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Entrevista com o Professor Walter Hugo de Andrade Cunha Entrevistadores: Cesar Ades Marina Massimi Roberto de Andrade Martins Campinas, 07 de maio de 1990 Observação: O texto apresentado a seguir representa a transcrição, o mais possível literal, revisada pelo entrevistado entre janeiro e julho de 2002, do conteúdo de cinco fitas gravadas por iniciativa dos Arquivos Históricos do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp. Em sua revisão, o entrevistado julgou dever realizar, no texto original, as seguintes alterações: 1) A eliminação de expressões meramente enfáticas, coloquiais, tais como "não é?" ou "sabe?"; 2) Pequenas alterações do texto visando eliminar incorreções gramaticais relativas à concordância, às formas de tratamento, etc. 3) O fornecimento de informações adicionais, elucidações ou retificações, através de notas de rodapé, quando julgadas necessárias ou convenientes; e 4) O acréscimo ou substituição, em itálico e entre colchetes, ao texto, de expressões que constituem uma explicitação alternativa, julgada melhor, do pensamento expressado, ou o completamento de uma elipse do pensamento ou interrupção indevida da fala; e 5) A omissão, indicada por [ ], de algum trecho de fala redundante, abortado (por exemplo, devido a uma interrupção por parte de algum interlocutor) ou supérfluo para a compreensão do discurso exposto. Início da fita 1, lado A Roberto - Acho que a gente podia começar, professor, e eu gostaria, primeiro, que a gente conversasse a respeito da sua formação, desde a época em que alguma coisa foi significativa para o seu trabalho. Então, se for necessário recuar ao nascimento, a gente pode recuar a partir de onde você achar significativo. Walter - Olha, eu acho que eu tive pelo menos essa formação básica de primário, secundário, colégio, muito irregular. Porque eu era filho de um professor de matemática que de vez em quando tinha [umas] veleidades assim de [mudar de profissão] . Como a minha mãe era filha de um fazendeiro rico e ele tinha dado um dote realmente bom para a minha mãe, parece que meu pai, que era um pouco dado a iniciativas de negociante, montou uma loja, montou um armazém enorme, [etc.] , sempre numas cidades de interior, lugarezinhos desses mais afastados: [como em] Minas - Santa Vitória, Minas. Aí não dava certo, quebrava. Meu pai não era negociante. Aí ia montar uma fazenda Então, eu acho que devo ter passado os primeiros anos de minha infância [em vários locais diferentes] . Eu nasci em fazenda, num lugar chamado "Retirinho", em Santa Vitória, Minas. Naquele tempo era um lugarejo mesmo. Eu costumo brincar: um lugar onde o prefeito era escolhido assim: "Quem matou mais onça? " [Risos] "Então, é esse". Mas eu não me lembro nada, absolutamente nada dessa ocasião.

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Entrevista com o Professor Walter Hugo de Andrade Cunha

Entrevistadores:Cesar AdesMarina MassimiRoberto de Andrade Martins

Campinas, 07 de maio de 1990

Observação: O texto apresentado a seguir representa a transcrição, o mais possível literal,revisada pelo entrevistado entre janeiro e julho de 2002, do conteúdo de cinco fitas gravadaspor iniciativa dos Arquivos Históricos do Centro de Lógica, Epistemologia e História daCiência da Unicamp. Em sua revisão, o entrevistado julgou dever realizar, no texto original, asseguintes alterações: 1) A eliminação de expressões meramente enfáticas, coloquiais, taiscomo "não é?" ou "sabe?"; 2) Pequenas alterações do texto visando eliminar incorreçõesgramaticais relativas à concordância, às formas de tratamento, etc. 3) O fornecimento deinformações adicionais, elucidações ou retificações, através de notas de rodapé, quandojulgadas necessárias ou convenientes; e 4) O acréscimo ou substituição, em itálico e entrecolchetes, ao texto, de expressões que constituem uma explicitação alternativa, julgadamelhor, do pensamento expressado, ou o completamento de uma elipse do pensamento ouinterrupção indevida da fala; e 5) A omissão, indicada por [ ], de algum trecho de falaredundante, abortado (por exemplo, devido a uma interrupção por parte de algum interlocutor)ou supérfluo para a compreensão do discurso exposto.

Início da fita 1, lado A

Roberto - Acho que a gente podia começar, professor, e eu gostaria, primeiro, que a genteconversasse a respeito da sua formação, desde a época em que alguma coisa foi significativapara o seu trabalho. Então, se for necessário recuar ao nascimento, a gente pode recuar a partirde onde você achar significativo.

Walter - Olha, eu acho que eu tive pelo menos essa formação básica de primário, secundário,colégio, muito irregular. Porque eu era filho de um professor de matemática que de vez emquando tinha [umas] veleidades assim de [mudar de profissão]. Como a minha mãe era filhade um fazendeiro rico e ele tinha dado um dote realmente bom para a minha mãe, parece quemeu pai, que era um pouco dado a iniciativas de negociante, montou uma loja, montou umarmazém enorme, [etc.], sempre numas cidades de interior, lugarezinhos desses maisafastados: [como em] Minas - Santa Vitória, Minas. Aí não dava certo, quebrava. Meu pai nãoera negociante. Aí ia montar uma fazenda Então, eu acho que devo ter passado os primeirosanos de minha infância [em vários locais diferentes]. Eu nasci em fazenda, num lugarchamado "Retirinho", em Santa Vitória, Minas. Naquele tempo era um lugarejo mesmo. Eucostumo brincar: um lugar onde o prefeito era escolhido assim: "Quem matou mais onça? "[Risos] "Então, é esse". Mas eu não me lembro nada, absolutamente nada dessa ocasião.

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Roberto - Onde fica essa cidade? Porque eu sou mineiro do [inaudível]

Walter - No Triângulo Mineiro. Ela fica próxima à divisa com Goiás e é na direção deItuiutaba. No Triângulo Mineiro é [junto] a uma linha que passa por Uberlândia, MonteAlegre e Ituiutaba, e, dali, de Ituiutaba, pega [em direção a] Goiás, que é a parte sudoeste deGoiás.

E, não dando certo, ele [meu pai] voltava a ser professor de matemática [risos]. E eleera muito bom professor, muito admirado pela comunidade, era de uma lógica impecável. Masmeu pai tinha vários defeitos. Um deles, por exemplo: meu pai gostava de jogar a dinheiro -carteado, essas coisas... E, então, de vez em quando ele pegava,vendia uma fazenda... sumiauns meses [risos] e a família ficava à matroca e a minha mãe lá, naquele sertão, tendo quereceber os passantes e, às vezes, hospedar e dar a comida, e ela sem empregada e cuidando desete filhos. Foi uma coisa muito pesada. Então, cresci também ouvindo muita queixa do meupai por parte da minha mãe e muita queixa da minha mãe por parte de meu pai. No fim elesacabaram se separando, já mais no fim da vida.

Mas, em conseqüência desse caráter dele, assim instável, a gente viveu em muitascidades diferentes, em muito lugares diferentes. A minha formação foi praticamente toda emSão Paulo. Fiz o primeiro ano em Uberlândia, de onde era a família da minha mãe, famíliatradicional de lá - ainda hoje é uma família tradicional - mas nós sempre vivemos comofamília pobre. E, então, eu sempre estudei geralmente em escolas públicas, em grupo escolar,aqui em São Paulo. Eu fiz cada ano - 1o., 2o., 3o., 4o... - cada ano em uma escola diferente.Foram oito escolas diferentes para fazer o primário e o ginásio. Depois eu fui para o colégio. [] Eu fiz o 1o. ano do Científico e percebi que não era aquilo que eu deveria ter feito [mas]alguma coisa mais ligada às humanidades. Aí, nessa ocasião, eu gostava de ler filosofia, [afilosofia] que vinha ao meu alcance. Eu gostava muito de Schopenhauer, tinha lido algumacoisa de Descartes, Condillac, mas Schopenhauer me impressionava muito. E pus na cabeçaque eu haveria de fazer filosofia.Roberto - Isso se passava no 1o. colegial?Walter - Isso quando eu estava no 1o. colegial. Aí, resolvi mudar para o Clássico. Tive quefazer um exame de adaptação, aprender latim, estudar uma série de coisas [por exemplo,francês] e passei para o clássico. Fiz o 2o. Clássico. Sempre, nesse ponto, a partir do 3o. anodo ginásio [ ], eu passei a ser bom aluno. [ ] No primário, fui o primeiro aluno [da turma] no1o. ano; no 2o. e no 3o. fui aluno bom, mas não o primeiro, mas no 4o. ano fui o primeiroaluno [do grupo escolar] e fui homenageado pelo Grupo, pelo diretor, aquela coisa toda. Querdizer, pode-se perceber onde está essa vaidade, não? [risos] como é que se infla um ego.

No ginásio, [ ] repeti o 2o. ano - eu estava no [Colégio] Anglo- Latino [ ] - porproblemas de amizade, a gente cabulava, fazia muita farra. Eu fui considerado o maior"cavalo" do Anglo-Latino, dito por alguns dos professores: "esse é o maior 'cavalo' do Anglo-Latino", o que para mim era uma honra, porque aumentava muito o meu prestígio [risos] comaqueles que eram maus alunos.

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Mas, aí, meu pai teve uma dessas crises dele. [ ] Ele lecionava no Colégio do EstadoRoosevelt e resolveu largar o que fazia e resolveu que nós devíamos fundar uma das fazendasdele, que eram umas terras que havia em Goiás. Naquele tempo não "tinha" Brasília nem nadae eram uma terras no sertão de Goiás, sudoeste goiano, mas era sertão mesmo. Ele resolveuque nós havíamos de fundar uma fazenda. Ele ia com os filhos para lá e as filhas e a minhamãe ele deixava em Uberlândia, lá por conta do meu avô, pelo menos por algum tempo. Eentão eu tinha que abandonar acho que o 3o. ano do ginásio. Nós tínhamos que parar osestudos, só que nós fomos transferidos para Uberlândia até o fim do ano, em setembro, eterminei [o ano escolar] lá. 1

Aí eu comecei a ouvir dos parentes que o meu pai não tinha juízo, que ele estavaabandonando a família, o que era verdade: o meu pai ficou cuidando da mudança e nãoapareceu. Ficou três, quatro meses e não apareceu. E, aí, me deu aquele estalo: "bom, eu nãosou nada, eu sou, com o perdão da palavra, uma besta, não tenho formação nenhuma.Se eu tiver que trabalhar e sustentar a minha mãe... (não sei por que eu enfiei na cabeça que eu,sendo o filho mais novo - não o caçula, mas, dos homens, era o filho mais novo - teria quesustentar a minha mãe) ... se eu tiver que sustentar a minha mãe, trabalhar por conta própria,eu não sei fazer nada e até aqui não aprendi a fazer nada, estou levando uma vida assim...[vadia]". E aí adquiri juízo, comecei a estudar outra vez e levar a sério o estudo, e gostardisso, e, daí para a frente, eu acho que... [me tornei responsável].

Mas a minha formação foi marcada por um auto-didatismo. Quer dizer, de certamaneira, a escola, para mim, era relativamente secundária. [É] interessante que eu escrevi umartigo, no 3o. ano do colégio, para o jornalzinho [acadêmico, artigo esse] que se chamava"Contra a escola" [risos]. [Ali] eu dizia uma porção de coisas: que a escola nascera errada,que, sendo feita para todo mundo, não era feita para ninguém, que o programa era feito semconsultar as necessidades de cada um, que o professor não queria saber se o aluno estavaaprendendo ou não, que o que importava a ele era estar dando o programa; que váriosprofessores davam uma nota esquecendo que a nota era para avaliar o aproveitamento que, emgrande parte, era um produto da atividade dele. Fiz a crítica, e terminava dizendo que eu nãovia a hora de sair da escola para poder começar a aprender alguma coisa.

1Neste parágrafo há um engano em minhas recordações. O episódio da tentativa de formar uma fazenda foi real,mas se deu 5 anos mais tarde. Na verdade, meu pai nos transferiu para Uberlândia em 1944, quando eu estava no2o. ano do ginásio, como preparação para mudarmos para Capinópolis, estado de Minas Gerais, cujo únicocartório hereditário e vitalício meu pai havia ganho num concurso público realizado em Ituiutaba. Ele alegava quenos deixaria em Uberlândia, por conta de meu irmão mais velho, até alugar uma casa ou, de preferência, umachácara em Capinópolis, para instalar a família. Até hoje não sei ao certo o que sucedeu com esse cartório, se meupai o doou a pessoas que eram estranhas à família antes de nossa mudança ou se - o que dava praticamente namesma - o vendeu quase de graça. Sei que, certa vez, cerca de 6 a 7 anos mais tarde, numa pensão de amigos emSantos, onde eu passava, a convite, um feriado, conheci um casal jovem que, ao saber de quem eu era filho,ressaltava, encantado, a extraordinária bondade de meu pai que, quando hospedado por eles em Capinópolis,transferiu o cartório para seus nomes. Já conhecendo melhor meu pai, na ocasião, fiquei pensando que estranhabondade era a sua para transferir assim levianamente para alheios um patrimônio que certamente garantiria umfuturo confortável ao menos para alguns de seus filhos.

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E eles [membros do grêmio]] puseram na primeira página do jornal acadêmico e aquilofoi uma celeuma. O diretor foi lá na classe, queria saber quem era o aluno que tinha feitoaquilo. E, aí, ele logo mencionou: "isso só pode ser um mau aluno". E, para surpresa dele, erao melhor aluno do colégio. Ele ficou assim meio admirado e tivemos uma espécie de debateem que eu tentei demonstrar a ele que eu estava certo no meu artigo, [ ] apesar de a genteadmirar uma série de coisas na escola. E outros professores, também, fizeram uma briga disso.Então, eu não sei, eu tenho a impressão que data mais ou menos dessa época a minhatendência a entrar nas coisas pelo avesso, pelo lado menos convencional. [ ] [Antes dessaocasião, em 1949, quando eu estava para fazer o 3o. ano do colegial, fui com meu pai e doisde meus irmãos para uma fazenda]. Passamos um ano lá, tentando formar a fazenda. Aípercebemos que, com meu pai, não havia projeto possível, ele não levava a sério. Meu paitinha mais outras duas fazendas2 que ele vendeu para poder, com o capital, tocar esta fazenda.[ ] Ele vendeu e ficou 5 meses no Rio de Janeiro e perdeu quase todo o dinheiro, acho quejogando. Então, eu percebi: eu tinha que voltar e continuar a estudar.

Voltei para morar sozinho em São Paulo. Aí me ocorreu que era muito pesado trabalhar8 horas por dia, às vezes [gastar] mais duas ou três horas de condução e estudar, à noite, fazero colégio. [ ] [Por essa razão], resolvi fazer escola normal, que, [ ] [à diferença do cursocolegial] , me dava um diploma e me permitiria trabalhar numa coisa mais agradável do queficar recolhido dentro de um escritório. [ ] [Haviam aberto] uma escola normal noturna, queera a única escola normal [particular] noturna, para um favorecido do Secretário da Educaçãono tempo [e comecei a cursá-la].3

Mas ele [o dono do curso[ não preencheu os requisitos legais, porque ele tinha que ter[conseguido até um determinado mês] a nomeação dos professores que caberiam, por lei, àSecretaria da Educação [designar[ e ele tentou fechar essa escola lá por setembro, vendendo4

os alunos para uma escola normal particular diurna.[ ] Então - foi um fato importante na minhavida também - eu me vi, junto com um colega que ainda hoje é meu amigo, que é professortambém5- à frente de um movimento para tentar fazer valer o decreto de criação da escola, poisse a escola fosse fechada nós teríamos que ter vaga numa escola congênere, e a únicacongênere era a escola Caetano de Campos, que era gratuita e tinha bom nível, e nósestávamos achando que seria "o mel na sopa" se nos concedessem isso.

Mas enfrentamos toda oposição. Nós tentamos falar com o Secretário da Educação eele nos fez uma ameaça de que nós seríamos perseguidos a vida inteira se nós não

2Na verdade, há outro engano aqui: era uma segunda e última fazenda, metade da qual meu pai se propôs a venderpara ter o capital necessário para formar a primeira fazenda. Para isso, viajou por uns dias, deixando-nos nesta.Quando voltou, havia vendido a segunda propriedade inteira por preço ainda inferior ao pretendido por uma suametade.3Tratava-se da Escola Normal Livre Monteiro Lobato, na Avenida Paulista, num palacete antigo. Seu diretornominal era o sr. Leo Bonfim. Quanto ao favorecido mencionado, de acordo com um dos redatores do jornalFolha de São Paulo na ocasião, seria o Professor Andronico de Mello, então Diretor da Divisão de EnsinoSecundário e Normal da Secretaria da Educação.4Assim constava.5O Professor Dimas Egydio dos Santos.

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aceitássemos aquela solução - os nossos nomes estavam sendo anotados, etc. Aí nós fomos aosjornais. Dissemos: "Nós vamos aos jornais". "Se os senhores fizerem isso, então, aí, podemdizer adeus a qualquer... [pretensão]. Mas nós fomos aos jornais, e ficamos admiradíssimoscom uma imprensa [ ] maravilhosa [cujos redatores] , na hora em que a gente chegava, davaos nomes, fazia a denúncia, faziam uma reportagem lindíssima [de nosso ponto de vista, poistratava] de denúncias, de escândalos numa casa de ensino, etc. E, no dia seguinte - nos diasseguintes - não saía nada, absolutamente nada.

Fomos falar com o Governador e não conseguimos. Era o Adhemar de Barros, naqueletempo. Tentamos falar com um assessor dele que, durante vários dias, também foicontemporizando e não nos atendeu. Finalmente ele atendeu, também com uma série deameaças [ ] para que a gente desistisse, aceitasse a situação, porque a pessoa [proprietária doestabelecimento] era amiga [do Governador] e não estava mais interessada na escola, etc. Aíalguém lembrou de um vereador, desconhecido então, que gostava um pouco de pegar coisasescandalosas, chamado Jânio Quadros - Jânio da Silva Quadros - e nós fomos falar com ele.

Ele mandou a secretária dele anotar, disse: Anote isso. E, no dia seguinte, ele fez umdiscurso na Câmara, denunciando. Aí todos os jornais abriram, todos publicaram a reportageme eu sei que, em seguida, nós sofremos outra vez pressões, reuniões com autoridades, [ ], odiretor da escola... Mas, no fim, eles acabaram mantendo a escola em curso noturno. Então,isso também eu acho que [teve influência sobre mim], porque me deu uma certa [reserva].Eusempre fui muito ingênuo e continuo assim, bastante ingênuo, mas [o episódio] me tirou umpouquinho dessa ingenuidade em relação aos poderes públicos, a lisura desse pessoal, o realinteresse deles pelas causas públicas [ ].

Bom, rsolvi [ ], terminada a escola normal, fazer filosofia e, aí, descobri atrasado que afilosofia não aceitava normalista. Eu [poderia fazer] pedagogia, [ ] ou letras - parece quealguns cursos de letras. Eu não quis e aí voltei para [terminar] o colégio. Às vezes eu consigoas coisas meio atravessado. Já era fora de época, acho que era abril ou maio, os cursos játinham começado e o Diretor do Colégio Estadual Roosevelt] disse: "É impossível, nessa hora,fazer a matrícula". Aí eu tive uma conversa com ele [de] quase duas horas em que não olarguei e disse para ele: "Eu não entendo o senhor: o senhor encontra um aluno interessado emaprender - não estou aqui para conseguir um canudo, eu estou interessado em aprender. Venhoprocurar espontaneamente a escola, o senhor me fecha a porta?" E, com esse argumento, euinsisti até que ele me deu [a matrícula no 3o. ano do Curso Clássico em período noturno]. Eisso também me ensinou [a ser persistente]. Diz minha mulher [ ] que uma das minhascaracterísticas é a obstinação e [que• eu sou uma pessoa de uma coisa só também. Quando euquero, é quase uma doença mental: eu sou monolítico nas coisas que eu faço, nas coisas que eupenso. Não consigo fazer muitas coisas ao mesmo tempo, embora tenha sido obrigado, àsvezes, a fazer.

Roberto - Nesse período que você disse - no início do colegial - você tinha interesse porfilosofia. Como é que isso se desenvolveu durante esse período até terminar o Normal? Vocêcontinuou a ler? O que é da sua vida nesse período?

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Walter - Como eu disse, eu era de uma família pobre, não tinha recursos. Então o que eu li[foi assim]: eu dei umas aulinhas particulares [quando estava no 4o. ano do ginásio] ecomprei um livro traduzido pelo Heraldo Barbuy que era "O Mundo como Vontade eRepresentação", de Schopenhauer, e aquilo eu achei extraordinário. Aí eu li Will Durant, queeu achei numa biblioteca: "Os Grandes Pensadores" e "História da Filosofia". Gostei [do livro]e daquelas coisas que estavam lá. Comprei um livrinho de Condillac, [ ], "Lógica". Não meimpressionou muito. Não sei se era "Lógica dos Sentidos" - era alguma coisa ligada aossentidos. E gostava de Voltaire, de Rousseau, ... Eram autores relativamente populares, dessesfilósofos que apareciam. Descartes eu li também. [ ] Eu comecei a ler [como um hábito]quando eu estava no 4o. ano de ginásio6, mas não tinha muito tempo porque a escola erapesada, eram várias matérias e, como eu dizia no artigo no jornal acadêmico] cada professortinha a vida inteira para lecionar uma matéria e os alunos tinham que aprender dez matérias eaquele programa todo, o que eu achava um absurdo. E, realmente, eu levava a sério, estudavamuito, embora também não gostasse daquilo. Aí eu descobri a biblioteca da [Faculdade deEconomia e] Administração, da rua Vila Nova [ ]. Ali eu achei obras em francês.Schopenhauer, os quatro volumes completos, [ ] li muito atentamente.

Cesar - Mas em que ano você descobriu essa biblioteca?

Walter - Isso foi quando eu estava no colégio. Estava acho que no 2o. ano do colégio e jácomecei a ler isso7. E, depois, no 3o. do colégio. E, juntamente com isso, eu fazia poesias,umas poesias que, olhando assim retrospectivamente, eram poesias de cientista [Risos].Parecia o linguajar de Camões, muito fora de época, tudo metricamente medido e rimado e tal,mas com pouca inspiração.

Roberto - A única leitura assim que você fazia era de filosofia? Ou ...? [inaudível].

Walter - Não. Eu lia sobre a história, [lia a Enciclopédia francesa que Voltaire tinhaorganizado] - ainda era filosofia; li também boa parte de [inaudível], mas [sobre] a históriaeu lia bastante. Will Durant tinha uma história relativamente boa que era uma históriadiferente [e] que eu achei que era interessante porque não contava sobre guerras, mas contavasobre os acontecimentos, as invenções, as descobertas, as mudanças culturais. [ ] Alguma coisade literatura - romance - também, que calhavam, assim [de vir às minhas mãos], essas coisasque moço lê - de José de Alencar[; "A Escrava Isaura"; de Aloísio de Azevedo, "O Cortiço";"O Ateneu", de Raul Pompéia ... Essas coisas todas a gente lia. E lia algumas coisas traduzidasdo francês, Balzac - uma chatice - alguma coisa de Dostoievski, ...

6 Na verdade, no 3o. ano do ginásio. A primeira obra que retirei da biblioteca municipal de Uberlândia em 1944foi "Brasil, o País do Futuro", de Stephan Zweig.7Parece-me, hoje, que foi nas férias após o 4o. ano do Ginásio. Outro livros dessa biblioteca que li, parece-meque quando estava no 1o. ou no 2o. ano colegial, foram as obras gramaticais completas de Cândido de Figueiredo,"A Arte de Escrever" e "A Questão do Estilo", de Albalat, (obras essas que denunciavam certo interesse pelacarreira literária) e parte das obras completas de Lenin.

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Cesar - Você lia Machado de Assis também?

Walter - Não. O único livro de Machado de Assis que eu li [na adolescência] foi "IaiáGarcia", poque uma professora me deu de prêmio e eu achei que era obrigação [Risos]. 8Masnão fez muito o meu gênero. Quer dizer, eu gostei muito daquele destrinçar psicológico, etc.,mas não deixou grande impressão. [ ]

Roberto - Você tinha com quem conversar sobre o que você lia?

Walter - Eu tinha colegas de escola com quem [ ] trocava idéias, tentava a gente mesmo fazeralguma teoria, alguma metafísica por trás, descobrir como seria "a coisa em si" diferente da"Vontade"de Schopenhauer. A gente especulava sobre isso, sobre aparência, realidade, essetipo de coisa. A gente conversava muito, às vezes até tarde da noite, quando meu pai nãoestava em casa. Quando meu pai estava em casa, tinha horário, tinha que chegar às 10 horas e,aí, acabava. Meu pai era extremamente severo. Não era porque ele usasse de castigo físico,não: meu pai era uma pessoa temida, no caso. Só o olhar dele, quando ele chegava, os passosdele, eram suficientes para fazer qualquer gritaria parar no momento. Tudo entrava no eixo etodo mundo se comportava. Havia uma repressão. Eu tive muita oposição, muito conflito commeu pai, porque, nas brigas dele com a minha mãe, eu dava razão para minha mãe, e,afetivamente, eu era mais ligado a ela.

Minha mãe não era muito afetiva, nunca pegou filho no colo. Também, com sete filhos,naquela situação, ficava terrível. E uma mulher que tinha tido uma educação fina, tinhaestudado no Stafford, no Colégio Sion, tinha ido para o Rio de Janeiro para fazer medicina elargou-a para casar com meu pai, [ ] Tocava piano [ ] que ela estudou em fazenda. Importaramum professor, importaram um piano para ela poder estudar. Era a única filha mulher do meuavô.

Meu avô era chefe político local do PRP9 mineiro, um homem influente, rico, mas issonão serviu para a nossa família. A nossa família sempre viveu, me lembro, assim de credoresaparecerem na porta e freqüentemente o meu pai, devendo, ter que mudar porque não pagavao aluguel. Isso era muito comum. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha [quando criança] umaenorme admiração [ ] por ele], porque eu via a admiração pública pelo meu pai, [dos} alunos,[da}comunidade - [era] um homem de muita inteligência, muita lógica. Ensinava matemáticacom uma grande facilidade. Eu pude verificar isso mais tarde,no colégio, quando ele me deualgumas aulas de matemática. [ ] Mas ele, na maioria das coisas, era completamente ilógico.Totalmente. Eu tive grandes conflitos [com ele], assim a ponto de, se meu pai estavaalmoçando à mesa, eu ia almoçar, pegava o prato e ia comer no quintal, para não ter quesuportar uma pessoa desagradável, cujo olhar me fazia mal. E dizia isso para ele. Mas isso aí..., são coisinhas, não é?

8Na verdade, li também "Dom Casmurro".9Partido Republicano Progressista, um partido dominado por fazendeiros.

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Eu fiz o colégio no Roosevelt10. Eu fiz três anos no Roosevel e fiz o vestibular.Naquele tempo o vestibular era classificatório. Eu me lembro que, na minha turma, [haviaainda menos candidatos do que vagas, que eram 40]. Passaram quatro. E isso era comum. Assalas eram vazias, e esses alunos mesmos - eles tinham possiblilidade de se inscrever emdeterminadas matérias - eu não os via regularmente. Eram sempre turmas um pouquinhodiferentes. Fiz o curso noturno trabalhando e, ao mesmo tempo, [estudando].

Cesar - Walter, como é que você chegou a pensar em fazer filosofia?

Walter - Olha, eu acho que desde que eu comecei a ler eu achei que devia ser aquilo. Mas eutinha dúvidas porque algumas outras coisas que eu li me levavam, por exemplo, à medicina.Eu contei a você que eu tinha sido impressionado por um livro de [Paul de] Kruift, "OsCaçadores de Micróbios". Eu vi [ ] [grande importância] naquela descoberta de micróbios,[n]aquelas pesquisas que eram feitas para descobrir as causas de certas doenças - o diabetes,por Banting e coisas assim. Eu fiquei impressionado e gostaria de ser um pesquisador. É comovocê diz, não era medicina, eram biomédicas - naquele tempo não existiam. Mas depois eu meconvenci que não. Medicina me faria lidar com pus, com sangue, com sujeira e não era issoque eu queria. Eu pensei em fazer história natural.11

Roberto - Mas qual era a sua perspectiva profissional? Qual era a perspectiva profissional deum filósofo na época? Não assustava isso?

Walter - Não [assustava. Minha perspectiva] era lecionar. Nesse ponto talvez eu tivesse umaidentificação com o meu pai, o aspecto melhor de meu pai, que eu achava que era o fato de serprofessor, e dizem que em cada pessoa há sempre o desejo de superação do pai [Risos]. Talvezeu quisesse ser melhor que o meu pai. E eu acredito que muito do meu projeto de vida foi issomesmo: eu via minha mãe falar que meu pai não tinha constância, que [ ] não se aplicava, queera muito inteligente mas era dispersivo e talvez até eu tenha vivido inconscientemente umprojeto de ser o meu pai como [ ] minha mãe gostaria que ele tivesse sido. Hoje eu pensoassim: com uma certa rigidez moral, um [ ] não aceitar certos desvios, certos subornos - issosempre foi um ponto de honra - e não trair, por exemplo, o grupo a que a gente pertencia comose fosse uma família. [ ] Acho que todas essas coisas talvez tenham origem num projetoinconsciente.

Cesar - Mas o pessoal que entrava naFaculdade de Filosofia era tido como elite, eram osprivilegiados?

Walter - Olha, no curso noturno, não. No curso diurno eram. Os estudantes de Faculdade eramelite realmente, pessoas de classes abastadas, pelo menos de classe média e de classe média

10Colégio Estadual "Presidente Roosevelt", secção situada na Rua São Joaquim.11Nisso fui influenciado pela leitura de "Um Naturalista no Rio Amazonas", de Henry Walter Bates, "Viagenspelos Rios Amazonas e Negro", de Alfred Russel Wallace, bem como, provavelmente, de uma obra (e fotos) deCouto de Magalhães sobre o centro-oeste e da narrativa, por Theodore Roosevelt, de sua expedição, com Rondon,em busca da definição do curso do Rio da Dúvida.

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elevada. Eles iam mais para a medicina e para a Poli. Na Faculdade de Filosofia já era umpouco mais classe média. Mas havia na Faculdade de Filosofia um espírito que eu acho que erapróprio daquela época que era o [seguinte]: me parecia que tanto os professores como osalunos estavam um pouco imbuídos de uma idéia de que lhes cabia uma missão. A missão eraser um fermento de cultura no meio nacional. Parece que era uma responsabilidade enorme dagente [a] de tirar o Brasil dum atraso cultural, de fazer alguma coisa pelo país. Então eu li noLevi Strauss, nos "Tristes Trópicos", um depoimento nesse sentido: de que Armando de SallesOliveira, que era o governador do Estado, quando criou a Universidade de São Paulo, criou-acom essa intenção de formar uma elite, uma opinião pública leiga, independente, capaz de secontrapor às opiniões tradicionais do exército, das classes agrícolas (dos senhores das terras) eda Igreja, que eram os três poderes que dominavam a política brasileira, e que ele achava queisto era necessário para o processo de industrialização. [ ] E eu tenho a impressão que, noespírito, eu nunca soube disso...

Fim do lado A da fita 1,início do lado B

...que, em várias pessoas dessa época, havia uma idéia de que a gente era responsável porformar uma opinião. A gente não ia ser professor simplesmente, num determinado lugar, agente deveria ser, sei lá, formador de algum grupo, se fosse possível fermentar alguma coisa eformar uma opinião baseada na ciência, baseada na reflexão, uma reflexão crítica.

Roberto - Agora isso já era vinte anos depois da criação da USP, não é?

Walter - Isso era vinte anos [depois]. [ ] E, nessa ocaião - eu até escrevi (eu vou-te passar essetrabalho que eu prometi e não tive tempo para datilografar) numas notas que eu fiz sobre ahistória da psicologia experimental, quer dizer, num depoimento meu sobre como era o cursode psicologia experimental nesse tempo e o começo do curso de psicologia, eu menciono isto -[o] espírito tradicional já estava voltando. Eu acho que a cultura brasileira é basicamenteverbosa e verbal, e é uma cultura falsa. Quer dizer, na verdade as elites [ ] adquirem umacultura mais como um apanágio pessoal, um adereço que estão colocando pessoalmente paraaparecer e [para que os outros digam]: "olha, é interessante! Ele é rico, mas é um 'cara' queentende de arte". "Ele é rico, mas...[é notável por algum aspecto cultural].

Então havia [ainda] essa outra coisa que era mencionada também por Levi Strauss, quecada um queria ser dono e o único nalgum determinado setor, queria ser o primeiro nem quefosse o primeiro nalguma bobagem [risos], [como em] colecionar selos. E isso a genteencontrava nesse tempo [ ]: cada lugar tinha o seu dono - era o catedrático, era... [a sumidadeno assunto]. Ninguém mais poderia, por exemplo, ensinar psicologia social, que era ensinadapela minha chefe, que era catedrática, que era a Professora Annita de Castilho e MarcondesCabral, que era também de uma família tradicional. Mas ela [pelo menos, e diferentemente deoutros], era uma pessoa questionadora, ela tinha esse espírito de modificar a opinião

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[tradicional], de ter uma opinião leiga independente, ela tinha esse espírito [inovador], essamentalidade [de uma misão a cumprir]. Então eu acho que isso [essa cultura rançosa dotempo em que a USP foi criada] havia, mas estava já sendo questionado, porque osprofessores que foram importados pelo governador, a missão francesa e os outros que vieramde outras nacionalidades - parece que basicamente alemães e franceses...

Cesar - E italianos.

Walter - ... que vieram para uma missão cultural mesmo, que era para realmente mudar ascoisas, fazer uma verdadeira Universidade, [estavam atuando]. O projeto me parece que erafazer com que a Faculdade de Filosofia fosse a futura formadora básica de toda aUniversidade. Todo mundo passaria pela Faculdade de Filosofia e aí teria uma aprendizagemde reflexão crítica e depois iria para as profissões dotado dessa reflexão crítica. Mas o espíritotradicional no Brasil eram as profissões, [era considerar como a função da universidade a] deformar o médico, o advogado, o engenheiro, as grandes profissões. Era isso que era tido [comoimportante]. Então, com a ida para o estrangeiro, com a volta para o estrangeiro dosprofessores dessas missões, ficaram seus alunos, que nem sempre representavam bem essesprofessores. Mas a idéia na Faculdade de Filosofia era que a Faculdade de Filosofia deviaformar o pesquisador e não o professor. Mas esta idéia passava a ser questionada. Porexemplo, o tema do exame vestibular [para o ano em que entrei (1953] foi se a Faculdade deFilosofia deveria formar o pesquisador ou o professor. Esse era o tema apresentado na provade português pelo professor Antônio Soares Amora [ ].

Marina - Era apresentada uma alternativa?

Walter - Só isso. Ou a Faculdade de Filosofia formaria o professor, alguém para ensinar, ouformaria o pesquisador. Era esse o tema. Então já se estava discutindo o que ela deveria fazer.Já não era mais um consenso que ela devesse formar o pesquisador. Então eu acho que isso jámostra para o refluxo do pensamento tradicional, do pensamento só preocupado com aaparência, não com o saber real, com a produção do saber. É um saber que envernize, de que aclasse dominante se dota para parecer mais justificada em seu poder, [ ] nos seus postos demando.

Cesar - Walter, a Faculdade de Filosofia já era na [rua] Maria Antônia?

Walter - Estava na Maria Antônia. [Quando entrei para a Faculdade] comecei a trabalhar lá.

Cesar - Você teve alguns professores que marcassem mais?

Walter - Olha, eu acho que todos marcaram. Era um tempo em que você assistia às aulas como sentido de que você era pequenininho. Você sentava lá embaixo [risos], o professor [ ]sentava numa cadeira, que já era elevada [e que ficava] sobre uma plataforma, e ele falavadurante duas, três horas seguidas, num discurso notável, fabuloso, tudo muito ligado, tudo

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muito concatenado, muito bem apresentado, com exceção de alguns. O Cruz Costa12, porexemplo, era mais terra-a-terra, mas não me impressionava. Cruz Costa não me deixou grandemarca, eu não gostava muito das aulas dele. Gostava, sim, daquele jeito informal dele de trataros alunos, a classe, e [de] tratar os assuntos também com uma certa falta [ ] de reverência.Mas alguns professores me impressionaram [mais]. O Antônio Cândido,13por exemplo, foiprofessor de sociologia. Esse eu acho que deixava uma marca [maior]. Era uma pessoa quepensava muito bem e, além disso, tinha uma postura muito correta diante do aluno. Ele eramuito respeitoso, era uma postura humana a que ele tinha e, ao mesmo tempo, era modesto.14

O [Professor] Lívio Teixeira, que era professor de história da filosofia, também era umapessoa culta, interessante; dava aulas muito bem demonstradas, muito bem informadas, [e erauma pena que não chegasse a épocas mais próximas. Seu] curso versava sobre a históriaantiga, sobre o pensamento dos gregos e [ia] até a idade média. Não vimos [no curso defilosofia como um todo] nada de idade moderna. O mais moderno que nós vimos foi Comte,com Cruz Costa. [ ] No fim do meu curso, Giannotti15 foi [também] meu professor.

