica por meio de um processo objetivo de formao de valor, o qual ocorre na prpria sociedade, s costas dos indivduos. A apreciao correta, mas por esse caminho no resta outra alternativa Bukharin seno buscar provar que a teoria austraca apresenta falhas lgicas ou que ela falha na explicao dos preos de mercado. O sucesso de sua empreitada pode ser julgado pelo teor de sua concluso: a teoria austraca falhou porque se contentou em elaborar uma teoria puramente abstrata que oferece uma srie de pseudo-explicaes habilmente imaginadas (idem, P. 23).

    Ora, os prolegmenos da crtica da teoria austraca na questo do valor, assim como da teoria neoclssica marshaliana ou walrasiana nesse mesmo tpico, encontram-se j no prprio Marx. Mais precisamente, eles se acham na anlise e na dialtica do valor de troca desenvolvida nas primeiras pginas de O Capital. Ao apontar que, na vida cotidiana e, tambm, na apreenso cientificamente positiva do fenmeno, v-se exclusivamente a relao quantitativa, a proporo em que os valores de uso se trocam e no a substancialidade qualitativa e social subjacente , ele traa o caminho possvel de toda teoria econmica que se preocupa apenas com o entendimento plausvel dos fenmenos. Se os possuidores de mercadoria, como indivduos livres, trocam as suas mercadorias em determinadas propores na esfera da circulao, porque aceitam ou desejam faz-lo. Da, por meio de um pequeno passo, chega-se concluso que aqueles que transacionam mercadorias contm em suas mentes taxas subjetivas de troca e que essas taxas regulam seus comportamentos. Dando outro passo, supe-se, ento, que tais taxas so independentes dos preos e que expressam utilidades ou preferncias subjetivas. Pronto, foram j criadas as condies ideais necessrias para fundar os preos nessas taxas subjetivas de algum modo. Ao faz-lo, admite-se j que a subjetividade avaliadora vem a ser a fonte do valor de troca.

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    Note-se, agora, que para Marx, tudo isso no um mero produto da imaginao falsificadora da realidade, mas so formulaes que se baseiam na aparncia do modo de produo e que guardam por isso certo elemento de verdade.6 Ainda que certas passagens do raciocnio exposto sejam bem duvidosas, existe de fato o indivduo calculador que toma decises de compra e venda com base em avaliaes que se apresentam em sua mente. Os preos das mercadorias enquanto eventos particulares ocorrentes aqui e ali dependem dessas avaliaes. Os indivduos econmicos encaram mesmo os valores de uso como fontes de satisfao ou de utilidades. Por isso, tais formas aparentes constituem, para ele, as categorias da economia burguesa: so formas de pensamento socialmente vlidas e, portanto, objetivas para as condies de produo de modo social de produo, historicamente determinado, a produo de mercadorias (MARX, 1983, I-1, P. 73).

    Anlise de equilbrio do sistema

    Na discusso precedente do valor de troca, e do modo inerente como apreendido pela economia vulgar, no se apresentou uma suposio implcita. Para que as avaliaes subjetivas possam explicar os preos de mercado, ela tem necessariamente de recorrer a alguma noo de equilbrio, seno naquele do sistema como um todo, pelo menos em equilbrio parcial. E, dizendo isso, no se est fazendo uma mera observao acidental. Toda economia poltica baseada no valor subjetivo pensa as trocas como se ocorressem em equilbrio ou como ocorrendo prximo dele, supondo ento, adicionalmente, que h forte tendncia para que isto ocorra. a equilibrao que concilia os planos dos agentes auto-interessados. Se assim no fosse, se as trocas acontecessem em propores fortuitas ou sempre e muito fora das propores desejadas, os agentes apareceriam como pouco racionais, de tal modo que o prprio sistema figuraria como catico na perspectiva individualista. Ademais, o sistema

    6 Marx, por exemplo, se refere a conduta meramente atomstica dos homens em seu processo

    de produo social como algo real e no como inveno da economia vulgar. Por outro lado, considera essa forma de conduta como figura reificada de suas prprias condies de produo que independente de seu controle e de sua ao consciente individual (MARX, 1983, I-1, P. 85).

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    econmico, em sua incoerncia, teria de ser considerado, imediatamente, como objeto que no se submete lgica da identidade e anlise econmica. Outrossim, pensar sistematicamente as trocas como se elas ocorressem em equilbrio ou de modo tendente a ele apresenta-se no como mera alternativa convencional que pode ser abandonada sem custo, mas como exigncia metodolgica de difcil recusa. Se o possuidor dos lenos quer troc-los na proporo de 20 lenos por um casaco, mas o possuidor de casaco quer troc-lo apenas por 30 lenos, eles esto em contradio (e no se veja a a contradio da dialtica), de tal modo que, se so racionais, no podem trocar efetivamente. Pensar, pois, no paradigma do equilbrio, parcial ou geral, o modo por excelncia por meio do qual a cincia positiva enfrenta a complexidade do sistema econmico. Ao faz-lo, porm, d sumio nas contradies reais (comuns ou dialticas) que movem o sistema. 7

