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SCINTILLA

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SCINTILLAREVISTA DE FILOSOFIA E MSTICA MEDIEVAL

Vol. I, N.1 2004 Faculdade de Filosofia So Boaventura - FFSB Curitiba PR 2004

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NEF NCLEO DE ESTUDOS FRANCISCANOS FFSB FACULDADE DE FILOSOFIA SO BOAVENTURAAv. Silva Jardim 1499 80250-020 Curitiba-PR E-mail: [email protected] Reitor: Fr. Gilberto G. Garcia Diretor do FFSB: Fr. Joo Mannes Editor: Enio Paulo Giachini Conselho editorial Joo Mannes, FFSB (Diretor) Enio Paulo Giachini, FFSB (Editor) Emanuel Carneiro Leo, UFRJ Orlando Bernardi, NEF Mrcia S Cavalcante Schuback, Sdertrns University College , Estocolmo, Sucia Urlich Steiner, FFSB Vagner Sassi, FFSB Jaime Spengler, FFSB Conselho consultivo Marcos Aurlio Fernandes, IFITEG Glria Ribeiro, UFSJR Jamil Ibrahim Iskandar, FFSB e PUC-PR Joel Alves de Souza, UFPR Gilvan Luiz Fogel, UFRJ Reviso e Editorao: Enio Paulo Giachini Diagramao: Capa: Luzia Fogel Alves de Souza

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SumrioEditorial 7

Artigos 11 A histria na filosofia grega Emmanuel Carneiro Leo 13 O medieval e o saber de abnegao Mrcia S Cavalcante Schuback 35 So Francisco de Assis e os estudos, uma questo Frei Hermgenes Harada 51 O projeto de vida de So Francisco de Assis e a educao para a vida integral Frei Joo Mannes 99 Comentrios 117 Os sentidos internos na filosofia de Ibn Sn (Avicena): um estudo comparativo Jamil Ibrahim Iskandar 119 Do sermo 52 de mestre Eckhart Hermgenes Harada 129 Tradues 153 De como o homem se mantm em paz, se no se encontrar em rduo labor exterior, como o tiveram Cristo e muitos santos; como ele deve [ento] seguir a Deus Mestre Eckhart 155 A humildade de Deus ngelo Clareno 159

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EDITORIALEnio Paulo Giachini (Editor) A revista que ora apresentamos a pblico objetiva o fomento e a divulgao do estudo da medievalidade. Isso significa que seu mbito de abrangncia atinge as mais diversas reas da vida e do saber medievais. Busca, no entanto, implicitamente um direcionamento especfico, destacando a linha mstica, que a expresso de uma espiritualidade mais aprofundada sobretudo dentro da religio crist e dentro da prpria filosofia e teologia. Isso porque compreendemos que o corao, a flor, da medievalidade se encontra na mstica, como a elaborao mais refinada da gigantesca busca religiosocrist empreendida pela medievalidade. O homem contemporneo busca ansiosamente na religio um sentido para sua vida diante da disperso e da exigncia, cada vez maiores, provocadas pela cientificizao tcnico-econmica. O dilogo com a medievalidade, e sua mais refinada elaborao na mstica, poder trazer nova luz e renovar o ar por demais poludo pela obviedade e constringncia tcnico-cientfico-econmica. A tradio nunca um reservatrio passado, objeto da histria e da pesquisa, meramente informativa ou edificante. A tradio sempre o fundo nascivo, nico lugar donde brotam/podem brotar novas perspectivas para o futuro do homem. A tradio provocao, ela sempre fala, convoca e orienta o cominhar contemporneo. Todo novo brota e se sustenta incondicionalmente do antigo, como toda florao no passa do vir luz, cor, do tronco e da raiz da rvore que se enraza no escuro e profundo da terra. A Revista se prope ser um lugar de dilogo do esprito contemporneo, no importando a configurao que assuma hoje, na busca de reorientao do sentido da vida. com esse esprito p-no-cho, de quem quer aprender e ser instrumento de aprendizado, que ela busca somar e contribuir com a pesquisa e divulgao existente nessa rea. Esse pouco e apoucado de sua contribuio encontra-se resumido no ttulo da revista, simbolizado com o nome Scintilla (centelha, minscula partcula de luz e calor). A palavra Scintila, portanto, indica um direcionamento. Ela significa centelha, fasca, cintilao... o abrir-se e fechar-se instantneo da luz, sua manifestao e ocultamento repentinos. O apoucado e incontrolvel dessa luz pode, na prontido e disponibilidade humanas, iluminar todo um mbito ou incendiar, como um raio que se abre e fecha num instante. Nessa palavra quer-se tambm deixar transluzir toda a questo da metafsica medieval da luz. Deus luz, o intelecto e a alma humana, em seu fundo, imagem e semelhana dele, so uma centelha divina. Na pobreza dessa limitao e prontido, tambm essa revista quer ser uma centelha de luz, cintilao a iluminar a busca comum no intelecto e no esprito. Este primeiro nmero abre-se com artigos que refletem a questo das origens; seu foco volta-se para o passado, para a questo da histria. O fato de a revista focar sobretudo uma determinada poca da filosofia no vem por escolha espria, nem est voltado eleio de determinado contedo de filosofia. por essa razo que preciso pensar a questo da histria e da historiografia. Para a filosofia, a histria no um contedo neutro, uma seqncia linear de fatos, registrados e rememorados num sistema de

6 pensamento. Histria sempre e primeiramente comeo. Para o pensar, histria sempre herana e destino. Vale lembrar ento que se h de comear pelo comeo. Ou seja, o pensar da filosofia precisa se haver com seus incios gregos. Qual a implicao entre histria e pensamento no universo grego, cho primeiro da filosofia? No s para toda filosofia e teologia medieval, mas para o prprio destino e desenvolvimento do pensamento ocidental, o pensar grego se apresenta como fonte, no passada, mas sempre nascente. Na sede de saber e no saber se d a descoberta de nossa filiao grega. O artigo A histria na filosofia grega, do Prof. Emmanuel Carneiro Leo reflete sobre esse ponto. No artigo O medieval e o saber da abnegao prossegue-se essa reflexo sobre o confronto com a histria. Agora, bem mais prximo de ns. Uma das questes centrais do texto como ns, modernos, nos medimos com a era e o pensar medievais. Nossa busca de distanciamento e diferenciao nos liga irremediavelmente ao medieval. O saber moderno, o saber transmissor e educador, de carter universalizante, no pode no saber. este saber inconcusso, da certeza e do controle, que busca distncia do saber da abnegao e do saber da academia. Trata-se portanto de confrontar essa certeza e controle com o no inerente vida, natureza, a presena da morte, do incontrolvel e abscndito na luz exacerbada da razo moderna. O artigo de Fr. Hermgenes Harada trata da Mstica e busca franciscana nos primrdios da Ordem. A busca dos primrdios quer reportar mais do que um momento histrico. Significa o itinerrio ousado e transformador, rumo a uma experincia que se aproxime o mximo possvel do ideal e vida encarnados em Francisco de Assis, um dos representantes mximos do cristianismo e da intensidade de experincia de vida crist medievais. A busca do saber, dos estudos, no comeo da Ordem pode ser encarada pela atualidade como um problema ou como uma questo. Apesar da co-implicao necessria entre esses dois graus de reflexo, enquanto problema, o estudo do saber, no princpio, pode servir de modelo historiogrfico comparativo para dirimir dvidas e direcionar um afazer. No, porm, quando esse problema se torna questo. Complementa esse primeiro nmero da revista um artigo de Fr. Joo Mannes sobre educao e ideal franciscano. O artigo discute como possvel integrar e encarnar o esprito de Francisco de Assis nos projetos educacionais de nossa formao atual, destacando tanto o desafio quanto a grandeza dessa integrao. Em cada nmero da revista inteno da editoria publicar alguns textos traduzidos da medievalidade que referenciem os objetivos maiores da prpria revista. Iniciamos assim com a publicao das Conversaes espirituais (Reden der Unterweisung) de Mestre Eckhart e uma carta do franciscano ngelo Clareno.

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ARTIGOSA HISTRIA NA FILOSOFIA GREGA Emmanuel Carneiro Leo* A filosofia Grega no uma cincia, uma teoria ou disciplina do conhecimento, tal como ns as entendemos hoje em dia. Ao contrrio! Toda cincia, teoria ou disciplina do conhecimento que so, de alguma maneira, dependentes da Filosofia Grega, quer se reconheam ou no, quer se assumam ou no, como oriundas da Filosofia. A Filosofia Grega tambm no se constitui uma ideologia, concepo de vida ou viso de mundo. Mas no vale a inverso. Pois, uma ideologia, concepo de vida ou viso de mundo no pode prescindir de todo da Filosofia Grega. Foi o que, em 1949, no Congresso Nacional de Filosofia, reunido em Mendoza, na Argentina, reconheceu o prprio Bertrand Russel com as seguintes palavras: ... incompromising empiricism is untenable. um empirismo sem compromisso insustentvel! Mas ento o que Filosofia Grega, se no for cincia, teoria ou disciplina do conhecimento, nem ideologia, concepo de vida ou viso de mundo? Antes de responder, pensemos um pouco o que nos leva a perguntar assim, isto , o que nos torna esta pergunta no somente possvel como, sobretudo, imperiosa! Esta pergunta supe aceitas sem discusso muitas coisas. Assim supe que toda Filosofia, portanto tambm a Filosofia Grega, seja ou, ao menos, pretenda ser um exerccio de conhecimento. Supe, do mesmo modo, que, alm do conhecimento, j no sobre nada mais para a Filosofia ser. Supe, igualmente, que tudo que no possa deixar de ser alguma coisa, um qu, por isso se pergunta o que . Supe, outrossim, que toda pretenso de conhecimento termine sempre ou com a produo de um conhecimento objetivo e ento cincia, ou, com a produo de uma iluso transcendental ou emprica e ento ideologia. Supe, por fim, que toda poca, a poca dos gregos tambm, tenha sua concepo de vida e viso de mundo. Como se v, no so poucas as suposies que sustentam aquela pergunta! Mas e se todas estas suposies forem e estiverem a servio de dicta dura, isto , da ditadura da razo, seu raciocnio e sua racionalidade, muito bons, sem dvida, para conhecer objetos, mas imprestveis para pensar a realidade nas realizaes do pensamento grego? Neste caso, com que cara ns ficaremos, ao perguntar: Mas, ento, que a Filosofia Grega se no for nem conhecimento nem ideologia, nem concepo de vida nem viso de mundo? Ser que ainda ficaremos com uma cara quando s nos restar a carranca intransigente da razo e sua ditadura? Agora que sabemos das suposies e limites da pergunta, poderemos tentar respond-la. A Filosofia Grega uma experincia de Pensamento. Mas no a nica experincia grega de pensamento. Outra experincia grega de Pensamento o Mito e a Mstica. Uma outra, so os deuses e o extraordinrio. Ainda uma outra a Poesia e a Arte. Ainda