Cesar - O Giannotti deu aula?

Walter - O Giannotti foi meu colega no Roosevelt...

Cesar - É? Curioso.

Walter - ... e foi meu professor pelo menos por um ano no curso de filosofia. O Giannottitinha um tipo assim meio iconoclástico, meio sarcástico [Risos e comentários ininteligíveis].Aliás, como colega, no Roosevelt, [ ]- isto aqui já é clássico: todo mundo quer fofoca - mas éinteressante - eu admirava o Giannotti porque ele tinha a capacidade de arrostar a classeinteira. Se um professor de filosofia estava dando aula e falava determinada coisa, ele dizia:"Isto não é verdade. Ele levantava: "isto não é verdade [risos] porque eu li em fulano que eraassim, assim, assim". E discutia com o professor. [ ] O pessoal achava que era petulância, maseu admirava o Giannotti [por sua atitude para com o conhecimento]. Eu também fiz algumasvezes assim, mas eu era muito mais respeitoso que o Giannotti. Eu questionava mas dizia: "Osenhor me dá licença? Isso não era bem assim, o senhor me desculpe falar".

Mas o Giannotti, não. O Giannotti entrava como se estivesse falando de igual paraigual [risos]. E, quando ele foi meu professor, o Giannotti deu um texto lá para ver - era lógica,uma coisa assim - e, na [ ] primeira manifestação que dei da interpretação do texto, ele deuuma risada assim, daquelas de deixar você desse tamanhozinho [como se estivesse dizendo:]"Você disse a maior bobagem". Eu fiquei vermelho e afundei [na carteira]. Eu sempre fuimuito tímido, ficava vermelho muito fácil. Tinha um complexo de inferioridade enorme. Hoje

12Professor João Cruz Costa, professor de Filosofia Geral.13Professor Antônio Cândido de Mello e Souza.14Seria injusto dizer que essas características não eram também do Professor Cruz Costa, e que suas aulas só nãome impressionaram tão favoravelmente por causa do assunto, que não me despertava tanto interesse, e poraspectos de fluência e organização.15Professor José Arthur Giannotti.

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talvez em tenha conseguido superar, ter uma "reação de formação" como Freud diz, e eucoloco [ ] um aparente estar à vontade, quando, na verdade, sou muito tímido. Mas aí eu meressenti daquilo e disse para ele: "Giannotti, você está aqui para me ensinar, para ser professor,não para me 'gozar'.Você acha certo isso que você está fazendo?" Ele mudou. O Giannotti,daquele dia em diante, passou a me respeitar [e aos outros], perdeu aquela atitude e eu passeitambém a admirá-lo mais porque ele foi capaz de perceber que estava errado. E sempre nosdemos bem. Mas o Giannotti é sempre assim, ele é uma ilha e ninguém o influencia.

Mas eu diria, esse espírito da Faculdade de Filosofia eu [o] via [além de em muitosprofessores da Faculdade que haviam se formado nela, em alunos como] o Bento (o Bento foimeu aluno, a Lúcia Prado também [ ] ) , o Giannotti, o Rodolpho, o Arno, o IsaíasPessotti.16Era um pessoal que tinha [ ] um "élan, [ ] eram descobridores da América, pioneiros.Tinham uma missão, a gente sentia isso. Muitos não, muitos estavam ali para pegar o seudiploma e sair, [ ], e não deixar saudade. [ ]

Roberto - E como [ ] vocês viam o nível dos professores? Quer dizer: havia essa pose,estavam lá em cima, na cátedra. Agora, isso era só uma pose ou vocês sentiam realmente comopessoas de ótimo nível?

Walter - Olha, de maneira geral era alto nível. Eram pessoas extremamente competentes quefalavam e que entendiam do que falavam [ ]. Mas havia um ou outro que impostava. Eu nãovou dar nomes aqui, mas nós tiivemos alguns professores que se escondiam atrás de umaaparência, que impostavam um pouco, e parecia que eram percebidos. Quer dizer, os alunossabiam disso e faziam de conta [que não sabiam]. Aliás, a relação professor-aluno é umarelação toda ...[distorcida (?)]. Isso aparece na tese de uma de minhas orientandas, 17 e aparecemuito bem: é uma relação de meias-verdades. As linguagens são diferentes. Quando o aluno[pergunta]: "Professor, isso que o senhor vai dar [em sua aula] é importante?", o professor[responde]: "É claro, tudo que dou é importante". Mas o que o aluno quer perguntar é oseguinte: "Isso vai cair na prova?" Então há uma desconversa e eles fazem de conta que seentendem [Risos] [ ]. Mas, no fundo, o aluno [ ] já entra para a sala de aula com toda umahistória [pela qual] ele repõe uma situação que vai estragar a relação de ensino daí para afrente, porque [geralmente] ele não está ali para aprender, ele está ali para ganhar o "canudo"e ele sabe que o professor está ali zelando por um território e é dono daquele "pedaço", temmuito mais autoridade que ele, não pode ser questionado. Então é raro você realmente ter umarelação em que o aluno está interessado em aprender e o professor [ ] interessado em ensinar,portanto, deixa que o aluno selecione o que é importante ou não.

Cesar - Walter, naquela época vocês tratavam os professores por "você"?

16Além de a este último, a referência é aos professores Bento Prado Júnior, J. A. Giannotti, Rodolpho Azzi eArno Engelmann.17A tese de Doutorado de Maria Lúcia de Almeida Melo intitulada "Incursões no Mundo Vivido por Professorese alunos (Um estudo sobre a relação pedagógica no Ciclo Básico da Puc- SP.)", junto ao Instituto de Psicologiada Universidade de São Paulo em 1986.

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Walter - Não.

Cesar - Porque hoje em dia é muito comum, o aluno o chama "Cesar", "Walter".

Walter - [ ]. A Mudança que eu acho que houve é a seguinte. Eles eram, como eu disse antes,espécies de deuses. Dizem que isso também havia na Faculdade de Direito. Gofredo da SilvaTelles estava dando aula, [ ] fui assistir à aula dele e aquilo era [como estar] vendo umluminar lá na frente, um Professor [Risos]. Você [não passava de] um feijãozinho mesmo eele era uma Pessoa. Mais que uma pessoa, era um deus. Quando ele se dirigia a você era umahonra enorme. Imagine, dirigir-se a uma pessoa para fazer uma pergunta.

Marina - Você não tinha uma relação extra-classe com os professores?

Walter - Não. Não tinha. Não havia. Agora, [ ] como eu fui professor praticamente nessetempo também (comecei a lecionar cedo, logo que me formei), eu senti que, no começo, haviaum respeito muito grande [ ]. Mas esse respeito foi sendo perdido e hoje eu tenho a impressão- quer dizer, "hoje", nos últimos tempos em que eu estava lecionando - que o professor é umpouco mais que um jardineiro para um filhinho de papai, uma pessoa que está fazendo umserviço: não tem mais importância do que o faxineiro, do que o chofer. Ele é uma pessoa quetem uma tarefazinha. Como a maior parte que faz a USP é da classe dominante, parece queisso vem até no tratamento que a maioria dá: um tratamento assim um pouco assimétrico,condescendente, um pouco de cima para baixo. O aluno é que está um pouco para cima etratando com uma pessoa meio inferior. A própria homenagem que os alunos fazem é umahomenagem que, pelo menos nos últimos tempos, já não é uma homenagem inteiramentedesprovida de interesse. Eles estão até certo ponto se promovendo através da homenagem.

Roberto - Agora, esse distanciamento entre professor e o aluno não atrapalhava em termos deorientação de alunos? Havia essa idéia de o professor ter alunos que ele orientava em nívelequivalente à iniciação científica, etc.? Isso exige um contato mais direto.

Walter - Não. Isso só passaria a haver na hora em que o professor decidia que aquele alunopoderia ser contratado, estava na mira para ser contratado. Então, aí, às vezes, o professorpodia chamar o aluno para um encontro especial e dizer: "Olha, vamos discutir um tema, umaobra que eu quero que você leia [ ]; você vai me fazer um trabalho sobre isso". Aí poderiachamá-lo em especial. Mas, de uma maneira geral, não: acabava a aula e acabou o contato e oaluno tinha lá os seus trabalhos para fazer, para ler, [e receber] julgamento.

Marina - Com os outros colegas, alunos: estudavam juntos ou não? Eram também semrelação?

Walter - Não. Também era cada um para si e Deus para todos. [ ] A maior parte dos meuscolegas estava interessada em notas, no "canudo", a não ser quando alguma coisa lhe diziamuito de perto. Por exemplo, tive um colega que hoje sei que é adido cultural na embaixadabrasileira em Nova Iorque e se dedica à arte. É o José Menache Neisten. Nós fomos muito

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ligados e fomos algumas vezes ao teatro juntos. Eu não entendia nada de teatro, nunca entendide arte e não conseguia entender o que ele achava de tão fabuloso no balé que ele via. [ ] Masele vibrava... Então, nas audas de estética ele ia muito bem [ ]. E em alguma coisa desociologia que fosse relacionada a arte ele ia muito bem. O que está de acordo com a tese: [ ]não adianta você dizer que ensinou se o o aluno não aprendeu, e ele aprende melhor quando érelacionado com o interesse dele aquilo que está sendo exposto.

Marina - Quais eram as matérias de que o senhor gostava mais?

Walter - No curso de filosofia?

Marina - Sim.

Walter - Gostava mais de história da filosofia, mais que de todas as outras. Gostava desociologia e gostava das matérias de psicologia, todas elas. Todas elas me intrigavam, Eu tive[ ] um curso de filosofia sui generis. Isso também eu acho que eu menciono naquele trabalho.Era um curso em que metade das matérias eram de reflexão, eram teóricas, eram matérias defilosofia. A outra metade eram [disciplinas] de psicologia. Não havia curso de psicologia,então, quem queria fazer psicologia, [fazia o curso de filosofia].

Roberto - Era uma proporção alta assim?

Walter - Proporção alta. [ ] Mais de um terço das matérias, quase a metade das matérias, eramde psicologia. Quarenta por cento delas. Havia duas matérias de psicologia quase todo ano,anuais. [ ] De matérias de psicologia, no curso de filosofia, eu tive psicologia diferencial,psicologia social, psicologia experimental, lecionada por Carolina Bori, [ ] problemascorrentes da psicologia, psicologia da Gestalt, ... não consigo me lembrar de mais algumacoisa.

Cesar - Como era a psicologia experimental?

Walter - [ ] Olha, não era muito diferente, não. Eram aqueles artigos que você encontra noAmerican Journal of Experimental Psichology. Eram, vários deles, trabalhos sobre motivação,interrupção de tarefas. A Carolina dava os experimentos das discípulas de Lewin18 - Zeigarnike Tamara Dembo - sobre interrupção de tarefa e o efeito [por ela exercido] na motivação:como uma tarefa incompleta criava como que uma tensão e uma necessidade decompletamento posterior. O [ ] sujeito do experimento retomava-a [à tarefa] na primeiraoportunidade. [A Carolina dava também] experimentos sobre o nível de aspiração,experimentos sobre resolução, era [um curso] relativamente variado. Era muito bom, você vêque eu ainda lembro até hoje? [Risos]. Experimentos de Luchins... Geralmente você nãolembra de matéria escolar. E, do Lívio, eu me lembro, sabe, o que ele dava sobre Platão, sobreAristóteles; as aulas do Dante Moreira Leite, de psicologia diferencial, que envolviam muito o

18 Kurt Lewin, fundador da teoria de campo em psicologia.

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problema de diferenças raciais, se se poderia realmente acreditar que elas eram biológicas, seeram culturais, esse tipo de coisa, me lembro bem, também.

Cesar - Eram cursos teóricos ou você tinha alguma parte prática?

Walter - [ ] Sempre havia trabalhos para fazer. No curso de [psicologia] experimental tinhauma parte prática para fazer. Com a Carolina, tínhamos.

Roberto e Cesar - Havia laboratório?

Walter - Não. Não havia laboratório. A gente tinha que replicar, com os recursos que a gentetinha, geralmente em casa, [ ] um tipo de experimento de lápis e papel. Mas eramexperimentos assim ...

Cesar - Você lembra de um que você tenha replicado?

Walter - Olha, eu tive um de nível de aspiração. Eu tinha que dar labirintos para a pessoa [ ]fazer. Mas havia algumas instruções que criavam níveis de aspirações diferentes e depois agente via o efeito da interrupção, quer dizer, a gente não deixava o indivíduo terminar. Quandoele chegava a dois terços do labirinto, impedia-o: [ ] "O seu tempo terminou". E não era nada[Risos]. Era só para ver se o indivíduo, depois, conversando com a gente, tentava pegar aquilo,continuar, [enfim as] várias manifestações de um motivo ainda atuando sobre o indivíduo epressionando o completamento da tarefa, [em conformidade ] com a teoria de Lewin. [ ] Agente achava outros alunos para aplicar [Risos], [dizia]: "Você vai ser o meu sujeito". Levavauma meia dúzia, conseguia, levava para casa.

Cesar - Mas não havia a idéia de laboratório?

Walter - Não. Não havia. Não havia, absolutamente.

Roberto - Não havia, por exemplo, nenhum trabalho didático de condicionamento comanimais, coisa assim?

Walter - Não. Nós tivemos aula na Alameda Glete com o Joel Martins, quando o Dante19 foipara os Estados Unidos, fazer um estágio [ ] lá, estudar. Então o Joel Martins foi contratado nolugar dele. O Joel dava psicologia experimental. Aliás, ele dava [a disciplina] "problemascorrentes de psicologia" e ele dava o neobehaviorismo, [ ] tratava das escolas [recentes] depsicologia. Então ele expôs muito e parece que tinha trabalhado, lá, no porão da Glete - disseele que tinha trabalhado, que tinha tentado trabalhar [risos], quando chegou, com a neuroseexperimental do rato, quer dizer, replicando o experimento do Pavlov. Mas eu acho que elenão chegou a fazer. Ele falava muito que ia fazer, que fazia. Mas não havia realmentelaboratório.

19O professor Dante Moreira Leite.

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O laboratório nós começamos, não é? O primeiro laboratório [começou] quando eu eraassistente da Dona Annita. Ela me encarregou do treino prático. Eu tinha voltado dos EstadosUnidos, então eu resolvi fazer, à semelhança do que eu vi nos Estados Unidos, o laboratório depsicologia experimental, que até teve um bom destino, sabe?20 [E se ele tivesse continuado naforma como era originalmente] eu acho que hoje nós estaríamos melhor, em termos depsicologia experimental, modéstia à parte, do que com essas caixas de Skinner e essapadronização toda que está aí.

Marina - Quando começou o laboratório?

Walter - Olha, eu tenho que dizer o seguinte. [ ] Durante um ano, de agosto de 1960 a julho de1961 - quer dizer, um ano só - eu fui fazer um curso [ ] pós-graduado nos Estados Unidos [ ] .Eu tive várias matérias avançadas de psicologia experimental lá, e a intenção com que eu fuifazer psicologia experimental era, explicitamente, [me preparar para, em minha volta,estabelecer um laboratório de psicologia experimental] e me encarregar da parte prática, delaboratório, [da disciplina de psicologia experimental do recém-criado] curso de psicologia [].

O curso de psicologia foi criado em 1958. Então, eu indo em 1960 - 1961, estariaimplementando o projeto da Cadeira, que era ganhar condições para um ensino realmenteelevado, em nível universitário, da psicologia e da psicologia experimental. E era um projetoque eu tinha abraçado. Eu achava entusiasmante fazer uma investigação empírica - [porque] eufazia, eu [já] estava fazendo pesquisa na CMTC21 alguns anos antes. Eu trabalhava na CMTCe acumulava com a Faculdade. Eu fazia pesquisas sobre validade das provas usadas [ ] paraseleção de motoristas de ônibus. Durante alguns anos eu fiz pesquisas lá. E era uma coisa queme apaixonava - eu acredito, sempre como fuga - fuga à rotina, fuga ao trabalho que enchia apaciência. Então eu sempre inventei essas saídas. A própria psicologia animal acho que erauma maneira de soltar vapor, sair de alguma rotina, de alguma coisa muito desagradável.

Roberto - [Sobre] o clima durante o seu curso de filosofia entre os professores: havia pesquisaentre os professores ou a idéia era que a pessoa tentava alcançar uma enorme erudição, saber oque os outros fizeram, mas não produzir alguma coisa?

Walter - Não. Produzir, havia sentido de produção, sim. Cada um deveria ser um produtorpróprio de pensamento. Nem todos os professores tinham essa produção, mas aqueles quetinham se destacavam. O Antônio Cândido; o Giannotti, por exemplo, tinha uma produçãoprópria; posteriormente, o Bento também, tinha produção própria. Esse pessoal todo estava ali,o pessoal de filosofia mesmo, o Cruz Costa, tinha; escrevia alguma coisa, pesquisava sobre opositivismo no Brasil, tinha uma produção própria. O Lívio, parece... não sei, parece que não.Era mais erudição do que idéia [própria]. Agora, a professora Annita - ela era professora depsicologia, catedrática interina - tinha feito uma tese sobre memória de formas, uma tese ligada 20Alude-se, aqui, ao fato de que ele foi a origem dos laboratórios de percepção e motivação do futuroDepartamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP.21Companhia Municipal de Transportes Coletivos.

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à corrente da Psicologia da Gestalt, e a intenção dela era continuar pesquisando dentro da linhada Psicologia da Gestalt, mas ela acabou virando praticamente uma administradora da políticade psicologia, perdendo uma boa parte [de seu tempo] nessa política na Faculdade, em SãoPaulo, [e] no Brasil. Boa parte.

Mas eu tinha que respnder à Marina, não é, Marina? como começou [o laboratório]?Quando eu voltei dos Estados Unidos, então eu me encarreguei desse treino prático. E amaneira como me pareceu que devia fazer - eu não tinha equipamento, não tinha laboratório -[] e sempre me passou pela cabeça [o seguinte: ]: "Bom, [ ] a gente tem que construir umaoficina, quer dizer, ter uma oficina com ferramentas simples, ter bastante caixote, pano,madeira, prego, o que for necessário para construir alguns equimpamentos, e eu vou ensinaresse pessoal como é que ele pode trabalhar com recursos caseiros disponíveis. Uma boa parte[dos alunos] eram moças e elas achavam divertido trabalhar com serrote e martelo. Eu [ ]gostei de ver aquilo, que elas sanariam [sua falta de experiência] - havia um preconceito aqui,de que elas não conseguiriam trabalhar [com ferramentas]. Eu vim dos Estados Unidostrabalhar e aí então eu dava um experimento para se replicar, mas lido no original, em inglês []. Eram percepção e aprendizagem, basicamente, [ ] os dois tópicos que eu escolhi. O alunodeveria replicar um experimento em percepção e replicar um experimento de aprendizado - oCesar tem o testemunho disso, ele diz que foi doloroso [risos] [inaudível].

Cesar - Eu fui sujeito dessa criação do laboratório.

Roberto - Você pegou o início?

Cesar - Peguei o início. Peguei o Walter quando ele voltou dos Estados Unidos em 61. Euacho que [n]a primeira vez que foi "bolado" esse laboratório, eu entrei como aluno [Risos].

Marina - Que coragem!

Walter - Mas eu acredito que ...

Cesar - Foi horrível.

Walter - Como é que é?

Cesar - Sobrevivi.

Walter - Sobreviveu. Mas eu acho que era uma coisa [merecedora de destaque]: o nível dosalunos era diferente. Os alunos, [ ] acho, tinham uma formação muito melhor que a de hoje,porque eles eram capazes de ler os autores no original e eu não dava os livros - não havia,também, não havia livros sobre psicologia, não havia tradução.

Cesar - Não havia tradução, não havia tradução de livros.

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Walter - Então eles tinham que ler no original. Era em inglês, francês e castelhano. Elestinham que ler. Então ...

Fim do lado B da fita

Início do lado A da fita 2:

Walter - ... [havia] a necessidade, depois, de ele fazer um experimento próprio, relacionadocom aquele, com uma idéia própria para testar, [ ] uma hipótese do aluno , [ ]. Era outra parteda obrigação do curso. E, finalmente - quer dizer, consumando tudo isso - ele deveria fazer umrelatório, cujas normas técnicas eu entregava, como se fosse um artigo para ser publicado [emjornal científico]. Deve ser assim: deve constar de uma introdução, depois do método, sujeito,os resultados, discussão e bibliografia. Como é que se faz a bibliografia, tudo isso, essasnormas, eu dava. E eu acho que teria ido muito bem se o Keller22, [ ] que era o professorestrangeiro contratado para dar psicologia experimental e psicologia comparada, [ ] não tivessechegado e [em conseqüência de sua chegada eu não tivesse sido transferido daí a uns meses,nas minhas atribuições dentro do Curso de Psicologia, do treino prático da disciplinaPsicologia Geral e Experimental (que continuou sendo ministrada pela Dona Annita) para oensino de Psicologia Comparada] [ ]23

Roberto - A gente podia voltar um pouco atrás. Você se formou acho que em 57, não é?

Walter - Em 56.

Roberto - Em 56. Bom. Logo depois você começou a dar aula lá na Filosofia?

Walter - Foi. Em 57. Essas coisas são escandalosas, acho que hoje em dia são impensáveis,não? Não havia curso de pós-graduação e eu trabalhava na CMTC, na Divisão de Seleção eFormação Profissional. Aí eu recebo um telefonema do professor Dante pedindo [meu]comparecimento a uma entrevista. Ele disse que a Dona Annita queria falar comigo. Eu nãosabia nem o que era. Eu fui lá e ela disse: "Você quer trabalhar na Cadeira?" -"Quero". "Só queeu não tenho ordenado para lhe dar. Você vai trabalhar gratuitamente até surgir umaoportunidade de contratação". E era sexta-feira isso. -"Na segunda-feira você se encarrega deum curso de psicologia diferencial" [Risos]. Falei: "Mas Dona Annita...?!"-"Segunda-feira. Vaiter que ser assim. Eu preciso. Nós vamos começar esse curso e você é que vai dar". E eraassim, mais ou menos como eu tinha feito com os alunos: "se 'vira'!". [Por]que eu acho que éuma boa técnica você levar a pessoa dentro de um barco para o alto mar, furar o barco e dizer[risos]: agora aprende a nadar. Bom para mim, mau para o aluno, que o aluno não ia terprofessor [Risos]. Mas, para mim, foi ótimo, porque eu fui obrigado a me "virar", aprender a

22Professor Fred S. Keller, professor da Columbia University.23Suprimo o restante deste período (cerca de 9 linhas) por conter afirmações completamente equivocadas e queaproximam, por erro, épocas e acontecimentos muito diversos. que a seqüência do relato se encarregará demostrar.

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ler [ ]. Então eu acho que boa parte de minha vida foi tentando fazer de "full professor" ondeera necessário. Daí a pouco, no segundo semestre, ela me deu Técnicas Projetivas, que era umaparte do curso de Personalidade, para dar, só porque eu, na CMTC, aplicava uma técnicaprojetiva. E, no outro ano, fui encarregado de Psicologia da Gestalt. E, assim, fui sendoencarregado de várias matérias que, nos Estados Unidos, eram para "full professor'. E eusempre tive muito medo de parecer "picareta", despreparado, então essas coisas me custavamuma [ ] vida familiar meio renegada. Sobrou demais para minha mulher, acho que ela é umametade silenciosa nisso, mas extremamente sacrificada: cuidar da filha, cuidar da casa, dasvisitas, das coisas que tinham que ser feitas.

Marina - Quando [é]i que o senhor se casou?

Walter - Eu me casei quando aluno ainda. [ ] Em 55. Estava no 3o. ano, mas já estava noivoantes.

Cesar - Em 55 ou 56?

Walter - Em 55 me casei. E me formei em 56, no final.

Roberto - E você então trabalhava, fazia o curso à noite e se casou?

Walter - E casei [Risos].

Cesar- Há 34 anos? Porque a Bertha me disse que fez 34 anos ontem.

Walter- Vai fazer 35 anos.

Cesar - Ah... porque ela falou 34, porisso [inaudível].

Walter- É. Em julho faz 35 anos que me casei. Agora, quando ficamos noivos, ficamos noivosum ano e meio. E foi a minha primeira namorada e única. Ela era colega de escola no Clássicoe eu a admirava muito, acho que ela nem sabia. E, depois de formada, a imagem dela não saíade minha cabeça, eu peguei o endereço dela na escola. Ela morava numa rua comprida -chama-se Doutor Bacelar, lá na Vila Clementino. Hoje está o Colégio Objetivo em frente àcasa dela, mas antes era uma chácara de verduras. E eu, lá num determinado dia, passei pelafrente. Mas eu andei pela rua inteira. Não sei por que eu peguei o número errado, então eu nãoachava, não o via. E, aí, ela apareceu no portão [e eu disse]: "Você por aqui? Você moraaqui?" [risos], com esse ar de disfarce - mas logo ficou evidente que eu a estava procurando.Aí começamos a namorar imediatamente. [ ] Eu e ela rivalizávamos, nós tínhamos as maioresnotas do colégio. Às vezes era ela a primeira aluna e às vezes era eu. E nós tínhamos umaformação parecida, porque ela também é de família pobre e com poucos recursos, então agente sabia o que era essa dureza. [Eu] trabalhava para poder estudar, no colégio. Então, foiisso.

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Cesar - Mas, Walter, eu queria que você desse assim um pouquinho uma idéia do curso depsicologia, como é que surgiu. Eu acho que isso situa a sua atuação.

Walter - [ ] Eu acho que o Curso de Psicologia foi a concretização de uma idéia da DonaAnnita. A Dona Annita viveu em função desse projeto vários anos. Ela criou a AssociaçãoBrasileira de Psicólogos e não sei se a Sociedade de Psicologia também24 - eu acho que ela foiuma das fundadoras...

César - Foi.

Walter - [ ] Quando eu entrei lá [na Faculdade de Filosofia] a Sociedade de Psicologia jáexistia, [ ] e fui secretário dela durante um determinado momento. Mas ela criou as sociedadestendo em vista reunir o pessoal que tivesse interesse em psicologia para, futuramente, propor [] a regulamentação da profissão de psicólogo e a de um curso superior em psicologia e criar oprimeiro curso de psicologia. Ela fez tudo isso acho que deliberadamente. E, durante algunsanos, ela viveu essa estratégia. Ela promoveu reuniões, ela recebeu gente de fora... Porexemplo, eu me lembro de um professor que veio do México, [era o reitor da Universidade doMéxico]: ela foi buscar esse professor para ele explicar25 como era o curso de psicologia lá.Ela tinha experiência dos Estados Unidos também. Então, quando ela propôs o projeto, elapropôs a criação do curso de psicologia na esteira da criação do curso de geologia.

O curso de geologia tinha sido recém-aprovado pela Congregação, mas antes disso elajá tinha várias vezes aflorado a necessidade de criar um curso de psicologia, porque apsicologia já era uma ciência, deveria ser desmembrada da filosofia, e o pessoal daCongregação, alguns professores da Congregação, tinham feito uma manifestação dizendo quesim, que mais cedo ou mais tarde seria preciso criar um curso de psicologia, que era verdadeque a psicologia estava ficando independente da filosofia. E ela aproveitou a criação do cursode geologia para, [ ], [mesmo] sem dotação de recursos próprios - quer dizer, [apenas] com osrecursos existentes, usando das Cadeiras, [d]as coisas que já existiam, professores que jáexistiam, [propor a criação do curso de psicologia]. Ela gostou da [sua] idéia e disse: "Olha,vou propor aqui26 E ela me falou: "O que você acha?" Chegamos até a conversar sobre isso. Aíeu disse: "A senhora tem razão, só que vai ser uma bola de neve. A senhora sabe que isso vainos arrastar, que isso vai significar muito trabalho". Ela falou assim: "Eu sei, Walter. Issodaqui vai ser a perda do nosso sossego, do nosso sono tranqüilo, mas eu tenho que criar".

Ela propôs a criação do curso. Eu dei um documento para a Marina que é uma partedassa ata [da Congregação] em que ela faz a proposição. Imediatamente - é claro que, quando

24A Sociedade de Psicologia de São Paulo também, de cuja 1a. diretoria foi a Presidente eleita por aclamação, em1953. Essa eleição foi um reconhecimento desua iniciativa de reunir, para o fim específico de fundar essasociedade, todas as personalidades ilustres da sociedade paulistana da época que, por suas ocupações ouatividades, poderiam ter algum interesse na psicologia.25Para um grupo de professores que ela reuniu em sua casa.26Quer dizer: aproveitando o fato de que a Congregação, que estava acabando de criar um curso novo,provavelmente não encontraria argumentos para não aceitar também a criação do curso de psicologia.

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se abre um processo no CTA, que era o Conselho Técnico Administrativo, é designado umprofessor - foi designado o [ ] professor Eduardo França para dar o parecer. Mas havia, naocasião, duas cadeiras de psicologia. Como eu disse, a Cadeira de Psicologia Educacionaltinha vindo da Escola Caetano de Campos, e a catedrática, que era catedrática da Escola deEducação, se tornou catedrática da Faculdade de Filosofia por decreto - [ ] era a professoraNoemi da Silveira Rudolfer. Então, essa era a encarregada da Psicologia Educacional;lecionava para os 4os. anos todos e lecionava para o curso de Pedagogia em alguns anos. [Ehavia] a Cadeira de Psicologia, que era parte da Secção de Filosofia e que teve como professororiginal o professor Jean Maugüé, que era da missão francesa.

Quando ele foi embora, ele deixou a Dona Annita contratada como interina no lugardele. Aí foi trazido o professor Otto Klineberg, um americano, [professor] de psicologiasocial, para se encarregar da Cadeira, e desde essa ocasião a Dona Annita vinha planejando acriação do curso de psicologia e uma lei do curso de psicologia. Agora, quando ela propôs issona Congregação, eu interpreto assim, houve uma reação um tanto de ciúme [por parte] daprofessora Noemi [pelo fato] de alguém [ ], uma pessoa mais nova, mais jovem, estarpropondo o curso de psicologia quando ela não teve essa idéia de criar esse curso. E ela foicontra. Ela deu um parecer em que ela era contra a criação do curso de psicologia.

Cesar - ... que é esse documento que você mencionou?

Walter - É. [ ] Ela não foi inteiramente contra, ela ficou reticente. Ela dizia que a idéia erabrilhante, era meritória, atestava a inteligência da propositora, [que o curso[ de fato eranecessário, mas era extemporâneo. Extemporâneo porque não tínhamos os recursosnecessários para dar um curso dessa envergadura, não tínhamos o pessoal, os recursos para daresse curso. Era extemporâneo porque ela não tinha consultado os outros professoresinteressados, por exemplo, a outra Cadeira e professores de antropologia, professores ligadosao curso que pudessem colaborar: sociologia, filosofia, ..., que eram de outras Cadeiras...

Cesar - Eram duas Cadeiras naquela época?

Walter - Eram duas Cadeiras. ...E extemporâneo porque não tinha uma base muito firme sobreque se assentar, porque a professora Annita não era catedrática. Então, ela dizia, ela propunha,entre outras coisas, que se abrisse o concurso para provimento da Cadeira. E vem daí a reaçãoda Dona Annita. Ela disse: "Não, eu não vou oferecer a minha cabeça numa bandeja". Porquefazer um concurso significaria fazer um concurso presidido pela professora Noemi, que estavase opondo a ela. E daí para a frente ela passou a ser dominada por um complexo deperseguição, de que sempre havia uma armadilha para tirar o cargo dela. Então ela nunca fezconcurso. Eu acho que havia algumas razões para essas coisas aí, que ela realmente teriaoferecido a cabeça dela numa bandeja [caso fizesse o concurso]. Porque a coisa era muito emgrupo. Não podia haver dois no mesmo campo. A existência de dois na psicologia eraintelerável, não pode haver dois num [único] território. E os domínios do saber eram umterritório.

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Cesar - Agora, o curso acabou sendo criado?

Walter - O curso foi criado. Eles deram o parecer no sentido de que não haveria ônus para aFaculdade, os professores já existentes, das duas cadeiras, dividiriam as matérias [com] maisalguns professores de outras Cadeiras que concordavam em dar. E, com o tempo, se iriamcriando os recursos. Como parte dos acordos seria trazido um professor estrangeiro para darpsicologia experimental e psicologia comparada, que eram as lacunas mais evidentes, queeram no domínio empírico [ ]. E custou um pouco para que [os recursos] viessem. E o cursofoi criado assim. [ ] A primeira lei que regulamentou a profissão foi também obra dela [deDona Annita], foi proposição dela, [ ], através da Associação Brasileira de Psicólogos, que elacriou especificamente como parte da estratégia de criação do curso de psicologia e da profissãode psicologia no país. Agora ela foi sacrificada a esse projeto, porque isso significou derepente você ter meia dúzia de matérias para lecionar, para as quais você não estava preparado,e formar quadros, formar pessoal e arrumar espaço. E daí para a frente [ ] começou o nossoinferno, porque a gente tinha uma vidinha até relativamente sossegada. Eu trabalhava em outrolugar e trabalhava lá na Maria Antônia. Mas a gente podia contar, por exemplo, com um mêsde férias, sair um mês de férias, só com um plantãozinho semanal; ia lá, atendia à biblioteca,retirava alguma coisa, fazia alguma carta que precisasse.

Mas, aí, [com a criação do curso de psicologia] acabou. A partir [especialmente] domeu doutoramento acabou o sossego. Aí era um rolo compressor, porque São Paulo é o centrocultural do país [e] virou um vade-mecum de todos aqueles que queriam alguma assessoriapara criar um curso de psicologia ou fazer alguma coisa parecida, uma bibliografia, ou isso ouaquilo. Então a todo momento você tinha entrevista marcada com pessoas que vinham não seide onde: do Recife, de Belo Horizonte, alunos que queriam [informações], curiosos, mesmo. Eas tarefas para formação desse novo curso, de preparo para esse novo curso, de arrumarmaterial - só o que isso implicava em termos de ofícios, de visitas aos gabinetes para ver comoestava esse processo, essa compra, [ ] o empenho disso, o empenho daquilo!... Eu sei que issoera extremamente custoso, que eu nunca fiz com gosto, mas tinha que fazer. Então eu acho que... sei lá, no nosso tempo também não tinha muito sentido publicar. Eu gostaria de estarpublicando, às vezes tinha feito planos, "vou fazer um artigo sobre isso ou aquilo", mas nãohavia muito sentido, porque não havia nem quem lesse, não havia público consumidor. Quempodia se interessar? Vou escrever para quem? Para dois ou três colegas que estão lecionando?Hoje é diferente, hoje existe público.

Roberto - E publicar fora do país?

Walter - É, publicar fora do país poderia ter sido.

Roberto - Mas naquele tempo não se praticava - uma [inaudível] da Faculdade de Filosofia?

Walter - Não. Eu acredito que o problema é esse: quando a casa está caindo você trata deescorar, e a casa estava sempre caindo, a gente estava sempre em emergência, sempre tinhacoisas mais urgentes para serem feitas que não podiam [esperar], e a pesquisa pode ser adiada,

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a publicação pode ser adiada. Depois, em 1968, [e] com a reforma universitária de [1969] a1970,[as dificuldades para se publicar até se agravaram, porque houve] um processo intensotambém de reformulação, porque a gente vivia as comissões paritárias, aquelas discussões decomo deveria ser a nova Faculdade.27 O objetivo de toda essa reforma universitária [que foi,afinal, feita] me parece claro: [ ] foi desmontar a Faculdade de Filosofia e profissionalizar osvários setores. Quer dizer, voltar a um padrão tradicional, o pensamento tradicional, acabarcom aquele germe de reflexão crítica que pudesse haver. A impressão que eu tenho é que [foiisso], tanto que [quando] eles transformaram a Faculdade de Filosofia, acabou - ninguém maisfalou em reforma, parece que o objetivo tinha sido atingido.

Roberto - Quando você foi para o exterior isso se enquadrava dentro do projeto doDepartamento, quer dizer, foi o Departamento que decidiu a sua ida, não era um projetopessoal?