    Como se sabe, Luxemburg encontrou-se em dificuldade ao tentar expor o processo de reproduo do capital total e, lutando com ele, acabou achando que no se tratava de um simples problema de exposio; [mas que] havia inclusive um problema teoricamente ligado ao contedo do volume II de Das Kapital de Marx (1984, P. 3). Qual vem a ser ele? Em sua anlise, ela encontrou um hiato de demanda efetiva no processo de acumulao de capital, o qual no poderia ser preenchido num sistema capitalista puro, ou seja, naquele em que faltaria qualquer periferia no-capitalista e tal sistema, segundo ela, faltaria forosamente a demanda necessria para realizar a parte da mais-valia destinada reproduo ampliada. Concluiu, assim, que um sistema puramente capitalista seria impossvel de existir e que, portanto, o imperialismo mercantil era algo inerente ao modo de produo tal como existe efetivamente.

    Trabalhando com os esquemas de Marx, verificou que a realizao da mais-valia na reproduo simples era tranquila j que toda ela, representada em meios de consumo, seria destinada aos prprios capitalistas. Nesse esquema, os trabalhadores realizariam o valor do capital varivel contido em bens de consumo por meio de sua prpria demanda de sobrevivncia e os capitalistas

    7 As contradies reais comuns so aquelas que ocorrem na sociedade entre posies

    divergentes: em determinada situao de interao social, um dos atores diz A e o outro, de algum modo, diz no-A. A contradio dialtica no aponta uma divergncia, mas se refere a opostos que se pertencem e que formam uma unidade de contrrios.

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    realizariam o valor do capital constante contido em bens de produo por meio do investimento em sua renovao. Na reproduo ampliada, entretanto, segundo ela, o mesmo no ocorre: quem poderia ser o comprador das mercadorias cuja venda tornar possvel a acumulao? (Luxemburg, 1984, P. 110). Dito de outro, como se realiza a mais-valia que os capitalistas destinam ampliao da capacidade produtiva? Luxemburg considera corretamente que ela se realiza por meio do novo investimento produtivo. Mas como a produo ampliada, no momento seguinte, colocar no mercado quantidade adicional de mercadoria, ela se pergunta: onde encontrar nessa oportunidade a clientela capaz de absorver esse volume adicional de mercadorias? (idem, P. 111). Ao no conseguir resposta satisfatria para essa questo, ela abandona o sistema capitalista puro e passa a argumentar que o adicional de demanda efetiva necessrio tem de vir de modos de produo pr-capitalistas.

    sabido que a tese de Luxemburg foi alvo de muitas crticas. Sweezy, em particular, argumentou que seu erro foi tratar da reproduo ampliada conservando as suposies da reproduo simples. Criticou, ento, a sua tese de que o consumo dos trabalhadores no pode realizar o novo valor j que se mantm necessariamente constante. O dogma que nem por um momento ela pe em dvida de que o consumo dos trabalhadores no pode realizar a mais-valia (SWEEZY, 1973, P. 233). Em apoio sua censura, menciona ento como prova em contrrio que a expanso da produo amplia tambm o capital varivel e, assim, eleva a demanda dos trabalhadores. Mas, o que garante que isto resolve o problema posto pela dvida da revolucionria polonesa? O comentrio do clebre ativista norte-americano padece de dois defeitos. Em primeiro lugar, no considera que o argumento original motivado pela ateno dada pela autora contradio inerente produo capitalista, pois esta visa valorizao do capital e no o consumo, mas a realizao do valor contido nas mercadorias depende de algum modo de um consumo crescente. Em segundo lugar, ele no vai raiz do problema. Para chegar a ela preciso examinar a deciso metodolgica que toma ao iniciar a investigao do problema.

    Ao precisar o objeto de sua investigao, Luxemburg afirma que para representar o problema da reproduo capitalista em sua forma pura, devemos fazer abstrao das alternncias conjunturais peridicas e das crises (1984, P.

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    10). Eis que esse, no seu entender, vem a ser o nico mtodo cientfico adequado para resolver o problema com que se depara. Aqui uma longa citao se faz necessria:

    para expor e solucionar de forma clara o problema do valor, preciso fazer abstrao das oscilaes de preo. A concepo econmica vulgar tenta sempre resolver o problema do valor fazendo referncia s oscilaes entre a oferta e a demanda. A Economia Clssica, de Smith at Marx, abordou o problema de forma inversa, afirmando que as oscilaes, na relao recproca entre a oferta e a demanda, podem somente explicar as discrepncias dos preos com relao ao valor, porm no podem explicar o prprio valor. Para averiguar o que o valor da mercadoria, precisamos analisar o problema partindo do pressuposto de que a demanda e a oferta esto em equilbrio, ou seja, que o preo e o valor das mercadorias coincidam um com o outro (idem, P. 10).

    Note-se antes de mais nada dois pontos a respeito dessas asseres: primeiro, ela estabelece uma continuidade entre os economistas clssicos e Marx, sem notar qualquer ruptura; segundo, faz referncia necessidade do equilbrio para descobrir o valor no valor de troca. Note-se, tambm, contra a opinio da autora estudada, que a economia vulgar faz referncia interao entre oferta e demanda justamente para mostrar que os preos resultam apenas do equilbrio entre elas.