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

8 outra a e a . A ltima, por ser no fundo a primeira experincia grega de Pensamento, a vida e a morte, e . Aqui e agora, ns nos vamos restringir apenas a caracterizar a experincia grega de Pensamento na Filosofia, embora tenhamos de nos referir a outras experincias gregas de Pensamento. O desenvolvimento da experincia grega de Pensamento na Filosofia atravessou trs perodos com peso e importncia desiguais atribudos ao Pensamento e ao conhecimento. O Primeiro Perodo: o perodo Originrio. Todo esforo da Filosofia se dirige predominante e se orienta prevalentemente pelo e para o Pensamento. So, sobretudo, trs os pensadores originrios: Anaximandro Parmnides Herclito, com Tales como principiador! H outros filsofos, como Xenfanes e Anaxgoras, Empdocles e Demcrito, mas cujo esforo j comea a se concentrar mais em conhecer do que em Pensar. O perodo originrio se estende dos fins do sculo VII at meados do sculo V antes de Cristo. Os lugares da atividade so as Costas da Jnia na sia Menor, sobretudo em Mileto; feso, na Ilha de Samos; e na Magna Grcia, sobretudo na cidade de Elea. O Segundo Perodo: o perodo Clssico. O esforo da Filosofia j se desloca mais do Pensamento para o conhecimento. So tambm trs os pensadores clssicos em cada uma das correntes, que ocupam o perodo, a corrente socrtica e a corrente sofstica. Do lado socrtico, temos Scrates, Plato e Aristteles. E do lado sofstico, temos Protgoras, Grgias e Prdico. O lugar da atividade predominantemente a tica, sobretudo Atenas. O perodo clssico se estende dos meados do sculo V at o final do sculo IV, antes de Cristo. O Terceiro Perodo: o perodo Helenista. O esforo da Filosofia se concentra principalmente em conhecer. Tudo conhecimento, desde os mistrios, os arcanos e a religio at os prazeres e as sensaes. Somente com o Neoplatonismo que ressurge a importncia do Pensamento, mas mesmo assim subordinado ao conhecimento. o perodo de maior extenso. Estica-se do final do sculo IV antes de Cristo at meados do sculo VI depois de Cristo. O espao de sua atividade vai-se expandindo da Grcia para toda a , para toda terra habitada. Mas porque to importante para se aprender a pensar e desenvolver a capacidade do Pensamento hoje a Filosofia Grega? Donde provm esta necessidade de se estudar a Filosofia Grega num currculo de Filosofia? No seria muito mais vantajoso empenhar logo todas as foras e concentrar todo esforo em estudar o Pensamento atual e aprender a pensar o pensamento de hoje? Que utilidade poder trazer para ns, filhos do carbono e do amonaco, todo o trabalho de penetrar no movimento, por mais criador que seja, do Pensamento na Filosofia Grega, se mais de dois mil e quinhentos anos de histria dela nos separam? O que h com a Filosofia que no consegue desvencilhar-se de seu princpio e deixar o passado passar? O que que se nos d de Pensamento nas relaes entre Filosofia e Histria.

9 O Pensamento um passado to vigente que sempre est por vir. Qualquer esforo da Filosofia no deixa de ser um esforo do e pelo Pensamento. E por qu? Porque nenhum esforo filosfico, em qualquer hora, tanto outrora como agora, pode dispensar a fora de futuro do Pensamento no passado. Por isso tambm toda Filosofia vive de pensar a Histria da Filosofia. o que se tornou transparente desde Hegel. Por isso toda Filosofia inclui necessariamente, quer o saiba ou no, quer o aceite ou no, uma Filosofia da Histria. Na Introduo s Prelees de Histria da Filosofia, pergunta Hegel: como a Filosofia, que busca sempre a verdade, isto , uma verdade una, necessria e imutvel, pde desenvolver-se numa multiplicidade de tantas filosofias? De fato, o balco da Histria oferece filosofia para todos os gostos e nos mostra que, onde um filsofo diz sim, outro diz no e vive-versa. Da se dizer que prprio dos filsofos se contradizerem uns aos outros e do filsofo se contradizer a si mesmo. A todas estas arremetidas da razo contra o Pensamento na Filosofia, a resposta de Hegel dialtica: a verdade no so as partes; as partes so passagens de que necessita a verdade para chegar a si mesma no todo. A verdade o todo. Por ser e para ser o todo, a Verdade possui a tendncia de se desenvolver e desenrolar nas peripcias de uma dialtica, formando um fluxo de crescimento, o curso da Histria. E no foi somente Hegel que o percebeu. Herclito j sabia e o sabia com um saber originrio. Aristteles tambm, Plato tambm, Santo Agostinho tambm, Kant tambm, Schelling tambm, Nietzsche tambm, Heidegger tambm! Mas um saber raro. S os grandes pensadores o possuem. E o possuem, na medida em que o transformam na grandeza de outros endereos e novos caminhos de pensar. O destino do Pensamento em qualquer endereo ou caminho mant-lo vivo da forma mais pura, isto , na forma de um contnuo e diuturno questionamento. Por isso, os filsofos nascem e morrem, como filsofos, num dilogo ininterrupto com seus antecessores e sucessores. Somente morrendo que um filsofo e uma filosofia se tornam contemporneos do Pensamento. Constitui, pois, uma ignorncia crassa do modo de dar-se do Pensamento na Filosofia pretender que um filsofo necessite, para sua Filosofia, da cauo de seus pares. A cauo s indispensvel ou para ser aprovado num concurso ou para ser convidado como professor visitante ou para passar nos exames do final de curso. A anlise sociolgica, mesmo de uma pretensa sociologie philosophante que confunde s vezes vigor de pensamento com a cauo de um concurso. Criticar, no sentido de apontar deficincias, indicar erros, denunciar falhas, no faz parte da atividade constitutiva do pensamento. Qualquer crtica fica muito aqum do nvel em que se move o pensamento. Toda crtica no passa do uso de parmetros de dever ser disponveis e j constitudos. Ora o modo de dar-se e de ser do Pensamento sempre constituinte e por isso consiste em ex-plicar. Todo pensamento se ex-plica, ao explicar-se com os outros pensamentos. A ex-plicao a nica maneira de se respeitar um pensador, como pensador. o modo mais elevado de se considerar e levar a srio um pensamento. Mas no se deve confundir a ex-plicao do Pensamento com a explicao do conhecimento e da cincia. Pois, ex-plicar um pensamento deixar surgir a profundeza de suas im-plicaes com o real, fazer emergir a vitalidade de sua a-plicao s realizaes e assumir o vigor de suas complicaes com a realidade.

10 S se enreda na rede das diferenas quem tem dificuldade de pensar a identidade do pensamento nas prprias tenses e oposies de seus nveis, endereos e exerccios. Para o Pensamento, o critrio consensual da verdade to espirituoso como o esforo de comparar o maior nmero possvel de exemplares de uma edio de jornal para se confirmar a verdade de uma notcia. Nenhum filsofo, digno deste nome, est em dilogo de pensamento com seus contemporneos. As diferenas entre as filosofias no atrapalham, estimulam o Pensamento saber que a essncia da verdade est no consenso. E por qu? Nietzsche nos responde: a Filosofia no algo que se torna, evolui e devm nem algo que passa, decorre e escoa. A Filosofia est toda se tornando, est toda evoluindo, est toda devindo. A Filosofia est sempre passando, est sempre decorrendo, est sempre escoando. Os seus excrementos so o seu alimento. Um puro vir a ser a vontade de todo ser e um eterno retorno do mesmo o poder deste incessante querer ser. Vontade de poder e eterno retorno perfazem o cmulo da Filosofia porque so a Filosofia do cmulo no cmulo e como cmulo. Por isso, no nmero 617 de suas anotaes para sua obra principal, resume Nietzsche a dinmica de realizao do real com as seguintes palavras: Recapitulao: imprimir ao vir a ser o carter do ser a suprema vontade de poder. Mas trata-se de uma recapitulao ontolgica que impe uma circularidade s realizaes oriunda do advento da realidade na histria das transformaes. Esta circularidade o cmulo da reflexo no movimento de uma constante retomada do princpio. o que nos diz com uma voz imemorial o no 420 ... Que tudo retorna a mxima aproximao de um mundo do vir a ser ao mundo do ser cmulo de reflexo. O nico motivo para se estudar a Filosofia Grega a necessidade que temos de aprender novamente a pensar. No de certo como os gregos pensaram o que seria impossvel , mas de aprender a pensar com o que os gregos pensaram, a indigncia de pensamento em que nos debatemos hoje no Fim da Filosofia! Em 1966, o Prof. Eugen Fink, de Friburgo, na Alemanha, completava 60 anos. No discurso comemorativo, Heidegger pensa a situao atual da Filosofia com as seguintes palavras:A Filosofia entrou hoje num estgio da provao mais difcil. A filosofia est se dissolvendo em cincias independentes e autnomas. So elas: a lgica, semntica, psicologia, sociologia, antropologia, politologia, poetologia, tecnologia. Uma verificao de novo tipo das cincias todas est substituindo a Filosofia junto com sua dissoluo nas cincias. O controle das cincias atravs de uma tendncia bsica, vigente nelas mesmas, se realiza hoje no aparecimento do que se procura impor com o nome de ciberntica. Este processo promovido e acelerado pelo fato de lhe vir ao encontro um trao fundamental das prprias cincias modernas. Numa nica frase, Nieztsche expressou este trao essencial da cincia moderna, um ano antes do colapso mental de 1888. A frase a seguinte: O que distingue o sculo XIX no a vitria da cincia, mas a vitria do mtodo sobre a cincia (No 466). O que se pensa aqui como mtodo j no o instrumento com que a pesquisa cientfica elabora objetos de fenmenos j dados. O mtodo constitui a prpria objetividade dos objetos, caso ainda se possa falar aqui de objeto, caso ainda possua valncia ontolgica partir de determinaes da objetividade. Talvez a Filosofia de tipo tradicional e de vigncia correspondente venha a desaparecer do horizonte do homem da civilizao tcnica. Mas o Fim da Filosofia no o Fim do Pensamento.

11Por isso torna-se premente a questo se o Pensamento vai assumir a provao que tem diante de si e como o Pensamento vai sobreviver ao tempo da provao. .............................................................................................. ... foi a Poesia que preparou entre os Gregos o princpio do Pensamento na Filosofia Ocidental. Talvez, no porvir, seja o Pensamento, no Fim da Filosofia, que abra o espao de tempo e de jogo para a Poesia, a fim de a palavra potica instalar de novo um mundo de palavra.