Walter - Foi. Não era um projeto pessoal. Ela [Dona Annita] não queria saber se eu podia ir,se o meu casamento permitia, se a idade da minha filha permitia. O fato era o seguinte, eraparte do pensamento de Dona Annita: melhor do que trazer um professor estrangeiro é mandaralguém de nossa cultura para lá e assimilar o que for aproveitável e vir. Porque essa pessoaficará aqui e trabalhará e saberá, talvez, adaptar as coisas ao nosso meio. E nesse ponto elaestava correta, eu acho. Também é bom trazer professor estrangeiro, não digo que não, mas euacho que se tratava de estar formando quadro, era uma boa coisa. Então ela me forçou, meinstou a me matricular na União Cultural, fazer um curso de inglês ( minha formação eradeficiente em inglês e ainda é deficiente [ ]; eu falo mal - leio bem inglês, mas falo mal); e meinscreveu numa bolsa pelo Instituto Internacional de Estudos Avançados [ ], que era doprograma panamericano não sei de que, [programa} de intercâmbio que havia. Então, chegoua época normal, não me chamaram, e quase depois de dois meses da época que seria normalpara eu me preparar, recebo um aviso de que o curso já ia começar e eu estava convocado enão tinha sido avisado.

Então, aí, eu tive que desmontar minha casa, despachar móveis para onde pudesse, paracasa de parentes, fechar a casa e preparar a viagem. E sem dinheiro. Então eu levaria o meuordenado de tempo parcial que, naquele tempo, correspondia a uns 130 dólares, e eu ganhavauma bolsa de 75 dólares por mês - não, 90 dólares; 75 ou 90 - e tinha que fazer seguro de vida,o que foi uma sorte,porque tinha seguro de saúde com a "Blue Cross", tinha umas despesasforçadas - pagar matrícula e tudo aquilo a que corresponde - pagar os livros, [ ] etc.

Tentei conseguir uma bolsa na Reitoria. Fui procurar falar com o reitor, insisti - essainsistência, posso dizer, que é uma coisa em que eu chego a ser chato, quando quero umacoisa. Então, de tanto insistir com o reitor, a secretária dele [e ele] descobriram uma verba lá

27As comissões paritárias eram comissões exigidas pelo movimento rebelde de alunos para discutir e promoveruma ampla reforma da Universidade. Tais comissões - afinal aprovadas e regulamentadas e instituídas dentro decada Faculdade e cada curso pelas Congregações correspondentes - eram integradas por um igual número deprofessores e alunos, e funcionaram até o advento do Ato Institucional no. 5, quando vários professores foramcassados pelo regime militar e o movimento estudantil rebelde refluiu. A reforma universitária passou, então, aser ditada de cima para baixo pelo Conselho Universitário da USP e se consumou em 1970.

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que complementaria [a minha bolsa]: me dariam parece que 100 dólares por mês, o que erauma maravilha, naquele tempo - era coisa de nababo [Risos]. E, aí, como eles descobriram, oentão diretor da Faculdade ficou sabendo, porque o processo foi até ele, porque ele fazia partede uma comissão de entrevista [para julgar a concessão do auxílio] e deveria me entrevistar.[ ] Ele ficou sabendo como era que exististia essa verba [ ] e, então, [ao mesmo tempo que merecomendando para a concessão,] desviou-a [ ] para um professor que ele mandou paraPortugal fazer um passeio lá [risos], e, aí, me foi puxado, assim, o chão debaixo da terra. Masaí o reitor se empenhou e conseguiu - não era 100 dólares, era uma parte pequena, mas ele medeu, não sei se de uma vez.

Cesar - Quem era o reitor na época?

Walter - O Ulhoa Cintra. Extraordinário. Acho que ele era extraordinário porque ele meatendeu com uma voz...[comovida, dada a natureza da causa].

Cesar - É, era bom. Depois veio o Eleucy Goes. Em seguida foi o Gama e Silva?

Walter - Não. Depois do Ulhoa Cintra eu não sei.

Cesar - Acho que o Gama e Silva. É, talvez fosse. Ou o Reale, não sei, porque, sabe? a coisaandou assim... Foi no tempo da reforma, já, acho que foi o Reale.

Walter - Mas, lá, tivemos problemas, porque a minha mulher começou a ter um problema desaúde. Ela teve que extrair um rim lá nos Estados Unidos e eu fiquei tomando conta da criança[ ] - minha filha - que tinha quatro anos, então [isso] foi muito traumático para ela e ainda meprejudicou um pouco nos cursos, nas coisas que eu tinha que fazer. Mas, mesmo assim, deupara levar. Aí eu conheci essa [extraordinária] mulher norte-americana28. O [professor]Michener29, que eu tinha procurado por causa das formigas, [ ] tinha estado no Brasil. Eu fui láfalar com ele. Naquela ocasião eu já estava começando a trabalhar com formigas, estava aqui eessa viagem me interrompeu.

Roberto - Ainda aqui? Anter de ter ido lá?

Walter - Já. Em 1960 eu já trabalhava [com formigas]. Em 1959 eu talvez já tivesse feitoalguma coisa.30 Em 1960 eu já tinha uma porção de observações, de experimentos realizados.E, então, eu fui falar com Michener, se ele tinha alguma publicação, e [contar] o que euestava fazendo. Ele achou muito interessante aquilo, e eu falando inglês e não percebi que eleme respondia em português [Risos]. Aí de repente ele começou a rir e aí eu percebi, falei:

28Mrs. Mary H. Michener.29Professor Charles D. Michener, Chefe do Departamento de Entomologia da Universidade de Kansas e ProfessorEmérito dessa Universidade, mundialmente reconhecido como uma das maiores autoridades no estudo dasabelhas.30Não foi em 1959. Foi exatamente a 16 de junho de 1960 que eu iniciei minhas observações sistemáticas sobreas formigas.

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"Mas o senhor está falando em português? [Risos]. Para mim foi um susto. Michener eraprofessor, "full professor" de entomologia e um dos maiores nomes de entomologia do mundo.E ele me deu um monte de separatas para ler, para ver, de que não consegui aproveitarpraticamente nada, que era quase tudo feito na linha de sistemática, na linha de zoologiamesmo.

Cesar - Você falou do seu trabalho com ele?

Walter - Falei.

Walter - Como é que ele reagiu?

Walter- Olha, ele não teve o menor entusiasmo, assim, pelo trabalho, [por] essa partepsicológica. Ele era uma pessoa de mentalidade zoológica, então para ele só existia o instinto[e certamente ele apresentava, suponho, uma incredulidade quanto a que[ a formiga pudesseter alguma influência da experiência individual, alguma psicologia [ ]. Deve ter soado para elepelo menos [ ] estranho que alguém queira fazer psicologia da formiga, porque [para fazê-lo]existe tanto bicho melhor [risos], para um zoólogo, [além do] ser humano... Que que eu iafazer?31 Mas aí, através dele, [passamos a contar com a assistência providencial de suamulher, Mrs. Michener. O professor Michener tinha estado com a mulher no Brasil, tinhalecionado em Curitiba e já havia sabido através de Pavan32 da internação de Bertha paraextração de um rim. Pavan também pedira que nos ajudassem]. Então a mulher dele or-ganizou um esquema com vizinhos, com pessoas conhecidas, [para] que ficassem com aminha filha - com a Berthinha - durante duas horas aqui, uma hora ali, [ ] levando-a a fazer unsprograminhas. Foi extraordinário, e isso me permitiu fazer cursos e continuar, assim, com asatividades. Eu devo muito a eles. [ ]

Cesar - Você mandou depois alguma coisa [a Michener]?

Walter - Mandei.

Cesar- A tese, talvez? O livro?

Walter - Não, o que eu mandei... Você lembra que, quando houve o Congresso Latino-Americano de Psicobiologia, eu apresentei um trabalho [ ] no qual eu falava sobredeterminantes sociais e de experiência no comportamento emocional das formigas? Para o 31Melhor avaliação do ocorrido seria dizer que, muito provavelmente, não devo ter apresentado, dado o estágioinicial de meus estudos, elementos suficientes para que o professor Michener pudesse adquirir maior interesse pormeu ponto de vista e para que pudesse julgá-lo minimamente fundamentado, ainda mais que só conversamossobre o meu trabalho incidentalmente, em meio a encontros sociais. Seria injusto não dizer que ele era pessoamuito prestativa e afável, e que estava sempre muito educadamente disposto a dialogar e a avaliar as informaçõesque lhe eram apresentadas, sendo também completamente natural que sua erudição prevalecesse em nossasconversas desiguais, e o fizesse totalmente em meu benefício e em abono de sua amabilidade..32O professor Crodowaldo Pavan.

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Michener isso era muito estranho. Então eu mandei a ele, pedi a ele que encaminhasse [otrabalho] a "Insectes Sociaux" para publicação, e que ele me dissesse também o que é que eleachava. E ele foi muito franco, ele disse assim: "Para mim, você não tratou do assuntoprincipal: que essas reações são determinadas pelo feromônio".

Cesar - Alguém tinha que lhe falar.

Walter - Ele já disse. Em todo caso eu estou ... [encaminhando o artigo].

Cesar - Ele lhe mandou tudo isso por carta?

Walter - Por carta.

Cesar - Só isso? Você tem essas cartas aí?

Walter - Talvez tenha.

Cesar - Interessante isso, eu acho, porque isso retrata bem a mentalidade que existia nosEstados Unidos também em relação à etologia. Os zoólogos desconheciam a etologia.Interessante, não?

Walter - Mas Cesar, aí, no caso, tinha muito a ver com etologia. Na verdade a teoria doferomônio é relacionada com a teoria dos liberadores sociais dos etólogos, e essa investigaçãodos efeitos dos feromônios se deu por influência da etologia, por aceitação da etologia, certo?No fundo foi isso.

Cesar - Isso é verdade.

Walter - Então há uma aliança do behaviorismo com a fisiologia e a etologia. Há uma aliançamuito grande e essa aliança foi contrária à psicologia, a uma psicologia que não fosse do tipoestímulo-e-resposta, nessa ocasião. Isso foi bem evidente. E o Michener era assim. Ele tinhaaquela opinião sobre isso. Ele disse: "Olha, eu acho que é assim, mas em todo caso eu voumandar."

Cesar - Mas, veja: dá a impressão que ele desconhecia a etologia, porque, se não, ele saberiaque [ ] o primeiro trabalho de Tinbergen33 foi exatamente sobre flexibilidade decomportamento em himenópteros.

Walter - Desconhecia, sem dúvida. Eu tentei falar com ele sobre isso.

Cesar - Certamente, eu acho que a posição dele não era bem (?) [fundamentada?]

33Nicholas Tinbergen, pesquisador holandês, um dos fundadores da etologia, autor do livro "The Study ofInstinct" (Londres: Oxford University Press, 1951) que tornou a etologia conhecida nos Estados Unidos.

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Walter - Mas sabe o que é o comportamento para eles? Hoje você fala em comportamentoanimal e tem sentido, é uma parte da natureza, é uma coisa que existe. Mas, naquele tempo,para eles, era como se você estivesse falando em alma...

Fim do lado A da fita 2, início do lado B

...Eu acho que, para ele, aquilo devia soar [ ] como muito "fosfórico", muito elocubrativo: "oque é que ele está querendo [dizer] com comportamento de inseto?" O comportamento quenormalmente eles levavam em consideração era fundação do ninho, era reprodutivo, eraalguma coisa ligada à zoologia mais nitidamente, mas um comportamento que pudesse teralguma relação com experiência individual, com a psicologia, não. Isso eu acho que não. [ ]34

Marina - [Lá] o senhor continuava fazendo por [sua] conta os experimentos com formigas ounão?

Walter - Não. Lá eu tinha uns experimentos na cabeça, estava freqüentemente pensando neles,mas não tive a oportunidade. Ali, a matéria de dominar uma língua, de lidar com o problemada doença de minha esposa, ter que fazer o serviço de casa, cuidando de roupa, tudo isso -lavava roupa (eu não tinha dinheiro para usar lavanderia nenhuma, passar roupa...) [meabsorvia]. Enquanto ela esteve no hospital, enquanto ela precisou de um certo resguardo, agente ajudava muito. Então, não havia disponibilidade. Depois, estava no inverno, [ ], eraneve, não via uma formiga, não via nada: vivia nevando [Risos]. Agora, eu cheguei a falar comScheerer - Martin Scheerer - que era um cognitivista alemão, antes de ele falecer. Eu cheguei aconversar com ele e contar alguma coisa do meu experimento [considerado mais im-portante],35 e ele achou muito interessante e disse: "Você vai ficar aqui para fazer uma tese dedoutorado comigo". Aí eu disse para ele: "Eu não posso. Eu tenho que voltar." Você vê aquelacoisa rígida: "Eu vim para um ano, tenho que ficar um ano, tenho que voltar para meencarregar do laboratório lá. Eu não posso ficar."

Roberto - Quer dizer, desde o início estava decidido que só podia ser um ano?

Walter - Só podia ser um ano porque eu tinha [que voltar] - eu achava, eu pus na minhacabeça.Talvez até a Dona Annita tivesse concordado que eu ficasse lá para fazer a tese dedoutorado. Eu devia ter ficado. Mas eu pus na minha cabeça que era só aquele ano e que eu, devolta, ia me encarregar do curso de psicologia experimental, que ela [Dona Annita] estava meesperando e estava sendo sacrificada pela minha falta lá. 34Suprimo um trecho relativamente longo da entrevista por ser redundante e também por merecer o mesmo reparofeito em nota de rodapé precedente.35Experimento realizado a 2/8/1960, poucos dias antes de minha partida para os Estados Unidos, empregando oesmagamento de formigas (e, portanto, presumivelmente, envolvendo a liberação de feromônios de alarme) emum dos ramos de uma trilha duplamente bifurcada, perto do ponto de bifurcação. Os resultados desse experimentosugerem que a presença do feromônio de alarme não é - por si só, onde as formigas têm, mnemonicamente, umarota alternativa desimpedida disponível - suficiente para provocar comportamento de alarme.

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Roberto - E o objetivo também era aprender para dar aula - quer dizer, não era, não havianenhum objetivo de treinamento de pesquisa, fazer coisa desse tipo?

Walter - Não. De fazer tese, coisa desse tipo, não. [ ] Aí eu disse a Scheerer: Não, não vai dar.Mas ele foi internado no hospital, teve um enfarte e depois morreu. Então o meu maior amigolá, o meu possível protetor, aquele que se interessou pelas minhas idéias, morreu. Tambémlogo em seguida voltei. Scheerer era tido como um professor influente. Ele era cognitivista.

Roberto - E esse seu período nos Estados Unidos teve alguma influência, em termos deformação, para o seu trabalho?

Walter - Olha, eu diria que teve uma influência na atitude, [de me fazer ver] quanto eraimportante a gente estar bem informado, de procurar ler, a ponto de eu chegar a prometer amim mesmo: "Chegando lá, não vou deixar de acompanhar tudo que está saindo nosperiódicos, nos jornais. É uma obrigação minha fazer uma revisão permanente dessaliteratura". Projeto que foi logo esquecido. Primeiro, porque levava três a quatro anos parachegar uma revista [risos], na Cadeira, e, quando [os números] chegavam, havia inúmerasfalhas. Depois, [ ] quanto aos periódicos que eram trazidos para a gente examinar e indicardentre eles quais eram prioritários para aquisição, dadas] as necessidades prementes, nemsempre havia tempo para isso.

Mas uma coisa muito importante que me aconteceu foi que o primeiro trabalho que eufiz para a [disciplina] psicologia experimental, escrito lá, em inglês, um "term paper" que eufiz, [foi] examinado por um dos assistentes chamado professor Park. Eu fui depois perguntar aele o que ele achou do trabalho. Ele falou assim: "Demasiado verboso". Aquilo para mim foiuma pancada, mas me serviu de lição. Realmente, [ ], eu estava imbuído [desse vício]. Achoque, desde a infância, o brasileiro é imbuído dessa idéia de que escrever bem é falar bonito,usar palavras difíceis, e eu não tinha me dado conta de que eu era verboso. Ainda sou - achoque a gente não consegue se livrar disso. Mas foi uma coisa que me marcou. Eu passei a[considerar] que o conteúdo era mais importante do que a forma, que a pessoa, às vezes,naquela simplicidade, falando ali para a classe, não tinha aquelas preleções maravilhosas queeu vi na Faculdade de Filosofia, aquelas longas frases encadeadas, mas estava refletindo,estava falando alguma coisa que tinha apoio na realidade. Aquilo me conquistou e foi umacoisa que eu acho que nunca abandonei. Eu acho que, em parte, adquiri o hábito de "não daraula". Eu acho que eu não dava aula: eu refletia diante dos alunos, sempre, levantandoproblema; dava uma série de informações, fazia algumas questões. Isso talvez tenha sidoinfluído pelo que eu vi nos Estados Unidos.

Cesar - Pelo ...?

Walter - Pelo que eu vi nos Estados Unidos. Esta ojeriza pelo verboso, pela eloqüência...

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Cesar - Mas Walter, nos Estados Unidos eles também têm esse hábito de dar aula enquantoaula, como "lecture".

Walter - Não, eles davam "lecture", mas...

Cesar - Porque eu acho que o seu estilo é um pouco diferente do deles, quer dizer, vocêrealmente reflete com os alunos. Agora, me dá a impressão que, nos Estados Unidos, eles sãomais de começar a aula em tal momento e ir falando e depois terminar essa aula.

Walter - Eles falam, mas é [uma fala] muito mais informal. Não há uma preocupação pessoal:[ ] "Vocês estão gostando da minha aula? Eu sou um bom professor?" Não era aquilo. [Eraantes:] "Vocês estão entendendo do assunto? Eu estou sendo eficiente?" A preocupação com aeficiência do assunto é muito maior do que a preocupação com a vaidade pessoal [ ].

Roberto - Não é um espetáculo...

Walter - Não é um espetáculo. Não é. E isso para mim foi marcante. Outra coisa que foimarcante foi ver a diferença de recursos. Porque os Estados Unidos me deram uma impressãoenganosa. [ ] Quando a gente sobrevoa os Estados Unidos - [pelo menos] quando eu cheguei láem 1960 - eu vi aquelas casas de madeira [e elas] me davam uma impressão assim de [nãoser] esse país rico que eu esperava, "aquela coisa". O rico que eu pensava era um país luxuoso.[No entanto], quando você desce [e vai à [ Universidade, [encontra] aqueles prédios antigos,magníficos - o "Strong Hall", [a "Watson's Library"...], edifícios imponentes, etc. - mas eratudo muito simples lá dentro e a maneira como funcionava, e me deu então certa impressão depobreza. Mas aí você vai ver, no dia a dia deles existiam todos os recursos. Copiar agora?Você vai fazer uma leitura de tarde de tais trabalhos, passa ali na secretaria e pega com ela [asecretária]. Você levava lá, ela tirava as cópias na hora. Naquele tempo não existia xerox, mas[havia] as máquinas copiadoras. A secretária tirava, dava... Aquilo eu achava impressionante.Você ia a uma biblioteca lá, você queria encontrar [algo, você encontrava]. Por exemplo], euprocurei obras para Bertha se distrair, então eu encontrei o Jorge Amado, olha que beleza! Etinha muita obra de literatura [brasileira] - mais do que eu encontrava às vezes aqui - naUniversidade de Kansas. Porisso eu fiquei impressionado. Você queria ver um artigo, às vezesuma coisa rara, você dava lá o nome para eles, daí a pouco eles chegavam com esse artigo.Então essa coisa era impressionante. O Jorge Amado eu li lá.

Você ler as obras de Jorge Amado [risos] era também uma forma de fugir da tensão.Porque eu chegava em casa [desgastado] tentando aprender o inglês. O pessoal daUniversidade de Kansas fala como se tivesse uma batata na boca o tempo todo, e alguns delescom cachimbo [Risos]. Então, às vezes, eu perdia duas ou três palavras no meio de umparágrafo num período grande e não conseguia entender o que eles estavam falando. Só iaconseguir entender depois que me punha a par da leitura. Foi muito pesado para mim. Euchegava em casa prostrado. Então, em vez de falar inglês, falava português com minha filha,com a minha mulher. Para esta foi ruim, porque não se beneficiou [muito] da oportunidade deaprender inglês. Quer dizer, mais uma vez a parte fraca sofre [mais].

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Cesar - Você teve contato com Scheerer?

Walter - Tive.

Cesar - Ele era um defensor do cognitivismo já naquela época. Isso te influenciou?

Walter - Olha, influenciou. O Scheerer me marcou. Eu li o artigo famoso dele, que ele tinhafeito - não sei onde está publicado isso, um artigo famoso 36 - e aquilo para mim formava [ ]sentido. [ ] Além disso, nas aulas dele, eu [encontrava] uma proposta muito mais inteligente,muito mais sólida. Quer dizer, [nas outras propostas] faltava um pouco de complexidade noorganismo. Não é aquela coisa simples, entra-sai, entra-sai. Não, havia toda uma elaboração,uma série de coisas que acontecia internamente. Ele tinha essa idéia de uma estruturamediando entre a realidade e a ação. Ele deu um curso. Ele não era muito eficiente - ele eraalemão, tinha sofrido um pequeno derrame um tempo atrás, então ele falava com a boca meiotorta. Eu não conseguia dominar muito o inglês dele. Mas, através das coisas que pude ler dele,[penso ter compensado isso. Ele [ ] e Goldstein tinham um trabalho sobre efeito de lesõescerebrais que era magnífico, uma coisa impressionante, naquele tempo37.

Cesar - Mas você ligou essas idéias ao seu trabalho sobre formigas já naquela época ou aquiloera apenas ... Sei lá ...?

Walter - Não, naquela época... Veja, naquela época, eu já fazia alguma ligação, quer dizer, jáestava me parecendo que a formiga não era uma besta de instinto, aquela máquina reflexa oumáquina de instinto, coisa desse tipo. Parecia-me que, de alguma forma - essa era uma intuiçãoque eu tinha - a formiga era um análogo da gente, isto é, ela também usa a experiência delapara conferir significados às coisas, não é inteiramente desprovido de significação o que elafaz e me parecia que essa é ...

Cesar - Mas você não ligou com as coisas que Scheerer ensinava?

Walter - É. Eu dizia: há uma coisa aqui, uma lei, certo? Há como que uma representação. Maseu não via bem, eu só consegui conectar isso depois que eu fui ler Tolman.

Cesar - Você já lia Tolman nos Estados Unidos ou você pegou Tolman aqui?

Walter - Não. Conectei foi aqui. Peguei foi aqui. Li Tolman da seguinte forma: eu li um artigode Tolman, a apresentação dele num livro de Koch - Sigmund Koch, "Psychology, a Study of aScience". Ali [ ] cada grande sistematizador apresenta o seu sistema e Tolman tem um artigosobre isso. Então eu me propus como tarefa, num curso de Edward Wike, que era um

36Trata-se, parece-me, de "Cognitive Theory", publicado em Lindzey, G. (Org.), Handbook of Social Psychology.Cambridge: Addison-Wesley, 1954.37Cf. Kurt Goldstein e Martin Scheerer, "Abstract and Concrete Behavior: an Experimental Study with SpecialTests". Psychological Monographs, 1941, No. 329.

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behaviorista - behaviorista S-R [risos], hulliano (mais hulliano que skinneriano) - numseminário para os americanos, apresentar o sistema de Tolman. Eu acho que já conheciaalguma coisa de Tolman, sim. [ ] Eu acho que eu já tinha lido parte do livro dele38, [ ] e li esseartigo.

Marina - Aqui o senhor tinha lido o livro dele?

Walter - Aqui, é. E, nessa apresentação, nessa exposição, me lembro como se fosse hoje, oWike usava um cachimbão [risos], sentado a uma mesa comprida de seminário, e todos osalunos ali em volta. Então era a minha vez, ele disse: "Mister Cunha vai fazer uma exposiçãosobre Tolman".

Cesar - Tolman, na época, já tinha morrido, não é?

Walter - Não, não.

Cesar - Não? Não tinha morrido ainda? Em 59 ele morreu, não?

Walter - Não, acho que não. Não sei exatamente quando ele morreu.39

Cesar - Morreu de repente? Não... tudo bem.

Walter - Talvez sim, talvez até pudesse [já ter morrido]].

Cesar - Talvez sim, recentemente, acho.

Walter - Eu não tenho certeza. Mas eu sei que quando eu comecei a falar, os americanos todosse assustaram, porque eles esperavam por um americano falando. Eu tinha cara de americano,de um modo geral, e eu falo com aquele sotaque, eles ficaram assim... E impressionei bem.Acho que, da fala que eu fiz, [ ] o próprio Wike gostou - ele me deu uma nota muito boa -porque era questionadora de tudo aquilo que estava sendo apresentado no curso. Eu, assim,usando um pouco de ironia, mostrava as implicações: isso significa que todos esses experi-mentos que vimos [ ] são vistos muito superficialmente, etc., não têm a ver com a essência daquestão [da natureza da aprendizagem], se Tolman estiver certo. Quer dizer, eu não adotei [ainterpretação tolmaniana], não disse que tinha a posição dele.

Cesar - Mas Walter, quando lhe veio essa idéia de que o pensamento de Tolman podia seaplicar às formigas?

Walter - A partir da leitura de Tolman.

Cesar- Da leitura no Brasil ou lá nos Estados Unidos? 38Trata-se da obra "Purposive Behavior in Animal and Men". Nova Iorque: Century, 1932.39Na verdade Cesar tinha razão. Tolman falecera em 1959.

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Walter - No Brasil. Acho que foi aqui no Brasil. E foi uma espécie de infelicidade, sabe?porque...[me impediu de formar uma interpretação própria para começar]. Eu reagi até umpouco negativamente. Eu achei ruim pelo seguinte - vou contar um pouquinho essa história dasorigens da pesquisa. Eu contei, você sabe. A Dona Annita me disse: "Você tem que fazer umatese de doutorado. Escolha um tema [ ] e comece a trabalhar, porque, se não, você não vaipoder ser confirmado no lugar [de professor assistente]".

Roberto - Isso quando?

Walter - Isso em 1958, já. Eu entrei em 57, mas assim que passei a ser nomeado mesmo[Dona Annita disse:] "Você tem que começar a trabalhar. Sobre o que você quer trabalhar?"Aí eu pensei: bom, as coisas que mais me interessavam ao longo do curso diziam respeito aosconceitos de Schopenhauer "Vontade" e "Representação", que, em psicologia, viravammotivação e conhecimento, cognição - coisas desse tipo (Percepção também era relacionado).Aí eu me propus, falei assim: "Olha, eu vou fazer um estudo sobre o significado e os usos doconceito de motivo e motivação em psicologia". Agora, eu não sabia que aquilo era assuntopara toda a vida e para o final de vida, para quem tivesse muita leitura, não é? Porqueimediatamente eu comecei a ver que esses conceitos apareciam em todos os temas, em todaparte, das formas as mais variadas, e me levavam à filosofia, me levavam [a muitos autores];o próprio Schopenhauer era um; e Freud, e coisas desse tipo. Aí eu ficava realmente extenuadocom aquelas leituras. Levava o que havia de obras da nossa parca biblioteca para ler sobre issoe tinha a obrigação de fichar aquele conhecimento, de escrever a respeito.

Mas, aí, não me saía da cabeça alguma coisa que eu tinha visto por acidente, que foi areação das formigas a uma companheira esmagada numa trilha. Isso foi num quarto de pensãoonde eu morava com um irmão, e meu irmão estava contando alguma coisa que tinhaacontecido com ele - ele estava muito aborrecido, muito chateado com o que tinha acontecido.E tinha uma trilha de formiga - sabe como é quarto de pensão e de rapaz solteiro, não é? Agente às vezes deixava para fazer limpeza só num dia da semana. Então, havia uma lata degoiabada em cima da mesa [risos], que, provavelmente, estava ali havia dias.

Cesar - Isso foi quando? Só para situar.

Walter - Isso deve ter sido em 58, 59. Mas é uma experiência relativamente antiga, não seiquando. Em 57...40

Cesar - Isso é antigo? Porque você já estava dando aula.

Walter - O Dante disse que, quando eu fui aluno dele, ainda antes de me formar, eu já tinhamencionado essa coisa para ele. 40Parece que, num primeiro momento, entendi a pergunta de Cesar como se referindo ao ano em que ocorreu alembrança da experiência. Quanto a esta, deu-se em1952, quando eu fazia o 3o. ano no Colégio EstadualPresidente Roosevelt, na Rua São Joaquim, onde ficava também o quarto de pensão mencionado.

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Cesar - Em 1958 você já era contratado na Cadeira?

Walter - Era. Talvez fosse até antes, em 1956, 1955, não consigo precisar isso.41 Mas eu,olhando aquilo, vi [ ] que tinha uma trilha que vinha vindo do quarto do vizinho, passava porum forro de madeira, por um vão, descia, depois vinha pela perna da mesa e ia até a goiabada.E, na parede, meu irmão, deitado na cama me contando aquilo e olhando para mim - "que issoe aquilo e tal" - ia esmagando formiga. Eu olhei e não ouvi mais o que ele estava falando.Comecei a olhar aquilo espantado, porque vi que as formigas, ao chegarem a dez, quinzecentímetros de distância, paravam e começavam a tremer, e caíam da parede. Algumasretornavam em marcha ondulante e com empinamento do gáster. Era uma série de alterações,modificações. A trilha passava a ser desorganizada a partir daquele ponto, inteiramente, e, àsvezes, desertava por alguns minutos, ou segundos, até que outras se aproximassem erecomeçasse aquela cena.

Como eu iria ler mais tarde, num conto de Bráulio Pedroso42, que eu li em 1962 - masaí eu já estava trabalhando [com as formigas] - [o esmagamento] parecia uma forma de"disseminar neuroses ao longo de um compenetrado cortejo". Essas eram [expressões] dele:ele disseminava neuroses ao longo do compenetrado cortejo. Bom, aquilo ficou na minhacabeça, não sei porque, mas provavelmente tinha relação com o que eu aprendia no curso,porque, nas aulas de psicologia, um debate constante - quer dizer, pelo menos um temaconstante para Dona Annita - era a propriedade de teorias rivais. Qual era a teoria maisapropriada para lidar com os fatos psicológicos? Era a teoria gestáltica, de campo, que elachamava de "teoria dinâmica", ou a teoria de estímulo-e-resposta? Então, nessa ocasião emque eu fazia um trabalho sobre motivação, a coisa ainda estava na minha cabeça. Eu acredito -é difícil reproduzir, recuperar o que deve ter-se passado então - eu vi alguma justificativanisso. Por exemplo, para a FAPESP. Quando eu pedi uma complementação do meu ordenadopara fazer o doutorado, eu fiz uma justificação: eu dizia que esse estudo tinha a ver com uma[preocupação com] resolver a pendência entre as teorias dinâmicas e teorias de estímulo-e-respsta em psicologia. Porque eu achava assim: as teorias mecanicistas e as teorias deestímulo-e-resposta negavam a existência de emoção e de qualquer processo interno complexomediando entre o estímulo e a respsta até no caso humano.

A emoção, para mim, me parece uma coisa muito complexa, porque elas [as reações]me pareciam implicar uma capacidade [por parte das formigas] de antecipar o própriodestino. Era como se cada companheira, cada formiga, estivesse vendo na companheiraesmagada, naquele acontecimento, algo que lhe podia acontecer, e [ ] , em parte, também, eracomo se ela estivesse usando a sua experiência anterior: "Não havia isso aqui, de repente háisso aqui". Era como se ela estivesse pondo em contraste o que havia e o que passou a haver.Então, ela está levando em consideração a experiência anterior, ela não está reagindo

41Nesse ponto eu já havia entendido que se tratava de indicar quando se dera a experência original com asformigas.42Pedroso, B. "As formigas" (conto, com ilustrações de Renina Katz). Suplemento Literário de "O Estado de SãoPaulo" de 29/12/1962, p. 3.

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automaticamente ao estímulo. Então, a primeira tarefa [a realizar] era saber: isso é reação aestímulo? Se é reação a estímulo, quais são os estímulos? E, então, embarcar pela tese meca-nicista, tese de estímulo-e-resposta.

Vou procurar os estímulos e logo [essa procura] falhou, quer dizer, logo verifiquei quequalquer coisa que você faz alterando a trilha e mesmo fora da trilha, que seja umadiscrepância que a formiga seja capaz de notar, provoca perturbação de comportamento, nãotão dramática. Aí virava um problema: por que é tão dramática a perturbação diante de umacompanheira esmagada?

Levou tempo para eu perceber que essa dramaticidade decorria do fato de que muitoscomportamentos anteriores implicavam um relacionamento da formiga [com suascompanheiras de ninho], em que o modo de andar da formiga, o cheiro característico dela, ofato de a trilha estar desimpedida, a marcha regulada pela trilha, tudo isso estava implicado nocomportamento normal da formiga. Era como se ela estivesse levando em consideração umasérie de coisas [ ] que as companheiras faziam, [de modo] que, quando eu alterava oambiente, eu estava de certa forma alterando alguma coisa à qual ela se havia ajustadoanteriormente, que ela estava acostumada a encontrar. Aí, foi quando ficou claro para mim queo estímulo era irrelevante, [que] o importante era a relação entre o que acontecia e o que haviaanteriormente, e, dentro deste "anteriormente", o que é aquilo a que a formiga se haviarealmente ajustado, [e quepoderia] descobrir por aí [ ], por esse caminho, o mundopsicológico43 da formiga e ao mesmo tempo ter uma certa teoria da emoção, quer dizer, docomportamento emocional. Agora, que é que você me tinha perguntado?

Marina - Você estava contando como foi a origem da sua pesquisa.

Roberto - Que ela [Dona Annita] obrigava a fazer um texto.

Marina e Cesar - Isso.

Walter - Eu tenho a impressão que [ ] ela [a pesquisa] surgiu mais como uma fuga. Eu ficavarealmente extenuado de fazer aquele trabalho sobre motivo e motivação, de ler aquilo, nãoestava vendo muito sentido naquilo. [ ] Eu vi que havia tantos conceitos diferentes, tantainterpretação diferente de motivo, motivação, que eu comecei a me desesperar. E, às vezes,para descansar, eu ia para o quintal, e deve ter-me ocorrido fazer, repetir esse experimento. Ecada vez que eu ia lidar com a formiga, o meu coração batia depressa, a minha fronte latejavacomo se eu estivesse fazendo alguma coisa proibida, assim como alguém que de repente olhapor dentro de uma janela e vê uma cena proibida, mas muito intrigante, curiosa. Eu estavaassim como que espiando dentro de um mundo diferente. Havia um fascínio naquilo. Mas euescondi da minha chefe durante quase um ano que eu estava trabalhando com formigas, até umdia em que eu [ ] tomei coragem e disse para ela.

43"Mundo" é, aqui, empregado no sentido especial de ser tudo aquilo que a criatura, em seu comportamento, trazem implicação pelo fato de ter vivido anteriormente.

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Cesar - Bom... A Dona Annita...deixe eu fazer um aparte. [ ] Realmente, muita coisa que agente fazia adquiria o caráter de proibido. Ela realmente era dominadora, controladora,repressora. Então você tinha que fazer as coisas por vezes meio escondido. Eu me lembro queuma das experiências muito gratas que eu tenho foi de Walter, eu e Arno nos reunirmos parafazer uma discussão de conceitos recentes em psicologia. E a gente fazia isso na AlamedaGlete, no porão, em horários em que a Dona Annita não poderia aparecer [risos], porquediscutir idéias recentes em psicologia era uma atividade - sei lá -- com a qual ela poderiaencontrar algum problema. Dona Annita era realmente muito curiosa.

Roberto - Que era permitido? Qual era a linha de trabalho permitida?

Walter - Na verdade, ela tinha sido uma orientanda [e] tinha feito a tese dela sob a orientaçãode Max Wertheimer. Max Wertheimer era o fundador da escola de psicologia da Gestalt e elatinha sido aluna dos grandes gestaltistas - Koffka, Köhler, ...- [ ] [cujo ideal filosófico] eraintegrar o humanismo e o naturalismo, [ ] o materialismo e o idealismo, e achavam que era napsicologia que haveria a possibilidade dessa integração. [Era também seu ideal] integrar osentido e o valor com [ ] a preocupação com o fato, a compreensão com a explicação. Era umapsicologia realmente muito ambiciosa, muito interessnte e muito dada a [especulações]filosóficas, mas alguns deles [gestaltistas] tinham muito boa formação em física (Köhler, porexemplo). [ ] Eles falavam em campos, queriam aplicar o conceito de campo, da física, àpsicologia, especialmente na explicação da percepção, onde a psicologia da Gestalt contava osseus maiores triunfos [ ] e a dona Annita achava [ ] o non plus ultra [que não admitiaalternativa]]. Se eu tivesse que destacar uma outra finfluência da minha estada nos EstadosUnidos foi desmitificar isso. [Porque], para mim, [quando embarquei para os EstadosUnidos], a teoria de estímulo-e-respsta era uma coisa morta, não tinha mais sentido. Depois dapsicologia da Gestalt, isso tinha acabado, [conforme] a impressão de Dona Annita.