    Ora, o nexo social constitudo pelo valor apresentado logo nos primeiros desenvolvimentos de O Capital com base na forma simples, singular e acidental de valor, ou seja, do valor de troca em sua mxima generalidade, o que, portanto, no pressupem qualquer noo de equilbrio. certo que Marx trata de troca de equivalentes, mas isto no implica que adota o princpio metodolgico apontado por Luxemburg. De fato, ele s precisa de algo que aparece no seguinte esclarecimento encontrado no captulo que trata especificamente do dinheiro: a expresso relativa de valor de uma mercadoria por si sempre expresso da equivalncia de duas mercadorias (MARX, 1983, I-1, P. 92). Logo, a equivalncia pde ser assumida desde o princpio porque ela um pressuposto objetivo de toda troca possvel. Essa equivalncia, porm, pode ocorrer ou no ocorrer em efetivo: mas se o preo como expoente da grandeza de valor da mercadoria expoente de sua relao de troca com o dinheiro, no

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    se segue, ao contrrio, que o expoente de sua relao de troca com dinheiro seja necessariamente o expoente de sua grandeza de valor (idem, P. 92). Eis que essa ltima correspondncia s ocorre efetivamente como tendncia estatstica:

    a possibilidade de uma incongruncia quantitativa entre o preo e a grandeza de valor ou da divergncia entre preo e a grandeza de valor , portanto, inerente prpria forma preo. Isso no um defeito dessa forma, mas torna-a, ao contrrio, a forma adequada a um modo de produo em que a regra somente pode impor-se como lei cega da mdia falta de qualquer regra (idem, P. 92).

    Em resumo, o que est posto na relao de troca a equivalncia, mas o que est pressuposto em geral a no-equivalncia.

    Luxemburg, com base na adoo do princpio metodolgico mencionado, trabalha essencialmente com os esquemas de reproduo simples e ampliada para examinar a questo da demanda efetiva no processo de acumulao. Ao faz-lo cria uma armadilha na qual caiu sua prpria argumentao. O emprego desses esquemas como base para anlise de equilbrio permite fazer comparaes de trajetrias considerando o sistema econmico abstratamente em estado estacionrio ou em estado de crescimento proporcional. Mas eles so totalmente inadequados para tratar de um problema que ocorre e que se resolve fora do equilbrio.8 Inerentemente no podem explicar como determinadas mudanas se iniciam e, supondo que elas ocorram de algum modo, no podem mostrar como se resolvem. Para tanto, cingindo-se a uma perspectiva de cincia positiva, seria necessrio pensar a reproduo por meio de sistemas dinmicos. Por outro lado, claro que os processos reais de acumulao, seja o sistema econmico capitalista puro ou impuro, ocorrem gerando dficits potenciais de demanda efetiva enquanto tendncia, mas esses dficits podem ser contrariados pela expanso do crdito, por gastos do governo, por supervits no comrcio exterior, etc. Marx no estuda o sistema econmico existente em equilbrio ou mesmo como sistema dinmico, ao contrrio, ele o apresenta num processo de auto-movimento que resulta do evolver das contradies da relao de capital. No deixa em certos momentos de investigar certas propriedades que s podem

    8 Este erro foi tambm apontado por Rosdolsky, mas ele o fez apenas no contexto da

    interpretao dos esquemas de reproduo de Marx (ROSDOLSKY, 2001, P. 407-419).

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    ser apreendidas analisando o sistema em equilbrio, mas preciso admitir que, no entender de Marx, tal estado vem a ser a negao abstrata da prpria natureza da acumulao de capital. Assim, os problemas de demanda efetiva, assim como os de desproporo, de subconsumo, etc., so tratados em O Capital como formas de crises que decorrem do impulso do capital superacumulao.9

    Os comentrios de Sweezy acima mencionados no escapam dos limites da anlise de equilbrio. Esse autor tambm pensa que Marx era forte partidrio do mtodo abstrato e dedutivo to caracterstico da escola ricardiana (Sweezy, 1973, P. 39). Em conseqncia, por exemplo, pensa que, para o autor por ele popularizado, o trabalho abstrato (...) equivale a trabalho em geral; trata-se daquilo que comum a toda atividade humana produtiva (idem, P. 58). No entanto, Marx foi explcito em dizer, referindo-se ao momento mais desenvolvido da abstrao, que o capital (...) s pode, por isso, ser entendido como movimento e no como coisa em repouso. Aqueles que consideram a autonomizao do valor como mera abstrao esquecem que o movimento do capital industrial essa abstrao in actu (MARX, 1983, II, P. 78). Note-se, em especial, que essa a frase citada vincula a substncia do valor, ou seja, o trabalho abstrato, ao movimento do capital por meio de suas formas.

