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Ailton BeneditoAlberto Passos G. FilhoAmilcar BaiardiAna Amélia de MeloAntonio Carlos MáximoAntonio José BarbosaArlindo Fernandes de OliveiraArthur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCésar BenjaminCícero Péricles de CarvalhoCleia SchiavoDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaEdgar Leite Ferreira NetoFabrício MacielFernando de la Cuadra

Fernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoGilvan Cavalcanti de MeloHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLucília GarcezLuiz Carlos AzedoLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMartin Cézar FeijóMércio Pereira GomesMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPierre LucenaRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem Barboza FilhoRudá RicciSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermanSinclair Mallet-Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloZander Navarro

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Obra da capa: Festa, óleo s/ tela, de Lucília Neves Delgado.

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Bra-sília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2014.No 41, abr./2015.200p.

CDU 32.008 (05)

Ficha catalográfica

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Abril /2015

E AGORA, BRASIL?

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Sobre a capa

A autora dos belos trabalhos que embelezam capa e contraca-pa desta edição é a mineira Lucilia de Almeida Neves Delga-do, nascida em São João Del Rei e que, com apenas dois anos

de idade, mudou-se com a família para Juiz de Fora, onde cresceu e desenvolveu o gosto pelas artes e pelo estudo das humanidades. Nesta cidade, que sempre foi fértil em manifestações culturais, ela conheceu o trabalho de importantes artistas locais, que ganharam projeção nacional e internacional. Entre eles destacam-se Carlos Bracher, Nivea Bracher, Arlindo Daibert e Dnar Rocha.

A pintura abstrata sempre a atraiu e a ela somou-se um gosto especial por pintores modernistas, como Portinari, Tarsila do Amaral, Anita Malfati, Matisse, Modrian e Gustav Klimt e Picasso.

Sua escolha profissional, todavia, foi pelos estudos da História e da Ciência Política. Tanto que, após formar-se em História (UFJF), concluiu o Curso de Mestrado em Ciência Política pela UFMG e o de Doutorado, também em Ciência Política pela USP, e atua como profes-sora universitária, a cerca de 40 anos, e já lecionou na Universidade Federal de Minas Gerais, PUC Minas e Universidade de Brasília.

No decorrer de sua vida profissional escreveu centenas de artigos e publicou 15 livros nas áreas de sua especialidade. Entre eles destacam-se: O Comando Geral dos Trabalhadores no Brasil (1961-1964), PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964) e o Brasil Republicano, em quatro volumes.

Seu gosto pelas artes plásticas e pela literatura continuou sendo cultivado ao longo desses anos. Como desdobramento publicou três livros de poesias: Jardim do Tempo, Amor e Asas e Noites Solares.

Nos últimos dois anos, tem se dedicado à pintura, com predo-minância de acrílico sobre tela. Em suas telas, destaca-se o predo-mínio de contrastes claro/escuro e o uso de diferentes técnicas. Sua preferência recai sobre o estilo abstrato, mas também trabalha com pintura figurativa sempre moderna, utilizando curvas ou linhas retas que se intercalam.

Adepta de telas grandes, muitas vezes recobertas por texturas, gosta especialmente de coloração viva. Dessa forma, em seu trabalho predomina uma gama cromática marcada por tonalidades fortes, ora demarcadas, ora sobrepostas. Usa alternadamente espátulas e pincéis para pintar quadros, quase sempre compostos por várias camadas de tons e sobretons. Suas pinceladas são largas e compõem um estilo eclético que se afasta do convencional e do acadêmico.

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Sumário

EDITORIALA crise e o cenário de sua superação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

I. TEMA DE CAPA: E AGORA, BRASIL?O Brasil Hoje – Março 2015 Moacir Longo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13Superar a crise, construir a democraciaAlberto Aggio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18Fim de ciclo e nova hegemonia para refundar a repúblicaMarcio Sales Saraiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25Um outro mundo é possívelLuiz Werneck Vianna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

II. OBSERVATÓRIOTrinta anos de retorno à democracia Roberto Freire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37Desafios da democraciaJosé Antonio Segatto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43A mulher na política merece seu real espaçoTereza Vitale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

III. CONJUNTURAInquietantes semelhanças entre o lulopetismo e o kirchnerismoSergio Fausto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57Mãos limpas à brasileira?Luiz Sérgio Henriques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61Democracia, entendimento e o fator TemerPaulo Fábio Dantas Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

IV. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIAA intenção, a meta e a imprecisão Luís-Sérgio Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75O Brasil descobre a águaLúcio Flávio Pinto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79Laicidade enganosaLuiz Antônio Cunha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

V. O SOCIAL E O POLÍTICOO nó do saneamento Cassilda Teixeira de Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

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Políticas educacionais e formação de professoresRenata Cabrera / Luciana Lunardi Campos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

VI. BATALHA DAS IDEIASReflexões provisórias sobre o poder, a democracia e a tentação totalitáriaPaulo Elpídio de Menezes Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107Considerações sobre o liberalismo econômico e a democracia Leandro Gavião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114

VII. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTOO ano que já acabouMíriam Leitão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123Desenvolvimento só com reformasAntonio Machado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128

VIII. MUNDOA Europa inova na forma-partido Rudá Ricci . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133Podemos, o fim de uma época do sistema partidário espanholJoan Alcazar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142

IX. ENSAIOO fenômeno das redesFausto Matto Grosso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151A formação do primeiro grupo dirigente do Partido Comunista Brasileiro (1919-1930)Michel Zaidan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

X. HOMENAGEMComunista que soube valorizar a vida e a democraciaMarco Aurélio Nogueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177Brinde ao cangaceiro do cinemaSeverino Francisco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

XI. RESENHAO golpe, as armas e a políticaAdelson Vidal Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189Bravura cívicaLuiz Eduardo Soares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194

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A crise e os cenários de sua superação

Um observador externo, alheio às marchas e contramarchas da política brasileira, chegado repentinamente ao país, po-deria pensar que a principal característica dos primeiros

dias do segundo mandato da presidente Dilma Roussef tenha sido a falência inesperada de um governo vitorioso há pouco nas urnas. Para um observador interno, o mesmo fenômeno pode ser visto de forma diferente, como a confluência súbita de um conjunto de cri-ses. Cada crise seguia, até então, com seu ritmo e rumo próprios, até que, por um chamado qualquer, todas se encaminharam para um encontro marcado, nas ruas e na consciência dos cidadãos. Reunidas, as crises potencializam-se reciprocamente e ganham uma dimensão que retira a credibilidade e ameaça a legitimidade do governo, do projeto político que o inspira e, finalmente, do sis-tema político vigente.

O catalisador desse processo na percepção dos eleitores foi, ao que indicam as pesquisas de opinião, a questão ética. A dimensão da corrupção revelada até agora pelas investigações sobre o caso da Petro-bras, o caráter organizado do sistema de corrupção e a denúncia de parlamentares e partidos do governo como beneficiários desse sistema repercutiram fortemente num eleitorado que experimentou um aumento expressivo na sua escolaridade e no acesso à informação, nas duas últimas décadas. Acrescente-se a isso a percepção aguda do fosso existente entre os diagnósticos e propostas da candidata Dilma Roussef com as ações inaugurais do mandato da Presidente eleita: um minis-tério discrepante do discurso de campanha e, principalmente, a adesão a um ajuste fiscal, proposta anunciada pelo candidato de oposição e demonizada pela campanha da candidata vitoriosa. A expressão este-

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lionato eleitoral, veiculada na mídia e nas redes sociais, descreve a reação de muitos eleitores a essa guinada brusca e pouco explicada.

A questão ética foi, portanto, o estopim, a trombeta que convocou as demais crises a dar as caras, que fez aflorar a insatisfação difusa que cada uma delas provocava. Dentre elas a mais evidente é, sem dúvida, a crise econômica. Um período prolongado de baixo cresci-mento econômico, juros elevados e inflação alta sinaliza, já no curto e médio prazos, uma situação de maior desemprego e de corrosão da renda das pessoas. Embora os impactos no emprego e na renda apenas comecem a se fazer sentir, a continuidade desse cenário significa pauperização das pessoas.

Trabalha no mesmo sentido, de deterioração das condições de vida do cidadão, a crise, menos comentada, que atravessa há tempo a gestão do Estado. Há um conflito evidente que opõe as expectativas dos brasileiros em relação à prestação de serviços produzidos ou regulados pelo Estado e a oferta efetiva desses serviços. A verdade é que quase metade da população não dispõe de saneamento básico; e mais da metade está submetida a um sistema de locomoção urbana que rouba muito do seu tempo útil, à violência, criminosa e policial, a um sistema educacional siste-maticamente mal avaliado pelos testes de comparação interna-cional e a um sistema de atendimento à saúde notoriamente moroso e insuficiente. É claro que a responsabilidade por essa situação deve ser partilhada entre União, Estados e Municípios. É claro também que houve alguns avanços nos anos recentes. Mas o ritmo desses avanços é lento e o aumento das expectativas é rápido. Essa diferença de velocidades explica muito das mani-festações ocorridas em 2013, se fazendo presente também nas manifestações que agora ocorrem.

Está em curso ainda uma crise política que podemos classi-ficar como estrutural. Sua origem está na contradição latente entre nosso sistema eleitoral e os avanços democráticos ocorridos na vigência da Constituição de 1988. Seu sintoma maior é o descrédito crescente dos políticos, dos partidos e dos Poderes Executivo e Legislativo junto à maioria dos eleitores. Seu agrava-mento recente, contudo, procede da percepção da capitulação do governo do Partido dos Trabalhadores a práticas por ele conde-nadas em seus tempos de oposição. O cidadão rejeita cada vez mais campanhas eleitorais com custos astronômicos; doações, na verdade empréstimos, de grandes grupos econômicos a partidos e candidatos; partidos fragmentados e amorfos; coalizões governa-

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mentais sem coerência programática; inexistência de prestação de contas de mandatários entre uma eleição e outra.

Um dos pilares do sistema – a concentração de poderes no Executivo – ruiu integralmente porque, no momento em que, em razão de conflitos que integram o corpo da crise, o Legislativo suspendeu a delegação automática que vigorava até então de parte de seus poderes ao Executivo. A rejeição à política e aos políticos pode ser comparada ao “que se vayan todos” da política argentina da virada do século. Entre nós, chegou ao ponto da exclusão das siglas partidárias da rua, por vontade dos manifes-tantes, tanto em 2013 quanto neste ano.

Mas há também uma crise política conjuntural, uma crise na coalizão de apoio ao governo, expressa no conflito entre o Partido dos Trabalhadores e os demais partidos da base, principalmente o PMDB. Esta crise é antiga. Sua origem é a postura hegemonista do PT em relação a seus aliados. Manifestou-se, desde sempre, na desproporção entre o número de ministérios concedidos ao PT e seu peso real na sustentação do governo, bem como no conflito que afastou o PSB do governo, em 2013 e 2014. Manifesta-se hoje na sub-representação do PMDB no governo e na tentativa, frus-trada, de esvaziamento de sua representação parlamentar, com sua exclusão da discussão de temas centrais da agenda do governo, como o ajuste fiscal. De novo, nessa crise, só a reação do PMDB, a partir do comando das duas Casas do Congresso Nacional, é que teve capacidade de forçar o governo a reorganizar a aliança sobre bases novas.

Na verdade, essas crises estavam articuladas entre si, mesmo antes da percepção dos cidadãos operar uma conexão entre elas. Tem uma origem comum, um mesmo modelo de mudança social que alimenta boa parte da tradição da esquerda que se encontra no poder há três mandatos presidenciais. A eclosão das crises, a impossibilidade de continuar a administrar as dificuldades de maneira protelatória, expressam a falência desse modelo.

Comprovou sua falência o modelo econômico que se funda-menta no dirigismo estatal do processo produtivo, para o benefício suposto de grandes grupos nacionais. O assim chamado capita-lismo de Estado demonstrou sua inoperância nas condições de um mundo globalizado.

Chegou também ao fim, aparentemente, o sistema político conhecido como presidencialismo de coalizão, fundado na concen-tração de poderes no Executivo por meio de barganhas diversas

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com um Congresso fragmentado. De forma semelhante, a gestão dos serviços públicos, a partir da diretriz de um centralismo buro-crático, parece ter esgotado sua capacidade de responder às demandas da população. No lado da crise de gestão política da coalizão governamental, o estilo de liderança de corte hegemo-nista, que tende a tratar adversários como inimigos e aliados como subalternos, já chegou ao seu ápice e encontra-se em declínio vertiginoso. Finalmente, a corrupção e a adaptação a ela não são mais toleradas pelos eleitores.

Uma crise dessas proporções produz um enorme vácuo polí-tico. Não parece provável, até o momento, uma escalada crescente das manifestações até à ocupação permanente de espaços públicos, a exemplo do que ocorreu na Espanha, nos Estados Unidos e na Primavera Árabe. O governo, por sua vez, parece resistente ao aprendizado dos fatos. Aparentemente, procura ganhar tempo, apostando no esvaziamento das manifestações, na diluição da rejeição popular, estratégia que pareceu vitoriosa em 2013, e na recomposição com os partidos aliados. A crise, no entanto, e o consequente desgaste da esquerda, identificada de modo geral com o petismo, abriram espaço para a manifestação de tendências de direita, tanto de orientação democrática quanto autoritária. Para ambas, a crise é uma oportunidade de ganhar legitimidade política para construir alternativas partidárias que os representem.

Nenhuma dessas possibilidades - a refundação do status quo ou a guinada conservadora - são satisfatórias para aqueles empe-nhados na construção de alternativas positivas e democráticas para a crise. Para iniciar esse processo, na conjuntura presente, duas condições devem ser preenchidas. Em primeiro lugar, a afir-mação intransigente dos princípios democráticos e republicanos, inclusive em confronto com as tendências autoritárias oposicio-nistas. Em segundo lugar, a formulação de uma agenda política que aponte soluções para cada uma das dimensões apontadas da crise: uma política econômica universalista, com benefícios sele-tivos apenas para micro e pequenas empresas; reforma política; reforma democrática do Estado; maior transparência na gestão pública e responsabilização dos seus agentes.

Com o deslocamento da operação política para o coração do Legislativo federal, se tivermos objetivos, é possível construir saídas para a crise que joguem os anseios manifestados pela intensa participação popular no sentido de renovar e fortalecer as estruturas de representação da democracia brasileira.

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I. Tema de Capa: E agora, Brasil?

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Autores

Alberto AggioProfessor titular de História da Unesp/Franca, presidente do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira .

Luiz Werneck ViannaCientista social e político, professor e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro .

Marcio Sales SaraivaCientista político, formado em Ciências Sociais na UERJ com básico em Teologia na PUC-Rio, é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UERJ . Foi fundador do Programa de Estudos Políticos (PEP) no Nuseg e é pesquisador na área de políticas públicas, filosofia política e teoria democrática.

Moacir LongoJornalista, ex-vereador da Câmara Municipal de São Paulo cassado, consultor e assessor de imprensa .

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O Brasil Hoje – Março 2015

Moacir Longo

As jornadas de protestos de junho de 2013 já indicavam o des-pertar da sociedade brasileira para uma realidade enganosa vendida pelo lulopetismo. Realidade criada por marqueteiros

e pela dupla Lula/Dilma, baseada no ufanismo, no baluartismo e na mentira. Apesar disso, os protestos de junho de 2013 acabaram esvaziados pela ausência de lideranças e organizações com capa-cidade e reconhecida legitimidade para capitalizar as insatisfações difusas e de transformá-las em um programa objetivo de reformas e levá-lo às ruas e às esferas das instituições nacionais.

Afinal, teríamos logo em seguida àqueles acontecimentos a Copa do Mundo e as eleições gerais, que passavam a chamar todas as atenções. A oposição, tímida e minguante ao longo dos 12 anos de governo do lulopetismo, ficou inerte durante os acon-tecimentos de junho de 2013, razão pela qual não se habilitara para, com uma ação vigorosa, representar os anseios de mudanças claramente manifestados pela nação. Não se dispôs a desmas-carar as imposturas de um suposto “governo de esquerda” que se associou a grupos oligárquicos, institucionalizou o aparelhamento do Estado e empresas estatais, com objetivos claros de se perpe-tuar no poder.

Resultado, o lulopetismo percebeu que, apesar dos protestos, o caminho para conquistar mais quatro anos de mandato estava livre, como estivera em 2006, depois das lambanças do mensalão, e em 2010, quando o candidato da oposição José Serra chegou a proclamar que Lula, patrono da candidatura Dilma, “estava acima

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do bem e do mal, era quase um deus”. De tal modo que o que se discutia nos primeiros meses de 2014, além de futebol da Copa, eram as eleições de outubro que se aproximavam e uma fácil vitória do petismo. Porém, eis que surge um fato novo. O governador de Pernambuco, Eduardo Campos, decide disputar a Presidência da República e leva seu partido, o PSB, a retirar-se da chamada base governista, provocando interessante mudança no quadro eleitoral.

Assim, as expectativas de uma campanha eleitoral morna, com uma disputa entre uma candidatura governista de Dilma, pode-rosa, e uma candidatura Aécio, pela oposição, anêmica, começam a mudar, na medida em que Campos consolida sua candidatura e seu partido explicita a ruptura com o governo petista. Desse modo, o pleito de outubro, que se aproximava, já passava a contar com três candidatos competitivos, aumentando as possibilidades de haver segundo turno. E mais, o PSB absorveu uma liderança em ascensão, Marina Silva, que não conseguira viabilizar o registro do seu partido, a Rede. Forma-se, então, a dupla Campos/Marina, que procura se credenciar para representar, na disputa eleitoral, os anseios de mudanças para uma nova política e uma nova reali-dade, explicitadas durante as manifestações de junho de 2013.

Mas, vem o acidente aéreo que tirou a vida de Campos, e Marina assume a titularidade da candidatura presidencial pelo PSB-PPS e outros pequenos partidos, fato que provoca uma ines-perada reviravolta no quadro eleitoral e a certeza de segundo turno, com possibilidade de vitória da oposição. O lulopetismo entra em pânico e desespero. Tem início uma campanha sórdida, suja e mentirosa, visando a desconstrução não só da candidatura de Marina, mas também de sua imagem como pessoa, ao mesmo tempo em que os marqueteiros do governo lulopetista apresentam na TV a imagem de um Brasil perfeito, rico, poderoso, sem nenhum problema a ser resolvido, em suma, um jardim florido.

O eleitorado começa a prestar mais atenção no processo elei-toral e a reagir diante da campanha suja desencadeada pela candidatura governista. Ao perceber que Marina se apresenta frágil para reagir aos ataques e às calúnias levantadas, resolve, então, se deslocar para a candidatura Aécio Neves, do PSDB. O segundo turno se confirma e por muito pouco a oposição deixa de vencer a eleição.

O povo, que diante do agudo embate em que se transformou o pleito, cujo processo acompanhou e dele participou, gravou na memória as promessas da candidata Dilma e o que ela disse que não

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faria “nem que a vaca tussa”, e percebeu, logo em seguida à apuração dos votos, que fora enganado. Resultado: a última pesquisa, divul-gada no dia 17 de março, feita sobre a avaliação do governo lulope-tista de Dilma deu como resultado apenas 13% de ótimo/bom, e 62% de ruim/péssimo, segundo o Instituto Datafolha.

E o universo pesquisado não foi somente aquele taxado de “elite branca” pelos áulicos do governo, já que foram ouvidas pessoas em todas as regiões do país e o resultado mostra um descontentamento uniforme da sociedade como um todo, de uma ponta a outra do nosso imenso território. O ruim e péssimo é cravado no Sudeste (66%), no Nordeste (55%), no Sul (64%), no Norte (51%) e no Centro-Oeste (75%).

Desse modo, iniciamos o ano de 2015, com novo velho governo repudiado pela sociedade e a caminho do completo isolamento polí-tico. Com o país em crise de graves proporções porque ela envolve a economia em recessão, o aumento do desemprego, os juros altos, a inflação crescente acima do teto da meta, os elevados déficits nas contas interna e externa, reforçada pela crise política que tem o governo, mais uma vez, envolvido em um escândalo de corrupção sem paralelo na história brasileiro, tendo como foco a Petrobras.

Portanto, não cabe surpresa ao se constatar a insatisfação da sociedade com o estado de coisas presente no Brasil. É o senti-mento de revolta de um povo que se sente enganado por gover-nantes sem escrúpulos e por isso foi para as ruas na jornada de 15 de março de 2015 expressar sua indignação, de forma pacífica, mas clara e enérgica. O recado está dado. Cabe às forças políticas de oposição se unirem e se prepararem para liderar um processo de mudanças que, mais uma vez, o povo está exigindo e não encontrou resposta adequada até agora.

As manifestações do dia 15, as maiores já ocorridas no país, não tinham palanques, não tinham apresentadores, não tinham listas de oradores, não tinham bandeiras de partidos políticos. Tinham faixas e cartazes improvisados, condenando a corrupção, o desgoverno Dilma e o sistema de poder, baseado no populismo, na corrupção e na mentira.

As manifestações tinham a insatisfação com tudo o que aí está, mas faltou explicitar o que fazer e como fazer. Qual o programa de mudanças a ser implementado. Faltou e nem podia ser diferente, já que as manifestações ocorrem por iniciativa das multidões. A formulação de um programa claro e objetivo é tarefa que cabe às lideranças políticas dos partidos de oposição e dos

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movimentos sociais que haverão de aparecer para liderar o processo, apontando as medidas e caminhos para superar a crise, com reformas de profundidade, a partir de uma ampla mobili-zação das forças democráticas, que leve o país ao crescimento econômico, à geração de emprego, à melhor distribuição de renda, à radical melhoria do sistema de saúde pública e da educação, da segurança pública e da mobilidade urbana.

Apesar da gravidade da crise e do isolamento do governo, tudo indica que dificilmente teremos uma ruptura que conduza, de imediato, ao afastamento da presidente da República, a não ser que surjam fatos novos de grande relevância e a interrupção do mandato de Dilma se torna inevitável, em consequência. Sendo assim, é preciso que as forças políticas de esquerda, democráticas e progressistas, por meio de suas lideranças mais lúcidas, se colo-quem à frente dessa batalha iniciada com a jornada de 2013, e ampliada em março de 2015, preparando um programa de mudanças e reformas fundamentais para qualificar o salto de qualidade, almejado pelo país, superando esse quadro de perple-xidade em que está mergulhada a nação.

Mas, na eventualidade de ocorrer o afastamento da presidente em meio ao período do seu mandato, é preciso que as forças demo-cráticas e progressistas liderem também o encaminhamento de soluções institucionais para o mandato tampão que a sucederá, e, com medidas de emergência, estancar a crise e preparar as condi-ções para as eleições de 2018, constituindo um bloco hegemônico capaz de vencer o pleito, formar um governo comprometido e disposto a realizar mudanças e reformas de profundidade, sem as quais o Brasil não encontrará o caminho do crescimento susten-tável, com o aprofundamento da democracia em escala de massas, atento às reivindicações que os milhões de manifestantes que foram às ruas e que, certamente continuarão indo, reclamam e não aceitam mais tergiversação.

É clara, portanto, a percepção de que, para fazer as mudanças do porte sugeridas, torna-se indispensável a junção de forças em um bloco poderoso, capaz de vencer resistências. É possível que seja necessário constituir uma nova formação partidária que reúna as lideranças mais lúcidas dos diferentes partidos atual-mente existentes. O apoio e a participação dos movimentos sociais organizados, envolvendo todas as classes e camadas sociais a essa nova formação partidária, permitirão construir a força hege-mônica que conduzirá a luta para uma nova acumulação, sufi-cientemente forte para levar à prática um projeto nacional de

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1717O Brasil Hoje – Março 2015

reformas, capaz de tirar o Brasil da crise estrutural que tem gerado irritabilidade e travado seu progresso.

Não se deve imaginar que transformações, pelas quais o Brasil precisa passar, se darão de uma hora para outra e por meio de um golpe de força. Será necessário passar por um processo de acumu-lação pela via institucional, promovendo revisões constitucionais empreendidas por um Congresso com poder constituinte, que poderia ser eleito já no pleito de 2018, para abrir o caminho das reformas.

Esses poderes constituintes, limitados no tempo, terão que ser respaldados por um amplo movimento de apoio participativo e construtivo da sociedade. Assim, teríamos uma combinação da utilização do processo eleitoral, com as pressões de massas dos movimentos sociais organizados, e uma ação institucional no âmbito do Congresso, com poderes constituintes, para concretizar as reformas e dar maturidade à nossa democracia.

As forças de esquerda, democráticas e progressistas, lideradas pelo PCB, no período do após guerra, tinham um projeto nacional de mudanças fundamentais e revolucionárias para o país, que, nos anos 1963/64, foi sintetizado no Programa de Reformas de Base. Derrotadas pelo golpe militar de 64, em um primeiro momento instalou-se um quadro de perplexidade, desalento e até de apatia diante da frustrante derrota. Logo, essas forças se recu-peraram, trataram de definir os novos objetivos da luta e, em torno deles, acumular forças para derrotar a ditadura e instaurar um Estado democrático de Direito no Brasil.

A tarefa de hoje é parecida com aquela que, depois de 20 anos de luta contra a ditadura, foi possível convocar a Assembleia Nacional Constituinte e promulgar a Constituição de 1988. A partir de então, para dar o passo seguinte, as forças de esquerda, democráticas e progressistas, teriam que se concentrar na reali-zação de reformas estruturais e, no plano político, construir uma democracia de massas, institucionalizá-la, para completar a tran-sição iniciada com o processo constituinte de 1988. No plano econômico, impunha-se uma agenda de modernização do país, acelerando o desenvolvimento das forças produtivas para gerar empregos e renda, e combater a pobreza que foi se acumulando ao longo dos séculos. Nessa direção, foi dado um passo importante: o programa de estabilização da moeda, mas não foram dados os passos seguintes. Resultado, o país não conseguiu superar a crônica crise estrutural. É preciso continuar tentando até vencer esse desafio.

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Superar a crise, construir a democracia

Alberto Aggio

Nós, brasileiros, somos muito céticos em relação às possibi-lidades de construção da democracia em nosso país. Não são poucos os momentos em nossa história em que predo-

mina esse sentimento crítico, tendo como base o reconhecimento dos imensos problemas que envolvem essa construção. Sabemos também que nenhum país construiu a democracia a partir de um plano previamente idealizado que eliminava impasses e conflitos. Há muitas dimensões a serem consideradas nesta construção e não há possibilidade de se aceitar a ideia de que alguém, por qual-quer razão, tenha controle ou domine os caminhos dessa emprei-tada. Os arquitetos da democracia, em qualquer tempo e latitude, são de natureza humana e vivenciam experiências historicamente determinadas, ainda que disso não tenham plena consciência.

Um dos problemas mais importantes na construção da demo-cracia é a dificuldade em se estabelecer e sustentar uma relação de equilíbrio entre política e economia, entre os avanços político-insti-tucionais e os avanços econômico-sociais. Os processos de moder-nização na periferia do mundo apresentam complicações adicionais se comparados aos países em que eles foram originários ou àqueles que se estruturaram na primeira fase de generalização do modo de produção especificamente capitalista ao redor do mundo. Assim, de maneira tardia, além de conquistar a democracia e aprender a conviver com sua complexidade, o grande desafio para nós seria o de fundamentar a democracia não apenas como um regime político, mas também como um tipo de sociedade. Em outras palavras, mesmo depois de alcançarmos uma nova situação democrática, como é o nosso caso depois da década de 1980, haveríamos que dar conta de sedimentar no conjunto da sociedade os ideais e os valores da democracia entendidos enquanto fundamentos de uma cultura política cívica que se constituísse nos alicerces normativos e simbó-licos de uma sociedade democrática.

Desta maneira, o caminho para a construção da democracia no Brasil é e continua a ser bastante complexo, paradoxal e ainda hoje pouco compreendido. E isso complica sobremaneira a capacidade de ação dos atores políticos e sociais para elaborarem projetos factíveis

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1919Superar a crise, construir a democracia

visando soluções positivas para as questões que afligem o conjunto da sociedade, para realizarem e darem sustentação a alianças polí-ticas com os mesmos objetivos, para enfrentarem, enfim, os diversos dilemas e as crises que emergem a cada momento na construção da democracia, fazendo com que prospere, em muitas ocasiões, uma descrença na eficácia da política democrática.

Em nossa história republicana, há poucos exemplos de governos que tomaram para si a tarefa de estimular a construção de uma sociedade democrática no país. Mas há muitos exemplos de governos que, eleitos democraticamente, pouco impulsionaram esse projeto. Foram oligárquicos e por isso apequenaram a polí-tica da democracia. Em contrapartida, tivemos governos que não podem ser qualificados propriamente como democráticos, mas que conseguiram implementar mudanças e gerar situações novas que, por sua vez, possibilitaram, em sua vigência e mais adiante, extraordinários processos democratizadores no plano social, embora tivessem congelado ou mesmo cancelado a sua dimensão política. Isso evidencia o desequilíbrio que acabou predominando em nossa história entre o político, o social e o econômico. É uma situação muito característica de países da periferia do mundo, como mencionamos acima. Desta maneira, paradoxalmente, poderíamos dizer que o processo político que deu base para a construção do Brasil moderno e que criou as condições para o advento e perenização da questão democrática em nossa socie-dade se caracteriza por uma “ampliação autoritária da República”, para usarmos aqui uma expressão do cientista político Luiz Werneck Vianna. E, por essa razão, sempre andamos às voltas com os fantasmas do autoritarismo, mesmo depois de conquis-tarmos uma situação democrática favorável à expansão da ideia de uma sociedade democrática, o que representaria uma verda-deira revolução na história do país.

Vale insistir nesse ponto. O curso dessa história, desde o nascimento da República entre nós até o regime ditatorial, passando pela Era Vargas, estabeleceu uma trajetória de conse-quências indeléveis: o nosso caminho rumo a uma sociedade democrática não se caracterizou por condutas e pelos métodos da democracia política. Há um desequilíbrio em nossa história que, não obstante, não impediu o avanço da modernização, muito ao contrário, foi reproduzido por ela e criou uma forma de pensar e fazer política eivada de problemas. Mesmo assim, desde o fim do regime ditatorial, a sociedade brasileira tem demonstrado, com maior ou menor ímpeto, maior ou menor clareza, que está disposta

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2020 Alberto Aggio

a vivenciar o desafio de encontrar um novo caminho para a cons-trução democrática da nossa República, invertendo o vetor até agora dirigente da nossa história. E, em todos os governos pós-ditatoriais, de Sarney a Dilma, passando por Itamar, FHC e Lula, houve avanços consideráveis nessa direção, apesar de alguns percalços e de uma sensação perturbadora frente ao fato de que a democracia política parece se consolidar e, simultaneamente, se percam pelo caminho os valores e fundamentos que dão susten-tação a uma sociedade democrática.

Trata-se de um impasse contundente e que não pode ser abor-dado sem um ajuste contas, não à maneira revolucionária, como nos velhos tempos, com os passivos de ordem social, cultural e política que marcam nossa história. Afirmar que a construção da democracia significaria uma verdadeira revolução guarda relação com a ultrapassagem histórica que ela supõe e que incorpora tanto as questões que envolvem a cultura cívica dos indivíduos até as dimensões de engenharia político-institucional que este processo demanda. Um processo que necessita de atores movidos não por horizontes teleológicos e sim por objetivos políticos perma-nentes de mudança.

O passivo principal se traduz no índice elevado de desigual-dade social, uma marca dolorosa que ainda se mantem, a despeito da ampliação do consumo das classes populares nas últimas décadas. Mesmo depois das iniciativas dos governos Lula ainda é um consenso compartilhado entre diversos especialistas que o Brasil, apesar da diminuição da extrema pobreza, não conseguiu resolver o problema da desigualdade social dentro de parâmetros aceitáveis. Tanto mais porque o último governo Dilma adotou uma política macroeconômica desastrada que resultou na diminuição do crescimento e fez vistas grossas para o avanço da inflação, o que coloca flagrantemente em risco esses parcos avanços. Não resta a menor dúvida de que essa é uma questão que fragiliza a nossa democracia, estando à espera de soluções de caráter mais estrutural e orgânico para que sejamos realmente distintos do nosso passado.

Em favor dos últimos anos, se poderia dizer que a democracia ajudou a construir uma nova visão a respeito desse problema no sentido de indicar que a superação desse passivo não deve ser mais vista como um problema exclusivamente atinente ao Estado e externo à sociedade civil, ainda que se deva observar os avanços extraordinários realizados pelo Ministério Público, chamando para si uma função democrática que antes pouco se notava. De qualquer

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maneira, estabilizada a transição à democracia e imersos nos seus complexos problemas, os brasileiros vêm demonstrando cons-ciência de que o esforço cabe a cada um e à sociedade em seu conjunto, por meio das instituições públicas. Esse “espírito” novo, que se espalhou pela Nação, expressa a necessidade cada vez mais presente de consolidação de uma nova cultura cívica valorizadora do espírito público, da conduta republicana, do respeito à lei e aos direitos individuais e coletivos. Em outras palavras, com a demo-cracia parece haver melhores condições para se realizar uma maior e também nova conexão entre o político, o social e o econômico.

Ainda que de maneira pouco elaborada, foi isso que fez explodir as já históricas jornadas de junho de 2013, que lotaram as ruas e avenidas das principais cidades brasileiras. Com acertos e erros, típicos de manifestações difusas, aquele foi um momento em que a sociedade brasileira, já mais acostumada ao livre curso da vida democrática, pode expressar toda sua vitalidade, surpreendendo a todos.

Quem não se recorda da frase: “vocês não me representam”? Dentre todas consignas que foram consagradas pelas ruas em junho de 2013, esta talvez tenha sido a que mais ficou registrada na memória coletiva como expressão do rechaço ao sistema polí-tico e anseio por mudanças. Em meio à multidão, a frase sinteti-zava a crise de representação que, dentre outras coisas, atuali-zava mais uma vez o Brasil ao mundo, em simultaneidade com eventos similares que marcavam as ruas e praças na Europa e nos EUA. Crise substancial e de largo espectro, mas de delicado equacionamento fora dos ditames do realismo político, aquele brado foi perdendo impacto e, como um eco, permaneceu latente até os dias de hoje, expressando-se também no último processo eleitoral mediante a centralidade que assumiu a ideia de mudança e também o elevado índice de abstenção. Aqueles que não se sentiam representados ainda continuaram a emitir sinais no sentido de encontrar seus representantes ou então uma nova forma de representação, muitas vezes codificada pela noção de democracia direta e concebida invariavelmente em substituição à democracia representativa.

As multidões que ocuparam as ruas naquele junho pareciam buscar uma via de passagem para um “represamento”, já então angustiante. A ira e o ódio contra os políticos, os governantes e seus partidos explodiram do fundo da alma. Contudo, em meio ao turbilhão, as multidões não invocaram o desejo e nem imprimiram uma prática que visasse colocar abaixo a democracia fundada na

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Carta de 1988. Esta manteria sua legitimidade intocada, reve-lando que a ameaça que pairava sobre a ordem constitucional estava sendo urdida bem longe das ruas. Como “um grito parado no ar”, a frase lembrada acima não apontava e nem mesmo insi-nuava um caminho de mudanças, que depois viria a ser objeto das mais extravagantes proposições.

Nas manifestações, um tanto ingenuamente, e, de maneira ardilosa, nas respostas sugeridas desde as alturas do poder, pareceu haver a expectativa de que se pudesse solucionar nossa manifesta crise de representação a partir de um lance acrobático, decretando-se institucionalmente a criação de “espaços” de parti-cipação para os “verdadeiros representantes” do povo que foi à rua, cindindo o conjunto da cidadania brasileira. Combinada com a pulverização de “conselhos” representativos dos movimentos sociais em todos os órgãos da administração pública emergiu também a ardilosa proposição de “Constituinte específica”, cuja intenção declarada seria a realização da reforma política. Ambas proposições deram o tom de nonsense às respostas governamen-tais que viram ou quiseram ver as jornadas de junho e sua plural vocalização de descontentamento como um acontecimento unidi-mensional. À impropriedade adicionaram-se a impressão de opor-tunismo eleitoral e uma inquietante preocupação com propósitos obscuros que poderiam emergir num futuro relativamente breve. Tudo isso redundou em perda de confiança da opinião pública em relação às duas proposições feitas pelo governo Dilma e em distan-ciamento até mesmo daqueles que haviam abraçado o movimento espontâneo e difuso que havia brotado do chão das ruas.

Mas há que se olhar todo esse processo a partir de uma pers-pectiva mais ampla. Se por crise se deve entender a perda de critério que orienta a normatividade de nossas condutas, a que emerge atualmente nas democracias contemporâneas, inclusive na brasileira, é uma crise específica e não uma crise orgânica ou histórica que estaria a demandar a construção de um novo Estado, como nos ensinou Gramsci. As jornadas de junho e o que se seguiu expressaram uma crise específica de legitimação dos meca-nismos do sistema político, uma crise na democracia e não uma crise da democracia. Guardada a particularidade das experiências históricas, a democracia brasileira pode ser considerada “tão democrática” quanto as democracias hodiernamente em vigência. Em todas elas, a necessidade de reformas constantes que visem aperfeiçoar seus sistemas de representação e participação é parte integrante da sua própria natureza.

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2323Superar a crise, construir a democracia

“Democratizar a democracia”, uma consigna evocada de maneira mais organizada pelos manifestantes, expressaria formal-mente um diagnóstico similar, de operacionalidade e prognós-ticos, todavia, incógnitos. Outro significado, contudo, guardaria a mobilização da noção de democracia direta, que se fundamenta, sobretudo, numa hipersimplificação do político, um ilusionismo que visa traduzir o ato de governo como algo simples e direto, sem delegação, no qual o envolvimento dos cidadãos com a coisa pública seria contínuo e permanente. Adicionalmente, argumenta-se a total compatibilidade da democracia direta com a revolução digital em curso. Esquece-se, contudo, que a fórmula da repre-sentação política foi criada no mundo contemporâneo, e com sucesso, para superar a dicotomia entre a democracia dos antigos (de ênfase pública) e a dos modernos (na qual se introduz dimen-sões do mundo privado na vida política). Esquece-se também, como argumenta Pierre Rosanvallon, que, hoje, a democracia não se exaure nas eleições e tornou-se uma realidade política complexa, composta de arenas participativas e de novos fluxos comunicacio-nais que ampliam, condicionam e estabelecem a vigilância entre representados e representantes. Não há mais, por assim dizer, uma democracia liberal tout court, apartada das tensões e crises próprias à de um laboratório conceitual e prático do presente em que se transformou a experiência democrática contemporânea.

De uma forma ou de outra, o Brasil também participa do percurso de construção dessa democracia dos contemporâneos. Entretanto, os últimos anos de “presidencialismo de coalizão” acumularam práticas paralisantes que bloquearam uma relação livre e produtiva entre o Estado e os movimentos autônomos nascidos da sociedade. O resultado tem sido o pouco enriqueci-mento da cultura cívica entre nós e, com ele, a diminuição de nossa capacidade, como sociedade, em nos envolvermos seria-mente nas questões atinentes à engenharia das instituições e à renovação da relação povo-poder.

Um cenário cada vez mais problemático e que tende a se agudizar nos próximos anos em razão de um descrédito generali-zado que toma conta do governo “conduzido” por Dilma Rousseff, um governo que acaba de tomar posse depois de uma reeleição apertada e já se apresenta envelhecido. Em sua composição se observa uma clara dissintonia, não apenas discursiva, entre seus membros e na hierarquia de comando. O novo governo não conse-guiu, até o momento, superar o passivo que carrega em relação aos processos de corrupção na Petrobrás, de consequências polí-

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ticas imprevisíveis, nos quais estão implicados técnicos e políticos da sua base de apoio. Além do descompasso com o discurso de campanha (falou-se uma coisa e se faz outra), um autêntico “este-lionato eleitoral” que, no tocante ao programa econômico e geren-cial, vem erodindo inclusive o apoio da sua própria base social. Por outro lado, a nova marca deste governo – “Brasil, pátria educa-dora” – por não apresentar nada de concreto, e, ao contrário, reti-rando recursos do setor, deixa a sensação de que o enfoque de marketing ainda é o predominante. Por último, mas não menos importante, a menção no discurso de posse de Dilma Rousseff de um dito apócrifo, confirmando a sua visão de que “o impossível se faz já”, só pode ser suportado com o beneplácito concedido a uma quase septuagenária que ainda vive intimamente os devaneios de sua juventude rebelde. O agravamento da crise econômica nesses primeiros dias da nova gestão e a falta de convicção em relação às medidas que estão sendo tomadas expõe a grande desorientação na qual o governo está enredado, aproximando-o de uma deriva de degradação política, o que perigosamente pode ultrapassar o terreno da sociedade política e se espalhar por um tecido social que, cada vez mais, perde a sua capacidade de coesão social.