Fim do lado B da fita 2.Início do lado A da fita 3:

[No entanto, a psicologia da Gestalt, conforme eu a vi lá, não passava de] uma curio-sidade, um remanescente de uma outra área. Eram poucas as pessoas [gestaltistas],então aquilo para mim era uma coisa que soava [estranho], que destoava do que euestava esperando [quando] fui mandado para essa universidade. Porque, na verdade, eutinha feito a escolha entre Swarthmore, que foi onde ela [Dona Annita] fez a tese - não,não foi onde ela fez a tese: Swarthmore era onde estava Wallach, que era o gestaltistamais recente, discípulo de Koffka, que trabalhava com percepção; Wallach e não seiqual outro [ ] - e a New School for Social Research, que era um centro tradicional degestaltistas, onde os gestaltistas tinham trabalhado, ou, ainda, a Universidade de Kan-sas, que foi onde eu fui, que também tinha vários gestaltistas. Tinha alguns que [ ] eramdiscípulos de Kurt Lewin: o Barker, o Kounin, o Wright, ... todos eles, [supunha-se]

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trabalhavam lá, e o Martin Scheerer, que era cognitivista. De fato, eles estavamtrabalhando lá, [ ] mas não consegui fazer [cursos com todos eles]. Comecei um cursocom Herbert Wright, que era um excelente professor, mas aí aconteceu a internação daminha esposa e as visitas eram justamente nos dias das aulas dele, que eram dadasnaquele horário [de visita]. Então eu disse a ele: "Eu vou trancar, porque não dá paralevar adiante"44 Tranquei a matrícula. Mas por que eu estava falando isso?

Roberto - Você foi para trabalhar ou aprender mais sobre Gestalt, era o objetivo.

Walter - Então isso me chocou. Eu voltei de lá aprendendo isso: que não era verdadeque o gestaltismo fosse a escola mais recente.

Naquela ocasião estava-se começando a falar em Skinner, [cujo movimento] eraum behaviorismo radical, não era conhecido ainda. Era alguém apresentado como tendoalternativa estranha mas interessante. E os grandes mesmo, os dominadores, eram ClarkHull, Spence, Mowrer, Miller... Eram todos behavioristas, [de] várias formas de beha-viorismo de estímulo-e-resposta. [ ] Agora, para mim, quando cheguei, ficou claro: não,essa tese não está derrotada; ao contrário, ela está em maioria e eu preciso começar aminha tese por aí. Eu tenho que verificar se eles estão certos, se existe um estímulo queeu possa responsabilizar por essa reação.

Roberto - Mas você [ ] ficou bem impressionado com o behaviorismo? Ou não?

Walter - Fiquei também.

Roberto - Ficou?

Walter - Fiquei. Fiquei bem impressionado, mas sempre com um pé atrás. Eu sempreachava que aquilo era limitante, tanto que as minhas observações em provas escolares[deixavam entrevê-lo]. Lembro-me que o [professor] Epstein - William Epstein - davaum curso sobre assuntos variados: ele [ ] escolhia tópicos avançados da aprendizagem,da percepção e da aprendizagem verbal. Eu sei que Epstein, lá um dia, comentou o meutrabalho em classe, disse que eu tinha feito uma observação que era tese gestáltica, e oEpstein tinha uma formação gestáltica, porisso talvez ele tenha valorizado [o meuponto de vista]. Mas ele mesmo, que era gestaltista, não parecia um gestaltista: a genteolhando, [via que] ele estava trabalhando dentro da tradição que já existia nesse tempo.A gente sabia que ele e Park tinham formação gestaltista. No entanto, não estavam

44Eis outra recordação errônea. Na verdade, tranquei a matrícula na disciplina do profesor Wright porque suasaulas eram ministradas à noite, em sua casa, um horário em que eu não tinha quem pudesse ficar tomando contade minha filha, então com quatro anos.

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[atuando como gestaltistas]. Isso me impressionou. Como um professor que é umtremendo gestaltista não faz [proselitismo?] Para mim, uma escola era incompatívelcom outra, eram inimigas, mesmo, não é? Não era assim? Para mim, no tempo dasescolas, era uma coisa assim: eram pessoas que não se toleravam; eram inimigas, etc.45

No entanto, as coisas todas eram toleradas, e todos eles apresentavam a épocadas escolas como tendo passado. Nós estávamos agora no domínio de campos maisespecíficos de investigação, não havia mais escola. O que não é verdade: a psicologiaainda é dominada por escolas até hoje! Basta ver o aparecimento da psicologia huma-nística mais recentemente, o existencialismo, a fenomenologia ... Estão aí comoescolas. A "Gestalt" - eles [seus partidários] falam a "Nova Gestalt", não tem nada aver com a Gestalt antiga, ou tem pouca coisa a ver - ...

Marina - Hum, hum...

Roberto - Quando você voltou para o Brasil, você teve que esconder essa sua revela-ção?46

Walter - Tive que esconder. Durante um ano, mais ou menos, eu escondi isso. NoBrasil, não sei quantos meses, mas eu escondi isso, escondi também que tinhatrabalhado um pouco [com o material que possuía a respeito das formigas]. Mas, láum dia, conversando sobre alguma coisa, acho que me veio a oportunidade, eu conteiisso para ela. Aí ela ficou assim... incrédula [acerca de] que eu estivesse trabalhandocom animal. [ ] Eu ousei dizer para ela: "Será que eu posso trabalhar com isso?" E eladisse assim: "Você vai perder tudo que já fez. Você já está há dois anos trabalhandocom motivação, os conceitos... " Ponderou que era recomeçar tudo de novo, e tal. "Masvamos fazer o seguinte. Você faz uma palestra para a Sociedade de Psicologia. Você sepropõe a fazer uma palestra e você conta o que já descobriu. Vamos ver a reação deles[associados]". Porque ela também não estava segura [e decerto pensava]: "Às vezespode ser uma besteira".

E eu fiz a palestra. Parece que a reação foi relativamente de aceitação, não acha-ram nada de mais. Então eu toquei. Mas sempre houve uma estranheza em relação a es-

45Acredito que essa impressão tivesse sido a de Dona Annita, no tempo em que estudara nos Estados Unidos (porvolta de 1940), e que ela a houvesse transmitido a seus alunos.46Parece claro que, nesse ponto da entrevista, não entendi a pergunta de Roberto, ou que a entendi no contextomais geral de explicar a decisão de estudar um comportamento, que me parecia emocional, das formigas, antesque no contexto dessa passagem, onde "revelação" dizia respeito à falência da escola da psicologia da Gestalt eda continuidade das psicologias behaviorísticas de estímulo-e-resposta em 1960-1961. Para responder esta últimaquestão devo dizer que não tive que ocultar, nem ocultei, para Dona Annita, o que verificara no tocante às escolasde psicologia.

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sa tese. A maior parte dos psicólogos lida com seres humanos no campo da aplicação, e[ ] uma coisa que me machucava, às vezes, era eu ser apresentado como estudioso deformigas. Achava que a formiga era uma coisa relativamente secundária, [o fenômeno]podia ter surgido até no ser humano. E não é bem verdade: a fomiga me toca par-ticularmente. Mas me ofendia, por exemplo, uma risada que, às vezes, um colega dessecomigo, [ao perguntar]: "Sobre o que vai ser a sua tese?" "É sobre o comportamentode formiga". "De formiga?!" E caía naquela risada, aquela gargalhada. Então eu descia,eu ficava ali, na maior insignificância, etc. [Risos]."É, de formiga".

Roberto - Agora, não teria sido mais fácil... [ ] Enquanto você ainda estava fazendo ocurso de graduação, você já tinha trabalhado com testes em psicotécnica, já tinha umtrabalho a respeito disso. Por que não aproveitar isso e desenvolver para fzer a tese dedoutoramento? [Isso] já havia desinteressado você de ser feito?

Walter - Olha, veja, eu acho que, pelo fato de eu trabalhar com a formiga se tornoubastante pesado, bastante desagradável fazer outra coisa. Eu sou meio "monobloco",monolítico, então, se vou numa coisa, vou por inteiro, não sei muito ir aos pedaços.Mas eu tinha tentado, por sugestão da minha chefe, fazer um projeto de validação deuma teoria sobre a prudência.

[Entre] as provas cuja validade eu tentei estudar, [para] seleção de motoristasde ônibus, havia uma prova [ ] de tempo de reação difusa, tempo de reação de escolha.O candidato a motorista ficava dentro de uma cabine, que imitava uma cabine deônibus, e, na frente dele, ficava um semáforo, que podia emitir as luzes verde, amarelae vermelha, segundo uma programação de duração [e] de intervalos. [ ] A gente mediao tempo de reação [para a luz vermelha] em centésimos de segundos com umcronoscópio, lá na CMTC, e, depois, calculava a variabilidade em torno da média e oserros cometidos, além do tempo médio de reação. Depois fazia isso também com sons:uma cigarra, uma buzina, uma campainha metálica.

[ ] Essa era uma das provas que eles [os responsáveis pela seleção] conside-ravam principais. Eu encontrei uma relação inversa àquela que era esperada - porque secolocava na rua como o candidato mais apto quele que tivesse [ ] mais rápida reação. [] Já eu encontrei que, quanto mais [rápida] a reação, maior o número de acidentes queo motorista daria nos 3 anos seguintes, que era o critério [adotado por mim].

[Essa era uma relação] inteiramente paradoxal, [contrária] à tradição empsicotécnica que a CMTC estava continuando, que era a do Engenheiro Mange,47 naEstrada de Ferro Sorocabana e não sei onde mais que eles tinham usado as provas

47Engenheiro Roberto Mange.

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psicotécnicas. Eles todos se referiam a uns tais de Lahy e Korngold, que eram francesesque tinham aplicado provas semelhantes às nossas no Metropolitano de Paris e tinhamum livro sobre isso.48 Então eu fui ver esse livro e lá encontrei que Lahy também tinhaencontrado o índice. Não. Eu tentei primeiro explicar [meu resultado paradoxal] edisse: isto aqui é provavelmente pelo seguinte. Se eu tivesse usado um tempo de reaçãosimples e [se acontecesse] que ele [examinando] tivesse que reagir só ao vermelho,vamos dizer, ou só a uma luz, então eu reencontraria a relação do senso comum: oindivíduo mais rápido dá menos acidente. Porque havia todos uns cálculos: um ônibus a50 quilômetros por hora, freado, correrá tantos metros. Então, qual é a chance de evitarum acidente [se o motorista levar x centésimos de segundos até frear]? Havia todo umcálculo assim, e isso a gente levava a sério, achava que realmente deveria serconsiderado.

Aí encontrei que Lahy [e Korngold] tinham trabalhado com tempo de reaçãosimples e tinham encontrado a mesma relação: quanto mais [curto] o tempo maior onúmero de acidentes. [Isso] era intrigante, e Lahy e Korngold tentaram explicar oresultado fazendo o que eu tinha feito: para a parte desconhecida dos dados, elesaventavam a relação que reporia o senso comum. Então eles diziam: "Se as nossasprovas fossem de tempo de reação de escolha, então nós a reencontraríamos". Aí eupeguei aquilo e falei: "Olha, foi onde o pessoal 'comeu bola', o pessoal da Sorocabana,esse pessoal todo que vem trabalhando com isso. E eu resolvi.[ ] Como explicar paraeles?"

Naquele tempo eu estava lecionando [psicologia da] personalidade e estavamuito enfronhado na teoria do motivo de realização de McClelland. Eu adotava umlivro de McClelland 49- "Personality"- que era um livro um pouco diferente depersonalidade porque tinha bastante pesquisa, bastante informação da área de pesquisae [nele] McClelland fazia a suposição de que o motivo de realização era um estadoexcitatório central que disporia o indivíduo em determinadas situações a trabalhar mais,a realizar. E eu, parodiando McClelland, [ ] falei: [ ] a prudência é um estado centralque tende a ser despertado em situações em que existe alguma ameaça de algumaconseqüência desastrosa para a ação do sujeito, e é um apanágio da idade. Seráverdade? Se for, [ ] a antigüidade da carteira de habilitação é um índice preditivodaquilo. Mas eu também poderia explicar de outra maneira, porque a prática tembémprevê [a queda no número dos acidentes]. De fato, a carteira de habilitação, aantigüidade dela, é o melhor índice para prever acidentes. Depois de três anos [de posse

48 Trata-se do livro de J. M. Lahy e S. Korngold, "Recherches Experimentales sur les Causes Psychologiques desAccidents de Travail". Publications du Travail Humain, Conservatoire des Arts et Métiers, Paris, 1936.49David C. McClelland.

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da carteira de habilitação], os acidentes caíam a um platô. [ ] No fim do segundo anojá entravam [em um platô].

Aí, para saber se realmente havia um componente de prudência na coisa, eu fiz acorrelação com o tempo de reação, e deu uma correlação como eu esperava. Isto é, ascarteiras de habilitação mais antigas [ ] tinham uma associação direta, positiva, com os[ ] tempos nas provas de tempo de reação.50

A minha sugestão foi imediata para a CMTC: [ ] nós vamos ter que inverter oscritérios. Mas isso era uma coisa que eles [os responsáveis pela seleção] não podiamadmitir, nunca chegaram a admitir e acredito que até hoje não admitiram. Várias reco-mendações minhas sei que foram adotadas: eles passaram a tentar aumentar a precisãoda prova, usar melhor os índices... Mas, depois que eu saí de lá, tenho a impressão quevoltou tudo à rotina, e a rotina se sobrepõe às informações relevantes em útima[análise].

Então eu pedi uma bolsa para a FAPESP. Aliás, uma bolsa, não: pedi um auxílioà FAPESP para pagar alguns alunos que me fariam algumas tarefas para verificar o queeu achava. Quer dizer, eu mediria o tempo de reação [e, para isso], mandei construirum aparelho. Só que eu usei estudantes universitários. O tempo de reação seria aoperação que mediria a prudência, [que constituiria] uma definição operacional deprudência. [Eu dizia]: "Não quero discutir sobre o que é prudência. A prudência é oque essa prova mede". Em seguida eu faria uma série de outras provas e verificaria querelação teriam com esse resultado - provas que provavelmente envolvessem aprudência, como, por exemplo, numa brincadeira de pega-varetas, quantas varetas oindivíduo consegue pegar, na suposição de que o impulsivo logo sai fora do jogo; fazerlabirintos; descobrir erros tipográficos. Depois [vinham] questionários, uma porção decoisas. A idéia até que era interessante. Segundo o Rodolpho51, o melhor de mimestava ali [Risos].

Cesar - Quando ele disse isso?

50Pela minha argumentação, e parodiando o que McClelland dizia para o "motivo de realização", se a prudênciaera adquirida com a exposição aumentada aos perigos do tráfego, e os tempos de reação, tais como medidos nasprovas da CMTC, indicavam tanto mais prudência quanto mais lentos se mostravam, a correlação entre aantigüdade da carteira de habilitação e os tempos de reação deveria revelar-se positiva, e, de fato, foi o que severificou.51O professor Rodolpho Azzi.

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Walter - Quem me contou foi a Rachel52 agora há pouco tempo. Conversando eu como Rodolfo, ele me dizia que a melhor parte de minhas idéias estavam ali, nessa teoria daprudência [ ].

Eu pus os alunos para trabalharem comigo. Olha, o que eu acabei encontrando, éclaro, não deu. A prova de tempo de reação não deu relação nenhuma com prudência.A tal relação que eu esperava não se verificou. A prudência [ ] não estava sendomedida por essa prova. Eu penso que eu sei por que, eu expliquei até isso para aFAPESP - mas é uma coisa incrível. [ ] O estudante universitário não estava precisandodo emprego. Ele não estava dentro de uma cabina de ônibus. Era um aparelho diferente,as luzinhas surgiam no fundo do aparelho. Então, o erro - apertar errado na luz [ ], nãoera ultrapassar o farol no momento proibido. Ele não estava numa prova que punha emxeque o problema da prudência. Então, era como se eu estivesse querendo medir aprudência como se ela fosse uma coisa: "vou aplicar uma régua nela e ela continua aexistir por aí, sempre igual". Como se ela não fosse relativa às situações... O sujeitopodia ser prudente numa coisa e não ser noutra. Tudo isso parece que eu disse norelatório que mandei para a FAPESP. Por essa razão, como a minha medida estavaerrada, eu não adotei nenhuma outra medida [ ]. Podia ter usado a correlação entre asvárias provas e ver que fatores saturavam essas provas, [ ] ter continuado a investigaçãosobre prudência, e teria sido muito interessante ver o que teria dado. O que eu fiz comesses resultados, com essas correlações, com os dados, eu não sei. [ ] Na verdade issoestava me "enchendo", me atrapalhando, porque eu tinha coisa mais interessante emque pensar, que era a minha investigação com a formiga [Risos]. Então eu acho que eudevo ter apresentado essa saída para a FAPESP como uma saída genial: "Agora euestou livre dessa 'porcariada', de ter que orientar aluno, de ter que explicar para o alunocomo ele vai fazer nesse trabalho". Os alunos estavam querendo trabalhar comprudência, eu não estava. [ ]

Cesar - Walter, em relação à formiga, ainda, interessaria saber se você, na sua infância,no fato de você ter nascido numa fazenda e no fato de você ter tido contatos com vidanatural, se isso não o predispôs a achar encantadora a formiga. Porque, de um lado,você diz que a formiga era apenas um motivo teórico - podia ser um outro animal, até oser humano. Mas, de outro lado, eu acho que você ter parado para olhar a formiga nãotrai uma, vamos dizer, espécie de gosto?

Walter - É... Um "imprinting", não é? Um estampar das coisas...

Cesar - Isso, um tipo de "imprinting" que prepara as coisas? Porque, olha, eu sempretive você como um apreciador da natureza. Eu me lembro de andar com você e você

52A professora Rachel Rodrigues Kerbauy.

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descobrir uma plantinha que era comestível, que é algo que uma pessoa que vive na ci-dade nunca vai saber. Então o Walter é de pegar e dizer: "Ah, isso serve para comer".

Walter - Eu sou contemplador. [ ] Na fazenda, com os meus 18 anos, eu passava tardesinteiras olhando. Pensando e olhando, mas, basicamente, olhando. Eu achava que ... - eainda acho - que a melhor coisa da vida é contemplar. Uma coisa que me traz mais paz[ ] é ficar parado ante uma paisagem e ficar olhando.

Cesar - Mas, dentro disso, dessa contemplação, o animal como é que aparece?

Walter - Olha, eu não sei dizer [ ].

Cesar - Porque eu acredito que você tem uma certa vocação para achar o animal algointeressante para ser visto.

Walter - Eu tenho desconfiança [que sim], porque, até hoje, se eu [ ] voltar a trabalharcom formigas, [se] for observar, meu coração bate mais depressa, a [minha] frontelateja, eu fico torcendo para a minha mulher não me chamar, para não chegar visitas. Éum fascínio ainda. Mas o fascínio era mais do problema do que tanto do animal. Eraesse problema: [ ] essa criatura é um análogo de mim nesse ponto em que não é omundo que a faz, não é a realidade do ambiente que a faz: o ambiente a faz e ela faz oambiente a partir de uma interação que está aí. O que for o ambiente para ela tem a vercom o que será a reação que ela vai dar e a maneira como ela vai elaborar esse mundo.Então é uma forma de ir para a história por aí. Ela incorpora isso, e ambiente e formigapassaram a ser um sistema só. Eu não posso mais falar em ambiente e formiga comocoisas separadas. Elas passaram a ser um sistema de relações solidárias.53

Marina - [Inaudível]. ... que parte ela chegou?

Walter - Você me pergunta, não é? É possível. Eu me lembro de minha mãe falar queeu passava horas sentado na calçada, numa cidade do interior, onde nada acontecia,onde, como diz o Ildenor54, até uma folha custava para cair, para chegar ao chão[risos], tão parada era. O que eu fazia nessas horas? Provavelmente, olhando para o

53O argumento aqui está mal apresentado. Ele dizia que um dado objeto ou situação com que o organismo fosseuma vez confrontado, na segunda vez não seria exatamente o mesmo para ele pelo simples fato de o havermodificado na primeira ocasião, ou de haver sido, já, registrado. Mas, pelo fato de o organismo poder mostrar porseu comportamento que um dado ambiente ou situação são os mesmos numa segunda vez, ou são diferentes,semelhantes, etc., a partir de seus registros, ele deixa de ser totalmente determinado pelo ambiente, passando a serele também determinante, por sua história, da significação que cada ambiente ou situação virá a ter.54Ildenor Mascarenhas Cerqueira, aluno do Curso de Pós-Graduação em Psicologia Experimental no começo dadécada de 80 e, posteriormente, professor universitário.

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chão, eu devia ver formiguinhas, devia cogitar sobre o que elas estavam fazendo, [ ],mas não era uma coisa assim tão séria. Posteriormente, com a minha adesão à etologia,a formiga como formiga, como animal, como discrepância de outros animais, como umprograma de ação selecionado por certas pressões seletivas, passou a me ocupar. Aípassei a cuidar de ver [as] outras formigas todas, mas você vê que eu nunca publiqueisobre isso. O que eu tenho de observação de saúva, de outras formigas, é enorme. Maso que me ocupou mais foi esse assunto da tese, que era uma parte dos dados que eutinha, [por]que eu queria apresentar para Dona Annita mais uns dois volumes [numtotal de] quatro volumes que seriam [ ] a minha tese de doutorado. [Ela disse]: "Ah,não. Chega, agora parou. [O restante] você faz para livre-docência" [Risos]. Mas eudizia para ela: " Mas Dona Annita, eu não tenho nem a metade dos dados aqui, tenhouma parte só dos dados, tenho muita coisa mais interessante".

Eu nunca cheguei a fazer, porque, daí, não deu mais. Você entra no rolocompressor. A psicologia é tão sem títulos, tão sem gente, que você entra precocementena tarefa da administração, na tarefa de cuidar da organização das coisas. E aí vocêsucumbe.

Marina - Tem uma coisa: essa relação emprego- ...?

Walter - Deixe eu só completar para o Cesar. Eu acredito, viu Cesar, que onde está oseu prazer deve estar a infância reencontrada, de alguma maneira, sabe? A felicidadedeve ser isso, a infância reencontrada e de uma maneira repetida, não é?

Cesar - É. Eu acho que sim. Eu tenho a impressão - estou interpretando a sua história -que você deve ter tido essa infância, [que, o fato de] que, muitas vezes, você tevecontato com animais, o predispõe a aceitar o animal como objeto de estudo e comocapaz, inclusive, de ter funções psicológicas. Eu tenho a impressão que a vivência aquide cidade faz com que [a gente] dicotomize um pouco. Então, animal é animal e o serhumano é um ser humano, e você vê isso muito nos psicólogos. Daí a risada do seucolega quando você dizia que trabalhava com formigas. Imagine então com aranhas. Arisada seria um pouco mais acentuada. Mas acho que talvez tenha aí um germe degostar do animal enquanto ser vivo, não é?

Walter - Isso eu tenho. Tenho fascínio. [ ] [Fui] um dos entrevistados porHannelore55 na tese dela, "O Significado Psicológico do Animal de Estimação". [ ] Alivocê pode ter a minha reação ao bicho. O bicho eu sempre achei uma coisa fascinante.Como, de repente, surge aí na minha frente uma criatura tão complexa, que é produtode milhões de anos de evolução, tudo ... [inaudível ], concretizado ali, naquela

55Hannelore Fuchs.

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estrutura, naquela organização corporal, naquele plano de ação, naqueles programasembutidos de ação? Uma coisa maravilhosa. Eu acho ... sei lá: prende o olho. O animalé ... [inaudível], mas não sei se me prende mais do que esse problema que é [ ] ooriginal [em minha juventude], que é [a interpretação metafísica do ser em si emtermos dos conceitos] de Vontade e Representação de Schopenhauer, que viroumotivação em certo momento e que virou hoje o que eu chamo um processo derealização de demanda e ajustamento. Já não é mais cognição. Porque [o conceito de]cognição dá a impressão de um processo em que você tem um espelho do mundo [e]você o carrega, é alguma coisa que fica fora um pouco do contato porque [o indivíduo]sofreu um efeito e [o efeito] ficou lá. [O organismo] vai guardando, vai retendo, vairetendo. Não se trata disso. Não, [ ], é um ajustamento contínuo no sentido de que é umfazer mesmo do organismo pelo ambiente semelhante ao que houve na históriaevolucionária. Num certo momento [da filogênese] teria sido melhor [do que trazertoda a sua ação já pré-programada] fazer com que o organismo se beneficiasse da suaexperiência [ ], de tal maneira que ele, lançando-se para algum aspecto da experiência[anterior] [ ] que ele reintegrasse a partir de um fragmento da situação, estarialançando-se para uma aposta sobre o mundo. Eu não vi o resto, mas, antes de saber queeste assoalho suporta o meu peso, eu vou para ele; antes de saber que este copo édestacável [da mesa], eu vou para ele como se fosse. Então a ação não precisa ser[sempre do tipo] estímulo-e-resposta. Ela é, freqüentemente, um soltar[-se]. Então,nesse ponto, ela é semelhante ao que Lorenz56 dizia: era como se o comportamentofosse um cavalo fogoso mantido sob rédeas. O que nós podemos [voluntariamente]fazer é inibir o comportamento. O sistema nervoso inibe o comportamento, mas nãoproduz o comportamento. [Na concepção de Lorenz], ele inibe [ou] ele solta o poderda reação. E, na psicologia, [segundo a minha concepção], é a mesma coisa: [nós] nos[inibimos ou] nos soltamos. Se estou indo para um copo com água, então eu estou indopara um particular objeto do passado que se comportava da seguinte maneira: resistiaao meu pegar, se destacava da mesa, continha água... Estou indo para uma porcão decoisas e me perturbo quando as coisas não se comportam dessa maneira [que foireintegrada], quando eu vejo que, [ao invés de se destacar da mesa], está grudada,[que, em vez de ser ergudo no ar], se esfarela.

Marina - Professor Walter, fiquei pensando sobre essa pergunta,,, Bem, então nãoimporta se eu perguntar, nesse sentido... se, além desse fator de experiência da infância,não teria também por baixo desse interesse pelas formigas a necessidade, esse gesto deverificar a realidade desses princípios únicos da teoria que deveria ser uma coisa únicae definitiva mui no pequeno também, em particular uma coisa tão pequena como aformiga que checa uma teoria para a gente?

56Konrad Z. Lorenz, fundador da Etologia.

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Walter - Eu acho que isso é o principal mesmo. Estava por trás da pesquisa, primeiro,uma concepção que eu tinha de que o universo [da psicologia] também é monolítico.Ou esse princípio se aplica ou o princípio antípoda se aplica - ou algum outro; que oconjunto de toda a realidade tem que se conformar com uma das interpretações[rivais]. Eu achava que estava tentando contribuir para uma decisão entre as teoriascentralistas, holistas, cognitivistas, de um lado, e as teorias de estímulo-e-resposta,mecânicas, elementaristas, de outro lado. Hoje eu acredito que, com a evolução do meupensamento, eu consegui uma síntese: [ ] o que eu encontro não é nem o behaviorismo,nem o centralismo, nem o humanismo ou o cognitivismo também. Acho que o que euencontro é uma posição [em que] você não pode separar o indivíduo do ambiente. Nóstemos lidado com a unidade errada.

Você vê, me dá a impressão que o o psicólogo não lida com o indivíduoconcreto. Ele lida com a percepção, com a aprendizagem, com a motivação, com partesde uma coisa. Ele pensa que a hora que encontrar as leis gerais dessas partes, [ ],somando tudo, faz um todo, acha que encontrou o indivíduo. Mas, por definição, oindivíduo não está justamente aí. [ ] A individualidade está naquilo que não é comumcom nada. Aí, num certo período, me embaracei com esse argumento. Disse: mas porque eu tenho que entender o comportamento de uma formiguinha individual ou de umser humano individual?

O que há de fascinante no projeto de Freud [ ] é colocar, por exemplo, a compre-ensão dos sonhos no contexto da vida da pessoa, em vez de o tratar como um fenômenofisiológico, como isso ou como aquilo. O que houve de revolucionário, acho, em Freud,foi tentar encontrar aquilo que não é comum. Ele, num certo momento, parece querecuou, e voltou, e começou a criar categorias fictícias. Essa é a crítica de Politzer57 aFreud: criou o [ego, o superego...] ai, uma série de abstrações, repondo a psicologiaclássica, perdendo o indivíduo. O que me perturbava era isso: eu dizia, o indivíduo, pordefinição, é único. Ele não está naquilo que está [em toda outra coisa que ele não é.Então, onde está aquilo que o faz ser uma entidade única, singular?] .58

Final do lado A da fita 3, início do lado B

Walter -[Depois de um trecho de fala não gravado ] Mas, haverá uma possibilidade deapreender o que há de único no indivíduo? A solução que me veio é a seguinte: o 57Georges Politzer: "Critique des Fondements de la Psychologie. 1. La Psychologie et la Psychanalise". Paris:Aubier(?), 1928.58 Com a chegada da fita ao final, perdeu-se um trecho da fala cujo conteúdo procuro, em parte, repor nestetrecho em itálico e entre colchetes.

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indivíduo é único nalguma determinada coisa. Se você, por exemplo, olhar numconjunto de manchas, [verá que] uma folha não se reduz a nenhuma outra. Você podepegar uma floresta de árvores que só tenha aquela [espécie de] árvore e aquele tipo defolha e você pega uma folhinha dessas e compara com todas outras, ela é um indivíduo.Pelo menos em algum aspecto, ela não se reduz às outras, quando mais não fosse porocupar o único lugar que está ocupando e as outras não podem ocupar. Aí ela já é, játem uma unicidade. [ ] Mas, em alguns aspectos, [ o indivíduo] pode ter várias coisasem comum [com outros indivíduos]: ele tem manchas, [por exemplo]. [Num dadomomento] me passou pela idéia: [ ] como posso fazer uma psicologia geral que não seaplique a todo e qualquer indivíduo? Como ela pode ser geral se ela não se aplicar atodo e qualquer indivíduo? Ela tem, então, primeiro que atender o individual para sergeral, se não ela vai ser assim: 50%, 60% [aplicável a uma pessoa]. [ ] É possívelperguntar: que confere individualidade num determinado aspecto ao homem? No casoda psicologia, o que confere a individualidade psicológica ao indivíduo? E aí, restaagora saber o que é que torna um organismo psicológico diferente de um organismonão psicológico.59

Aí, eu, olhando assim, pensando, refletindo sobre o que os meus colegas fazem,[ ], o trabalho de todo mundo, me parece que o que o psicólogo tem em comum é isto: éuma tentativa de entender certos fenômenos como devidos a um acidente, a uma peculi-aridade de história de vida. Se você puder explicar [o comportamento] em termos defisiologia, em termos da construção do organismo ou da relação do estímulo e acondição do organismo, então não há necessidade de uma psicologia. Se a fisiologiadesse conta de tudo, você não precisaria de uma psicologia. Você precisa de umapsicologia justamente porque surge aí uma intervenção de uma história individual. Nãoé a história da espécie, [mas] tem a ver com a história da espécie: a própria história daespécie importou um mecanismo para lidar com [a experiência] individual. Então apsicologia é parte da etologia. Ela dá alguns dos fatores de que o comportamentodepende.

Outra reflexão que tenho que fazer é sobre comportamento. Será que compor-tamento é só o que se observa? Porque a etologia [ ] e o behaviorismo S-R têm essapeculiaridade: parece que por trás do critério de verdade deles há essa crença de que averdade tem que corresponder a uma concreticidade sensorial. Se algo não puder ser 59O que parece estar por trás dessa argumentação confusa (o entrevistado praticamente não havia dormido nanoite anterior à entrevista) era a questão, não explicitada no texto, de como conciliar a afirmação geralmenteaceita desde Aristóteles de que "só há ciência do geral" com a proposta de criar uma psicologia que possa lidarefetivamente com o comportamento no contexto da vida individual, antes que com as abstrações chamadas"percepção", "memória", "emoção", "imaginação","personalidade", etc. Parece subentendido no texto que essadificuldade poderá e talvez deva ser resolvida mediante uma concepção do organismo psicológico que sejaaplicável a todo e qualquer organismo psicológico e que, ao mesmo tempo, torne compreensível de que formaesse organismo pode adquirir um caráter de absoluta originalidade.

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observado ou não for observável - o que às vezes nem é culpa do objeto, às vezes éculpa dos olhos da gente, dos instrumentos - [ ] não é objeto de ciência. E [há] umaconfusão de objetivo e subjetivo nesse sentido: "A psicologia deve ser uma ciênciaobjetiva. Os fenômenos internos são subjetivos, logo eles não são suscetíveis de umestudo objetivo". Mas eles usam o termo objetivo em dois significados diferentes. Há60um significado de "existente", que até Descartes usou para provar a existência dequalquer coisa, como um pensamento, por exemplo, a dúvida, que era até o critériopara a a certeza de outras coisas: eu posso duvidar de tudo, até que essa água realmenteexista lá fora, mas não posso duvidar da minha dúvida.

Cesar - Walter, posso fazer-lhe uma pergunta embaraçosa?

Walter - Pode.

Cesar - É o seguinte. Parece que, na sua carreira, você, às vezes, pendeu para umaposição extremamente periferalista. [ ] Isso que você acaba de dizer parece representaraté uma oposição a certas posições que você assumiu em termos de achar que aconcreticidade teria que ser sensorial. Como você explica essa contradição do seupensamento?

Walter - Eu não acho que o que existe tenha que ser sensorial, entende? Porisso é queeu estava dizendo: é preciso redefinir "comportamento"...

Cesar - Mas você, às vezes, tem enfatizado... Por exemplo, na parte de descrição decomportamento, que é uma parte que o etólogo tem contribuído para a psicologia (apsicologia não descreveu o comportamento, descreveu pressões de barra ou palavras): aetologia trouxe a descrição do comportamento como uma parte importante. E vocêmesmo, eu tenho a minha idéia [ ], você, Walter, foi mais rigoroso do que os etólogos.Isto é, nas suas aulas, nos seus textos sobre descrição do comportamento, você é muitomais minucioso, e você tenta evitar qualquer tipo de inferência na descrição. Você éextremamente rigoroso no sentido de dizer que não se deve inferir, e se deve ver.Então, como é que você...

Walter - Bom, isso está desde, talvez, acho que a minha primeira publicação. Oprimeiro livreto que eu fiz foi "Os Fatos da Psicologia" 61 [ ]. Aí eu realmente tinhaesse viés segundo o qual o real, o existente, o fato mesmo, [ ] deve, idealmente, ser

60Parece implícito aqui: além do significado apontado mais acima, de "dado exteriormente", há um outrosignificado de objetivo: o de "existente", e é esse que é o mais importante para a ciência.61Publicado como Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, no. 281:Psicologia, no. 11, p. 1-56, 1963.

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observável. Eu tinha esse viés, e foi um longo percurso até eu perceber que [ ] não é umrequisito para que algo seja existente que ele seja observado. Se fosse assim, a física,coitada, não poderia fazer nada sobre a [ base da] luz, estar falando sobre galáxias esobre uma porção de coisas que, no fundo, são pontos de luz ou são uma análiseespectrográfica. Eu acho que isso vem, Cesar, de minha preocupação em separar o queé fato do que é interpretação.

Cesar - Hum, hum...