    Teoria sociolgica do fetiche

    A opinio de Sweezy a respeito do mtodo de Marx acima referida no isolada; ao contrrio, ela coincide com toda uma grande onda de interpretaes que se forma e se avoluma no sculo XIX, que persiste e cresce no sculo XX e que produz marolas at os dias de hoje. Justamente por isso importante considerar agora o livro de Isaac Rubin, A teoria marxista do valor. Este autor foi capaz de distinguir as concepes de Marx sobre o valor de uso, o valor de troca e o valor das concepes dos economistas polticos clssicos, dentre eles, especialmente Smith e Ricardo. Em particular, ele acentuou corretamente que aqueles autores trataram do valor de troca s de um ponto quantitativo e que a

    9 Movimento que Jorge Grespan chama de manifestaes da autonegao do capital (!999).

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    contribuio original de Marx consistiu em que o aborda comeando pela relao qualitativa. A ateno dos economistas clssicos e de seus epgonos diz ele concentrou-se no contedo do valor, principalmente em seu aspecto quantitativo (quantidade de trabalho), ou no valor de troca relativo, quer dizer, nas propores quantitativas das trocas. Marx, porm, concentrou-se na forma do valor, isto , o valor como a forma que se caracteriza pela coisificao das relaes de produo e a transformao do trabalho social em uma propriedade dos produtos do trabalho (RUBIN, 1980, P. 80).

    Rubin escreveu seu texto procurando defender o marxismo das crticas dos economistas de seu tempo, dentre os quais cabe destacar aqui as de Bhm-Bawerk. Esse autor escreveu uma crtica de O Capital que recebeu o nome de Karl Marx e o fechamento de seu sistema (1978). A tese central desse texto consistiu em afirmar que haveria uma contradio vulgar entre os volumes primeiro e terceiro, a qual se mostraria pelo fracasso em encontrar soluo para o chamado problema da transformao. Nesse texto, o economista austraco afirma quase corretamente, mas por razes errneas, que as primeiras pginas dessa obra contm j as bases de toda teoria a exposta. E o quase adicionado ao corretamente para lembrar que Marx no parte de fundamentos postos por seu prprio entendimento; diversamente, ele visa o melhor entendimento do capitalismo desenvolvido pela economia poltica clssica, examinando de incio a sua manifestao mais evidente. sabido que Bhm-Bawerk chega ao seu julgamento admitindo que Marx faa uso do mtodo abstrato e dedutivo, pois s assim poderia acus-lo de cometer tal erro de inferncia lgica. Rubin, curiosamente, contesta toda essa tese, mas, para faz-lo, ataca com tanta fora a premissa do economista austraco que derruba algo que est certo: as primeiras pginas de O Capital so mesmo um alicerce para o desenvolvimento que segue. Discordando disso, assegura que a, nesse comeo, encontra-se apenas a anlise da mercadoria uma mera aplicao do mtodo analtico compreenso da mercadoria. Para ele, ao contrrio, o fundamento dialtico completo da teoria de Marx sobre o valor s pode ser dado com base em sua teoria do fetichismo da mercadoria (RUBIN, 1980, P. 76).

    Rubin apia-se como ele mesmo diz na resposta dada por Rudolf Hilferding ao texto do autor da escola austraca, A crtica de Bhm-Bawerk a Marx, de 1904 (1978). Eis que, segundo ele, somente aps a publicao do escrito do terico

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    marxista alemo comeou-se a compreender o carter sociolgico da teoria do valor de Marx. Em sntese, Rubin contesta que O Capital venha a ser uma obra de cincia econmica que estaria em relao de continuidade com as realizaes tericas da economia poltica clssica. A cincia econmica em geral sempre, para ele, saber inconsciente sobre a realidade reificada do modo de produo capitalista. Por isso, afirma que a teoria do valor-trabalho de Marx est ancorada numa concepo da realidade econmica como expresso de determinada forma de sociabilidade, aquela que surge e se desenvolve com a produo de mercadorias. H certamente algum contedo de verdade nesse modo de apreender a obra de Marx. Entretanto, supe tratar-se de teoria que se pe ao lado de outras teorias, no se dando conta de que vem a ser, inerentemente, crtica interna ou ainda procedimento de desvirar do avesso o entendimento existente sobre o capitalismo (GRESPAN, 2002). Apesar disso, faz afirmaes corretas: a idia central da teoria do fetichismo da mercadoria no de que a Economia Poltica desvenda relaes de produo entre pessoas por trs das categorias materiais, mas a de que numa economia mercantil e capitalista essas relaes entre as pessoas adquirem necessariamente uma forma material, e s podem ser realizadas sob essa forma (RUBIN, 1980, P. 77).

    Rubin menciona no comeo de seu livro que o conceito de fetichismo, at o seu tempo, era compreendido como elemento da crtica da cultura e que, por isso, no vinha sendo relacionado explicitamente ao conceito de valor. Assim apreendido, no era tido como elemento terico inerente teoria do valor-trabalho. Ao invs de ser um mero apndice, para Rubin, ao contrrio, essa teoria , per se, a base de todo sistema econmico de Marx, particularmente de sua teoria do valor (idem, P. 19). A partir dessa tese, permite-se mudar a ordem de apresentao das categorias de O Capital: ao invs de comear pela mercadoria, principia pela economia mercantil como totalidade e pelo fetichismo da mercadoria.10 J foi visto aqui que a apresentao do objeto capital nessa obra ao mesmo tempo em que corrige e desenvolve a economia poltica clssica, faz a sua crtica, assim como a crtica da economia vulgar. A crtica consiste sempre em mostrar os seus limites cientficos e estes se

    10 Rubin faz isso por um motivo importante do ponto de vista da compreenso do texto, mas

    David Harvey embaralha a ordem de apresentao de O Capital para torn-lo mais compreensvel como um todo (HARVEY, 1982).