O que Heidegger nos quer dizer e fazer pensar com estas palavras? Ele nos recorda ao corao que o grande desafio de hoje a indigncia de Pensamento. Para se perceber a indigncia do Pensamento na Filosofia atual em fim de carreira, basta pensar o sentido que tem a inverso histrica entre Filosofia e Cincia. Ao longo de toda histria do Ocidente, o caminho de passagem correu sempre da Filosofia para as cincias, no plural, a fim de preservar os vrios sentidos da palavra. Em todas as pocas anteriores, qualquer abalo histrico sempre iniciou na Filosofia e se alastrou para as cincias. Hoje, no. O sentido do movimento se inverteu. Por toda parte, o caminho que leva Filosofia j no o caminho do Pensamento. A cincia tornou-se a passagem obrigatria de todos os caminhos da Filosofia. A grande maioria dos chamados Filsofos de hoje no so pensadores, so parasitas da cincia. Quase todos vivem s expensas da cincia, do que lhe rendem as descobertas cientficas, quer se trate da matemtica, fsica ou biologia, quer se trate da antropologia, sociologia ou psicologia. A decadncia do Pensamento de tal monta que se perderam at as condies de se reconhecer a decadncia e identific-la, como decadncia. Ao contrrio. Hoje se toma a decadncia por grandeza e florescimento. Da a mescla de orgulho e medo, a sensao de sucesso e ameaa que acompanham os resultados e as descobertas da tcnica e da cincia. Da tambm as tentativas de controlar a angstia atravs de divises e separaes: separam-se as descobertas da tcnica e da cincia de sua m utilizao. Assim se acha que o controle da energia do tomo um bem; apenas seu uso na produo de bombas atmicas que um mal. Ora, para sustar a avalanche e reverter o processo, no adianta muito se chamarem, se considerarem e pretenderem ser filsofos. Para a Filosofia existir e sobreviver preciso aprender novamente a pensar e no apenas repetir, em novos registros, o j pensado pela tradio histrica nem derivar das descobertas, que sua aplicao tem proporcionado s cincias, perspectivas gerais de leitura e interpretao. Sempre se repete hoje em dia que uma onda de progresso se expande por toda parte e se aponta para novas idias e invenes revolucionrias nas diversas reas da produo cultural: nas matemticas, na lgica, na computao, na semntica, na medicina, nas teorias dos jogos, dos sistemas, das catstrofes etc. A decadncia chegou ao ponto de se pretender construir uma nova Filosofia com as ltimas descobertas. A justificativa de tal pretenso diz no fundo o seguinte: O conhecimento cientfico corre num ritmo to veloz que, depois de dar algumas voltas em torno da terra, Gagarin, o primeiro homem a ir ao espao exterior, disse, sem a menor cerimnia, numa entrevista imprensa internacional: no encontrei Deus em volta da terra. que eu girava rpido demais! Que indigncia de pensamento! Neste nvel, no possvel nem mesmo perceber e muito menos pensar o problema de Deus no atesmo e o problema do atesmo na crena em Deus e no reconhecimento de sua presena! A entrevista foi lida, foi louvada e condenada em toda a grande imprensa do

12 mundo. Ela s no foi pensada. Na bolsa do conhecimento, da cincia e da Filosofia, a cotao do Pensamento anda mesmo muito por baixo! Alguns anos depois, uns astronautas americanos, aps contornarem a lua pela primeira vez, comunicaram para o mundo estupefato que a terra azul era o astro mais bonito do universo. Eles ainda no tinham chegado nem mesmo lua, mas j sabiam que a terra azul era o astro mais bonito do universo. Como d para se ver, o Pensamento no tem acompanhado o surto de evoluo do conhecimento cientfico. Por isso, a tese fundamental da ltima preleo de Heidegger na universidade de Friburgo foi: O que mais nos faz pensar em nosso tempo, que d tanto a pensar, no se pensar! Nestas condies, no de forma alguma para se estranhar que o ritmo acelerado do progresso da cincia tenha aumentado consideravelmente o estado de confuso reinante. E no subiu apenas o desnvel e, em conseqncia, a dificuldade de comunicao entre as elites culturais e o nvel de conhecimento do povo. muito pior do que isto. O tropel do progresso cientifico atropelou os pressupostos do Pensamento em todos os homens, nas elites mais ainda do que no povo! Estes pressupostos vinham servindo sculos afora de suporte e sustentculo no apenas para as convenes e instituies do Ocidente, mas para a prpria vitalidade da convivncia e o vigor de criao em todos os campos da atividade histrica dos homens. As experincias de pensamento do espao, do tempo e movimento, da lei, do paradigma e destino, as integraes de natureza, histria e sociedade, a fora de reunio do uno e do mltiplo, a identidade conquistada atravs das tenses da diferena, tudo isto se esboroou e dissolveu, deixando todos os padres de comportamento nas aes, reaes e omisses deriva, sem rumo, nem amparo, sem continente, nem horizonte. Substituindo as experincias do Pensamento, o conhecimento objetivo no d indicaes nem oferece parmetros para se viver num vazio vazio, isto , desprovido at mesmo da exigncia de rumos e referncias. Sem as experincias do Pensamento, no temos perspectivas para encontrar caminhos num mar em que tudo relativo e mutante, em que as mudanas se sucedem em alta velocidade, embora sempre com a promessa do absoluto das transformaes e da segurana das solues. esta experincia a importncia que nos traz a Filosofia Grega com um modo de vida criativo e livre. Pois, nos sculos de seu vigor originrio ela sempre se sentiu em casa no vazio, sem exigncia de parmetros e padres e, ao invs de horror, sempre experimentou um el criativo no no saber do Pensamento. Para a experincia do Pensamento originrio se inverte nosso senso de amparo. Amparo, j no ter em cima tetos, telhados, coberturas, ou possuir embaixo solo, cimento e asfalto ou dispor no meio de correntes, trancas e trincos, viver sem nenhum teto para a cabea, sem nenhum solo para os ps, sem nenhum esteio para as mos. o sentido grego que antecede a passagem do Evangelho: As raposas tm covas e as aves do cu tm ninhos, mas o filho do homem no tem onde reclinar a cabea. No que se tenha de fazer um transplante da Filosofia Grega para os dias de hoje. Isto impossvel. Nossos modos de sentir e hbitos de conhecimento no-lo impediriam. A Filosofia Grega est profunda e intrinsecamente tecida na lngua grega e ligada cultura grega, isto , a instituies, instncias e costumes que nos so hoje estranhos e exticos. Mas, por outro lado, temos uma necessidade imperiosa de desaprender muitas coisas e aprender outras tantas com a estranheza do Pensamento na Filosofia Grega. Os gregos do perodo originrio tm a vantagem de um modo de falar e dizer que, justamente por ser desconcertante e paradoxal, se torna to educativo tanto para nosso saber como para nosso no saber. Muitas so as possibilidades de pensar, modos de comunho ainda no

13 explorados, que os pensadores e filsofos gregos tm para oferecer: acuidade, inspirao e humor, mas, sobretudo, um sentido de arte e beleza, um senso de absurdo e contradio que, ao mesmo tempo, exaspera a razo e deleita o pensamento. Pois, o prprio do Pensamento a fora original de virar pelo avesso tanto o racional como o irracional e dissolver o que se nos afigura constituir os princpios mais caros racionalidade e a exclusividade de valor do binmio moderno racional-real. O pensamento na Filosofia Grega a mais radical compaixo pela humanidade do homem, de que se tem notcia, sem concesses nem reservas. O grego do perodo originrio no quer ser salvo nem quer salvar ningum e por isso no busca nenhum messias e nenhuma doutrina de salvao. No tem religio. A lngua grega no possui nenhuma palavra prpria para dizer religio. Religio um timo latino e designa uma experincia romana. Mas no quer isto dizer que o grego seja ateu. Apenas seus deuses no so salvadores e sua experincia histrica no inclui nenhuma misso redentora nem individual nem racional nem universal. A aprendizagem da Filosofia passa sempre pelas obras dos grandes pensadores. Mas uma leitura com o propsito de aprender a pensar no poder ser ideolgica. No se estudam os filsofos para sair repetindo as atitudes que tomaram, as posies que defenderam ou as respostas que deram. Em toda leitura e interpretao de um texto est em jogo a capacidade de pensar de quem l e interpreta. A filosofia no uma doutrina. A Filosofia uma atividade, diz Wittgenstein no n. 5217 do Tratado LgicoFilosfico. E qual a atividade da Filosofia? a atividade de aprender e ensinar a pensar. A tarefa do pensador no construir respostas nem formular teorias. examinar as irrupes das diversas teorias e respostas em seus respectivos pressupostos de sustentao. Na conhecida formulao socrtica oida oyden eidws", sei que no sei, este que no tem funo nem categorial, nem transcendental, seja integrante seja causal. Indica simplesmente a conjuntiva histrica da existncia, em que se d e exerce a liberdade do Pensamento em tudo que sabe; em tudo que sabe o pensamento no somente sabe que no sabe. A formulao no visa apenas a constatar um fato e sua aceitao por parte de Scrates. Fala de uma realizao e modo de ser, a realizao e o modo de ser do filsofo. O pensador em tudo, e sobretudo, vive o no saber. Pois pensar no saber. no saber. Quando se pensa no se pretende saber, e quando se pretende saber no se pensa. Desde o Poema de Parmnides, o pensador-filsofo aquele que no cessa de questionar as razes em que se encontram e desencontram, numa encruzilhada da verdade, os caminhos do ser, do no ser e do parecer. No mesmo dia do colapso mental nas ruas de Turim, Nietzsche explicitou num bilhete a seu amigo Jorge Brandes as relaes do Pensamento, vigentes em todo estudo de Filosofia, com trs verbos: entdecken, finden e verlieren, descobrir, encontrar e perder. o seguinte o teor do bilhete:Turim, 04.01.1889. Caro Jorge, Depois de me teres descoberto no foi difcil me encontrar: a dificuldade agora me perder... O crucificado.

Neste bilhete, um dos chamados bilhetes da loucura, Wahnzetteln, Nietzsche no est falando de suas obras, mas do Pensamento e do modo extraordinrio de operar do Pensamento, isto , de como o Pensamento se pe em obra, age e trabalha. Os verbos no se referem apenas a Nietzsche e seus escritos, mas aos pensadores de todos os

14 tempos e a suas obras, qualquer que seja a situao individual, ideolgica ou poltica de cada um. S se poder corresponder ao Pensamento de um pensador se se conseguir ler a sua escritura numa leitura libertadora de nosso prprio pensamento, isto , numa leitura que nos liberte o pensamento para a liberdade de pensar. No existe um mtodo de leitura, nem uma filosofia que nos proporcione as condies para uma compreenso criadora dos textos dos filsofos gregos. Nem a prpria Filosofia Grega nos garante uma leitura livre de seus filsofos. Pois, toda obra criadora, caso seja realmente criadora, isto , uma obra que nos liberte a capacidade de pensar, transcende sua prpria filosofia, ultrapassa seus prprios parmetros, remetendo-nos para fora e para alm da posio fundamental em que ela mesma se planta. O nico sentido de uma obra filosfica precisamente rasgar novos horizontes, desencadear novos impulsos, instaurar novo princpio em que os recursos, os caminhos e padres da obra se apresentem superados e insuficientes, se mostrem exauridos e ultrapassados pelo novo nascimento histrico. Instituindo novos parmetros de questionamento. Uma obra de pensamento cria novas regras de leitura. Ora, toda explicao, no sentido do conhecimento e no a ex-plicao do Pensamento, recorre ao j existente, remete para o j sabido excluindo de qualquer explicao tudo que for libertador e criativo, tudo que inaugurar uma transio histrica. E no somente isto. O predomnio destas explicaes destila por toda parte uma compulso de repetir a que nada poder resistir, como se j no pudesse haver nenhuma criatividade e tudo se reduzisse miragem de um deserto montono e incapaz tanto de viver como de morrer. Este sentido de Pensamento, que Nietzsche atribui a toda leitura das obras dos Pensadores, d s contribuies da Filosofia Grega uma outra autoridade e uma renovada dignidade de criao, sobretudo para ns hoje imersos num processo de transio e respirando o ar de um sculo vespertino. Numa famosa preleo de 1935, publicada em 1953, fala Heidegger da necessidade atual de aprender a pensar com a Filosofia Grega:Justamente porque nos devemos aventurar na grande e longa misso de demolir um mundo envelhecido e construir um outro verdadeiramente novo, isto , histrico, temos de saber a tradio. E temos de sab-la mais, isto , de modo mais rigoroso e comprometido do que todas as pocas anteriores e revolues passadas. S o mais radical saber histrico nos pe diante do que h de extraordinrio em nossa tarefa e nos h de preservar contra uma nova exploso de mera repetio e estril imitao.