Há, portanto, uma crise instalada e que provavelmente irá ser redesenhada, nos próximos quatro anos. Isto se coisas mais graves não acontecerem nesse percurso. O PT, partido da presi-dente e líder da coalizão de governo, mostra-se incapaz de afrontar a crise uma vez que parece se encontrar ainda prisioneiro de um virtuosismo mafioso, ainda incólume, cujas consequências não fazem outra coisa senão empastelar os pressupostos da demo-cracia que os brasileiros vêm construindo a duras penas e que deveria cada vez mais se abrir à participação ativa de milhões. A conjuntura não favorece, portanto, visões otimistas e ampliam-se as dificuldades e os desafios colocados a todos os atores polí-ticos para encontrarem, com realismo, os termos, meios e modos para superar a crise e conseguir recompor a confiança do país em continuar vivenciando e ampliando a política da democracia.

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Fim de ciclo e nova hegemonia para refundar a república

Marcio Sales Saraiva

Mas, enquanto se vive neste mundo, existe alguma espe-rança; porque é melhor ser um cão vivo do que um leão morto (Eclesiastes 9:4 – Bíblia NTLH)

O novo governo de Dilma Roussef (PT) já nasce desatualiza-do, politicamente, logo após assumir em 1º de janeiro de 2015. Há dois sentidos para esse envelhecimento precoce.

Primeiro, ele herda a “herança maldita” de si mesmo, na busca de recauchutagem para a estagnação do ciclo de grandes obras (inacabadas!) e “pacotes de bondades”. Não dá mais para conti-nuar a festa e chamam o ortodoxo Joaquim Levy, eleitor de Aécio, para arrumar as contas públicas e tentar retomar credibilidade. Além disso, o governo Dilma comete erros nas escolhas públicas e alianças que aprofundam a crise econômica e política.

No campo político e simbólico, o governo criou uma disso-nância cognitiva nos eleitores brasileiros. Dilma e João Santana prometeram um governo à esquerda do que realiza, desdenharam de um possível ajuste fiscal com tarifaço, acusaram os adversá-rios de serem fantoches a serviço dos bancos privados, dos juros altos e da inflação. Desconstruíram Marina Silva (PSB-REDE) e Aécio Neves (PSDB) como candidatos contrários aos direitos dos trabalhadores e programas sociais. A imagem da ex-guerrilheira empolgou pessoas de boa fé e alimentou a esperteza dos que apenas queriam conservar o poder nas mãos da coalizão que caminha para dezesseis anos, já tendo Lula como candidato da “mudança com continuidade”. O choque de realidade eletrizou o sentimento popular: “fomos enganados”.

Hoje, sabemos que a vaca já tossiu, a irresponsabilidade fiscal é nítida, a gastança “neodesenvolvimentista” de Guido Mantega/Dilma criou assimetrias graves na economia e o programa elei-toral do PT em 2014 parece uma projeção psicanalítica no outro daquilo que faria na presidência. E fez. Os resultados aí estão. Perda de credibilidade, erosão da base de apoio parlamentar – depois de tentarem ser mais espertos que o velho PMDB –, impo-pularidade, protestos, negativação dos indicadores macroeconô-

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micos e escândalos de corrupção que colocam o “mensalão” como coisa de estagiários.

O país está dividido. Por um lado, temos as forças produtivas em ritmo lento, em alguns casos, processo de paralisia. Capital e trabalho estão perdendo e o PIB não decola. Na outra ponta, setores sociais são insuflados contra o suposto “golpismo” da oposição, criando um clima de “nós” contra “eles”, como se vivêssemos em 1964.

O Congresso Nacional, atingido pela crise da “Lista Janot”, fruto da Operação Lava Jato, parece imobilizado e mal humorado com o governo. Eduardo Cunha (presidente da Câmara) e Renan Calheiros (presidente do Senado), ambos do PMDB, sentem-se constrangidos com o envolvimento dos seus nomes no esquema do chamado “petrolão” e perdem força, mas prometem arrastar o governo na crise que se aprofunda. Sem uma articulação política competente – quem é Pepe Vargas? – e isolando Michel Temer, vice-presidente da República e presidente do PMDB, o petismo desce a ribanceira.

Para piorar o cenário, a presidente Dilma é conhecida nos basti-dores como pessoa pouco afeita ao diálogo político que envolve perdas e ganhos na construção de um consenso possível. Forjada no marxismo autoritário das guerrilhas antiditadura e no caudi-lhismo brizolista, entronizada no PT pelo ex-presidente Lula da Silva, ela parece indisposta diante da urgente necessidade de um pacto nacional e perde prestígio dentro do próprio partido, ainda que vá para a TV falar em humildade e diálogo. Quem acredita?

O governo, montado de forma esquizóide no loteamento de cargos e ministérios para agradar a diversos interesses partidá-rios e sociais contraditórios, reúne Kátia Abreu, do agronegócio, até os militantes dos sem-terra (MST). É impossível governar com tamanho espectro ideológico e manter maioria num Congresso com 28 partidos políticos em busca de fatias do orçamento. As disputas internas na máquina governamental só aumentam a percepção de fragmentação e de ausência de um eixo programá-tico que dê unidade às forças governistas. Falta liderança.

A oposição cresce, não pela capacidade de intervenção e mobili-zação do PSDB ou mesmo de Aécio Neves, o nome que capitalizou milhões de votos no último pleito. Cresce nas ruas, na sociedade civil. E é neste ponto que as “esquerdas tradicionais” (PDT, PCdoB e PT) se encontram perdidas. Como defender um governo, suposta-mente de esquerda, liderado pelo PT em aliança com setores nitida-mente de direita e fisiológicos, sendo este mesmo governo o objeto de repúdio da maioria nacional? É patético ver as esquerdas tradi-

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cionais na contramão do sentimento popular, dissociadas da reali-dade do país e, por vezes, defendendo um governo que tem o apoio de setores expressivos do que se convencionou chamar de direita.

Cresce então a percepção antiDilma e, com a corrupção nas esta-tais, o antipetismo ganha colorações quase histéricas, mas é compreen-sível. Há razões suficientes para este sentimento de repulsa.

As forças de oposição assistem a tudo isso bestializadas – para lembrar José Murilo de Carvalho – e também tem dificuldades para se articular com a sociedade que pulsa nos protestos organi-zados por movimentos que mantêm distância defensiva dos partidos políticos, tal como o “Vem para a Rua”. O sistema polí-tico, carente de uma reforma, não consegue processar o que vem das ruas, as demandas da sociedade, num curto-circuito do sistema de input-output. Nem o governo anda, nem a oposição parece ter um projeto de país, ficando no varejo das críticas pontuais e surfando nos erros do dilmismo.

As manifestações de 15 de março de 2015 revelam a força de 2 milhões de pessoas que foram as ruas protestar contra o governo petista e os diversos esquemas de corrupção, isso sem máquinas partidárias ou sindicais. O alvo foi o Palácio do Planalto e agora o PT experimenta seu próprio veneno ao ver o povo clamando “Fora Dilma” e, em alguns casos mais exaltados, “Impeachment já”. Os que protestam aprenderam com o PT e seu desprezo pelas regras do jogo democrático durante duas décadas. Enquanto o PCB, na década de 1980, já entendia a democracia como valor universal e compreendia a importância de se construir frentes democráticas que possibilitassem mudanças sociais significativas (WEFFORT, 1984), priorizando os interesses do mundo do trabalho, o PT fler-tava com o esquerdismo mais infantil, moralista (no pior sentido!), purista e inconsequente.

É importante perceber que estes movimentos de protestos anti-governo têm apoio discreto dos partidos de oposição e sofrem críticas da autodenominada “oposição de esquerda” que tem no PSOL seu maior referencial, mas incapaz de mobilizar e sacudir as ruas. Na prática, os pequenos partidos de ultraesquerda acabam, na ausência de perspectivas de uma mudança social radical, alinhando-se ao petismo como “mal menor” ou “medo do pior”. O espantalho do “golpe” é usado pelo governo como agente de unidade na guerra contra “eles” (tucanos, “coxinhas”, “PIG”, “elites brancas”, oposição).

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Como não existe espaço vazio na política, setores ultraconserva-dores tentam ocupar o campo social antiDilma com seu arsenal de irracionalidades, tais como os pedidos de intervenção militar, slogans anticomunistas, críticas à pedagogia do oprimido de Paulo Freire (tida como “doutrinação marxista”) e “Fora STF”. Estas vozes da extrema direita anticomunista e claramente golpista não têm sustentação na opinião pública e nem nos aparatos militares do Estado, formam uma minoria nos protestos – ainda que úteis ao governismo para caricaturizar toda a oposição – mas se o campo progressista, democrático e de esquerda não abrir diálogo com o conjunto dos movimentos antiPT e anticorrupção ou se entrar no jogo ultraesquerdista da generalização, etiquetando-os todos como “agentes da direita reacionária”, essa minoria antidemocrática que se faz presente nos protestos anti-governo poderá crescer e ganhar hegemonia. É aí que está o perigo para todos os democratas e a necessidade de juntos, oposição e governo, cerrarmos fileiras na defesa do Estado de Direito democrático. Dito de outra maneira, ou a esquerda democrática e todos os progressistas assumem seu papel nos movimentos de oposição ao governo Dilma/PT, ou pode-remos assistir um crescimento dos setores golpistas e de extrema direita que, no vácuo, vão ocupando espaços físicos e simbólicos.

Não se nega a legitimidade dos protestos contra Dilma e o PT, pois há razões de sobra na atual conjuntura, mas se faz neces-sário disputar no campo do discurso e da mobilização social o tom que deve ser dado, a agenda, os eixos, e ampliar a leitura para além do personalismo e do partido da ocasião. Os movimentos sociais de oposição ao governo carecem de (1) uma cognição mais ampliada sobre os problemas estruturais da corrupção – para não ficar preso ao moralismo tipo UDN –, (2) compreender os erros das políticas públicas adotadas durante a “Era PT”, (3) perceber os limites do presidencialismo de coalizão que temos hoje (colocar o parlamentarismo na agenda poderia qualificar a discussão na oposição), (4) saber que nem tudo emana da presidência (como se fossemos uma monarquia absolutista) e, portanto, as críticas devem ser também dirigidas às elites políticas do Parlamento federal. Por último, (5) entender que parte das elites empresariais deste país estão aliançadas com o poder petista, recebem subsí-dios questionáveis do BNDES e bancos públicos, financiam os esquemas de corrupção política.

É preciso apontar, por exemplo, para a necessidade de uma reforma política que dificulte processos de corrupção nos quais o poder econômico, em conluio com setores da burocracia estatal (os

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2929Fim de ciclo e nova hegemonia para refundar a república

“anéis burocráticos” que falava FHC na década de 70) e da buro-cracia dos partidos que estão no poder, distorcem o processo demo-crático, influenciam na escolha do eleitor e transformam as esco-lhas governamentais em benefício privado, quitando assim favores de campanha eleitoral. Bem pior que a roubalheira aberta são os “investimentos” que os grandes grupos econômicos fazem no processo eleitoral para mais tarde retirar ganhos escusos e nada republicanos. São essas “trocas de favores” que estão na origem do “petrolão” e isso ainda não é devidamente percebido pelos movi-mentos sociais de oposição à Dilma/PT. O exemplo dado por Prze-worski; Manin; Stokes (2006, p. 113) é bastante ilustrativo.

O fato é que para existirem e se apresentarem aos eleitores, os partidos políticos precisam arrecadar fundos. Quando estes fundos vêm de interesses particulares, são trocas de favores. Presumidamente, se Philip Morris Co. Inc. contribuiu, em 1996, com mais de US$ 2,5 milhões para o Comitê Nacional Republi-cano (New York Times, 28 de janeiro de 1997, p. 3), deve ter espe-rado pelo menos US$ 2,5 milhões em favores; de outra forma, seus dirigentes poderiam ter sido despedidos pelos acionistas. Os intercâmbios de contribuições políticas por favores de políticas geram distorções através de seus efeitos na distribuição de recursos. O custo social de tais distorções é provavelmente muito maior do que aquele do roubo aberto, que causa distorções apenas através de seus efeitos sobre os impostos.

Um novo campo político pode nascer, compreendendo que responsabilidade com os gastos públicos e maior eficiência e racio-nalidade na maquina estatal e nas escolhas públicas não é uma questão de “neoliberalismo”, mas um consenso entre todos os espec-tros políticos que já entenderam que o bem comum deve caminhar com o realismo necessário, pois “não podemos através da política alcançar o ideal absoluto, como ensinava Platão com cativante since-ridade” (CRICK, 1981, p. 1). E isso é construir uma nova esquerda “pós-moderna”, libertária, compromissada com os procedimentos e as regras do jogo democrático, articulando-se nas instituições da democracia representativa, nas ruas e movimentos autorais, sem querer encampá-los para si. Optando por ser retaguarda que alimenta o bom debate do que a vanguarda das certezas do passado. Utilizando-se de mecanismos de democracia direta e participativa, sem inte-resses ocultos de esmagar as minorias com o autoritarismo majori-tário, tal como vemos nos regimes bolivarianos. Uma esquerda que, a despeito da derrocada do socialismo real, não se envergonhe de dizer que “os mercados capitalistas desenfreados ainda apresentam muitas das consequências indicadas por Marx, inclusive a predomi-

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3030 Marcio Sales Saraiva

nância da ética do crescimento [predatório], uma objetivação universal [mercantilização da vida] e uma polarização econômica [assimetrias socioeconômicas]” (GIDDENS, 1996, p. 21).

Pressupondo que os partidos políticos ainda têm um papel importante nas poliarquias, regimes de maximização da liberali-zação e participação políticas que correspondem à democracia possível (LIMA JÚNIOR, 1997, p. 86-87), o PPS, Rede Sustentabi-lidade, PSDB, verdes e PSB poderiam construir um novo bloco histórico-político, em conjunto com diversos atores importantes da sociedade civil, que romperia com o petismo de cooptação e isolaria os discursos ultraconservadores e ultraesquerdistas, ampliando a democracia e restaurando solidariedades danificadas (GIDDENS, 1996, p. 21). Ofertar aos movimentos de protestos – e à sociedade brasileira como um todo – uma agenda reformista, ambientalmente sustentável e economicamente viável, que não se apegue ao Estado-Leviatã e nem se submeta aos interesses de curto prazo dos mercados, seria a construção razoável de uma saída política para a crise. É desta terceira via que precisamos para refundarmos a República em novas bases socioeconômicas, jurídicas, políticas e ambientais. É isso que entendo como “ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental” (Gramsci).

O ciclo pós-Sarney (1985-2015), chamado de Nova República, está chegando ao fim justamente com o partido que representava o novo no final do ciclo militar (1964-1985). É hora de construirmos o futuro e sem medo de ser feliz, pois “a esperança é um elemento decisivo em qualquer tentativa [de] mudança social na direção de maior vivência, consciência e razão” (FROMM, 1984, p. 24).

Referências

CRICK, B. Em defesa da política. Brasília: UnB. 1981.

FROMM, E. A revolução da esperança. Rio de Janeiro: Zahar. 1984.

GIDDENS, A. Para além da esquerda e da direita: o futuro da política radical. Rio de Janeiro: Unesp. 1996.

LIMA JÚNIOR, O. B. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997,

PRZEWORSKI, A.; MANIN, B.; STOKES, S. C. Eleição e representação. Lua Nova, n. 67, 105-138.

WEFFORT, F. Por que democracia? São Paulo: Brasiliense. 1984.

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Um outro mundo é possível

Luiz Werneck Vianna

Isso que aí está é o fim do mundo ou é começo de outro? Os sinais que vêm das ruas, ocupadas por multidões, que se re-novam quase semanalmente, embora desencontrados, expres-

sam, cada qual a seu modo, a mesma sensação de mal-estar com os rumos do país e de desconfiança na ação dos partidos e, em geral, na dos dirigentes políticos.

À diferença das manifestações de 2013 que apresentavam agendas de políticas públicas definidas sobre temas concretos, como os da mobilidade urbana, dos serviços de saúde e de educação, as que se iniciaram a partir de 15 de março de 2015, bem mais encorpadas, optaram pela marca difusa de um protesto contra a política, na forma como a que temos praticado.

No espaço de dois anos, o país se vê varrido por duas grandes ondas de mobilização social – mais duas estão a caminho. Sem contar a dos sindicatos que têm feito das ruas e rodovias lugar de teatralização das suas manifestações – a ocupação da Ponte Rio-Niterói por uma passeata de metalúrgicos foi a mais contundente –, a que se somam as de incontáveis movimentos sociais.

As ruas têm sido instituídas numa esfera pública paralela, à margem dos partidos e das organizações formais, mas, ao contrário das gregas e espanholas, nelas não se delibera e não se procura produzir autoesclarecimento sobre o que, afinal, nos aflige na hora presente.

De fato, não há por que tergiversar com a gravidade da situação, nem se pode contar com a garantia de que o caráter pacífico dessa leva de manifestações dos idos de março será preservado, pois a cólera e as paixões irracionais, se não contidas por ações respon-sáveis, trazem o risco de converter disputas políticas em guerra entre facções.

Não se pode ignorar que a sociedade, independentemente de suas clivagens partidárias, sente que seus sonhos foram roubados. O principal deles é o de que estaríamos em marcha batida para a afluência, com o bilhete premiado do pré-sal, cornucópia que nos permitiria o acesso a recursos abundantes

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3232 Luiz Werneck Vianna

para a modernização do nosso parque industrial e para polí-ticas afirmativas de inclusão social.

A descoberta de uma sinistra trama a envolver a Petrobras numa rede de relações corruptas com empresas e partidos da base governamental, inclusive com o hegemônico, afetando suas ativi-dades e a própria credibilidade da empresa, não só posterga a concretização desses legítimos anseios, como já deixa em seus rastros o desemprego de milhares de trabalhadores e a ruína de cidades que prosperaram em torno dos seus negócios.

Mas como tudo o que é ruim pode piorar, mal saído de uma eleição presidencial, o país é advertido pela presidente Dilma de que, ao contrário do que sustentou quando candidata, seria necessária uma mudança de rumos: um severo ajuste fiscal tomaria o lugar da aceleração do crescimento.

Trocar sonhos por pesadelos não é uma boa experiência. Chamada à realidade por eles, a sociedade defronta-se com um mundo para o qual não tem referências para se situar diante dos novos desafios a que está exposta. Sem confiar nos partidos, descrente do governo, faz das ruas um tribunal, pondo a política no pelourinho. Perigosamente, o demos se dissocia da República, abrindo passagem para soluções salvacionistas e homens provi-denciais, dos quais temos a infausta memória do regime militar e da eleição de Collor na sucessão presidencial de 1989.

A sinalização está feita – esta é uma hora que demanda com urgência a ação dos Poderes republicanos a fim de preservarmos e aprimorarmos as instituições conquistadas com a democrati-zação do país.

As reformas políticas têm de ser feitas e os crimes contra o patrimônio público ser apurados e punidos. Mas essas tarefas, embora necessárias e ingentes, não nos bastam. A emergência às ruas das multidões, em si auspiciosa, também tem revelado a rusticidade da nossa cultura política. A desinstalação do capita-lismo de Estado como ideologia reinante nos chega por impera-tivos sistêmicos, e não pela ação autocrítica do governo, que não reconhece os seus erros.

Décadas de passividade, de empobrecimento do debate público, sob o obscurantismo de concepções anacrônicas sobre os poderes demiúrgicos de um Estado tutelar e de heróis providenciais nos apresentam, agora, a sua conta: o maniqueísmo é a marca domi-nante da nossa cultura de massas.

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Saudáveis como são, essas manifestações de 2015, além de erráticas – quem defende o governo discorda de sua política econô-mica, quem o ataca a defende –, vêm à luz, contudo, condenadas ao efêmero, não nos deixando em seus rastros ideias novas. Nada nelas evoca os movimentos que deram partida ao Syriza, na Grécia, nem os que, na Espanha, serviram de base para a organi-zação do Podemos e dos Cidadãos.

Elas são apenas especulares da miséria intelectual – sintomá-tico o “nós contra eles” – a que nos condenou uma política reali-zada em nome de uma esquerda que, mesmo diante das inúmeras oportunidades que se apresentaram para abrir caminho em direção ao moderno, optou, com um pragmatismo sem alma, pela caixa de ferramentas e pelo repertório herdados do nosso passado, concedendo vida nova ao nacional-desenvolvimentismo e à estato-latria, sempre presente em nossa História.

Não se vive um fim do mundo, mas desse mundo aí. A crise que o anuncia é a hora de oportunidade para a afirmação dos Poderes republicanos, em particular do Judiciário e do Legisla-tivo, este último a se desprender – não importando as motivações de algumas de suas lideranças – da sua gravitação em torno do Executivo. Sob a modalidade bastarda como o conhecemos, soou a hora final para o nosso presidencialismo de coalizão, forma velada com que o autoritarismo político encontrou passagem para se reproduzir no cenário da Carta de 88.

Em meio a um cenário de escombros, com o que ainda resta de pé dá para entrever que um outro mundo é possível.

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II. Observatório

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Autores

José Antonio SegattoProfessor Titular de Sociologia da Unesp campus de Araraquara .

Roberto FreireAdvogado, deputado federal, presidente nacional do Partido Popular Socialista .

Tereza VitalePedagoga, feminista, militante política e editora de profissão.

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Trinta anos de retorno à democracia

Roberto Freire

Este 2015 tem um sabor especial para nós brasileiros, ape-sar de toda a crise que o Brasil está vivendo na economia, na política, no institucional, na ausência de credibilidade,

no comportamento amoral de homens públicos e muitas outras deformações, resultado mais do que evidente sobretudo dos 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores, o qual, conforme anunciava alto e bom som, desde sua fundação em 1980, iria “vi-rar o país de ponta cabeça” e eliminar tudo o que havia de errado, corrupto, injusto e desigual. Ao contrário do que homens e mulhe-res, dominados por rica esperança, aguardavam de real mudança a partir de 2003, ocorreu exatamente a continuidade das nossas mazelas, em todos os planos, e, o que é mais grave, aprofundadas pela gravíssima deformação do lulopetismo de que tudo é válido e correto para se manter no poder.

Tal sabor especial deste ano decorre, antes e acima de tudo, das imensas mobilizações de massas, ocorridas, neste último dia 15 de março, nas capitais e em muitas cidades – consideradas as maiores realizadas no último meio século em nosso país – conde-nando o governo Dilma, Lula e o PT, mas decorre também do fato de estarmos completando 30 anos de retomada do processo demo-crático, que havia sido bloqueado, violentamente, pelo golpe militar-civil de 1964. Coincidentemente, nesse mesmo dia e mês, o ex-governador José Sarney, um civil, e na condição de vice-pre-sidente, assumiu a Presidência da República. É que, na noite anterior, faltando menos de 12 horas para a posse, o presidente eleito Tancredo Neves fora internado às pressas no Hospital de

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3838 Roberto Freire

Base de Brasília, com fortes dores abdominais, febre alta, dificul-dade respiratória e tremores, o que o levou a sofrer uma cirurgia no intestino e após 38 dias e seis outras cirurgias veio a falecer.

Recorde-se que a expressiva vitória da oposição, no dia 15 de janeiro de 1985, no Colégio Eleitoral criado pelo regime, foi resul-tado de uma ampla articulação, que começou logo após a derrota, no Congresso Nacional, em abril de 1984, da emenda do deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT), que propunha o retorno de eleições diretas. Após 21 anos de ditadura, a escolha de Tancredo Neves para o cargo de chefe da nação, mesmo que por meio de eleições indiretas, significava o fim do ciclo dos governos militares, com a retomada da supremacia civil nos destinos da República.

Político experiente, conhecido sobretudo pela sua capacidade de conciliação, o então governador de Minas enfrentou o ex-gover-nador de São Paulo e deputado federal Paulo Maluf, do PDS, o partido que dava sustentação política ao regime. Mesmo sem o apoio de parte da oposição, incluindo o PT e setores do PMDB, Tancredo costurou uma ampla aliança, na qual foi decisivo o surgimento de uma dissidência no PDS, capitaneada pelos ex-governadores Aureliano Chaves, de Minas, e José Sarney, do Maranhão (que, em troca desse apoio, foi escolhido para o cargo de vice). Numa tensa sessão que durou três horas e meia, Tancredo obteve 480 votos, contra 180 de Maluf (166 deputados de seu partido votaram no PMDB e outros se abstiveram). Infelizmente, logo depois foi acometido de terrível doença que o levou à morte, no mês de abril daquele ano.

Nas ruas e praças das capitais, o público delirou com o resul-tado, que já era esperado. Na bancada do PT, os oito deputados haviam rachado sobre a determinação da legenda de se abster da votação. Dos oito, três se rebelaram e por sua atitude foram expulsos do partido que, à época, era presidido por Luiz Inácio Lula da Silva: o deputado Ayrton Soares, líder da bancada na Câmara, além de Bete Mendes e José Eudes, os quais foram acolhidos, posterior-mente, nas fileiras do PCB. É lamentável a pouca compreensão dos petistas em relação ao processo de conquista democrática, quando condenaram o Colégio Eleitoral como meio para derrotar a dita-dura, validado posteriormente pela história.

Tratava-se de mais um importante e decisivo passo na recon-quista de um regime de amplas liberdades, base para a implan-tação de novos e essenciais avanços na vida nacional. Estamos, há muito, convencidos de não haver outro caminho para solu-

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3939Trinta anos de retorno à democracia

cionar os graves problemas nacionais, fora da democracia. Qual-quer atalho sempre dará em desastre.

E quando falamos em democracia estamos definindo grandes processos de articulação que possam romper com o sebastianismo político, com o salvacionismo que, de alguma forma, esteve presente no amplo movimento que levou Lula ao poder, em 2003. Se as amplas alianças políticas dos idos de 1970 e 1980 foram fundamentais para derrotar o regime autocrático, elas são impos-tergáveis para mudar o Brasil, hoje. Não alianças de qualquer tipo, com forças conservadoras ou oligárquicas, ressuscitando figuras como Collor, Maluf, Renan e tantos outros, feitas por Lula e Dilma, apenas em nome de uma certa governabilidade canhestra.

A democracia e as reformas estruturantes

Aos 30 anos, a democracia que nasceu naquela eleição indi-reta tem se consolidado, não se corre o risco hoje de uma regressão autoritária, mas ainda carece de avanços, que dependem das chamadas reformas de base (reforma democrática do Estado, reformas política e eleitoral, reforma tributária, reforma educa-cional e outras mais) e da construção de cidadãos e cidadãs que compreendam e se deixem envolver na atividade política, e que sejam capazes de diagnosticar, sugerir caminhos à frente e tudo fazer para que as coisas aconteçam.

A liberdade é parte inerente das aspirações de cidadãos do mundo moderno. Não existe ganho de curto prazo capaz de compensar a opressão estatal. Um Estado que sufoque a socie-dade acaba minando a energia criativa dos cidadãos, componente vital para o surgimento de novas ideias e novos avanços. O Estado deve ser forte o suficiente para impor a ordem, garantir a lei, financiar atividades socialmente desejáveis e se sobrepor às elites de cada momento histórico; mas não a ponto de impedir que a sociedade se desenvolva livremente. E nossa classe política parece viver num mundo à parte.

O Brasil é uma democracia, mas há situações muito desiguais entre nós por não termos estabelecido plenamente o império da lei. A verdade é que temos problemas em praticamente todas as frentes. Há o desequilíbrio nas relações entre o Executivo e o Legislativo assim como com o Judiciário, que transforma o presi-dente brasileiro em um dos mais poderosos do mundo. Nossa infraestrutura é frequentemente apresentada como uma das

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piores do planeta. Temos talvez o mais complexo e ilógico sistema tributário, em que paga mais imposto quem menos deve pagar. Temos um sistema educacional pateticamente distante do que é referência lá fora, e os sinais de evolução são para lá de modestos. Não haverá crescimento de verdade se não optarmos por enfrentar estas questões, uma a uma.

Porém, deve-se ressaltar um dado novo e positivo: temos segmentos inteiros da sociedade que, antes inebriados pela chegada de um partido de trabalhadores ao poder, começam a reagir, sob as mais diferentes formas, após constatarem uma desastrosa experiência. É que os brasileiros em geral, sejam ricos ou pobres, sentem-se confrontados por um governo e um partido que, por meio da mentira sistemática de sua propaganda, vendem a ilusão de um país que não existe. Flagrado num processo siste-mático de aparelhamento e partidarização do Estado e de crimi-nosos esquemas de manutenção do poder como já detectado no julgamento do “mensalão”, e agora com dimensão redobrada no esquema do “petrolão” que fragilizou a mais importante empresa do país, a Petrobras, a cidadania tem se manifestado de maneira inequívoca, desde as jornadas de junho de 2013, as quais tiveram continuidade neste mês de março, de forma nunca vista na história deste país e cuja tendência é, daqui em diante, ser cada vez mais crescentes e surpreendentes.

Tudo isso ocorre, pois contamos, lamentavelmente, com um governo hegemonizado, há 12 anos, por um partido de esquerda, fato não corriqueiro em nossa história, mas que paga pesado tributo por não ter feito até agora nenhuma reforma estruturante nem ter apresentado projeto estratégico para o país.

É que, nesse período, revelou-se uma grande despreocupação dos seus principais líderes com os princípios e questões democrá-ticos e republicanos, alicerce dos tempos novos que vivemos, e que exigem se propor e se tentar construir um novo ciclo para o nosso Brasil. Os governantes lulopetistas não precisavam se render ao fisiologismo, ao clientelismo, que sempre foi a marca determinante do Estado patrimonialista que temos, nem muito menos à malversação dos recursos públicos e à própria corrupção.

Já existe um nível de consciência no Brasil de que precisamos buscar um caminho novo. Não podemos ter uma economia que patina, uma inflação que cresce, um país que ainda vive (desde a chegada dos portugueses, no século XVI) de exportar matérias-primas (as chamadas commodities) ao invés de produtos indus-

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trializados, agregadores de valor, e uma sociedade perversamente desigual, com péssimos serviços de educação, saúde, mobilidade urbana e segurança pública.

Esta consciência parece estar na expressiva maioria dos brasi-leiros, e o que falta agora é se ter a capacidade de se exigir fim à enganação, à retórica e ao assistencialismo. Precisamos resolver isso, ter um movimento social, um movimento político que dê consequência à política transformadora. Sem qualquer preocu-pação hegemônica, desejamos ser um dos atores desse processo de mudança e de câmbio da sociedade brasileira.

Nesses 30 anos de reconstrução democrática, estamos supe-rando obstáculos, e talvez nunca tenhamos vivido um período tão rico como agora. E não devemos fazer coro aos que veem, por exemplo, nas manifestações, nas intensas mobilizações iniciadas em junho de 2013 e até nos excessos, de ambos os lados, seja da repressão ou dos movimentos sociais, algo que coloque em risco a democracia. O que vemos é a ajuda à consolidação desta. Até porque democracia é isso, não são os excessos, evidentemente, mas um processo de educação do próprio movimento social, e também de controle que se tem que ter da máquina policial e do sistema de repressão e de coação, que pode ser democrático e pode transbordar e ter aspectos abusivos.

É claro que não se pode admitir, por exemplo, a invasão de prédios públicos, a quebra de agências de bancos e de outras empresas comerciais, a queima de ônibus e de outros tipos de veículos. E muito menos agredir ou matar pessoas. Isso não é prática de nenhum movimento social que queira aprofundar a democracia. E os governos federal e estaduais precisam ter a capacidade de saber como resguardar a ordem pública, sem ir para a repressão com abuso e, inclusive, com mortes, como tem acontecido também, o que é inadmissível.

Vamos coibir os excessos, vamos nos educar para essa prática democrática, mas não vamos ter medo de uma manifestação. E, parti-cularmente, das manifestações dos excluídos, dos oprimidos, até porque estes nunca tiveram tanta oportunidade como agora que o regime democrático está ofertando. Porque sempre foram reprimidos.

Precisamos continuar reafirmando caminhos democráticos, pois o golpismo, presente em nossa cultura, vive a pairar sobre a política, sobre a sociedade, sobre nossos homens públicos e nossas instituições. Nossa postura hoje deve continuar a ser de uma política ampla com o objetivo de unir as forças democráticas,

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particularmente a esquerda democrática. Aquilo que foi impor-tante para derrotar a ditadura, é importante hoje para colocar o Brasil no lugar que está a merecer, de recuperarmos a política que está deformada pelo “em dando se recebe” para que seja a mais rica e correta atividade humana; de restabelecermos a economia, que foi colocada em delicada e difícil crise; e sobretudo reto-marmos o caminho das verdadeiras reformas, capazes de fazer a sociedade brasileira dar o salto que ela tanto sonha e necessita, de tornar-se uma sociedade de progresso e de equidade.

Esperamos que a ditadura, definitivamente, tenha sido varrida da nossa história como experiência. E, para tanto, tudo temos feito, fazemos e faremos para que os despreocupados com as liber-dades democráticas e com a coisa pública ou ajam de acordo com as regras da boa convivência e do correto uso do aparelho estatal, integrem-se às exigências da maioria dos brasileiros (como mani-festadas nas mobilizações de ruas, praças e até estradas ou via redes sociais) ou abandonem o espaço que lhes foi concedido, sob o signo da esperança e da mudança.

A democracia, como já se disse, talvez tenha muitas imperfei-ções, mas nada melhor foi inventado para ocupar o seu lugar. E as comemorações dos 30 anos do nosso retorno ao caminho democrático são mais que uma boa lembrança dos resultados das lutas empreendidas pelos brasileiros, pois se constituem sobre-tudo um estímulo para as batalhas que desenvolvem, a cada dia, para dar novos rumos ao país.

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Desafios da democracia

José Antonio Segatto

A vitória da Aliança Democrática, há exatamente três décadas (15/01/1985), no colégio eleitoral, ao eleger para Presidência e Vice da República, Tancredo Neves e José Sarney, encerrou

um ciclo de 21 anos de regime ditatorial e demarcou a transição para o Estado de direito democrático. Constituiu-se, ademais, mo-mento extraordinário do desfecho do longo e complexo processo de transição democrática que, com avanços e retrocessos, culminou com a promulgação da Constituição de 1988.

Desencadeada ainda nos momentos sombrios da ditadura, foi conduzida por forças que optaram pela luta política em detrimento da ilusão do confronto armado e que, pacientemente, construíram uma ampla frente democrática composta por todos aqueles que se opunham ao arbítrio, ao cerceamento das liberdades, à lógica da força, à violação dos direitos e ao domínio do medo.

Aglutinando numerosas e variadas organizações e instituições da sociedade civil e política, o movimento pela democracia travou uma longa e árdua “guerra de posições”, envolvendo embates elei-torais, mobilizações, resistências, denúncias, lutas, campanhas, greves, protestos etc. – lançamento das anticandidaturas presi-denciais de Ulisses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho em defesa do restabelecimento do Estado de direito democrático; campanhas eleitorais vitoriosas do MDB em 1974/76/78; reorga-nização e mobilização do movimento estudantil; reação contra tortura a partir do ato ecumênico quando o assassinato do jorna-lista Vladimir Herzog (1975); volta ao cenário sociopolítico do movimento sindical a partir das greves do ABC paulista em 1978/80; intervenções constantes da Igreja Católica, associações empresariais, OAB, ABI, SBPC, imprensa e outras instituições da sociedade civil em prol da democratização; movimentação pela liberdade dos presos, perseguidos e cassados pelo regime ditato-rial e a conquista da anistia em 1979; eleição de governadores de oposição em vários estados em 1982; campanha das diretas-já em 1974; além de outros fatos, episódios e acontecimentos funda-mentais que levaram ao isolamento e derrota do regime de exceção e à conquista das liberdades democráticas.

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4444 José Antonio Segatto

Nesse processo de construção democrática e de superação de instituições e ordenamentos, concepções e práticas do regime de exceção, criaram-se muitas expectativas e esperanças transfor-madoras, não só políticas, mas também socioeconômicas. De fato, houve uma ampliação dos direitos de cidadania – tanto civis, como sociais e políticos, quanto de “novos direitos” (da mulher, do jovem, do idoso, da população negra, dos portadores de necessi-dades especiais, dos homossexuais, do consumidor etc.) –, o forta-lecimento das instituições da sociedade civil e política, a ampliação das liberdades e a diminuição da iniquidade.

A Constituição de 1988, denominada “cidadã”, incorporou e tornou lei demandas e aspirações, desde as históricas até as hodiernas – nos capítulos referentes aos direitos fundamentais, a organização dos poderes, suas atribuições e relações com a socie-dade civil, a defesa das instituições democráticas e da soberania popular compreende normas e princípios inovadores para a garantia da “dignidade da pessoa humana”, da igualdade de condições e das liberdades indispensáveis. Posteriormente à sua promulgação, muitas disposições foram regulamentadas, ampliando e aperfeiçoando alguns direitos e instituições.

Simultaneamente, não obstante as conquistas efetivas forma-lizadas juridicamente, preservou-se muito da cultura política e das práticas pretéritas. O patrimonialismo e o clientelismo, o corporativismo e os privilégios, a desigualdade e a coerção, a violência e a intolerância e outros vestígios característicos da formação do país foram reatualizados e compatibilizados às novas formas de relações sociais e políticas, amiúde nas brechas ou ao arrepio das normas legais. “Chegava-se à democracia política sem cultura cívica, sem vida associativa enraizada, sem partidos de massa e, mais grave ainda, sem normas e instituições confiáveis para a garantia da reprodução do sistema democrático” (VIANNA; CARVALHO, 2000, p. 28). Isto é, manteve-se a tendência histó-rica na qual em todas as transições de um regime a outro, as alte-rações da ordem sempre continuaram fortemente impregnadas pelo passado – como em 1822 com o rompimento do estatuto colo-nial e a fundação do Estado nacional; em 1889 com a implantação da República; 1930 com o movimento político-militar que levou ao poder forças políticas sob a direção de Vargas; em 1937 com o golpe que inaugurou a ditadura estadonovista; em 1945 com a democratização do pós-guerra; em 64 com o golpe de Estado que estabeleceu o regime ditatorial e outros momentos e processo extraordinários. Nelas, os elementos de conservação predominam

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sobre os da mudança, o presente revigora ou mesmo perpetua o extemporâneo.

Pela recusa das classes dominantes de transformarem a ordem legada dos regimes autoritários precedentes, as instituições não reformadas serão insuficientes para controlar e debelar as formas de incivilidade presentes na sociedade brasileira, sempre agra-vadas depois de regimes de exceção, na ordem democrática. A sucessão de cada período autoritário, intocado pelos governos que emergem das transições, agrava e reativa o legado autoritário (PINHEIRO, 2001, p. 265).

Observada pela perspectiva formal e/ou institucional, a demo-cracia parece estabilizada em seus procedimentos e regulação. No entanto, no exercício ordinário ou corrente é demasiado insufi-ciente na salvaguarda e na prática das liberdades, na garantia das condições de igualdade e dos direitos. O ardil político, o patrimo-nialismo renitente, a transgressão tornada norma, a cultura polí-tica autoritária reatualizada, o clientelismo capilarmente enraizado, o bloqueio do poder estatal à ativação da sociedade civil, os direitos manietados, a indulgência dos poderes, a reativação contínua dos mecanismos fisiológicos e de cooptação do Legislativo pelo Execu-tivo, a judicialização da política, a indiferença aos valores e aos bens públicos, o desapreço pela transparência nos atos e na gestão estatal, a dissociação entre representantes e representados, governos e órgãos (legislativo, judiciário) destituídos de fé pública, sociedade civil e política flácidas e carentes de protagonismo, partidos políticos privados de ideias, vocação hegemônica e compro-missos cívicos, além de outras vicissitudes constituem um complexo conjunto adverso à ampliação e aprimoramento da democracia e ao exercício dos direitos de cidadania. Isso, em sua totalidade, tem gerado um déficit democrático e operado “a redução da cidadania a uma massa passiva, mero objeto de políticas compensatórias e dos eventuais benefícios provenientes das máquinas que manipulam clientelas” (VIANNA, 2002, p. 9).