Walter - [ ] Eu acho que a ciência é um processo interessante, um processo em quevocê pega os seus companheiros, os seus colegas, e diz assim: "[ ] Vamos chegar a umacordo sobre o que é isto, a uma descrição com a qual podemos concordar?" -"Vamos". Então eu digo: "[ ] O que eu tenho diante de mim é isto aqui. Estes são osmeus dados". Eu preciso dar uma definição com a qual os outros concordem. Então, éuma espécie de chamada para um braço de ferro]. Na hora em que você pegou isso, [ ]aceitou essa definição, [ ] vou tentar mostrar que essa coisa é outra: ela é resultado deum processo, ela é isso, é aquilo, tem mais alguma coisa por trás, mas, primeiro, eufaço você pegar aquilo e aceitar. Você aceitou, agora eu tenho um jeito de o derrubarno jogo de força. O jogo com teoria, com uma porção de coisas62, é feito a partir dessaregra: você precisa entrar em acordo sobre algumas coisas. Então, o que eu procureiensinar ao aluno é que, em psicologia, freqüentemente, você entra gratuitamente [numcampo de significações ambíguo por falta de uma definição e acordo prévios sobre osignificado de certas palavras]. Tolman falava isso. Tolman tinha uma palavra, tinhauma frase muito interessante sobre "estímulo" e "resposta" em que ele falava assim:"Você, [na psicologia], usa 'estímulo' de uma maneira tão vaga como, por exemplo, [ ],a situação de escolher uma profissão, uma situação de casamento, etc. E usa 'resposta'em uma [acepção] tão vaga que a resposta, às vezes, é uma curva numa situação deaprendizagem, ou isso, aquilo, aquilo... Agora eu lhe dou a palavra!", como quem diz: épossível fazer uma ciência onde o acordo sobre o significado dos termos é tão mínimo,tão precário?

Então, nós precisamos, primeiro, como diz o químico, lavar a nossa linguagem.O [professor] Simão Mathias me falava isso: "É preciso lavar a nossa linguagem"63Quer dizer, é preciso tirar todo significado excedente que está aí, [ ], dar a um conceitouma significação que possa ser verificada, ser testada - mas para [a finalidade] do

62Provavelmente eu aludia a observações e experimentos.63 Professor Simão Mathias, em 1967, durante uma visita que Dona Annita, Mário Guidi e eu lhe fizemos noInstituto de Química, do qual era, então, o Diretor e um dos encarregados pela Universidade de promover amudança das unidades ainda fora do "campus" para a Cidade Universitária. Ele comparava alguns termosimportantes da psicologia a frascos mal lavados cujo conteúdo não era bem precisado antes de serem misturadospara a obtenção de alguma reação química.

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começo da investigação. Agora, muitos acharam que o que eu estava fazendo eraensinando a fazer uma investigação assim: [dado] um fato, você [o] vai desdobrando.De fato o treino do aluno [era analítico]. Mas aí o sentido do treino do aluno eradiferente, não era para levá-lo a decompor a realidade sempre, [caso contrário] vaiterminar em músculo, vai terminar em células [a descrição] do que ele está olhando: oandar se compõe de passos, o passo se compõe de uma flexão e de uma extensão, umapoio, troca de apoio e deslocamento, uma associação ordenada, ..., mas era paramostrar ao aluno que a alegação [ ] que muitos fazem - "eu não vejo nada, esse animalnão faz nada" - não é verdadeira. Quando o aluno me diz, "vejo a tartaruga e não vejonada, ela não faz absolutamente nada", eu digo assim: não, você está enganado. Se vocêolhar uma tartaruga, você vai ver que vai ficar paralisado pelas coisas demais que elatem a apresentar. Qual a posição da cabeça dela? Ela fecha os olhos? Quando ela come,ela pára? Como abre [a boca], como ela cai? Por onde ela se desloca? E assim pordiante. Veja se ela tem uma postura fundamental que ela assume antes de andar, ou,então, [veja o comportamento] em termos de freqüência, tempo de [ininteligível], eassim por diante. Aí o aluno chega e diz assim: "Puxa vida!", aprendendo ao mesmotempo a se referir àquilo que está diante dos olhos, [por]que a frase que eu usava numartigo64 - era uma frase de Goethe: "Essa parece a coisa mais fácil de todas e, noentanto, é a mais difícil: ver com os próprios olhos o que está diante deles" - [dizrespeito ao] fato da objetividade, [não só] a objetividade no estabelecimento dos fatos,mas também no estabelecimento da interpretação.

Cesar - Hum, hum...

Walter - É uma dificuldade. Porque a coisa é em parte aquela presença sensorial,aquela interação sensorial, interação [de um estímulo] com a gente, mas em parte ela ésignificado, em parte ela é uma remessa ao passado, a outras experiências anteriores.Então o que é um rádio, um microfone, para mim e para um bebezinho, são coisascompletamente diferentes. E a gente, às vezes, já pega um técnico em radiofonia e vêque o que ele vê no microfone também é coisa bem diferente daquela que eu vejo.Então há um nível de acordo e um nível de conhecimento real que remete além daquiloque está na aparência. A aparência revela e esconde [ ]. Agora, muitos alunos tomaramaquilo como ... [uma recomendação para mais análise]. Então, eu vou decompondo,vou decompondo e, aí, estou fazendo um bom trabalho de etologia. Não, eu fazia issopara mostrar a eles que há muitas coisas para ver, que a realidade não é pobre, desdeque você realmente se disponha a ver.

[Segue-se trecho irrelevante, acerca da conveniência de um intervalo]

64 Cf, Cunha, W. H. de A. - Acerca de um curso de pós-graduação destinado ao treino da observação científica nodomínio das ciências do comportamento. Ciência e Cultura, v. 26, no. 9, p. 846-53, 1974.

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Walter - Talvez pudesse voltar um pouquinho. Depois ficou me soando aqui na minhacabeça. Re-soou agora. César diz que eu fui partidário da observação como método dafidelidade, etc.

Eu acredito que houve um tempo que sim. [No] tempo em que aderi à AnáliseExperimental do Comportamento e logo em seguida me tornei etólogo me pareceu quea solução para o problema [de estabelecer a realidade] era mais observação. Eucostumava usar uma frase para os alunos. Eu dizia: "Olha, onde você vê claramente,você descreve. Onde você não vê claramente, você interpreta [Risos]. Uma radiografiase interpreta e uma fotografia se descreve".

Então havia um pouco dessa idéia de que é [necessário realizar] uma melhorobservação. Mas acho que foi temporária, se bem que, nos cursos de observação... [elafoi levada a um extremo (?)]. É a história desta frase: o mestre mostra ao aluno, o alunovê o dedo [Risos] [ ]. O que eles viam mesmo era o método, achavam que [ o objetivodo curso (?)] era a descrição pela descrição. Talvez isso tenha me aborrecido com ocurso, porque ele parecia sem saída. Todas as minhas tentativas de dizer, bom, agora, apartir, daí, selecione um problema e comece a investigar, não davam muito certo,porque o que o pessoal levava mesmo a sério era decompor o comportamento em sub-unidades cada vez mais moleculares. E assim...

Cesar - Se bem que era importante, eu acho, no desenvolvimento da psicologiaenfatizar a necessidade de descrever. Acho que, então, nesse sentido foi muito positivaa sua ênfase no descritivo.

Walter - A definição, não é, Cesar? - porque os termos sem definição são uma coisaterrível. Com a maior facilidade uma pessoa [em psicologia] falava de inteligência semdizer o que era inteligência... [Trecho inaudível]. Uma coisa bem dramática que eu via,que aprendi com o aluno: o aluno tinha que descrever o andar e logo foi ficando claropara vários alunos o que era andar. Andar era uma coisa quando você, por exemplo,descrevia um cachorro, um cavalo, uma formiga. É uma coisa completamente diferentequando você via, por exemplo, o andar num coelho. Porque, quando você fala em andarvocê [geralmente] supõe uma alternação de membros [ ]. Há sempre um membroavançando enquanto os outros estão apoiados. Mas, no coelho, você vê que é ummovimento em que o coelho primeiro avança o par da frente, depois torna a avançar opar da frente e depois junta as duas patas de trás com as patas da frente num pulinho.Então você vê isso; [gesticulação com os dedos]. Von Uexküll 65 fez uma analogia, fezuma frase que eu considero lapidar, que diz: "Quando um cão se move, o animal move

65Jakob von Uexküll, um dos pioneiros da etologia.

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as pernas. Mas quando o ouriço do mar se locomove, as pernas movem o animal". Oque é verdade: no caso do ouriço do mar, as pernas reagem reflexamente e carregam oanimal.

Roberto - [Assente]

Cesar - Agora, Walter, como é que surgiu essa idéia de dar um curso de psicologiacomparada, porque me parece que esse curso foi, talvez, o primeiro no Brasil a ser dadoem curso de psicologia?

Walter - [ ] Na verdade, quando foi feito o currículo de psicologia [para o recém-criado curso de psicologia], os professores da [Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras da Universidade de São Paulo] que lecionavam essa matéria [psicologia], maisos professores de filosofia, sociologia e pedagogia se reuniram [ ] para fixar umcurrículo obrigatório, um currículo mínimo e um currículo pleno, [válido] até nos diasde hoje, [para figurar na lei que criava o curso]. Aí foi colocada a psicologiacomparada, talvez por influência de] Sawaya66, porque acho que Sawaya via aimportância da comparação, como fisiólogo [que era]. Ele tinha escrito um trabalho,anterior, sobre o cânon de Lloyd Morgan67 e a psicologia comparada, em que eledefendia o cânon [ ]. A única incursão que eu conheço de Sawaya na psicologia eraaquele artigo, que saíu num livro - você lembra? - aquele livro, "Psicologia" 68, que erafeito por vários autores: Cícero Christiano de Sousa, Annita de Castilho e MarcondesCabral... Várias pessoas contribuíram nele.

Marina - Sim.

Walter - Talvez tenha sido ele que sugeriu. Então eu já encontrei esse problema.Agora, [a disciplina] era de responsabilidade do professor estrangeiro, o professorKeller, e os alunos trouxeram [o problema] para a Coordenação dos Professores dePsicologia (porque o curso de psicologia era governado por uma Coordenação sob a

66Professor Paulo Sawaya, Catedrático de Fisiologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP,posteriormente também um dos diretores dessa Faculdade.67O cânon de Lloyd Morgan foi uma regra prática editada por esse autor - Cf. C. L. Morgan, Introduction toComparative Psychology. Londres: Walter Scott, 1909 (2a. edição), p. 59 - para "nortear solidamente" os estudosde psicologia animal, e rezava: "Em nenhum caso se deve interpretar uma atividade animal em termos deprocessos psicológicos mais elevados se ela puder ser com justeza interpretada em termos de processos que sesituam mais abaixo na escala da evolução e desenvolvimento". Em meu artigo "O cânon de Lloyd Morgan e apsicologia comparada" ( Jornal Brasileiro de Psicologia, 1964, Vol. I, no 1, p. 19-30) examinei criticamente essaregra e apontei as profundas conseqüências que sua utilização - considerada como a aplicação à psicologia do"venerando" princípio da parcimônia - teria no desenvolvimento dessa ciência, e as razões por que isso teriaacontecido.68 Trata-se do livro de Otto Klineberg e colaboradores, " A Psicologia Moderna". São Paulo: Editora Agir, 1953.

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presidência do professor Arrigo)69 Os alunos trouxeram o problema de que nãoestavam tendo aulas de psicologia comparada e Keller alegava que ele entendia depsicologia experimental mas não entendia de psicologia comparada e que, no lugar [decomparada], ele daria mais psicologia experimental [Risos]. Alguns o pegaram: "nósnão podemos fazer". E ele [disse]: "É o que posso fazer. Honestamente, é isso." E aLourdes Pavan estava do meu lado nessa Coordenação dos Professores e [me] disseassim: "Você trabalha com animal, com formiga..." Eu disse: "Trabalho". [E ela}:"Você...Acho que você gostaria de dar esse curso?" Eu falei assim: "Quem sou eu?"

Eu, na minha pequenez, daria... [mas] eles estavam falando em trazer professorestrangeiro, e eu não entendia, também, de psicologia comparada: [apenas] estavafazendo uma pesquisa sobre animal. Mas, aí, ela levantou e disse: "Professor" [dirigin-do-se ao professor Arrigo], "acho que quem gostaria de dar esse curso é o Walter"[Risos].

E assim foi. Aí eles perguntaram: "Você aceita?" [ ] [E eu]: "Bom, se vocêsconfiam, acham que eu posso tentar..." Aí alguém disse assim: "Bom... então ficaassim: ele recebe essa incumbência provisoriamente. Ele dá [a matéria] por dois outrês anos e depois a gente traz um professor estrangeiro para dar no lugar". E foi sobessa condição que fui indicado.

Cesar - Você lembra quem colocou essa condição?

Walter - Não lembro. Mas eu achei até muito razoável, também gostaria que tivessesido assim. Mas eu recebi aquilo com um misto assim [de receio:] "Bom, vai ser umacarga tremenda, não entendo nada disso" - ... mas, ao mesmo tempo, como umaglorificação. Eu falei [de mim para comigo], "puseram mel na sopa". [Por]que era oque eu queria,[por]que eu estava a fim de ler um bocado sobre o comportamento dosanimais, de ter uma razão para fazer essa diversão. Para mim era uma diversão, naqueletempo.

Cesar - Como é que se chamava o curso no começo?

Walter - Era "psicologia comparada".

Cesar - Chamava-se "comparada"?

69Professor Arrigo Leonardo Angelini, Chefe da Cadeira de Psicologia Educacional da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras da USP em 1958 e, posteriormente, um dos criadores do Instituto de Psicologia dessauniversidade e seu primeiro diretor.

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Walter - "Comparada". Aí eu mudei. Não sei se eu é que mudei - deve ter sido - para"psicologia comparativa e animal", porque me parecia que o objetivo não era sóconhecer o comportamento para uma perspectiva de comparação mas também conhecercada animal como uma modalidade de psicologia. Eu peguei isso com muito gosto eparece que ...

Cesar - Você deu pela primeira vez em que ano?

Walter - Acho que foi em 1962. Está aí no currículo. Foi no ano em que fui indicado.

Roberto - Não teve nem prazo para preparar direito? [Risos]

Cesar - Da sexta para a segunda, não?

Walter - Provavelmente foi em fevereiro que houve essa reunião para resolver esseproblema e em março eu já estava dando o Curso. E, também ...

Cesar - É que quando eu tomei esse curso - curso do Walter - foi a segunda vez quevocê o estava ministrando.

Walter - Foi.

Cesar - Eu tive esse curso em 1963.

Walter - Ele me foi dado porque, na verdade, o professor Sawaya [não tinha con-seguido que o professor Keller o ministrasse nem havia conseguido um substitutoadequado para ele]. O professor Sawaya tinha trazido o Keller indiretamente, porquecabia à nossa Cadeira trazer o professor estrangeiro, mas o Sawaya se antecipou etrouxe o Keller - que foi um acidente, assim, da história - a contragosto de DonaAnnita. Então, a Dona Annita passou a fazer oposição ao Keller. O Keller, coitado,passou a ter a tarefa dele dificultada, porque a Dona Annita não lhe deu facilidades.

Cesar - A Dona Annita era contra ele.

Roberto - [Risos].

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Walter - Dona Annita era contra o behaviorismo. Ela queria trazer o Bartlett, daInglaterra, que estudava percepção70...

Cesar - Hum, hum [Assentindo].

Walter - ... e o Sawaya, no meio do caminho, como diretor, usando a sugestão de umaaluna71 que tinha conversado com o Keller, resolveu trazê-lo. Entrou em contato comele, e foi assim.

Marina - Mas foi por causa que esse trabalho estava sendo entregue para umbehaviorista ou por ser o Keller?

Walter - A Dona Annita dizia que o Sawaya queria ter o Keller sob as asas dele. Era aexpressão dela. De fato, acomodou o Keller lá na Fisiologia, fez o curso dele ser dadono Departamento de Fisiologia e, então, avocou a si o curso de psicologia comparada, eo deu para o Domingos72 [ministrar]. O Domingos chegou a dar algumas aulas, masacho que ele faltava, não estava levando muito a sério, então os alunos foram sequeixar. Por isso é que foi colocado o problema na "Coordenação" e eu peguei [ocurso]. Dali para cá, nunca chegaram a trazer professor estrangeiro, mas, graças a isso,acho que fui liberado de outras tarefas do curso e passei durante um bocado de tempo adar só psicologia comparada. Era uma matéria pesadíssima, porque envolvia oconhecimento de toda a zoologia [e o] comportamento na escala animal. Você vaidesde os protistas até os [metazoa], até o homem. Não é que houvesse muita coisa[publicada acerca de psicologia animal]. Mas havia muita informação de nívelfisiológico e de nível zoológico.

Foi uma coisa que fiz com gosto. Para mim foi uma "arejada", uma abrida dejanela para um outro mundo. Eu já tinha tido inclinação para fazer história natural,quando moço. Aí eu fui fazer o curso de zoologia para aprender alguma coisa com [ ] oprofessor Marcus, professor de Zoologia.73 Eu fiz [o curso de zoologia dosinvertebrados] como ouvinte, mas fazia os trabalhos regularmente, como se fosse umaluno regular.

70Tratava-se, parece-me, de F. C. Bartlett, cujas obras mais conhecidas eram Remembering: An Experimental andSocial Study. Londres: Cambridge University Press, 1932, e The Mind at Work and Play. Londres: Allen, 195l, eque interessava a Dona Annita sobretudo por seu enfoque social e experimental.71Essa aluna seria, segundo Dona Annita dizia, sua ex-aluna da primeira turma do curso de Psicologia, MariaIgnez, filha de Dona "Mouse" (Dona Maria Ignez) e do professor Maurício Rocha e Silva e, posteriormente,esposa do filósofo da ciência professor Hugh Lacey.72O professor Domingos Valente.73Professor Ernst Marcus, professor catedrático de Zoologia e Chefe do Departamento de Zoologia da Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras da USP,

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Cesar - Quando? Em que ano você fez isso?

Walter - Deve ter sido por aí... Eu não tenho certeza, mas deve estar marcado [noCurriculum Vitae].

Roberto - Está marcado aqui.

Walter - Eu devo ter colocado aí, mas não tenho muita certeza, não.

Roberto - Em 66.

Walter - Em 66? Mas é provável até que tivesse sido antes. Não tenho certeza, nãoconsegui essa informação. Mais ou menos eu deduzi [essa data] porque eu estavaescrevendo a tese e o [professor] Marcus foi muito receptivo. Ele me apresentou aosalunos do Departamento, com aquela risadinha típica dele. [ ] Ele era um alemão muitobem humorado, espetacular como professor. Ele me apresentou dizendo que eu tinhapreocupação com a formiga, que não sei o que, que eu era gestaltista e deu umaexplicação para os outros sobre o que era um gestaltista. Eu achei muito razoável. Eleme deu algumas idéias muito interessantes [ ] nas aulas dele sobre como,aparentemente, cada mundo animal era como que um espaço criado - ele falava, eleusava essa imagem que, às vezes, eu uso - [dentro de um ambiente] como umconsulado num território estrangeiro, onde vão valer certas leis. Se o animal regula atemperatura, não vale a temperatura do ambiente, valem as normas de temperatura dele,onde funciona a sua vida. Então o organismo biológico tem uma extraterritorialidadelegal.

Roberto - [Expressão de assentimento ou admiração].

Walter - Ele usava essa expressão: [o organismo] carrega consigo esta[extraterritorialidade legal]. Ali valem normas e leis que são próprias, e isso é omundo da biologia, a preservação dessas normas.

Ele era um professor magnífico. Ele era capaz de dar uma aula inteira sobre oassunto mais árido, a estrutura, por exemplo, dos radiolários, um invertebrado [ ]aparentemente sem interesse nenhum. Ele dava três, quatro horas de aulas discorrendosobre aquilo [ ], e o pessoal ouvia do começo ao fim, morrendo de rir - não sei comoele arrumava jeito: a expressão, a maneira de ele se referir ao bichinho: "o canalhinha","nossos priminhos", etc. Fabuloso. Um "scholar".

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Roberto - Eu queria perguntar uma coisa. Pelo que você descreveu até agora, os seusestudos tiveram uma carga auto-didática bastante pesada. Precisava dar um curso, vocêpegava os livros e ia ler. Bom... Em termos de treino de pesquisa: você sente quedesenvolveu sozinho o seu trabalho de pesquisa? Ou você aprendeu a fazer pesquisacom quem? Teve algum modelo para seguir? E quando você se sentia preparado? Apartir de quando, mais ou menos, você se sentia preparado para pegar e fazer pesquisa?

Walter - Não... O problema da pesquisa, quando eu vi, eu estava fazendo. Aliás, eu játinha um certo treino na CMTC. Era mais uma pesquisa estatística, mas havia muitacoisa de idéia para pensar. "Será que os fatores são comuns? Convém fazer essacorrelação ou não convém? Será que a correlação é baixa porque a fidedignidade daprova é muito pequena?" Então eu dividia a prova em duas metades e via qual era afidedignidade de uma metade contraposta com a outra, qual era a correlação. Tudo issoera um meio pensado em cima dos problemas que iam sendo colocados.

[Eu tinha, na CMTC, em cuja Secão de Seleção Profissional eu trabalhavacomo psicotécnico], dois chefes: Um chefe mais importante e um vice-chefe, maisimediato. O vice- chefe era uma pessoa notável, extraordinária, muito ponderada noque dizia e no que pensava.[ ] Chamava-se Dirceu de Castro Oliveira. Ele tinha feitovários estudos estatísticos, vários levantamentos estatísticos. Então, eu me aconselhavacom ele em relação à estatística. Ele me ensinou muita coisa.

[Houve também] a Carolina.74 Fui procurá-la. Eu procurei quem podia me darinformação. A Carolina Martuscelli tinha [ ] um grande renome nessa ocasião. Elatinha saído da Cadeira, tinha sido desligada da Cadeira por causa de uma divergênciaque a Chefe tinha tido com ela e com o marido dela. Parece que eles [Donna Annita e omarido de Carolina] andaram tendo alguns negócios e a chefe, [sentindo-se lesadal],exigiu a demissão dela. Então ela foi trabalhar com o Fernando de Azevedo no Centrode Pesquisas Educacionais. Já era, acho, na entrada da Cidade Universitária.75 Elaadquiriu logo um renome por algumas pesquisas sociológicas.

[ ] Carolina me deu aula de psicologia experimental. Eu gostava do assunto, dasaulas dela, da maneira de ser [dela]. Eu procurei a Carolina várias vezes, converseicom ela sobre a minha pesquisa estatística e, depois, sobre um outro trabalho que tiveque fazer como parte [dos pré-requisitos para a] tese de doutorado, o qual era sobre atécnica de Machover, que era uma técnica projetiva. [Nela] a pessoa desenha umafigura humana e depois conta uma história sobre essa figura [ ]; depois, a gente pede 74A professora Carolina Martuscelli Bori, Assistente da professora Annita de Castilho e Marcondes Cabral naCadeira de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, de quem eu havia sido aluno.75Não era ainda na Cidade Universitária, mas em uma rua na Vila Buarque.

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para desenhar uma figura do sexo oposto àquela que foi desenhada e pede também paracontar uma história, e a pessoa, às vezes, acaba-se identificando [com a figura].Freqüentemente começa a contar uma história e fala "eu, eu...eu..." e acaba falando desi mesma. Então a gente usava [o teste de Machover] como prova de personalidade noscasos em que o indivíduo tinha um problema de ajustamento. Aí eu consultei [aCarolina] porque [ela] tinha sido aluna de Machover e tinha prática [no teste]. Ela meajudou. Ela foi juiz para julgar patologia mental e nível cultural a partir dos desenhos.Usei dois tipos de índices: índices gráficos, tirados dos desenhos, e a impressãoglobal...

Fim do lado B da fita 3.Início do lado A da fita 4:

Marina - A impressão que temos ao escrever alguma coisa num trabalho é que derepente o trabalho fica... [ininteligível: dominante?] e a gente se torna instrumentodesse trabalho. E me chama muito [a] atenção isso porque, uma vez, conversando comum meu amigo artista, quando estava fazendo uma obra de arte, ele me contavaexatamente essa experiência. A obra de arte é algo que sai e que, de repente, se tornaoutra coisa [diversa] do que tinha [sido] pensado, e também lembra um pouquinhoassim, pensando, [ ] Sócrates, quando ele dizia do demo, que é alguma coisa que vaialém do que a gente está pensando. Então, nesse sentido, me impressionou muito issoporque é como se houvesse um componente artístico, não sei como chamar, notrabalho, também, da ciência. Não é exatamente programado.

Walter - Não, é o contrário.

Marina - É o contrário.

Walter - Não sei se para você é assim, mas, para mim, num certo ponto, eu vejo quedeixei de conduzir o trabalho e o trabalho passou a me conduzir. Eu passei a viver emfunção dele. Nas horas em que estou para dormir, nas horas em que estou passeando, otrabalho está ali tentando forçar o caminho. Alguma coisa não está satisfatória, não estádando [certo], eu paro e digo assim: "Puxa, mas não sei mais escrever!". Mas, quandoeu for olhar bem, não é por causa daquilo, é porque eu fiz uma crítica que erainfundada, que não valia. Por exemplo, eu dizia lá, tanto [era verdade] que os etólogosdesprezavam o comportamento humano que eles não faziam o estudo etológico docomportamento humano. Eu fiz essa crítica, mas nem prestei atenção nela, [nosfundamentos dela]. Coisa incrível! Não é verdade, existe etologia do ser humano.

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Cesar - Não só não é verdade, Walter, como Lorenz, no começo, quando ele cria aetologia, ele a cria especificamente para ela atingir o comportamento humano. E umacoisa pouco conhecida é que Lorenz era professor de psicologia.

Walter - Ah, mas isso é uma coisa que eu não sabia.

Cesar - Ah! sim: na Universidade de Könisberg. Ele ocupou a cadeira de Kant. Naépoca, ocupou a cadeira de psicologia que pertencia antigamente a Kant.

Walter - O que me dá um pouco a medida do quanto Lorenz era teatral, não é? Querdizer, até um certo ponto ele pensava no efeito que ele ia causar.76

Cesar - Ah, sim. Ele não era teatral, era escandaloso.

Walter - Ele recusou essas origens dele. O que a gente vê é o seguinte: que elesnasceram como uma reação à psicologia subjetiva de Bierens de Haan, de Buytendjik,de Russell, de McDougall. Eles nasceram em rebelião contra esse grupo.

Cesar - Agora, eu tenho certeza de que qualquer dos seus trabalhos, se publicado parauma audiência mais ampla, certamente [ ] teria impacto. Certamente, isso de você nãopublicar não é por falta de insistência de pessoas que o conheceram.

Walter - Não conheceram, não [Risos]. Então, eu acho que responder... 77 Eu não sei,acho que me aposentei [ ] foi em 1986, e tenho a impressão que estou sempre vivendonuma situação de emergência, [ ] atendendo a alguma coisa que está estourando aqui eali. Houve problemas de saúde na família, [ ] mas além disso eu tive mudanças,reforma em casas... Desde que me aposentei fui fazer reformas. Eu fiz três reformasseguidas. fiquei quase um especialista nisso [Risos]. Fui praticamente obrigado, porqueeu tinha uma casa no sítio - era uma casa velha, ela estava caindo -então, quando veio oplano cruzado78, [eu tinha recebido um dinheiro, perguntei-me:] "O que eu vou fazercom o dinheiro?" Fiz a reforma. 76Parece-me, como a seqüência da entrevista esclarece, que eu aludia ao fato de que a etologia, fundada porLorenz, foi apresentada como uma disciplina zoológica do comportamento que representava uma alternativacientífica mais adequada à psicologia animal da época.77Acho que eu pretendia dizer que, para explicar o pouco que publiquei, enquanto na ativa, seria umprocedimento longo que envolveria narrar, além das sucessivas transformações teóricas por que passei e que nãopermitiam, geramente, fixar algum texto completo, toda a sobrecarga didática e administrativa a que fuisubmetido depois de meu doutoramento e com a criação dos cursos graduado e pós-graduado de psicologia emnossa Cadeira. Já o publicar pouco depois de aposentado parecia mais fácil de explicar, e parece que optei porfazê-lo, nesta passagem.78O Plano Cruzado, caso não se lembre, foi uma reforma econômico-financeira efetuada no governo Sarney peloministro da fazenda, Dilson Funaro, pela qual se substituía a moeda circulante pelo cruzado, congelava-se o preço

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Aí, para vender a minha casa - não conseguia vender - tive que reformá-la, paraconvencer que ela não era tão antiga. Ela só tinha 37 anos [Risos]. Então fiz a reforma.E, quando peguei o apartamento, não sabia que ele estava uma "bomba" na parte doencanamento, esgoto,, essas coisas todas, e, aí, levando azulejo, piso... Então eu fiz trêsreformas aqui.

Nisso [foi] um tempo enorme, porque não era onde eu estava morando, erasempre em outro lugar. Em São Roque, eu tinha que levar material, porque faltavamaterial [ ]. Além disso, surgem essas coisas... Por exemplo, eu pensava: "Agora estousossegado, não tenho nada [obrigatório] para fazer, agora talvez eu possa me dedicar aum projeto". (E uma das coisas com que eu sonho é realmente retomar os meus dadoscom formigas e pensar num trabalho que eu já comecei várias vezes sob várias formas -a tal livre-docência [que eu havia planejado fazer quando ainda na ativa]. [Agora] nãoiria mais fazer livre-docência, não tem sentido. Mas iria fazer uma obra sobre ocomportamento de formigas em que ficasse clara essa nova interpretação que eu tenho,essa nova visão para acomodar os fatos e como um instrumento de descoberta também,[ ]. Eu tenho que o lidar efetivamente com os fatos leva a gente a descobrir, é ummomento de descoberta). [De repente, acontece alguma coisa que me faz sentirnovamente como se estivesse] vivendo uma situação meio de emergência... E quandosurge um convite educacional? "Você quer participar aí de duas semanas...?" É umatentação para mim. Eu digo para mim mesmo: "não vou aceitar". Agora estou meimpondo uma regra: eu não aceito o que é desvinculado dos meus objetivos. Estoutentando não ceder, não ser "delicado". Não adianta ser delicado, ser generoso. Muitagente me deu catálogos [de observação] para corrigir. Depois que o pessoal deRibeirão "abriu a porta", que o pessoal lá do Laboratório de Neurofisiologia me deu ocatálogo do comportamento de peixes para corrigir, que me deu um trabalhão, aí outrosvieram com trabalhos: "Você não quer ver essa parte de etologia?" Eu tenho recusado.Sistematicamente.

Mas sempre vem um trabalho que você aceita e não é um trabalho como pensavaque fosse. Eu pensava: "Leva uma semana, eu faço isso 'com um pé no bolso'". Topavafazer. Não fazia 'com um pé no bolso', às vezes levava 5, 6, 8 meses. Esse artigo para oKatsumasa79 está pronto há poucos meses. Mesmo assim não estou satisfeito com ele -quer dizer, devia ser um pouco melhor.

das mercadorias e se tomavam outras providências que resultaram em grande aumento do consumo e escassez demercadorias, muitas das quais passaram a ser "maquiadas" ou (como no caso do cimento e a maior parte dosmateriais de construção) vendidas no câmbio negro.79O professor Katsumasa Hoshino, da UNESP de Botucatu. O artigo não chegou a ser efetivamente completado eenviado.

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Cesar - O que eu acho é que, quando você...

Walter - Vejam uma tarefa como essa. Vocês me pediram [ ]: "Leva o currículo, pegao material". Bom, eu fui olhar o meu currículo: tinha sido datilografado por váriosdatilógrafos diferentes. Tinham errado em datas, tinham omitido, pulado coisas, comopublicações, isso ou aquilo. Eu mesmo não estava muito seguro do que tinha aconteci-do na minha vida. Foi uma oportunidade para eu ver, e voltar. E aquilo foi umsofrimento. [ ] Havia dias que parecia que eu estava sendo desentranhado. Sabe? Vocêlidar com a própria vida, com a impotência diante do fato de que as coisas estãocondicionadas, de que você [ ] não aproveitou oportunidades, não fez o que deveria serfeito, me deixou num estado [ ] deprimente. No final eu acabei pegando uma parte docurrículo e botando ali, porque eu tinha que viajar. "Então, vai assim mesmo...", Emvez de fazer bem organizadinho, como está essa mesa, assim... [ ] Mas foi uma coisaque me deu muito mais trabalho do que eu pensava. Primeiro, porque estou destreinadode datilografar. Segundo, porque, às vezes, para você achar uma referência, leva muitomais tempo do que você pensa. Aliás, essa é uma das lições que eu tirei na vida: tudoleva mais tempo do que parece [Risos].

Cesar - Mas eu acho que, em parte, também a gente está [desacostumado (?)]. Isto tema ver com o modo de produção científico, que foi o nosso modo de produção, bra-sileiro. Eu acho que a gente pegou - você pegou mais ainda - uma época em que seproduzia para fins internos. Era isso, era o objetivo de saber...

Walter - Era fazer uma tese...

Cesar - Era fazer uma tese, era uma banca aprovar a tese, era você conquistar a cáte-dra...

Walter - Era dar suas aulas bem...

Cesar - ...era dar suas aulas. Hoje em dia a coisa me parece que está se encaminhandopara um tipo de comunicação mais aberta, mais flexível, [ ] e, aí, a exigência depublicação se torna cada vez mais forte.

Walter - Mas há um outro aspecto aqui que eu estava lembrando, que o Roberto falou:porque eu não publiquei mais. Há um outro aspecto, Roberto. Há uma outra explicaçãopara isso. É que o meu trabalho não é desse tipo que você recorta em pedaços e cadapedaço anda, tem vida própria. Ele, isolado, ali, perde toda a aparência de serconvincente, de ser plausível. Se você lida com um todo, com uma rede tão vasta defatos, [ ] me parece que, se você publicar uma série de artigos, você perde [a forçaargumentativa que daria o conjunto (?)]. Quer dizer, por trás está o grande problema,

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[ou] às vezes está o grande problema. Para você colocar esse grande problema, vocêvai levar algumas páginas. Cada vez que publicar você via fazer isso? Vai referir aoutra [publicação]? Não sei, talvez tenha alguns expedientes aí, mas a maior parte dascomunicações são desse tipo industrial de obra, [a] que o Cesar às vezes se referecomigo.

Nós estamos numa época não mais artesanal, mas industrial, que o Toynbee, no"Estudo da História" dele, refere80. Nós passamos de uma época em que aquelasgrandes obras, aqueles tratados compreensivos, deram lugar aos fascículos, aosnúmeros de revista isolada. Isto é uma verdade.Eu tenho a impressão que meu estilo detrabalhar é mais [ ] o de fazer uma coisa só, interligada. Então me parece que, ou eudou uma pancada com uma carga toda, ou eu não dou, parece que não tem muitosentido.

Roberto - Mas, por exemplo, fazia sentido você apresentar na reunião da SBPC umtrabalho que é uma coisa mais pontual: "A arquitetura do ninho e o comportamento dasobreiras a ela relacionadas em colônias iniciais de Atta sexdens rubropilosa Forel". Issoacontece que é uma coisa mais resolvida. Por que não escrever isso e publicar umartigo assim?

Walter - No que diz respeito à saúva, uma atitude quase irracional minha... A saúva e olaboratório, o centro de pesquisa, [foram] um sub-produto da minha preocupação coma natureza da psicologia, a natureza dos fenômenos e os princípios. Como isso sempreme dominou, então essa [preocupação com publicar acerca dos trabalhos sobre asaúva] era uma coisa secundária. Aí há um trabalho realmente de natureza maisfragmentada [onde] eu consegui levar um aluno a ver coleta de vegetal, outro o cortedo vegetal, outro o cuidado com o lixo, cuidado com isso ou aquilo... E há muita coisaa aprender sobre a etologia da saúva quando você pega esses pormenores. Existemrazões na sociedade, razões de evolução... Mas, ainda mesmo assim, por que não fizisso, [isto é, por que não publiquei pequenas comunicações a respeito das descobertassobre a saúva realizadas no laboratório] ?

Porque me parece que o que eu devia fazer era pegar tanto a obra dos orien-tandos como o que não publiquei e fazer uma obra compreensiva sobre a etologia daformiga, a etologia da saúva. Então, mostrar qual é o sentido, não só de certas estru-turas corporais da formiga saúva [como também da maneira de realizar certos com-portamentos]. Por que [as saúvas] têm patas longas, aqueles fêmures tão compridos? -Porque ela é uma criatura que, levando uma folha sob o vento, lembra um verdadeiro

80A referência, aqui, é à obra de Arnold Joseph Toynbee, revisada e condensada pelo autor e por Jane Caplan, "AStudy of History". Londres: Oxford University Press, 1972.