O que se trata de ultrapassar hoje, o que se tem de superar agora no determinada interpretao do sujeito. determinar o homem como sujeito. Esta determinao caracteriza os tempos modernos e alcana hoje na expanso essencial da tcnica uma fora planetria. to profundo seu vigor histrico que permite a concepes diferentes e at contrrias reivindicar com o mesmo direito a linhagem da modernidade. Idealismo e realismo, materialismo e espiritualismo, racionalismo e existencialismo, capitalismo e socialismo tm em comum a necessidade histrica de no se desenvolverem nem se afrontarem seno plantados no solo de um mesmo niilismo, do niilismo em que o mistrio da realidade e do realizar-se no tempo j no nada e o nada se reduz sempre a algo simplesmente negativo, mera ausncia de qualquer coisa. Centro de um mundo quase que s feito de sujeitos e objetos, de funes e operaes, a armao da tcnica se vai tornando o fundamento comum de todos os sistemas e organizaes modernas, o tema de todo humanismo, cristo, ateu ou indiferente, a meta de todas as revolues, capitalistas ou comunistas.

15 No imprio das funes politnicas em que hoje batemos e nos debatemos, a Filosofia Grega nos faz ver a urgncia de pensar a questo de fundo de toda existncia atual: ser que continuaremos prisioneiros da insurreio da tcnica e condenados para sempre a desenvolver, sem nem mesmo pressentir suas conseqncias monstruosas, as muitas ideologias de esquerda, direita e do centro? Ou os tormentos que nos atormentam nas tormentas de hoje no podero vir a transformar-se de repente no preldio, por mais doloroso que seja, de uma nova aurora dos dedos de rosa ou fnix de uma outra ressurreio? Com estas esperanas animando-nos o Pensamento, devemos comear o esforo de aprender a pensar estudando a Filosofia dos Gregos. um comeo estranho e curioso, como todo comeo essencial. Pois um comeo que, quando realmente comea, faz a experincia e descobre que j tinha desde sempre comeado! E que em nenhum comeo se poder confundir comeo com princpio. Comeo no princpio. Comeo alavanca. Remete-nos ao empuxo e arranque com que uma coisa comea. Enquanto princpio origem. Remetemos fonte donde uma coisa brota. O comeo mal comea, e j est superado. Desaparece e fica para trs nas peripcias do processo de criar e produzir. O princpio ao contrrio surge e se impe ao longo de todo o processo, pois s alcana a plenitude no fim. Comeo o princpio em busca de realizar-se, fim o princpio plenamente realizado como princpio. Quem comea muito, que inicia muitas coisas, nunca chega ao princpio. que ns, seres finitos, somos definidos. Temos necessidade de definies. Nunca poderemos comear com o princpio. E por que no? Porque j estamos sempre imersos no princpio. Por isso mesmo, para sabermos que estamos onde estamos, temos de comear invariavelmente com o incio, com algo, portanto, que nos descubra o princpio, que nos mostre a origem, que nos desvele a fonte. a esta espcie de comeo, este tipo de incio que nos proporciona a Filosofia Grega, quando nos surpreendemos num esforo de aprender a pensar. Pois, o estudo dos gregos o esforo que fazemos para entrar e tomar posse do que j nos sempre dado: a capacidade de pensar. Colocamos o estudo da Filosofia Grega no comeo para chegar onde desde sempre j estamos, no princpio do Pensamento. O caminho mais longo, to longo, que dura toda a vida, aquele que nos leva ao mais prximo, to prximo que ns o somos, e a ltima caminhada, a que nos deixa no princpio, no princpio do que somos e no somos. S se compreende o que se aprende. Pois aprender esvaziar-se de todo continente e de qualquer contedo e, assim, abrir-se e manter-se aberto para o estranho e no sabido, para o outro, a diferena e o desconhecido. Por isso s aprende quem pensa. Pois, pensar significa acolher o mistrio da realidade irrompendo nas realizaes do real. Para se compreender, portanto, o sentido, isto , a necessidade e urgncia da Filosofia Grega nos dias de hoje, temos de aprender a pensar a diferena entre Pensamento e Filosofia dentro da experincia grega. Antes de tudo, necessrio assumir em nosso modo de ser e incorporar em nossa atitude que no possvel nem ensinar nem estudar o Pensamento. S possvel mesmo aprender a pensar. Ensino e estudo, disciplina e esforo so processos de aquisio do conhecimento. E por que no? E ser mesmo possvel separar ensino, estudo e conhecimento para um lado e aprendizagem, compreenso e pensamento para outro? No se trata disto. que no Pensamento j estamos, nos movemos e somos desde sempre. O pensamento no objeto de estudo. o modo de viver dos homens. Justamente por no se poder separar ser homem de pensar, por isso que no se pode ensinar e estudar o Pensamento. Mas se o Pensamento no pode ser objeto de estudo, no quer isto dizer que no se possa estudar os pensamentos dos pensadores. Muito pelo contrrio. Significa apenas que o estudo necessrio e indispensvel, mas no

16 bastante nem suficiente. Alm do estudo, deve-se ainda favorecer o Pensamento, deixando-se arrastar e fluir na correnteza da realidade com esperana de ser transformado pela realidade, mas sem expectativas nem pretenso de determinar como deve ser o real. Pois, diferente das expectativas, esperana confiana na entrega e consignao da realidade, enquanto expectativa se alimenta da frustrao de no se ter aceitado a realidade e, por isso, busca substituir o real. O modo de o Pensamento difundir-se e o processo de sua expanso esto mais para contgio e infeco do que para esforo e disciplina. Por isso, tambm no h mestres no Pensamento. Todos so discpulos. Mestre, s de obras e de conhecimento. O pensamento que domina os pensadores com a sutileza de sua fragilidade. Todas as grandes coisas da vida, como a bondade, a inocncia, a liberdade no tm poder de impor-se, de defender-se. o que acontece tambm com o Pensamento. Corre em Friburgo, na Alemanha, a estria de um livro de Filosofia. Heidegger queria presentear um amigo com o Tratado de Schelling sobre a liberdade. Empacotou e foi despach-lo pelo correio. O funcionrio perguntou se havia no pacote alguma coisa de quebrar. Heidegger respondeu: claro, o Pensamento. um livro de Filosofia. delicadeza visceral do Pensamento, o homem do Ocidente se recomenda desde Hesodo. No prlogo da Teogonia, o poeta canta a fragilidade delicada das musas. A que apelo de pensamento correspondem as musas dentro da experincia do pensamento grego? Conjetura-se que o timo da palavra musa seja mn. Trata-se de um timo relacionado com a raiz indo-europia: men-, que diz a experincia de ao de uma fora explosiva. Desta raiz se deriva o substantivo menos = a fria, o furor, o furaco, a alma, o esprito, o corao, o ncleo, o ntimo, o centro, a coragem, a ousadia, o vigor. A articulao com raiz dhe, que significa: pr; empenhar, forma o tema men+dhen, indicando a experincia de aplicar e pr uma fora de concentrao e expanso em alguma coisa. Por isso, manthano diz aplicar o esprito e, portanto, a aprender e ensinar, a aplicao da fora de concentrao do esprito em alguma coisa, da o sentido de cuidado e preocupao. As musas designam assim a experincia de foras se concentrando no sentido e se afundando no ntimo das coisas. As musas regem o Pensamento em todas as suas formas. So elas que lhe constituem a essncia e o vigor de ser. Nasceram em nove noites de Zeus com Mnemosine, a fora de interioridade e condensao. No de se admirar que as musas existam no plural para possibilitar todos os modos de pensar: poesia, persuaso, sabedoria, histria, matemtica, astronomia. Somente um esprito rude, prepotente e voraz, como o esprito moderno, poder ver nas musas apenas confuso e fantasia. Na experincia originria dos gregos, as musas so tambm a fonte da verdade do real e revelao da realidade. Hesodo nos diz que recebeu das prprias musas a misso de demonstr-lo: Pastores rudes, ms lnguas, somente ventres, sabemos dizer muitas coisas falsas como reais, mas sabemos, quando queremos, dizer a verdade em forma de mito. O canto das musas alegra o corao de Zeus e dos deuses do Olimpo porque elas cantam os tempos de realizao do real e descortinam o horizonte da realidade. o que nos diz Hesodo no vv. 36-38:Vamos, comecemos com as musas que, cantando, alegram o grande corao de Zeus, seu pai, no Olimpo, dizendo com voz unssona o que , o que ser, o que foi antes.

17 Esta fragilidade essencial impede que o Pensamento se possa transmitir diretamente com a massa. A essncia do Pensamento to sutil e delicada que no agenta transplante e resiste transferncia. Ela se d vivificando um modo de ser e alimentando uma vida. Assim vive, por excelncia, na vida de pensar dos grandes pensadores e, por abreviatura, na vida espontnea de todos os homens. Se ningum pode dar Pensamento a ningum, todos tm a possibilidade de abrir-se e expor-se ao Pensamento, como faz a flor pela manh aos raios de sol. Neste sentido, estudar necessrio, mas no basta. O estudo vem da razo e, como tudo que racional, no pode nem morrer nem viver. Aprender vivo e, como toda vida, precisa morrer continuamente para viver. Estudar o meio de conhecer. Ora, conhecer poder e um poder to poderoso que se pretende dispensar de ser o que conhece. Para o conhecimento ser o que conhece, perigoso. Traz o perigo de comprometer a iseno e neutralidade de conhecimento. Por isso, o conhecimento tem de ser racional e arrancado de toda possibilidade de viver e morrer. Em latim, arrancar se diz ab-strahere e arrancado ab-stractum. Para arrancar-se da alternativa de vida e morte, o conhecimento se torna abstrato. Abstrato quer dizer, em primeiro lugar e antes de tudo, fora da possibilidade de morrer e viver para poder estar todo dentro da segurana do poder. O ideal de todo conhecimento muito mais conhecer sem ser do que conhecer sem sujeito. Neste sentido, o conhecimento visa a conhecer o amor sem amar, busca conhecer a meditao sem meditar, quer conhecer o pensamento sem pensar. Vivemos na poca do conhecimento, o que vale dizer: por toda parte grassa a obsesso pelo poder e por segurana. Da, nosso primeiro cuidado, ao visitar os pensadores gregos e nos encontrar com a Filosofia Grega, uma atitude de disponibilidade: no ir para estudar e conhecer, mas ir para aprender a pensar. Esta a semente que vai florescer e transformar-se em rvore de pensamento. Quando, onde e em quem de ns vai transformar-se em rvore no podemos saber, s podemos mesmo esperar. Como diz Herclito no fragmento 8: Se no se espera, no se encontrar o inesperado, sendo sem caminhos de encontro nem vias de acesso. A disposio de aprender a pensar constitui, pois, a semente de nossa esperana em todo contato com o Pensamento na Filosofia Grega. Muitas so as diferenas entre a atitude de aprender e a atitude de estudar. Quem vai estudar quer mais conhecimentos e informaes para saber mais, para poder mais, para assegurar-se mais. Quem vai aprender quer esvaziar-se mais e desaprender mais para arriscar-se mais a ser mais. Se no se apostar a vida, no se aprende nada. Quando se estuda, cresce o receiturio, isto , o repertrio das receitas; aumentam, em conseqncia, as possibilidades de fazer. Quando se aprende, crescem as possibilidades de ser e realizar-se; aumentam, em conseqncia, as possibilidades de viver e de morrer. Algum que se aproxima da Filosofia Grega para estudar vem repleto de perguntas e com muita curiosidade. As respostas vo aumentar o acervo das informaes. Esta outra diferena entre aprender e estudar. Pois, algum que se achega aos pensadores gregos para aprender a pensar s traz uma nica pergunta, s tem um nico propsito. Muitas perguntas provm da voracidade insacivel do conhecimento. Qualquer resposta recebida s servir mesmo para gerar mais perguntas. A voracidade do saber como a Hidra de Lerna, cada resposta se transforma em muitas novas perguntas. Assim a resposta pergunta: quem criou o mundo? Se for, por exemplo, Deus, transforma-se