Tomando emprestada uma classificação elaborada por José Murilo de Carvalho (2001, p. 215-217), segundo a qual os cida-dãos brasileiros podem ser ordenados em três categorias distintas, consoante suas condições socioeconômicas e, pelo acesso aos direitos, eles podem ser analisados na seguinte disposição:

a) os privilegiados – grandes proprietários urbanos e rurais e detentores de capital (empresários, banqueiros, fazendeiros, grandes comerciantes etc.), políticos e burocratas do alto

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escalão – cidadãos de primeira classe, procuram sempre que podem estar acima e/ou à margem da lei e se valem cons-tantemente da transgressão para garantir seus interesses e negócios; portam-se, comumente e com poucas exceções, como arautos da conservação e, no mais das vezes, tratam os bens e recursos públicos como direito adquirido e costumam justificar a ilicitude e os privilégios em função de “fins nobres”;

b) uma grande massa de cidadãos de segunda classe, “que estão sujeitos aos rigores e benefícios da lei”. Constitui uma camada intermediária, modesta ou remediada, composta de trabalhadores assalariados formais, funcionários públicos de baixo escalão, pequenos proprietários urbanos e rurais etc. “Para eles existem o Código Civil e o Penal, mas apli-cados de maneira parcial e incerta” (CARVALHO, 2001, p. 216); quando podem também se utilizam da esperteza para burlar as normas;

c) os da terceira classe, compostos de uma população marginal das grandes cidades, trabalhadores urbanos e rurais infor-mais, posseiros, empregados(as) domésticos(as), biscateiros, camelôs, mendigos, indivíduos ocupados no tráfico de drogas e no jogo do bicho etc. “Para eles vale apenas o Código Penal” (CARVALHO, 2001, p. 217); é corriqueiro o fato de se manterem indiferentes à vida pública e, constantemente, abdicarem de seus direitos e deveres cívicos – presas fáceis das políticas clientelistas que reproduzem a iniquidade, percebem seus direitos como dádivas e enxergam o Estado como provedor caritativo; indefesos e subalternizados conti-nuam sendo mantidos pelos donos do poder na condição passiva e assujeitada e induzidos à desobrigação do prota-gonismo, mesmo que coadjuvante; na dura luta pela sobre-vivência, são incitados à malandragem ou à esperteza e à transgressão, tornando-se, não raramente, cativos e vítimas do submundo do crime; a apatia e o aviltamento dessa massa de despossuídos foi possibilitada pelo bloqueio ao acesso às instituições da sociedade civil e política.

A desigualdade extremada de condições e oportunidades, associada à disparidade no exercício dos direitos, no acesso à justiça e às instituições estatais geram, por seu turno, uma cida-dania mutilada e a reprodução da opressão e da iniquidade. É fato, verificável a olho nu, que as camadas subalternas vivem relegadas ao infortúnio e a toda sorte de adversidades. “O Estado,

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os governos, as classes dominantes não asseguram as condições básicas para a realização e a efetivação dos direitos para a maioria da população pobre e vulnerável” (PINHEIRO, 2001, p. 266). Essa situação inscrita na realidade do país tem desempenhado um papel perverso de amesquinhamento dos valores democráticos e da deterioração dos direitos.

Tornou-se senso comum a constatação de que quem “cumpre a lei no Brasil é o povo, os inferiores, os subordinados” (DAMATTA, 2000, p. 104). Recentemente, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, afirmou que a justiça brasi-leira pune pobres, negros e “quem não tem relações políticas” e que as pessoas “são tratadas diferentemente pelo status, pela cor da pele, pelo dinheiro que têm”. E foi além: “Uma pessoa poderosa pode contratar um advogado poderoso, com conexões no judi-ciário, que pode ter contatos com juízes, sem nenhum controle do Ministério Público ou da sociedade. E depois vêm as decisões surpreendentes” (RECONDO, 2013, p. A4). Disso decorre o fato de não se estranhar “que a violência tenha se apropriado do coti-diano dos cidadãos”, acentuando-se o sentimento de medo e inse-gurança coletivos, “de que as leis não são aplicadas, de que a impunidade é regra, de que os mais fortes podem impor sua vontade sob ameaça do uso da força” (ADORNO, 2011 p. 563).

Pode-se, assim, no limite, afirmar que – apesar de as institui-ções e normas democráticas terem sido aprimoradas e ampliadas, dos direitos de cidadania terem sido amplificados, reconhecidos e materializados em leis – a desigualdade e a iniquidade, a arbitra-riedade e as injustiças teimam em manter-se vivas e incrustadas nas relações sociais e políticas. O passado excludente e autori-tário insiste em projetar-se no presente, ou ainda, as marcas provectas e os resquícios extemporâneos mantêm-se impressos na contemporaneidade ou a ela acomodados.

De fato, houve um inconteste aggiornamento do processo de transição democrática. As forças, outrora, renovadoras, que o conduziram – quando elevadas ao poder e tornadas mandatárias da Republica –, ajustaram-se, em grande medida, à velha ordem. Não tiveram capacidade ou vontade suficiente para encaminhar e dirigir um projeto com referenciais programáticos e práticos refor-madores e democráticos, tornando-se impotentes para encami-nhar soluções transformadoras – um empreendimento sociopolí-tico que pudesse efetivar transformações que garantissem a realização do ser social em condições de equidade e democracia. Isso implicaria a reordenação das forças partidárias, a recompo-

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sição do poder, a publicização do Estado, a ativação da sociedade civil, a atualização da cultura política, o alargamento dos espaços e esferas de participação, a superação das múltiplas e desmesu-radas desigualdades, a criação de instrumentos de reapropriação social do excedente gerado etc. O desafio está posto, à espera de agentes que possam remover entraves e dar curso progressivo à dinâmica democrática, criando pressupostos necessários para que suas prerrogativas sejam efetivamente socializáveis e de desfrute coletivo.

Referências

ADORNO, S.. Violência e crime: sob o domínio do medo na sociedade brasileira. In: BOTELHO, A. SCHWARCZ, L. M. (orgs.) Agenda brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 554-565.

DAMATTA, R. Entrevista. In: COUTO, J. G. (org.) Quatro autores em busca do Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 89-107.

CARVALHO, J. M. A cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

PINHEIRO, P. S. Transição política e não-Estado de Direito na República. In: ______. et al. Brasil: um século de transformações. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 260-305.

RECONDO, F. Barbosa questiona admissão de recursos e critica conexões de advogados poderosos. O Estado de São Paulo, 04/05/2013, p. A4.

VIANNA, L. W. Apresentação. In: ______. (org.) A democracia e os três poderes no Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: Humanitas/UFMG, 2002, p. 7-16.

______. CARVALHO, M. A. R. República e civilização brasileira. Estudos de Sociologia, Araraquara, Departamento de Sociologia, ano 5, nº 8, p. 7-33, 1º semestre de 2000.

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A mulher na política merece seu real espaço

Tereza Vitale

Desenvolver atividades num partido político e compreender a importância desta determinação significa lutar ativa-mente em favor de uma ideia, melhor dizendo, de um ide-

al. Nosso envolvimento nesta luta pode se dar em torno da macro-política, de interesse para o conjunto da sociedade, ou em torno de políticas específicas (mulheres, crianças, juventude, educação, terra, LGBT) ou, ainda, em torno de temas vários que compõem um todo.

Tenho para mim que a política, embora esteja tão mal avaliada por alguns e tão rejeitada pelas pessoas mal instruídas e mal informadas, ainda nos traz esperanças de melhores dias e melhores oportunidades para a sociedade. Dizem que fazer polí-tica é uma nobre missão. É assim que eu penso e é isso que me move para estar nas fileiras de um partido.

Quando nos referimos à política, ela imediatamente nos remete a “políticos” e nossa reação é dizer que não gostamos de política e que os políticos são todos ladrões etc... E esses políticos são homens e mulheres exatamente aqueles que elegemos e que nos representam nos parlamentos e nos executivos.

Se pensarmos bem, constataremos que somos nós os únicos responsáveis por eleger, num processo de disputa democrática, a presidente da República, o governador, o prefeito, o senador, o deputado, o vereador. Desta constatação surge uma dúvida que cada um de nós, homem ou mulher, não pode deixar de estar sempre atento: é a política que não presta ou somos nós que não estamos sendo tão exigentes quanto é necessário nas escolhas que temos feito e que precisam ser mais bem avaliadas?

Permitam-me que lhes fale – já que escrevo este texto no dia 8 de Março – a respeito da mulher se envolver com a política. E o que tem esse papo todo de política a ver com as mulheres partici-parem ou não dos partidos?

Neste sentido, eu gostaria de considerar dois pontos. O primeiro deles é que a política faz parte da nossa vida e ficarmos atentas a ela significa participarmos das decisões que podem melhorar a

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nossa vida e a de todos os cidadãos. Melhorar nosso dia a dia, o das nossas famílias, o de nossas filhas e filhos, o de nossas amigas e nossos amigos. Se não estivermos envolvidos e dedicados à política, as coisas vão continuar acontecendo, mas da forma como eles, “os políticos”, querem que elas aconteçam e não da forma que seja melhor para nós. Nós, o povo! Nós, a comunidade!

Outro ponto a considerar é que nós, mulheres, somos mais de 50% da população brasileira. Acontece que quem decide a nossa vida são os homens, pois são eles que constituem a expressiva maioria dos executivos e legislativos do país. Como pode ser isso? Incrível, não? Pois é esta a realidade. São as leis brasileiras que determinam nossas vidas. Determinam a educação, a saúde, a segurança pública, o trabalho, o combate à violência e com isso, dependendo dos projetos, podem ou não contemplar as mulheres e criar ou não melhores oportunidades para que sejamos consideradas cidadãs de 1ª classe. Ou alguém acredita que homens e mulheres têm oportuni-dades iguais de trabalho, de educação, de lazer...?

Vou dar um exemplo: As mulheres estão indo mais à escola do que os homens, mas continuam ganhando muito menos do que eles, mesmo ocupando funções idênticas. Mesmo sabendo que os rendimentos das mulheres ajudam a reduzir a pobreza extrema não se tenta mudar essa situação absurda. Nem por isso os olhos dos legisladores se voltam à igualdade entre a trabalhadora e o trabalhador. Além de ser mal remunerado, o trabalho doméstico segue sendo uma tarefa somente das mulheres, sem qualquer tipo de política que mude esta prática. Dizer que é uma prática cultural, não justifica e em nada cola-bora, apenas reforça a questão de exploração e opressão das mulheres. Alguém conhece uma política educacional e leis traba-lhistas que possam alterar essa situação?

Outro exemplo: O câncer de mama ainda mata muitas mulheres, mesmo que saibamos que quando descoberto, no início, as chances de cura são enormes. Mas faltam mamógrafos, e não se adotam medidas para prevenir e combater o câncer de mama e demais doenças femininas. Ainda temos altos índices de mortali-dade materna nos rincões do nosso Brasil e mesmo nas capitais. Lidamos aqui com uma verdade inominável: mulheres sempre abortaram e sempre abortarão, não importa sua família, sua classe social, sua religião... não importa nada. O aborto inseguro é hoje a quinta causa de morte materna no Brasil. O Estado brasi-leiro, à frente a Presidência da República, é criminoso quando não assume sermos o lugar que mais mata mulheres no mundo em

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decorrência de aborto ilegal. Nada faz para aliviar esse mal chamado gravidez indesejada que não escolhe nem mesmo idade, limita-se a permitir o debate moral e religioso. O Estado, à frente a Presidência da República, sabe e nada faz mediante os índices indecentes de morte das mulheres pobres e negras, as maiores vítimas da criminalização e os maiores números de óbitos por fazerem uso das clínicas ilegais que proliferam pelo país. Isso quando não caem na mão de carniceiros em sua própria casa.

Não precisamos de repressão ou omissão. Não há espaço para que outros que não cada mulher decida sobre seu próprio corpo, sobre suas dores, suas emoções. Precisamos de uma rede pública que assista as mulheres que querem ou precisam abortar. Preci-samos que o Estado entenda que esta delicada questão é caso de saúde pública e como tal tem que estar inserida nas políticas de saúde para as mulheres.

A segurança pública no nosso país é um “caso de polícia” e para as mulheres é especialmente calamitosa. Como trafegar por ruas desertas ou escuras para frequentar a escola no período noturno, para ir à igreja, para sair com as amigas, familiares ou namorado? Como entrar numa delegacia para dar parte de um abuso ou violência? Como morar na periferia ou em lugares cuja criminali-dade se confunde com aparatos da polícia? Além do mais, temos casos e mais casos de polícia mal preparada e de falta de equipa-mento público para atender as mulheres como postos de polícia feminina, casas de apoio, varas da família, plantões de polícia comunitária, Judiciário eficiente para atender a pequenas causas.

A violência contra a mulher está longe de acabar e afeta toda nossa vida. Pesquisas mostram que a maioria das jovens e dos jovens ainda reforça comportamentos de repressão às mulheres na sociedade. Muitas vezes esses comportamentos nem são reco-nhecidos como violência. E assim ela se perpetua dentro de casa e no espaço público. A violência não é somente física e sexual, é também emocional, psicológica, moral. Atinge as mulheres e as crianças preferencialmente. “Isso porque se trata de uma relação de poder e opressão. O homem é mais forte, ele pode.” Depois do assassinato, a mais grave violência é o estupro que vitima milhares de mulheres cotidianamente no nosso país. Dados estatísticos revelam que o número total de estupros registrados no Brasil subiu 19,3% em 2012, em relação ao ano anterior, atingindo 50,6 mil casos – ou seja, quase seis denúncias a cada hora. Especia-listas dizem que esses números podem ser ainda maiores já que nem toda mulher tem coragem de denunciar situações de violência,

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principalmente a sexual. Por isso, destaca-se a importância de fortalecer os outros serviços, sobretudo os de segurança, e promover campanhas para combater as causas da violência sexual contra as mulheres: a impunidade e o machismo. Não pode haver tolerância a esses tipos de crimes. A proposta é fortalecer os serviços de segurança pública e mostrar para a sociedade que o Estado está do lado da vítima, para que ela realize a denúncia e receba o acompanhamento médico e psicológico necessário, e também que seu agressor seja punido e impedido de continuar o ciclo de violência ou fazer novas vítimas.

A Lei Maria da Penha, conquista formidável das ativistas pelos direitos das mulheres, é ótima e exemplar! Mas sem total regula-mentação torna-se pouco eficaz. A falta de legado de uma presi-dente mulher, nos últimos anos, aponta para esta falta de regula-mentação da Lei Maria da Penha como seu exemplo maior de descaso. Compara-se ao não cumprimento de metas em relação à construção de creches prometidas em campanha e aos cortes generalizados no Orçamento Mulher.

A cultura e o lazer, além da educação, também devem ser oferecidos às mulheres. Tempo disponível é essencial para isso. Creches, centros de convivência com cinema, teatro, biblioteca, espaços para atividade física, salões para festas, escola infantil, de 1º e 2º graus, cursos profissionalizantes... Tudo precisa estar próximo dos seus lares e locais de trabalho. O desenho das cidades pode e deve ser repensado. Os parlamentos municipais podem aproximar-se dessas políticas urbanas e habitacionais.

Pesquisa Ibope, divulgada em julho de 2014, mostra que 80% dos brasileiros consideram que deveria ser obrigatória a compo-sição dos legislativos municipais, estaduais e nacional por metade de mulheres. Entretanto, essa amostragem não corresponde à realidade porque vemos que as mulheres não são bem votadas, já que os parlamentos não têm mais do que 10% delas. E por que será? Serão as mulheres incapazes ou menos preparadas?

Não! Claro que não! A cada dia, vemos que elas são cada vez mais capacitadas e preparadas para legislar, mas nossa sociedade é patriarcal. As mulheres ainda são vistas como inferiores e, às vezes, elas mesmas acreditam nisso. Acham que o seu papel é cuidar da casa e dos filhos, em 1º lugar. Acham que os homens são mais capazes para ocupar o espaço público. O pior é que passam esta visão equivocada e submissa às filhas e aos filhos.

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Bem, de qualquer forma, o que quero dizer é que nossas lutas passam por nos dar maiores referências e representatividade nos parlamentos municipais, estaduais e federal, porque quem ocupa a maioria das cadeiras é o parlamentar homem eleito. A mim não me representam integralmente. A mim me faltam a voz e o voto das mulheres. Queremos a paridade. 50% de homens e 50% de mulheres trabalhando pela sociedade formada por homens e mulheres que tenham suas opções de vida respeitadas. Sua orien-tação sexual respeitada. Que nos mostrem parlamentos multifa-cetados. Ainda não podemos votar em candidatas fora de partidos políticos, por isso, se é o que se nos apresenta, vamos tentar trabalhar da melhor forma possível. Já estamos em pleno século XXI e não temos políticas que sejam atraentes para trazer as mulheres para militar num partido político.

Vamos em busca de melhores dias e melhores condições de vida. Vamos nos juntar à juventude, à negritude, aos gays, às lésbicas, aos católicos, aos evangélicos, a todos os homens e mulheres que sonham e acham possível transformar nosso mundo num lugar mais generoso e respeitador das pessoas, dos animais, do meio ambiente, das diferenças!

Referências

ALAMBERT, ZULEIKA. A mulher na história, A história da mulher. Brasília: FAP/Abaré, 2004. AVERBUCK, Clara. Aborto não é questão de opinião. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/aborto-nao-e-questao-de-opiniao-3068.html>. Acesso em: 03/2015.CNMdoPPS, Coordenação Nacional de Mulheres do PPS. Plataforma Política das Mulheres do PPS. Brasília: Documentos PPS, 2014.DIP, Andrea. Lei é eficaz para matar mulheres. Disponível em: <http://apublica.org/2013/09/lei-e-eficaz-para-matar-mulheres-diz-pesquisador/>. Acesso em: 03/2015.INDRAWATI, Sri Mulyani. A América Latina depende das mulheres . Disponível em: <http://www.pressreader.com/brazil/folha-de-spaulo/20150304/281539404418472/>.TextView>. Acesso em: 03/2015.

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III. Conjuntura

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Autores

Luiz Sérgio HenriquesTradutor e ensaísta, editor do site Gramsci e o Brasil (www .gramsci .org) .

Paulo Fábio Dantas NetoCientista político e professor da Universidade Federal da Bahia .

Sergio FaustoCientista político, diretor executivo do Instituto Fernando Henrique Cardoso .

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Inquietantes semelhanças entre o lulopetismo e o kirchnerismo

Sergio Fausto

Dilma Rousseff apenas inicia, ao passo que Cristina Kir-chner está por terminar o seu segundo mandato presi-dencial. Apesar disso, Brasil e Argentina parecem, ambos,

viver o encerramento de um ciclo político de mais longa duração. Em que pesem claras diferenças, há inquietantes semelhanças nos processos políticos experimentados pelos dois países sob o lulopetismo e o peronismo kirchnerista.

A maior delas reside em que, a despeito de quase tudo indicar o esgotamento dos respectivos projetos políticos, não se verifica a articulação clara de alternativas à altura das melhores aspirações de renovação das instituições políticas e da cultura democrática nos dois países. Em larga medida, estão em crise não apenas os respectivos governos, mas também os sistemas políticos, que apresentam déficits crescentes de prestígio. A crise política se soma à crise econômica e ambas se acentuam pela sucessão de escândalos que revelam a disseminação de práticas nada republi-canas, num e noutro caso.

Os problemas econômicos decorrem de erros de concepção e implementação de políticas públicas. Eles têm magnitudes dife-rentes porque na Argentina o “experimento desenvolvimentista” – semelhante ao que se iniciou, aqui, no final do governo Lula e se desdobrou a plena carga nos últimos quatro anos – teve mais tempo e menores freios para seguir em frente. O Brasil se encontra estrutural e conjunturalmente em melhor situação, mas não cabe ter ilusões: há pelo menos um ano, a deterioração da economia

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brasileira surpreende pela velocidade e a tendência por ora não foi estancada, muito menos revertida.

Os problemas políticos, se não produzidos, pelo menos agra-vados sob o lulopetismo e o kirchnerismo, são ainda maiores: personalismo da liderança, beirando às raias do culto à persona-lidade; aparelhamento do Estado para fins partidários; entrelaça-mento promíscuo entre interesses políticos e empresariais.

Ao início, o kirchnerismo exibiu feições de uma versão moderna e progressista do peronismo. O governo de Néstor Kirchner deu resposta eficaz às expectativas de recomposição da capacidade de governo na esteira da crise brutal que atingiu a Argentina em 2001/2002. No plano econômico, com Roberto Lavagna, no Minis-tério da Fazenda, reestruturou a impagável dívida externa do país e definiu uma política econômica apta a controlar a inflação e retomar o crescimento, aproveitando o vento de cauda soprado pela alta das commodities. No social, lançou programas de trans-ferência de renda para reduzir a pobreza então crescente, ao passo que o mercado de trabalho começava a se beneficiar da retomada da economia. No político, buscou alianças fora de seu grupo polí-tico e colocou no topo da agenda o acerto de contas judicial com as violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.

Em 2006, porém, o kirchnerismo sofreu uma mutação ativando genes presentes em seu DNA peronista, até então atenuados: o “transversalismo político” dos primeiros anos cede lugar à lógica do “nós” contra “eles”; a necessária recomposição da capacidade de governar, esfacelada pela crise, se transforma em obsessiva procura por concentrar poderes na presidência e exercê-los de forma cada vez mais intrusiva e discricionária; com a saída de Lavagna, a condução da economia e dos negócios do Estado passa a submeter-se a objetivos políticos e eleitorais de curto prazo e a subordinar-se à estratégia de perpetuação do kirchnerismo no poder, sob Néstor ou Cristina. Cresce a manipulação de dados públicos sobre a economia e o Estado é colocado a serviço do governo e do grupo político dominante, sob uma ideologia nacional-estatista.

Mutatis mutandis, trajetória parecida se observa ao longo dos 12 anos de governos do PT. Embora se tenha elegido em condições bem mais favoráveis que Néstor Kirchner, também Lula teve de responder a uma conjuntura econômica delicada, em parte produ-zida pela própria desconfiança do chamado “mercado” em relação à atuação de seu governo, principalmente na área macroeconô-

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5959Inquietantes semelhanças entre o lulopetismo e o kirchnerismo

mica. Superada essa desconfiança, por virtú própria e fortuna, o governo petista sofreu igualmente a sua mutação, ainda que menos virulenta, adotando doses crescentes de um desenvolvi-mentismo voluntarista e discricionário, embebido no formol do nacional-estatismo.

Nos limites deste artigo, é impossível uma comparação cuida-dosa do lulopetismo com o kirchnerismo. No plano político, cabe destacar, nos dois casos, o recurso insistente ao argumento do “cerco conservador” e seus derivados, como “o golpe da mídia”, agora desdobrado, lá e cá, no “golpe do Judiciário”, para justificar o que é injustificável sob uma ótica política progressista (sem aspas). Como pode ser progressista uma força política cuja ação solapa as bases institucionais e culturais de vida democrática?

Esta pergunta deve ser dirigida também ao lulopetismo, embora se deva reconhecer que a inclinação autoritária do kirchnerismo é mais pronunciada. Ainda assim, não é pequeno o dano provocado pelo lulopetismo nas instituições e na cultura política brasileira.

Para ampliar o seu raio de manobra na composição de coali-zões parlamentares, o PT e seus governos fomentaram a prolife-ração de novos partidos sem qualquer lastro na sociedade e a mercantilização do apoio parlamentar, aprofundando a crise do sistema político.

Para assegurar o financiamento do projeto partidário de perpe-tuação no poder, promoveram o conluio entre grandes empresas privadas e estatais para irrigar com recursos públicos os cofres do partido e, em menor grau, de seus aliados, não apenas ampliando a escala da corrupção, mas também dando origem a um poder invisível e paralelo cujas dimensões vão se revelando à medida em que se desenvolvem as investigações do escândalo da Petrobras.

Para controlar as forças sociais organizadas, o PT e seus governos cooptaram, com recursos públicos e posições no aparelho de Estado, sindicatos, centrais sindicais e movimentos sociais, em flagrante contradição com a reivindicação de autonomia para a sociedade civil e para o sindicalismo que marcam a origem e, por longo período, a própria trajetória do partido.

Por fim, mas não menos importante, buscaram ativamente estigmatizar partidos e lideranças de oposição; fazer tábula rasa da história do país, para atribuir exclusivamente a si avanços sociais construídos pelas forças democráticas, a partir da Constituição de 1988 e do Plano Real; apresentar a disputa política democrática

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como o embate entre um “nós” comprometido com os interesses nacionais e populares e um “eles” descomprometido com tais inte-resses, conferindo-se a si mesmos uma espécie de legitimidade especial em comparação com as demais forças políticas.

Nesse empenho, como não poderia deixar de ser, o PT e seus governos se valeram, de forma organizada, pela ação e pela palavra de suas principais lideranças e por intermédio de uma rede de blogs e sites financiados com recursos públicos, de doses crescentes de inverdades e distorções que contribuíram para empobrecer e enve-nenar o debate público. No período recente, à medida que as inves-tigações sobre o escândalo da Petrobras põem a nu o nada republi-cano modo petista de governar, a mistificação foi levada ao paroxismo. A tal ponto que as perdas patrimoniais causadas pelos erros e crimes cometidos na maior empresa estatal brasileira são apresentadas como prova de uma suposta conspiração de inte-resses antinacionais interessados em destruir a Petrobras.

Como disse Fernando Gabeira, em um dos artigos que publica semanalmente em O Estado de S . Paulo, a única chance que o governo tem de emplacar essa interpretação dos fatos é a de o país se trans-formar num hospício em que as pessoas estejam prontas a aceitar como plausível qualquer disparate externado pelas autoridades.

Para concluir, prefiro explicar as diferenças entre o lulope-tismo e o kirchnerismo, menos por características intrínsecas e mais por fatores externos às duas forças políticas. Eles residem na maior qualidade das instituições brasileiras: aqui o Judiciário tem maior independência, o Ministério Público maior autonomia, a Federação menor dependência do governo central etc.

Todavia, se nos oferecem os mecanismos para a solução pací-fica dos conflitos, as instituições não podem, por si mesmas, suprir a falta de uma liderança política coletiva que defina novos caminhos. Com o governo enredado nas mentiras da campanha eleitoral e no escândalo da Petrobras, cabe fundamentalmente às forças de oposição indicar e construir esses caminhos.

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Mãos limpas à brasileira?

Luiz Sérgio Henriques

Dados os acontecimentos em torno da Petrobras e suas conexões com o sistema político e empresarial, tornou--se regra a referência à Operação Mãos Limpas que, nos

anos 1990, abalou a primeira república italiana, nascida sob os escombros do fascismo, levando de roldão partidos solidamente enraizados, como, em particular, a Democracia Cristã e o Partido Socialista (PSI).

No cenário delineado pela queda do Muro de Berlim e a disso-lução do socialismo real, a famosa operação judicial desvendou boa parte da intrincada rede de corrupção no país que fora uma das fronteiras mais “quentes” da Guerra Fria. Ruía assim, estrepi-tosamente, a Tangentopoli, a cidade da propina, que mantinha azeitado um poderoso sistema de poder, sustentado, ainda por cima, pela relação de forças internacionais típica do período.

Os democratas-cristãos dirigiram o Estado e o próprio processo de acelerada modernização do país, administrando de modo “transformista” – cooptando e recrutando para funções em geral subalternas – forças moderadas da esquerda, como o tradiciona-líssimo PSI. O principal partido de oposição, com toda a sua progressiva “heresia” em relação ao então monolítico mundo soviético, era o PCI. Um partido de cultura política e intelectual acima do comum, participante igualmente ativo da modernização, especialmente por administrar, com espírito plural, algumas das regiões mais ricas – as regiões ditas “vermelhas”, como a Emilia-Romagna, não casualmente mais modernas e independentes do clientelismo estatal – e por protagonizar embates como o do divórcio e o dos direitos reprodutivos da mulher em plebiscitos famosos. E, apesar de seu papel fundamental na defesa e no cumprimento da Constituição do segundo pós-guerra, condenado a uma situação “eternamente” minoritária e oposicionista.

Mais além dos escandalosos casos de malversação do dinheiro público e do comprometimento entre máfias, lojas maçônicas suspeitas e altas esferas da política e da economia, esta era a raiz de Tangentopoli: a interdição da competição democrática, com o veto – contrário à letra e ao espírito da lei, mas amparado pela “consti-

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tuição material” do país – à presença de uma importante força popular na área de governo, fosse ainda nas condições do cauteloso “compromisso histórico” pactuado entre dirigentes da envergadura de Aldo Moro e Enrico Berlinguer, para fazer referência à conjuntura de meados dos anos 1970, anterior às “mãos limpas”.

Como não pode deixar de ser, entre o mundo de ontem e o nosso mundo de agora há todo um enredo tecido de continuidades e descontinuidades. Para apontar um dado de total descontinui-dade, caíram por terra, mesmo na turbulenta América Latina, os vetos que impediam à esquerda, em sentido lato e sem exclusão de suas vertentes populistas, aceder aos governos e conquistar vistosas bancadas parlamentares, além de buscar a correspon-dente implantação social. Uma novidade epocal, que passou a legitimar, de uma só vez, todos os atores que se dispusessem a jogar o jogo das instituições, articulando a partir deste terreno privilegiado propostas, concorrentes entre si, de reforma do Estado e da sociedade.

Só personagens egressos da Guerra Fria, que, deixados a si mesmos, guardariam até certa bizarrice, podem atribuir aos sucessivos governos petistas a intenção de “implantar o comu-nismo”, mediante programas, como o Bolsa Família, difundidos e abençoados por instituições financeiras globais. Inversamente, só os ideologicamente alucinados podem detectar nas crescentes dificuldades enfrentadas pelo regime chavista e assemelhados a mão pesada do “império”, como se houvesse algum termo de comparação possível entre os males que afligiram ou afligem os bolivarianos Hugo Chávez ou Vicente Maduro e as sangrentas vicissitudes que derrubaram Salvador Allende.

Mas continuidades também existem, e não é anedótico ou irre-levante, por exemplo, que um dos governos petistas – para não mencionar a “sociedade civil” que sustenta este partido, isto é, seus intelectuais e simpatizantes – tenha acolhido controverso personagem da esquerda armada italiana dos anos 1970, aparen-tando escassa compreensão da pacífica circunstância eleitoral que trouxe o PT ao poder de Estado a partir de 2003. Ao mesmo tempo, a solidariedade com os regimes ditos bolivarianos, nos quais a alternância parece um verbete cancelado, faz temer que no cerne do petismo também operem categorias de uma esquerda atrasada, para a qual as dinâmicas institucionais contam pouco – e tudo se resolve em “disputa política” na qual estão franqueados golpes abaixo da linha da cintura.

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Segundo os parâmetros desta luta, e a exemplo das realidades bolivarianas, constrói-se agressivamente uma resposta à questão clássica de um arquiconservador: “quem é meu inimigo?”. O inimigo seria a social-democracia à moda do PSDB, travestida pura e simplesmente de neoliberal, assim como outrora stalinistas estigmatizavam social-democratas como “social-fascistas”. E assim como, entre nós, “neoliberais” ou “golpistas” serão todos os adversários – Marina, Aécio ou quem quer que se apresente como ameaça eleitoral.

O problema com categorias anacrônicas é que se chocam com as exigências da política em situações complexas. Imaginando interditar o funcionamento natural das instituições, possibilitam a interpretação de que, em outra época e latitude, tenta-se armar um sistema de poder espraiado pelos organismos de Estado e pelas empresas públicas, como na Itália antes das “mãos limpas”.

E ainda se acena agora, entre nós, com o perigo de que a ação legal das instâncias de controle, como o Ministério Público, a Polícia Federal e o Poder Judiciário, desmanchando a montagem de tal sistema, aponte para um cenário de terra arrasada em que vinguem as propostas mais radicais da antipolítica, como a seu tempo Berlusconi e, hoje, os movimentos da direita anarquista, como o do comediante Beppe Grillo. Tais movimentos existem um pouco por toda parte e, frequentemente, têm potencial desestabi-lizador das instituições, ao denunciar demagogicamente a ativi-dade política e o papel dos partidos como expressões de uma “partidocracia” indesejável.

Uma esquerda renovada culturalmente, capaz de identificar e representar os novos sinais de insatisfação social, seria a melhor barreira contra tendências regressivas deste tipo. De certa forma, o Partido Democrático italiano, que fundiu antigas tradições refor-mistas, inclusive católicas, ao velho tronco do PCI, representa nas difíceis e inéditas condições do século XXI – quando a questão em jogo é a construção de uma identidade europeia além dos velhos Estados nacionais – uma resposta positiva ao quadro aberto com a dizimação, há pouco mais de vinte anos, dos velhos partidos hegemônicos por conta dos magistrados das “Mãos Limpas”.

Lá, no entanto, a investigação judicial teve como alvo um sistema que girava em torno de democratas-cristãos e socialistas (dos tempos de Bettino Craxi), ao passo que, no núcleo duro da esquerda, havia um agrupamento que, não sem limites e contra-dições, elaborou o lema (atualíssimo!) da “democracia (política)

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como valor universal”. Aqui, desgraçadamente, pode-se conjeturar que o eixo central girou, ou gira, em torno do principal partido de esquerda, como a confirmar que tentações autoritárias desco-nhecem cor ideológica. Faltando freios legais, a sedução do poder é fatal: não há quem dela se esquive, ainda que com doce cons-trangimento e dose maciça de sofismas.

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Democracia, entendimento e o fator Temer

Paulo Fábio Dantas Neto

O que esperar de uma elite política, após a irrupção indig-nada de numerosos cidadãos nas ruas? Que reveja seus roteiros de ação para reverter essa indignação. Numa

democracia que mereça esse nome, isso não esvaziará as ruas permanentemente nem restringirá a política a um mero jogo de bastidores, entre elites e partidos. Ao mesmo tempo, nenhuma democracia se manterá como tal se dispensar elites e partidos.

Uma democracia que flui como um processo crescentemente inclusivo permite mudanças no papel dos vários atores, dentro e fora da sociedade política, bem como o acesso de novos atores às decisões ali tomadas. Para não perder pontes com os interesses e os valores dos representados, a representação política depende, numa parte, da dinâmica social e, em outra boa parte, da flexibi-lidade da elite dirigente, que se revela através da forma como ela revê suas estratégias.

O que esperar de partidos e lideranças políticas quando, em momentos de insatisfação social ou de dificuldades econômicas, o jogo democrático apresenta-se truncado pelos impasses habituais das táticas do varejo político, ou quando as crises até resultam, em parte, desse próprio varejo? Espera-se que os partidos atuem como instituições (corpo organizado de regras) e os líderes como estrategistas do atacado, para restabelecerem a fluência do jogo. Às vezes, a perturbação é tão grave que é preciso mudar as regras. Mas, na maioria dos casos, um bom pacto ajuda mais do que uma custosa cirurgia institucional.

Um equívoco da percepção moralista da política no atual contexto brasileiro é a demonização generalizada da nossa classe política e da sua vocação histórica para estabelecer pactos. É comum vê-los sempre como conchavos contra o povo, quando muitas vezes são apenas acordos para que o jogo democrático não trinque e outras vezes são até soluções mais amplas, que permitem que o jogo se abra à participação de novos atores. Se políticos são sempre um problema (em nossa terra e além-mar), nunca deixaram de ser, também, parte importante de soluções coletivas que o

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Brasil pôde encontrar, ao longo de sua história, para seus problemas, entre os quais o da garantia das liberdades.

Está aí, como emblema maior, a Constituição de 1988, obra da chamada classe política brasileira. Obra socialmente condicionada e não pura dedução doutrinária ou fruto de vontades arbitrárias. Liderada por Ulysses Guimarães, a Constituinte engendrou a Carta em boa parte sob o impulso das ruas e sob um roteiro forjado pela militância ativa da sociedade civil. Mas ela também coroou a estra-tégia de uma oposição institucional que, durante quase duas décadas (do contexto da edição do AI-5 à vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral), construiu – sem nem sempre ter consciência plena de que o fazia —, a partir do Parlamento e da organização do MDB, a frente democrática que, em sintonia gradual e crescente com a sociedade civil, isolou e afinal derrotou a ditadura. Desse modo, o 15 de março de 1985 foi, em vários sentidos, um contra-ponto histórico ao 31 de março de 1964.

O êxito da transição democrática deveu-se à combinação de luta e conciliação. Combinação que faltou em 64, quando, à direita e à esquerda, a luta exacerbou-se além do ponto conveniente e possível numa democracia. A conciliação foi rejeitada não só por radicalismos, como os de Lacerda e Brizola, como também pela complacência que encontraram em áreas não radicais, mas movidas por uma lógica imediatista. A conjunção de radicalismo, demagogia e imediatismo eleitoral tornou inaudíveis vozes demo-cráticas lúcidas, como as de Tancredo Neves, Celso Furtado e San Tiago Dantas. Isso truncou o jogo da democracia e facilitou a ação dos golpistas. Houve conspiração? Claro, mas seu êxito não se explica pelo simples fato de ter havido.

É auspicioso que, no transcurso dos trinta anos do que seria a posse de Tancredo Neves, o 1985 tenha sido celebrado nas ruas, tendo o protesto e a luta como pontos de partida. Mas é preciso não perder de vista que daqui até o ponto de chegada não se terá uma linha reta. O “fora Dilma” tem a mesma índole primária do “fora FHC” do final dos 90: reflete menos uma solução política racional e mais a realidade de uma insatisfação difusa, instintiva, contra “tudo o que está aí”, estimulada, naturalmente, pela oposição da vez. Esse ponto de partida tornou-se visível, mesmo que a banda recalcitrante do petismo siga virando as costas à análise política realista e se escudando, contra todas as evidências, numa socio-logia partidária das manifestações, enxergando nelas uma conspi-ração perpetrada por uma “elite branca e golpista”, que se pode, no entanto, contar aos milhões. Esse discurso perde fôlego todo dia,

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mas ainda encontra eco institucional em setores do governo e em falas do próprio presidente do PT.

Ao contrário do ponto de partida, o de chegada é, de fato, invi-sível aos atores do presente. No entanto, se seu destino é atuar, eles não têm escolha: precisam fazê-lo, apesar das densas nuvens. Sem o script conciliador de 1985, que foi também (não se esqueçam os gregos e os troianos) tanto o do Plano Real, em 1993, como o da carta de Lula aos brasileiros em 2002, não chegaremos a um lugar melhor, enquanto a deriva pode nos levar a um não-lugar, do ponto de vista da democracia.

Esse receio não provém da presença de fardas e quepes no horizonte político. São, contudo, várias as roupagens que pode assumir um retrocesso institucional. Assim o receio se justifica, pois a avaliação realista de que a conciliação é o caminho, o método (embora não necessariamente o desfecho), não revoga a percepção, também realista, de que tem predominado, também nos ambientes políticos, o conflito entre o senso comum moralista e a lógica corporativa de um partido político. Seja por pragma-tismo eleitoral ou por interesse patrimonialista, a elite política nacional (ao menos algumas de suas mais relevantes facções) flerta perigosamente com a silhueta de uma vala comum, onde a conjunção de crises ameaça jogá-la por inteiro.

Por outro lado, crises podem ter o papel pedagógico de atiçar o instinto coletivo de sobrevivência, próprio de elites políticas expe-rientes no governo da sociedade, caso da brasileira. Talvez por isso o agravamento das crises esteja dando, mais recentemente, visibilidade a atores cuja estratégia mobiliza o entendimento como método. No começo dessa crise se ouviam, aqui e ali, suas vozes quase sussurrantes, perdidas num mar de desafios e bravatas. Agora cada vez mais frequentemente eles se dirigem ao centro da cena política e ocupam mais espaço no noticiário. Um desses atores tem se destacado, justificando, a meu ver, uma observação cuidadosa de seus movimentos. Trata-se do vice-presidente da República e também presidente do PMDB, Michel Temer, a quem não tanto a virtù, mas a fortuna transforma em peça importante para a viabilização de um cenário em que o idioma do entendi-mento pode levar a um desfecho em que a crise é espantada por uma conciliação. Refiro-me a uma solução provisória do conten-cioso político, envolvendo um arco de partidos, do governo e das oposições, para permitir controle da economia e pavimentar um caminho institucional comum até as eleições de 2018. Tudo sem prejuízo da plena aplicação de soluções punitivas que os bem-

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vindos processos judiciais em curso encontrem para coibir a corrupção que apuram.