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barco a vela: então ela tem que ter as patas [ ] apoiadas bem longe do eixo corporal. Aívocê passa a entender a mecânica do corte do vegetal também. Por que ela se aplica,[ao cortar vegetal], em certos pontos? Por que ela corta circularmente? E outrascoisas... E, aí, você começa a ligar [os fatos] ao modo de vida dela. [Por exemplo], porque a mandíbula tem esse desenho? - Porque ela tem que lidar com tais e tais tipos deobjetos de uma maneira [que representa] um compromisso.81 Então, esses alinhavosque os alunos não fizeram, mas que eu via, é que eu gostaria de fazer, mas [tendo]sempre, na frente disso, [o assunto que foi o principal]. Quer dizer, eu sempre tenhofalado para alguns alunos, eu só vou conseguir morrer em paz e saber que, se houveroutra vida, não vou ficar me revirando no túmulo, se eu conseguir lidar com um poucodesses dados adicionais da formiga original, depois, se eu lidar com a natureza damente, quer dizer, se eu tratar desse problema, tentar fazer uma obra mais inclusivasobre a natureza da mente, e, finalmente, alguma relacionada com a saúva, e, aí, outrosprojetos menores: escrever alguma coisa que o pessoal me encomenda quase sempre.Nos encontros de mirmecologia eles dizem: "Como é, você não vai fazer um manual deobservação, descrição e categorização de comportamento segundo os princípiosetológicos?" [Respondo]: "Não sei, isso fica para lá". Então, provavelmente, não voufazer. O que eu tenho que acomodar são outras prioridades. E outras prioridades[incluem] um pouco [disto]: desfrutar o próprio ócio, dar uma companhia que eu nãodei para a minha esposa, que não está bem de saúde (ela tem um rim só e esse rim delatambém não funciona direito; tem pressão alta e foi sacrificada a vida inteira). Mas,mesmo assim, acho que não vou conseguir satisfazer a minha mulher, porque o sentidode solidão dela é enorme. E é verdadeiro: ela teve solidão muito tempo. Então - achoque o Cesar sabe o que é isso [uma vida atribulada] - a gente chega no fim da vidaassim como um bagaço de cana que foi espremido de todo o lado, mas com o sentidode que ainda teria muita coisa para dar, [ ] e o que você deu não foi o melhor. Mas achoque valeu [a pena], também.

Cesar - É essa uma visão que você pode ter do seu trabalho, como entre várias quepodem ser feitas. Eu tenho uma visão um pouco diferente do trabalho do Walter. [ ] Eunão concordo. Eu acho - [foi] uma coisa [de] que eu sempre me queixei ao Walter -que ele não difundia as coisas que ele pensava a nível de um circuito um pouco maisamplo. Hoje em dia isso é vital. Você difundia entre os seus alunos. Ele fez. Walter eos alunos. Ele formou. Isso é excelente...

Roberto - Mas a impressão que dá é de ele trabalhar comunicado para o grupo dosalunos dele, e pronto. Terminou ali. 81Ou seja, de uma maneira que concilie necessidades e habilidades por vezes até mesmo contraditórias, como asenvolvidas no corte de vegetais, no cultivo do fungo, na escavação, na limpeza do ninho e no cuidado das formasimaturas].

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Cesar - Ele formou o grupo, formou uma escola, criou. É...Mas não é suficiente. Achoque teria que ... [ter divulgado mais]

Walter - Isso acho que é motivo de orgulho, esse centro. Embora ele fosse um sub-produto da minha atividade, a presença da saúva no laboratório, do espaço, deu faci-lidade para muita gente fazer tese, [assim] como, através dessas teses, também, houveum convívio, houve discussão, que eram prolongadíssimos. Cada aluno meu teve suascrises existenciais, suas mudanças de objeto, de preocupação, mas, olhando assim emretrospectiva, esse é um ponto que me dá gosto de ver. Quer dizer, acho que não fuisombra para ninguém, não fiz sombra para ninguém. Consegui me afastar o suficientepara que uma pessoa pudesse crescer, e sempre me orgulhei disto. Acho que isso já éuma boa realização. E os meus orientandos, pelo menos a maior parte deles - não é quetodos fossem brilhantes, fossem excepcionais - [ ] acabaram fazendo, escavando, o seupróprio caminho, encontrando o seu próprio caminho e um modo de pensar, deinterpretar, que era também próprio. Não foi sempre assim. Eu tive um impacto muitogrande com a Maria Lúcia de Almeida Melo. E foi também uma lição de vida.

Ela era uma pessoa que tinha vindo do Recife e a preocupação dela era com aeducação - parece que ela tinha trabalhado com Paulo Freire, com alfabetização de a-dultos, coisa assim. Ela sempre teve uma preocupação com educação. Eu [a] convidei.Ofereci uma bolsa a ela e disse: "Olha, você vai me auxiliar aqui. Eu tenho váriastarefas a ver com a saúva, então você vai tomar essa coisa. E outra [pessoa queconvidei para ser bolsista foi] a Myria Naime. [Mas] a Myria [acabou desistindo] porcircunstância de ser mulher (Desculpe eu falar isso, mas as mulheres, freqüentemente,têm um futuro imprevisível. Se elas casam, depende muito do marido [o que elas vãoser], se o marido vai permitir ou não vai permitir [continuar], se a leva para outrolugar, e foi o que aconteceu com a Myria, quando ela casou. Ela ia muito bem, erapromissora). E houve outras alunas... Eu não consegui muito com elas, acabaramsaindo, mudando de rumo. Mas fica alguma marca, não é? Então... Mas a propósito doque eu estava falando?

Marina - Estava falando da relação com os alunos.

Walter - Ah, sim: a experiência de vida. Houve um tempo em que eu era dono da ver-dade - aliás, talvez a gente sempre [o] seja um pouco, se não a gente não estaria nemfalando: o silêncio seria melhor atitude [Risos]. A gente sempre é meio dono daverdade, e eu era mais dono da verdade. No tempo em que me tornei skinneriano e notempo em que me tornei um etólogo, eu era dono da verdade. Então eu sabia tudo sobrea saúva e via as coisas mal feitas e não tolerava aquilo, dizia [para os orientandos]:"não está bem descrito, não é assim, não está bem observado; você tem que fazer o

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experimento de outra maneira, não é assim, é assim..." Então eu, até um certo ponto,era um controlador dos passos [dos orientandos e] dela [Maria Lúcia]. Até que, umdia, ela fez o exame de qualificação dela com o Cesar eo Fernando82 e [ ] elesdisseram: "Isso é o Walter que pensa. Essas coisas que você está falando é o Walter quepensa. Mas, e você, o que pensa disso ou daquilo?"

Ela ficou embaraçada, viu que não tinha muito..., não tinha alguma coisa [emseu pensamento sobre a pesquisa] independente de mim. E o problema [foi] que elapassou a reviver um problema que ela tinha com o pai dela, que também tinha sidoassim, tinha sido dominante, tinha feito a vida dela. Então eu era a figura paterna -aliás, quase sempre o professor é uma figura paterna: ou ele é amado ou é detestado.

Cesar - Isso é inescapável. Você não se livra de ter esse tipo de ambigüidade junto aoaluno. Eu acho que isso é uma coisa [inevitável (?)]. Se você se apaga totalmente,Walter, você não está cumprindo a sua tarefa.

Roberto - [Expressão de assentimento]

Marina - ...falha completamente.

Cesar - Você tem que arriscar, e entrar, e colocar suas idéias. É isso.

Walter - Eu não ouvia o aluno. Então, ela ficou com nojo de si própria. Ela dizia: "Eunão tenho nada, assim, [meu (?)]. Eu tenho que vomitar tudo isso que aprendi. Foi feitauma lavagem cerebral neste Departamento" [risos] "e eu não estou sabendo, e mecolocaram aqui".

Aliás, é isso que o psicólogo tradicionalmente faz. Ele acha que é capaz de ter ocomportamento correto, ele sabe como, então ele procura fazer uma lavagem cerebral ecolocar o pensamento próprio, dele, ali, no lugar [do do outro]. Aí, [ ] na hora que opaciente estiver como ele acha que deve ser, está curado.

E ela, acho que sentiu essa coisa, e começou [a fugir] de mim, me agredia etinha discussões comigo, dizia: "O senhor não sabe ouvir". Eu não sabia mesmo. Aminha mulher dizia: "Você não ouve. Você não deixa falar".

Aí foi um tempo em que eu pegava um elasticozinho, uma borrachinha, que eraum lembrete de que eu tinha que ser mais controlado, e andava com aquilo. Acho queos alunos nunca entenderam porque eu estava com aquilo. Às vezes eu ia perder o

82O professor Fernando José Leite Ribeiro.

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controle, a borrachinha estava ali e me lembrava. Dizia: 'Fica quieto, deixa-a falar". Eusó fazia perguntas, ia fazendo perguntas. E ela: "É. Estou sentindo que o senhor quermudar. Não sei se é verdade, isto, aquilo e tal".

Ela desistiu, não ia fazer nada, não ia fazer a tese de mestrado dela, o prazo delaestava se esgotando. Ela tinha perdido vários anos porque nós tivemos um curso depós-graduação com erros medonhos, em que o aluno tinha que fazer 240 unidades decrédito, que é mais do que se exige hoje para o doutorado. Você veja que, nodoutorado, se exigem 120 unidades de crédito, [ ] com a tese, e aquilo era só de curso.Então [os créditos] dos alunos, a cada três anos, começavam a caducar, [e tinham deser refeitos]. Eu tinha aluna lá por 8 anos fazendo • cursos], até mudar esseregulamento. As coisas têm uma certa inércia.

E a coitada [Maria Lúcia] estava já com os prazos todos estourados. Foi precisocatar os cacos todos emocionalmente, quase que tratar [ ] terapeuticamente e reformularuma relação. Foi [ ] quando resolvi mudar o sistema de [orientação]. [ ] Eu percebique não estava pesquisando mais, que a minha única tarefa, [conforme] eu disse a eles[alunos], [era] ser assessor de incompetentes: "Vocês não têm competência ainda, e eutambém não tenho, no campo que vocês escolheram". Porque, enquanto eles ficassemem psicologia animal [ ], quando vinham com macaco, com planária, tudo isso,[ ]estava bem. Mas um vinha com comportamento simbólico, outro com débil mental,outro, [com] internados da FEBEM... Aí eu disse: "E agora"? Eu, que já tinha aceitadoisso83 - parecia que, se eu não aceitasse, os orientandos não eram bem "pessoas" -estava sendo deslocado da minha base de competência, não trabalhava mais nela, nãoproduzia [mais nela], e eu mesmo, [como pessoa], não podia ser visto. Eu [lhes] disse:o que eu vou fazer agora é simplesmente o seguinte: vocês me submetem [os seustextos de pesquisa] e eu [serei deles] um leitor, mas um leitor, desculpem, que nãosabe ser leitor [apenas]: ao contrário, o meu compromisso agora é tentar destruir otrabalho de vocês, é mostrar que ele é cheio de defeitos, que ele não presta. O que euencontrar no trabalho, se achar que ele é bom, também ponho [nos comentários]. Mas,de maneira geral, vou ler muito atentamente, para ver se vocês estão demonstrando, etc.

Aí, pus essas novas regras e passei a exigir reuniões - primeiro, eram quinzenais,depois passaram a ser semanais - de relatos de progresso. E a coisa começou a andar.Alguns, por exemplo, nunca conseguiam falar, não conseguiam dizer qual era o [seu]projeto fazia 3 anos. O Sadao...84 O Sadao não conseguia dizer qual era o [seu

83 Meus orientandos, inicialmente, vinham para minha orientação com um trabalho de pesquisa emcomportamento animal, mas, com o correr do tempo, vários enfrentavam uma crise de identidade ao descobrir queseu interesse real se situava nalgum assunto ou problema localizado fora da área inicial, e procuravam cooptar-mepara o seu projeto mudado. Geralmente eu acabava cedendo por considerar que uma condição importante para umbom trabalho é que ele permita unir obrigação e devoção.84Sadao Omote, atualmente professor na Faculdade de Educação da UNESP de Marília.

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projeto]. E era um dos melhores alunos que eu já tive. A tese que ele fez, a dissertaçãode mestrado dele, é excelente. [Custou] até ele conseguir, nas reuniões, colocar [oproblema]. Ajudado por um e por outro - [diziam]: "não será isso? Não será aquilo?" -ele começou a ganhar clareza e, hoje, você olha o Sadao falando, ele pontifica para aplatéia.

Eu acho muito bom esse pensar coletivo, mas não foi um tipo de relação que eutive no começo, com o Cesar, com o Fernando, com a Ana.85 O que acontece é que oambiente era mais independente. O Cesar, por exemplo, entrou na minha pesquisaassim: eu tinha que orientar o doutoramento do Mário Guidi. Ele era meu orientandodesde o começo do projeto de [seu] tempo integral.86 O Mário nunca usava aqueleequipamento de filmagem, não tinha jeito. Aí eu disse para ele: "Mário, você é oetólogo nato, porque você é vagabundo [risos], no bom sentido (Porque nem todapessoa é feita para trabalhar, ficar aí cumprindo horário, aquele problema. Eureconheço isso. O Mário não é feito para isso, ele não aceita isso). Falei: "Você gostade estar em contato com a natureza, de estar numa coisa descontraída, então vamosfazer uma observação etológica, vamos fazer uma observação no campo. Eu estouvendo umas aranhas muito interessantes" - a Argiope argentata, que acabou sendoobjeto da tese do Cesar - "você não quer me acompanhar? Vamos lá".

Então a gente sentava lá no carro. Estava chovendo, a gente ficava olhando delonge: "Vamos ver o que acontece quando as gotas caem lá [na teia]?" E o Mário mecontando caso, me contando caso... Quer dizer, não tinha jeito [risos], ele não tinhainteresse, não era o campo dele [risos], e foi me levando assim, na conversa. [ ] Eramtardes inteiras que eu não conseguia [que] o Mário [fizesse] nada. Não conseguia,[mas] eu falei: se ele começar, ele toma gosto e vai". Mas o Mário nem começou nemtomou gosto [Risos]. Aí um dia o Cesar pede, foi assim: "Walter, posso ir junto comvocê, acompanhar o estudo da aranha?"

E começou a fazer [parte da pesquisa]. Caiu na mão de quem gosta, não é? Emtrês tempos saiu o trabalho dele, desenvolveu o trabalho de forma independente. De

85A referência é aos meus orientandos Cesar Ades, Fernando José Leite Ribeiro e Ana Maria de AlmeidaCarvalho, todos atualmente professores do Instituto de Psicologia da USP.86Cabia a Mário - Mário Arturo Alberto Guidi, atualmente também professor no Instituto de Psicologia da USP -realizar a documentação foto-cinematográfica de minhas pesquisas em andamento sobre o comportamento daformiga Paratrechina (Nylanderia) fulva Mayr, por meio de equipamento adquirido para meu laboratório aindano tempo da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, quando da administração do saudoso professor MárioGuimarães Ferri. Resta esclarecer que Mário aceitara a tarefa como parte de suas atribuições em tempo integral evisando ao seu doutoramento, mas seu interesse estava mesmo - assim me parece - na construção de protótipos deaparelhamentos científicos, tanto que veio a ser encarregado da Oficina de Protótipos de EquipamentosCientíficos do Departamento de Psicologia Experimental da mencionada Faculdade.

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modo que a gente tem que reconhecer isso: a semente tem que cair no lugar certo. Elafreqüentemente cai num lugar sáfaro.

Cesar - É assim mesmo, o mecanismo da evolução é esse, Walter. O mecanismo daevolução é esse, é produção de variação e é alguma parte às vezes muito limitada dessavariação que vai continuar se reproduzindo. É esse o mecanismo da evolução e,intelectualmente, acho que é a mesma coisa, quer dizer, você produz uma série detentativas, algumas vão funcionar, outras não, eu acho que é perfeitamente dentro doque se espera. Agora, o que eu queria ressaltar, uma parte que você ressalta pouco:você diz que sempre estava fora de fase, e esse "fora de fase" me parece muitointeressante. Quer dizer, eu acho que, em geral, a gente se mantém muito dentro dafase.

Roberto - Com o que está em moda?

Cesar - Com o que está em moda, exatamente. [ ] A nossa psicologia, por exemplo -eu não sei as outras ciências - [ ] esteve sempre a reboque dos movimentos, e não areboque imediato. Ainda se nós copiássemos imediatamente, aí estaríamos juntos, mas,quando [os estrangeiros] já estão começando a se desiludir com alguma idéia, nósestamos começando a casa, surgindo, assim...

Marina -[ ] Não é só da psicologia, é geral.

Roberto - É geral.

Marina - Não é sempre [só] da psicologia. Aqui, no Brasil, não é.

Cesar - No Brasil acho que é em geral. Então vem uma moda da França, [de outroslugares]... Vem a [psicologia da] Gestalt, a Dona Annita perpetua a [psicologia da]Gestalt. Ela foi lá na fonte. Ela bebeu da fonte. Foi muito importante. Só que ela veio eperpetua 20 anos ainda, quando aquilo já mudou. O Walter vai lá e percebe: "Puxa, a[psicologia da] Gestalt já morreu. Como ninguém me contou? A Dona Annita não mecontou". Então a gente vive sempre...[atrasado (?)]. Então, o que eu acho que é muitoimportante no seu trabalho, Walter, é essa capacidade de estar assim defasado. Eu voucitar: um momento em que, nos Estados Unidos...

Walter - Talvez seja assim por que eu sou lento [ ].

Cesar - Não é questão de lento, deixe-me interpretar...

Roberto - É uma independência de trabalho.

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Cesar - Isso.

Marina - É verdade.

Cesar - Veja, eu vou lhe dizer isso: por um momento, eu acho que o que me parecemuito valioso, nem que fosse esse detalhe no seu trabalho todo, foi o seguinte: nomomento em que os Estados Unidos, que era a nossa fonte, a nossa Alma Mater, deonde a gente tirava a substância das idéias psicológicas, ela não entendia de etologia, [], mal tinha lido Tinbergen87. É verdade. Nós, aqui no Brasil, fomos ler e ser etólogos.Keller, que era um professor estrangeiro que veio, que deixou toda uma tradição aqui, [], skinneriana, etc. e tal - muito valiosa - [não o conhecia]. Um dia o Fernando Ribeiropega e diz: "Olha, o senhor não leu o Tinbergen?" Ele diz: "Quem é Tinbergen? Umpoeta?" Quer dizer, [considerado(?)] o grau de desconhecimento em que nósestávamos, de certa maneira [fazíamos] uma coisa antes da letra. Agora, se você for aosEstados Unidos, se for [atualmente] entre os sdinnerianos, a idéia de etologia é umaidéia extremamente valiosa. Hoje em dia [esse desconhecimento] acabou. Ela foiassimilada, não é mais agônica, não é mais agonística. Não há mais briga em torno daidéia de que é necessário considerar o comportamento do ponto de vista biológico.Então, eu acho que nós fizemos. Além disso, os departamentos...

Walter - Mas, Cesar...

Cesar - Deixe eu continuar. Espere aí. Pedi um aparte [Risos]. Os departamentos dezoologia e ecologia nossos ...

Walter - Questão de ordem [Risos].

Cesar - Aí você me pegou [Risos]. Aí eu tenho que parar [Risos]... Os departamentosde zoologia e ecologia nossos - isso é uma parte da história, nós estamos aqui tratandoda história - ...

Fim do lado A da fita 4, início do lado B

[Falta um trecho na gravação]

87Niko Tinbergen, pesquisador holandês, um dos fundadores da etologia e provavelmente o maior responsávelpor sua primeira base experimental.

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Roberto - ... estavam fazendo um trabalho científico, número mínimo, minúsculomesmo, estar preocupado em testar alguma teoria, saber se aquilo é verdade ou não?[Para um funcionário ocupado com os registros: "Novamente aí"]

Cesar - Os departamentos de biologia e ecologia não estavam pensando. Você tinha oNogueira-Neto88 com alguma dica na cabeça. Simplesmente nós tivemos, numdepartamento de psicologia, uma contribuição a fazer [ ] no sentido de trazer um campode conhecimento, inclusive de uma maneira muito independente da matriz. A matrizapenas nos mandava [o seu movimento psicológico dominante (?)]. Você tinha o neo-hullianismo89, foi quando Hull estava predominando nos Estados Unidos; Skinner veioaqui, foi quando ele estava predominando. A etologia veio de uma outra maneira: achoque veio de uma maneira independente. Isso é muito importante em termos demecanismos históricos. Acho isso. E é devido, em parte, à sua maneira irreverente,assim, de seguir certas leis correntes, não é?

Walter - É, mas ao mesmo tempo, é a tal história de a semente cair no terreno fértil ousáfaro. A etologia que nasceu aí, nasceu no lugar errado, onde a preocupação era sócom o ser humano. Eu nunca consegui entusiasmo de alunos com o comportamentoanimal, que é secundário, em relação à preocupação com o homem. Parece que a gentejá tem no homem preocupações demais, motivos demais para se preocupar, por queagora se ocupar com o animal? Então eu tentei justificar isso, vender o meu peixe daseguinte maneira: eu disse - "mas onde é que termina o mamífero no homem, ondetermina o vertebrado no homem, onde termina o primata no homem e começa opropriamente humano?Falando da perspectiva comparativa, você não sabe. Você nãosabe se realmente o homem tem mecanismos comuns [com os animais. E lidar comestes] é uma forma de descobrir princípios. Se você pega e faz desfilar diante doanimal tudo que você aprendeu sobre o ser humano, será que isto é suficiente paraentender esse comportamento do animal? Você vai ver que não, você não sabe nada. Etambém há algumas coisas para aprender: o que foi fruto de evolução, o que afilogênese tem a haver com isto - com o que o homem faz e com o que os outrosanimais fazem".

Eu acho que os alunos gostavam [do curso] como curiosidade. Era um refrigériopara eles e, também, tenho a impressão que eles gostaram um pouco da liberdade queeles tinham de serem eles próprios os artífices de um trabalho assim. [Houve] trabalhosmuito interessantes que os alunos fizeram. Eu pedia para eles observarem durante oano, no curso de psicologia comparada, um animal, e eles deveriam fazer um relato

88Professor Paulo Nogueira-Neto.89A doutrina psicológica criada por Clark L. Hull, tal como inovada por seus seguidores mais famosos (comoSpence, Mowrer, etc.).

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sobre como era a vida desse animal as 24 horas por dia, e, depois, ao longo do ciclodele, levantar os problemas, se possível chegar a alguma explicação, testar algumahipótese. E vários trabalhos que foram feitos foram interessantíssimos.

Muita coisa eu aprendi através dos alunos, era uma forma de multiplicar meuconhecimento dos animais. Eu dizia: "Puxa, esse animal faz assim?!" Fiquei admiradode, um dia, tomar um trabalho de uma aluna [ ] com traça e ela me dizer: "Você põe umbloco na frente da traça. A traça vem por aquela ponta e o que acontece? Daí a poucoela aparece na outra ponta e arrasta a casinha do outro lado". Eu não sabia que a traçafazia isso dentro da casinha dela. Eu achava que a casinha era [parte do corpo] dela. Éinteressante, não é? O andar do coelho também foi uma coisa para que o aluno mechamou a atenção. O andar do coelho é assim [gestos com os dedos], e várias outrascoisas. você começa a pensar depois: quais teriam sido as pressões de seleção que umbicho teve [para] adquirir tais maneiras de ser, tal organização, tal estrutura, a relaçãoda estrutura com o comportamento e o modo de vida? São as coisas típicas da etologia.Mas [a etologia] caíu num terreno sáfaro, porque, embora isso fosse um refrigério paraeles, uma curiosidade no meio daquelas disciplinas todas e eles tivessem aoportunidade de ir para o mato ou para o zôo, era [só] uma distração. Como eu diziapara eles: [ ] "Vocês podem não aprender grande coisa, mas pelo menos tomam umpouco de ar fresco, de exercício" [Risos]. "Isso é uma vantagem". Apesar disso, euacho que, [se o curso (?)] tivesse nascido na zoologia, ou no Instituto de Biociências, [] teria pegado fogo. Era uma centelha que caía em palha seca: aí pegaria fogo, sealastraria rapidamente, que é o que está acontecendo, não é?

Cesar - Está acontecendo agora.

Walter - Está acontecendo!

Cesar - Eu acho.

Roberto - Mas eu não estou entendendo. Você teve um número enorme de pessoas quetrabalharam com você. Não estou entendendo como você disse que não interessavamuitos alunos...

Marina - [Risos]. Nem eu.

Walter - É, mas, no fundo, eu acho que, se você fosse olhar, a maior parte estava in-teressada em modificação de comportamento, na linha de condicionamento operante,[em] outros assuntos.

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Roberto - Mas, se o dobro do número de alunos tivesse se interessado pelo seutrabalho, você teria condições de trabalhar com todos? [Ri].

Walter - Não, não teria. Mas eu digo, se fosse no Instituto de Biociências, teria tidomais recursos, contratava mais professores, virava um setor. Eu tenho certeza que omeu laboratório virava... [um setor independente?] Como a Vera,90 hoje: ela estáconseguindo fazer um centro ali. Ela é [docente em] tempo integral, mas eu acreditoque ela deve dispor de mais recursos, no Departamento de Ecologia, do que nós sempredispusemos no nosso Instituto de Psicologia, [em] que [a etologia] era uma coisasecundária. Quando o seu diretor, o diretor de sua instituição, como diz o Cesar - eleestava contando isso - fazendo um relato da psicologia no Brasil, querendo demonstraro progresso atingido no Brasil, dizia que, hoje, cada vez mais se pesquisava sobre ocomportamento humano e, não, sobre animais, isso se chama progresso [Risos].[Tivemos que] lidar com a ignorância de todo tipo, porque, quando você submetia umprograma de pós-graduação de observação do comportamento animal e ao mesmotempo uma colega91 submetia um programa de observação do comportamento humano[acontecia algo estranho(?)]. As técnicas para a observação do comportamentohumano eram muito mais primitivas, muito menos elaboradas, não por culpa dela, masda área mesma, porque o psicólogo behaviorista nunca se preocupou com a observaçãode uma maneira geral, com um levantamento do que era o repertório de vida. Poucospsicólogos tinham essa preocupação, eram mais ligados a Lewin os que tinham essapreocupação. Então eles [os professores da Câmara incumbidos de julgar osprogramas de pós-graduação] pegaram os dois programas ao mesmo tempo e fizeramreferência cruzada de um ao outro: "Isto sim, é programa importante, porque lida com oser humano. Agora, observar animal? Para que fazer isso [ ]?"

Que se pode [ ] esperar de uma comissão técnica? Sabe o que eles disseram umavez, apreciando um meu programa? Eu tinha mandado o programa de "O ArcabouçoConceitual da Psicologia", [onde mandávamos] os assuntos que seriam tratados. [Aaprovação] começou a demorar. Lá um dia, a pessoa [do Instituto] ligada ao Conselhode Pesquisa e Extensão me chamou para me aconselhar. Disse: "Sabe por que oprograma não foi aprovado? Você escreve claro demais [risos], [ ] todo mundoentende. Eles consideraram, como todo mundo entende, que não é um programa depós-graduação. ~Você devia complicar, escrever isso de uma maneira que eles nãopudessem entender, que, aí, eles não falariam nada".

[Respondi:] "Espere lá. Eu me recuso a fazer um negócio desses. Se vou usar alinguagem para esconder o pensamento, então, não vou [usá-la]. É uma coisa

90A professora Vera Imperatriz Fonseca.91Influenciada manifestamente pelo seu exemplo.

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incompatível [com minha função (?)]. Não vou fazer isso. A senhora vai levar de voltae eu quero ver esse programa aprovado, senão vou denunciar esse pessoal [de] que asenhora está me falando". [ ]

E ela levou e voltou com o programa aprovado. Em base em quê eles podiamdizer que ele era um programa introdutório? É porque ele é claro, todo mundo entendeuo programa - até pessoas que eram da área de Letras, da área de Arqueologia, não sei oque, conseguiram entender o meu programa? Isso é [também] a Universidade: temessas coisas [inaudível].

Marina - Uma coisa que eu estava pensando é que toda coisa nova que a gente começana história sempre tem essa dinâmica, que não é fácil: que as pessoas que começamcriando métodos, criativamente [iniciando] uma coisa nova, têm um pouco essedestino [ ], porque elas não estavam pensando apenas no objeto e na área nova emtermos de conteúdos, mas também na grande novidade que traz seu método. Porque,por exemplo, pelo que [se] estava comentando antes, vindo de uma situação em quenão havia de fato uma prática de pesquisa, não havia conceito de grupo de pesquisa, oprofessor estava dando aula e só, para os alunos, começar um método de trabalho juntocom os alunos, como ele fez, e como está fazendo ainda, é uma coisa totalmente novano contexto brasileiro em relação ao que estava lá - o que permite, depois, a criação deCentros e de instituições como passos sucessivos. Mas, se não houvesse essa passagem,[isso] seria impossível, no sentido de que a novidade é feita num nível de sub-cultura,mas também no método, nessa capacidade de que há uma relação, por exemplo, comos alunos que os envolve na pesquisa, que, sem isso não dá para criar depois umInstituto, não dá para ...[outras coisas(?)]. Isso é uma coisa original e criativa, porquenão é uma coisa que se pode fazer por projetos, por querer, porque a questão do ...

Cesar - Eu acho que a idéia do "terreno fértil" é a seguinte: basicamente, a psicologiaestá interessada no comportamento humano. Ela não está interessada em fazerpsicologia animal. Em geral, a graduação, os alunos de graduação, têm uma pressão demercado, de emprego. [ ] Eles querem é ver o paciente esticado lá no divã [Roberto ri]e começar a dizer o que [ele] sente em relação à sua mãe. Mais ou menos isso. Entãovocê vem com uma história de formiga que você esmaga e você quer dizer que isso éum modelo do ser humano, [que] esse é um modelo...É muito abstrato, muitoconceitual.

Walter - Eu não usei como modelo. Eu acho que essa coisa [de modelo] ...

Cesar - Não. Eu sei. Mas eu acho que é muito abstrato, muito conceitual. Agora, deoutro lado, eu acho que a contribuição ainda é menos direta. Primeiro, ela se dá a nivelde pós-graduação, principalmente. Agora, com a pós-graduação, nós estamos atraindo

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muita gente de áreas biológicas. Eu oriento muito biólogo, porque a minha área [ ] atraimais o biólogo.

Walter - Eu também acabei atraindo biólogos. Eu gostei deles.

Cesar - E aquilo se difunde, mas não só na biologia: com os cursos de psicologia [ ].Um setor em Ribeirão Preto que se chama Psicobiologia é um reconhecimento de que apsicologia tem que se integrar nas ciências biológicas. Recentemente a Universidade deBrasília nos mandou [informar (?)], estava realizando um concurso, estava querendoaceitar nos Departamentos deles um psicólogo que fosse psicobiólogo, isto é, que fosseda área limítrofe entre psicologia e biologia. [ ] Em Bauru, recentemente, se...

Walter - Mas nós estamos longe de chegar àquela situação a que Baerends92 se re-feriu, lembra? Lá na Holanda era o contrário, a etologia era uma unidade maisativa...93

Cesar - Walter, deixe-me dar-lhe uma medida de comparação. Eu fui à Espanha e, lá, oproblema deles, tanto [de] psicólogos [como de etólogos] é...[o do reconhecimentooficial(?)]. Porque lá [ ] , sempre, em todo lugar: você vai ter psicólogo interessado emcomportamento animal e etologia, e biólogo também interessado. E o problema deambos na Espanha é o seguinte [ ]. A estrutura curricular deles é muito rígida. Eles têmque conseguir que o Minitério aceite a idéia de etologia como uma área científica paraque ela passe a constituir departamentos [ ]. Quer dizer, você tem esse tipo de luta, umaluta de uma área recente, relativamente [ ], ainda sem uma estruturação, e, depois, pelofato de ela ser interdisciplinar - ela não é totalmente psicológica, puramente psicológica- ela não se sustenta só psicológica. Ela tem que, de certa maneira, contribuir para a psi-cologia, ao mesmo tempo que ela se nutre de outras fontes. É lógico.

Marina - Além disso, também, tem uma contribuição indireta, não é? Por exemplo, eunão vejo, assim, incompatibilidade entre eles em conjunto. Por várias pessoas queconheci, que foram alunos [seus], que mesmo não se interessando depois pela áreaespecífica, [ ] foi muito marcante, por exemplo, a experiência do seu ensino com elespara ajudar na refexão, por exemplo. Isso sempre serve, mesmo para quem vai trabalharcom clínica.

92O professor Gerard P. Baerends, influente etólogo holandês, que participou, a meu convite representando aSociedade Latino-Americana de Psicobiologia, do 1o. Congresso Latinoamericano de Psicobiologia, realizado emSão Paulo em dezembro de 1972, e que ministrou palestras para o nosso Departamento por ocasião de sua visita.93O professor Baerends dizia que a etologia, na Holanda, constituía uma área de ensino e pesquisa maisdesenvolvida e prestigiada do que a psicologia.

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Cesar - Eu acho que sim. Agora a coisa já está no nível de enorme aceitação. Eu acho.Principalmente nas áreas biológicas. O que se entende, é lógico. Eu tenho dado cursosde comportamento animal relativos à área no Congresso de Zoologia. É uma audiênciaimpressionante. Aí me [vem] uma impressão curiosa: [a de] que nós, dentro dapsicologia, viemos trazer para os biólogos uma área que deveria ser deles [Ri].

Marina - É interessante.

Cesar - E aquilo está [ ] crescendo muito, a ponto de interessar Faculdades deVeterinária, [ ], Departamentos de Ecologia, Biologia, Biomédicas, etc., etc. Então,acho que tem... que não tem o seu94 futuro.

Marina - O que é bonito, porque é uma área que, como é interdisciplinar, permite umaabertura da psicologia que, noutros setores, [ ] pode ficar muito fechada, por exemplo.Permite a presença da psicologia no contexto das ciências, de outras ciências também.

Cesar - Isso! Isso!...É, eu acho que o que é importante - não sei se realmente tudo - vaiser... Quer dizer, é difícil você, historicamente, explicar a origem de algo como sendolocalizada porque são várias fontes, não é? Mas, de qualquer maneira, eu tenho aimpressão, eu fico contente com essa idéia de que, num certo momento, nós estivemosindependentes da matriz ...

Marina e Roberto - [Assentem]

Cesar - ...escapamos a um tipo de pessoa que vinha aqui, não estava lá nessaproblemática. E, hoje em dia, se você consultar as revistas que lidam com psicologiaexperimental animal, você vai ver que a influência da etologia é enorme lá, nos EstadosUnidos. Então acho que foi uma coisa interessante, assim, em termos históricos, achoque isso é curioso.

Roberto - É. Vocês têm a vantagem de não terem sido formados - um fato novo -diretamente ligados a uma linha que estava sendo desenvolvida.

Cesar - Não que eu critique isso. Veja, eu não critico, eu acho que o saber [ ], aaquisição do saber, a difusão do saber, sempre será assim: alguém vai sair, vai fazerestágio em algum lugar, vai adquirir o "know-how", vai trazer de volta. Ou, então, vocêchama um professor de fora. Eu acho que assim vai ser sempre.

94No original: "teu" (isto é, parece: do Walter, no sentido de que a etologia por ele trazida não havia realmentesido uma semente que caíra em terreno sáfaro).

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Roberto - [Assente].

Cesar - O processo de copiar, em termos científicos e de idéias, não é uma cópia quevocê colocaria como não ética. Não, é parte do processo. Isto é, o conhecimento ci-entífico tem que se difundir dessa maneira, se não, como é que ele se difunde? Vocêcria uma técnica diferente, aquilo interessa a outros pesquisadores que vêm, fazem umestágio com você, aprendem aquilo, [ ] adquirem aquilo e vão levar adiante. Então,acho que isso faz parte, não [é] que eu critique que a gente [ ] tenha absorvido osmovimentos americanos quando eles surgiram. Acho que é assim. Piaget foi uma fontegrande para nós, etc. e tal. Eu acho que é bom.

Marina - [Assente].

Roberto - Espera! Mas quando você fica atrelado durante décadas, e está semprecorrendo atrás, com aquele atraso que você diz, a gente fez...

Cesar - Os grandes são melhores. Os grandes são melhores até em termos de equi-pamentos, de técnica, de metodologia, de preparo. Aí, quando você os está alcançando,eles já pensaram em outras coisas.

Roberto - É.

Marina - É que eles são mais práticos.