18 logo em mais perguntas: E Deus existe? Quem Deus? Deus no uma ideologia? No resulta do sentimento ocenico do inconsciente? Por qu e para que Deus criou o mundo? Antes de criar o mundo, o que Deus fazia? E se a resposta for: O mundo no foi criado, sempre existiu, a situao no melhora. Logo se pergunta se a eternidade do mundo compatvel com a entropia? Se no h contradio entre o tempo no mundo e a eternidade do mundo? Se no existe uma proporo constante entre a quantidade de massa e a durao do mundo? E se a resposta for: O mundo vem do acaso: Nosso nmero saiu na loteria de Monte Carlo, como escreveu Jacques Monod no Acaso e Necessidade. Esta resposta no desencadeia menor avalanche de perguntas: No existe correspondncia entre causa e efeito? O acaso no supe a necessidade para ser acaso? Pode-se transferir sem mais um mecanismo de um nvel para outro? A probabilidade no exige sempre a possibilidade? Pressupor simplesmente a possibilidade de o acaso criar alguma coisa no equivale a admitir provado o que se deve provar? Como se pode ver, ter muitas perguntas a fazer aos Filsofos Gregos no sinal de sabedoria, mas de confuso. Significa que se est perdido girando em crculo pela periferia da vida. Na periferia existem sempre muitos pontos a serem discutidos, mas todos dispostos em crculo: uma pergunta leva a outra que puxa outra e assim ao infinito. Aristteles j dizia que, em todo movimento de remisso e regresso sem fim, o crculo deixa de ser virtuoso para se tornar vicioso. Por isso: preciso parar o vcio e interromper o malefcio. Sem o poder de concentrao e a dinmica de reunio de uma fora de unidade no se d nem acontece nenhum movimento. No adianta multiplicar os vages ao infinito. Sem o poder de reunio e fora de aglutinao da locomotiva o trem no anda. o que acontece com as nossas perguntas girando em crculo pela periferia do pensamento na Filosofia Grega. Para se encontrar com o pensamento grego, deve-se ter uma pergunta apenas: a pergunta que brota da unidade de nosso prprio ser. Por isso, importante deixar a periferia e ir para o centro da vida. Pois, somente no centro a pergunta essencial. No centro, todo nosso ser transforma-se numa nica pergunta. Todo o nosso ser pergunta. Ser todo pergunta em qualquer estudo da Filosofia Grega a nica maneira de se aprender a pensar com o que pensavam os pensadores gregos. Mas como que uma metamorfose desta se d e acontece em concreto? Sem dvida, somente quando e na medida em que tudo o que somos e no somos, tudo que temos e no temos, se sintonizar com o apelo e responder ao alento da realidade e suas peripcias biogrficas e histricas em nossa essncia de Midas do ser e argonautas da verdade. O adjetivo con-creto, com que hoje designamos a experincia do real e sua realizao na histria da realidade, provm, por derivao, do verbo latino: concrescere (= crescer junto com; condensar, coagular, coalhar, combinar). um verbo composto da preposio cum (= com, junto com, em conjunto ou companhia de) e do infinitivo: crescere (= crescer, aumentar, desenvolver-se). Con-crescere diz o processo de crescer em conjunto, isto , dentro da totalidade do real, e de desenvolver-se integrado no universo das realizaes. Con-creto designa, pois, tudo que estiver integrado neste nvel de crescer e comprometido com o desenvolvimento da realidade. Pois crescer no apenas aumentar de tamanho nem subir os graus de uma escala e nada mais. Parmnides nos diz em seu Poema Filosfico que uma integrao real e um compromisso com a realidade constituem o corao intrpido da verdade de circularidade perfeita. Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2003.

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O MEDIEVAL E O SABER DA ABNEGAOMrcia S Cavalcante Schuback* Muito se tem publicado nos ltimos dez anos sobre a filosofia e a teologia medievais. Esse interesse responde vontade intelectual de saber, uma vontade de superar o nosaber num saber dos dados, das fontes, da letra. Se, no entanto, prestarmos ateno ateno que o esprito medieval dedicou ao que o saber no capaz de saber, haveremos de admitir que o medieval se distingue pela sabedoria do no-saber. Como nossa nsia de saber e superar todo no-saber haveria de compreender a sabedoria medieval do nosaber? Antes de qualquer tentativa de reunir vrios textos medievais sobre esse tema, antes de ensaiar uma interpretao sobre o clebre texto de Nicolau de Cusa, a Douta Ignorncia, deveramos nos perguntar sobre o que ns entendemos hoje por saber. Pois somente desde nossa histria concreta que podemos encontrar ou desencontrar outros horizontes de experincia. O presente texto rene apenas algumas anotaes espontneas sobre a relao entre saber e abnegao. Nosso saber historicizante. um saber em busca da objetividade do que ns mesmos no somos. Quando queremos saber alguma coisa perguntamo-nos quando isso aconteceu?, quem fez isso?, por que isso aconteceu? Em todas essas perguntas simples j se decidiu, de maneira complexa, o que esse isso a que nos referimos. Se fizermos essas perguntas a respeito de quando esse carter historiogrfico do saber se firmou como uma marca do saber intelectual, haveramos de dizer que isso se deu na virada do sculo XVII para o XVIII. Diz-se que foi ento que o homem europeu deu-se conta de sua natureza histrica. O que h de caracterstico e prprio nessa to conclamada descoberta da histria? A chamada descoberta da conscincia histrica a descoberta da condio moderna da vida da histria. A novidade no tanto um contedo ou sentido da vida e da histria mas, sobretudo, o modo em que qualquer

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Sdertrns University College, Estocolmo, Sucia

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contedo ou sentido da vida e da histria poder ser conquistado em concordncia com o tempo: esse modo o moderno. Fala-se demais de moderno, modernismo, ps-moderno, neomoderno, trans-moderno etc. A diferena entre essas vrias correntes ou modismos da crtica reflexiva consiste na gangorra, que oscila entre a adeso ao antigo e medieval ou a sua repulsa. Sem que seja necessrio atravessar os meandros dessas modas crticas, pode-se guardar como o decisivo do moderno a referncia e remisso ressentidas ao passado, em suma, quilo que j se foi mas que se deixou de ser. A proclamada descoberta da razo moderna, dessa terra firme do pensamento, numa expresso de Hegel, com Descartes, a consolidao da conscincia racional com o Esclarecimento definem-se, desde seus primrdios, como xodo, como sada, libertao do passado, entendido como princpio de autoridade. Cabe, aqui, lembrar a clebre definio kantiana do que Esclarecimento (Aufklrung): Aufklrung a sada do homem de sua minoridade, da qual ele prprio responsvel. O moderno o que deixou de ser regido pelo passado, o que se libertou do princpio de autoridade, do parmetro e paradigma para encontrar o seu prprio caminho. Esse caminho, porm, que a sua prpria razo, s se deixa definir relativamente, remissivamente ao antigo. Sendo, inexoravelmente, um conceito anfibolgico, o moderno s se define, definindo, ao mesmo tempo, o que ele no , o que ele no mais, o passado. E, por isso, a Idade Moderna s pode nascer e fundar-se como Renascimento. Por isso, a forma moderna s pode estabelecer-se mediante reformas. Por isso, as evolues modernas se apresentam como revolues. Nesse re, explicita-se essa duplicidade do moderno: s poder ser o que na referncia ao que no mais, na referncia ao passado. Isso evidencia, igualmente, o prprio dessa conscincia histrica, que marca a segunda metade da Idade Moderna. Trata-se da conscincia de que a razo, essa que faculta o xodo do estado de minoridade, tambm j foi uma outra, a da autoridade e, por isso, Kant refere-se a minoridade como sendo responsabilidade do prprio homem, ou seja, a minoridade da razo humana pertence prpria natureza da razo. Trata-se da conscincia de que, j tendo sido outra e diversa,

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a razo tambm inclui a no-razo ou a desrazo (a descoberta da conscincia histrica tambm descoberta do irracional). Trata-se da conscincia de que, sendo relativa e no absoluta, a razo pode ser conquistada, a razo pode esclarecer-se, mediante formao, mediante educao. Nessa trplice acepo da conscincia histrica, o moderno se afirma como um no, um no-antigo, um no-mais e, portanto, como uma separao, uma distino ou, num termo grego, como uma crise. O moderno se apresenta como a crise da autoridade. Por crise da autoridade deve-se, no entanto, entender no a simples crtica dos modelos e parmetros, mas, fundamentalmente, a apreenso problemtica do que pertencer. Ser pertencer no modo de no aceitar nenhum pertencimento, ou seja, no modo de no aceitar a si mesmo. A crise da autoridade, pela qual se pode passar da minoridade para a maioridade, explicita a problematicidade de pertencer a uma tradio, a um mundo, a problematicidade de se ter um passado. Esse o drama crtico de Hamlet, o drama do ter, o drama do pertencer, em que a dramaticidade no reside numa impossibilidade mas na apreenso de que ter, pertencer no constituem um dado puro e simples, mas uma exigncia de conquista. O passado no somente uma transmisso mas, sobretudo, uma misso. Ter passado ter de conquistar o seu sentido para descobrir o que prprio. Por isso, assim como o estranho, tambm o prprio precisa ser aprendido (Hlderlin). O drama de Hamlet constitui uma das fontes mais ricas para uma discusso acerca da essncia do moderno. O drama tem incio com uma apario. A apario do fantasma do rei. O rei est morto, mas no cessa de reaparecer fantasmagoricamente, ou seja, como morto. O antigo, o passado, a autoridade do paradigma est sempre referida no moderno mas sempre como o morto, como o fantasma. Ao longo da Idade Moderna, teceram-se

inmeras determinaes do antigo, ou seja, da instncia paradigmtica para a formao do prprio. O antigo o natural, o puro, o inocente, o imediato, o mgico, o terno, o pueril, o ingnuo, o maravilhoso, o lugar do pathos, o mtico. Em todas essas adjetivaes est em jogo uma idia de natureza, de naturalidade, enquanto o que se faz em si mesmo por si mesmo, numa radical imediaticidade, mas igualmente de uma