Cenários: Temer como um elo em si, ou para si

Erra sobre o PMDB quem lhe atribui lugar e papéis fixos na política brasileira. Hoje ele não se resume a ser o símbolo de um sistema supostamente moribundo (o presidencialismo de coalizão, que uma “reforma política” arquivaria) e de uma democracia dita “de fachada”, a ser superada a partir de agora por uma “verda-deira” democracia centrada nas ruas. E também não é simples-mente uma usina conspiratória profissional e astuta, que empa-reda o Governo e dificulta o ajuste fiscal para ser beneficiado pelo fracasso do primeiro e seu possível desdobramento: o impeach-ment da presidente.

Michel Temer, o presidente do PMDB, não atua no momento com o mesmo script de Eduardo Cunha e Renan Calheiros, prin-cipais lideranças do partido no Congresso. O script de Temer é um obstáculo aos caminhos dos outros dois líderes, que jogam para enfraquecê-lo. Já Cunha e Renan atuam com o mesmo script, mas não chegam a formar uma dupla. Jogam paralelamente e auto-centradamente. Não há liga política nem real cooperação entre eles. Esse “ultraindividualismo” – exacerbado, na atual conjun-tura, pela necessidade de escaparem da operação Lava Jato – é o limite da liderança de ambos. Esse limite abre uma brecha através da qual pode surgir uma saída para o conjunto da elite política, ameaçada pela conjunção das crises econômica, política e moral que caracteriza o momento atual.

Não sei se será o governo ou a oposição (tucanos + PSB, PPS etc.) quem entenderá primeiro que essa saída passa necessariamente pela atuação (e não pelo descarte) do PMDB “institucional”, entendi-mento que aconselha o fortalecimento de Temer e o esvaziamento do poder de Cunha e Renan, que não é sinônimo, vale dizer, de enfra-quecimento do Congresso. Ao contrário, promove seu fortalecimento enquanto casa vocacionada à negociação e não à retaliação. Há sinais, embora ambíguos, nos dois campos políticos principais, de que algo começa a se mover na direção dessa compreensão.

O Governo pode vir a fazer (ou será que já faz?) de Michel Temer o canal de atendimento de algumas demandas das bases congressuais dos dois rivais do vice na luta interna peemedebista, como também “terceirizar”, através dele, um diálogo com a

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oposição. Ambos os passos seriam voltados à aprovação do ajuste fiscal, negociação que nem a presidente, nem seu ministro da Fazenda, nem Lula, muito menos o PT, estão conseguindo fazer avançar na velocidade requerida pela crise. Certo é que, se a apro-vação da sua proposta de ajuste (mesmo com modificações) resultar dessa sua iniciativa política, o governo tem a ganhar, no mínimo, uma chance de recomeço e, a depender dos resultados econômicos de médio prazo, de recuperação da sua credibilidade e consequente produção de um discurso político novo para 2018, já que aquele inaugurado em 2002 chegou à exaustão. Chance para o governo, risco para a oposição. Segue o jogo.

Já o PSDB, no vácuo da inação do governo, ao lado de apro-fundar sua articulação com o PSB e as forças sem partido que fizeram a campanha de Marina Silva, pode encontrar em Temer um emissário junto ao próprio governo para negociar condições de aprovação das medidas de ajuste na economia, ademais um desdobramento lógico do próprio programa eleitoral tucano de 2014. E também um emissário, junto a Cunha e Renan, para criar condições ao surgimento, no âmbito do Congresso, de uma proposta alternativa de ajuste que pode ser viabilizada por essas forças, no caso de fracasso de um entendimento bancado pelo Governo. Enfim, por “bem” ou por “mal”, ter protagonismo numa solução para a crise será um modo de a oposição mudar o disco: em vez de apenas replicar na cena política a agenda do Judiciário e do Ministério Público, construir uma agenda mais ampla, resga-tando o discurso da campanha de Aécio Neves, que se pôs como candidato não só do PSDB, mas de um conjunto de forças que querem mudanças na orientação de governo, dentro dos marcos de uma institucionalidade democrática. A oposição tem a ganhar, no mínimo, o fortalecimento de uma frente eleitoral para 2018 e, no limite, uma conexão, hoje precária, ou inexistente, com as forças sociais que se movem nas ruas. Chance para a oposição, risco para o governo. E segue o jogo.

Em ambos os lados já há quem se disponha a correr os respec-tivos riscos e se mova para o diálogo, evitando assim o trunca-mento do jogo. A oposição tem, a princípio, mais facilidade e tempo para ir nessa direção, se quiser. O Governo está mais enredado com vetos e outros problemas na sua cozinha e também na defen-siva, pelo receio de que o impeachment entre na agenda política, por agravamento da crise econômica, por desdobramentos da Lava Jato ou pelos dois fatores juntos. Além disso, o tempo é adversário de todos os que querem entendimento, mas especial-

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mente do Governo. Sem soluções politicamente encaminhadas, a presidente terá dificuldades de enfrentar uma nova rodada de manifestações de rua, já agendada para 12 de abril. Depois dessa rodada as balizas do entendimento podem mudar, especialmente se as manifestações incorporarem mais fortemente, ao lado da corrupção, do “Fora Dilma” e do “Fora PT”, alguns temas deri-vados da situação econômica, capazes de criar pontes entre a classe média e os trabalhadores em geral.

Em ambos os lados há também quem jogue contra o diálogo e nesse caso não estão apenas Cunha e Renan, talvez os mais ousados atiradores. Várias lideranças importantes do PSDB – malgrado a pregação em contrário de FHC – cedem à tentação de um imedia-tismo curioso, que vê na corrupção petista o mote que lhe traria dividendos eleitorais mesmo sem eleições no horizonte imediato. E no PT, discursos de resistência ao ajuste fiscal e de “refundação” da democracia calçam a alternância de encenações meramente retó-ricas com operações políticas desastradas, no intuito de assegurar votos no futuro e postos no governo no varejo político de agora, mesmo que ao custo da inviabilização do governo no atacado.

Entre os dois campos Michel Temer se move mais do que todos, mas sem propor nada que pareça um jogo pessoal ou mesmo partidário. Ou melhor, todos sabem que ele joga, mas não se pode dispensar o sotaque institucional da sua fala nesse momento em que o centro político se esvaziou. Realista, ele tende a contribuir para um pacto incluindo governo e oposição, fortalecendo-se como mediador (não é razoável, aliás, supor que entrará em pacto com a oposição sem combinar isso com Dilma e/ou Lula). A não ser que a conciliação fracasse por recusa de um dos polos do conten-cioso em aceitar pactos a partir do Governo ou do Congresso.

Na ausência de conciliação a instabilidade aumenta exponen-cialmente, até porque o desdobramento da crise e da Operação Lava Jato poderá terminar afetando a todos, mesmo que em graus diferentes.

Se a recusa ao pacto partir do PT e do Governo, não está escrito nas estrelas que no fim da linha de um pacto alternativo entre PMDB e a oposição estará o impeachment de Dilma e ascensão de Temer, embora isso possa ocorrer, se a crise econômica se agravar e um fato jurídico surgir. Mas também pode se prolongar o atual protagonismo do Congresso em convívio com um Executivo fraco. Até quando, não se pode prever.

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Por outro lado, se a oposição ficar fora de um pacto bem-suce-dido entre PT e PMDB, não se pode afirmar que esse pacto vá além do ajuste fiscal e sustente o governo por quatro anos. A volubili-dade da relação pode alternar períodos de “sangramento” com operações de estancamento provisório, durante as quais o varejo político tende a correr ainda mais solto. O impeachment estará fora do script, mas nunca fora de cogitação.

De todos os cenários, porém, o que parece pior é o da ausência de pactos entre as facções da elite política e sua consequente inação, à espera da conclusão da Lava Jato, ao som de slogans e panelas. Seria o sangramento contínuo que o senador Aloysio Nunes Ferreira evocou como praga ao governo e ao PT. Além de poder jorrar sangue, nesse cenário basta surgir uma mínima base jurídica para que paire uma névoa sobre o mandato presidencial e/ou o calendário eleitoral. E mesmo na hipótese de ambos serem respeitados, não se pode prever se algum partido chegará a 2018 em condição de se contrapor a uma solução outsider justiceira, tecnocrática ou midiática. Num cenário desses, e se a ele sobre-viver o sotaque institucional de Michel Temer, o impeachment ou a renúncia da presidente podem surgir como alternativas preferí-veis à inação. Temer não terá lutado por isso, mas, no jogo jogado, cavalo que passa selado é para ser montado.

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IV. Questões do Estado e da Cidadania

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Autores

Lúcio Flávio PintoEditor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro, Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica, Memória do cotidiano e A agressão (imprensa e violência na Amazônia).

Luís-Sérgio SantosJornalista, autor do livro Rui Facó (Uma biografia) – O homem e sua missão.

Luiz Antônio CunhaSociólogo, mestre e doutor em Educação, professor titular de Educação Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador do Observatório da Laicidade na Educação (www .edulaica .net .br) .

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A intenção, a meta e a imprecisão

Luís-Sérgio Santos

Um gestor público pode cometer erros recorrentes em suas boas intenções ou no arrojo do fazer obras complexas. Mas não pode contribuir, em uma retórica claudicante e equi-

vocada, para consolidar ainda mais a política como o último re-fúgio da prática cotidiana da desfaçatez. Mesmo se aplicarmos o fator ignorância a seu favor, ainda assim fica em xeque o conceito de gestor necessário ao chefe de Estado e ao seu primeiro escalão. Na prática, a política de alianças tem radicalizado na pauperiza-ção da virtude do discernimento.

Descartando-se aqui a opção má-fé vamos nos ater ao fator ignorância associado à má-formação e ao desconhecimento para comentar a confusão no uso da palavra “meta” nos discursos de posses do dia primeiro de janeiro. Tanto no plano federal quanto no plano estadual, usou-se palavra “meta” de um modo abusivo quando, em seu lugar, deveria ter sido usado algum outro léxico que traduzisse a ideia de “intenção”.

Na verdade, o que vimos foi um desfile de intenções – promessas de vir a ser, algumas das quais já nossas velhas conhecidas. O dicionário Aurélio explica que intenção é o “que está planejado ou se pretende alcançar”. A meta vai muito além da intenção quando agrega variáveis de quantidade e tempo. No senso comum, meta pode ser mesmo confundida com intenção. Mas ouvir da suprema mandatária do Executivo brasileiro essa confusão gera em mim, e acredito em milhões de cidadãos, um enorme descon-

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forto, num país onde a imprecisão de orçamentos de obras públicas sempre pede aditivos que triplicam o valor inicial.

Em seu discurso de posse, no segundo mandato de quatro anos, a presidente Dilma Rousseff assegurou: “Mesmo em meio a um ambiente internacional de extrema instabilidade e incerteza econômica, o respeito a esses fundamentos econômicos nos permitiu colher resultados positivos. Em todos os anos do meu primeiro mandato, a inflação permaneceu abaixo do teto da meta e assim vai continuar”. Intenção à beira da ficção como vimos já nos primeiros meses de 2015.

Camilo Santana, jovem governador do Ceará, também do PT como a presidente, em seu discurso de posse assegurou ter “como uma das minhas principais metas, reduzir os índices de violência em nosso estado. Vou trazer esta questão para mim, coordenando diretamente as ações para combater a criminalidade e, principal-mente, gerar oportunidades para que as pessoas, em especial os mais jovens, não sejam seduzidas pelo crime.” Passados os primeiros meses de gestão, nem temos o programa de combate à violência, nem o cronograma para o cumprimento das “metas”, muito menos uma estratégia para tal. E a violência contabilizada no número de homicídios continua assustadora. A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará registrou 76 “crimes violentos letais intencionais (CVLI)” no Carnaval de 2015. “CVLI” é uma construção burocrático-retórica para a expressão “homi-cídio doloso” quando uma pessoa mata outra intencionalmente. Esta nova forma de medição expurga da contagem os casos de homicídio culposo quando sem a intenção de fazê-lo, em decor-rência de negligência, imprudência ou imperícia. Mesmo com o expurgo, o número de homicídios, no período do Carnaval deste ano foi 7% a mais que em 2014.

O governador cearense asseverou ainda ter “como meta, também, garantir segurança hídrica para nossa população, prin-cipalmente do interior. Vou acompanhar diariamente o anda-mento das obras da Transposição do Rio São Francisco e do Cinturão das Águas e vou trabalhar para que, mesmo com a seca que nos afeta há três anos, nenhum cearense deixe de ter água para seu consumo”. Como se sabe, o cronograma dessas obras está totalmente atrasado e as mesmas já serviram de moeda de troca eleitoral em inúmeras eleições presidenciais. As obras de transposição se arrastam há anos, e o Ministério da Integração Nacional, por elas responsável, assegura, uma vez mais, que a conclusão será ao final deste ano. Acreditar, quem há de?

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7777A intenção, a meta e a imprecisão

Como se vê, meta é muito diferente de intenção e por isso a retórica desses políticos é disléxica. Todo bom gestor público sabe que meta é aquilo que traz em seu bojo as variáveis planejamento, projeto, orçamento e, principalmente, um cronograma – sem medida de tempo, não há meta. Meta tem prazo preciso, exato, para ser atingida. Se não tem prazo nem orçamento não é meta, é intenção. Como os prazos raramente são cumpridos, o planeja-mento original vai para o espaço e o custo das obras, idem. Meta está no plano de negócios; intenção está na esfera do ideal ou do utópico. Ambos cumprem papéis importantes, mas um não pode ser confundido com o outro em uma alta esfera de poder. A gestão pública orientada para resultados é um grande plano de metas.

Hipótese da confusão de sentidos como política deliberada de alienação e desinformação só encontra competidor no ruído semântico, caracterizado pelo ruído que se estabelece principal-mente junto à audiência na faixa do analfabetismo funcional.

O país que não se preocupa com detalhes semânticos é o mesmo país que nunca teve um Prêmio Nobel, é o mesmo país que amarga os piores indicadores no Programme for International Student Assessment, em português Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). No último ranking do Pisa, refe-rente a 2012, o Brasil aparece na 58ª posição em Matemática, 55ª posição em Leitura e na 59ª posição em Ciências. China, Japão, Singapura e Finlândia lideram o ranking. O Brasil não aparece entre os 35 melhores em nenhuma categoria.

Outro problema grave é o excesso retórico. Certa de que acabou com a miséria no Brasil, a presidente Dilma aboliu o slogan, mero slogan, “país rico é país sem pobreza” que enfeitou toda sua propa-ganda durante seus primeiros quatro anos de gestão. Sabemos que os programas assistencialistas não são emancipadores, ao contrário, são mantenedores de uma situação de dependência social que o governo federal vem usando como moeda de troca eleitoral. Sabemos também que a pobreza e a miséria continuam grassando no país.

Mas, superando, em seu imaginário lúdico, a fase da pobreza (e da miséria) dos brasileiros, a presidente, ao tomar posse para um segundo mandato, anunciou o lema do seu novo governo: “Ao bradarmos ‘Brasil, Pátria Educadora’ estamos dizendo que a educação será a prioridade das prioridades, mas também que devemos buscar, em todas as ações do governo, um sentido formador, uma prática cidadã, um compromisso de ética e senti-

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7878 Luís-Sérgio Santos

mento republicano”. Uma semana depois, no dia 8 de janeiro, ela anunciou o choque fiscal que subtraiu do orçamento do Ministério da Educação R$ 7,042 bilhões, uma enorme oposição ao ato mera-mente retórico de “pátria educadora”.

A carência em educação e a ausência de políticas públicas agressivas nesse setor decisivo para o presente e o futuro do país, sem falar na falta de uma estratégia educacional inovadora, estão na base de todo o problema. Esta carência é tão maior quanto a avalanche de políticos populistas sem nenhum compromisso com a realidade e com a verdade.

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O Brasil descobre a água

Lúcio Flávio Pinto

Foi preciso que São Paulo, uma das maiores cidades do mun-do, fosse ameaçada pelo colapso no fornecimento de água para que o Brasil descobrisse que esse recurso vital precisa

ser tratado adequadamente. A Amazônia, com a maior bacia hi-drográfica, precisa aprender essa lição.

O brasileiro descobriu a água pela pior lição: a da sua falta. Foi preciso que as duas maiores cidades do país, São Paulo e Rio de Janeiro, ficassem sob a ameaça de colapso no fornecimento para que a grave realidade se impusesse à negligência e incompetência do governo, e à insensibilidade da população.

Em ritmo de crise, como nunca antes, para lançar mão da frase célebre de Lula, o país toma conhecimento da extensão do problema e sua complexidade. Normalmente autossuficiente, beirando a arrogância, o paulistano passou a se interessar pela Amazônia não mais como um tema exótico e distante, mas como um elo da cadeia das suas dificuldades e temores.

De forma cada vez mais constante, o boletim do tempo nas emissoras de televisão incorpora informações sobre o fluxo de nuvens carregadas que saem da Amazônia na direção sul.

Rios voadores passou a ser expressão do dia a dia dos mora-dores de São Paulo, literalmente despejados diante de uma circunstância única dentre as grandes cidades do mundo: o racio-namento drástico de água. Essa conjuntura tem, como uma das suas principais causas, a rigorosa estiagem sobre as áreas dos reservatórios da capital paulista, provocando uma seca recorde.

Mas a diminuição das chuvas não é um fenômeno recente. A tendência para a redução se apresentou em 1999, mantendo-se contínua a partir de então. Mas a vida continuou normal, indiferente a esse aviso da natureza. Por comodismo ou oportu-nismo, que se acentua em temporada de caça aos votos, as admi-nistrações públicas confiaram numa providência divina alea-tória. Sem ela, a corrida agora é contra o tempo para evitar que se consume a ameaça inédita de privar de água milhões de pessoas por dias seguidos.

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Nesse ponto, os paulistanos passaram a se interessar por um fenômeno muito bem mostrado por meio de um documentário (Dança da Chuva), realizado pela Fapesp, a fundação de pesquisa de São Paulo. O filme explica um enigma: como é que uma área situada no centro-sul do continente, mesmo estando nessa faixa do planeta, não tem características semelhantes às dos grandes desertos, localizados na mesma posição.

Nesse quadrilátero, que tem São Paulo como o seu centro, destinado naturalmente a ser uma área desértica, se concentram 70% do PIB da América do Sul, com a região sul-sudeste do Brasil e a Argentina. É onde se produz mais energia, estão as maiores indústrias e a principal agropecuária. A região é pulverizada de água abundante por nuvens trazidas pelos ventos da Amazônia. São os rios voadores, expressão que passou a figurar no cotidiano das áreas ameaçadas pela falta de água.

São 17 bilhões de toneladas de aerossóis atmosféricos desviados na direção sul, um volume de água comparável à do rio Amazonas, o maior de todos, com seus 20 bilhões de toneladas despejados no Oceano Atlântico. Esse incrível deslocamento de massa de vapor em suspensão causa chuvas torrenciais e even-tualmente tragédias, mas não tem conseguido estancar a progres-siva estiagem em alguns pontos da região.

Seria o efeito do desmatamento na Amazônia. As grandes árvores amazônicas são que retêm o vapor vindo dos oceanos, que são a maior fonte de chuvas na Terra, além de lançar água ao ar pela evapotranspiração, funcionando como bombas de captação e lançamento através das suas copas e raízes. Sem as árvores, esse processo se desfaz.

A derrubada da floresta nativa da Amazônia já se aproxima de 800 mil quilômetros quadrados, o equivalente a três vezes a extensão de São Paulo. O tamanho dessa alteração teria que modi-ficar os processos da natureza. Alguns fazem essa afirmativa de maneira categórica. Outros a suscitam ainda como hipótese, carente de uma plena confirmação científica. Outros negam a relação causal.

Ninguém pode negar o fenômeno, qualquer que seja a expli-cação para a interferência humana nele. Mônica Porto, gerente de água da Escola Politécnica de São Paulo, uma das entrevistadas do documentário da Fapesp, argumenta que o desmatamento altera o volume de água em circulação entre o verão e o inverno, mas em função da própria natureza, não da participação humana.

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Ela diz que a água que escoa pelas raízes das árvores pode ser barrada quando as drenagens para as quais ela se dirige estão cheias, mas é liberada quando o nível dos cursos d’água baixa. Mas haverá sempre água circulando. A diferença estará no seu aparecimento superficial.

O esquema ignora que a supressão da cobertura vegetal acar-reta o aquecimento do solo, que reduz a umidade e interrompe o ciclo da água, além de desencadear outros processos, como a compactação do solo e a erosão.

Ainda que o efeito dessa ação humana sobre a natureza não esteja cientificamente demonstrado em todas as suas etapas, ele se evidencia na própria região. É perceptível empiricamente a mudança de microclimas e até além deles nas áreas que perderam a sua vegetação original.

À parte essas complexidades, observadas há muito mais tempo do que podem sugerir os estudiosos de hoje, diferenciados dos mais antigos por sua parafernália tecnológica contra a percepção a olho nu (e inteligência ultra-aguçada), o conhecimento autoriza o pesquisador Antonio Nobre, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de São Paulo, a dizer que a Amazônia é uma “usina de serviço ambiental”.

Não quer dizer que a região deva cobrar uma taxa por seus rios voadores, seguindo a cômoda prática dos governos estaduais de reduzir as questões à cobrança de tributos e derivados. Esse é um serviço prestado pela natureza.

Mas há um ingrediente humano nessa história: é a destruição do bem mais nobre da região, e que a define como tal: a floresta.

Se é útil ao quadrilátero mais rico do continente que a água continue a seguir sua rota natural de norte para o sul, o paga-mento pode ser feito pelo apoio às pesquisas capazes de escla-recer esse processo e por medidas que não só inibam o desmata-mento como disseminem uma nova cultura em seu lugar, a do uso da floresta.

Por sua nobreza, esse bem deve ser destinado a mais do que madeira sólida ou ser substituído por plantios de soja e pastagem de gado. Deve ser o fundamento do precioso serviço ambiental que a Amazônia presta à parte mais rica do Brasil e da América do Sul. Se as águas circulam numa direção pelo ar, por terra pode e deve ser feita a contrapartida de recursos materiais para sustentar esse ciclo e reduzir as desigualdades econômicas e sociais.

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Para que esse enunciado não se torne uma utopia boba, as autoridades responsáveis pela questão devem utilizar sua compe-tência e seu dever de ofício para conferir a autonomia que a questão da água merece e exige. Ou então a incrível crise hídrica que a região mais rica do país está vivendo (e sofrendo) não deixará as lições necessárias.

A água é um bem vital. Isso todos aprendem nos primeiros manuais escolares, mas poucos o transportam para suas vidas. Esse desligamento deixou de existir. Deve-se aproveitar o inte-resse, os sacrifícios e o sofrimento de centenas de milhares de pessoas para dar um sentido prático a esse saber essencial.

Não se pode mais continuar a maltratar a água no Brasil. Ela é a companhia diária de todos, nas suas muitas serventias. A principal delas deriva da sua potabilidade. Captar, tratar e distribuir água devia ter a prioridade que não lhe é dada no Brasil. Um novaiorquino abre a sua torneira e bebe uma das melhores águas do mundo.

Mas paga todos os anos para que os mananciais, em sua forma natural, sejam mantidos em condições de uso a uma distância de até 200 quilômetros da cidade. Por ser justo, é um pagamento que atrai os donos das terras onde estão essas fontes hídricas. Em muitos casos, preservar a água se tornou a principal fonte de faturamento desses proprietários rurais.

O suprimento de água potável no Brasil é uma calamidade pública. Talvez o impacto atual, especialmente em São Paulo, consiga mudar esse panorama. A conta do descalabro será cobrada de qualquer maneira e agora os maus administradores públicos já não contarão com o alheamento (em alguns casos, ignorância) da sociedade.

Gestão de água deverá ser a nova qualificação profissional requerida pelo mercado. Não uma gestão fracionada, esgotada em cada especialidade. Uma gestão multidisciplinar. A sociedade precisa estar bem informada (e formada) para não deixar mais que um assunto de tal gravidade seja conduzido apenas pelo governo. O chamado controle social é indispensável. Na Amazônia, que abriga a maior bacia hidrográfica do planeta, essa deve ser uma função de Estado.

Não são apenas os rios voadores que migram do norte para o sul: é também a energia, extraída dos cursos d’água e conduzida por longas e caras linhas de transmissão. A Amazônia tem sido

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apenas a base física desse processo. As decisões sobre onde, como e para quem destinar essa energia são tomadas fora da região e ignorando-a. Aos nativos cabe apenas as rusgas da resistência, exercidas através de manifestações de protesto que paralisam ocasionalmente as obras e retardam o seu cronograma físico e financeiro. Mas não as inviabilizam. Nem, eventualmente, modi-ficam o seu perfil.

A Amazônia é província colonial para todos os usos da água. Mas não inevitavelmente tem que ser assim. Essa função é uma exigência de entidades mais poderosas, dentro e fora do país, que precisam de muita energia para sua produção. Tal premissa elide qualquer consideração que ameace essa demanda. Mas a posição amazônica podia estar melhor exercida se pudesse se consolidar com os conhecimentos e as informações adequadas.

A hidrelétrica de Belo Monte exemplifica essa tensão. Ela foi concebida originalmente como uma réplica de Tucuruí, projetada, construída e posta para funcionar no período do regime militar (sua inauguração ocorreu em 1984). Com a democracia, a hidrelé-trica do Xingu foi submetida a questionamentos e contestações. O desenho original foi modificado para atender a principal crítica: a inundação de uma área extensa para a formação do reservatório.

O lago artificial foi reduzido a um terço da sua previsão inicial, que era de 1,6 mil quilômetros quadrados. Dos 503 km2 que restaram, 228 km2 correspondem à própria calha do rio Amazonas e seu transbordamento durante o período de cheias. Assim, a submersão de área nova será de 275 km2.

É água que dá apenas para acionar as seis turbinas bulbo que serão instaladas no vertedouro principal e manter a vazão mínima do rio Xingu na Volta Grande, que fica abaixo (a jusante) do barra-mento, em 700 metros cúbicos de água por segundo, acima da mínima normal, de 400 m3. Se mantido esse compromisso, poderá haver menos água na cheia nesse trecho, porém mais na seca. Ainda assim, as populações ribeirinhas de índios e caboclos temem prejuízos da nova situação do rio.

Apesar de aí, no sítio Pimental, estar o principal vertedouro do complexo hidrelétrico, sua estrutura abrigará apenas as turbinas de baixa potência, que funcionam com desnível de quatro metros, produzindo 2% da energia total do sistema. Daí se dizer, com certa impropriedade, que se trata de usina a fio d’água, capaz de produzir com vazão corrente, sem precisar de retenção da água.

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As 18 grandes turbinas, que serão responsáveis por 98% dos mais de 11 mil megawatts de potência instalada, estarão a 140 quilômetros de distância. Sua grande vantagem (como do sítio escolhido pelos engenheiros para o aproveitamento energético) é o desnível de 90 metros nessa curta distância, que garante a veloci-dade da água, suficiente para acionar as imensas turbinas, que exigem quase 800 mil litros por segundo.

Parte substancial da vazão do Xingu será desviada do seu curso normal por canais de derivação para um reservatório complementar, que ficará fora da calha do rio. Esse lago, que aproveitará drenagens naturais e também áreas novas que serão inundadas, terá suas margens garantidas por diques de concreto. Eles terão múltiplas funções: reter água, manter a vazão contro-lada, drenar o excesso de água de volta ao rio e proteger os igarapés.

Ninguém jamais concebeu um esquema desses para uma hidrelétrica no Brasil (e, talvez, no mundo).

A movimentação de terra para a construção do canal de deri-vação, que terá 20 quilômetros de extensão, 200 metros de largura e até 20 metros de profundidade, será bem maior do que a da construção do canal do Panamá (126 milhões e 95 milhões de metros cúbicos, respectivamente). Esses números dão uma ideia da grandiosidade da obra. E também da sua complexidade, sobre-tudo porque nada igual foi construído antes.

Tudo isso para eliminar o aspecto mais vulnerável de uma grande hidrelétrica na bacia de rios de baixa declividade natural e muita diferença entre o máximo e o mínimo de vazão durante o ano: o alagamento de extensas áreas, inclusive as cobertas por densa vegetação.

Mesmo com a compensação representada pelo reservatório complementar e o canal de derivação, não haverá água suficiente para acionar todas as 18 turbinas principais de Belo Monte durante três ou quatro meses do ano, quando a usina ficará parada. Por isso, sua potência efetiva o ano inteiro terá apenas 40% da capacidade nominal, de mais de 11 mil MW, que a coloca como a terceira maior hidrelétrica do mundo.

Vale a pena gastar tanto dinheiro e expor a natureza e a popu-lação local aos riscos dessa intensa intervenção humana para ter uma usina de geração firme tão inferior à da sua potência de projeto? Os engenheiros não hesitam em responder afirmativa-

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mente, mas seus cálculos não estão ao alcance da sociedade para avalizá-los agora. E estavam ainda menos acessíveis quando a decisão de construir Belo Monte foi tomada.

Espera-se que isso nunca mais se repita para que os custos da atual crise hídrica do Brasil rico sirvam de lição para todo o país. Em especial, sua maioria pobre.

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Laicidade enganosa

Luiz Antônio Cunha

Difícil definir o Estado laico, mais fácil dizer o que ele não é. Como a democracia, aliás. Isso porque a laicidade do Estado é um processo. Os Estados não nasceram laicos.

Aproximativamente, podemos dizer que um Estado torna-se laico quando prescinde da religião para sua legitimidade, quando suas políticas se baseiam exclusivamente na soberania popular.

O Estado laico respeita todas as crenças religiosas, desde que não atentem contra a ordem pública, assim como respeita a não crença religiosa. Ele não apoia nem dificulta a difusão das ideias religiosas nem das ideias contrárias a essa ou àquela religião, ou mesmo a todas elas.

O segundo resultado da laicidade do Estado é que a moral cole-tiva, particularmente a que é sancionada pelas leis, deixa de ser tutelada pelas instituições religiosas, passando a ser definida no âmbito da soberania popular. Isso quer dizer que as leis, inclusive as que têm implicações morais, são elaboradas com a participação de todos – dos crentes e dos não crentes, enquanto cidadãos.

O Estado laico não pode admitir imposições de instituições religiosas, para que tal ou qual lei seja aprovada, nem que alguma política pública seja mudada por causa dos valores religiosos. Mas, ao mesmo tempo, o Estado laico não pode desconhecer que os religiosos de todas as crenças têm o direito de influenciar a ordem política, fazendo valer, tanto quanto os não crentes, sua própria versão sobre o que é melhor para toda a sociedade, de acordo com critérios universais.

Em consequência, o Estado laico não é confessional nem mesmo com os prefixos com que se pretende dissimular essa situação: inter, multi, supra ou pluriconfessional. O Estado laico tampouco se confunde com o Estado ateu. Este é o que proclama toda e qual-quer religião como alienada e alienante, em termos sociais e indivi-duais. Para combater a alienação, o Estado ateu constrange, então, toda e qualquer religião. Se não consegue proibi-la completamente, dificulta ao máximo suas práticas, inibe sua difusão e desenvolve contínua e sistemática propaganda antirreligiosa.

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Entender bem a diferença entre a laicidade e o ateísmo é de grande importância, porque os partidários da (con)fusão política-religião sempre proclamam, em tom de ameaça: “Estado laico não é Estado ateu”. Esta é uma afirmação óbvia, mas que traz implí-cita a ideia de que a oposição é entre o Estado ateu, de um lado, e o Estado confessional, de outro.

Há quem até diga aceitar a laicidade do Estado, desde que ela seja “autêntica” ou “positiva” – adjetivam para desqualificar o substantivo.

Como a democracia, a laicidade do Estado parece ser defen-dida por todos ou quase todos, da esquerda à direita. Mas o que prevalece é uma laicidade enganosa, do faz de conta, como tanta coisa, aliás, na nossa política.

A escola pública é onde a laicidade enganosa é mais ostensiva. Quando indagados a respeito, diretores e professores são unânimes em dizer que a escola pública é laica. No entanto, as paredes estão cheias de cartazes com trechos bíblicos, imagens de santos ocupam nichos e crucifixos montam guarda nas salas de aula e nas secretarias. As lições começam com preces e as atividades escolares estão permeadas de práticas e prédicas confessionais, mesmo quando a disciplina ensino religioso não é oferecida. Se essa disciplina é ministrada, ela é apresentada aos pais e aos alunos como obrigatória. Quando não a querem – direito garan-tido expressamente pela Constituição – as maiores dificuldades lhes são impingidas.

Outro aspecto dessa enganosa laicidade na escola pública aparece na fala dissimuladora de diretores e professores, que dizem não fazer proselitismo, pois apenas levam aos alunos o que as religiões têm de comum, isto é, a base de toda a moral. E perguntam: “quem pode ser contra isso?”.

Ora, as aulas sobre “valores”, que negam da boca para fora sua genealogia religiosa, não passam de expressões confessionais de regras de conduta conservadoras ou reacionárias – uma espécie de educação moral e cívica, de triste memória. A obsessão com o controle sexual povoa essas aulas, tanto quanto os preconceitos discriminadores.

Está mais do que na hora de os políticos de hoje se inspirarem nos seus colegas do século XIX: em Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Saldanha Marinho e tantos outros que defenderam a laicidade do Estado, antes mesmo que esse nome existisse.

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8888 Luiz Antônio Cunha

Já passa da hora de substituirmos o oportunismo eleitoreiro atual pela coragem daqueles na separação entre Estado e Igre-ja(s), hoje confundidos no Executivo, no Legislativo e no Judi-ciário. E é justamente o vácuo gerado pela omissão de nossos governantes, parlamentares e juízes, que alimenta a simbiose Estado-Igreja(s), empecilho material e ideológico para a cons-trução da democracia em nosso país.

(Publicada originalmente na Revista de Debates, da Fundação Verde Herbert Daniel)

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V. O Social e o Político

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Autores

Cassilda Teixeira de CarvalhoEngenheira sanitária, presidente do Prêmio Nacional de Qualidade no Saneamento e integrante do conselho diretor da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) .

Luciana Lunardi CamposProfessora do Instituto de Biociências, Departamento de Educação, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu-SP .

Renata Cabrera Professora do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT – campus de Cuiabá-MT) .

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O nó do saneamento

Cassilda Teixeira de Carvalho

Muito se fala sobre a necessidade de universalizar os ser-viços básicos no país. Com muita frequência, citam-se a educação e a saúde como serviços essenciais que deve-

riam estar ao alcance de todos. Porém, poucos listam o saneamen-to entre as prioridades. Ao longo das últimas décadas, evoluímos no aumento da oferta de serviços de água e esgoto (incluindo-se o seu tratamento) e disposição adequada dos resíduos sólidos. Mas ainda estamos distantes do ideal. Permanecemos longe de nossos vizinhos, como o Uruguai, Argentina, Colômbia e Chile, apenas para citar alguns. Se subirmos um pouco no mapa da América Latina, até o Panamá está melhor que o Brasil nesse quesito. Nos-sos indicadores são piores, também, que os de países do Leste Europeu e grande parte da Ásia.

O Brasil é um país cuja economia é muito maior que a de todos esses países. Por que razão, então, estamos tão atrasados na universalização do saneamento? Para entender as razões disso, é preciso voltar um pouco no tempo, mais precisamente ao fim dos anos 1980, quando foi extinto o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). O programa foi criado no fim dos anos 1960 justamente para aumentar a oferta dos serviços de água e esgoto à população. Realmente, isso aconteceu. Tanto que o percentual da população urbana ligada à rede de água passou de 30% para 70% durante os 15 anos de existência do Planasa. É bom que se ressalte também que esse incremento ocorreu justamente no período de maior êxodo rural da história do nosso país.

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9292 Cassilda Teixeira de Carvalho

Direcionamento

O modelo do Planasa previa que todos os estados deveriam ter sua companhia de saneamento. Por meio dela é que os recursos seriam canalizados para investimento no setor e a economia de escala possibilitaria a otimização dos recursos. Também é dessa época o subsídio cruzado, um modelo de financiamento interno que existe até hoje, no qual a receita gerada nos municípios superavitá-rios é transferida para garantir a operação dos sistemas deficitá-rios. A despeito de tudo isso, havia, porém, o questionamento quanto ao fato de aproximadamente um quarto da população brasi-leira ter ficado de fora do Planasa, pois era atendida por sistemas municipais de saneamento. No fim dos anos 1980, quando da rede-mocratização do país, o modelo foi questionado justamente por causa disso. Em consequência, o Planasa foi extinto.

Veio aí um período de duas décadas em que ocorreu um vácuo no ordenamento jurídico do sistema nacional de saneamento. O resultado prático disso é que o aumento da oferta dos serviços passou a se dar muito lentamente. A própria entrada da iniciativa privada no saneamento foi extremamente tímida, diferentemente do que ocorreu em outros países, como o Chile, Argentina, Bolívia, etc. Hoje, apenas pouco mais de 5% da população urbana brasi-leira é atendida por sistemas privados. O restante desse contin-gente é atendido, em sua grande maioria (cerca de 75%), pelas empresas estaduais. O que não está com a iniciativa privada nem com as empresas estaduais é operado pelos municípios.

O vácuo que havia no ordenamento jurídico do saneamento brasileiro foi superado somente em 2007, quando entrou em vigor a Lei 11.445, que instituiu a Política Nacional de Saneamento. A partir daí, o país passou a ter definidas em Lei as responsabili-dades de cada um dos entes federativos. Porém, só o ordenamento jurídico não seria suficiente. Sem recursos, não se consegue implantar sistemas de tratamento e distribuição de água, nem de coleta e tratamento de esgoto.

Na última década, o governo federal passou a destinar um volume maior de recursos para investimento em saneamento. Acreditava-se que os investimentos trariam uma grande acele-ração na cobertura dos serviços. Mas aí ficou muito claro outro gargalo: a deficiência na gestão dos sistemas.

Esse problema – o da gestão – se agrava devido a dois fatores. O primeiro é o caráter de monopólio natural dos serviços de sanea-mento. O caráter monopolista deriva do fato de não se ter, em

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9393O nó do saneamento

nenhum lugar do mundo, concorrência na oferta de água e coleta de esgotos. Na mesma rua, não passam duas redes de água, de tal forma que o cidadão pode escolher se quer a água da companhia “A” ou da companhia “B”. Ele é ligado à rede da empresa que opera o serviço no município onde mora. Com a telefonia isso passou a ser possível há vários anos, da mesma forma que na área elétrica a quebra do monopólio começou a ocorrer. A outra questão é o fato de esses serviços serem predominantemente locais.

A junção desses dois fatores – monopólio natural e serviço local – dificulta a implantação de programas de modernização da gestão das empresas e sistemas de saneamento. Porém, não se trata de um obstáculo intransponível. A partir dos anos 1990, sobretudo, ocorreram mudanças importantes na gestão das empresas e sistemas municipais de saneamento. O Prêmio Nacional da Qualidade em Saneamento (PNGS) há 18 anos ajuda no avanço e melhoria do sistema de gestão, que tem como resul-tado a redução das perdas de água e a melhoria do atendimento. Mas é preciso continuar avançando, investindo na modernização, atualização da gestão e adoção de inovações tecnológicas, passando-se a trabalhar, cada vez mais, com resultados. Por isso, o grande desafio do saneamento brasileiro é a gestão.

A boa gestão evitaria, apenas para citar um exemplo, problemas como a crise da água, que tem colocado milhões de pessoas à mercê de um possível colapso no abastecimento este ano. O comportamento da natureza é muito conhecido. Aumento ou redução do volume de chuvas pode ocorrer de um ano – ou de um conjunto de anos – para outro. Porém, tais situações podem ser administradas se a empresa tem um bom sistema de gestão de sua matéria-prima – no caso, a água.