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    encontram no fato de que, por serem analticas e utilitrias, ficam prisioneiras da aparncia socialmente necessria do prprio modo de produo.

    certo que no conceito de fetiche esto envolvidos iluso e necessidade formal. Como isto aparece no texto de Isaak Rubin? Note-se, antes de tudo o mais, que esse escrito considerado justamente como um avano considervel na compreenso das concepes de Marx e que, por isso, ajuda a iluminar a verdadeira natureza da esfera econmica da sociedade moderna. Ele aponta, contra as tendncias positivistas, que as interpretaes correntes do fetichismo das mercadorias tomam-no como prova de que Marx, ao ter tratado de relaes humanas por trs de relaes entre coisas, revelou certa iluso da conscincia humana que se origina da economia mercantil (idem, P. 19). Ao se expressar assim, porm, mostra j que a sua compreenso da matria bem problemtica. O autor russo endossa a tese segundo a qual o fetichismo decorre de certa incapacidade de compreender que a associao das pessoas que trabalham, em sua luta com a natureza isto , as relaes sociais de produo expressam-se na troca (idem). E compromete-se com tese complementar, totalmente falsa, pela qual a teoria do fetichismo mostra a intercambialidade das mercadorias como uma propriedade interna, natural, das prprias mercadorias (idem). Para Rubin, o fetiche consiste em que as relaes sociais engendradas na economia mercantil aparecem como relaes de coisas. E, assim, ele pode chegar concluso de que a teoria do fetichismo elimina da mente dos homens a iluso, o grandioso engano originado pela aparncia dos fenmenos, na economia mercantil, e a aceitao dessa aparncia (o movimento das coisas, das mercadorias e seus preos de mercado) como essncia dos fenmenos econmicos (idem). Teria Marx desenvolvido uma sociologia do desvendamento das relaes mercantis?

    Ora, para Marx, o fetiche no decorre da produo mercantil em si mesma e, portanto, no se deriva de que a os produtos do trabalho sejam trocveis e que toda sociabilidade seja tecida por meio do mercado; ademais, para ele, o fetiche no eliminvel pela mera crtica. inerente ao modo de produo e no ao modo de intercambiar. Em uma de suas frases, ele diz: o mistrio da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as caractersticas sociais do seu prprio trabalho como caractersticas objetivas dos prprios produtos de trabalho (MARX, 1983, P. 71).

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    A chave dessa sentena se encontra nessas caractersticas sociais do seu prprio trabalho. A que Marx se refere? Ora, ele se refere especificamente ao modo de produo enquanto tal e no ao fato de que a produo se faa para o mercado, ainda que esse destino se apresente como inexorvel. Trata-se, portanto, da relao social dos produtores com o trabalho social como um todo, e no da relao de produo enxergada como produo em si mesma para o mercado. O fetiche consiste em confundir a forma do trabalho social, portanto, trabalho enquanto valor-trabalho, com o suporte da forma, ou seja, com o corpo material da mercadoria.

    preciso dizer, agora, que o fetiche das mercadorias em O Capital est dito que o produto do trabalho tem um carter enigmtico e esse carter se deve forma mercadoria , vem a ser decorrncia direta do velamento da essncia, ou seja, do trabalho abstrato real e da forma valor. Tal ocultao no se origina, ademais, da subjetividade descaminhada de observadores cientficos, mas produzido pelo prprio modo de ser e de se reproduzir do capital. Ao tomar cincia dessa caracterstica, conclui-se que a exposio do fetichismo s pode ser feita depois do escrutnio das formas de valor, incluindo a forma dinheiro, comeando pela mercadoria.

    Rubin adiciona que o carter ilusrio insuficiente para caracterizar o fetichismo. A interpretao encontrada em seu prprio texto e acima resumida e que no seu entender correta como ponto de partida , complementada com o elemento da necessidade formal. Marx no mostrou diz ele apenas que as relaes humanas eram encobertas por relaes entre coisas, mas tambm que, na economia mercantil, as relaes sociais de produo assumem inevitavelmente a forma de coisas e no pode se expressar seno atravs de coisas (RUBIN, 1980, P. 20). Portanto, segundo o seu modo de interpretar, o fetichismo vem a ser encobrimento de relaes sociais mercantis ou, dizendo de outro modo, de relaes de produo quando esta vem a ser destinada ao mercado. Na verdade, trata-se para Marx de relaes de produo como processo de interao que gera valor. Considerando estritamente o modo de produo em que os trabalhos so reduzidos a trabalho abstrato e a valor, refere-se a relaes entre produtores que assumem a forma de relaes sociais entre produtos de trabalho. Da que se trate de iluso, mas no de iluso meramente subjetiva, mas de iluso objetiva e real.