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natureza-morta. O moderno , por sua vez, essa natureza-morta, o que se perdeu da natureza, perdeu a naturalidade, sendo o predomnio do artefato, do artifcio, do mundo das mediaes, do que no capaz de fazer-se por si mesmo mas somente por um outro. Para o moderno, tudo se realiza apenas por mediaes, no havendo mais escuta direta do real em Hamlet, o rei morreu por envenenamento no ouvido. Nessa distino de base entre natureza e artifcio, o moderno se apresenta como o que se perdeu da imediaticidade do real e, com ele, pode apenas lidar numa espcie de autpsia da realidade. As suas aproximaes so aquelas de um patologista, que disseca, investiga os corpos, os objetos, os restos, as relquias, os rgos, numa nica condio: a de que esses corpos no se mexam, no estejam em vida. Essa determinao do passado como fantasma do rei morto opera, sem dvida, uma grande mutao. A mutao da experincia das passagens, do passar, dos passos, a experincia gerundial do realizar-se da vida em marcos, dados, fatos da realidade. O fantasma do rei morto exprime uma mutao no sentido de realidade e existncia, que passa a significar as coisas reais, as coisas existentes, os corpos reais, os corpos existentes e no mais a vida de seu processo. A mutao de uma apreenso gerundial da vida para uma apreenso pretrita. Preterida tornou-se a vida. E em seu lugar edifica-se o artifcio. Essa mutao vai redimensionar profundamente o sentido de todo pertencimento. Nessa apreenso pretrita da existncia, o que significa pertencer a uma tradio? Significa reproduzi-la. Significa reproduzir a vitalidade do vivo e, portanto, de tudo o que passa, perpassa, ultrapassa: num conjunto de dados, num conjunto de corpos, num conjunto de coisas. Pertencer a uma tradio transmuta-se, assim, em coletnea, em coleo, em arqueologia e museologia. Pertencer a uma tradio transmitir os seus dados a fim de que a tradio no passe. E somente nessa exigncia de que a tradio no passe que as traies podem se cumprir e impor. Sendo transmisso de dados, pertencer a uma tradio implica num modo de saber de si mesmo. Saber de si , aqui, enumerao de tudo o que j se sabe ter sido para se prever o que se poderia ainda vir a ser. um saber retrospectivo e prospectivo, um saber descritivo e prescritivo. Da provm a exigncia enciclopedista, especialista, profissionalista do saber. E com esse saber, pretende-se

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conferir vida aquilo que lhe parece sempre faltar: permanncia, eficincia e certeza, com vistas ao seu uso, ao seu controle. Esse saber transmissivo , em primeira e ltima instncia, um saber educador da natureza da vida para uso dos homens. No horizonte desse saber transmissivo e educador, est sempre em jogo dar, propiciar uma coisa que ainda no se possui, que ainda no pertinente. E nesse sentido que o saber transmissivo e educador um saber tcnico. tcnico porque pretende conferir vida do saber a certeza do sabido. Pretende conferir ao ritmo da criao, a pressa do resultado. Pretende conferir fora de formao a rigidez das formas. O saber

transmissivo e educador o saber que em tudo o que sabe no deixa de arrastar um corpo, o corpo do rei morto. Norteado por esse sentido tcnico do pertencer, o moderno se relaciona com a natureza, com a sua prpria natureza, com vistas ao seu uso. No obstante a pluralidade de suas determinaes, a natureza e o natural sempre se apresentaram como reduto do encantamento, do incontrolvel, do indizvel, do incoercvel, do inefvel, do estranho. Sendo o mundo moderno, o mundo da educao da natureza para o uso dos homens, todo estranho precisa ser educado, no sentido de tornar-se familiar. Todo indizvel deve ser pronunciado para que se encontre um modo de diz-lo. o mundo dos grandes descobrimentos, das grandes descobertas, das grandes tradues, das grandes converses, das grandes decodificaes. O planeta se ocidentaliza. Mas, para tanta grandeza, esse mundo precisa ser o mundo da formao de regras, de cdigos, de paradigmas, de parmetros, de mtodos, de instrues, de manuais, de catlogos, de memrias. E, em tudo isso, parece que o prprio de cada um, o prprio de cada indivduo, de cada povo, de cada cultura, no prprio de sua estranheza, passvel de formao e educao dentro dos moldes de uma forma nica e absoluta de apropriao da realidade. Aprendizado, aqui, converter, reduzir uma variedade a uma norma de comportamento, de saber, de ao. Aprendizado , pois, entendido como aplicao de regras e normas com vistas a um resultado o prprio mecanismo do artifcio. Seja avaliado como o mais positivo, no Candide de Voltaire, ou o mais negativo, no Emile de Rousseau, o aprendizado , para o moderno, a certeza da eficcia do artifcio.

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O saber moderno, o saber transmissor e educador, de carter universalizante, no pode no saber. E justamente aqui que se pode perceber em que medida a definio moderna do acadmico como unpractical, not leading to a decision, distingue-se radicalmente da experincia medieval do que universitas e da antiga na sua academia, o akademikos. A academia, o akademikos grego, socrtico-platnico, o que sabe do no-saber. Saber do no-saber o prprio da virtude acadmica, o prprio da teoria, esse termo estranhamente perdido, que nos atravessa os sculos como bala perdida, sem que se saiba de onde vem e para onde vai. A palavra teoria, que em grego deriva-se de olhar, indica o olhar que sabe do no-saber. O que um saber do no-saber? Descrevemos, brevemente, o ideal moderno de saber como o saber que, em tudo que sabe, arrasta sempre o corpo de um rei morto. Trata-se de um saber que no consegue enterrar, abandonar, deixar, esquecer nada. um saber que pretende intransitoriedade absoluta. um saber que no admite obscuridade, incerteza, nenhuma mortalidade. Por isso, a sua temporalidade o acerto ininterrupto de contas com tudo o que passa. Esse ideal de saber funda-se na excluso obstinada de toda abnegao. Por abnegao, devemos entender no uma simples aceitao passiva das coisas, uma alienao ou submisso caracterstica, por exemplo, de nossa sociedade massificada. A abnegao exprime uma negao, um caminho do no, que, no entanto, no o mesmo de uma negao ou mesmo de uma denegao. A lngua latina mostra aqui uma riqueza, pois na distino entre negatio, denegatio e abnegatio algo de essencial se evidencia relativamente ao no. O no da negao, da recusa, da surdez, distingue-se do no denegador de uma falta temporria, de uma expectativa, de uma saudade, por exemplo, pois a o no somente relativo, o no que se pronuncia a partir do sim e cuja negatividade pode ser superada quando a expectativa se cumpre, quando se mata a saudade. O no da abnegao , porm, o no que s positivo, doador enquanto no. o no que no busca ser superado, resolvido, eliminado, mas, nica e somente, preservado: o no da condio de possibilidade, o no vital, o no incoercvel da vida, esse que possibilita que a vida nunca deixe de seguir vivendo. O

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que seria, ento, o saber do no-saber? Seria um saber abnegado, um saber da abnegao. Aquele que preserva, cultiva, e lavra em toda palavra, em todo conhecido, em tudo o que se sabe, a condio de possibilidade, a condio vital do saber. E qual essa condio? no-saber, o espanto, a admirao de que todo saber no apenas limitado, mas sempre um saber do limite e, portanto, um saber de que no se o nico, um saber de que h sempre um outro. o saber de que a de-limitao no se constitui a partir de um artefato do pensamento, das idias mas na experincia de que a vitalidade da vida delimitadora e, portanto, a apresentao de limites enquanto doao do outro, doao da inesgotvel estranheza do prprio. O saber abnegado do no-saber mostra-se, nesses termos, como a viso de que nada mais estranho do que o prprio. Na tradio crist, encontram-se os clebres escritos apcrifos dos Padres do Deserto. Um desses livros narra os ensinamentos do mestre espiritual Poemen. Conta-se que um discpulo o interrogou sobre como se deve estar e viver, no lugar em que j se habita. Mestre Poemen respondeu: No lugar em que habitas, tenha sempre a mentalidade de um estranho a fim de no buscares exibir a tua palavra e, assim, encontrars a paz. Ter sempre a mentalidade de um estranho no lugar em que j sempre habitamos o modo da abnegao, o modo de saber do no-saber. A ausculta do prprio, do familiar, do lugar a sua estranheza. Todo saber um j-saber. A primeira palavra pronunciada por uma criana j sempre se pronuncia numa lngua, nossos atos j se cumprem num mundo, nossos sonhos j sempre se constroem a partir de nossas prprias circunstncias. J sempre estamos no mundo. Guimares Rosa dizia ao nascer de uma criana: que alegria, eis que o mundo comea outra vez. Sempre estamos inseridos em hbitos, em palavras, em atos que nos pertencem justamente porque nos transcendem, ou seja, porque pertencem a outros homens. Mas somente no instante em que estranhamos o hbito, que estranhamos a palavra, somente quando estranhamos o ato que nos descobrimos num exerccio do saber. o estranhamento de que j somos quando comeamos a ser. J sempre somos-no-mundo. O estranhamento do j ser, do j saber antes de qualquer conscincia implica uma arte vou usar o termo arte sobretudo no sentido de uma

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arte marcial, implica uma luta nada mais difcil do que a abnegao , uma luta e formao que os msticos medievais descreveram como um desenformar-se,

transformar-se, formar-se. A primeira luta primeira no porque se faz uma s vez mas porque aquela sem a qual as demais no conseguem se fazer a de um abandono, um arrancar-se das formas, dos preconceitos, das idias fixas, das evidncias. o abandono que se cumpre num tempo de relmpago, numa espcie de arrebatamento, que Plato denominou de taumatso, de admirao, de desencantamento (como falamos de sapo desencantado!). ver o que sempre j se viu numa primeira vez. ver o cachorro em que sempre fazemos festa, ver o caminho onde sempre andamos, ver a casa em que sempre habitamos. Esse abandono no , porm, uma simples obra de inspirao. tambm e sobretudo obra da transpirao. Pois essa viso-relmpago essncia mesma da teoria s pode acontecer ao longo de um trabalho de desconstruo. Desconstruir no destruir. desfazer as construes, os monumentos, as edificaes das idias, dos hbitos de pensamento, sondando-lhes de onde eles puderam se constituir. Esse estranho trabalho de arquiteto, de desconstruir para habitar um aberto o que caracteriza a tarefa filosfica. O filsofo sempre um desabituado, o que se comporta como estranho no lugar em que habita. Sendo, porm, a sua desconstruo um estranhamento, um estranhamento para habitar o aberto, o campo da possibilidade das infinitas construes humanas, o filsofo no busca propriamente construir um novo edifcio. Ele busca seguir os caminhos das formaes e esse acompanhamento que dimensiona o sentido transformador da filosofia. Pois trans-formar , antes de mais nada, ultrapassar as formas, seguir a dinmica de formao. Esse acompanhamento dimensiona o modo da abnegao filosfica pois o aceitar, acompanhar, seguir no um assentamento cego mas sim um caminhar a dois, um caminhar dialgico, para usarmos um termo de Martin Buber, caminhar com o estranho de si mesmo. Assim, a transformao uma formao para alm de si, uma formao que ultrapassa a si mesmo no sentido de um outro. Mas de um outro que preserve a possibilidade de uma nova formao. Trata-se de um sim que ao se afirmar preserve e afirme o no vital, o no que condiciona a vitalidade da vida. E aqui o saber do no-saber evidencia-se como um saber da vida.