Apesar de todas essas adversidades, sou otimista. Acho que a população está, a cada dia, mais consciente da importância do saneamento para sua vida cotidiana, da mesma forma que a indústria e a agricultura. Lamentavelmente, a crise hídrica tem dado uma forte contribuição nesse sentido, mas essa ajuda é apenas pontual. Vejo que o país como um todo está em um processo de amadurecimento e, consequentemente, de cobrança pela universalização do saneamento. Prova disso é que, das 27 unidades da federação, 17 já possuem sua agência estadual de saneamento, instituição de grande importância para a melhoria da gestão das companhias estaduais e sistemas municipais de água e esgoto.

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9494 Cassilda Teixeira de Carvalho

Uniformização

Além de ser o principal garantidor da descontinuidade dos aportes financeiros necessários ao atingimento dessa meta, o governo federal tem um papel muito importante como ente capaz de promover uma uniformização das práticas, de tal forma que experiências exitosas praticadas, por exemplo, pelas companhias com um sistema de gestão mais desenvolvido possam ser transfe-ridas para aqueles sistemas que estão em estágio menos avan-çado de gestão. Ganharíamos tempo e evitaríamos a repetição de erros. E quem pode prover isso é o ente federal. Nesse aspecto, acho que a União tem tido uma atuação tímida. Poderia fazer mais sem que se corra o risco de quebra do pacto federativo.

A despeito de todos os empecilhos, sou otimista. Há muito a ser feito. Mas, no saneamento, não há barreiras intransponíveis. O que há são desafios a serem vencidos. Se os recursos forem mantidos e aprofundarmos a melhoria da gestão, em cerca de 10 anos – até 2025 – teremos conseguido atingir a universalização do saneamento no país.

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Políticas educacionais e formação de professores

Renata Cabrera / Luciana Lunardi Campos

O presente texto tem como objetivo contribuir para a refle-xão acerca do desenvolvimento de políticas educacionais e as relações estabelecidas com a formação de professores.

Partimos da premissa de que inserir efetivamente as discus-sões sobre as políticas públicas nos cursos de licenciatura faz-se necessário uma vez que a escola e o trabalho docente não são entes isolados da sociedade e, como tal, recebem influências e também influenciam.

O futuro professor, bem como o docente no exercício da sua profissão, quando é parte integrante da formulação e implemen-tação das normatizações, regulamentações, das diretrizes que norteiam o desenvolvimento do seu ofício, ganha maior compreensão da totalidade que envolve o conjunto do seu trabalho. Dessa maneira, este profissional também interage com o processo e não se porta como mero executor das propostas dos gestores do Estado. Nesse aspecto, há que se primar pela garantia da sua participação na formulação das políticas educacionais, por meio de metodolo-gias adequadas para que se possa captar sua efetiva contribuição.

André (2009, 2011) evidenciou que a temática das políticas educacionais ainda é escassa nas pesquisas sobre formação de professores. No estudo comparativo das dissertações defendidas entre 1990 a 2003, uma das autoras (2009) apontou que a dimensão política na formação do professor é quase silenciada nesses traba-lhos e que as poucas investigações a respeito das políticas educa-cionais centram-se na análise das políticas de formação.

Brzezinski e Garrido (2006) identificaram ligeiro aumento no interesse sobre o tema das políticas educacionais nas pesquisas, a partir do ano de 2001, no estudo que realizaram sobre a formação de profissionais da educação no período entre 1997 a 2002. Essas autoras levantaram que houve um incremento de pesquisas enquadradas na categoria Políticas e Propostas de Formação de Professores, no período investigado. No entanto, no universo de 742 dissertações e teses analisadas, apenas 64 trabalhos (8,5%) corresponderam à categoria aqui mencionada, o que evidencia

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que continuam tímidos os trabalhos que focam as relações das políticas educacionais e formação de professores e que a lacuna existente sobre essa temática ainda persistia.

Dados mais recentes, na área da pesquisa sobre o ensino de Ciências e Biologia, também evidenciam que a temática a respeito das políticas educacionais representa universo restrito entre as investigações nesse campo, conforme pode ser observado nas atas do Encontro Nacional de Pesquisa em Educação para a Ciência (Enpec). Na nona edição desse evento (2011), dentre os 1.235 trabalhos apresentados, 28 se referem à temática das políticas educacionais, o que corresponde a um percentual de 2,26% do total de trabalhos (ABRAPEC, 2012).

As pesquisas, analisadas por Brzezinski e Garrido (2006), evidenciaram que a maior parte dos estudos sobre as políticas educacionais centra-se na discussão das reformulações pelas quais as licenciaturas são submetidas. No rol das escassas pesquisas sobre a temática, mais parcos são os estudos que versam a respeito da maneira como a discussão sobre a formu-lação e implementação das políticas educacionais vem se dando nos cursos de formação de professores.

De certa maneira, este espaço em aberto pode ter relação com a rejeição existente ao tema da política, vista, muitas vezes, como algo impuro, sujo, discussão essa que foi abordada pelo filósofo Jean Paul Sartre na sua clássica novela As mãos sujas, ao narrar as tramas do Partido Comunista Francês agindo na clandestini-dade na luta pela expulsão dos nazistas que ocuparam a França, na segunda guerra mundial. Em uma das discussões, a respeito do puritanismo, um dos líderes do partido usa a expressão: “quem não tem coragem de sujar as mãos não pode fazer política” (SARTRE, 1977)

A lacuna existente em torno da discussão sobre a política e a educação no pensamento pedagógico brasileiro foi objeto da tese de doutoramento de Antonio Carlos Maximo (1997), publicada em dois livros: Os intelectuais e a educação das massas: o retrato de uma tormenta (2000) e Os intelectuais da educação e a política partidária: entrevistas inéditas com Dermeval Saviani, Paulo Freire, Carlos R. Jamil Cury, José Carlos Libâneo, Moacir Gadotti, Mário Sérgio Cortella e Selma Garrido Pimenta (2010).

Ao indagar esses intelectuais sobre o tema da política e educação na formação do professorado brasileiro, Maximo (2000) colheu depoimentos importantes que contribuem com a discussão

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aqui proposta, a respeito das relações estabelecidas entre desen-volvimento de políticas educacionais e formação de professores.

O encaminhamento que o autor desenvolveu junto aos seus investigados converge para a discussão da política no seu sentido mais amplo até a sua expressão enquanto instrumento de poder, ou seja, na manifestação da política pela via das organizações partidárias. Ele está convicto de que é por via da política que os projetos de poder postos na sociedade podem ser disputados e viabilizados ou não, e que a educação participa no processo da luta pela hegemonia que é travada entre os projetos opostos.

Coadunamos com esse entendimento de que é por via da ação política prática, inclusive a via partidária, como lócus privilegiado na busca do poder no Estado democrático, que os projetos para a sociedade, dentre eles os que se referem à parte educacional, podem ser concretizados. Também concordamos que a rejeição e o preconceito existentes em torno da política partidária contri-buem para o distanciamento do professor em relação às políticas educacionais, o que acaba por refletir na escassez de trabalhos sobre essa temática, constatada por André (2009, 2011).

Foram selecionados alguns trechos dos depoimentos dos inte-lectuais entrevistados por Maximo (2010), a título de evidenciar algumas de suas reflexões sobre as possíveis causas desse vazio existente no pensamento pedagógico brasileiro a respeito do tema da política e educação:

Ele (pensamento pedagógico brasileiro) omite a questão por conta dessa velha distinção entre o político e o político partidário, com todos os preconceitos ou conceitos que se tem em relação aos partidos políticos, de um modo geral, no Brasil (...) (Entrevista concedida por Carlos R. Jamil Cury in MAXIMO, 2010, p. 132)

(...) Eu acho que interessa às classes dominantes mostrar que fazer política é coisa suja para deixar que a grande maioria não participe. Fica o espaço somente para eles fazerem política. Isso reforça, realmente, essa ideia. Esse preconceito afasta o professo-rado da política. Mas não é só por isso que afasta. No caso do professorado, também, ele se afasta muito em função das análises da própria noção política. (...) (Entrevista concedida por Moacir Gadotti in MAXIMO, 2010, p. 168)

(...) Não é só um problema de convicção docente, mas também uma questão de oportunidades, de importância do partido polí-tico. Você vai ter educadores militando diretamente em partidos

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políticos de 1960 a 1964, e, depois de 1985 em diante. No total, não chegam há quinze anos. Num país de quinhentos anos, ou mesmo considerando apenas os últimos cem anos, ainda é um limite forte. Ademais temos que lembrar que numa sociedade patriarcal e machista como a nossa quase sempre se excluem as mulheres da política. E em educação, 91% dos profissionais são mulheres. Esse é um dado que pesa. (...) (Entrevista concedida por Mário Sérgio Cortella Cury in MAXIMO, 2010, p. 107)

Estes depoimentos apontam alguns aspectos que estão na base do distanciamento do(a) professor(a) em relação ao tema da política, dentre eles o preconceito existente em relação a este termo, o interesse das classes hegemônicas e as interferências oriundas de uma sociedade calcada no patriarcado e no machismo.

Evidenciar estes aspectos, que contribuem com a lacuna do tema das políticas educacionais na formação do professor, é importante para a compreensão desse fenômeno e para a busca da sua superação.

No pequeno universo das pesquisas que retratam a realidade das políticas educacionais, poucos são os estudos que tratam da inserção do tema no domínio dos cursos de formação de profes-sores, como indicado no estudo já citado de Brzezinski e Garrido (2006). Qual é a importância de tal inserção? Qual o papel do professor no desenvolvimento dessas políticas? E o papel do Estado gestor e das suas instâncias formadoras?

De maneira geral, percebemos que muitas análises que ensaiam responder questões como estas tendem a polarizar o tema das políticas educacionais nos extremos: Estado, de um lado, e o professor, de outro, na ponta do sistema e, em meio a ambos, as instituições formadoras. Entendemos que cada um desses elementos compõe uma totalidade na qual se constitui a formação do profissional docente. Nesse aspecto, advogamos a favor de que a discussão das políticas educacionais seja tomada na esfera das conexões que existem entre essas partes: Estado, suas respectivas instituições formadoras e o professor. Ou seja, ao evidenciar o papel atribuído a cada um desses componentes, por meio da decomposição e recomposição analítica dessa totali-dade que constitui a formação docente, abre-se espaço para o entendimento das relações que podem ser estabelecidas entre os segmentos aqui citados e o todo que os compõem.

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Estado, instituições formadoras e professores no desenvolvimento de políticas educacionais

Compete às instituições formadoras, como parte das instân-cias do Estado, no caso das públicas, ou por ele regulamentada, no caso das privadas, o papel de divulgadoras das políticas em andamento. É imperioso que essa divulgação seja feita pelo viés da crítica e avaliação contínua dos programas e projetos colocados em andamento nas diversas instâncias sociais, incluindo-se aí o campo da educação.

Das relações entre o Estado, as instituições formadoras e os professores espera-se que se desenvolvam no nível da horizontali-dade, com via de mão dupla, no qual os agentes envolvidos possam participar de forma efetiva nos processos de formulação e imple-mentação das políticas almejadas, não apenas como executores ou divulgadores, mas também como formuladores.

Isso não significa desconsiderar que existem níveis distintos entre um governo eleito e as demais instâncias da sociedade civil, na qual se inserem os professores e instituições responsáveis por sua formação. No entanto, prima-se pela instauração de relações no campo das formas democráticas, no qual se busca garantir que um projeto de governo eleito possa ser desenvolvido com a partici-pação das diversas instâncias que compõem a sociedade. Uma dessas formas é a conexão entre estes agentes e instâncias, de maneira a garantir o amplo debate sobre os temas que são de inte-resse da coletividade.

Sob essa ótica, ao Estado gestor compete garantir que o senso de realidade que emana da prática e reflexão do professor, que está na base no sistema educacional e às vezes é expresso de modo não sistematizado, esteja contemplado nas políticas formu-ladas, por meio de diversos canais de diálogo, via a participação dos professores nos espaços de representatividade da sociedade civil, pelo estabelecimento de sintonia do Legislativo com o “núcleo sadio do senso comum”, termo esse cunhado pelo autor italiano Antonio Gramsci ao abordar as contribuições dos saberes popu-lares na formação de determinada visão de mundo, da filosofia. Este autor argumenta (1999, p. 98):

Qual é a ideia que o povo faz da filosofia? Pode-se reconstruí-la através das expressões da linguagem comum. Uma das mais difundidas é a de “tomar as coisas com filosofia”, a qual, anali-sada, não tem por que ser inteiramente afastada. É verdade que nela se contém um convite implícito à resignação e à paciência,

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mas parece que o ponto mais importante seja, ao contrário, o convite à reflexão, à tomada de consciência de que aquilo que acontece é, no fundo, racional, e que assim deve ser enfrentado, concentrando as próprias forças racionais e não se deixando levar pelos impulsos instintivos e violentos. Essas expressões populares poderiam ser agrupadas com as expressões similares dos escritores de caráter popular (recolhidas dos grandes dicio-nários) nas quais entrem os termos “filosofia” e “filosofica-mente”; e assim se poderá perceber que tais expressões têm um significado muito preciso, a saber, o da superação das paixões bestiais e elementares numa concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção consciente. Este é o núcleo sadio do senso comum, que poderia precisamente ser chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente (destaque entre “aspas” – do autor; em negrito – grifo nosso).

Os professores estão diretamente ligados ao todo social que constitui o universo educacional, no qual eles propagam, se apro-priam e compartilham opiniões que circulam no senso comum inerente a esse meio. Da prática social que constitui a ação desse profissional emergem elementos caracterizados como os núcleos sadios do senso comum do estrato social a que pertencem, o bom senso na acepção gramsciana.

Desta maneira, no processo de formulação das políticas públicas, em especial das políticas educacionais, é desejável que haja uma associação orgânica, no sentido de buscar uma sintonia fina entre o Estado gestor e os núcleos sadios que emanam dos sujeitos, entre eles o professor, que vivenciam o universo educa-cional em sua prática social.

No senso comum, nem tudo é bom senso. Há nele os núcleos sadios, mas há também diversas representações que circulam que, por vezes, são confusas, desagregadas e incoerentes. Gramsci (1999, p. 115) aponta que “os elementos principais do senso comum são fornecidos pelas religiões e, consequentemente, a relação entre senso comum e religião é muito mais íntima do que a relação entre o senso comum e os sistemas filosóficos dos inte-lectuais.” Neste sentido, nem tudo que emana do senso comum do estrato social na qual estão inseridos os professores, bem como de outros estratos sociais, é constituído só de bom senso. Há em meio a ele preconceitos, o peso da tradição e a carga ideológica de determinada época e período que influenciam no modo de agir e pensar dos indivíduos.

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Assim, defendemos que é imprescindível a participação efetiva do professor no processo de formulação das políticas educacio-nais. Porém, não deixamos de reconhecer que são necessárias metodologias adequadas para captar o “núcleo sadio” que circula no universo do senso comum do qual são parte. Dentre estas metodologias podemos citar a que permite a discussão com a base, a sistematização das suas ideias e o retorno para debate com o grupo que as originou, de modo a possibilitar que o que foi abstraído possa ser analisado e, se preciso, reformulado. Este processo pressupõe o trabalho articulado entre o Estado gestor, suas instâncias formadoras e professores.

A essas instâncias formadoras compete o trabalho com o futuro profissional, bem como com os que estão no exercício da profissão, de maneira a lhe propiciar inserção e atuação crítica na sociedade da qual são integrantes. Como uma instância social que faz parte da estrutura que compõe o Estado, as instituições forma-doras se constituem como um elo entre o governo e o futuro profis-sional que será absorvido pela sociedade.

Assim, o estabelecimento de diálogo entre estes entes abre caminho para a efetivação de uma sintonia fina na qual um deter-minado governo, ao mesmo tempo em que apresenta e discute o seu projeto para a sociedade, se apropria das discussões oriundas da produção do conhecimento que partem dessas instituições. Neste caso, há uma confluência de esforços por parte desses agentes, Estado e instituições formadoras, que se tornam imbuídos de um objetivo comum, e associado, que é o de retornar à socie-dade os melhores serviços que são pagos à custa da contribuição tributária de cada cidadão.

Esta situação talvez possa ser considerada um tanto utópica e muito distante da realidade existente no âmbito das relações entre o Estado gestor e as instituições formadoras que dele fazem parte. No entanto, é importante que ela não saia do foco dos educadores que são comprometidos com a transformação da escola e com a justiça social.

Algumas considerações

A educação aqui é tomada como ato político, conforme defen-dido por importantes intelectuais do pensamento pedagógico brasileiro, entre eles Paulo Freire e Dermeval Saviani. Neste sentido, estamos convictas de que a discussão sobre o desenvolvi-mento de políticas educacionais está intrinsecamente relacionada à formação do professor.

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A implementação das políticas públicas guarda relação com a formação dos futuros profissionais que serão incorporados pela sociedade, sobretudo pelo sistema público de serviços.

No sistema educacional, os egressos das instituições de ensino superior, bem como os professores que já estão em exercício da sua profissão, formam juntamente com o Estado gestor e suas instâncias formadoras, um círculo que se fecha em torno do desenvolvimento das políticas educacionais.

Neste círculo está contido o peso de uma tradição que ocasionou separar os entes aqui citados em extremos opostos e com funções bem definidas: Estado-formulador; instituições formadoras-divul-gadoras; e professor-executor dessas políticas.

Desta forma, urge repensar os papeis destas partes que, tradi-cionalmente, compõem a totalidade no desenvolvimento das polí-ticas voltadas à educação.

A dedicação às pesquisas que foquem as relações estabelecidas entre as políticas educacionais, o desenvolvimento do trabalho docente e a formação do futuro profissional constituem investi-mento importante para o entendimento da situação no qual está inserida boa parte das políticas educacionais em andamento.

Se tivermos a convicção de que existe um círculo vicioso nas relações estabelecidas entre o Estado gestor, suas instâncias formadoras e professores, no que se refere ao desenvolvimento das políticas educacionais, o seu enfrentamento passa pela parti-cipação efetiva destes sujeitos no âmbito do Estado, o que inclui a discussão, desde a base, nos cursos de formação de professores.

Assim, para além de importante, o debate sobre o desenvolvi-mento de políticas educacionais e formação de professores é necessário para a efetivação de uma educação realmente compro-metida com a transformação social.

Referências

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______. A produção acadêmica sobre formação de professores: um estudo comparativo das dissertações e teses defendidas nos anos de 1900 e 2000. Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação Docente, v. 01, n. 01, ago.-dez./2009, p. 41-56. Disponível em: <http://formacaodocente.autenticaeditora.com.br>.

BRZEZINSKI, Iria; GARRIDO, Elsa (Orgs.) Formação de profissionais da educação (1997-2002). Brasília: Ministério da Educação, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – MEC/Inep, 2006 (Série Estado do Conhecimento, n. 10).

CONTRERAS, José. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.

GRAMSCI, Antonio (1891-1937). Cadernos do Cárcere, V. 1. Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho; coedição, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

GIROUX, Henry A. Los profesores como intelectuales . Hacia uma pedagogia crítica del aprendizaje. Barcelona/Madri, Paidós/MEC, 1990.

MAXIMO, Antonio Carlos. Os intelectuais e a educação das massas: o retrato de uma tormenta. Campinas, SP: Autores Associados, 2000.

______. Intelectuais da educação e política partidária – entrevistas inéditas com Carlos R. Jamil Cury, Dermeval Saviani, José Carlos Libâneo, Moacir Gadotti, Mário Sérgio Cortella, Paulo Freire, Selma Garrido Pimenta. Brasília: Liber Livro/EdUFMT, 2010.

SARTRE, Jean Paul. As mãos sujas. Portugal: Europa-América, 1997.

SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2000.

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VI. Batalha das Ideias

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Autores

Leandro GaviãoDoutorando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) .

Paulo Elpídio de Menezes NetoCientista político, ex-reitor da Universidade Federal do Ceará, membro da Academia Brasileira de Educação e do Instituto Histórico do Ceará; ensaísta e escritor, foi secretário de Educação do Ceará e professor visitante da Universidade de Colônia, Alemanha .

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Reflexões provisórias sobre o poder, a democracia e a tentação totalitária

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Se um sistema político não se caracteriza por um sistema de valores, permitindo um pacífico “jogo” de poder – ou seja, a aderência por parte dos que estão fora das decisões tomadas por aqueles que estão dentro, juntamente com o reconheci-mento pelos que estão dentro dos direitos dos que estão fora – não pode haver democracia estável.

Seymour Martin Lipset1

Não existe um modelo único que sirva de regra ou explique como se instala um Estado autoritário. Mas, por pura es-peculação caprichosa: qual seria a receita ideal para uma

ditadura forte e duradoura, ideal de todos os salvadores? O itine-rário a percorrer não é, como demonstram os fatos, muito dife-rente nas etapas sucessivas que conduzem à conquista do poder, ao controle dos mecanismos do governo do Estado e à submissão dos cidadãos.

A crônica das ambições humanas, capitulada no livro da História, traz os registros da escalada desses movimentos “salva-cionistas”, nascidos da insatisfação de muitos ou de alguns, do clamor das ruas ou da conveniência de grupos, da força dos movi-mentos sociais, enfim, das necessidades e circunstâncias “inter-pretadas” por lideranças hábeis, movidas ao doce embalo de reve-lações aliciadoras, em momento decisivo e oportuno.

1 LIPSET, Seymour Martin. O Homem Político, Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

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As ditaduras europeias do século XX, surgidas no leste conti-nental com a revolução de 1917 e as que se constituíram na Península Ibérica, na antevéspera do advento do nazifascismo, reproduziram fórmula semelhante do uso da força e do aparato militar, na conquista do poder. Esses espasmos de quebra do equilíbrio democrático já eram conhecidos desde o aparecimento do Estado, em sua versão mais remota. Em outras partes do mundo, como neste fantástico Macondo em que vivemos, a exceção são os governos democráticos, e a regra, a prática auto-ritária exercitada pelas elites oligárquicas, de direita ou esquerda, que se equivalem na sua patriótica porfia pelo poder. Os ideais democráticos e os instrumentos jurídicos do Estado constitu-cional nunca foram capazes de frustrar a tentação totalitária que anima a índole dos homens.

As primeiras arremetidas de assalto ao poder passam, em geral, despercebidas pelos cidadãos confiantes, os incautos dominados pela ilusão das bondades anunciadas e os crédulos em geral, que um dos artífices da revolução bolchevique chamava de “compa-nheiros de viagem”. Inicia-se, assim, a ocupação do espaço das liberdades, a redução dos mecanismos constitucionais, ao simples aceno das promessas das novas mudanças. A censura aos meios de comunicação é uma decorrência dessa progressão “institucionali-zadora”. Ninguém pronuncia essa palavra comprometedora. Dá-se-lhe o nome gentil e sedutor de “controle social”, instância inconsútil da qual o Estado, pelas mãos hábeis do governo, exerce o seu imenso poder prestidigitador. O cerco às ideias heterodoxas que possam ameaçar a segurança dos novos atores em cena, a vigi-lância sobre os intelectuais, velhos espantalhos afeitos ao hábito de discutir as certezas assentes, tudo concorre para a montagem do aparelho de Estado, com a ocupação dos espaços do governo pelas criaturas da mesma grei, e o aprisionamento do poder de decidir e impor decisões em mãos salvadoras.

No grande capítulo das manipulações lógicas, surgem no palco dessa comédia de falsas ilusões os malabaristas da democracia, os seus intérpretes. O que espanta e surpreende nesse processo de arregimentação das forças de pré é a miopia, senão a ingenui-dade, de lideranças e partidos políticos que entram alegremente nessa engrenagem de olho nos dividendos miúdos porém rentá-veis de cargos e vantagens.

No fundo, desconfiam, como o peru em véspera de Natal, que a festa anunciada começará sem eles. É história conhecida, vem de tempos imemoriais; mesmo assim não serve de lição aos novos

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viajantes. O otimista incorrigível enxerga a casca da banana, pisa nela – e reclama por ter caído... É de sua índole.

Democracia: manual do usuário

Ao longo de um grande percurso histórico, do qual somos as testemunhas mais recentes, engajadas ou distantes, a democracia ocupou, mobilizou e preocupou muitas mentes -– e pôs em estado de alerta as forças do poder instalado e instituído na engrenagem do Estado. Neste árduo itinerário, a democracia foi quase sempre desejada pelos pobres, embora vista de esguelha pelos ricos. É possível que a democracia só se torne viável quando os ricos não se sentirem ameaçados por ela. Por ricos, entenda-se não apenas os detentores da fortuna, mas também os que controlam o poder, influenciam os seus atores e usam os seus recursos políticos, no sentido real que se lhe atribui, para a realização de sua vontade e imposição dos seus interesses.

Como compreender o significado de “democracia”, de forma clara, linear, sem torneios eruditos, de modo que possamos fazer uso adequado dessa palavra? Regime político ou forma de Estado no qual existem direitos civis assegurados, liberdade de expressão e associação, e sufrágio universal. A questão está, entretanto, em como as nações alcançam esse patamar civilizatório e neles se mantêm, segundo os valores ocidentais consagrados. Poucas ques-tões na Ciência Política foram tão estudadas e discutidas quanto a relação entre desenvolvimento socioeconômico e democracia política. Seymour Martin Lipset,2 sociólogo americano, filho de judeus-russos, professor da Universidade de Stanford, construiu a teoria sobre Requisitos Sociais da Democracia, na década de 1950. Parece evidente que, a seus olhos, esse binômio não representasse uma simples relação empírica de causa e efeito. Outras condições associadas à mudança social, numerosas e complexas, atuavam nesse sentido. Os pré-requisitos anunciados por Lipset, favoráveis a uma “cultura democrática”, contemplavam, naturalmente, outros mecanismos, tais como o fortalecimento do capital humano, com apoio na educação, a importância da classe média, a garantia dos direitos políticos e econômicos dos trabalhadores e a modernização social e econômica, com base na qual crescesse a receptividade aos valores e às normas, à negociação de conflitos e à rejeição a toda forma de autoritarismo e manifestações extremistas. A democracia

2 Alguns requisitos sociais da democracia, Primeiros Estudos, n. 2, p. 198-250, 2012.

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é um estado de equilíbrio que se realiza com a conjugação de forças transformadoras: industrialização, urbanização, saúde e educação. Como forma de Estado, consolida-se em um sistema aberto de classes, com uma classe média ampla, capaz de assegurar tran-sição e estabilidade democráticas.

Estas desculpáveis digressões de um democrata militante, conquanto desprovido de certezas que a muitos anima, vêm a propósito do que Alain Touraine chama de novos “champs d’histo-ricité”, nos quais se organizam as novas identidades coletivas, organizadas em torno de conflitos sociais inéditos. As manifesta-ções desarrazoadas à direita e à esquerda sobre o novo ativismo social e político no mundo contemporâneo fortalecem reações perigosas de intemperança política, bem conhecidas no passado das nossas desesperanças. Demonstram os novos “gauleiters” da intolerância o desconhecimento da função propriamente demo-crática desses novos movimentos sociais. Ignoram como uma sociedade democrática, no sentido real do termo, pode valer-se desses mecanismos dinâmicos, sem incorrer no risco de uma maximização do Estado e de seus feitores, em ações preventivas contra a tentação totalitária.

A fabricação da contrarrealidade

Nos Estados modernos, como, de um certo modo, nos embriões de Estado que já existiam na Idade Clássica Ocidental e em nações do Oriente desconhecido, os agentes do governo recorriam a expe-dientes que, hoje, constituem uma sofisticada ciência dissemi-nada pelos serviços de inteligência. E de tal modo ganharam complexidade e força essas formas auxiliares da arte de governar que a poucos parecem compreensíveis, já que estão resguardadas por um sistema inexpugnável de proteção, as razões de Estado. O passo mais audacioso para o controle do poder no Estado e a sua proteção contra o assédio dos súditos confinados nos limites legais monopolizados por ele e de uma legitimidade consagrada, embora suspeita, foi a criação dos instrumentos da “desinteli-gência” e da contrarrealidade. E de tal modo pareceu conveniente esse achado lógico às pessoas astuciosas, que essa licença incorporou-se a uma providencial retórica da esperteza, empre-gada de forma corrente na linguagem da política.

As técnicas de convencimento dos ímpios, isto é daqueles que, por infelicidade e teimosia, discordam de nós, das nossas certezas e de nossa incontestável boa fé, ganharam um aparelhamento

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eficiente com essa forma de indução da verdade. As artes dos serviços de “inteligência” repousam, como se sabe, em um processo delicado de descobrir o que os outros pensam, entendem ou se propõem fazer. Com antecedência, naturalmente, que o tempo conta decisivamente nesses casos de bisbilhotagem preventiva. Já a “desinteligência” é uma arte mais sofisticada que consiste em fazer o outro acreditar naquilo em que não acreditamos. É uma encenação dramatizada da construção de uma “contrarrealidade” que os agentes do Estado passaram a exercer com aplicação e zelo. No mundo da política, no qual os militantes se dividem entre grupos, separados por sistemas de crenças mais ou menos arrai-gadas em interesses contingentes, a realidade é variável, mutante, na medida exata das próprias ambições.

No Brasil, modelamos um sistema político de fazer inveja aos pais-fundadores da moderna democracia. Condimentamô-lo com algumas pitadas da sabedoria peninsular, bebida no saber jurí-dico das sebentas de Coimbra, e matizamos certo pendor cordial pela negociação, pela composição de interesses, impulso cívico e patriótico que desencorajaria qualquer pensamento de oposição entre nós. Os que entram em dissidência o fazem provisoriamente à espera do momento da adesão, convencidos antecipadamente dos argumentos que o levarão ao caminho da governabilidade e do erário. Os recalcitrantes são envolvidos pela lógica da racionali-dade do poder e submetidos ao fogo cruzado das evidências pelas quais sempre esperaram ser convencidos. Entra aí o esforço patriótico da “desinteligência”, espécie de “in hoc signo vinces” constantina, escrita na contabilidade dos favores a serem rece-bidos e amealhados, no recolhimento das antessalas palacianas, muito distantes da ponte de Mílvio, sobre o Tibre. Assim se cons-trói a “contrarrealidade”, engenharia delicada de relojoeiro, segundo a qual o real não é necessariamente o que se vê, mas o que não aparece aos olhos das pessoas desavisadas.

Exercícios de democracia

“La démocratie jusqu´au bout”, gritava Jean-Jaurès ao povo. A democracia levada às últimas consequências. Foram ouvidas, há algumas semanas atrás, queixas do ex-presidente Lula para quem “há muita gente incomodada com a democracia”, e “se alguns quiserem brincar com a democracia”, “ninguém sabe colocar mais gente na rua do que eu”. O desapontamento presi-dencial soou como uma ameaça. Lembramo-nos, ainda, de quando

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o último dos generais-presidente prometeu “chamar o Pires”, o seu ministro do exército linha dura. A expressão intimidatória de que se servia indicava que a tolerância com os excessos da demo-cracia chegara ao limite. Chamar o Pires, colocar o povo e os movi-mentos populares nas ruas, encomendar plebiscitos, multiplicar as emendas constitucionais por instância legislativa derivada, abusar das medidas provisórias, propor constituintes ad hoc, auto-habilitantes, propor restrições à ação da imprensa, às vésperas dos pleitos eleitorais, barganhar maioria no Congresso para a construção de uma “base aliada” à custa de emendas orça-mentárias – eis o que se poderia apontar como um “menu” totali-tário que apeteceria a muitos democratas republicanos, confessos, que chegam ao poder. A expressão ganhou adeptos e intérpretes destemidos. Tempos atrás, que não estão tão distantes, “chamava-se” o ginete arreado para impor o poder de suas patas. Há pouco, no correr dos últimos acontecimentos, houve quem pretendesse “chamar” militantes para “virem às ruas”, expressão que carrega consigo graves propósitos de ordem, coerção e convencimento... Alguns mais inventivos, graduados em semântica política, sopraram a ideia de uma “intervenção militar constitucional”. O “vir às ruas” materializa o fortalecimento do poder ameaçado, muitas vezes pelo povo essa construção simpática que só se expressa legitimamente quando recebe a inspiração dos seus condutores. Ganharam foros de democratização instrumentos e corretivos que abririam a caixa fechada do regime republicano: o controle social, por exemplo, que se exerceria por via de aparelhos designados e recheados em nome do povo...

Não é difícil identificar alguns arquétipos do totalitarismo: objetivo de envolvimento da totalidade da população e do desejo de manipulá-la com a ajuda de um partido e organizações de massa a ele submetidas. Estado de partido único com monopólio decisório e elite política; polícia política; monopólio da imprensa e a manipulação da mídia; ideologia de dominação social de amplo alcance; culto à personalidade; criação do inimigo a combater e do amigo a apoiar; exclusão, discriminação ou eliminação de mino-rias; consolidação do poder em monopólio ilimitado; a fabricação do consentimento. O populismo, na sua feição latino-americana, é uma variante desarmada, filho dileto do viés autoritário, lobo em pele de cordeiro.

A América Latina e o Brasil, cada país a seu modo e segundo a sua cultura política, tão rarefeita na região, sofrem de intermitên-cias totalitárias, e cumprem ciclos relativamente curtos de demo-

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cracia. A literatura latino-americana reflete com vigor a crônica anunciada dos libertadores da hora. Provêm de sedições militares e do enfado da “elite”; mas, também, tem cheiro de povo e da burguesia. As revoltas que levam os ditadores e os tiranos ao poder, por estes lados desolados, aquém e além Cordilheira, miram a democracia “maculada”, pretendem apresentar-se como movimentos libertadores – e alvejam, com tiro certeiro, a demo-cracia. Em nome da democracia, temo-nos empenhado em acabar com ela, zelosamente, desde o primeiro dos libertadores aos recém-chegados salvadores. Feitos católicos pela colonização e alimentados no bornal jurídico da tradição ibérica, com os atavios gauleses, os países latino-americanos nunca perderam uma natural inclinação pela tentação irresistível do Estado totalitário. Com a benção da Igreja e a proteção do saber jurídico, foram edifi-cadas aqui as ditaduras mais duradouras de que se tem notícia no mundo – todas vestidas de legalidade, embrulhadas no manto jurídico que lhes cortavam os juristas a serviço do poder. Alcan-çamos a perfeição nesses aviamentos: inventamos a ditadura constitucional. Os novos líderes levados ao poder pelo voto almejam o êxito da democracia, falam com veemência de fórmulas republicanas, evocam os fundadores, exalam o nacionalismo de três décadas passadas, prometem uma nova saída, a do socia-lismo do século XXI, melindram-se com o assédio da imprensa, denunciam as “elites” e condenam a “classe-média”. A exaltação do Estado forte enfraquece as reservas morais e éticas dos parla-mentos, minando-lhes a legitimidade do mandato. O judiciário é submetido à visão primária das suas soluções e sínteses. Tudo, naturalmente, concebido e obrado em defesa do povo e da demo-cracia. Desta democracia renovada que dispensa as instituições republicanas e as troca pelo exercício de consultas diretas, baseada no contato, sem intermediação, entre o poder e o povo.

Cada um a seu jeito, guardando, entretanto, o gestual comum do pretendente ao poder ilimitado, vai fabricando o consentimento das massas mediante expedientes que valorizam a pobreza e a miséria, perpetuando-as, segundo as conveniências, como moeda de troca de uma benemerência infinita praticada pelo governo, em nome do Estado.

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Considerações sobre o liberalismo econômico e a democracia

Leandro Gavião

O liberalismo econômico alicerça suas premissas num sis-tema de valores que reivindica o legado intelectual de um conjunto específico de autores, perpassando John Locke,

Ludwig von Mises, Ayn Rand, dentre outros. Resguardadas suas idiossincrasias, estes pensadores são combinados com o intuito de legitimar uma determinada concepção contemporânea sobre o papel do Estado e uma tendência econômica específica, a saber: o Estado mínimo – restrito à tríplice função de assegurar a vida, a liberdade e a propriedade – e o livre mercado, respectivamente.

À semelhança dos demais fatos humanos, a ascensão do discurso liberal é um fenômeno inscrito num contexto histórico específico. Os governos de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher imprimiram à década de 1980 a marca do resgate da teoria e da práxis liberal, após um longo período de intervenção estatal instrumentalizada para solucionar os efeitos deletérios da Crise de 1929. Iniciaram-se, assim, as primeiras experiências de desmonte do Estado e de sacralização do mercado, sendo este último convertido em ícone da eficiência racional derivada do egoísmo individual humano.

Na década de 1990, nos marcos da implosão do bloco soviético e do fim do comunismo real, a retórica liberal ganhou fôlego extra. O cientista político norte-americano Francis Fukuyama adiantou-se, inclusive, em proclamar o “fim da História” (FUKUYAMA, 1992). Na esteira do otimismo pós-Guerra Fria, o receituário libe-ralizante fora apresentado como panaceia para as mazelas socioe-conômicas mundiais, sendo amplamente disseminado, mormente na América Latina

Todavia, é sabido que a redução do papel social do Estado acarreta num sistema com acentuadas diferenças de classes, ocorridas, por exemplo, mediante a carência de um agente mediador com força suficiente para corrigir desequilíbrios, solu-cionar as tensões entre o capital e o trabalho, sustentar níveis de emprego e suprimir mazelas que venham a surgir de um aprofun-damento das desigualdades.

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Em resumo, o Estado é fulcral para garantir a coesão da comu-nidade. Por esta razão, inúmeros intelectuais têm se posicionado contra as premissas do liberalismo, apresentando, de acordo com suas peculiaridades teóricas, tonalidades de argumentos que vão desde exortações morais até convincentes sustentações empí-ricas, de modo a exprimir as muitas discordâncias quanto ao dogma liberal.

Cabe salientarmos que a crítica ao liberalismo aqui externada se relaciona à sua faceta econômica, não abarcando as institui-ções democráticas originárias do liberalismo político, a saber: o sufrágio universal, o regime parlamentar, as eleições livres, o reconhecimento dos direitos civis, a liberdade de pensamento e de imprensa, o princípio da participação da maioria na vida pública e a proteção das minorias. Em síntese, tudo aquilo que dimana dos três valores primordiais disseminados pela Revolução Fran-cesa: liberté, égalité, fraternité.

Isto posto, devemos estar conscientes tanto da separação entre os dois paradigmas liberais supracitados quanto da necessidade de valorizarmos os elementos mencionados no parágrafo anterior, sobretudo por se constituírem desdobramentos de demandas pretéritas perpetradas pelo Terceiro Estado e, posteriormente, pelos trabalhadores que, por meio de revoltas, greves e outras formas de manifestação, auferiram direitos outrora considerados utópicos, convergindo para a igualdade. É oportuno lembrar que esta última caracteriza-se como desígnio basilar das esquerdas, segundo o cientista político italiano Norberto Bobbio (2001).

Do mesmo modo que os direitos raciais, de gênero e traba-lhistas foram conquistados por meio de reivindicações de movi-mentos coletivos, a democracia deve ser considerada um triunfo das massas, e não do capitalismo. Basta para tanto observar que, ao longo do século XIX, as elites burguesas apoiavam a agenda liberal, não obstante rejeitassem o sufrágio universal (RÉMOND, 1997), componente indispensável para o real funcionamento da democracia, proporcionando participação política no sentido lato. Mas não sejamos ingênuos: o caráter perpetuamente inconcluso da democracia exige empenho diuturno direcionado para o seu aperfeiçoamento e manutenção (RANCIÈRE, 2014).

O filósofo francês Jacques Rancière afirma que, a princípio, a democracia representativa consistia num regime de funcionamento do Estado de base parlamentar-constitucional, fundamentado primordialmente no privilégio das elites. Somente após uma

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sequência de exigências e lutas, a democracia passa a ser expan-dida para outros segmentos sociais. A história sangrenta da reforma eleitoral na Inglaterra é apenas um dos exemplos capazes de denun-ciar o idílio de uma tradição liberal-democrata e de expor a hipo-crisia por trás do conceito de igualdade para as elites econômicas.