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    A razo do descaminho do estudo de Rubin consiste em que pensa, seguindo ampla tradio de interpretao, os primeiros captulos de O Capital como elaborao da teoria da economia mercantil, em que toda a produo destinada ao mercado, de tal modo que as relaes sociais entre produtores se travam por meio do mercado. O primeiro captulo de seu livro, que trata das bases objetivas do fetichismo da mercadoria, aponta como caracterstica distintiva da economia mercantil o fato de que os produtores, pequenos ou grandes proprietrios, so formalmente independentes entre si e se relacionam por meio da troca (idem, P. 21). Nesse caminho, como os produtores se relacionam estritamente por meio das coisas que se compra e vende, deriva de fato o fetiche das mercadorias da alienao mercantil. Entretanto, ao se ter em mente que Marx na primeira seo de O Capital faz a teoria da circulao simples enquanto aparncia do modo de produo capitalista (FAUSTO, 1983, P. 144), as coisas mudam de figura. A ordem de apresentao a encontrada, que vai da mercadoria ao fetiche, passando pelo dinheiro, mostra-se correta; ademais, toma-se conscincia de que nesse incio, se no se fala do capital, ele est, no entanto, pressuposto. Respeitando a ordem de apresentao, compreende-se claramente, ento, que o fetiche da mercadoria vem a ser primeiro em relao alienao e no ao contrrio.

    Leis positivas de desenvolvimento

    Na introduo de O capitalismo tardio, Mandel diz que o livro tem por objetivo fornecer uma interpretao marxista das causas do crescimento da economia capitalista no ps-guerra. A chave terica dessa tentativa consiste e ele mesmo o diz na noo de onda longa, as quais so produzidas por revolues na tecnologia como um todo. A ambio do estudo vem a ser construir uma interpretao da histria do modo de produo capitalista no sculo XX com base nas leis do movimento reveladas por Marx em O Capital. De modo mais preciso, esse autor marxista pretende demonstrar que as leis abstratas de movimento desse modo de produo permanecem operacionais e verificveis no desdobramento, e mediante o desdobramento da histria concreta do capitalismo contemporneo (MANDEL, 1982, P. 5). Em

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    conseqncia, ele se preocupa em dizer que essas leis no so meras construes ideais, mas sim expresses de relaes de causalidade que se manifestam efetivamente no desenvolvimento real do sistema. Deve-se notar que Mandel fala explicitamente na existncia de uma teoria econmica marxista que compete no apenas com a teoria neoclssica, mas tambm com a teoria neoricardiana que se apresenta com alternativa anterior.

    bem sabido que o prprio Marx diz no prefcio da primeira edio de O Capital que enfoca o desenvolvimento da formao econmica da sociedade como um processo histrico-natural (MARX, 1983, I-1, P. 13). Ademais, ele endossa no posfcio da segunda edio a afirmativa de que busca descobrir as leis que regem o modo de produo no apenas como podem ser observadas em determinado perodo de tempo, mas tambm como fonte de mudana e transformao histrica. Marx considera o movimento social como um processo histrico-natural, dirigido por leis que no apenas so independentes da vontade, conscincia e inteno dos homens, mas, pelo contrrio, muito mais lhes determinam a vontade, conscincia e as intenes (idem, P. 19). Porm, dois problemas se pem aqui: primeiro, sabido que os prefcios so inerentemente insuficientes para compreender o texto dialtico, pois o mtodo e os conceitos a empregados s se mostram efetivamente no trabalho da crtica; segundo, preciso saber o que Marx entende por leis. Veja-se logo que a investigao do sentido desse termo na obra de referncia deste e do seu estudo no pode entrar em contradio com o prprio discurso que acolhe as contradies. O que Ernest Mandel pensa disso? Ele apresenta as suas teses no primeiro captulo de sua obra, tratando das relaes possveis entre as leis de movimento e a histria do capital notando para melhor entendimento que este o prprio ttulo do captulo.

    Mandel concebe o modo de produo capitalista como uma totalidade dinmica e este modo de qualific-lo encontra-se no seu prprio texto. Desse conceito deve-se extrair, ento, a idia reguladora de que qualquer ocorrncia especfica a verificada tm de ser explicada por meio da ao recproca das leis de desenvolvimento inerentes essa totalidade. Tais leis, no seu entender, expressam a interao de certas variveis bsicas, as quais so vistas como autnomas em certa medida. As variveis que seleciona, tomando por base O Capital, so seguintes: composio orgnica do capital; distribuio do capital

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    constante entre capital fixo e capital constante; a taxa de mais-valia; a taxa de acumulao; o tempo de rotao do capital; as relaes de troca entre os departamentos produtores de meios de produo e meios de consumo. O problema da explicao, ento, se resolve descobrindo como essas seis variveis se correlacionam na causao de determinado efeito. E isto possvel porque as categorias tericas, considerando as mediaes adequadas, tm expresso emprica. Em suas palavras, o mtodo empregado no livro tem a seguinte configurao:

    trata todas as propores bsicas do modo de produo capitalista como variveis parcialmente independentes, de maneira que se torne possvel formular leis de desenvolvimento a longo prazo... A tarefa-chave consistir em analisar o efeito que essas variveis parcialmente independentes exercem nas situaes histricas concretas, para que se possa interpretar e explicar as fases sucessivas da histria do capitalismo (MANDEL, 1982, P. 27).