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Foi numa carta a Casimir von Bhlendorff, datada de 4 de dezembro de 1801, que o poeta alemo Friedrich Hlderlin afirmou que assim como o estranho, tambm o prprio algo que precisa ser aprendido. Ele se refere ao aprendizado da abnegao. No aprendizado da abnegao, o paradigma, o parmetro no o que se deve seguir e nem o que se deve recusar. O paradigma o que se deve desconstruir, no sentido de fazer aparecer o aberto das formaes. No aprendizado da abnegao no so os contedos, os ditos, os fatos que nos formam. Somente a vida que nos pode formar. O que se aprende com o passado o prprio aprender. aprender a apreender a vitalidade da vida em todas as formas, em todos os limites, em todas as configuraes e modos. O que se aprende , em outros termos, corresponder vitalidade da vida estranha lei de tudo perpassar e nada ser em tudo o que se faz. o aprendizado de de-limitar, de-finir, de construir limites, de dar nomes, de compreender, correspondendo vitalidade da vida, ou seja, sempre preservando a falta, a ausncia, o no vital, o que possibilita que a vida siga vivendo. Isso tudo pode parecer um monte de palavras vazias. Pode mesmo parecer um monte de belas palavras. Mas como esse saber do no-saber, esse aprendizado da abnegao poderia se realizar concretamente, poderia se aplicar por exemplo no estudo do pensamento medieval? Essa pergunta , sem dvida, uma pergunta bem moderna. Ela tem inclusive uma tradio moderna. Desde que o moderno se descobre nessa relao de pertencimento ao que ele j foi mas deixou de ser, ele descobre o seu saber como um saber em formao. Rousseau ancorou seu pensamento numa idia de perfectibilidade do ser-humano; Lessing escreveu uma educao da espcie humana, qual se seguiu um escrito de Herder sobre a educao da humanidade; Schiller escreveu as cartas para a educao esttica da humanidade; o romantismo alemo chegou a inaugurar um gnero literrio, denominado romance de formao, como os Anos de aprendizagem Wilhelm Meister de Goethe, o Hiprion de Hlderlin etc., Humboldt dedicou-se a discutir a possibilidade de uma universidade mais humana e menos especializada etc. Todos esses escritos concentram-se na questo filosfica da formao e todos debatem,

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debatem-se na relao de vida e formao, formao e destino. O que cada um desses exemplos de esforo nos demonstra que, enquanto base ontolgica, o aprendizado jamais pode pretender dar o que no se possui. Isso o que cada um desses autores, cada um desses livros descobre em meio consolidao do ideal tcnico e especializado do saber. Pois em cada um desses romances de formao, o aprendizado entendido como a doao do que j se possui. Nenhum desses tratados e romances refere-se a uma didtica. A pergunta de como essa lei vital do aprendizado pode tornar-se uma didtica a mesma de como ao ouvir o passar do tempo ensinar o papagaio do rei a recitar de cor a Odissia. A experincia medieval de um saber do no-saber constitui para ns, modernos, a maior de todas as estranhezas. Para o medieval, saber um aprendizado da abnegao. Aprendizado da abnegao funda-se numa modificao. Todavia numa modificao especfica: modificao do que j se possui e no modificao para uma outra coisa. Trata-se mais de um desenformar-se do que de um transformar-se em outra coisa. Trata-se de uma atitude de problematizao, isto , de colocar-se diante das coisas, frontalmente, num corpo-a-corpo com as coisas. Essa a atitude terica: desenformarse, no sentido de seguir e acompanhar os caminhos de formao da realidade. Para tanto preciso antes de mais nada de uma abertura de conhecimento. Essa abertura de conhecimento, no sentido em que falamos de abertura de caminho, no se d por nenhuma via transmissiva, erudita, enciclopdica. Ela pode apenas se dar numa concentrao, num concentrar-se na situao em que nos encontrarmos. um saber que assim. o saber do ser-assim. A abertura de conhecimento , na verdade, um aprendizado do reconhecimento. Pensemos no encontro de duas pessoas que se compreendem com profundidade o sentimento de que esse encontro apenas um reconhecimento do que j se possui. Pense na alegria de ler um autor que parece estar pronunciando o que j se percebe por si mesmo. Nesse sentido, esse autor, mesmo que tendo vivido h milnios, nosso contemporneo. um aprendizado da nossa prpria veracidade.

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O saber do no-saber o saber que no consegue desgarrar-se do fundo existencial e vivencial do saber e do no-saber. Mas dentro da dinmica prpria da abnegao, isto , de desprender-se para prender-se e preservar a condio da vitalidade, toda experincia natural da vida est sempre enredada num outro sentido, num sentido profundo da alteridade. Essa intuio originria do outro vitalidade da vida possibilita o segundo momento da via aprendiz. Segundo aqui no deve, porm, ser entendido como conseqncia do primeiro momento da tomada de conhecimento mas sim como a sua potenciao. A imagem dos momentos da aprendizagem deve ser a da pedrinha lanada num lago e da formao de seus crculos. O segundo momento que poderamos chamar de disposio de conhecimento. Disposio aqui no sinnimo de voluntarismo e nem de ambio. Mas a fora da admirao que exige que se abandone a prpria situao, que se apague esse eu do conhecimento, no sentido da totalidade em retrao, e se procure um modo de relacionar-se com aquilo de que se descolou. A disposio de conhecimento a prpria fora de um dilogo com o que se , com tudo aquilo que j sempre travamos. Sendo o dilogo o lugar e o modo em que o eu do conhecimento pode se apagar, j que para dialogar preciso fundamentalmente ouvir, acolher, receber, ser hospitaleiro com o que j possumos, o dilogo uma habitao desse a dois que se descobre numa abertura de conhecimento. Uma habitao que no precisa de grandes construes mas de cultivo de seu campo entreaberto. O dilogo no se constri aqui segundo as regras de uma lngua, nem segundo um tipo de discurso ou de um cdigo lingstico. Constri-se, sim, na escuta de como possvel surgir uma palavra que corresponda s leis de uma formao vital. A disposio de conhecimento entrega radical liberdade da formao vital. Por isso no pode prender-se s cincias especficas, no pode permanecer cincia explicativa. Nesse momento do desenformar-se, distinguem-se, com nitidez, as cincias puramente explicativas das cincias compreensivas. Cincia compreensiva , pois, a cincia que apreende conjuntamente o que no se deixa apreender, fisgar, prender num saber, num contedo, numa cincia. a que co-apreende o limite de toda compreenso. Nessa coapreenso, funda-se a viso do caminho, que viso dinmica, viso que caminha ao

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apreender o caminho. Essa viso caminhante a viso investigadora, a que adentra a dinmica dos vestgios, essa que s pode seguir caminhos porque se constitui na serenidade. A serenidade de deixar o caminho ser o mestre. E aqui podemos vislumbrar um terceiro momento, um terceiro crculo de repercusso dessa atitude abnegada do saber do no-saber, que chamaremos de serenidade do conhecimento. Esse aprendizado da abnegao como abertura de conhecimento, disposio de conhecimento e serenidade de conhecimento nos fala de um aprendizado que, na tradio ocidental, recebeu o nome de filosofia. A filosofia no diz aqui ainda a disciplina filosfica mas um amor da sabedoria ou talvez e sobretudo a sabedoria do amor. Sabedoria do amor sabedoria do relacionamento que se constri em correspondncia ao aberto de sua possibilidade. Por isso, ela condio de todo e qualquer relacionamento de conhecimento. Mas o que significa dizer que a filosofia a condio de possibilidade de todo e qualquer conhecimento? Significaria dizer que a disciplina filosfica deve ser ensinada antes das demais cincias? Significa dizer que toda cincia deve guardar um espao para discutir as idias filosficas que a elas chegam a tangenciar? Ou ser que nesses entendimentos no se estaria justamente abandonando o sentido radical da filosofia? Pois nesses crculos concntricos do saber do no-saber que denominamos de abertura de conhecimento, disposio de conhecimento e serenidade de conhecimento o que est em jogo o dimensionamento de uma atitude: a atitude filosfica e no de qualquer contedo, idia, conceito filosfico ou cientfico. O nosso hbito moderno de arrastar para todo lugar que vamos o corpo do rei morto e todos os corpos j mortos, nosso hbito antiquarista, como dizia Nietzsche, costuma confundir a atitude filosfica com o acerco das idias filosficas, legadas na tradio. Confundimos atitude filosfica com mtodo, com discernimento, com clareza de exposio. E, nessa confuso, esquecemos de nos perguntar como possvel que se pronuncie uma palavra de pensamento, como possvel enunciar-se na verdade um aforismo. Achamos que as palavras exprimem idias e que, portanto, as palavras e suas conjugaes possveis devem-se s leis do

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cdigo lingstico e que s exteriormente articulam-se com uma idia. Mas nessa confuso deixamos de perguntar como se pode constituir um cdigo lingstico, como cada lngua encontra seu destino, como cada indivduo chega a pronunciar essa e no aquela palavra. que a palavra no exprime idias. A palavra nasce, surge de um relacionamento com a existncia. A fora criadora da palavra obra, portanto, do relacionamento, da atitude, enfim, da experincia. Sem o empenho e o trabalho de conquista da atitude filosfica, nenhuma palavra filosfica pode se pronunciar com veracidade, pode constituir testemunho da verdade, obra da liberdade. Como realizar a atitude filosfica? A atitude filosfica diz da possibilidade humana de agir com a realidade, isto , de agir segundo a disposio do cuidado. Agir filosoficamente nada mais do que cuidar. No e pelo cuidado, a tomada de conhecimento enquanto saber do ser-assim para desprender-se desse assim, para liberar-se do j dado, do j fato etc. significa a necessidade de se construrem cuidadosamente as questes. Nenhuma questo cuidadosa somente um grito de espanto Como isso aconteceu? A questo cuidadosa aquela que precisa ser curada, curtida, trabalhada mediante a ateno cuidadosa do sentido de existncia. A questo cuidadosa um posicionar-se, implicando uma delicada arte de apreender o espao e o tempo a estranha arte de buscar um lugar, implicando uma geomancia e uma cronomancia. No momento em que a questo cuidadosa pode enunciar-se, ela mesma realiza a abertura de conhecimento como dilogo, como confrontao, interpretao ou seja, como a arte de construir uma pequena morada e cultivar o seu campo nesse lugar, encontrado nesse tempo. Nesse confronto da interpretao descobre-se, porm, que toda morada construda para que se possa prosseguir a busca cuidadosa da vida e que, portanto, no se pode trabalhar nem para o monumento, nem para a fortaleza no h morada indemolvel. H que se permitir nessa morada as portas para partidas, as portas que afirmam a distncia e o limite desse abrigo, distncia e limite sempre abertos na morada para que se possa continuar a busca e aprofundar o cuidado. nesse trabalho incansvel de buscar um lugar para dele partir e prosseguir a vida da busca que o

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conhecimento chega a pronunciar as suas palavras. Palavras que nascem e surgem como flores. Flores da serenidade do conhecimento, do saber-se sempre a caminho. Nessa lavra que se torna palavra encontra-se a obra da abnegao e do despojamento, essa que para o nosso mundo moderno sempre e cada vez mais o maior de todos os arcasmos. Tudo o que tentamos descrever aqui, de modo geral, no passa de uma tentativa de apreender o que um saber abnegado, um saber despojado da pretenso de j saber o que saber e da pretenso de se poder saber tudo. A questo filosfica do saber o saber capaz de ouvir a positividade do no da vida como radical doao. Esse saber um saber contente. Contente por descobrir-se suficientemente pobre para precisar de um outro. Contente por seu descontentamento. Pois sem esse contentar-se com seu descontentamento homem algum teria sido capaz de pronunciar uma palavra de admirao. que, para o saber da abnegao, j muito para o prprio corao a simples

existncia de um outro. Nesse saber, conquistado como atitude filosfica radical s, se ambiciona um ensinamento, este que o mestre espiritual Poemen formulou como um imperativo: ele disse: ensina a tua boca a dizer conforme o prprio corao.