No artigo intitulado “A utopia liberal”, o filósofo esloveno Slavoj Žižek (2008) traça um diagnóstico interessante sobre o neolibera-lismo, apresentando-o como modelo econômico inconciliável com a democracia. Partindo de seu argumento, poderíamos dizer que as massas, no que concerne ao sistema capitalista, tendem natu-ralmente a se posicionar contra o desmonte do welfare State ou a se associar visando edificar um regime de bem-estar, gerando assim uma incompatibilidade intrínseca com o liberalismo.

Considerando o posicionamento combativo das organizações laborais e sua histórica busca por direitos, fica evidente que a única forma de governo com uma plataforma econômica liberal conseguir enxugar as conquistas sociais para executar seu recei-tuário é recorrendo ao emprego de métodos repressivos ou de teor autoritário, à revelia do diálogo com os sindicatos e com os movi-mentos sociais. Não é mera coincidência que as lideranças de governos liberais tendam a apresentar baixos índices de populari-dade ou assumir características ditatoriais.

Tais questões são muito bem trabalhadas pelo antropólogo venezuelano Fernando Coronil, que elenca sete consequências resultantes da expansão do neoliberalismo, dentre as quais se destaca a violência legítima de um poder ilegítimo, explicada a partir da eliminação das funções de assistência social por parte do Estado, reduzindo-o à mera agência ilegal de proteção ao serviço das megaempresas e agente de repressão instruído a calar os focos de insatisfação (CORONIL, 2000).

Em outras palavras, o grande capital – poder ilegítimo – se torna capaz de mobilizar contra seus adversários a máquina repressiva do Estado que, em termos weberianos, é o agente que detém o monopólio da violência legítima dentro de um determi-nado território (WEBER, [1919] 1985), daí o jogo de palavras na ideia de violência legítima de um poder ilegítimo.

O receituário liberal traz em seu bojo o embrião da instabili-dade, desdobramento da acentuação das desigualdades socioeco-nômicas e do sentimento de insegurança quanto à renda e ao emprego, coroados com a carência de uma rede pública de assis-tência. Por conseguinte, compreende-se que a função do Estado

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mínimo é assegurar o paraíso dos ricos, dado que preza pela defesa da propriedade, da vida, da dinâmica do mercado e do corte de impostos e de direitos trabalhistas, enquanto desdenha de demandas oriundas de outras camadas sociais que, muitas vezes, dependem dos serviços públicos para sobreviver com um mínimo de dignidade.

Se lançarmos mão do enfoque de longa duração proposto por Thomas Marshall para a compreensão da formação da cidadania, perceberemos que esta ocorre no sentido de uma progressiva demanda por direitos. Na sua classificação, há uma hierarquia de elementos correspondentes a três períodos: (i) o elemento civil, relacionado aos atributos básicos para garantir as liberdades individuais; (ii) o elemento político, manifesto na possibilidade de participação do exercício do poder e; (iii) o elemento social, a busca do livre acesso à proteção social.

A despeito de seu caráter esquemático, da sua dinâmica euro-cêntrica e de algumas exceções notáveis – como o caso da Alemanha, onde o Estado de Bem-estar Social precede a universa-lização dos direitos civis – o modelo de Marshall contribui para uma apreciação da edificação da cidadania nos marcos de um continuum, apresentando paralelismos com a análise de Jacques Rancière sobre a democracia. A tabela a seguir visa sintetizar os três períodos contemplados pelo autor.

Deste modo, a exigência de desconstrução do Estado social representa nada mais que uma tentativa de fazer regredir a atual configuração da cidadania para uma dimensão outrora superada. Isto é, o programa liberal exige que a proteção social seja descon-siderada como um direito civil, restando aos cidadãos gozarem apenas das conquistas anteriormente consolidadas, como as liberdades individuais (século XVIII) e o direito universal de parti-cipação política (século XIX).

Daí resultaria, então, toda a sorte de tensões, tendo em vista que os movimentos populares, os sindicatos e os trabalhadores jamais aceitarão tamanho retrocesso. As imposições do libera-lismo econômico provocariam tantas consequências deletérias que seu estabelecimento seria permeado por inquietações e conflitos sociais diversos, originados da remoção de direitos consi-derados pétreos pelo povo.

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A concepção de cidadania de Thomas Marshall

CIVIL POLÍTICO SOCIAL

PERÍODO Século XVIII Século XIX Século XX

INSTITUIÇÃO Estado de Direito Sufrágio universal Estado de bem-estar social

DIREITOS

Liberdade da pessoa

Liberdade de expressão

Liberdade de pensamento

Liberdade de crença

Direito de propriedade

Direito de fazer contratos

Acesso a uma Justiça igualitária

Elegibilidade

Direito de voto

Bem-estar econômico

Proteção social

Fonte: Adaptado de DÉLOYE, 1999, p. 87

Hodiernamente, os países mais vulneráveis da Europa viven-ciam um momento particularmente turbulento, caracterizado por passeatas que reúnem milhares de pessoas indignadas, greves gerais e pela emergência de partidos radicais. Estes fenômenos são desdobramentos da conjuntura de arruinamento das espe-ranças decorrentes da austeridade fiscal imposta pela Troika e da impotência de governos pouco comprometidos com o povo.

Vale aproveitarmos o espaço que nos resta para apresentarmos uma última incongruência intrínseca à sociedade liberal: o prin-cípio da meritocracia. Tal como explicado, com precisão, pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, as metas de isenção fiscal sobre as grandes fortunas e sobre a transmissão de heranças conduziriam a uma natural acumulação de capital nas famílias mais ricas, fazendo com que os indivíduos privilegiados pudessem não só desfrutar deste benefício material sem qualquer ônus, mas transmiti-lo para seus filhos, gerando um processo que se retroa-limentaria, colocando-os em uma situação de vantagem perante os demais, o que por fim desfigura a própria meritocracia (GIDDENS, 1999).

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Considerações finais

A narrativa liberal promete um futuro promissor no qual indi-víduos gozam da sua liberdade e habitam um mundo próspero desvencilhado da opressão do Estado e das ideologias, regido por normas racionais oriundas do onipotente e onisciente Mercado. Na prática, o liberalismo impulsiona a concentração de renda, a desigualdade e promove uma involução no significado da cida-dania. Em suma, engendra instabilidade social e insegurança generalizada. “O mercado prospera na incerteza”, já alertava Zygmunt Bauman (2000, p. 38).

Urge desmascarar a falaciosa correlação, atualmente em moda, que tenta posicionar o liberalismo político como espécie de corres-pondente superestrutural do seu homólogo econômico. Na reali-dade, conforme tentamos elucidar ao longo deste artigo, a demo-cracia é um projeto ainda inconcluso e de longa duração, somente materializado a partir de movimentos reivindicatórios que remontam ao século XVIII. A democracia não é um donativo do capitalismo, mas uma conquista das massas.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

BOBBIO, Norberto (1994). Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2001.

CORONIL, Fernando. Naturaleza del poscolonialismo: del eurocentrismo al globocentrismo. In: Edgardo Lander. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales – Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2000. p. 53-67.

DÉLOYE, Yves. Sociologia histórica do politico. 1. ed. Bauru: Sagrado Coração (Edusc), 1999.

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

GIDDENS, Anthony. A terceira via. 1. ed. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1999.

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

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RÉMOND, René. O século XIX: 1815-1914. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.

WEBER, Max (1919). A política como vocação. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.

ŽIŽEK, Slavoj. A utopia liberal. Margem esquerda. São Paulo: Boitempo, n. 12, 2008.

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VII. Economia e Desenvolvimento

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Autores

Antonio MachadoEconomista e comentarista econômico de jornais e revistas . machado@cidadebiz .com .br .

Miriam LeitãoJornalista, economista, comentarista de TV e Rádio .

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O ano que já acabou

Míriam Leitão

A ninguém é estranho que a economia parou em 2014, apesar da Copa do Mundo, das eleições que normalmente aumen-tam o gasto público e incentivam a atividade econômica, e

a despeito da melhoria da economia mundial. Na divulgação dos dados, na segunda quinzena de março de 2015, ficou provado que o número ruim foi resultado da política econômica errada: o país teve um resultado de 0,1% no PIB e uma inflação no teto da meta.

Não há esperanças de melhora a curto prazo. A queda de 4,4% do investimento, por si só, já indica que 2015 não será um ano fácil. Para quem tinha alguma dúvida, ela acabou com a decla-ração do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, de que o país está vivendo neste começo de ano uma “forte desacelerada”. Está preparando, talvez, a opinião pública para os números que virão a cada trimestre de 2015. O que Levy espera é que a alta do dólar acabe produzindo o efeito de empurrar as exportações, e isso ajude a economia neste ano que já se sabe será de recessão.

O PIB não saiu do lugar, mas muita coisa mudou na forma de cálculo pelo IBGE. Os dados foram revisados de 1996 até agora, mudando ligeiramente alguns anos, mas com alterações mais fortes no governo Dilma. Em 2011, o crescimento saiu de 2,7% para 3,9%. O de 2012 saiu de 1% para 1,8%. O de 2013 saiu de 2,5% para 2,7%. Com o 0,1% de 2014, o país teria, se os números não fossem alterados, uma média de crescimento anual de 1,5% no primeiro governo Dilma.

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As mudanças levaram o crescimento médio a ser de 2,1%. Mesmo assim, é a pior taxa desde a implantação do real.

Estas alterações da forma de calcular são aperfeiçoamentos naturais do indicador e, em alguns casos, seguem orientações internacionais, mas mesmo com revisões e mudanças, o funda-mental permanece igual. De 2011 para 2012, o Brasil desacelerou durante o governo Dilma. Melhorou um pouco em 2013, para parar completamente em 2014. Agora se prepara para um PIB negativo em 2015. Um período sem brilho algum, apesar dos fortes subsídios dados aos setores industriais, principalmente, e do incentivo ao endividamento.

O governo usou a desculpa durante todo o ano passado de que a crise internacional explicava o resultado ruim da economia, mas os Estados Unidos tiveram 2,2% de crescimento em 2014, o que signi-fica que vêm retomando o crescimento, assim como a Europa cresceu mais que o Brasil, a Alemanha terminou o ano em 1,6%. A China desacelerou, mas ficou acima de 7%. A Índia acelerou para 7%. A Colômbia cresceu 4,6%. Em relação à América Latina, o Brasil só está melhor do que a Venezuela, que enfrenta forte recessão.

Com todos os números na mão, não há dúvida: não crescemos porque o Brasil errou na condução da política econômica. E ainda teremos que passar por mais turbulências para colocar a casa em ordem.

A culpa pela crise

Os jornais estão cheios de notícias sobre demissões que ocorrem em meio aos desdobramentos da Operação Lava Jato. Muitos vão culpar a investigação em si, quando ela é a melhor chance que o país tem de mudar o ambiente de negócios no Brasil. Foram tomadas decisões temerárias na economia. Bancos, empresas e o governo assumiram riscos que não deveriam ter assumido.

Várias das empresas que estão com problemas já estavam com desequilíbrios entre ativos e passivos, como a OAS. Ou cresceram dependentes da abundância do dinheiro que saía do BNDES.

Os negócios estavam sendo feitos assim no Brasil. O Tesouro se endividava e repassava o dinheiro a custo subsidiado ao BNDES. O Banco financiava tudo o que era considerado priori-tário para o governo, sem fazer análises do risco como devia. Chegou a admitir, certa vez, ter liberado R$ 10 bilhões à refinaria

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125125O ano que já acabou

Abreu e Lima sem que houvesse o estudo de viabilidade econô-mico-financeira do empreendimento. Os fundos de pensão de estatais entravam para garantir qualquer projeto. O Comperj tinha vários erros originais, inclusive de localização. Tudo estava sendo feito com um grau de risco elevadíssimo, passando por cima, muitas vezes, de alertas dos técnicos de órgãos envolvidos.

Agora os riscos se materializam e todo o discurso que começa a ser preparado é de culpar a Operação Lava Jato pelo desem-prego e dificuldades financeiras das empresas. É preciso separar os casos. Há situações em que a empresa só sobreviveria na dependência dos contratos ilícitos, dinheiro barato e risco jogado sobre os fundos das estatais. Algumas das empresas jamais fizeram uma diluição do seu risco, jamais fizeram um planeja-mento estratégico olhando possíveis cenários negativos. E há casos de empresas boas, capitalizadas, mas que agora têm que enfrentar os rigores da investigação sobre supostas propinas pagas para conseguir fazer negócios com empresas estatais. Mesmo sendo boas, empresas assumiram o risco de fazer negócios ilícitos e precisam pagar por isso.

A investigação do crime não pode ser responsabilizada pelos efeitos econômicos decorrentes dos fatos revelados. O oposto seria manter tudo irregular, conviver com os crimes, porque o combate a eles provoca distúrbios econômicos. Esta visão é inaceitável.

O governo precisa estudar profundamente os desdobramentos econômicos da Operação Lava Jato, que serão muitos, para saber o que fazer diante de cada problema. Os casos são diferentes, a situação das empresas, também. O perigo é o desemprego ser usado como fonte de pressão para que o governo salve empresas que não podem ser salvas ou tente encobrir o que tem que ser revelado. É preciso critério e informação acurada sobre a situação de cada uma das companhias afetadas, direta ou indiretamente, pelos desdobramentos da investigação.

O ano que já exauriu

Que ano é este? Estamos chegando ao fim do primeiro trimestre como se tivéssemos vivido 12 meses em três. A inflação deu um salto, a presidente teve a mais rápida queda de popularidade da história, o Supremo recebeu denúncia contra os chefes da Câmara e do Senado, o governo e sua base brigam, novas denúncias surgem, a Petrobras foi rebaixada e o dólar não para quieto.

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126126 Míriam Leitão

Não houve dia de sossego neste 2015 e dá vontade de inverter a ideia criada pelo genial Zuenir Ventura. É o ano que já acabou, logo depois que começou. As previsões pessimistas feitas sobre ele vão sendo superadas pelos fatos. O temor era de uma inflação que estourasse o teto da meta, agora a preliminar do IPCA de março já levou o país a quase 8% de inflação em 12 meses.

A presidente Dilma tenta falar mais, para mudar a comuni-cação, mas parece exasperada em cada entrevista improvisada que tem dado ultimamente. Fala em diálogo e ataca os que quer atrair para o diálogo. É criticada pelos seus e pelos outros. Notí-cias de brigas entre criatura e criador ocupam as páginas dos jornais, claramente vazadas pelo criador, que assim se distancia de tão atrapalhada criatura.

Um documento apócrifo circulou pelas mais poderosas mesas do Palácio do Planalto propondo mudar a comunicação e partir para a guerrilha política, com o uso de robôs, e soldados de fora do governo, mas com munição de dentro. Enquanto isso, o vice-presidente Michel Temer se reúne discretamente com pessoas da oposição. Partidos que fazem parte da base política criticam as medidas econô-micas ou os modos políticos da presidente. O lema do novo mandato é “pátria educadora” e o ministro da Educação aponta o dedo para os aliados, chama-os de achacadores, é demitido, e a presidente Dilma tem que escolher seu quinto ministro da área.

O país todo está pedindo água a esta altura, tamanho o sufoco hídrico. A água ou não vem socorrer reservatórios e mananciais secos ou despenca com fúria alagando cidades. A natureza não está sozinha nas suas oscilações tempestuosas. Estão voláteis o dólar, as expectativas, o humor da presidente, a bolsa de valores, a taxa de juros e as convicções econômicas da chefe de governo. Os indicadores que saem são sempre os piores em muitos anos.

O povo ocupou as praças, as ruas, pontes, carregando bandeira verde e amarela e cantou o hino nacional na maior das manifesta-ções já feitas desde a campanha das Diretas. Consultado em pesquisas, o brasileiro também foi claro: está pessimista na economia, sabe o que é operação Lava Jato e rejeita a presidente em 62%.

Ninguém acredita, nem mesmo o governo, que o ano será bom. Há duas visões: a benigna é que teremos um bom 2016. Este ano será de recessão, inflação alta e correção dos erros e problemas que a presidente negou existirem quando era candidata a mais um mandato.

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127127O ano que já acabou

Não será rápido

Os ministros Joaquim Levy e Nelson Barbosa têm dito que os ajustes na economia farão o Brasil voltar a crescer rapidamente. Usam a estratégia para tentar convencer o PT e os partidos da base, que são contra os cortes de gastos. Além disso, estão come-çando a ceder partes do ajuste na negociação. Ou os ministros expõem a gravidade do quadro ou a arrumação da economia ficará pelo meio do caminho.

Claro que nesta conjuntura política é preciso continuar conver-sando com o Congresso, mas não deveriam dourar a pílula. Não serão apenas alguns meses. Vai levar tempo para consertar o país, e isso exige cortes de gastos, suspensão de subsídios, juros altos por longo tempo. Os dois apertos – fiscal e monetário – vão comprimir ainda mais a economia já estagnada. Ao mesmo tempo, a inflação continuará alta pelos reajustes dos preços da energia e do aumento do dólar. Isso é remédio contra os erros do primeiro mandato, mas o PT está pronto para pôr a culpa na atual equipe econômica. Os ministros Joaquim Levy e Nelson Barbosa devem apontar o futuro de recuperação, mas precisam avisar que será um caminho longo.

O quadro externo é desfavorável, com a expectativa de alta dos juros pelo Banco Central americano. Não há, portanto, saída fácil e no curto prazo. O único caminho é o governo expor a gravidade da situação atual. Isso talvez ajude a conseguir mais apoio para as medidas de ajuste, que parece cada dia mais fraco.

(Publicado originalmente no jornal O Globo)

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Desenvolvimento só com reformas

Antonio Machado

O bochicho político se tornou irrefreável, acirrado por um governo cujo partido venceu a eleição presidencial de ras-pão, mas continuou desdenhando os seus aliados no Con-

gresso, desatento ao fato de que a descoberta do bilionário ninho de corrupção na Petrobras desfez a magia do PT para unir “lé com cré”. Apesar do crescente sentimento de mal-estar na sociedade, no entanto, este não é o problema central.

Mais graves são as evidências de que os nutrientes que alimentam o desenvolvimento perderam a fertilidade de antes. E, sem revolver o solo em que germina a riqueza nacional, o prognós-tico, ao menos até o fim da década, é que não haverá o que distri-buir sem estagnar ainda mais a economia. Este tende a ser o viés, apesar do que Pero Vaz de Caminha escreveu na carta em que anunciou a descoberta do Brasil ao rei de Portugal: “Nesta terra, em se plantando, tudo dá”.

Dava. E só voltará a dar, se se atentar que essa terra “cansou” de tanto extrativismo e tão pouco investimento, além de quase nenhuma atenção com a produtividade e a modernidade da produção, incluindo os meios para garantir seu escoamento aqui e lá fora. A verdade é que não há desenvolvimento sem equilíbrio entre deveres e direitos, além de suor, lucros reaplicados na ativi-dade, inovação e justiça.

O governo reeleito de Dilma Rousseff imaginou poder reinventar-se com uma espanada no gasto público e com fermento na arrecadação dos impostos, inclusive com o gordo naco extraído do realismo tarifário – algo que, por si, equivale a um salto da carga tributária, já que desbasta, de modo duradouro, parte importante da renda disponível.

A renda do consumidor também perde poder de compra com a inflação elevada e os juros obscenos, além de ser roída pela desva-lorização cambial. Tudo se passa como se carecêssemos de uma dura dieta para nos mantermos saudáveis. É vero, mas não pode ser apenas isso.

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129129Desenvolvimento só com reformas

Desastres inevitáveis

O resgate da credibilidade fiscal penhorada pelos erros toscos do primeiro governo Dilma, como diria o ministro da Fazenda, deverá levar a um resultado, se o crescimento econômico pífio for passageiro, e a outro, se resultar de causas estruturais antigas, como a decadência da indústria, que vem de longe, e o fim do boom das commodities. Os sinais são de que, nesse rol de entraves, nenhum seja transitório.

Se nada se fizer para repor a economia na linha de frente entre os países mais promissores do bloco dos emergentes, como parecia estar até 2010, alguns desastres poderão tornar-se inevitáveis. E é nesse cenário que pretende atuar o ajuste fiscal de Dilma II, concebido para sustar, de modo perene, o viés expansionista do gasto público.

Estado sugou o dinamismo

Não há como bancar as políticas públicas e o custeio da máquina do Estado sem crescimento econômico sustentado. Mas é, precisamente, o aumento contínuo desses ônus para as empresas e pessoas (que avança ao ritmo anual de dois dígitos, contra 2% da receita) o que sugou o dinamismo econômico. Sem crescimento, o ativismo das transferências de renda se torna precário, como alerta o ministro Joaquim Levy.

Além de programas sociais, os subsídios a empresas também estão na linha de tiro, ambos não por serem ruins, mas pelo excesso e falta de critérios em sua aplicação. Embora de compreensão difícil, o que reclama por mudanças não é bem a economia, mas a governança que a fez perder força ao longo de ondas sucessivas: primeiro, a inflação endêmica; depois, o sanea-mento do Tesouro; enfim, a questão social.

Em cada um desses ciclos, pouca atenção foi dada à infraes-trutura, à indústria e à exportação. Ao contrário, como destaca o economista Jorge Arbache, a cena externa favorável até 2007 e o laxismo fiscal – além da mudança demográfica e a valorização cambial –, criaram a “sensação de enriquecimento e fartura”, causas do “entorpecimento” frente às políticas populistas e da procrastinação das reformas.

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130130 Antonio Machado

Só um acordo é solução

Se as reformas eram imperiosas com Lula, hoje elas são inadiá-veis, depois de o governo Dilma dobrar sua aposta no estatismo, colhendo mais inflação, maiores deficits e desalento empresarial. Fato é que o dinamismo econômico vergou com o laxismo fiscal, e não há o que o mantenha, apesar da má vontade do Congresso. É só questão de tempo.

Como não há jeito de acomodar o governo numa economia esgotada por anos de desaforo com a eficiência e o bom senso, já está em curso o ajuste na marra, com dólar acima de R$ 3, juro básico de 12,75%, inflação anual tendendo a 8%, desemprego em alta, novos empregos em baixa, e endividados com a língua de fora. Neste cenário, Dilma não conseguirá governar isolada. E o PT pode quase nada com sua bancada de 13% da Câmara. Ou pouco mais de 20%, somada aos aliados fiéis.

A demanda empresarial é por um governo de coalisão, ainda que como casamento de conveniência e limitado a poucas ques-tões, antes que a crise com o Congresso desande de vez. Recessão brava é a opção.

Quem passa e quem ladra

O país assiste à agonia de um ciclo de prosperidade que começou a perder força antes da grande crise de 2008 e não mais se recuperou. Foi exaurido pela série de políticas muito ruins para o crescimento e pelo excesso de burocratização das relações econômicas e sociais.

O ajuste fiscal é só o início do processo de mudanças necessárias. É ilusório falar em desenvolvimento sem reformas de fôlego, como as do sistema tributário, da legislação trabalhista e da previdência.

No entanto, há mais. As ações públicas precisam ter resul-tados aferidos. A gestão pública deve modernizar-se, começando pela revisão de alto a baixo dos processos. E, sobretudo, passa da hora o fim dos entraves ao empreendedorismo, sobretudo a cultura da autorização – matriz do vício das propinas. Isso não existe nos EUA, vai acabar na China em 2016 e está em discussão na Índia, as economias dominantes ou em ascensão. E nós? Ainda entre-tidos com os mercadores de facilidades.

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VIII. Mundo

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Autores

Joan AlcazarProfessor de História Contemporânea na Universidade de Valencia/Espanha, ex-diretor do Centro Internacional de Gandia, atuou como professor visitante em várias universidades estrangeiras, entre elas a Universidade de São Paulo e a Universidade Estadual Paulista, e é autor de vários e importantes livros de ensaios .

Rudá RicciSociólogo, doutor em Ciências Sociais, é diretor geral do Instituto Cultiva .

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A Europa inova na forma-partido

Rudá Ricci

Os partidos políticos nasceram no século XVIII. A literatura especializada os denomina de “partidos de notáveis”, dado que se pareciam mais com clubes de apoio à candidatura

de um notável que os representasse que uma organização perma-nente. Após o escolhido tomar posse, o “clube” ou articulação de apoiadores se desfazia. No século seguinte, surgiram os partidos modernos, inicialmente configurados como operários, que adota-ram programas globais, militância de base, direção administrativa e política e programa permanente. A provisoriedade tinha se dis-sipado. Em seu lugar, surgiram organizações totais, com vocação para conquistar o Estado. Totais porque todos seus espaços inter-nos eram ocupados e conectados: de suas lideranças carismáticas à sua direção, da direção à burocracia interna, da burocracia à militância, todos articulados a partir de um comando único, for-mulado democraticamente ou não. Esta é a estrutura que ainda hoje define um partido político.

Ocorre que já no final do século XX, a dinâmica e configuração social parecia se alterar aceleradamente. Fragmentação passou a ser a palavra que resumia a realidade. As formas de inserção no mercado se tornaram mais complexas, do trabalho part-time à malha de pequenos negócios, do velho assalariamento ao paga-mento por produção ou inovação (onde o salário móvel se tornou mais significativo que o salário fixo), das associações produtivas (cooperativismo, consórcio produtivo ou associação de um pequeno produtor à um conglomerado industrial) às empresas virtuais. A formação de identidade de classe ficou mais fluida, embora

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persistisse. As cidades se fragmentaram pela “gentrificação”, pela ocupação desordenada, pelos processos migratórios que redefi-niram o lugar de culturas específicas, pela malha viária, pela recomposição social e familiar.

Os jovens são o exemplo acabado da fragmentação social e da pulverização dos interesses e demandas grupais. Dos anos 1980 aos dias de hoje, a família nuclear, composta por pai, mãe e filhos, entrou em decadência e no Brasil diminuíram sua repre-sentação no período de 75% para 50%. A família que avançou no campo aberto pela família nuclear foi a monoparental, onde somente um dos pais reside com os filhos (no caso brasileiro, ao redor de 20% das famílias, sendo que em 90% delas, são as mães que residem com os filhos). Em grande parte dos casos, a mãe da família monoparental trabalha numa extensa jornada e não tem apoio familiar ou de contratados que a ajude na educação e guarda dos filhos. A resultante foi a multiplicação de “pares de idade”, a expressão inglesa para denominar as tribos juvenis que se protegem e se formam. Pesquisas recentes indicam que o vestuário, a linguagem e os valores são formados nestes agrupa-mentos ou comunidades fechadas de autoajuda. Nos últimos anos, os agrupamentos juvenis se plasmaram nas redes sociais. Encontraram o ambiente adequado.

Vejamos de perto este novo tipo de organização social, refe-rência para a cultura e a relação juvenis.

A base deste relacionamento segue a lógica comunitária da identidade afetiva e da adesão. Um amigo se relaciona com dois outros que não se comunicam entre si. Forma-se, ao contrário dos partidos políticos, uma lacuna neste tripé. A relação se dá por afeto ou interesse comum, mas não se estabelece uma linha social comum. Ao contrário, forma-se uma relação profundamente perso-nalizada, nominal, onde se estabelece uma relação de confiança alimentada pelo contato cotidiano ou frequente, não numa confiança abstrata e racional. Troca de experiências e identidade de avaliação e visão de mundo formam a base deste relacionamento.

Numa escala maior, o que se desenha em termos de uma nova sociabilidade é a existência de vários núcleos semi-inde-pendentes em que parte se conecta a outro núcleo e parte não. São rizomas já percebidos por Gilles Deleuze e Félix Guattari na década de 1980, formando múltiplas ramificações e “bulbos” que aparecem em qualquer parte desta longa extensão de relaciona-mentos entre comunidades.

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Mais recentemente, estudos sobre a dinâmica desta nova forma de sociabilidade (como os produzidos pelo catalão Javier Toret ou o capixaba Fábio Malini) indicam uma lógica de comunicação que se fia por “autoridades” e principalmente “hubs”. Autoridades é a denominação dos expoentes mais conhecidos publicamente, perso-nalidades e experts que chamam a atenção de várias comunidades. Contudo, ao contrário do que ocorria no século XX (o século das multidões), não são eles que definem a ação e valores da longa cadeia de comunidades. São os “hubs”, quase anônimos, que num trabalho incansável de disseminação e provocação do diálogo no interior das redes, multiplicam informações, geram comoção e arti-culam reações em cadeia. Os “hubs”, ao contrário das autoridades, não criticam nem defendem claramente posições e impressões. Apenas disseminam fotos, postagens de terceiros, informações. Muitas vezes, perguntam sobre a avaliação ou impressão que os membros de várias comunidades têm sobre dada informação ou opinião e, assim, motivam uma cadeia de diálogos entre membros de diversas comunidades, formando os extensos rizomas.

Os partidos políticos, com um pé no século passado, não conseguem se inserir nesta lógica fluida, provisória, dinâmica, em formação e recomposição permanente. Verticalizados, os diri-gentes e comunicólogos partidários atacam os adversários e defendem suas posições. Não sabem lidar com lacunas organiza-tivas, com interação e formação processual de opinião. Mesmo porque, a opinião foi formada em outra localidade, a comunidade partidária, mais fechada que as juvenis.

A questão que fica é: partidos totais e estruturas verticais conseguirão acompanhar sociedades tão dinâmicas, fluidas e provisórias?

Para promover a reflexão sobre as respostas possíveis, indico na tabela a seguir as diferenças mais agudas das duas formas de organização, as do século passado e as juvenis, deste século:

Os protestos urbanos do século XXI, das Assembleias Popu-lares argentinas de 2001 ao Occupy, passando pela Primavera Árabe, a Revolução das Panelas (da Islândia, 2008), o M15 espa-nhol (2011 e 2012) e nossos junho de 2013 e março de 2015, todos assumiram a lógica da organização social em rede descrita na segunda coluna da tabela a seguir. Uma organização em cadeia, altamente emocional, provisória, dinâmica.

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ORGANIZAÇÃO SOCIAL BUROCRÁTICA ORGANIZAÇÃO SOCIAL EM REDE

Predomínio da ação coletiva unificada em "ordem unida", baseada na disciplina, autocontrole, senso de grupo e autoestima.

Predomínio da adesão pessoal e preservação da individualidade dos componentes.

Ativistas seguem orientação da organização.Ativistas aderem à organização ou mobilização por convicção pessoal e por identidade afetiva momentânea.

Ações coletivas objetivam atingir uma meta ou efetivar um programa definido em eventos deliberativos específicos ou pela direção da organização.

Ações coletivas se vinculam a um sentimento comum de indignação, injustiça e revolta.

Coletivo é representado por dirigentes e porta-vozes previamente conhecidos.

Coletivo pode ser representado por porta-vozes rotativos, escolhidos coletivamente num momento específico, com curto tempo de mandato.

O que parecia contradizer a lógica partidária acabou dando lugar a uma nova forma-partido. A expressão mais acabada surgiu na Europa. Em alguns casos, como na Grécia e Portugal, de maneira ainda transitória. Algo com maior ruptura conceitual e organizacional foi esboçado na Itália. Porém a mais surpreendente novidade veio da Espanha, com o Podemos.

Quando a rede social se encontra com a ironia e o cinismo de comunicólogos

Javier Toret, em sua análise sobre os gigantescos protestos espanhóis ocorridos em 2011 e 2012 e sua caminhada para a crítica ao campo institucional da ação política nos anos seguintes (até desaguar no surgimento do Podemos, em 2014), sugere que a passagem da rua para a política formal se deu na conjunção de três camadas.

A primeira camada foi às ruas. Mas as ruas, segundo sua análise, ganharam projeção nacional a partir das redes sociais. Aliás, o cerco da grande imprensa, que não noticiava a escalada de protestos urbanos que envolvia as principais cidades da Espanha, foi quebrada pelas informações multiplicadas nas redes sociais que acabaram por atingir a imprensa estrangeira.

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Ruas e redes sociais compuseram o alimento explosivo da indignação urbana. Mas Toret sugere uma terceira camada orga-nizativa que não se percebia até então: a televisão, na verdade, um programa de debates organizado por jovens professores universitários que ganhou o título de La Tuerka (cf. http://www.latuerka.net/). Tal programa foi apresentado originalmente na internet e seguiu a trajetória da Porta dos Fundos. Além do visual juvenil dos apresentadores e seu forte tom irônico, os partici-pantes, em especial o cientista político Pablo Iglesias, convidavam jornalistas e personalidades de todas ideologias e os tratava com muito respeito, embora sem nenhuma facilidade no questiona-mento que faziam. Assim, ampliavam seus seguidores, dos univer-sitários aos seguidores dos convidados (mesmo os de ideologia contrária, já que a entrevista era inteligente e respeitosa, promo-vendo o convidado e os entrevistadores), e se tornavam cada vez mais assistidos até se tornarem um fenômeno nas redes sociais. Ao mesmo tempo, era divulgado pelas cadeias da Asociación de Televisiones Locales de la Comunidad de Madrid. Criado em 2010, a primeira temporada começou em novembro daquele ano.

O fenômeno de La Tuerka repercutiu nas redes sociais e se colou ás manifestações de 2011.

Mas houve uma inflexão nos protestos urbanos que facilitou a convergência entre a crítica política e os protestos: o abraço no Congresso Nacional, em 2012. Naquele ano, 50 mil manifestantes abraçaram o parlamento espanhol e gritaram palavras de ordem questionando a representatividade dos deputados e sugerindo uma revolução política “desde os debaixo” em curso.

As três camadas (protestos de rua, redes sociais e televisão) criaram uma dinâmica de comoção, comunicação social e reflexão (neste último caso, tendo como motivador a televisão) que propi-ciaram a passagem da crítica à novidade institucional plasmada no Podemos.

Em janeiro de 2013, surgiu uma primeira iniciativa política que foi o Partido X (também conhecido como Partido del Futuro ou Red Ciudadana Partido X). A experiência não foi tão exitosa, como ocorreu com o Podemos, por vários motivos. Um deles foi justa-mente a ausência de um meio de reflexão. As redes sociais emocionam e mobilizam, mas não geram organização. A televisão, por ser um meio sem interação, exige um momento de maior introspecção. Outros analistas, contudo, sugerem que o Podemos teve maior abertura e envolvimento de movimentos sociais e orga-

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nizações tradicionais, fazendo um link que o Partido X não promovia. O Podemos atraiu rapidamente lideranças da esquerda espanhola, como militantes da Esquerda Unida e trotskistas mandelistas, além de autonomistas e ativistas de organizações urbanas e redes sociais.

Em 2014, no início do ano, uma ação planejada lança o Podemos, de maneira meteórica. O manifesto intitulado “Mover ficha: convertir la indignación em cambio político” foi transfor-mado num viral pela publicação digital Público, que era assinado por 30 intelectuais, personalidades da cultura, do jornalismo e do ativismo social e político, muitos sindicalistas e professores universitários. De cara, o manifesto afirmava a intenção de parti-cipar das eleições europeias que ocorreriam quatro meses adiante, em maio. Tal movimento se confundia (ou adotava como suporte) o partido Izquierda Anticapitalista. O programa exigia o caráter público da educação e da saúde, aumento dos salários e reindus-trialização da Espanha, criação de habitações sociais e oposição à restrição à lei do aborto, além de defesa da migração estrangeira e saída da Espanha da OTAN. Também defendia a autonomia da Catalunha para decidir sobre sua independência. A crítica radical à política de austeridade e o perfil ousado e jovial de suas lide-ranças ganharam as ruas e redes sociais. Nas eleições de maio para o Parlamento Europeu, o Podemos se insurgiu como quarta força espanhola, elegendo cinco deputados e conquistando 7,98% dos votos.

Dois meses depois, em julho, o Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) divulgava pesquisa em que o Podemos aparecia como segunda força política em intenção de voto popular, supe-rando o PSOE e ficando 0,9% atrás do PP. PSOE e PP polarizam ideologicamente a política espanhola numa situação similar à que ocorre com PT e PSDB no Brasil.

Em outubro de 2014, a Metrocospia informava que Podemos já havia superado o PP, aparecendo como primeira força em intenção de votos na Espanha. Um mês depois, este partido-fenômeno já se insurgia com 22% das intenções de voto para as eleições de maio de 2014 (PSOE aparecia com 13% e PP com 10%).

Qual a peculiaridade desta nova forma-partido?

Há, sem dúvida, uma questão geracional que motiva a passagem da rua para o partido, no caso espanhol. Também é

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relevante a profunda crise econômica que afeta milhares de famí-lias de classe média que perderam suas moradias (em virtude do desemprego que atinge quase 50% dos jovens até 30 anos de idade) e bens familiares. É comum ouvir analistas espanhóis afir-marem que a rebeldia crescente se deve a uma jovem família de classe média ter que pedir guarida para seus vizinhos ou parentes nem sempre próximos para poder garantir um teto.

Mas há um discurso e práticas novas.

O “núcleo duro” do Podemos é composto por jovens comunicó-logos e professores universitários. Vários deles prestaram consul-toria ao eixo dos países bolivarianos, como Equador, Bolívia e Venezuela. Não são neófitos em política. Atraíram a Esquerda Unida, fundada em 1986 e que fundiu o Partido Comunista Espa-nhol, a Esquerda Republicana, a Juventude Comunista e os Ecos-socialistas, entre outros.

Também não se deve subestimar a força da somatória das manifestações com intervenções nas redes sociais e o sucesso excepcional do La Tuerka.

Mas há ainda mais.

Os dirigentes do Podemos sabem trabalhar com a ironia e o cinismo, o que dá um tom jovial e também quase descompromis-sado, criando uma linha de identificação dos “de baixo” contra as “castas” econômicas e políticas, termo muito popularizado na Espanha, Grécia e Portugal, desde 2010.

No lançamento do esboço do Programa Econômico do Podemos, no final de 2014, o PSOE acusou-o de subtrair seu programa de 2010. No dia seguinte, com um largo sorriso irônico no rosto, como que deixando claro que se tratava de uma armadilha midiá-tica que os experientes dirigentes socialistas se deixaram envolver, Pablo Iglesias afirmava que não tinham culpa se os socialdemo-cratas não tinham cumprido as promessas de 2010.

No seu penúltimo livro, Disputar la Democracia, publicado em 2014 e tendo o agora primeiro ministro grego, Alexis Tsipras, como prefaciador, Iglesias discorre sobre três temas dentre tantos da ciência política. Pergunta se a política é um jogo de xadrez ou boxe, aprofunda o conceito de realpolitik e disserta sobre o conceito de hegemonia. Pela análise, percebe-se que a utopia das ruas se plasma no Podemos como ironia e desconfiança cínica. O que cria uma identidade com o manifestante e cidadão que não crê mais nas promessas dos partidos hegemônicos.

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Iglesias é taxativo. À página 34, afirma: “a política do boxe aparece em toda sua crueza nas relações internacionais. Os exem-plos são incontáveis. (...) A política do boxe [é]: ganha o mais forte.”

Sobre a realpolitik invoca o filme A Batalha de Argel. Analisa a passagem em que o chefe da Frente de Libertação Nacional é capturado e questionado sobre os motivos do uso de cestas-bomba contra a população civil. A resposta é uma oferta de troca de armamento, afirmando que o Exército de Libertação se sentiria encantado em bombardear a França com aviões. E, arremata: “a ética da responsabilidade [em Weber] que move qualquer compor-tamento político, a saber, a defesa do próprio projeto independen-temente de seu fundamento ideológico [sugere que] a diferença entre um terrorista e um patriota é muitas vezes a diferença entre a vitória e a derrota” (p. 44 e 45).

Finalmente, sobre o conceito de hegemonia destaca: “Gramsci compreendeu que o poder das classes dominantes não só se exerce mediante instrumentos coercitivos ou relações econômicas deri-vadas do processo produtivo, mas também através do controle do sistema educativo, da religião e dos meios de comunicação e que, portanto, a cultura é um terreno crucial da luta política. (...) Isto quer dizer que a política não só está no Estado. Às vezes, está tanto dentro, quanto fora dele (...).” (p. 47)

Talvez, por este motivo, os líderes do Podemos não falam em esquerda ou direita. Falam em “os debaixo” e das “castas” (econô-micas e políticas).

Talvez, esta seja a explicação para entendermos porque o Podemos se lança às eleições europeias sem direção e sem filiados (tinha, afinal, quatro meses de existência).

Este, talvez, seja o motivo para compreendermos porque a organização de base sejam Círculos de ativistas (algo próximo dos círculos de cultura criados por Paulo Freire) e porque suas lide-ranças decidiram não competir com o nome do partido (mas com nomes alinhados ao Podemos) nas eleições municipais deste ano (alguns dirigentes afirmam que não teriam controle sobre os candidatos, dada a filiação em massa dos últimos meses).