    Em O Capital, j foi visto, no se encontra uma exposio da teoria econmica do grande economista Karl Marx, ainda que a exista de certo modo, at mesmo, algo que parece ser uma reelaborao terica da economia poltica clssica. Vem a ser, isto sim, uma crtica do capitalismo em que se faz, tambm, a crtica do seu entendimento corrente seja pela cincia que vai ao mais profundo seja pelo saber vulgar que fica na superfcie. Essa crtica desvenda a essncia do sistema a partir da aparncia e, por se desenvolver por meio do desdobramento dialtico das contradies, permite apenas que se faam a partir dela certas apresentaes da histria. A natureza do mtodo e ele s pode ser conhecido no prprio modo em que apreende determinados objetos exige que no se procure caracteriz-lo por meio de regras aplicveis em geral. No se pode exp-lo em separado; s possvel v-lo em ao. Ainda no primeiro capitulo do livro primeiro, a passagem da forma valor geral para a forma dinheiro fornece um desses momentos em que se pode ver como trabalha.

    Marx, apenas relembrando, comea com a mercadoria, descobre o valor intrnseco, estuda a forma de valor ou valor de troca. O ltimo desenvolvimento feito segundo trs momentos logicamente concatenados: primeiro estuda a forma simples, depois a forma desdobrada e depois ainda a forma geral do valor. Essa derivao no consiste de deduo, mas vem a ser isto sim

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    gnese, o que implica que a passagem de um momento a outro est governada por necessidade, mas no por determinismo. O esquema lgico aproximadamente aquele da potncia e do ato, pois os momentos subsequentes esto pressupostos nos momentos antecedentes, mas no se efetivam forosamente. De fato, alis, todo o desenvolvimento categorial feito no por meio de dedues, mas por meio de negaes. A passagem da forma geral de valor forma dinheiro mais complexa. A forma equivalente geral realiza tambm o que estava implcito j nas formas anteriores, tornando-se a forma de valor por excelncia. Mas h tambm algo de fortuito nessa passagem. Pois, nesse momento, Marx diz: ela [ou seja, a forma geral de valor] pode ser recebida, portanto, por qualquer mercadoria. E acrescenta mais a frente que determinada mercadoria conquistou historicamente essa posio privilegiada, o ouro (MARX, 1983, I-1, P. 69). Esse instante da passagem, portanto, est fortemente afetado de contingncia. Ela possvel, mas a forma especfica em que acontece no pode ser predita mesmo no registro da pressuposio. Note-se, agora, por outro lado, que essa apresentao do dinheiro est inevitavelmente ligada histria. E abre, tambm, a possibilidade de que se faa a histria do dinheiro ou seja, do dinheiro em suas formas concretas, aqui e acol, no tempo e no espao , mas no permite que d uma explicao do fato histrico de que o dinheiro obteve na modernidade um corpo dourado.

    O lugar apropriado para apreender tal difcil conceito em Marx notoriamente a seo do livro terceiro que trata da lei da queda tendencial da taxa de lucro. No possvel consider-la aqui em seus detalhes ou em toda a sua grandeza.11 Menciona-se por isso apenas a sua formulao mais geral. Com taxa constante de mais-valia ela diz o crescimento paulatino do capital constante precisa, em relao ao capital varivel, ter necessariamente por resultado uma queda gradual na taxa de lucro geral (Marx, 1983, III-1, P. 163). E esse crescimento precisa acontecer, pois a tendncia progressiva da taxa geral de lucro a cair (...) apenas uma expresso peculiar ao modo de produo capitalista para o desenvolvimento progressivo da fora produtiva social de trabalho (idem, P. 164). Ora, o que a se diz no bvio de modo algum. Um

    11 Tambm no pode discutir aqui em toda profundidade que merece o conceito de lei em

    Marx; para tanto, leia-se o captulo A angustia da lgica histrica contido em Marx, o intempestivo, de Daniel Bensad (1999).

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    modo errneo de interpretar a lei tendencial seria fazer referncia a ela do seguinte modo: o progresso da fora produtiva do trabalho causa empiricamente o aumento da composio orgnica do capital e, desse modo, ela causa empiricamente a queda da taxa geral de lucro. Pois, ao express-la assim, estar-se-ia supondo que Marx adota o conceito de Galileu, de Hume, Popper, etc. de causalidade, segundo o qual esta consiste na conjuno observvel de eventos empricos (BHASKAR, 1989, P. 9-13). Ora, as fontes de Marx so outras: Aristteles, Spinoza, Leibniz e Hegel. A lei tendencial acima referida conecta uma essncia, o capital como contradio em processo e sujeito automtico, ao fenmeno queda da taxa de lucro, outra vez aqui, por meio de necessidade afetada de contingncia.