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SO FRANCISCO DE ASSIS E OS ESTUDOS, UMA QUESTOFr. Hermgenes Harada* INTRODUO O tema da reflexo diz: So Francisco de Assis e os estudos, uma questo. O tema insinua que o relacionamento de So Francisco com os estudos, aqui para ns, acadmicos, no pacfico. H ali problemas. E de imediato nos vem memria a observao de Francisco na Regra Bulada, X a irmos iletrados: ...os que no tm estudos, no os procurem adquirir1. Geralmente os termos questo e problema so usados como sinnimos ou quase sinnimos ambiguamente. Na nossa reflexo distinguimos problema, da questo. Problema o que suscita dificuldades, dvidas e perguntas a partir e dentro de uma posio j estabelecida. Questo se refere busca do sentido disso, a partir e dentro do qual se acha a posio estabelecida. O problema dos estudos em So Francisco foi e um problema implicante que deve se tornar uma questo para ns, por sermos franciscanos. A ambigidade do fundador da Ordem franciscana a respeito dos estudos sempre nos incomodou e nos incomoda, cada vez de novo sempre mais, pois parece incidir decididamente na compreenso do que seja propriamente o carisma franciscano da pobreza. Assim, o tema nos orienta a falar sobre o que So Francisco de Assis pensava sobre os estudos. E, ao mesmo tempo, nos sugere que falemos sobre o que So Francisco pensava dos estudos, a partir da implicncia de questo. Da questo como busca do sentido do ser que pulsa como tnus vital da radicalidade da experincia de So Francisco. Da experincia de tudo que ele pensava, sentia, dizia e fazia, conhecida e, ao mesmo tempo, esquecida por ns sob a denominao de pobreza franciscana. A suposta ambigidade e reticncia na fala de So Francisco sobre os estudos acadmicos parecem estar intimamente ligadas ao sentido do ser constitutivo dessa radicalidade. Portanto, no incio da Ordem, com So Francisco e seus primeiros companheiros, e a seguir na evoluo da Ordem*

franciscana, no seu primeiro sculo, os estudos

NEF (Ncleo de Estudos Franciscanos)

Regra Bulada, X. Para o nosso uso, os textos citados das fontes franciscanas foram tirados do livro So Francisco de Assis. Escritos e biografias de So Francisco de Assis, Crnicas e outros testemunhos do primeiro sculo franciscano. Petrpolis: Vozes/Cefepal, 1981.

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34 apareceram como problema. Mas trata-se de um problema que se deve tornar, para ns, uma questo: questo dos estudos, hoje. Mas em que sentido questo dos estudos, hoje? Um problema do passado somente nos atinge e se nos torna histrico se nos convoca hoje a colocarmos em questo o evento que se fossilizou como realidade bvia de um fato historiogrfico. Colocar em questo um problema na sua factualidade significa avivar o palpitar da inquietao de um questionamento fundamental. Pois, um questionamento pulsa sempre na raiz de um problema, o qual como problema j estabelecido no mais investiga nem sonda o mvel da situao, em que se achava colocado, quando se consolidou como fato. A ao de in-vestigar o mvel de fundo, onde se assenta um fato, se chama questo. Para colocar em questo o problema dos estudos em So Francisco e transformar problema do passado em questo hoje, formulemos o nosso problema como o costuma expor e explicar a maioria dos historiadores, peritos no franciscanismo. Mas antes, para que essa formulao usual do problema no fique no ar, como que isolada e abstrata no seu contedo, mencionemos, ainda que de modo bem geral e panormico, alguns fatos que constituem as etapas da evoluo do problema dos estudos na Ordem franciscana e resumamos o que Gratien de Paris2 diz da organizao dos estudos no incio da Ordem. I - O PROBLEMA DOS ESTUDOS E SUA FORMULAO USUAL 1 Um apanhado geral historiogrfico O perodo que abrange a origem e o primeiro sculo do franciscanismo vai de 1209 at 1318. Esse longo perodo pode ser considerado em 2 etapas: a primeira vai de 1209 a 1219 e a segunda de 1219 a 1318. Na primeira, trata-se da origem da Ordem, onde os

No captulo IV, 3 de Gratien de Paris (1982, p. 125-135) h uma ampla bibliografia acerca do surgimento dos estudos na ordem franciscana e sua implicao com os estudos universitrios. Um bom apanhado das diferentes publicaes sobre o tema atravs da Histria da ordem franciscana se encontra p. ex. em Maranesi (2002). A obra de Gratien de Paris de 1926. juntamente com a obra de FELDER, H., Geschichte der wissenschaftlichen Studien in Franziskanerorden bis um die Mitte des 13. Jahrhunderts, Freiburg i. Br.: Herder, 1904, um trabalho clssico acerca do nosso tema. Cf. tambm: BRLEK, M. De evolutione iuridica studiorum in Ordine Minorum. Ab initio Ordinis usque ad an. 1517, Dubrovnik, 1942; DI FONZO, Lorenzo. Apostolato intellettuale, componente essenziale del carisma francescanoconventuale, in: Misc. Franc. 94 (1994), p.525-609; BERG, Dieter. Armut und Wissenschaft: Beitrge zur Geschichte des Studienwesens der Bettelorden im 13. Jahrhundert. Dsseldorf: 1976 (Geschichte und Gessellschaft, 15); Atti del convegno di studi del 1978, Le scuole degli Ordini mendicanti (Secoli XIII-

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35 estudos no aparecem ainda como estudos organizados e no se constituem ainda como problema. Na segunda d-se a evoluo da Ordem, onde os estudos se manifestam explicitamente como problema e se consolidam como problema, congelados numa determinada impostao do problema. Na primeira etapa, de 1209 a 1219 temos os seguintes fatos: Depois da converso de Francisco, os primeiros companheiros se agrupam ao redor de Francisco. Surge a idia de uma ordem. Constatamos em Francisco um plano, seus meios de ao e princpios que segue. As caractersticas principais da instituio franciscana se tornam visveis e com isso tambm idias e ideais de Francisco sobre pregao, estudos e cincia. Surge a Primeira Regra (1209), hoje perdida; inicia-se o processo de formulao das regras mais elaboradas, que nos deu a Regra no Bulada (1221) e a Regra Bulada, a definitiva (1223). Na segunda etapa, de 1219 a 1318 podemos distinguir 3 momentos: primeiro momento, de 1219 a 1257. tempo da consolidao da Ordem, aprovada pelo Papa, oralmente: a Primeira Regra, a elaborao da Regra No Bulada, da Regra Bulada, do Testamento, a morte de So Francisco (1226) e a sucesso dos primeiros ministros gerais da Ordem (Joo Parente 1227-1232; Frei Elias, 1232-1239; Aymon de Faversham 1240-1244; Crescncio de Jesi, 1244-1247; Joo de Parma, 1247-1257). O segundo, de 1257 a 1274. o tempo do generalato de So Boaventura. O terceiro, de 1274 a 1318. o tempo de luta ao redor da questo da pobreza. Nessa segunda etapa temos os seguintes fatos: a clericalizao da Ordem; a introduo dos estudos institucionalizados e a sua organizao na Ordem; surgimento das casas de estudos em Bolonha, Paris e Oxford; a atuao dos frades na universidade de Bolonha, Paris e Oxford; a luta dos mendicantes pelo direito de ensinar nas ctedras da universidade de Paris; o generalato de So Boaventura, sua postura acerca dos estudos e da cincia; o surgimento e a exacerbao da controvrsia sobre a pobreza.

2 A organizao dos estudos

XIV), Todi, 11-14 ottobre 1976, Todi: Centro di Studi sulla spiritualit medievale, XVII; ROEST, B. A History of Franciscan Education (c. 1210-1517), Leiden: 2000.

36 Segundo Gratien de Paris (1982, p.125-135), h inmeros indcios que mostram como os estudos foram introduzidos na Ordem, provavelmente j no tempo em que So Francisco ainda vivia. E rapidamente se espalharam por todas as provncias da Ordem, logo depois da morte de So Francisco. Jordo de Jano nos relata que em 1228 o ministro geral Joo Parente, ao perceber que a provncia da Alemanha no possua professor em teologia, tirou do cargo de provincial a frei Simo e o nomeou professor. Essa observao nos faz suspeitar que nas outras provncias tambm havia o cultivo da cincia sacra. O Papa Gregrio IX na sua bula Quo elongati (1230) dispensa do exame e da aprovao do ministro geral os frades instrudos na teologia. E Jordo de Jano menciona entre os objetos dos quais os frades podiam ter uso, de modo especial, os livros. Os apelos dos pontfices caridade pblica em favor dos frades se referem sempre ajuda para construes e aquisio de livros. Assim, Gratien de Paris deduz que desde 1230 o estudo da Sagrada Escritura, i. , da teologia, estava implantado na Ordem Franciscana e que o nmero dos clrigos aumentava de dia para dia. Uma tal afluncia de pessoas sbias e estudadas fomentou no interior da Ordem uma corrida ao estudo. E, como observa Gratien de Paris, o estudo era uma necessidade inevitvel. Os frades no podiam cumprir com seus deveres e suas misses pastorais sem ele. que havia em toda parte, em cada esquina, em cada praa pblica, os herticos, armados at aos dentes com argumentos falaciosos, sutis e capciosos. No havia a possibilidade de evitar o confronto e a controvrsia. Os irmos sentiam nitidamente que no os podiam enfrentar sem possuir um srio e profundo conhecimento das Sagradas Escrituras. Gregrio IX, renovando os cnones dos conclios antigos proibira a pregao aos irmos leigos, sejam eles de que Ordem forem (1235). Por outro lado, os sacerdotes estavam mal preparados para sua misso. O Papa sentiu o grande perigo que a Igreja corria devido decadncia dos estudos eclesisticos. Na tentativa de levantar o nvel espiritual e intelectual do clero, os papas comearam a recorrer s ordens mendicantes: aos dominicanos e franciscanos. Os dominicanos, desde o incio, j pela natureza de sua fundao, se dedicavam aos estudos e estavam aptos para o desempenho de pregao e confronto com herejes. Os papas e alguns bispos, vendo a disposio da nova Ordem de So Francisco para o servio Igreja, comearam a incentiv-la aos estudos, e isso tanto mais, ao verem como uma grande multido de pessoas instrudas, estudadas e muitos universitrios tomavam o hbito da pobreza franciscana. Assim, as vozes amigas de um Jacques de Vitry, de Roberto Grossette, chanCer da universidade de Oxford, de Guilherme dAuvergne, bispo de Paris, de Eudes de Chteauroux, chanCer da

37 universidade de Paris, encorajavam os filhos de So Francisco a seguirem o exemplo dos filhos de So Domingos. Logo comearam a surgir, entre os prprios frades, pessoas que confirmavam no seu ser e nas suas obras a eficcia e a fecundidade da aliana entre o ideal franciscano e o cultivo dos estudos, como p. ex., Csar de Spira, Joo de Plan Carpin na Alemanha, Gregrio de Npolis e Aymon de Faversham em Paris, Santo Antnio de Pdoa na Lombardia e na Frana. Bem em breve se estabeleceu entre dominicanos e franciscanos, no mbito e no nvel das cincias, uma rivalidade fecunda e amiga, cujo exemplo temos na amizade que unia Santo Toms de Aquino e So Boaventura na busca da verdade. Em 1231 os frades j possuam 3 grandes centros de estudos: Bolonha, Paris e Oxford.

3 A formulao usual do problema dos estudos A exposio desses dados historiogrficos, colocados como fatos que constituem o pro