Talvez, pelo mesmo motivo, esteja aí a explicação de Iglesias publicar um segundo livro, em 2014, tendo como mote a análise de Game of Thrones. A coletânea soma cientistas políticos, femi-nistas, ambientalistas, educadores, juristas, entre outros, que

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141141A Europa inova na forma-partido

analisam a série muito comentada entre jovens e redes sociais a partir de seu ângulo de leitura profissional ou militante.

Na capa, Pablo Iglesias aparece sentado no Trono do Príncipe, nos trajes que o tornaram conhecido a partir do La Tuerka: camisa com mangas arregaçadas e gravata solta no pescoço, com a barba pouco aparada e o indefectível rabo de cavalo.

Não se trata de um jogo político ingênuo e basista. Trata-se de um jogo midiático que a velha forma partido não sabe ainda como jogar.

Podemos é um partido fluido, carismático, que atua sob forte pressão, articulado às ruas e redes sociais, irônico e cínico nas relações com lideranças tradicionais de seu país.

E assim, se articula com o Syriza grego, o Bloco de Esquerda português e tantas outras alianças regionais. Uma frente política de outro tipo. Com uma outra geração.

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Podemos, o fim de uma época do sistema partidário espanhol

Joan Alcazar

Nos dias 24 e 25 de fevereiro, ocorreu no Parlamento espa-nhol, em Madri, um debate sobre a situação nacional. Na primeira parte da sessão, evidenciou-se que não havia, por

parte do governo, a menor intenção de debater com a oposição: o primeiro ministro Mariano Rajoy, em sua intervenção inaugural, limitou-se a um discurso que colocava a Espanha como o “país das maravilhas”, uma Alemanha do Sul. Nem mais, nem menos. Um discurso somente para aqueles já convencidos, desligado do que foi o último ano político do país. O então líder da oposição, o socialista Pedro Sánchez, o respondeu com dureza, sintetizando o que, a seu juízo, havia sido o ano em exercício do governo que se avaliava: “Precariedade, impostos e Bárcenas” (em alusão ao ex-tesoureiro do PP e vértice da corrupção que atinge todo o parti-do). No debate, Rajoy chegou a perder as formalidades da cortesia parlamentar, o que indicava o quanto sua irritação corria em pa-ralelo com a debilidade de seu discurso.

Outro dado a se levar em consideração é que o debate apre-sentou um déficit importante, porém inevitável, uma vez que não participaram os líderes dos partidos emergentes: Pablo Iglesias y Albert Rivera. Este handicap, claro, se superará quando houver novas eleições legislativas, dado que agora nenhum deles é depu-tado em Madri. Tudo isso evidencia a distância que há entre o atual Parlamento espanhol e a realidade partidária do país e, ainda, o quanto é delicada a situação nacional. Com efeito, no mesmo dia 25, o líder do Podemos realizou um encontro multitu-dinário, profusamente difundido por todos os meios de comuni-cação, no qual ele se reivindicou como o autêntico líder da “oposição real” e replicou o discurso que Rajoy havia proferido no Parlamento.

Independentemente da opinião que se tenha sobre a nova formação política e sobre seu líder, é indiscutível que a sombra do Podemos está, nesse momento, muito alargada. Convém recordar que é um novo partido político que passou, em menos de 12 meses, da não existência para uma alternativa de governo nos distintos níveis: local, regional e nacional.

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Boa parte dos cidadãos está vivendo este tempo de mudanças com uma sensação de crescente vertigem: realmente não se sabe se uma parte importante do velho realmente irá morrer e algo efetivamente novo irá realmente nascer. Esta síndrome é refor-çada pelo modo como está sendo gerenciada a crise da União Europeia e, nesse cenário, o que ocorre e o que ocorrerá na Grécia incidem com muita intensidade na conjuntura espanhola.1

Centremo-nos, não obstante, no que está se passando na Espanha e, especialmente no que significa e pode significar a irrupção desta nova força partidária que se chama Podemos. Façamos uma brevíssima retrospectiva.

No dia 26 de dezembro, foi celebrado o último Conselho de Ministros de 2014. Após seu término, Mariano Rajoy compareceu perante os meios de comunicação. Seu discurso foi o esperado: um otimismo impermeável à realidade das ruas, um abuso da estatís-tica em matéria econômica e das evasivas habituais diante das perguntas mais delicadas dos jornalistas. Algumas horas antes, no dia 24, à noite, o rei Felipe VI havia aparecido na televisão pública para dirigir-se aos espanhóis, como é tradicional. Sua intervenção se baseou em três eixos: a crise, a corrupção e a situação catalã. Como se sabe, o rei fala em certa consonância com o Executivo, já que reina, mas não governa. Portanto, seu discurso foi parecido ao anterior de Rajoy, talvez com um pouco mais de afeto; um senti-mento que o presidente é incapaz de transmitir.

Após a aparição de Rajoy, na coletiva de imprensa, no dia 26, Pedro Sánchez, secretário-geral do Partido Socialista, fez o mesmo: abordou os mesmos três pontos do rei e do presidente, recha-çando com energia o infundado otimismo deste, exigindo que não falasse da recuperação econômica em vão, tendo ainda assegu-rado que, em nenhuma hipótese, haverá na Espanha um governo de coalização Partido Popular-Partido Socialista Operário Espa-nhol (PP-PSOE), nas próximas eleições – uma ideia recorrente no mundo político, nos últimos meses, que Rajoy voltou a deixar transparecer em sua intervenção â imprensa.

No dia 27, na página oficial do Podemos, podia-se ler o seguinte: “O bipartidarismo afunda e nenhum pacto entre os partidos da casta poderá salvá-lo e trazê-lo à tona novamente. Instabilidade é aplicar políticas de austeridade que empobrecem a maioria da população, ao passo que uma minoria enriquece à custa de todos.

1 Sobre esse tema, consulte nosso texto: <http://elcronistaperiferico.blogspot.com.es/2015/02/el-harakiri-de-los-estupidos-segun.html>.

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As velhas receitas políticas já não funcionam e, pela primeira vez em décadas, abre-se a oportunidade de recuperar o país pelas e para as pessoas”.

Contrariamente ao que foi dito por Rajoy ou por Sánchez, argumentos de que se pode desconfiar facilmente, o escrito na página do Facebook do Podemos, poderia ser subscrito por milhões de espanhóis. Isso demonstra que, neste momento político, o maior problema dos grandes partidos é a credibilidade. Somente aqueles ligados a interesses determinados e os que têm uma fé ideológica à prova de fogo são capazes de conceder-lhes a confiança que perderam abundantemente, sobretudo desde que começaram os primeiros efeitos da crise, há sete anos. O PSOE primeiramente negou a existência da crise, depois a aceitou rangendo os dentes e, finalmente, pactuou com o PP uma reforma constitucional expe-dita, bem como a aplicação das primeiras medidas austeras que lhe exigiram Berlim e Bruxelas. Não sabemos se a história absol-verá a Rodríguez Zapatero, porém é improvável.

Atualmente, a lembrança do ocorrido em maio de 2010 é um pesado fardo. Trata-se de uma data fatídica para o socialismo espanhol. O governo de Zapatero rompeu seu programa e seu compromisso com os cidadãos, porém não considerou sua própria demissão. Talvez se o tivesse feito, as coisas teriam sido muito distintas, porém não o fez. Continuou dançando ao som que lhe marcava a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), aparentemente insensível perante os estragos provocados pelas medidas de ajuste. A reforma expressa da Constituição (do art. 135, sobre a estabilidade orça-mentária), sacrossanto documento convertido em algo como as Tábuas de Moisés para ambos os partidos (ao menos na época, porque o PSOE de hoje está em outra lógica), cuja modificação se pactuara por telefone em uma conversa entre Zapatero e Rajoy, foi o tiro de misericórdia do bipartidarismo na Espanha.

Naquele então, PSOE e PP contavam com 90% dos deputados e senadores no parlamento espanhol, e somente as minorias nacionalistas, basca e catalã, tinham um peso relativo a consi-derar nas Câmaras. Nas últimas pesquisas de intenção de voto, PP e PSOE estão abaixo de 50% dos sufrágios, o que não é senão a certificação do que está escrito na página do Facebook do Podemos: o bipartidarismo está falido na Espanha.

A corrupção se tornou insuportável para os cidadãos golpeados pela crise, com os fortíssimos cortes nos gastos públicos, com o

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desemprego em cifras impossíveis de aceitar e com milhares de jovens bem formados recorrendo à imigração para qualquer lugar do mundo em que encontrem trabalho.

As cifras da corrupção na Espanha mostram que há mais de 1.900 pessoas imputadas em causas abertas e ao menos 170 foram condenadas por este tipo de delito na última legislatura. Não obstante, a maioria destes condenados não está presa, seja porque não lhes impuseram uma pena de prisão, seja porque somente foram cassados ou multados ou porque ainda possuem recursos pendentes. Entre os imputados está a própria irmã do rei Felipe VI (a princesa Cristina) e ainda há ex-ministros, ex-presi-dentes, prefeitos, empresários, altos cargos partidários e até algum sindicalista. Entre os atualmente encarcerados, exce-tuando a Família Real (no momento, tudo pode acontecer), encon-tramos membros dos mesmos coletivos.

É preciso colocar essa corrupção em contato com a dureza da crise, a que Rajoy disse que havia passado. Mente. Contraria-mente ao que afirmou, na coletiva de imprensa, a pobreza aumentou, as rendas familiares diminuíram, assim como a popu-lação ativa e as taxas de proteção social.

Foi nesse cenário que surgiu uma nova organização partidária. Possivelmente por isso, não são poucas as vezes que acusam o Podemos de ser, precisamente, uma proposta populista.2

Os vínculos políticos e profissionais que alguns de seus líderes mantiveram por anos com a Venezuela, de Hugo Chávez, e o explí-cito reconhecimento de seu trabalho político, abonam a tese. Ainda mais que o afastamento que se inicia em relação ao regime de Nicolás Maduro é, todavia, muito insuficiente e demasiado ambíguo. Ademais, a cobrança de uns suculentos e pouco claros honorários como assessor do Banco da ALBA por parte de um dos dirigentes fundacionais, Juan Carlos Monedero, gerou toda uma campanha de acusação e derrubada da organização por parte da direita polí-tica e midiática e, também, por parte de uma esquerda danificada pela irrupção dos simpatizantes e apoiadores de Pablo Iglesias.

Mesmo assim, o novo partido tem apenas alguns meses de vida, somente alguns rostos conhecidos e carece de experiência de governo: atualmente, pode-se dizer que está quase imaculado. A partir das análises acadêmicas, sabemos que a organização se

2 Sobre este tema, consultar nosso texto em <http://elcronistaperiferico.blogspot.com.es/2014/10/pueblos-y-populismos.html>.

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encaixa bastante bem nos perfis reconhecidos com o que chamamos de organizações populistas: uma liderança carismá-tica clara, uma composição policlassista e heterogênea, um confesso interesse pela movimentação das ruas, uma ideologia eclética, que exalta os setores médios e baixos (no Podemos geral-mente não se fala de “povo”, e sim das “gentes”, antítese da “casta”), que é explicitamente antielitista e/ou antiestablishment, e, finalmente, um projeto econômico redistributivo em benefício dos setores mais desfavorecidos.

Pode-se discutir se o Podemos se encaixa ou não no molde. Porém, o certo é que este debate, na fase que atravessamos, não importa em absolutamente nada à imensa maioria dos cidadãos. Seus líderes serem mais ou menos amigos do Bolivarianismo ou terem recebido dinheiro de Hugo Chávez em troca de assessoria política não os preocupa em (quase) nada. E mais: quanto mais aqueles que têm pouca ou nenhuma credibilidade lhes atacam por essa via, quanto mais os denigrem e os acusam de ser isto ou aquilo, mais o Podemos cresce nas pesquisas3.

Boa parte dos cidadãos pode ainda pensar que não deixa de ser engraçado que justamente aqueles que não cumprem seus programas, enganam os eleitores, culpam os outros por sua inefi-cácia e que governam ao sabor das pesquisas, acusem o novo partido de populista.

Mas o que a maioria dos cidadãos percebe é que estamos em um cenário de fim de um ciclo. Ademais, esses mesmos cidadãos observam com clareza outra coisa que a muitos causa regozijo e é inclusive estimulante: Podemos espalhou pânico entre os partidos e os políticos tradicionais e entre os grandes empresários e os banqueiros acostumados ao negócio fácil, à convivência ilícita. Aquele que era o plácido reservatório político espanhol, tranquilo como um cemitério bipartidário, registra nesses momentos ondas de mais de vinte metros e ventos que sopram como furacões.

A esquerda tradicional, mais ou menos vinculada ao histórico Partido Comunista da Espanha, vive sob um ataque de nervos. Podemos está comendo literalmente um terreno que lhe conside-rava próprio, por mais escasso que tenha sido em termos de repre-sentação política (por um sistema eleitoral muito injusto, há que ser dito). A Esquerda Unida, seu referente eleitoral, está se deba-tendo entre rejeitar o Podemos ou aliar-se com ele, o que tem gerado

3 Sobre este assunto, consultar nosso texto em <http://elcronistaperiferico.blogs-pot.com.es/2014/11/podemos-y-los-efectos-de-la-revolucion.html>.

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uma fortíssima discussão interna que, como ocorreu em Madri, fez que com que conhecidos dirigentes abandonassem a organização.

O que sobra das formações regionais à esquerda, particular-mente os independentistas bascos e catalães, levam as mãos à cabeça. O Euskobarômetro acaba de situar o Podemos como a segunda força no país Basco, com escassa distância do tradicional Partido Nacionalista Basco e, por consequência, dos independen-tistas de Bildu. E isso com PSE-PSOE e PP bastante combalidos. Na Catalunha, após o desembarque dos de Pablo Iglesias, as pesquisas situam o Podem (a filial autóctone) com uma expecta-tiva de voto que disputa a primazia com a própria Convregència i Unió (os nacionalistas tradicionalmente moderados, que hoje passaram ao independentismo), à frente da Esquerda Republi-cana de Catalunha, os soberanistas tradicionais que sensivel-mente não sabem o que está se passando. Enquanto isso, os socialistas catalães e o PP regional aparecem igualmente comba-lidos. A palavra terremoto ainda seria suave para descrever o que esses resultados podem significar, caso se materializem.

Se os partidos bascos, especialmente os abertzales, se apres-saram em negar a validade do Euskobarômetro, os catalões sobera-nistas qualificaram Pablo Iglesias como Cavalo de Troia do Estado e lerrouxista – um insulto político contundente, em alusão a um político republicano (Alejandro Lerroux) do primeiro terço do século passado, que combinava radicalismo verbal, boa oratória, dema-gogia, corrupção e espanholismo inequívoco. Para muitos sobera-nistas, Podemos seria pouco mais que o velho “regeneracionismo” espanhol e espanholista atualizado por uma operação de lifting.

O que está acontecendo, então, depois da emergência do Podemos? Apontaremos duas hipóteses que se pretendem explica-tivas e que precisam ser validadas mais adiante, fundamentalmente quando o discurso do Podemos se plasmar em programas eleitorais (as eleições municipais e autônomas serão em maio próximo), quando conheceremos o nome e a cara dos candidatos, e quando os cidadãos decidirão qual papeleta irão colocar na urna.

Primeira hipótese. É tão grande o repúdio, a aversão e a raiva acumulada contra os partidos majoritários (denominados pelo Podemos de forma desdenhosa e injusta, por sua generalização, como A Casta), que constituem uma legião aqueles que querem dar um bom soco no sistema que eles representam, esclerosado, insensível e incapaz, além de corrupto. A boa sanidade cívica do Podemos, hoje, colocou o sistema vigente de pernas para o ar; deu

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um murro no tabuleiro e nada, nada voltará a ser como antes de sua irrupção. Atualmente, Podemos é muitas coisas. Poderíamos nos atrever a dizer que, para cada possível eleitor, é o que cada um deles quiser que seja. Pode ser visto como um partido regene-rador, saneador, vingador, justiceiro, renovador da elite política, modernizador da ideia de Espanha ou agente de uma mudança profunda das regras do jogo, uma espécie de parteiro de uma nova época. Podemos é, para muita gente, a ilusão política de que a realidade atual é reversível. Podemos tem feito muitos acreditarem que é possível governar de outra forma, sem esquecer-se das gentes e contando com elas, sem depreciá-las, sentindo o que estas gentes sentem e, especialmente, o que estas gentes sofrem. E, ademais, essa nova forma de governar pode ser feita sem roubos e sem a corrupção dos representantes políticos. No futuro, esta hipótese se validará ou não, porém os entrevistados que apostam no Podemos acreditam nela.

Segunda hipótese. Digam o que disserem os nacionalistas periféricos, e sem negar-lhes nem um centímetro da carga do nacionalismo banal (o cotidiano, na forma de Michel Billing) e, inclusive, do nacionalismo espanholista explícito que o Podemos sustenta, talvez não tenham entendido que uma parte não menor de seus apoios nos últimos tempos (desde que a crise se fez insu-portável), não é tanto no seu sentido estrito, mas uma expressão de repúdio à nefasta política imposta por Madri. O Podemos sustenta que a Catalunha e os catalães têm sido ofendidos e maltratados pelos governos da Casta, que o sistema de 78 (em alusão à Constituição) está obsoleto, e – além disso, importantís-simo – que sim, que as gentes têm o direito a decidir se a Cata-lunha deve ser ou não um Estado independente, mas que também têm que decidir que tipo de política social exigem e que papel jogará o Estado em suas vidas. Crer que todo o apoio às impres-sionantes mobilizações impulsionadas pelos soberanistas era independentismo nato pode ter sido um importante erro de cálculo. Os partidários de um divórcio – que seria muito traumá-tico para todos – pode ser que sejam bem menores que os partidá-rios de compatibilizar os direitos e singularidades indiscutíveis da nação catalã dentro de um Estado plurinacional. Talvez uma reforma constitucional que estabeleça um marco federal deva ser a alternativa que poderia contar com mais apoios.

(Tradução de Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira)

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IX. Ensaio

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Autores

Fausto Matto GrossoEngenheiro civil, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul .

Michel ZaidanProfessor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco .

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O fenômeno das redes

Fausto Matto Grosso

A palavra rede tem origem no latim rete-retis, associada à ideia de um entrelaçamento de fios, cordas, cordéis, arames etc.; com aberturas regulares, fixadas por malhas, forman-

do uma espécie de tecido. Nos diversos ramos do conhecimento, a palavra tem sido usada como “metáfora” para representar siste-mas complexos e flexíveis, compostos de polos (nós) e de relações entre eles. Biólogos frequentemente empregam o termo quando se referem às teias alimentares e aos ciclos de vida. “Sempre que olhamos para a vida, olhamos para as redes” (CAPRA, 1996).

Atualmente, o conceito de rede tem sido amplamente utilizado nas ciências sociais e nas teorias das organizações, e a forma-rede tem sido usada de maneira inovadora na estruturação de processos de interação social.

Como mecanismo de interação social, as redes sempre exis-tiram, desde os tempos em que surgiu a convivência entre os homens em sociedade, principalmente naqueles campos onde predominava a cooperação.

O impulso atual na utilização do termo rede tem como pano de fundo o processo de profundas transformações originadas pela revolução científico-tecnológica e pela globalização, trazendo consigo a redefinição do papel do Estado-nação.

No plano científico-tecnológico, como assinala Franco (2006), a fibra ótica, o laser, a telefonia digital, a microeletrônica e os satélites de órbita estacionária estão possibilitando a conexão em

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tempo real (sem distância) entre o local e o global e, assim, tornando mais visíveis as redes sociais e os processos associados a elas, ao mesmo tempo em que estão acelerando e potenciali-zando seus efeitos.

Este avanço da base tecnológica, a partir da segunda metade do século XX, tem mudado rapidamente paradigmas da sociedade e tem merecido, de diversos autores, caracterizações como “socie-dade pós-industrial” (LYOTARD, 1998), “sociedade da informá-tica” (SCHAFF, 1995), “sociedade do conhecimento” (TOFFLER, 1990), “sociedade tecnizada” (MACHADO, 1993) ou “sociedade em rede” (CASTELLS, 1999).

A globalização – impulsionada pela combinação da revolução científico-tecnológica com a crise do Socialismo Real e com o esgo-tamento do Estado do Bem-Estar Social – trouxe consigo a exigência de novas formas de organização da economia, das empresas, e do Estado-nação. Este processo foi percebido com diferentes visões. De um lado, o neoliberalismo apontava a neces-sidade do “Estado-mínimo”; do outro, importantes setores do pensamento democrático apontavam as potencialidades emanci-patórias do novo contexto, com a possibilidade de criação de uma sociedade civil mundial como forma da afirmação da sociedade perante os Estados.

Este mesmo período é também marcado por uma profunda crise nos instrumentos de representação surgidos nos marcos dos antigos paradigmas da sociedade industrial, como os partidos, os sindicatos e outras formas tradicionais de articulação de inte-resses e reivindicações. É nesse contexto que se expande a ideia de redefinição das funções entre o setor governamental, o mercado e o setor associativo, este último passando a ser chamado de “terceiro setor”.

O conceito de terceiro setor nasceu, portanto, reforçado por uma dupla convergência ideológica, como se referem Bernardi e Malvasi (2006), “estratégia complementar ao neoliberalismo” ou “estratégia emancipatória em relação ao capitalismo”. O terceiro setor é aquele onde “indivíduos de uma dada sociedade se agrupam espontaneamente em torno de organizações autogestionadas de fins públicos ou coletivos, sejam elas formais ou não, e se arti-culam em redes para atender aos mais variados interesses sociais” (BROWN, 2005).

As redes passam a representar, assim, novas formas organiza-tivas surgidas nesse novo contexto civilizatório de aceleração dos

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processos de mudanças. Sua superioridade como instrumento de organização do terceiro setor se encontra, exatamente, na extrema elasticidade que possuem de se adaptar à realidade em um ambiente de transformações continuadas das sociedades contem-porâneas, sob o paradigma informacional.

Conceitos de redes

Na literatura sobre o assunto, muitas e diferenciadas formula-ções podem ser encontradas para caracterizar as redes.

Para Castells (1999), “rede é um conjunto de nós interconec-tados” e avança: “redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou obje-tivos de desempenho). Uma estrutura social com base em redes é um sistema aberto altamente dinâmico, suscetível de inovação, sem ameaças ao seu equilíbrio”.

Para Bernardi e Malvasi (2006), “redes são sistemas organiza-cionais capazes de reunir indivíduos e instituições, de forma democrática e participativa. As redes se sustentam pela vontade e afinidade de seus integrantes, caracterizando-se como um signifi-cativo recurso organizacional, tanto para relações pessoais quanto para a estruturação social”.

Martinho (2003) faz um conjunto de caracterizações em que destaca o caráter dinâmico das redes e a importância das relações de rede para o coesionamento do sistema. Assim, afirma que rede é um “objeto fluido e impermanente...”, “de caráter relacional, portanto, a rede está, nunca é...,” “a ordem, na rede, se faz e se desfaz no movimento das relações”, “a matéria-prima principal da rede... é a relação”, “... uma emergência, não uma entidade... arranjo orgânico de devires”. Buscando distinguir as redes das formas tradicionais de organização, o mesmo autor afirma que “esse modelo se opõe à noção tradicional de organização identifi-cada com a estabilidade, a reprodutibilidade, a padronização, a linearidade e o controle”, “não um organismo, mas vários”. Real-çando as potencialidades desse tipo de organização, diz que “redes são fábricas de possibilidades, porque as relações nada mais são do que possibilidades em latência..., relacionamentos são cami-nhos por onde trafegam as oportunidades”.

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Segundo Whitaker (1993), “rede é um sistema de nós e elos capaz de organizar pessoas e instituições, de forma igualitária e democrática, em torno de um objetivo comum”. Os elos repre-sentam a troca de informações e a comunicação entre os atores sociais que formam um grupo, conjunto de pessoas e organiza-ções conectadas pela intencionalidade de planejar ações conjuntas para o atendimento às necessidades de uma localidade. Os nós representam o momento da composição, do comprometimento em torno da causa comum, que formam subgrupo(s) condensado(s) em propostas para a implementação de ações planejadas.

Nesta concepção, as redes são uma forma de organização que implica em conteúdo de natureza emancipatória e não outro. Redes são a tradução, na forma de desenho organizacional, de uma política de emancipação. Não pode haver distinção entre os fins dessa política e os meios de empreendê-la.

Outro aspecto de interesse é a observação de que duas perspec-tivas podem ser encontradas no tratamento das redes: a “utilização estática” e a “utilização dinâmica” (LEROY-PINEAU, 1994, apud MARTELETO, 2001). A primeira é a forma de análise da Sociologia e outras ciências, que exploram a “rede estrutura” – nós e ramifica-ções – para poder entender a dinâmica da organização social. Para os pesquisadores, trata-se de uma nova metodologia.

Já os grupos sociais fazem da “utilização dinâmica” uma estra-tégia de ação no nível pessoal ou grupal, para gerar instrumentos de mobilização de recursos. Para os grupos trata-se de explorar novas possibilidades de articulações.

Tipologia de redes

Inúmeros são os contextos em que o termo “rede” é empre-gado, desde as redes de relacionamentos pessoais, as redes corpo-rativas, as redes de marketing, as redes de máquinas e as redes sociais, esta última de interesse mais direto nesta análise.

A internet pode ser encarada como híbrida, pois interligando máquinas, conecta pessoas em práticas de cooperação, de sorte que, estudando-a, pode-se compreender a diversidade das cone-xões ocultas que existem nas redes sociais. Mas isso não significa que seja a mesma coisa.

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Por outro lado, as redes se constituem em estruturas complexas, em processos de constantes modificações e desdobra-mentos, que apresentam graus variados de especializações.

Segundo a classificação apresentada no site da Rede de Infor-mações para o Terceiro Setor (RITS) podemos ter:

• Redes temáticas – se organizam em torno de um tema, segmento ou área de atuação das entidades e indivíduos participantes, podendo ser genéricas (ex.: meio ambiente, infância etc.) ou específicas (ex.: reciclagem, desnutrição infantil).

• Redes regionais – têm em uma determinada região ou sub-região o ponto comum de aglutinação dos parceiros: um estado, um conjunto de municípios, um bioma, uma cidade, um conjunto de bairros etc.

• Redes organizacionais: vinculadas a uma entidade suprains-titucional – isto é, que congrega instituições autônomas filiadas (federações, confederações, associações de enti-dades, fóruns etc.) ou compostas, por exemplo, de várias unidades autônomas e/ou dispersas territorialmente.

Convivendo com as formas “puras” dessa tipologia, existem inúmeras situações híbridas formadas pela adaptação das formas organizativas aos problemas e questões concretas em torno das quais se agregam ações dos atores sociais e organizações.

As redes podem assumir diversas configurações relativas ao seu objetivo, constância, padrão de formação etc.

Segundo Martinho (2003), a maioria das redes da sociedade civil brasileira são redes de trocas de informação, mas essa função é apenas uma entre tantas atividades que realizam. Este tipo de rede também desenvolve pesquisas e estudos; estabelece e conduz processos de interlocuções e negociações políticas; realiza o acompanhamento de políticas públicas; promove processos de formação e capacitação; faz campanhas publicas de sensibilização, esclarecimento e mobilização; atua na defesa de direitos sociais e causas coletivas; capta e distribui recursos; presta serviços; e, em alguns casos, como o das redes de socioe-conomia solidária, realiza mesmo atividades de produção, circu-lação e até de regulação econômica.

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Fundamentos e paradigmas de redes

As redes têm como elementos coesionadores a vontade e a convergência de propósitos de seus integrantes. Por isso, articular uma rede significa buscar parceiros que se comprometam com valores e declaração dos propósitos do coletivo (missão – para que a rede existe?).

Há alguns parâmetros que norteiam a interação e se consti-tuem uma espécie de código de conduta para a atuação em rede. Segundo Rits (2008), os elementos que articulam e garantem unidade de uma rede são:

• Pactos e padrões de rede: pressupõe identidades e padrões a ser acordados pelo coletivo responsável. É a própria rede que vai gerar os padrões a partir dos quais os envolvidos deverão conviver.

• Valores e objetivos compartilhados: o que une os dife-rentes membros de uma rede é o conjunto de valores e objetivos que estabelecem como comuns, interconectando ações e projetos.

• Participação: uma rede só existe quando em movimento. Sem participação, deixa de existir. Ninguém é obrigado a entrar ou permanecer numa rede. O alicerce da rede é a vontade de seus integrantes.

• Colaboração: entre os integrantes deve ser uma premissa do trabalho. A participação deve ser colaborativa.

• Multiliderança e horizontalidade: uma rede não possui hierarquia nem chefe. A liderança provém de muitas fontes. As decisões também são compartilhadas.

• Conectividade: só quando estão ligados uns aos outros e interagindo é que indivíduos e organizações mantêm uma rede.

• Realimentação: a informação circula livremente, emitida de pontos diversos, sendo encaminhada de maneira não linear a uma infinidade de outros pontos, que também são emis-sores de informação.

• Descentralização e capilarização: uma rede não tem centro, ou melhor, cada ponto da rede é um centro em potencial. Uma rede pode se desdobrar em múltiplos níveis ou segmentos autônomos – “filhotes” da rede –, capazes de

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operar independentemente do restante da rede, de forma temporária ou permanente, conforme a demanda ou a circunstância. Sub-redes têm o mesmo “valor de rede” que a estrutura maior à qual se vinculam.

• Dinamismo: uma rede é uma estrutura elástica, dinâmica, cujo movimento ultrapassa fronteiras físicas ou geográ-ficas. Cada “retrato” da rede, tirado em momentos dife-rentes, revelará uma face nova.

Estrutura e funcionamento de redes

Conforme Bernardi e Malvasi (2006), os modelos de hierarquia e de gestão do terceiro setor diferem daqueles derivados da lógica do mercado e do Estado, demandando mecanismos de maior participação.

De maneira geral, o terceiro setor se organiza de forma a permitir maior participação dos atores envolvidos, estrutura poli-cêntrica e parcerias entre os três setores da sociedade. A efeti-vação desses princípios requer um novo modelo: as redes.

A estruturação das redes necessita de definições claras de sua Carta de Princípios, para que sejam estabelecidos os pactos rela-cionais entre os seus membros. Assim, as redes se estruturam a partir da definição de seus objetivos, das áreas da atuação, dos beneficiários, dos interesses a ser representados. Essas definições preliminares servem para formatação do campo de potenciais integrantes da rede.

O desenho organizacional das redes costuma partir da defi-nição das atividades, produtos e serviços que serão realizados, dos resultados esperados, da definição das regras de relaciona-mento, do processo de tomada de decisão. A esse conteúdo deve se ajustar a estrutura a ser concebida.

As estruturas das redes costumam ter arquiteturas não hierár-quicas, flexíveis e menos estáveis do que as das empresas e órgãos públicos, tendo sempre presente uma lógica de provisoriedade que lhe permita uma possibilidade permanente de adaptação a contextos sempre dinâmicos.

Como assinalam Bernardi e Malvasi (2006), os centros de poder são instâncias e não pessoas ou cargos. Predominam nos organogramas a Assembleia Geral, da qual todos devem parti-cipar. Nas estruturas intermediárias da gestão cotidiana, na qual

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não se decide, apenas se agilizam processos, podem existir dire-toria, coordenação, conselho de gestão, entre outros. Na divisão de áreas de trabalho, não costumam existir departamentos e sim grupos de trabalho, comitês ou comissões. Nas redes mais complexas, existem estruturas operacionais fixas, secretarias executivas, sem função de comando ou regulatória.

Apesar da grande variabilidade da tipologia das redes, as características antes descritas costumam prevalecer.

Sustentabilidade de redes

Segundo Teixeira (2002), as redes são vistas como solução adequada para administrar políticas e projetos nos quais os recursos são escassos, os problemas complexos, existem muitos atores envol-vidos, interagem agentes públicos e privados, centrais e locais, há uma crescente demanda por benefícios e participação cidadã.

Nesse contexto, as estruturas de sustentação das redes podem adquirir as mais variadas formas, de acordo com a sua compo-sição, finalidades e grau de maturação.

No geral, o que as sustentam é a determinação para a reali-zação da ideia-força que a gerou. Os recursos estão nelas mesmas, nas pessoas e nas organizações que lhes disponibilizam recursos materiais.

Nas redes sociais, não deve haver diretorias, chefias, remu-neração de funcionários, despesas com impostos e sedes, estru-tura organizacional para captação de recursos, suportes admi-nistrativos etc.

Esta estrutura simplificada, no seu desenvolvimento, passa a adquirir uma forma mais complexa e surge a questão da formali-zação para viabilizar parcerias com financiadores e o poder público. Esta sustentação financeira normalmente vem por meio de projetos, que não são executados diretamente pelas redes, mas sim por ONGs, Oscips etc. (membros da rede). Alguma instituição recebe o recurso em nome delas ou destina algum recurso à rede, para manutenção de uma estrutura de coordenação mínima. Em alguns casos, cria-se uma nova organização social juridicamente constituída, com a finalidade de receber os recursos.

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Estratégias de formação de redes

A descoberta de parceiros e propósitos comuns são dois elementos fundamentais para o início da criação de uma rede. Existem alguns princípios que devem ser observados, para maxi-mizar os resultados de uma articulação de rede:

• pessoas e organizações só entram em parceria quando não podem solucionar os problemas sozinhos; caso contrário, não despenderiam recursos nem assumiriam riscos esta-belecendo relações desta natureza;

• as diferentes partes envolvidas nas relações de parceria precisam ter níveis de poder relativamente iguais. Quando há grandes diferenças de poder, é comum que os mais “fracos” estabeleçam alianças com outros atores, com o objetivo de equilibrar as forças;

• todos os participantes precisam estar envolvidos desde o início, sob o risco de que os ausentes descontinuem ou prejudiquem a parceria no futuro. Ainda que a participação possa significar mais tempo e custos investidos no processo, em longo prazo tende a trazer melhores resultados;

• os diferentes grupos podem ter pressupostos e visões distintas sobre os fatos, empregando inclusive linguagens diferentes, o que pode levar à incompreensão ou mesmo inviabilizar um acordo. Em uma parceria, é fundamental que os participantes se esforcem ao máximo para compreender o pensamento e a linguagem dos demais;

• um grupo que esteja com dificuldades para dialogar com outros grupos ou setores pode adotar a estratégia de esta-belecer inicialmente alianças com lideranças menos resis-tentes que, em seguida, podem facilitar o diálogo com os seus pares;

• relações informais e anteriores à parceria podem ter um papel importante ao possibilitar o cruzamento de fronteiras sociais e a criação de cadeias de confiança que extrapolam as posições formais de cada um dos atores;

• os mais afetados pelos problemas são as pessoas mais inte-ressadas em solucioná-los, que deveriam, sempre, parti-cipar dos processos de discussão e das parcerias que se propõem a solucionar seus problemas.

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No entender de Corrêa e Casarotto Filho (1999 apud OLAVE; AMATO NETO, 2001), o nascimento, a sobrevivência e consoli-dação das redes dependem da discussão e equacionamento de três aspectos fundamentais:

• Cultura da Confiança: relaciona-se aos aspectos ligados à cooperação entre os atores, envolvendo aspectos culturais e de interesse de pessoas e de organismos, tendo a ética o papel fundamental nessas relações. Conforme Corrêa (1999 apud OLAVE; AMATO NETO, 2001), o fortalecimento da confiança entre os parceiros é fundamental para todo o desempenho das redes.

• Cultura da Competência: refere-se às questões ligadas às competências essenciais de cada parceiro. Contempla desde aspectos materiais como as instalações e equipa-mentos, até aqueles imateriais como os processos, o saber como fazer os processos (know how).

• Cultura da Tecnologia da Informação: a agilização do fluxo de informação é de vital importância para a implementação e o desenvolvimento de redes flexíveis.

Potencialidades das redes

As redes se constituem instrumentos poderosos para a articu-lação de atores sociais do terceiro setor. Esta forma de organi-zação tem sido crescentemente utilizada por corresponder às necessidades de uma realidade em rápido processo de mudanças. Entre as suas potencialidades podemos apontar:

• o pluralismo, normalmente presente na sua composição, permite um maior nível de aprofundamento na análise dos problemas, pois incorpora diferentes perspectivas situacionais;

• permite a integração de experiências de atores locais com experiências globais de outros atores, permitindo a confluência de saberes empíricos e teóricos;

• facilita a criação de padrões flexíveis de relação entre governo e entidades civis, facilitando a construção de um campo de interesse público não estatal, portanto mais próximo do cidadão;

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• permite maior agilidade de adaptação da forma organiza-tiva às demandas sempre dinâmicas dos processos em mudança do mundo contemporâneo;

• facilita a elaboração democrática dos objetivos, metas e planos comuns dos atores sociais, além de criar cumplici-dade ampla, sustentabilidade e governabilidade dos projetos compartilhados.

Conclusão

Se, de um lado, as redes são portadoras de imensas potencia-lidades organizativas para os desafios contemporâneos, por outro lado, não podem ser entendidas como receita universal para a interação eficaz entre os atores sociais.

Esse instrumento de organização também carrega problemas que devem ser considerados, paralelamente às suas virtudes. Entre esses fatores podem ser apontados, o baixo grau de previ-sibilidade resultante do engajamento voluntário que nem sempre se manifesta de maneira continuada, a inexistência de meca-nismos de responsabilização decorrente da informalidade das relações, o risco da ineficácia na execução de projetos gerado pela inexistência de centro coesionador, bem como a maior moro-sidade no processo de tomada de decisões em contexto de proces-samento democrático.

A experiência tem mostrado, também, que apenas uma minoria das relações de colaboração em redes alcança o estágio integrativo e aproxima-se da “parceria ideal”. Estas relações são difíceis de ser mantidas e exigem grande empenho por parte dos envolvidos.

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A formação do primeiro grupo dirigente do Partido Comunista

Brasileiro (1919-1930)

Michel Zaidan

Desde os primeiros artigos e ensaios, escritos e publicados, sobre a história dos comunistas brasileiros (1979, 1980, 1982), ainda quando era mestrando na Universidade Es-

tadual de Campinas, procurei chamar a atenção para a especifi-cidade do processo de formação ideológica do primeiro “grupo di-rigente” do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nestes primeiros escritos da década de 80 afirmava que havia certa homogeneidade cultural e política desses primeiros militantes (Astrojildo Pereira, Cristiano Cordeiro, Otávio Brandão, Heitor Ferreira Lima), pro-duto da transformação ideológica do final do século XIX no Brasil .Um misto de republicanismo, evolucionismo e positivismo for-mava o horizonte ideológico dessa geração saída do movimento abolicionista e republicano e contaminada pelas influências socia-listas, anarquistas e comunistas vindas de fora.

Foi nessa ocasião que aventei a hipótese de que a tão falada herança anarquista ou anarcossindicalista dos comunistas brasi-leiros precisava ser revista, em função da própria especificidade dos anarquistas brasileiros. Pois os nossos primeiros anarquistas deviam a sua formação a um verdadeiro “porre ideológico” (a expressão é do saudoso professor Evaristo de Moraes Filho) e não às influências europeias, trazidas na bagagem dos emigrantes italianos, espanhóis ou portugueses. A nossa cultura libertária nunca foi muito ortodoxa, sendo ela própria fruto de um enorme ecletismo ideológico; a ponto de o historiador Michael Hall (A classe operária no Brasil) falar em sindicalismo revolucionário ou anarcos-sindicalismo, ao invés de anarquismo. Os chamados anarquistas puros mantinham uma razoável distância do movimento sindical (e das massas operárias), desenvolvendo uma atividade pedagógica por meio do teatro, da literatura e da escola. E os sindicatos que reivindicavam a influência anarquista eram organizados a partir de “declarações de princípios” anarquistas, o que os afastava muito da luta de massas e das demais correntes políticas.