    O conceito de tendncia empregado por Marx polmico e pouco entendido pela grande maioria dos economistas que rezam quase sempre pela cartilha do positivismo. Sabe-se que a lei indica existncia de necessidade na gerao da baixa da taxa de lucro, mas quanto tendncia, o que ela prope? A necessidade no significa a correlao determinstica, mas produo social de fenmeno a partir da atividade social compulsiva do capital. A tendncia que modifica qualitativamente a lei diz simplesmente que a necessidade existe, mas que ela pode no se manifestar. Eis que faz a mediao entre a potncia e o ato ou, mais precisamente, entre a pressuposio (o capital quer obter taxa de lucro maior) e a posio (mas apenas consegue obter taxa de lucro menor). E, nessa transio do implcito ao explcito, feita a ligao da lei econmica com lei histrica, abrindo uma fenda maior ou menor de indeterminao. Eis que se trata de uma pulsao um objeto pulsante que a dialtica capta.

    O capital tem fome inesgotvel de mais-valia e, por isso, busca economizar tempo de trabalho. Para tanto, adota novas tcnicas de produo e, assim, aumenta a sua composio orgnica; em consequncia, se a taxa de explorao se mantm constante, cai a taxa de lucro. Para cada capitalista a pressuposio objetiva que a acumulao produza maior taxa de lucro; para a classe capitalista como um todo, ao contrrio, que as decises de acumulao descentralizadas de muitos capitalistas, constrangidas sistemicamente, acabem por reduzir a taxa de lucro. Isto, porm, pode ocorrer, pode ocorrer mais fracamente ou mesmo pode no ocorrer efetivamente em certos perodos. Pois, h causas contrariantes que se originam endogenamente no prprio movimento

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    de acumulao: por exemplo, a taxa de explorao pode ser incrementada, o capital constante pode ser barateado, o comercio exterior pode reduzir o custo de reproduo da fora de trabalho, etc. Entretanto, tais causas como lembra Bensad (1999) no so freios externos, mas dimanam das contradies internas da prpria lei. Eis que a lei aqui, dimenso do vivo, pode negar-se a si mesma. Marx no proferiu a seguinte sentena: a verdadeira barreira da produo capitalista o prprio capital? (MARX, 1983, III-1, P. 189). Sim, ele disse: a produo capitalista procura constantemente superar essas barreiras que lhe so imanentes, mas s as supera por meios que lhe antepem novamente essas barreiras e em escala mais poderosa (idem, P. 189).

    Tal como antes, a lei da queda tendencial da taxa de lucro, que vem a ser ela prpria e a oposio a si mesma na forma das causas contrariantes, permite fazer apresentaes da histria do capitalismo, mas no pode fornecer explanaes empricas de quaisquer fatos histricos.

    Concluses

    Procurou-se examinar ao longo desse artigo alguns pontos contidos em textos de autores marxistas clssicos que costumam merecer grande ateno daqueles que se interessam pela crtica do capitalismo e da Economia Poltica. Todos esses autores foram intelectuais profundamente engajados na crtica tanto do sistema quanto das idias sustentadas por seus defensores, assim como nas transformaes sociais de seus tempos. Escolheu-se dentre os marxistas mais conhecidos apenas aqueles que, de algum modo, apresentaram pendores de economista crtico e que se dedicaram aos temas econmicos com acento de especialista. O objetivo das consideraes precedentes no foi fazer polmica com certas teses sustentadas ao longo da histria do marxismo, ainda que esta declarao aqui posta no possa mudar o fato de que certas crticas foram de fato feitas e que elas podem ser eventualmente contestadas. Com base numa experincia pessoal de economista que procurou entender durante mais de trinta anos a obra econmica de Marx, o objetivo predominante foi o de fazer, mais uma vez, um alerta e transmitir uma mensagem. No novidade na histria do marxismo a meno de que uma boa compreenso dos textos

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    econmicos e polticos de Marx exige o estudo aprofundado da dialtica hegeliana e do modo especial como foi empregada por Marx.

    Depois de muito refletir, o autor que aqui escreve pensa da crtica da economia poltica, em ltima anlise, que ela no progrediu, ao contrrio, que regrediu depois de Marx. Ou ela se contentou com exegeses interminveis dos textos clssicos ou ela no foi capaz de pensar dialeticamente, ou ainda, ela no se assentou num domnio suficiente da economia inerente ao sistema. Ainda que haja excees, ainda que o artigo no tenha abrangido mesmo parte significativa da literatura relevante, h fortes indcios de que o quadro mais geral venha a ser realmente este: as teses de Marx sobre o modo de produo capitalista continuam altamente relevantes, mas elas ainda no foram bem compreendidas. Em consequncia, preciso estudar em profundidade a dialtica marxiana e hegeliana para evitar que prosperem as leituras do entendimento dos textos clssicos de Marx. Note-se, por um lado, que esse tipo de leitura vem a ser o caminho natural e espontneo para todos aqueles, vindos da Economia, que se interessam por esse autor e, por outro, que a dialtica algo bem difcil de apreender por aqueles formados como economistas (e este autor no se julga uma exceo). O dilema real: sem conhecimento dessa cincia no se pode compreender bem Marx e, especialmente, no se consegue fazer progredir a crtica da economia poltica, mas ao estud-la em profundidade, fica-se profundamente imbudo de seu modo positivo e, portanto, vulgar de apreender os fenmenos econmicos.

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