Walter - É interessante: eu fiz uma reflexão nos Estados Unidos - [foi algo que reflete]um pouco a minha experiência nos Estados Unidos, vendo aquela riqueza deles, a fa-cilidade com que eles trocavam de equipamento... Enquanto eu estava lá, num ano euassisti pelo menos a duas ondas de modas na psicologia. Uma delas era o estudo dasubcepção, percepção subliminar. Aquilo entrou em voga e estava no auge quando eucheguei lá, e [já] estava caindo. Depois a outra foi o papel tanto do significado comoda estruturação semântica de uma língua na retenção, na memória. É o fato de que vocêguarda muito mais o material com sentido do que sílabas sem sentido. Então, haviauma montanha de trabalho sendo feita nessa linha. Tudo isso durante a minha estada lá.Eles, com grande rapidez, mudavam o equipamento, mudavam as coisas que eramnecessárias, mas, para os alunos, eles usavam aquele sistema improvisado [em que]você monta, faz o seu equipamento, [ ] o seu aparelhinho para estudar percepção...Quer dizer, eles davam um pouco de maleabilidade para os alunos. Mas eles tinham ascoisas mais sofisticadas, encomendadas para serem feitas, para funcionar direito, parapoder fazer pesquisa. E os alunos eram usados como sueitos nas pesquisas deles. [ ]

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Então me ocorreu. Eu disse: olha, lá no Brasil nunca vamos poder acompanhar amoda no mundo. Primeiro, porque, até a gente fazer importação - se conseguir verba - amoda já passou, e nós vamos entrar atrasados. E, segundo, porque talvez nós nãotenhamos tradição nesse trabalho, e tudo. Precisaria vir aqui alguém primeiro e ascoisas passam muito depressa. Então eu pensei: olha, nós temos que fazer alguma coisaque independa de equipamento, que só dependa de boa cabeça - se houver uma boacabeça para ver... Tem que ser uma coisa acessível, e, aí, nesse caso, a saúva mepareceu um bom objeto para mim. Quando eu resolvi escolher aquilo, eu falei: vai serum bom objeto, porque ela tipificava o comportamento instintivo. Eu tinha lido umnorueguês, Fabricius95 (acho que era um norueguês), [que] falava algumas coisas sobrea saúva, mostrava que era uma das coisas maravilhosas, em termos de instinto, ocomportamento dela. E eu pensei: está aí. É um animal "nacionalista", não é? Quaseque só existe no Brasil, na América latina, é fácil de a gente encontrar, não vai serdispendioso, [é] vulgar. Eu acho que isso está certo, acho melhor do que você estar ...[copiando(?) Importando(?)]. Você viu quando o pessoal comprou o equipamento de[condicionamento] operante, esse equipamento que a gente considerava moderníssimo:lá, nos Estados Unidos, era pré-histórico, do ponto de vista de registro que eles tinham.

Marina - É porque tem que pensar os recursos para pesquisa mais amplamente que osequipamentos.

Walter - Como é que é?

Marina - Os recursos para pesquisa eu acho que têm que ser pensados mais ampla-mente do que o equipamento. É a boa cabeça, é o material, as coisas para observar quesão diferentes. Aqui é [uma] coisa, na Itália é outra, na Inglaterra é outra, em termos deobjeto, não é?

Walter - Se você pensar bem, alguns que tiveram êxito, assim, em ter algum renomeinternacional, conseguir nome (não é o meu caso, não consegui; também, não publi-quei, ninguém me conhece) [ilustram o que digo (?)]. Pavan96, não é? Pavan deve todoo prestígio dele97 ao fato de ter trabalhado com a Rhincociara, que é um bichinho quesó existe aqui que exemplificava a possibilidade de trabalhar com genética com grandesfacilidades, que o bichinho oferecia isto.

95Trata-se de Eric Fabricius, e não era norueguês, mas sueco. Sua obra, aqui referida, é La Conducta de losAnimales, traduzida do original sueco de 1961 por Amalia de Gesell. Buenos Aires: Editorial Universitária deBuenos Aires, 1966.96O professor Crodowaldo Pavan, já referido na nota de número 33, renomado geneticista, professor catedráticodo Instituto de Biociências da USP.97Conforme ouvi do próprio mencionado.

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Aliás, quando eu perguntei para Michener: "o que o senhor achou do Brasil?" (Éuma pergunta boba que a gente faz para estrangeiro) - [ele respondeu]: "Oh, eu gosteimuito". "Por que?" - "Porque lá tem muitos bichos" [Risos].

E nós não aproveitamos isso. [ ] Vários desses animais vão ser extintos antes quea gente tenha conhecido qualquer coisa sobre eles.

Cesar - É o caso dos primatas.

Walter - Ah, sim [Roberto: assente].

Cesar - E agora nós sentimos que os olhos do mundo inteiro estão focalizados nosnossos primatas, não é mesmo?

Marina - Sim.

Roberto - Em relação ao aspecto de estratégia, de fixar uma linha de pesquisa, [ ] agente explorou bastante os aspectos, vamos dizer, mais intelectuais. Mas, quando vocêcomeça a desenvolver um tipo de trabalho novo, num país ou numa instituição, énecessário você firmar aquilo em termos, por exemplo, de ter alunos, atrair alunos,formar gente. Mas existe uma porção de outras estratégias e outras indicações de quevocê está conseguindo firmar uma coisa. Então, queria saber se você tentou, ou pensou,ou não quis, por exemplo, fazer determinadas coisas, como criar um departamentoisolado, criar uma sociedade, uma revista, congressos, criar grupos ou ajudar a criargrupos em outras instituições semelhantes de tal forma que vocês tivessem uma forçacoletiva maior para firmar um determinado tipo de trabalho. Coisas assim... Como éque foi a sua estratégia?

Walter - Eu acho que sonhar com ser um Departamento separado a gente sonhou muitotempo. E a divisão [da Cadeira que resultaria em algo próximo disso (?)] acabouacontecendo. [ ] Com o curso de psicologia, a Cadeira inchou demais. Começou a termuitos professores, muitas matérias diferentes, e ficou meio evidente que eram doisgrupos de matérias: as ligadas à psicologia experimental, ao experimento, aolaboratório, e outro grupo, ligado à psicologia social. Então, [a divisão mencionada daCadeira começou] quando surgiu uma crise em 1968 - crise que consistiu, [no caso doCurso de Psicologia, e inicialmente], no fato de os alunos se revoltarem com aindicação da catedrática, [no fato] de que estavam se opondo a ela. Achavam que elaestava entravando o progresso da psicologia, não sei por que razão98. Eles achavam 98Era porque, sendo Dona Annita interina e não prestando concurso para a Cátedra, os alunos - que já nãoapreciavam nem suas aulas nem sua personalidade autoritária - julgavam que ela fragilizava a Cadeira ao mesmotempo que impedia que outros docentes conquistassem títulos e galgassem posições. Isto era em parte verdade,

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isso. Eles deviam ter as razões deles. Parece que eles não gostavam muito dela comoprofessora.

Cesar - A Dona Annita?

Walter - É, a Dona Annita... mais no relacionamento pessoal. Então, naquele tempo,havia as comissões paritárias, havia toda uma série de propostas de criar um curso maispaarticipativo por parte dos alunos. E, aí, a Congregação da Faculdade de Filosofiatomou a iniciativa de resolver o problema da ocupação - porque os alunos ocuparam onosso pavilhão na Cidade Universitária e disseram que a catedrática não entrava maislá: criaram esse caso. Então eles [os professores da Congregação] resolveram oproblema criando um Departamento - talvez... acho que o primeiro Departamento dePsicologia no Estado.

Cesar - Não, não, isso foi mais adiante - essa divisão de social e experimental foi maisadiante, não foi para resolver o caso dela.99

Walter - Não, não foi, mas a Dona Annita já [ ] falava na Cadeira como se fosse ofuturo Departamento de Psicologia Social e Experimental. Ela já falava isso: "Um diavai ter essa divisão". 100

Cesar - Sim. Mas, quando o Arrigo discutiu e aprovou a questão do Instituto, ele jáconvidou o Dante?

Walter - Ah! Sim.

Cesar - Ah! Sim. Daquilo houve um problema: a cisão do Departamento em dois.

mas contrastava com a enorme dívida que a psicologia tinha para com essa professora no que respeitava aoestabelecimento, entre nós, da psicologia como uma disciplina científica independente da filosofia, dapromulgação da lei de formação do psicólogo, da criação do curso de psicologia e da sua estruturação, bem comodo seu papel na formação de quadros, em anos anteriores.99Como a história da separação dos dois grupos de disciplinas é relativamente longa, e só se completou com areforma universitária de 1972, Cesar, provavelmente por não perceber que ainda faltava muito do relato para serapresentado, fez essa observação que parecia, então, pertinente.100Parece-me certo que Dona Annita já havia, mesmo, antes ainda da crise, enviado uma solicitação àCongregação para que a Cadeira de Psicologia fosse transformada no Departamento de Psicologia Social eExperimental, como primeiro passo para conceder independência ao nosso setor de Psicologia Experimental ePsicologia Comparada; e essa solicitação, sem dúvida, daria origem à solução criada pelo Conselho TécnicoAdministrativo da Faculdade para a crise do curso de psicologia: a transformação da Cadeira em umDepartamento, não como outros Departamentos já existentes na Faculdade, de hierarquia verticalizada esubordinados aos Catedráticos, mas de tipo e organização novos, com dissolução do poder dos catedráticos, comoo pretendiam os alunos rebelados de 1968.

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Walter - Mas Cesar, houve um momento, em 68, em que os alunos ocuparam o prédio,e o C.T.A. da Faculdade de Filosofia - não era a Congregação, era o C.T.A., oConselho Técnico e Administrativo - criou "o Departamento de Psicologia Social eExperimental, que seria o núcleo do futuro Departamento de Psicologia, ao qualdeveriam ser agregadas as outras Cadeiras e Setores existentes".101

Cesar - Certo. Certo [ ].

Walter - E isso foi [tomado como um signo de nossa ambição(?)], acho que deve terdespertado ciúmes noutros [setores]. O professor Arrigo estava viajando, estava naEuropa, naquela ocasião. Depois ele voltou e passou a participar das discussões.102 Masa idéia era essa mesma, de formar [um Departamento único], porque havia muitoproblema de coordenação: matérias eram repetidas, com nomes diferentes se dava omesmo programa e os alunos se queixavam muito dessa desorganização do curso emvários aspectos. Eu também achava que a criação do Departamento era por aí.

Nós sonhamos em ter um Departamento separado de Psicologia Experimental etrabalhamos por isso. Eu acho que nós, o pessoal mais ligado à psicologia comparada eà psicologia experimental, freqüentemente trabalhamos para conseguir essa separação,que acabou se concretizando pela reforma [universitária].

Cesar - Isto!

Walter - Acabaram dividindo [nossa antiga Cadeira], mas essa divisão era, acredito,menos por critérios técnicos [do que políticos]. Naquela ocasião [1972] a gente [já]não queria ser dividido. Ela acabou ocorrendo como uma forma de reduzir o poder dopessoal, porque um Departamento [dos dois em que seria desdobrado nossoDepartamento] seria tutelado e o outro seria pequeno, sem massa crítica, com poucopeso no curso de psicologia. Nós só teríamos [umas] poucas disciplinas.

Cesar - ...[ ] e uma titular que vinha de outro ...

Walter - E uma titular que vinha de uma outra escola!

Marina - De onde ela vinha? Minha pergunta é: como [veio para a Psicologia (?)]? 101O trecho entre aspas é o constante no próprio documento escrito pelo C.T.A. da Faculdade. Na verdade, alémda Cadeira de Psicologia só havia outra Cadeira, a Cadeira de Psicologia Educacional, chefiada pelo ProfessorArrigo Leonardo Angelini, e só havia um Setor, o Setor de Psicologia Clínica, dirigido pelo professor DurvalBellegardes Marcondes, e pertencente à Cadeira de Psicologia, embora dotado de certa autonomia administrativa.102Discussões, realizada pelas chamadas "comissões paritárias setoriais", sobre a criação, pretendida pelos alunose referendada pelo C.T.A., de um Departamento único de Psicologia, a ser dirigido paritariamente por professorese alunos.

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Walter - Ela veio da Educação Física.

Cesar - Sim, porque, com a reforma, você [ ] realocava os professores. Por exemplo,todos os que davam fisiologia... O que dava fisiologia na Educação Física ia para asbio-médicas, no caso, [ou] bio-ciências. E havia uma professora titular de psicologia naEscola de Educação Física. Então, ela foi realocada e ficou no Departamento dePsicologia Experimental.

Walter - Foi a professora Maria José.

Cesar - ...Mondego de Morais Barros.

Walter - É. Mondego de Morais Barros, parente do Adhemar de Barros, da família dosBarros, tradicionais. [ ] Era uma senhora muito distinta, muito correta, e não foi tratadacom a devida consideração, no começo. Não por nós.

Cesar - Não por nós.

Walter - [ ] Eu acho que o Instituto, a Faculdade, dispôs da vida dela como se ela fosseuma coisa: "Tem que sair de lá, vir para cá". E ela estava muito magoada com isso.Mas ela viu a nossa aflição e ela soube, acho, se portar bem. Na verdade, eu disse a ela:"Professora, nós vamos fazer um Departamento, a senhora é a chefe, mas nós aquitemos uma tradição democrática. O que governa o Departamento é a reunião dosprofessores. É difícil governar nessa situação porque uma decisão custa a ser tomada.Ela é discutida, isso toma tempo, mas o pessoal gosta assim, e gostaria que continuasseassim."

Eu, como era o vice-diretor, funcionava como diretor. Eu e o Cesar tínhamos atarefa de administrar (O Cesar era parte do Conselho), porque ela ia lá assinar os papéise tomar conhecimento das decisões que eram tomadas. E, às vezes, ela dizia: "Isso aquieu não assino..."

Fim do lado B da fita 4.Início do lado A da fita 5:

Cesar - Eu acho que você deveria mencionar também a participação na psicobiologia -na Sociedade Brasileira de Psicobiologia.

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Walter - Uma coisa que fizemos foi [essa sociedade]. Naturalmente aí entrou a expe-riência de outras pessoas, [ ] mais experientes. Nós [do Departamento de PsicologiaSocial e Experimental] acabávamos de entrar em contato com o Carlini103, que veiopedir um curso de pós-graduação para eles [professores e alunos de sua secção,melhorl, umas disciplinas nossas como contribuição, e, então, surgiu a idéia de fazeruma Sociedade Latino-Americana de Psicobiologia em que a etologia entraria, emparte. Isso foi muito bem recebido por nós.

Então eu fui um dos fundadores da Sociedade Latino-Americana de Psicobiolo-gia, que teve grandes ambições. Ela, num certo momento, resolveu [ ] fazer umcongresso - I Congresso Latino-Americano de Psicobiologia - em que convidaríamos,traríamos e pagaríamos as custas de hospedagem de nada menos que 33 professoresestrangeiros. Um congresso assim...[mirabolante (?)]. A nossa sociedade não tinharecursos, e resolvemos fazer, e foi uma das coisas que nós conseguimos fazer. Eu achoque não chegaram a vir 33, ...

Cesar - Mas veio muita gente.

Walter - ...mas veio muita gente de fora. Foi um congresso muito bem organizado.

Roberto - Isso é feito com 100 mil dólares, mais ou menos [Rindo].

Walter - Nós conseguimos recursos. O Carlini sabia como extrair recurso, ele éextraordinário nesse ponto. Ele extraiu da indústria farmacêutica, extraiu do BancoReal,..Cesar - ...do CNPq...

Walter -... do CNPq, extraiu de não sei o que e, além disso, cobrava também partici-pações. E conseguimos falar com um assessor do prefeito. Quer dizer, na verdade, nóssó conseguimos isso (que tomo um pouco como exemplo [do que é] o Brasil - sempreme lembro disso), nós só conseguimos organizar um congresso dessa maneira, bemorganizado, com tradução simultânea, no Anhembi, com hospedagem para todos,porque a Dora - a nossa colega Dora Fix Ventura, filha de um dos donos da Deca que,por sinal, era sócio do Olavo Setúbal104 e de Laerte Setúbal - [ ] conhecendo o "titio",como o chamamos [risos], conversou com ele e disse: "Olha, nós [precisamos]105 103O professor Elisaldo Araújo Carlini, então Chefe de uma secção de Psicobiologia (posteriormentetransformada em Departamento de Psicobiologia) da Escola Paulista de Medicina.104Na época, prefeito de São Paulo.105No original está "precisaríamos", mas acredito que "precisamos" estaria mais próximo do acontecido, poisacredito que Dora, conhecedora da linguagem pertencente às classes dominantes, não empregaria uma expressãoque já supõe uma desistência.

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organizar um congresso. É muito importante, é isto e aquilo". Ele falou: "Conversa como meu assessor fulano de tal".

Aí nós vestimos a roupa mais bonita que tínhamos [risos], domingueira, e[dizíamos uns aos outros}: "Você está bem, [elegante], e tal", para dizer, para mostrar:"Nós somos classe dominante mesmo. Nós não precisamos de dinheiro, e coisa e tal". Echegamos. Foi tudo estudado: "Nós temos que chegar assim" - o saber da classedominante. A Dora tem [esse jeito], ela consegue fazer, acho que é natural dela - elaparticipa dessa classe, ela tem uma certa desenvoltura. Fomos recebidos pelo assessor,que disse: "Não precisa nem falar nada, eu estou sabendo. O Olavo me falou. Vocês sóme trazem o projeto, que eu quero examinar. Me trazem tal dia, tal hora".

E, depois, fomos levar lá o projeto. E conseguimos. Aí eu fiquei pensando: nóspodíamos ter convidado 3.300 professores estrangeiros, [risos], que seria muito melhor,etc., etc., mas se não fosse o conhecimento da Dora, não teríamos conseguido, e ocongresso não se realizaria. Isto é Brasil. Ou não é? Esta é uma das [suas] realidades.

Revista... não é, Cesar? Eu acho que, durante um certo tempo, pensou-se emfazer a Revista de Psicobiologia. Inclusive, fui parte de uma comissão com o Cesar .

Cesar - [Assente].

Walter - A gente estudou a criação de uma revista [ ] que serviria para divulgar aSociedade de Psicobiologia. Nós sempre hesitamos, porque nós achamos que aSociedade de Psicobiologia está ficando cada vez mais uma sociedade depsicofarmacologia e a gente se sentia um pouco deslocado ali. Mas, em todo caso,poderíamos [publicar] aí dentro também, e fazê-la. Chegamos a pedir verba para oCNPq também.

Cesar - É. É o caso que não veio...

Walter - Aliás, nesse ponto de pedir recursos eu fui bastante crédulo. Acho que, du-rante anos, eu participei de tudo quanto era pedido: para a CAPES, para o CNPq, para oque me aparecesse. Eu fazia os projetos, explicações, aquela coisa toda, durante váriosanos, num comportamento persistente, que não se extinguia, porque era sempre "não","não", "não", "não", "não"...

Para não dizer que não consegui nada, consegui algum equipamento da CAPES,alguma verba, alguma suplementação de verba para a pós-graduação, para comprarfitas, papel, para alguma coisa. E algum equipamento - uma câmara clara, alguma coisanós conseguimos.

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Depois é que vocês106 conseguiram pela FINEP. Aí eu já estava desistindo,quer dizer, aí eu não ia entrar em projeto nenhum porque eu tinha decidido: "Eu nãovou aceitar mais orientandos, porque eles levam um certo número de anos; não voucomeçar projeto novo, porque acabo me prendendo", e eu não via a hora de sair doDepartamento, o que, para mim, era visto como uma libertação [risos], embora a minhavida fosse ligada ao Departamento e eu tenha sofrido demais [ ] e lutado demais peloDepartamento.

Cesar - Acho que você precisa dizer também que você assumiu a chefia um poucoantes de se aposentar. Quer dizer, você pegou essa masmorra...[Ri].

Roberto - Ah...

Walter - Na verdade, eu também não fiz livre-docência para não ter necessidade de serchefe. Porque eu fui chefe no tempo da professora Maria José, secundariamente; eravice, mas na verdade eu é que tinha que responder pelo Departamento, eu é que tinhaque falar com o Diretor, eu é que tinha que procurar os órgãos, [ ] que fazer as cartas,que convencer o pessoal do que nós íamos fazer. Era chefe sem ser, o que era piorainda, porque as honras eram todas dela. Chegava a hora de ir à Congregação, nãopodia ir [risos], era ela que ia. Então eu ficava em dúvida se ela tinha defendido direitoas coisas, porque as brigas com a Diretoria eram constantes. Porque nós tínhamospoucas matérias, não conseguíamos contrato nenhum. Enquanto eles [do departamentoa que pertencia o Diretor] eram 14 pessoas no começo, nós éramos 12 ou 13 pessoas.Depois de vários anos, eu já estava próximo da minha aposentadoria, nós éramos 14 ou15 pessoas, eles eram 33 no outro departamento, só para se ter uma idéia. Então elesestavam criando matérias, inchando o curso de psicologia com "Rorschach I","Rorschach II", "Rorschach III" [risos], esse tipo de coisa, e a gente não podia dar umcurso específico de psicologia da percepção (uma matéria). Teria que dar dentro da[disciplina] psicologia experimental. Nossa participação é pequena para não termoscomo justificar contrato. Então, no meu tempo de chefia [mesmo - já não mais eraapenas vice-chefe], eu fui fazer uma luta com o reitor para conseguir algumascontratações. Eu descobri [ ] - mas essas coisas não são contadas para o inimigo, não é?- que a maneira de conseguir contratação é justificar algum projeto novo. Não existeverba para contratar [ ] para o existente, mas, se for para a implantação de um serviçonovo, então existe.

Aí nós inventamos uns serviços novos, umas áreas novas, e eu fui convencer oReitor, fui conversar com ele. Então eu disse ao diretor: "Olha, o senhor vai-me

106"Vocês", referindo-me a Cesar, ali presente, e aos meus antigos colegas de Departamento.

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permitir falar com o reitor". Aí ele quis ir junto. "Ah, então o senhor vá". Eu queria vera atuação dele. E, inicialmente, ele se empenhou. Quer dizer, ficava feio ele não seempenhar, não é?

Foi uma época em que me empenhei demais, em que lutei demais pelo De-partamento. Eu tinha uma identificação [com ele], acho que, se o Departamentosofresse, eu sofria junto. Mas depois - [já] mencionei essa coisa - eu olhava o depar-tamento como um foguete: eu queria me lançar dele de pára-quedas e nem olhar paratrás, para o meu destino [risos], de tão "cheio", tão enfarado que eu estava de estar alitrabalhando. [Eu] tinha uma vida de postergar os próprios objetivos em função [dele].

Eu não posso culpar inteiramente o Departamento, eu acho que essa é a situaçãoda psicologia. Não havia ninguém, não havia tradição, tudo estava para ser feito, e SãoPaulo era o vade-mecum das necessidades do Brasil. Então, para fazer o curso de pós-graduação, consolidar esse curso, [ ] enquanto o pessoal não fazia doutoramento - nãohavia doutores - a gente tinha que acumular, dar matérias que não dava antes, durante2, 3 anos seguidos [ ] os que tinham títulos [ficavam] acumulando uma carga didáticaenorme, para os outros fazerem as [suas] teses. Tudo isso acho que acabou pesando.Mas, na hora que eu falei isso [de lançar-me do foguete], na Congregação, que eu iame aposentar, ia fazer assim, eu falei, já estava chorando. Quer dizer, na verdade euestava tão ligado ao Departamento que era um absurdo o que eu estava falando. Comoalguém pode se desvincular? Para minha surpresa, eu saí de lá e foi mais ou menos issoque aconteceu. Eu pulei e não olhei para trás. Eu podia estar dando aulas, podia estarterminando [os trabalhos] com os orientandos, e, realmente, não olhei para trás e...nãoestou arrependido [Risos].

Roberto - Uma coisa que eu já devia ter colocado antes, que eu esqueci: quando vocêestava se referindo ao início de sua formação, etc., o modo como você tinha seenvolvido com leituras de filosofia - você acabou fazendo curso de filosofia - [ ] vocêpoderia, quando terminou o curso de filosofia, ter seguido uma carreira em filosofia?Houve essa possibilidade ou já estava claro nessa hora que você iria para a psicologia?

Walter - A única ligação maior que eu tinha com a psicologia era que eu trabalhava naCMTC convidado por um ex-professor da Escola Normal, que lecionava psicologia,professor Guaraciaba Trench. Era Chefe da Divisão de Seleção e FormaçãoProfissional da CMTC. Ele perguntou se eu queria trabalhar lá, fazer umas provas, umconcurso para poder ser aprovado. Era uma melhora substancial de ordenado, porqueeu trabalhava em um banco, detestava aquilo, e, embora [fosse trabalhar] um poucomais de tempo, era mais criativo, era um pessoal de mais nível, eram todosuniversitários, tanto que o pessoal de elite da CMTC [ ] costumava ser retirado dessaDivisão. Se eu tivesse permanecido lá, eu estaria bem melhor, em termos financeiros,

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em termos de prestígio e, talvez, em termos de [qualidade] de vida, porque era bemhumorada a companhia deles, era muito agradável o lugar.

Mas eu achei que era uma oportunidade única ir para a Universidade, porque euvisualizava a Universidade como um lugar onde você pode se dedicar ao estudo, àreflexão, à pesquisa. E é essa idéia que você quer validar e não consegue. Eu acho quea Universidade é isto, mas [ ] a grande custo. [ ] Acima de tudo, ela é outra coisa.

Quando eu me formei, eu tinha interesse mais evidente pela psicologia do quepela filosofia porque, no último ano, havia duas matérias que a gente poderia escolhernas Cadeiras mais ligadas à filosofia ou [nas] mais ligadas à psicologia, e eu escolhiligadas à psicologia. Então, acho que, com isso, os professores de filosofia que játinham me cortejado um pouco não consumaram o convite. Um deles tinha sido o CruzCosta, que perguntou o que eu acharia de trabalhar no Departamento de Filosofia, e eufui um pouco franco com ele: eu disse que tinha mais ligação com a história dafilosofia do que com a matéria dele. E o Lívio me perguntou se eu gostaria de trabalharcom a história da filosofia. Eu falei: "Gostaria, mas sabe? eu tenho um pouco mais deligação com a psicologia. Se eu pudesse lidar com o problema da vontade, o problemada representação, aí eu acho que [gostaria ainda] mais do que [trabalhar com]história". Acho que isso foi uma ducha de água fria [ ].

O convite para a psicologia veio quando eu já não esperava mais. Eu estava naCMTC, um dia o Dante Moreira Leite me telefonou, marcou um encontro - isso eu jácontei,

Roberto - Hum, hum.

Walter - Mas poderia ter sido a filosofia. Mas, de certa forma, acho que eu não sou fi-lósofo. Conheço muito de filosofia, [no entanto] li muito menos, mas infinitamentemenos do que gostaria. Programei para o meu final de vida um reencontro com asorigens, com a filosofia também, mas que vai sendo dilatado. Mas eu nunca separei: oque eu fiz tinha sempre uma mistura de filosofia com psicologia com [ciência]. Eununca separei a formiga do ser humano, da minha própria experiência. Essas coisastodas estavam juntas, solidárias, e eu tentava resolver tudo ao mesmo tempo. É umimbróglio. [ ] Mas podia ter sido a filosofia, sim. Eu acho que acaba sendo a filosofia,no fundo, a minha contribuição maior [ ] porque eu tenho esse modo de ver - não sei sefoi você [dirigindo-me a Roberto] que fez a revisão do meu artigo que eu escrevi aquipara os "Cadernos de História da Ciência"?

Roberto - Uma das revisões eu fiz. Passa por 3, 4 pessoas.

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Walter - Que me lembre, você é que escreveu uma carta pedindo que eu tirasse certascoisas, fizesse umas modificações, [ ] e eu notei que [havia] uma série de modificaçõesno texto. Inclusive, eu estava me aprontando para protestar. Como é que iam modificar[a redação] assim sem pedir autorização? Agora, eu fui confrontar com o original e,quase que sem exceção, tinham melhorado o texto [risos], e, se for para falar mesmo,está mais claro ou mais bem escrito assim.

Cesar - Você podia mandar uma carta de agradecimento [Risos]. O dez da dor [Risos].

Walter - É, vou testemunhar, sim, ...

Roberto - "Voces vão ter. Pessoal abusado, hein?" [Risos]

Walter - Mas eu achei mesmo esse pessoal meio abusado [Risos]. Ali, no trabalho, eudiria que parece que a filosofia está-se concentrando cada vez mais numa reflexãosobre a natureza da atividade do espírito - da reflexão, do espírito mesmo. Parece-meque, [no passado], à medida que a filosofia arrumava um objeto e o [respectivo]método para um determinado campo do saber, [este] se tornava independente, sedesvendava. [Assim], a reflexão dos primeiros filósofos era uma reflexão cosmológica[ ], e levou à física, à astronomia, a uma série de coisas. Parece-me que isso está ocor-rendo com a psicologia. Há uma concentração, há muito trabalho que é uma retomada,ou do espírito, ou de manifestações do espírito, como a linguagem, a expressão, amaneira de estabelecer a verdade, [etc.]. Então, eu tenho a impressão que essaconcentração acabará um dia levando também a uma definição. Eu acredito que, decerta forma, eu estou fazendo isso - uma espécie de reflexão sobre a natureza da mente,do espírito, e o que é isto, como isto poderia ser estudado com sentido, não é? Mas,como a tradição da nossa ciência é que a ciência é do observável, a gente tem quefocalizar mais o comportamento, e alguns chegam ao ponto de dizer que vai sernecessário criar uma outra ciência para lidar com a mente. Acho que Skinner chegou aesse ponto. O Luiz Claudio107, [nos seus primeiros tempos de docência], você viu[dirigido a Cesar], falava isso também, que as peculiaridades da experiênciafenomênica são tais que ela nunca se prestará [para a] ciência. Mas [isso] é prejulgar acoisa. O fato de você não ter encontrado a solução para um problema não permite avocê dizer que esse problema não tem solução. ...

Cesar - Depende do que você chama "experiência". Por exemplo, a psicologia nasceucom Fechner. Fechner, exatamente, lidava com a experiência, e de uma forma até certo

107Professor Luiz Claudio Mendonça de Figueiredo. Parece-me que a expressão no texto se refere a duas épocasdistinguidas pelo autor nas preocupações de Luiz Claudio, uma - a mencionada - de adesão ao experimentalismona tradição skinneriana, e outra, mais recente, que parece situá-lo mais como filósofo e historiador da cultura.

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ponto objetiva. [ ] Antes de Fechner, Weber. Eles lidavam com a experiência de umaforma razoavelmente concreta.

Walter - É, mas eles [os skinnerianos] cometem um erro semelhante ao de Watson:eles culpam o objeto pela falta de progresso da ciência. O objeto que é opaco deve serjogado fora. [Ora], um objeto não pode ser culpado. [O que se passa], eu acho, sabe, éque realmente não se encontrou ainda uma maneira de lidar com os fenômenos daexperiência, os fenômenos internos, mas, no dia em que for encontrada, pronto, [essainvestigação] vira ciência - ciência natural, por que não? A natureza também contémreflexão, pensamento, espírito, pelo menos internos.

Marina - É... Porque eu tenho a impressão que a outra [significação] em que eu falo"objeto" se presta muito mais facilmente a uma redução, no sentido que é mais fácil[lidar com o externamente observável], mas também pode ser uma redução [ ] daspotencialidades da ciência, das pesquisas, como um fim. Eu reduzo as minhaspotencialidades, os meus limites, a algo que poderia ser encontrado.

Walter - Eu não sei... Eu acho que também não é só, Marina. Eu acho que há uma certatradição que se explora. [ ] O prestígio da ciência física, o prestígio da ciência danatureza é muito grande, principalmente na psicologia. Todo psicólogo adota comomodelo as ciências físicas, não é? Ele quer preconizar métodos e formas de trabalharapontando sempre para o exemplo da física. Então ficou assim essa idéia de que averdade na psicologia deve ser estabelecida da mesma forma, que é através doconsenso, através da replicação. A replicação é o critério de verdade. Mas eu acho quehá um outro critério de verdade que não abandona as pessoas. Eu custei a perceber isso.O outro critério é harmonizar o conjunto de dados da experiência, e isso Tolman medizia com muita clareza. Ele dizia: o papel da ciência é o de ser um mapa que nos guiade um momento da experiência a um outro momento da experiência e que seja capaz defazer essas pontes, essas ligações corretamente. Então, [ ] a psicologia não lida comuma realidade diferente da realidade da física ou de outras matérias e nem a física lidacom um mundo inteiramente diferente do mundo da psicologia. [Elas] sãosimplesmente maneiras de você partir de um momento da sua experiência a outro econectá-los, fazer sentido com eles. Tolman tinha essa visão, que eu acho muitointeressante.

Mas isso dá um outro critério de verdade, que é o usado na psicanálise. Então,parece que são duas coisas incompatíveis. Na verdade, [há] o critério da psicanálise,que é [fornecido pela] coerência interna dos fatos, o ajuste do conjunto dos fatos unscom os outros No entanto, eles [psicanalistas] não conseguem um acordo entrediversos observadores do lado de fora porque não há possibilidade desse acordo. [ ] Jáos experimentalistas usam um outro critério de verdade e abandonam o outro. Eu acho

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que não, acho que têm que ser os dois usados conjuntamente. Você vê: o acordo deexperiência não impediu às vezes que surgisse uma dissidência na representação comoa [que surgiu] no mundo de Copérnico, não é? Havia milhões e milhões de pessoas queviam o movimento dos astros como um nascer no levante e um pôr-se no ocaso, noocidente, e isso não impediu que alguém tivesse uma visão diferente ou tivesse umaidéia diferente, e que essa idéia diferente [vingasse]. Enquanto eu não estiverconvencido, se eu não convencer uma pessoa no foro íntimo, há a possibilidade de umadissidência. Então, as maneiras que a ciência usa para persuadir e convencer acho quetêm sido parciais, na psicologia pelo menos.

Nos outros campos acho que não há outro critério mesmo, [o estabelecimento daverdade] tem que ser através da replicação, do acordo entre diversos observadores.Mas, no caso da psicologia, acho que nós temos um critério a mais para ser levado [emconta] [ ]: isso bate com a minha experiência? Faz sentido com o conjunto da minhaexperiência? Então, em parte também eu acho que, nessa tradição de dizer que ofenômeno da experiência não se estuda, ou não é estudado cientificamente, primeiro háessa confusão [com] a palavra "objetivo". Ela pode ser usada assim: geneticamente, aminha percepção, o meu conhecimento, nasce dentro de mim ou nasce da observaçãoexterna, nasce de alguma coisa que é externa a mim. Então ela nasce da percepçãoobjetiva numa percepção subjetiva. Os fatos que eu vivo internamente são percebidossujetivamente. Agora eles [os behavioristas] dizem: "Bem, a ciência é do objetivo.Então ela não estuda o fato sujetivo". Mas aí eles já passaram...108 Mas, quando elesdizem "a ciência é do objetivo", eles querem dizer "a ciência é do demonstrado e doexistente", e aí eu acho que há uma contaminação dos sentidos e uma manipulaçãodesses usos de "objetivo" e "subjetivo". Há um pouco de cientificismo atrás [dessesusos] que você sente [ ] nitidamente. Por exemplo, uma parte do meu trabalho foirespeitada, não porque o pessoal o entendesse, mas você tinha um laboratório, vocêtinha uma manifestação concreta [da ciência] [risos] naquela atividade. Então, se fosseimportante só o laboratório, eu poderia colocar as pessoas a contarem as formigas quepassam [risos] por uma determinada folha e basta isso: está[-se] fazendo um trabalhode laboratório. Colocava 50 alunos para fazer esse trabalho [risos] e pronto, estoufazendo um trabalho científico.

Mas há esse prestígio... Depois me chega uma visita. O próprio Diretor leva asvisitas, os professores estrangeiros, para mostrar, como uma das salas de visita dele, olaboratório de formigas: "E veja o que há de mais...[original(?)]". E vários - váriosvisitantes - diziam assim: "Ah, isso eu quero ver [risos] como é que é!" Porque isso era

108Parece-me que eu iria dizer: "Mas aí eles já passaram, subreptciamente, a outro sentido de "subjetivo": o que oopõe a "objetivo" como significando existente, quando na verdade o sentido importante aqui era o genético.

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novo. Agora, o laboratório de condicionamento operante eles estão cansados de ver.Dizem: "Isso eu não quero nem ver. Isso eu conheço. Não quero"[Risos].

Uma parte do meu prestígio vinha do fato de eu ser um pouco curioso, mas, aomesmo tempo, eu dava, assim, uma forma de eles [os que traziam os visitantes (?)]esconder a pobreza, esconder a falta de originalidade do trabalho [risos] [realizado nolaboratório deles]. Então, ser uma curiosidade também tem esse significado.

Se retomo o trabalho de certos autores, [como], por exemplo, Pavlov, vejo queele tinha um cientificismo, [expresso] no elogio da observação, do experimento. Eleabsolutamente "não estava fazendo psicologia": estava era fazendo "um estudo daatividade superior do sistema nervoso". É um colocar as coisas de tal maneira que,junto com o prestígio da realização das ciências fisiológicas, físicas, etc., ele secolocava junto. Um pouco desse prestígio respingava nele. Mas eu não via assim. Euvia uma generalização muito fácil. Eu fiquei decepcionado com Pavlov. Muita coisaassim..., [n]uma leitura dele mesmo, tem um ranço objetivista. Não é objetivista: é umranço cientificista [ ].

[Como o há] atrás, por exemplo, do estilo, não é? Eu fui muito criticado por terescrito na primeira pessoa. [E, dirigindo-se a Cesar]:

- Você escreveu na primeira pessoa?

Cesar - Algumas coisas.

Roberto - A tese?

Cesar - As que mais me divertiram eu escrevi na primeira pessoa. Aí eu descubro que,quando você se coloca como parte da coisa, é uma coisa honesta, justa.

Marina - É verdade.

Cesar - A gente costuma usar uma linguagem impessoal, que é a mais comum. Escrevi:"Observou-se que..." [Risos]. Mas, na hora em que você escreve "eu observei" ficamais vivo. De repente, ...

Walter - É. Eu acho que, até, na arguição da tese... [fui criticado pelo uso da primeirapessoa gramatical].

Cesar - Mas tem sido a praxe. a praxe é que você não usa o "eu".

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Walter - É. De certa maneira é uma praxe...

Roberto - Nesse caso de observação - bom, eu nunca trabalhei com a coisa ex-perimental - não consigo imaginar como é que você diz que observou sem dizer que foivocê. Aí eu sinto que isso...

Walter - Geralmente é colocado o tratamento no plural: "Foram observadas". "Cons-tatou-se", etc.: coloca-se de uma forma impessoal. Ou senão você coloca "nós": "Nósfizemos..." Etc. Mas é um "nós"que é "eu" também.

Roberto - [Assente].

Walter - Então eu recebi algumas críticas nesse sentido, de que eu devia me tercolocado numa linguagem mais impessoal, que é mais compatível com a ciência. Eucomecei a pensar nisso, escrevi até um textozinho que nunca cheguei a publicar. Faziaparte de uma das teses que eu estava escrevendo, de livre-docência. Aí eu disse: issonão é verdade. É muito mais objetivo você dizer - quem fez, fez: "Eu observei", fui euque observei. É muito menos imodesto você dizer [ ] "eu fiz", "eu observei", porquevocê confronta o leitor com uma pessoa singular, individual, ao passo que quando vocêdiz "observou-se que", "viu-se", parece que você está colocando "a ciência fez", "ocientista fez". Então, essa colocação impessoal é muito mais imodesta e convida muitomais à aceitação não crítica do que a colocação na primeira pessoa.

Roberto e Marina - [Assentem].

Então eu sempre preferi isso. Mas eu acho que até no estilo você reconhece.Houve um professor lá de Ribeirão Preto que participou da argüição de uma tese de umaluno meu. Ele era muito objetivista e fez essa observação. Ele disse: "Olha, a sua teseestá versada na primeira pessoa e devo dizer a você, só li porque sou seu amigo"[risos], "você escreveu, mas, [geralmente], [ ]se a pessoa tiver o relato dela na primeirapessoa, eu nem olho, porque isso não tem suficiente isenção, suficiente objetividade"[Risos].

Agora, a objetividade... A pessoa tem que ser suficientemente objetiva para nãodizer que ela sofreu, que ela gozou, que ela teve entusiasmo com aquilo que elaencontrou. Que relato objetivo é esse que omite toda a reação do indivíduo, o que [o]impressionou nisso, as reflexões disso... "Isso não me interessa. É uma reflexãopessoal". Mas [tal relato] acaba sendo um relato depurado segundo um gostoobjetivista e cientificista. Quer dizer, parece que eu tenho que ter um juiz atrás [demim]: "A comunidade não está interessada nos particulares". Como se houvessealguma coisa além de particulares no que a pessoa fez.

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Fim do lado A da fita 5, início do lado B

Roberto - Você tem anotações de tudo que você fez desde 66, uma coisa assim?

Walter - Não, antes. Desde 1960.

Roberto - Antes? Quer dizer, todo o trabalho das formigas, etc., você tem? As a-notações que você fazia?

Walter - É. Eu tenho, vamos dizer assim, os diários, os apontamentos. Quer dizer, acoisa está ali, bruta, para elaborar. Tenho folhas de cálculos. Não sei se guardei todas,acho que provavelmente não. Folhas de cálculos com as reflexões, propostas, etc.,talvez eu não tenha guardado [todas]: quando escrevi parte do texto devo ter jogadofora. Mas esses registros originais, no caso das observações, ainda estão lá.

Roberto - Porque isso a gente teria interesse grande em conservar. Por exemplo, sevocê pudesse emprestar para a gente microfilmar esse tipo de material. Coisas tambémem que a gente teria interesse: por exemplo, durante a época da criação do laboratório,essas coisas todas. Será que você teria fotografias do que estava sendo feito nolaboratório, ...?

Walter - Alguma coisa, muito pouco. [ ]

Roberto - É? Bom... Quando eu perguntei a questão de filmar as saúvas, etc.: afinal,acabou sendo filmada alguma coisa? Porque, até onde você mostrou, haviaaparelhagem e ninguém...

Walter - Foi. Acabou... O Mário Guidi. Ele acabou fazendo a tese. Ele era meu ori-entando e eu insistia com o Mário que, além da filmagem, [devia haver uma partediscursiva]. [ ] A tese dele versava sobre o uso de equipamentos cinematográficos, deum registro fotocinematográfico para os fins de estudo do comportamento. Eu insistiacom ele que deveria haver um texto: "Eu quero ver um texto", [ ]. Ele não oapresentava, fiz um ultimato a ele, disse: "Se eu não vir esse texto, eu não aceito [otrabalho] como tese. Se você vai trazer uma lata, um filme, colocar [aí sobre a mesa,não aceitarei]. É preciso dizer [algo], eu quero ver. Você tem que fazer um discursoacerca disso. Pode ser sucinto, reduzido, etc." [E ele]: "Não. Vai haver. Não sepreocupe. Vai haver, e tal."

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Mas não me trouxe. No final eu acabei até meio estremecido com ele, na o-casião, e ele comigo, e eu cortei. Eu disse: "Bom, então não considero você mais meuorientando". E ele mudou. Fez, acho que sob a orientação da Carolina. Ele apresentouas técnicas, que foram as usadas no laboratório, por mim, pelo Fernando, naquelesestudos para a gente demonstrar certas coisas do comportamento, [como] lançarbolinha de isopor lá dentro para ver como ela [a içá] então não formava um torrão, queela já a pegava como uma coisa formada; a maneira como, [usando frascos cilíndricosde vidro com fundo destacável de acrílico], a gente expunha a câmara, o canal, osgestos dela de formação de pelotas, uma porção de coisas. Ele acompanhou aqueletrabalho [de investigação] da fundação do ninho, que eu tinha feito inicialmente[sozinho] e [que] depois o Fernando pegou e complementou com uma série deexperimentos que ele fez para encontrar o que determinava certas características docanal e da câmara. Principalmente do canal: a profundidade a que ia, [etc] . Ele, paratal, usou uma série de módulos, enfim, ele ideou uma série de experimentos paraanalisar o determinante desse comportamento da içá e encontrar o que fazia parte dosprogramas dela, o que estava especificado nesses programas. [Encontrou], porexemplo, que havia uma certa profundidade especificada: ela continuaria quase queinfinitamente cavando enquanto não atingisse uma certa profundidade. [Esse foi] umdos dados interessantes. E que ela poderia ser levada a trabalhar constantemente se agente fosse reentupindo o canal. Não sei até que ponto. Tudo isso me levava também auma certa convicção de que a formiga era muito uma criatura de instinto e pouco umacriatura de experiência, ou psicológica, mas é porque eu estava numa fase etológica[clássica] e acabei provavelmente vendo a saúva do ponto de vista etológico[clássico].109 Nos últimos trabalhos eu comecei a ver que ela tinha muita coisa deexperiência. 109Os acréscimos entre colchetes são necessários para indicar que, não que eu não tivesse sido etólogo antes(desde o princípio o fui, ainda que sem o saber, pelo modo de pesquisar), mas que, havendo, na época emquestão, cedido completamente ao objetivismo, eu estava então muito afinado com o ponto de vista dos etólogosclássicos, caracterizado por seu anti-psicologismo e por uma tendência a dar maior importância aoscomportamentos característicos da espécie do que aos comportamentos idiossincráticos ou individuais. Noconjunto da entrevista espero ter deixado claro que fui, com o tempo, pelos fenômenos que descobri e pelosnovos princípios explicativos que eles me forçaram a formular, levado a rejeitar a opinião generalizada entre osetólogos e cientistas do comportamento em geral, e corrente ainda hoje, segundo a qual a etologia e a psicologiaseriam duas ciências suplementares independentes do comportamento. Diferentemente, defendo que a psicologiaé uma parte integrante, ou sub-domínio, da etologia, ao qual cabe estudar o comportamento como a expressão daexistência, em certos animais, entre seus mecanismos pré-programados, de um mecanismo especial, adquiridoevolucionariamente para os fins de utilizar adaptativamente a experência individual. Esse ponto de vistarestabelece a legitimidade, no quadro das ciências atuais, da Psicologia Comparada, que a etologia clássicajulgara ter afastado como sem sentido, ao apontar-lhe como missão comparar as diversas espécies animais comvistas a estabelecer as formas de manifestação do mencionado mecanismo no comportamento animal e estudarcomparativamente, no que diz respeito ao comportamento psicologicamente mediado, que é o que o manifesta, asmesmas coisas que o etólogo tem estudado com respeito ao comportamento dito instintivo em geral: a causação,a evolução, o valor de sobrevivência e o papel que esse comportamento possa ter tido na evolução.

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Cesar - Lógico.

Walter - Coisas interessantíssimas, como [as encontradas pelo] Paulo Roberto Gales-ka Leite. Ele [ ] estudou o comportamento dela [saúva] em relação ao lixo, [ ] fez umasérie de experimentos [ ] para encontrar o que era "lixo" e quais os determinantes dessaatividade. É que a formiga [ ] desmonta a esponja que já está gasta, que já não servepara o cultivo do fungo, na parte basal, e trás para fora e amontoa. Trás os cadáveres eamontoa; e outros detritos que ela traz ali, ela amontoa. Mas ela não só amontoa, elacontinua a trabalhar com aquilo: ela reagrupa, ela rearranja, passa dias trabalhando comaquilo. No final eu cheguei à conclusão, e formulei-a para ele: Ela está sendo vítimados próprios instintos. Esses materiais têm características de estímulos-sinal, dedesencadeadores de comportamento instintivo que são irresistíveis para ela, que alevam a desmontar, a fazer, a compactar, etc.

Ele [Paulo] mostrou que é uma sucessão de comportamentos que levam à com-pactação sucessiva. A formiga é muito apressada quando se trata só de amontoar. Mas,uma vez amontoado [o lixo], ela começa a reagrupar e compactar. Depois decompactar, ela passa a ter comportamentos ainda mais complexos de firmar cada par-tícula com movimentos de cabeça e de patas, fazendo um balanço em cima da partícula,fixando-a, até que ela não balance mais. Parece que ela tem uma verdadeira compulsãopor fazer um substrato compacto. Mas, depois, surge umidade, ali, e então ela tem umatendência a escavar e a expor, fazer túneis e expor esse material, o que leva o material asecar. E nós começamos a pensar: por que esse padrão ainda não se extinguiu, [já que]ele [parece] inadaptativo - leva-as a viver assim [despendendo esforços aparentementeinúteis? Porque ele resiste à extinção, pensamos então}, ele deve ter alguns aspectosadaptativos. Freqüentemente se criam ácaros dentro da colônia, na esponja, no lixo, elidar com o lixo lá dentro provavelmente expõe os ácaros [imaturos] e fá-los morrer,impede condições de desenvolvimento110. Mas isso não foi uma parte que nósconseguimos comprovar; ficou só no nível de possibilidade. Então, a propósito do queeu estava falando isto? Puxa vida, tem que voltar todo mundo a me perguntar!

Roberto - Eu tinha perguntado sobre o pessoal da filmagem, se tinham chegado afazer...

Cesar - Não, não. Ele estava falando da inteligência da saúva. [Dirigindo-se a Walter]:Você estava dizendo que, de repente, ela te pareceu mais capaz de aproveitamento.

110Os ácaros, admitidamente, sugam os ovos e larvas das formigas, prejudicando, assim, a colônia.

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Walter - Eu queria mostrar como ela é realmente afetada pela experência, porque nósvimos o seguinte: que, cada vez que a gente tira um depósito de lixo e leva para umoutro luzar, ou tira folhas lá de cima [do frasco-viveiro] e leva para outro lugar, oumistura folhas com o depósito [de lixo], a formiga imediatamente começa a desfazer oque a gente fez e a devolver as coisas exatamente onde elas estavam [Roberto ri].Então elas são conservadoras. E os depósitos, elas levam sempre para o mesmo lugar, [] uma vez formados. E uma das maneiras de demonstrar o efeito da experiência é aseguinte: [é a gente tirar a bandeja]. Porque elas estão dentro de uma bandeja cujasbordas internas são untadas com graxa para elas não poderem sair, e o frasco de vidrocontendo a esponja de fungo e a colônia [ ] é colocado dentro dessa bandeja numa basede acrílico junto com os vegetais, que são a provisão da colônia. É uma coisa que setornou muito prática. Acho que agora já há vários laboratórios usando isso para ensinarobservação. O pessoal macaqueia mesmo, não é? [Roberto: ri]. Encontrei-o na PUC,encontrei em São Carlos... Eles levaram por uns tempos, e, aí, levaram para Salvador...

Roberto - Esse modo de isolar as colônias vocês desenvolveram lá?

Walter - Como?

Cesar - Foram vocês que desenvolveram esse modo de isolar as formigas?

Walter - Ah! Sim. A técnica de acomodar, de formar as colônias desde o começo,desde a captura da içá, isso fomos nós111 que desenvolvemos. Isso é uma técnica bas-tante eficiente. Nós conseguimos colônias à vontade, desde que haja alguém naqueledia da revoada - que costuma ser um [único] dia por ano, no Estado de São Paulo, ounuma [dada] região do país - [ ] disponível para ir pegar as içás e acomodá-las emfrascos separados. Se [as] colocar juntas, elas se dilaceram. Elas são intolerantes umasdas outras. Então a gente tem que capturar nos frascos com rolhas perfuradas para elaspoderem respirar, e levar o mais depressa possível para o laboratório para colocá-las acavar, porque, se não, elas regurgitam o fungo dentro do vidrinho e usam o vidrinhocomo câmara. Elas queimam etapas depois de um certo tempo...112 E vários estudosforam feitos sobre a saúva no laboratório. Muitos deles ainda não foram publicados,têm que ser aproveitados. Há alguns [publicados], mas muito poucos.

111O primeiro "nós" tem, aqui, uma função de modéstia. Desenvolvi essa técnica em outubro de 1966 eaperfeiçoei-a nas revoadas dos dois anos seguintes. Ela tinha o objetivo inicial de resolver o problema criado pelainadaptação ao laboratório das raras colônias de saúvas que, até então, havíamos conseguido, penosamente,mediante escavação no meio natural.112Não havendo o solo, nem terra para cavar, passam diretamente à fase da fundação do ninho que se iniciadepois de concluída a construção da câmara, aceitando, para isso, o espaço limitante do vidrinho como câmara.

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Mas, então, um dos experimentos dele [Paulo] é o seguinte. Ponho uma bandejainteiramente nova - tiro aquela, pego as formigas que estavam andando por ali e jogona nova bandeja. Aí a gente nota que as formigas que descem do frasco, chegam àbeirada e encontram a bandeja nova, "não autorizada", param. Não é "param": elas nãodescem à bandeja. Elas ficam circulando. É uma limitação delas ao conhecido.

Marina: Hum, hum...

Walter - Quer [isso] dizer que o conhecido é uma forma de puxar o comportamentodela para frente. Era como se a função do passado, [ ], [pensando nos termos de] umaanalogia [ ], [fosse alguma coisa como permitir] a uma pessoa [ ] atravessar umpântano - [um ambiente ainda não estimulatoriamente presente, incerto]- e ela sóconseguisse fazer isso usando dois tapetinhos: sobre um tapetinho [- um ambientepresente -] ela está pisando, e o outro [- uma parte de um ambiente passado - ] elapuxa atrás de si e joga lá na frente, e pisa; depois, aquele em que está pisando, ela virapara trás, [pega] e joga [à sua frente; e assim por diante]. [ ] Isso, em uma grandedistância, é a função da memória, a função do ajustamento anterior, do passado. E, aí,[pensando nessa analogia], ficava claro isto: à medida que uma ou outra [formiga]dava uma entradinha [no piso da nova bandeja], distraída - porque ela vinha assim...carregando alguma coisa, meio distraída - [ ] ela o ia odorizando. Havia uma odoriza-ção progressiva a partir do ninho. Com o tempo, elas passam também a soltarexrementos ali, e vão odorizando [o substrato] com os excrementos delas. O fundo dabandeja [freqüentada] fica marronzinho, pintado para cá e para lá, não sei se temrelação com [Inaudível: feromônio (?)]113

Roberto: Hum, hum...

Cesar - Elas usam o feromônio também?

113Com esta analogia o autor procurava - infelizmente de modo confuso e inapropriado - fazer compreensível suavisão de como a ação psicologicamente mediada se dá, sempre, em um solo de passado que assimila uma situaçãopresente e a excede e completa. Nessa explicação, uma parcela do ambiente que é efetivamente, ou estimulatoria-mente, apresentada, desde que assimilada a um ambiente de ajustamento, reintegra - ou representifica - aindaantes que estimulatoriamente presente, uma outra parcela desse ambiente a qual, no passado, acompanhavaregularmente a primeira parcela apresentada, e predispõe o indivíduo devidamente motivado a lançar-se-lhe,ainda antes de efetivamente experimentada (Pense-se no ato de ir apanhar um copo - de ir a sua preensibilidade elevantabilidade - à sua mera vista e ainda antes de o haver tocado. A vista do copo, para um indivíduo dotado deuma história de estimulação e ação apropriada, e que se encaminha para pegá-lo, reintegra - representifica,- aindain absentia, a sua apanhabilidade e destacabilidade). Seria um tal mecanismo de assimilação do presente aopassado e de reintegração que livraria o organismo de ter sua ação psicologicamente mediada extraídadiretamente pelos estímulos por sua atuação sobre os dispositivos anátomo-fisiológicos de resposta, comoacontece no reflexo e no padrão fixo, conferindo-lhe, freqüentemente, um caráter de aparente gratuidade earbitrariedade, caráter esse que só um exame da história individual desse organismo pode remover.

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Walter - Não. A formiga usa o feromônio muito nitidamente quando descobre a folha,[ ] o vegetal, a uma certa distância. Se for muito perto [do frasco-viveiro], tambémnão, porque, aí, de lá mesmo ela cheira e já vai diretamente. Mas, se houver uma certadistância, ela descobre a folha e abaixa o gastro e passa a usá-lo como se fosse umacaneta. Aí ela vai realmente deixando um rastro líquido atrás dela, que logo some. Aíhá o feromônio.

Mas o feromônio também não é usado escravamente, ele não força a formiga asegui-lo. Se ela estiver fazendo uma outra coisa, não o segue. E, freqüentemente, aformiga deixa o traço e tenta apanhar [os estímulos (?)] de um lado e de outro. Vocêpercebe que é um uso mais estratégico do que do tipo "ser apanhada pelo nariz earrastada". Não é assim. É um uso [do rastro olfativo] mais como marco, como indício,como se ela tivesse um mapa - até um certo ponto - de onde as coisas estão. Então issofoi ficando evidente [ ]: os efeitos da experiência. Hoje, se eu fosse voltar para a saúva,eu ia pegar essas coisas. Eu [ ] iria entrar na saúva pelo lado que eu deixei, o lado doavesso dela, o lado menos admitido, como eu fiz com a outra formiga.

Cesar - Eu acho, Walter, que um ponto em que a gente discorda é esse. É que eu achoque os dois lados estão sempre aí, sabe? Depende de como você olha para o animal. Sevocê olhar etologicamente, você vai ver que ele é muito fixo, que ele tem padrões quesão herdados, porque é assim que as coisas funcionam. Se você olhar de um lado comatenção para uma possibilidade de ele aproveitar a experiência, você vai ver que eleutiliza a experiência. De onde eu chego a essa conclusão, que é um pouco diferente dasua, que os dois são lados da mesma moeda. Isto é, a seleção natural não selecionou amente ou a aprendizagem como algo que fosse em separado, depois, paracomplementar a respeito de robô automático-etológico, mas ela fez aquilo ao mesmotempo, certo? E, eu acho, nisso me parece que ele [ininteligível], porque eu acho que avisão psicológica e a visão etológica [ ] simplesmente definem a maneira como você seposiciona diante do comportamento animal.

Walter - [ ] O que eu considero que é a posição correta é que a psicologia é uma parteda etologia, mas que lida justamente com esses mecanismos de uso da experiênciaindividual, que têm uma história evolucionária. Quer dizer, evolucionariamente deveter surgido uma vantagem adaptativa de [o animal] usar a própria experiência em vezde [se] construir o animal programado, já, para aquilo que ele vai encontrar ao longoda vida com base na filogênese. Digamos, num certo momento, [para] o animal quetem que voltar para o ninho, é melhor que leve em conta os marcos realmenteexistentes do que [realize] um retorno tropístico, independente do meio, com uma certadireção. Então foi para isso que eu acho que a psicologia apareceu: para fazer um uso

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da experiência individual. [ ] Acho que não estamos assim em desacordo, mas acho queé melhor você postular...

Cesar - Ah! Não. Eu acho que não, mas você me dá a impressão, às vezes, de que amente surge de repente, como se houvesse um momento na evolução em que de repenteo animal passa de etológico para psicológico.

Walter - Não, ele passa de um animal etológico e não psicológico para um animal eto-lógico e psicológico. Quer dizer, aí, ele simplesmente evolve...

Cesar - É, mas eu... É, mas aí fica... E ainda tem um trocadilho aí [Ri].

Roberto - Só uma pergunta de ignorante: um protozoário tem memória? Ele usa umamemória individual?

Walter - Parece que tem.

Roberto - Já tem?

Walter - Conforme o tipo de protozoário. A ameba tem.

Cesar - O problema do protozoário é especial porque ele não tem sequer sistemanervoso. Então a coisa é muito controvertida. Eu seria cauteloso em relação aosunicelulares, mas eu diria: é bem capaz que ele [protozoário] tenha, apesar de ele nãoter sistema nervoso. Ele tem habituação.

Walter - Tem. Os trabalhos de Jennings114 são no sentido de mostrá-lo. Ele usava -como chamava mesmo o bichinho? Agora não consigo lembrar o nome.

Cesar - Paramécio?

Walter - Não, não era o paramécio.

Cesar - Hidra?

Walter - Era um protozoo. Esse animal unicelular tinha que passar por baixo de umaplaca de vidro para encontrar alimento do outro lado. Talvez fosse o paramécio, nãosei. Ele batia na placa e voltava. Aí ele mudava um pouco [a direção], e voltava;

114H. S. Jennings, autor de vários trabalhos sobre o comportamento de animais inferiories, sendo sua obra maisconhecida Behavior of Lower organismos (N. York: Columbia University Press, 1906).

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mudava um pouco, até que, por acaso, ele passava. Agora você pega esse paramécio edevolve [ao aquário]. Ele vai diretamente: ziiii! (assobio) [Risos]. Ele está usando amemória.

Marina - Hum, hum.

Cesar - Está sim.

Walter - Agora, isso também chama a atenção para o fato de se dizer que todocomportamento expressa o sistema nervoso. Não. Quando o animal é tal que você nãosabe nem o que é comunicação, o que é digestão, o que é... - quer dizer, ele é tão[indiferenciado (?)]. Isto é o maior mistério da biologia.

Cesar - Lógico.

Walter - Von Uexkhüll dizia isso: num sentido o cavalo é muito mais máquina do queuma ameba, que a ameba faz todas as funções com uma célula só.

Marina - [Assente].

Walter - Ela é um animal muito mais dinâmico. O outro, não, o outro é cheio demecanismos, de programas já prontos, de reflexos, construído, já, de uma certamaneira. Esse eu acho que é o grande mistério.

Cesar - É. Em todo o caso, eu acho que eu ficaria mais com... [o multicelular (?)].Quer dizer, na hora em que surge o sistema nervoso, você tem [ ] uma invenção daevolução que, ao mesmo tempo, permitia uma retenção da informação que pudesseinclusive ser herdada, filogenética, e a aquisição de informação de novo. Então, aquiloque o Walter chama de ato psicológico e o ato etológico [ ] ocorrem, para mim, nomesmo suporte. Isto é, só porque eu olho, eu analiso de uma maneira ou analiso deoutra maneira, que vou separar...

Walter - Você acha que eles são basicamente a mesma coisa?

Cesar - Não. Não. Eu acho que eles ocorrem no mesmo suporte, isto é, eles ocorrem...Walter - No mesmo organismo?

Cesar - ... no mesmo organismo e no mesmo ato.

Walter - Mas há animais todos que não são psicológicos. As esponjas, sei lá... algunsorganismos sésseis, alguns parasitas, cestóides..., que vivem dentro do intestino, tão

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adaptados àquele modo de vida que eles não devem ter vida psicológica, não precisamda experiência individual para se adaptar. [Pela] maneira como são construídos, eles jácaçam, [etc.]. A maneira de serem construídos já resolve os seus problemas. Então euacho que a psicologia envolveu uma fisiologia especial, que evolveu para os fins delidar com a experiência individual. Essa é a minha tese.

Mas eu gostaria de tratar desse ponto. Você está falando que depende doenfoque que você tem. Não é bem... Eu acho que, pelo estudo do Paulo, a gente con-seguiu ver o seguinte: a psicologia entra principalmente quando se trata de orientar -[envolve] o fator de orientação. Quando a formiga [ ] vem com o lixo, carregando olixo, e ela chega fora, então a luz vem de [uma] direção, ou de outra direção, ela seposiciona em relação ao que ela está acostumada a encontrar. [ ] Ela usa esses marcos,essa informação, essa memória. Mas, no momento em que ela é confrontada com umestímulo-signo, quer dizer, um objeto apropriado para desencadear um padrãoinstintivo dela, ela tem aquilo [esse padrão] despertado, se ela estiver na motivaçãoapropriada - se, no momento, esse for o sistema de ação dominante (Ela pode estar soboutro sistema de ação dominante). [ ] Nós encontramos, por exemplo, que o grão soltoé o estímulo suficiente para ela interromper a marcha e captar. O balanço da partícula ésuficiente para ela tentar firmar e encaixar [ ]. A umidade é suficiente para ela escavar,começar a escavação. E a gente sempre consegue essa escavação se você molha aterra.Eu sabia disso: se queria desenvolvê-la, molhava a terra e ela escavava. Depois dechuva você vê que ela [a escavação] freqüentemente aparece. Mas...

Cesar - É que você, nesses casos, não observa... [Dirigindo-se a Walter]: Walter...

Walter - ... você quer ver o problema da escavação, onde está, Cesar?

Cesar - [Retomando seu argumento]: Se você oferece um grão, você não vai saber seela é capaz de ter experiência de grão. Era preciso você observar o comportamento deladiante de vários grãos e ver se realmente ele se repete sempre do mesmo jeito. Então aívocê dá uma chance de aparecer um fator de experiência passada. Se aquele grão foramargo, ou se ele for muito pesado, etc. e tal, entende?

Walter - São idéias interessantes.

Cesar - Sempre há uma possibilidade de... Agora, eu concordo plenamente com você...

Walter - Certo, mas aí [ ] o que está atuando é simplesmente ela estar se orientandoem relação ao objeto que é lixo. De repente ele é meio lixo e não é lixo, então é umaambigüidade, naquela linha que eu falei. Então, depende de se ele é mais lixo, menoslixo. Quer ver por onde você percebe que certas coisas são desencadeadas?

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Experimente deixar uma saúva cortando a pele de sua mão. Você pensa,[ ] ao ver asaúva picando-o, quando você interfere no formigueiro, que ela o está agredindo [ ].Toda a aparência dela [risos] - porque ela fica atarracada, ela abre as mandíbulas - é deuma agressão. Mas, se você esperar, ela vai fazer um corte circular. Ela está fazendo amesma coisa de quando ela está [recortando um vegetal].

Cesar - O que ela vai fazer com esse pedaço de pele depois? [Risos].

Walter - [ ] Se ela puder destacar e levar, ela leva. É uma membrana. Ela leva pedaci-nho de couro, leva pedacinho de plástico, pedaço de papel... Ela leva pedaço de laranja,pedaços de folhas. Agora ela leva especialmente com maior facilidade se for vegetal.Se você colocar um odor de vegetal na sua mão ela mais provavelmente levará [Risos].

Roberto - [Rindo] Lá vai o meu dedo com a pele...

Walter - Mas, aqui, eu tenho dúvida. Porque ela não ataca folha. Ela não chega corren-do à folha e não a ataca. Então eu não sei se o padrão [de ataque] vira o padrãohabitual ou se ele já é desencadeado como um padrão. Acho que ele não é de-sencadeado como um padrão...

Cesar - Possivelmente é funcional, Walter. Ele pode ser multifuncional, servir para vá-rias coisas: uma para cortar o vegetal e outra para atacar.

Walter - É. Mas eu acho que, às vezes, até nele mesmo - onde ela dirige a mandíbula,de que maneira ela pega... - existem efeitos de experiência. Por exemplo, há algumasexperiências que indicam [ ] como a formiga é dependente da idade [para] lidar comcarga. As formigas novas são muito desajeitadas. Formigas européias que constróemninhos com [ ] espinhos de pinheiros - de bolotas de pinheiros - pegam aquelas agulhase, [empilhando-as], constróem o ninho. [Para isso], geralmente, as agulhas precisamestar deitadas. Se elas estiverem em pé, ela [formiga] tem que deitá-la. Isso é comumna saúva. Mas Dobrzañski115 - membro de um instituto polonês - mostra que há o usodo condicionamento, dos princípios de reforçamento, [que também] parece que é feitona natureza. Há um auto-ensino, porque algumas coisas são gratificantes. A formiga[inexperiente] chega e pisa em cima do vegetal e tenta suspendê-lo. Ele não sobe. Ela olarga como se não servisse. Não leva, abandona. Mais adiante ela encontra outro e faz[o mesmo]. Por acaso, uma hora ela pisa fora e, aí, a coisa se move [Risos]. Aí ela fixa,

115A referência é ao artigo de Jan Dobrzañski, "Manipulatory learning in ants". Acta Neurobiol. Exp. 1971, 31:111-140. Dobrzañski era, então, membro do Departamento de Neurofisiologia do Instituto Nencki de BiologiaExperimental, em Varsóvia, Polônia. As formigas européias estudadas quanto ao aperfeiçoamento dos atos delevantar, carregar e depositar material de construção no ninho, nesse estudo, disseram respeito a Formica rufa L.e Formica exsetoides Nyl.

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aí ela nunca mais pisa nele [risos], vai passar por cima [pisando fora dele], entende-ram? É como se ela tivesse um mecanismo que diz assim: "retenha isso, essa foi umaboa". É uma coisa interessante. [ ] A experiência entra, às vezes, no que parece... [inato(?)].

Cesar - É. O que me parece é que a experiência não entra sempre com a mesmaintensidade. Eu não acho. O que eu acho é que não tem sentido você dicotomizar issoem termos de animais que têm isso ou animais que não têm, ou de achar que é omomento da evolução em que aquilo surgiu.

Walter - Não dicotomizo. Mas acredito que o uso que se faz da experiência - porexemplo, no caso do [ser] humano, é evidente - é tão grande, tão extraordinário que [oindivíduo] é afetado por coisas da infância remotíssimas, como os psicanalistasapresentam. [ ] Elas ficam tendo um efeito posteriormente. Agora, talvez no animaldure menos tempo, e talvez haja a necessidade de uma exposição contínua para algumacoisa ser levada em consideração. E há alguns animais que talvez não tenham registronenhum: eu já falei para você o caso de certos vermes intestinais, parasitas. Não têmmesmo. Os espongiários também não têm. Não precisam. [Já] os animais que têmmorada fixa, que têm o problema de retornar para casa, têm que usar a memória. [ ]Nesse caso, você espera um pouco mais de psicologia, um pouco mais de complexidadedo que nos animais que [ ] não têm [morada fixa]. Até em aranha, eu já contei isso...

Cesar - É, mas eu não diria que precisaria. Bom, não vamos entrar no problema daaranha [Risos]116. Essa novela já está...

Marina - [Rindo]: Seria um trabalho horrível, não?

Walter - Um estudo que eu queria um dia completar era o seguinte. Quando eu criavaAchaearanea, que é uma aranha globular que existe dentro de casa, nos cantos, e queforma uma teia irregular...

Roberto - Aqui também é cheio de aranha, lá pelo lado de fora...

Walter - Se não for Agelena, provavelmente é Achaearanea (Achaearanea tepidario-rum Koch, é o nome científico dela). Eu passei a estudar essa aranha. Punha-a numfrasco de palmito. Ela fazia uma teia lá dentro, irregular. Pois lá um dia me ocorreu deperceber, por acaso: eu joguei uma fêmea, distraído, em vez de jogar uma formiga. Euestava com dois insetos na mão e uma aranha, e eu joguei uma aranha lá dentro como

116O professor Cesar Ades, como se sabe e já foi mencionado, é um especialista no comportamento dearacnídeos, e certamente teria muito a falar do assunto.

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se fosse uma presa para ela. O vigor com que a aranha dona da teia caçou foi uma coisaextraordinária. Ela soltou muito mais visco [do que de costume], a teia dela ficou muitomais viscosa, muito mais cheia de goma. Era visível a excitação dela. ao mesmo tempoque a outra reagiu e tentou capturar a dona da casa. Houve uma briga, um boxeamento,um estapear [recíproco].

A tática de captura dela [fêmea de Achaearanea] freqüentemente é assim: elasboxeiam, e, nesse boxear, elas cruzam fios que, freqüentemente, prendem [a presa].Depois, em seguida, a [capturadora] se dependura nos fios. [Dirigindo-se a Cesar]:Você sabe, você conhece o comportamento todo: estou ensinando a missa para o padre.Ela vira o gastro para a presa e, fazendo movimento de pedalar, ela lança os fios, queela vai capturando das fiandeiras e vai jogando, até enrolar [a presa]. E, às vezes, giraa presa - você conhece aqueles movimentos das patas da frente: ela vai girando a presaenquanto solta o fio. Parece um fuso trabalhando numa fiação industrial, um fiozinhoque vai aqui com uma facilidade enorme.

Então eu notei isso, falei: "mas que coisa!" Passei a estudar isso. Aí notei quesempre a visitante perdia o embate. A moradora ganhava. Eu pensei: será que isso não éuma vantagem da experiência? Isto é, até um certo ponto, ela é capaz de, [a partir de]um pedaço de teia que ela encontra, reintegrar que está descendo, que está subindo,quer dizer, [será que] está reagindo a aspectos ausentes como se estivessem presentes?É isto que a psicologia faz: reagir a aspectos ausentes como se já estivessem presentes.Eu reajo a uma solidez antes de ela estar me afetando sensorialmente: ela está mais emmim do que no objeto. Eu faço o objeto com o meu passado. Então eu resolvi estudarassim: na hora em que eu jogava [a aranha visitante para uma aranha residente], euvirava o frasco. E sempre a visitante ganha [Roberto ri]. Por que? Porque...

Roberto - Porque há expectativas erradas, agora.

Walter - É! Eu falaria em "expectativas" mesmo, de acordo com a minha [primeira]teoria. Mas eu diria [agora] que ela [a dona da teia] tinha ajustes discrepantes dos queela estava reintegrando. Ela estava ajustada para uma teia descendente e, agora, elareintegra uma teia descendente, mas ela se lança para ela e encontra uma teiaascendente. Então ela tem dois problemas: ela tem um problema, de enfrentar a presaou a rival, e o problema de se reajustar a uma teia que já não serve. Então "a aranha" - éo jurado - [ ] "é um animal instintivo", "a aranha não tem psicologia", "ela não sebeneficia da experiência", "ela é um bicho estúpido" [risos] "que não vai... [longe(?)]".Mas, depois disso...[E, dito para Cesar]: Você já mostrou memória, uma porção decoisas [na aranha]. [ ] Então é uma coisa que a gente não deve nunca falar: "tal coisanão existe" ou "tal coisa não acontece". Tem que esperar para ver se, um dia, podeacontecer.

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Final.