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Por tudo isso, justifica-se a ideia da busca de caracterização dos principais traços dessa “mentalidade” protocomunista, nos anos 20. Desde logo, é possível encontrar sinais da herança jacobinista do abolicionismo e do republicanismo do século XIX no Brasil. Herança jacobina (nacional-popular) responsável pela constante aproximação desses primeiros militantes em relação à pequena-burguesia urbana, por meio da Maçonaria. Lembrar que a questão maçônica foi ponto de pauta do 5° Congresso da Internacional Comunista (IC) e que o PCB teve o seu reconhecimento rejeitado por conta da dupla filiação de vários militantes comunistas. No nosso entendimento, a sobrevivência da dupla filiação dos comu-nistas brasileiros é um forte indício da herança jacobina (nacional-popular) nos integrantes do primeiro grupo dirigente do PCB. Outro aspecto a ressaltar é a visão evolucionista, linear e positivista da História, defendida por esses militantes em suas análises da sociedade brasileira. Mais do que marxista-leninista, é de inspi-ração novecentista (spenceriana e comteana), assimilada das influências político-culturais comuns da época.

Esses “pais fundadores” do marxismo brasileiro integram uma geração romântica que atuou em condições de relativo isolamento em relação às táticas e estratégias do movimento comunista inter-nacional (IC) e por isso mesmo foi capaz de elaborar uma formu-lação “nacional” (não nacionalista) sobre os caminhos da revo-lução brasileira (Revolução Democrática Pequeno-burguesa, como disse Otávio Brandão), nem democrático-burguesa, como querem alguns, nem democático-antiimperialista, como proclamava a IC, no seu VI Congresso.

A teoria da Revolução Democrática Pequeno-Burguesa (justifica-tiva em detalhe da política de aliança com a pequena-burguesia revoltosa da Primeira República) como a demonstração cabal da originalidade e especificidade do primeiro grupo dirigente do PCB é nossa tese fundamental. Uma hermenêutica histórico-revolucionária totalmente em desacordo com a política anti-trotskista vigente nesse período, na ex-União Soviética, já sob o controle de Stalin. Este desa-cordo ficará mais patente nas seções do comitê latino do VI Congresso da IC e, mais ainda, no encontro dos Partidos Comunistas latino-a-mericanos, em 1929, em Buenos Aires, onde Otávio Brandão – o principal teórico do PCB – foi obrigado a se retratar e a se enquadrar na estratégia revolucionaria da IC para os países latino-americanos. De toda maneira, embora não seja esse o foco principal deste trabalho, valeria a pena destacar a originalidade desse pensamento político, no âmbito da cultura marxista-leninista da época.

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O foco aqui é a constituição desse primeiro núcleo dirigente do PCB, formado pelas figuras de Astrojildo Pereira, Cristiano Cordeiro, Otávio Brandão e Heitor Ferreira Lima. Alguns desses personagens, tive o prazer de conhecê-los ainda em vida. Outros foram objetos de coletâneas e ensaios. Tive a oportunidade de resgatar para a história das ideias políticas no Brasil a obra de Otávio Brandão, subestimada ou subvalorizada pela ensaística brasileira, particularmente pelo trabalho de Leandro Konder, com quem troquei cartas amistosas sobre o assunto. É meu objetivo fazer um relato biográfico de cada um desses militantes, analisar o seu pensamento e relacioná-los, procurando o que há de comum entre eles e o seu ambiente sócio-cultural. Para isso, devo revi-sitar as obras escritas e publicadas, resoluções, artigos, cartas e outros manuscritos, bem como os relatos disponíveis sobre a história de vida de cada um.

Entre as coletâneas organizadas e publicadas por mim estão: Construindo o PCB (1922-1924) e Memória e História 2: Escritos políticos de Cristiano Cordeiro, editadas pela antiga Livraria e Editora de Ciências Humanas, de São Paulo, LECH (3) Também publiquei opúsculos e cartas desses militantes em: Na busca das origens de um marxismo nacional (1985) e O PCB e a Internacional Comunista (1988). Quanto à historiografia do Partido Comunista, os autores mais importantes são Edgard Carone, Leandro Konder, Paulo Sérgio Pinheiro, Marco Del Royo, Martim Cesar Feijó, Antonio Segatto, John Foster Dulles e Augusto Buonocore. Os conceitos-chaves de “grupo dirigente” e “cultura política nacional-popular” foram tomados de empréstimo da ensaística italiana. No caso do primeiro, a procedência é da magistral obra de Paolo Cipriano, sobre La formacion del grupo dirigente do PCI. Roma, Riuniti, 1972, vol. l. No caso do segundo, a autoria é de Antônio Gramsci, Literatura e vida nacional . Il Rissorgimento.

A origem ideológica do primeiro grupo dirigente comunista brasileiro

Conforme o depoimento colhido por Gilberto Freyre, para a redação do livro Ordem e Progresso, o futuro fundador de PCB, Astrojildo Pereira, teria participado (quando jovem) da campanha abolicionista e republicanista, no final do século XIX. O interesse da revelação contida nesse testemunho nos leva a crer que o mili-tante social compartilhasse profundamente do horizonte intelec-tual da geração, envolvida nos embates jacobinos do final do século.

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Esse horizonte já foi caracterizado, de outra feita, como um misto de positivismo, evolucionismo e monismo, segundo as doutrinas filosóficas predominantes nas academias de Direito, e no âmbito do próprio movimento socialista europeu. A recorrente confusão que reinava nessa época entre a doutrina positivista e evolucionista de Auguste Comte com o pensamento socialista, na segunda metade de século XIX, que fazia, aliás, do pensamento de Marx um discurso positivo do método das Ciências Sociais, e do próprio Materialismo Histórico uma Ciência positiva da História e das lutas sociais, certeza ajudou muito a marcar a recepção das ideias socialistas como uma variante do pensamento jacobino mais exaltado. Quando Leandro Konder, em sua conhecida tese de doutorado (A recepção das ideias de Marx no Brasil), afirma que tal recepção foi subsu-mida pelo positivismo, esquece que esta subsunção se dá, antes, na própria Europa com os Partidos Socialdemocratas, sob a super-visão de Engels, Kautski, Bernstein etc. A sua chegada à América do Sul embalada por aquelas doutrinas é uma mera consequência do processo de transformação da herança da filosofia clássica alemã, sob o influxo das novas ideias de Darwin, Spencer e Auguste Comte. O que ocorreu é que, nas circunstâncias brasileiras, a herança sofreu o contágio do jacobinismo republicano e foi desa-guar nos primeiros núcleos socialistas, anarquistas e trabalhistas. Há fortes indícios desse ecletismo ideológico no movimento social desse período (veja-se opúsculo escrito por esse antigo militante operário: Augusto Azevedo. Fragmentos da história operária. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional)

Acredito que a reiterada tentativa dos nossos militantes sociais (anarquistas, socialistas e comunistas) em buscarem alianças com a pequena-burguesia urbana no Brasil (mais do que com o campe-sinato) pode ser razoavelmente explicada pela herança jacobina, nacional-popular, desses militantes. Em vários momentos da historia, é possível surpreender essa busca de aproximação ora dos comunistas em relação aos tenentes, ora dos anarquistas com os tenentes e assim por diante. Talvez o documento político mais rele-vante, neste sentido, seja o opúsculo de Octávio Brandão: Agra-rismo e Industrialismo . A guerra de classes no Brasil e a revolta de São Paulo. Buenos Aires, 1926, que se torna a base mais impor-tante do documento do PCB: As tarefas da revolução democrático-pequeno-burguesa (Autocrítica) e vai influenciar as teses do II Congresso Nacional do PCB (La Correspondencia Sudamericana).

Curiosa é também a dupla filiação dos nossos primeiros comu-nistas: ao partido e à maçonaria. Lembrar que esta questão foi ponto

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de pauta do IV Congresso da IC, em março de 1922. E que o reconhe-cimento e a adesão do PCB ao Movimento Comunista Internacional foi rejeitada sob a alegação de que havia membros do partido brasi-leiro que eram maçons (Everardo Dias, Cristiano Cordeiro, Maurício de Lacerda). Na verdade, a Maçonaria tornou-se um canal informal de articulações políticas entre comunistas, socialistas e tenentes. Deve haver, sem dúvida, alguma relação entre a ideologia maçônica e a cultura política desses primeiros comunistas, na direção da “nacionalização” do socialismo brasileiro.

É de se reconhecer que a primeira geração dos militantes de onde se originou o grupo dirigente do PCB nos anos vinte (Astro-jildo Pereira, Octávio Brandão, Cristiano Cordeiro, Heitor Ferreira Lima) tinha nascido no fim do século XIX. Possuía instrução formal e habilidades profissionais ou burocráticas. O último era alfaiate. Cordeiro era funcionário público. Astrojildo, crítico lite-rário. E Octávio Brandão, um pequeno farmacêutico.

Questões de método

Segundo Antonio Candido, em sua conhecida obra Formação da Literatura Brasileira – Momentos decisivos. São Paulo: Edusp, 1975, dois princípios regem a vida cultural dos povos: o cosmopo-litismo e o nacionalismo. Os autores que conseguem “naciona-lizar” a hermenêutica de suas sociedades, fugindo da abstração e mera repetição das formulações gerais são aqueles que criam uma espécie de teoria social original. Já os autores cosmopolitas se limitam a aplicar às suas sociedades esquemas e teorias univer-sais mecanicamente, sem levar na devida conta a especificidade dos processos sociais de seu meio. No caso latino-americano, destacam-se pela originalidade de suas formulações: Mariategui, Marti, Sarmiento, Ibarruri etc. No caso do Brasil, o primeiro ensaísta enquadrado nessa categoria seria – para alguns – Caio Prado Junior.

Para nós a obra do historiador paulistano não pode ser conside-rada pioneira nesse esforço hermenêutico marxista original. Nem na obra teórica (A Dialética do Conhecimento) nem nos ensaios de interpretação da realidade brasileira (Formação do Brasil Contem-porâneo). Os seus trabalhos acompanham a reflexão teórica da escola “circulacionista”, encabeçada por André Gunder Frank que define o modo de produção colonial pela acumulação processada na esfera da circulação, e não pelos processos produtivos internos (a economia do açúcar, o ciclo do ouro, o café etc), sem levar em

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consideração as relações de produção vigentes na economia colo-nial. Para Caio Prado, o Brasil era capitalista pela sua mera inserção no sistema colonial. O que levaria o ensaísta paulistano a dessentir da linha oficial do Partido Comunista, cuja interpretação da economia brasileira apontava para a permanência de restos feudais ou pré-capitalistas na agricultura do país.

A primeira obra marxista-leninista, escrita no Brasil, que tematiza as contradições da nossa sociedade e aponta os cami-nhos da revolução brasileira, em consonância com a nossa história, nossos atores e a nossa tradição é de Otávio Brandão, Agrarismo e Industrialismo . A revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil. Este é um texto que, malgrado todas as suas vicissitudes teórico-metodológicas devidas ao autodidatismo do autor, contém as sementes de uma análise original da luta social no Brasil, à luz das manifestações de revolta da pequena-bur-guesia civil e militar da Primeira Republica. A importância desse trabalho se evidencia pelo fato de ser ele a base para o programa político do PCB e a fonte das teses do II e III Congressos do Partido; sendo violentamente rechaçado no final dos anos vinte com a mudança de política da Internacional Comunista para a América Latina e a subordinação dos comunistas brasileiros ao Movimento Comunista Internacional (IC).

Muito haveria que dizer sobre esta tese a propósito da contro-vérsia que ela provocou na historiografia do comunismo brasi-leiro, haja vista os trabalhos de Kazumi Munakata (Cenas brasi-leiras), Paulo Sérgio Pinheiro (As estratégias da ilusão), Edgard Salvadori De Decca (O silêncio dos vencidos) e Marco Aurélio Garcia (Apresentação, do meu livro: O PCB e a Internacional Comu-nista). Estes autores foram analisados criticamente na Introdução do livro Os comunistas em céu aberto, que estuda a campanha do Bloco Operário e a política de alianças do PCB na década de 20.

Aqui, preferimos dialogar com o ensaísta carioca Leandro Konder, cuja tese (A derrota da dialética . A recepção das ideias de Marx no Brasil) trata exaustivamente desse período da formação do marxismo brasileiro e expõe um ponto de vista contrário ao que é aqui defendido.

Já criticamos, em trabalho anterior, o risco do anacronismo teórico-metodológico de analisar a obra de autores brasileiros, dos anos vinte, pelas lentes (presumivelmente mais preparadas) da nossa época, com o objetivo de desqualificação política ou ideoló-gica dessa obra. Não se pode cobrar de um revolucionário autodi-

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data do início do século a mesma coerência e rigor exigidos de uma tese acadêmica. E, no entanto, o trabalho de Brandão é muito mais original e interessante do que a tese do Leandro (que se julga um dialético melhor) que se limita a dizer que a derrota da dialé-tica no Brasil é fruto da sua subsunção ao stalinismo. Aí está um exemplo de uma análise cosmopolita (e abstrata) do fechamento teórico e ideológico provocado pelo stalinismo no âmbito do marxismo internacional. Cedeu à tentação de aplicar esquemas gerais e recorrentes no Movimento Comunista Internacional, sem se importar com os processos (e a elaboração) internos em cada partido-membro da IC.

Ora, o que se sabe é o relativo isolamento em que se deu a elaboração desse pensamento. Até meados de 1926, era absoluta-mente precária a relação orgânica e ideológica da Internacional Comunista com a América Latina, apesar da criação do seu Birô Sulamericano, em Buenos Aires, e da publicação da revista La Correspondencia Sudamericana, destinada a orientar a estratégia dos partidos comunistas latino-americanos. Ainda em 1928, o secretário-geral do PCB, Astrojildo Pereira, reclamava da defi-ciente comunicação de Moscou para com as demais seções nacio-nais da IC. Por tudo isso, é injusto e incorreto imputar os erros ou as deficiências teóricas e políticas do PCB à sua subordinação ao marxismo-leninismo, como querem alguns.

Em verdade, há dois aspectos intimamente entrelaçados nessa discussão historiográfica. Um é um paradigma hegemônico da chamada Revolução Burguesa (e suas variantes: anti-imperia-lista, terceira revolta, revolução permanente) no Movimento Comunista Internacional. O outro é da completa e total submissão de suas seções nacionais ao Komintern (IC). Os autores que subes-timam ou ignoram a especificidade da elaboração teórico-política do PCB, nesta época, no geral comungam de ambas as teses. É o caso de Marco Aurélio Garcia, Kazumi Munakata, Edgard Salva-dore De Decca e Paulo Sérgio Pinheiro. Estes ensaístas fazem uma crítica dogmática e descontextualizada, partindo dos estereótipos e clichês mais comuns produzidos pela historiografia da 3ª Inter-nacional Comunista e sua relação com os partidos comunistas dos chamados “países semicoloniais” e “dependentes”, conforme a tipologia do VI Congresso da IC.

Da minha parte, desde os anos 80, venho procurando chamar a atenção para a situação de relativa autonomia da atuação desses partidos, numa época em que a América Latina ainda não tinha despertado o interesse estratégico (para a Revolução Mundial) da

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Internacional Comunista. O que certamente concorreu para formulações políticas mais coladas à circunstância histórico-social dessa região. Nessa linha de investigação, estão José Antonio Segatto, Marco Del Roio, Ricardo Antunes, Dario Canale e, de certa forma, Leandro Konder.

Corrigir o erro de interpretação daqueles que acentuam a hete-ronomia política do PCB, a partir da sua subordinação à IC e ao paradigma dominante da Revolução Democrático-Burguesa não tem sido fácil, sobretudo numa cultura política saturada por um “anticomunismo de esquerda”. É mais fácil e sedutor atribuir os equívocos e insuficiências teóricas ao stalinismo ou ao centra-lismo burocrático da IC, do que fazer a pesquisa empírica do processo de formação ideológica desses primeiros dirigentes comunistas. Mas é isso o que estamos propomos.

A formação ideológica deste primeiro grupo dirigente comunista

Os estudos sobre a história política ou dos movimentos sociais ganharam uma valiosa contribuição com o auxílio da antropologia política ou com a chamada história das mentalidades. O emprego do conceito de “cultura política”, na análise da formação ideoló-gica dos militantes sociais, esta espécie de etnografia política, a partir da “mentalidade” específica de um grupo ou categoria social, nos levou à obra renovadora do marxista italiano Antonio Gramsci e ao seu conceito de “cultura nacional-popular”, baseado numa comparação entre o papel dos jacobinos na Revolução Francesa e o papel protagonizado pelo Partido da Ação, no processo da unifi-cação nacional italiana (Il Rissorgimiento).

A cultura “nacional-popular” seria o cimento ideológico que permitiu a união entre “cidade” e “campo” na França, a aliança entre os jacobinos de Paris e os camponeses franceses. Dessa forma, podemos caracterizar esta mentalidade de antiliberal e repu-blicana, nacional e popular (ou democrática), devendo ser usada como contraponto ao liberalismo oligárquico dominante, sobretudo em países de capitalismo tardio, como é o caso do Brasil.

Quem seriam os jacobinos brasileiros? – A nosso ver, a geração de políticos, publicistas e militantes sociais que se envolveu na causa da Abolição e do Republicanismo no fim do século deze-nove, tão bem discutida e apresentada por Gilberto Freyre em Ordem e Progresso. Avulta nos depoimentos colhidos por Freyre a

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matriz antiliberal, antioligárquica, muito influenciada pelas doutrinas filosóficas da época (monismo, evolucionismo, positi-vismo). Esta matriz seria a porta de entrada do pensamento social brasileiro, em contato com a bagagem ideológica dos imigrantes italianos, espanhóis e portugueses.

Nunca será demais insistir que, no Brasil, a relação entre socialismo-anarquismo-marxismo foi precedida de uma atmosfera intelectual – em parte fruto da II Internacional – onde se entrela-çavam confusamente traços de Positivismo, Evolucionismo e Monismo. E que, sem dúvida, as forças sociais que proclamaram a república brasileira em 1889 se alimentaram fartamente desse “porre ideológico”. Como movimentos pequeno-burgueses por excelência, o Abolicionismo e o Republicanismo encontraram nesse ecletismo doutrinário o conteúdo possível da manifestação do seu jacobinismo político. Daí ter sido a República o berço dos primeiros grupos e partidos socialistas do Brasil. Acrescente-se a isso a circunstância mesma de ter sido o legado da II Interna-cional uma obra de inegável sabor evolucionista que, onde se fez conhecida, foi responsável pela criação de partidos socialistas reformistas e pequeno-burgueses, confundindo-se, nos episódios da luta política, com o jacobinismo mais exaltado. Vem dessa confusão, com certeza, a associação já no século XIX entre Repu-blicanismo e Socialismo no Brasil. Era o segundo o modo de ser do primeiro.

Por sua vez, essa atmosfera intelectual se transferiu da cena política republicana para as cátedras das Faculdades de Direito como um sopro renovador do liberalismo jurídico então predomi-nante. Onde houve renovação, um misto de Positivismo, Evolucio-nismo e Monismo esteve presente, num meio fortemente domi-nado pelo liberalismo ou o catolicismo social. Disso se alimentaram, sem dúvida, os reformistas e revolucionários sociais da Primeira República brasileira: Cristiano Cordeiro, Joaquim Pimenta, Maurício de Lacerda, Astrojildo Pereira, Evaristo de Moraes e outros. Assim, antes de terem sido anarquistas, anarcossindica-listas, socialistas “legalitários” ou “possibilistas” e comunistas, uns e outros foram vítimas desse ecletismo ideológico, tendo suas ações por ele influenciadas até o fim de suas carreiras de mili-tantes políticos e sociais.

Mas este trabalho pretende reconhecer na trajetória individual de cada um dos dirigentes comunistas as influências político-culturais dessa época. Em primeiro lugar na formação de Astro-jildo Pereira, fundador de PCB e seu virtual primeiro secretário-

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geral. Ele nasceu em 1890, na cidade de Rio Bonito, no estado do Rio de Janeiro. Segundo seus biógrafos e contemporâneos, na juventude frequentou cafés e centros culturais dominados pelo jacobinismo radical de um Silva Jardim, um Lopes Trovão etc. Sua família teria apoiado a proclamação republicana e se benefi-ciado do novo regime. Seu pai, um pequeno produtor rural e comerciante, teria se tornado um chefe político da região. Astro-jildo, desde cedo, se desgarraria da influência política familiar e buscaria outros caminhos, até descobrir as primeiras leituras anarquistas. Há o episódio do apoio, na juventude, à campanha civilista encabeçada por Rui Barbosa contra o marechal Hermes da Fonseca. O que faria alguns atribuir a Astrojildo a pecha de “liberal” em oposição ao “militarismo” da Primeira República. Mas este episódio seria muito curto, não só em função da derrota de Rui Barbosa nas eleições presidenciais, mas, sobretudo em face de sua desilusão com o regime político republicano, com a triste sorte que tiveram os marinheiros rebelados, na conhecida Revolta da Chibata. A isso, vir-se-ia acrescentar o fuzilamento do educador espanhol Vicente Ferrer, na Europa, iniciando-se, a partir de então, a sua militância no movimento anarquista até os inícios da década de vinte. Pode-se, então, com segurança, afirmar que a formação ideológica de Astrojildo Pereira é devedora do contexto positivista e republicano e da sua aproximação com a campanha jacobina do republicano radical Lopes Trovão.

A controvertida (e rápida) conversão de Pereira ao credo liberal, por influência da retórica política de Rui Barbosa, como querem alguns, parece não ser muito consistente. Já sua adesão às doutrinas anarquistas e anarcosindicalistas parece ser fruto dessa iniciação republicana e jacobina. Fenômeno que ocorreria com outros militantes sociais na Primeira República.

A outra história de militância exemplar, a este título, seria a do pernambucano Cristiano Cordeiro, que deve a sua formação à Faculdade de Direito do Recife, mas acima de tudo à pregação socialista do professor Joaquim Pimenta, grande doutrinador das ideias monistas, evolucionistas e positivistas da época. (conferir sua autobiografia Retalhos do Passado, bem como sua publicís-tica nos jornais e revistas desse período). Cristiano, que se declarou inicialmente anarquista e viu no Cristianismo os primór-dios dos movimentos socialistas, deve a sua conversão ideológica, primeiro, à sua indignação moral ante a escravidão negra nos engenhos de cana de açúcar, depois, à convivência com operários e líderes sindicais no início da República, particularmente, no

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período chamado de “salvacionismo”, ou seja, a queda da oligar-quia política de Rosa e Silva, em Pernambuco. Este período, que coincide com a campanha civilista dos setores médios urbanos, assinala a emergência do povo e da classe operária na cena polí-tica republicana, com o decidido apoio das massas urbanas à candidatura do general Dantas Barreto. Apoio, aliás, recompen-sado com a indicação de dois líderes operários à Assembleia Esta-dual. A partir daí, inicia-se a militância socialista e anarquista de Cristiano Cordeiro, através de sua assessoria à Federação das Classes Trabalhadoras de Pernambuco, juntamente com o seu mentor intelectual, o professor Joaquim Pimenta.

O terceiro personagem de importância na formação do núcleo dirigente do PCB é o alagoano Octávio Brandão, originário de Viçosa. Certamente, o mais polêmico, controverso e complexo dos três. Embora, tenha sido farmacêutico por profissão, Brandão, desde muito cedo, manifestou um interesse invulgar pelas ciên-cias da natureza, particularmente, geologia e botânica. Foi um pioneiro na prospecção e descoberta de petróleo nos canais e lagoas de seu estado. O que mais chama atenção é a mixórdia de conhecimentos e informações científicas que ajudou à construção de sua visão de mundo, rodeada de um forte misticismo ou roman-tismo revolucionário. Do núcleo dirigente original, é o elaborador mais idiossincrático e prolífero (publicou em vida inúmeras brochuras sobre assuntos variados). A sua autobiografia foi muito prejudicada pelo excesso de vaidade e narcisismo, mas permite reconhecer os traços de sua construção ideológica. Como outros de sua geração, ele se opôs à oligarquia alagoana e seu liberalismo de fachada e participou ativamente das manifestações sociais da época, juntamente com o anarquista Abelardo Canellas, autor de um folheto que descrevia uma experiência pedagógica libertária francesa, chamada “A colmeia” (La ruche). Em consequência, teve de exilar-se em Pernambuco e, depois, no Rio de Janeiro. Na capital do país, entrou em contato com o meio anarquista e passou a colaborar frequentemente com as colunas dos jornais operários e a produzir farta matéria doutrinária, sempre recheada com uma boa dose de misticismo religioso. Dos militantes sociais, foi com certeza o mais heterodoxo de todos. Pois além da mistura muito comum, na época, de ideias filosóficas distintas de matriz antili-beral, seu pensamento apresenta uma visão romântica e lírica da vida e da sociedade. (A propósito, leia-se “Veda do novo mundo”) Não se sabe ao certo, como uma personalidade tão excêntrica e multifacetada foi resultar num ideólogo do comunismo brasileiro, escrevendo a primeira análise marxista-leninista da sociedade

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brasileira – Agrarismo e industrialismo. A guerra de classes no Brasil e a revolta de São Paulo.

A tese principal deste trabalho é que o primeiro grupo diri-gente do PCB foi composto, originalmente, desses militantes sociais. Curiosamente, nenhum de São Paulo, onde a hegemonia das ideias anarquistas e anarcossindicalistas estrangeiras era muito forte. Pode-se, também, aventar a hipótese de que “o civi-lismo das camadas médias paulistas” afastou de princípio toda e qualquer hipótese sobre a existência de uma pequena-burguesia jacobina – vinda do movimento abolicionista e republicano – que ofertasse esse tipo de militante social, apesar do apoio que os anarquistas deram aos revoltosos de 1924 em São Paulo (sobre isto, veja-se: Anarquistas e Comunistas no Brasil, a quarta parte). A ideia é que, em se tratando de regiões periféricas ao desenvolvi-mento do capitalismo no Brasil, o Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagoas e outras unidades da federação terminaram sendo a origem de uma cultura política nacional popular (e jacobina) total-mente estranha à sociedade paulistana. A esse respeito, é muito interessante o trabalho da historiadora carioca Maria Alice Rezende, A fábrica e a política, sugerindo que o modo de vida fabril é uma matriz ressocializadora distinta da do mercado político. Daí a peculiaridade do movimento anarquista em São Paulo, compa-rado às manifestações operárias e socialistas ocorridas noutros estados brasileiro.

A este núcleo inicial agregaram-se outros militantes, como Heitor Ferreira Lima, oriundo de Mato Grosso e alfaiate de profissão, que viria a ter um papel importante na transição desse núcleo diri-gente para outro já controlado ideologicamente pelo movimento comunista internacional. Heitor, que passara quatro anos na Escola Leninista, de Moscou, seria o secretário-geral que condu-ziria a transição para um novo grupo dirigente e uma nova fase da vida do PCB, conhecida por “obreirismo” ou “proletarização”.

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X. Homenagem

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Autores

Marco Aurélio NogueiraCientista político e professor da Universidade Estadual Paulista/Unesp .

Severino FranciscoJornalista e escritor .

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Comunista que soube valorizar a vida e a democracia

Marco Aurélio Nogueira

Com a morte de Armênio Guedes, em 12 de março, foi-se uma parte importante da história da política democrática, da esquerda e das lutas sociais no Brasil.

As gerações mais jovens podem não saber de quem se trata. Armênio morreu aos 96 anos. Viveu, portanto, uma vida longa e plena, conheceu o fundamental do século XX e as primeiras décadas do capitalismo globalizado e informatizado em que nos encontramos. Como comunista militante, experimentou de tudo: conviveu de perto com Luiz Carlos Prestes, um de seus maiores antagonistas, integrou inúmeras formações do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, amargou o exílio, frequentou importantes círculos intelectuais, escreveu muito, dirigiu jornais e revistas na clandestinidade e à luz do dia.

Mas não foi um comunista típico, sempre viveu longe dos este-reótipos que costumam cercar os comunistas: nunca foi dogmá-tico, não se afirmava pela autoridade, não tinha paciência para rituais, reuniões protocolares e rapapés, não vestia a “capa preta” que o folclore comunista atribuía aos dirigentes supremos do partido, não quis ser herói, jamais achou que a revolução pudesse derivar da ação voluntariosa de quem quer que fosse. Negou tudo isso em palavras e atitudes. Nunca deixou a política em segundo plano, mas nunca fez dela, e de suas ideologias, o critério para hierarquizar ou julgar pessoas. A máxima “ou você está comigo ou está contra mim” jamais frequentou seu dicionário.

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Armênio foi comunista a vida inteira, mas foi acima de tudo um democrata que amava a liberdade, o pluralismo, uma boa conversa e um jazz de qualidade. Talvez por isso tenha conquis-tado uma legião de amigos e admiradores. Despertou, claro, ciúmes e invejas, fez alguns adversários e inimigos. Mas serena-mente combateu o bom combate.

Sempre o tive como uma espécie de figura mítica, no sentido que Gramsci atribuiu ao Príncipe de Maquiavel: um personagem ativo, no qual a ideologia política e a ciência política se apresentam não como fria utopia nem como raciocínio doutrinário, mas como uma criação da fantasia concreta que atua sobre a vida para despertar e organizar vontades coletivas.

Mito, também, porque Armênio era aparentemente frágil, discre-tíssimo, quase não falava em público, não se expunha e nem se exibia, não protagonizava grandes embates e apesar disso – ou precisamente por isso – conseguia irradiar enorme confiança e demarcar um território próprio, coisa que, em política e em ambientes partidários, jamais é fácil. Era um desses gigantes cuja estatura não se consegue dimensionar num primeiro relance, que se revela aos poucos, como se seu magnetismo estivesse oculto. Foi um marxista gramsciano, sem que jamais tenha precisado bater no peito para assim se proclamar, um intelectual refratário à verbor-ragia doutrinária, flexível, para quem era mais importante cons-truir consensos e evitar confrontos desnecessários. Opôs-se firme-mente, por exemplo, tanto aos stalinistas dogmáticos que queriam incutir uma “linha política justa” que não interagia com a vida real, quanto aos que, nos anos 1960, imaginaram derrotar a ditadura militar pela via armada. Ajudou a redigir a “Declaração de Março de 1958”, célebre documento que assinalou a primeira tentativa de renovação anti-stalinista do PCB e que iria, nas décadas seguintes, servir de base para o envolvimento dos comunistas com a luta pela democracia e o combate político ao regime de 1964.

Quando o regime militar começava a se extenuar e a anistia política despontava no horizonte, em 1979, Armênio deu uma entrevista ao Jornal do Brasil, ao lado de alguns outros compa-nheiros. O JB fez um caderno especial com o material, editado por seu correspondente na Europa, Araújo Neto. O estrondo que aquele caderno provocou nos ambientes comunistas e de esquerda foi proporcional à erupção de um vulcão. Nunca mais os comu-nistas seriam os mesmos. A iniciativa impulsionou uma extraor-dinária tentativa de renovação do velho Partidão, em cujo centro estaria a luta pela democracia como princípio, meio e fim: como

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valor universal, do qual não se poderia transigir. Nas palavras dele: “Houve um tempo em que nós identificávamos liberdades democráticas com o poder da burguesia. Mas a verdade é que, pouco a pouco, a vida foi-nos mostrando que a democracia é algo importante, permanente, para o avanço da sociedade”.

A renovação do partido não deu certo e anos depois o PCB saiu de cena. Mas a democracia avançou e se consolidou no país. O comunismo democrático, tão bem encarnado por Armênio, não somente deu sua contribuição, como permaneceu fornecendo parâmetros para a ação política, a unidade dos democratas, a construção de consensos, acordos programáticos e entendimentos superiores, a recuperação do valor da política.

Armênio permaneceu ativo depois que o PCB desapareceu. Não chegaria mais a mergulhar em novas epopeias partidárias. Persistiu como um farol de orientação, crítica e agregação, um analista cuidadoso da política, um disseminador de cultura demo-crática, fiel a seu próprio legado.

Armênio Guedes fez da política uma atividade que fluía fácil, que dispensava posições de força ou de poder, argumentos de autoridade e palavras duras. Para ele, “unidade na diversidade” não era um chavão dialético, mas um lema de toda política demo-crática com intenção reformadora, a alavanca do novo pelo qual ele e tantos outros se batiam. Hoje como ontem: um valor universal. Algo indispensável nestes tempos complicados em que estamos.

Armênio teve uma vida plena, tornou-se uma lenda da esquerda comunista. As teses democráticas com as quais se identificou e a que ajudou a dar forma foram essenciais para que o melhor do Brasil viesse à luz. Germinaram no PCB, mas ganharam força fora dele, funcionando como uma espécie de pedagogia reformadora. Hoje, deveriam ser plenamente recuperadas; nos ajudariam a seguir em frente de cabeça erguida e olhos bem abertos.

Armênio Guedes morreu, mas seu exemplo, seu estilo sereno e suas ideias estão aí. Ao nosso alcance.

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Brinde ao cangaceiro do cinema

Severino Francisco

Vladimir Carvalho é um cangaceiro das artes; em vez de um fuzil, ele empunha uma câmera ou uma máquina de es-crever da marca Remington. É capaz de mover montanhas

de empecilhos, animado pela fé invencível nas luzes do cinema. Ele completa hoje 80 anos de idade e merece todas as honras, pois, como disse o compositor Cartola, quem gosta de homenagem depois de morto é estátua. Dos 80 anos de Vladimir, 40 foram dedicados à criação e à consolidação do cinema brasiliense, na condição de cineasta, de professor e de articulador (conceitual e político) do curso de cinema da Universidade de Brasília, matriz de várias gerações de cineastas.

Glauber Rocha escreveu que Vladimir era o Vertov das caatingas; mas ele se transformou no Vertov do Cerrado, depois de 40 anos no Planalto. Trouxe para Brasília o espírito de inquie-tação de uma das nascentes do Cinema Novo, pois participou como assistente de Aruanda, documentário de Linduarte Noronha, em que, pela primeira vez, a luz crua do sertão estouraria na tela sem o filtro das lentes cinematográficas. A experiência inspiraria Glauber Rocha na fotografia de Deus e O Diabo na Terra do Sol e na formulação de uma estética da fome. Também como assistente, Vladimir viveria uma aventura dramática com o documentário Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, interrompido no meio das filmagens, pelo golpe militar e a caçada à equipe do filme no sertão de Pernambuco. Todos tiveram de fugir, dissimu-lados em disfarces e perucas, para escapar ao cerco dos agentes da repressão.

No Rio de Janeiro, Vladimir se enturmou com o pessoal do Cinema Novo. Antes, conversou com Glauber Rocha e, no seu tom tipicamente conspiratório, o cineasta baiano olhou para os lados desconfiado, pôs a mão no ombro do amigo e ordenou: “Pode vir porque nós te daremos cobertura”. E, de fato, no Rio, teve a opor-tunidade de participar de uma experiência crucial: a assistência de direção do documentário Pindorama, de Arnaldo Jabor: “Posso dizer que, com Jabor, vivi o choque benfazejo do cinema-verdade”, conta Vladimir no livro Pedras na lua e pelejas no planalto .

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Antes da passagem pelo Rio, Vladimir morou dois anos na efer-vescente Salvador do período pré-tropicalista para fazer o curso de filosofia na Universidade Federal da Bahia, onde teve, na condição de colegas e amigos, o compositor Caetano Veloso e o ensaísta Carlos Nelson Coutinho. Assistiu aos primeiros shows de Caetano, Tom Zé, Maria Bethânia e Raul Seixas. Até os dias de hoje, sempre que vem fazer show em Brasília, Caetano se encontra com o parai-bano. “Caetano não se preocupava com esse negócio de estudar. Tinha o caderno cheio de letras de música. Ele é um gênio. Quem tinha que se angustiar com isso era eu, um migrante paraibano que precisava do canudo para encontrar um rumo na vida.”

Todas as vezes que ouve o fraseado e a letra de Feira de mangaio, Vladimir Carvalho se transporta, imediatamente, para o cenário e para a atmosfera da cidade de Itabaiana, no interior da Paraíba, onde nasceu. Revê o menino sanfoneiro Sivuca, o autor da música citada, passar na janela da casa, acompanhado de sua família de artesãos de couro, a caminho do mercado. Sivuca tocava na banda organizada pelo pai de Vladimir. O cineasta revive, também, a imagem das boiadas levantando nuvens de pó e percorre as barracas com frutas, bois de barro, carrinhos de lataria e alpercatas.

Se nasceu em Itabaiana, renasceu em Brasília, para onde se mudou no início da década de 1970, depois de participar do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro com o curta-metragem A bolan-deira . A primeira impressão foi de estranheza, a cidade lhe parecia uma paisagem surrealista de Giorgio de Chirico, com suas linhas de fuga cheias de solidão e silêncio. Mas, logo, ele enveredou pelas cidades da periferia e reencontrou o Nordeste vivo no Planalto.

O amor de Vladimir por Brasília não exclui uma contundente visão crítica. Em seus filmes, ele revela o outro lado do cartão-postal e vai na contramão da história oficial. Em Brasília segundo Feldman, reconstituiu o clima dos tempos pioneiros da construção da cidade, envolvida nas nuvens de poeira e na música de martelos, guindastes, serrotes, vigas de aço atritadas e gritos do trabalho dos que erguiam a capital modernista no meio do ermo.

Se o tema é insinuado em Brasília segundo Feldman, no filme seguinte, Conterrâneos Velhos de Guerra, aprofunda, desdobra e explora novas facetas da aventura dos candangos expulsos para a periferia da capital modernista. Barra 68 envereda por uma outra vertente da Brasília inconformista: a repressão violenta ao movi-mento de resistência dos estudantes da Universidade de Brasília, na virada dos anos 1960, depois da eclosão do regime militar. É

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câmara na mão, na marra, revelando uma Brasília rebelde, pouco conhecida do restante do país.

Quando correu a notícia de que Vladimir estava fazendo um filme sobre o rock de Brasília dos anos 1980, muitos levaram um susto: por que o cineasta paraibano se metia com a música eletrifi-cada dos jovens? No entanto, para Vladimir, o rock, nada mais era do que um desdobramento de suas preocupações com a política: “Vladimir deixou evidente que qualquer filme sobre o rock alimenta a mistificação dos rebeldes sem causa”, comenta Sérgio Moriconi. “Ele chutou o balde da indústria cultural e deixou o conteúdo polí-tico nu e cru daquela geração brasiliense que se expressou pelo rock. Sacou um discurso político nas bandas de rock que tinha tudo a ver com Barra 68 e Conterrâneos velhos de Guerra”.

Além de ser o fundador da tradição do documentário socioló-gico e antropológico no Brasil, Vladimir é, também, um inovador no gênero, ressalta Moriconi. E cita como momentos antológicos: a utilização da música de Jota Lins para marcar a batida das pedras em Pedra da riqueza, o fotógrafo Walter Carvalho deste-lhando uma casa para filmar em Quilombro, a recriação do assas-sinato de uma criança em O engenho de Zé Lins: “Ele não faz pose de cineasta experimental, não é hedonista, você precisa ter olhos atentos para perceber as inovações.”

No início dos anos 1960, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes e o cineasta Nelson Pereira dos Santos criaram, na UnB, o primeiro curso de cinema em uma universidade brasileira. A experiência foi implodida com o golpe militar, a invasão do câmpus e a demissão de mais de 200 professores. E, para Sérgio Moriconi, foi Vladimir quem fez o curso de cinema, efetivamente, funcionar, ao retomá-lo no início dos anos 1970, em uma Brasília sitiada pelo regime militar: “Graças à habilidade política de Vladimir, que concebeu os currículos, conseguiu recursos para comprar equipamentos e mobilizou os alunos para produzir filmes. O peso dele é importan-tíssimo no sentido de obter condições culturais, técnicas e polí-ticas para se fazer cinema na cidade”.

Na cruzada em favor de uma cinema candango, Vladimir defendeu, em certo momento, a ideia de que Brasília teria vocação para o documentário. Não é uma cidade dotada de indústrias; os possíveis patrocínios viriam da área institucional para filmes didá-ticos a serem exibidos nas redes de escolas e universidades, calcu-lava Vladimir, no seu estilo veemente e épico: “Esteticamente, as novas gerações fizeram um cinema de ficção, que se contrapôs

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completamente à proposta de Vladimir”, comenta Moriconi. “A dinâmica da cidade, com a criação dos instrumentos para fazer cinema, com os editais e as novas formas de produção, mudou os valores. Essa geração cresce com Renato Russo, não tem mais nada a ver com a nossa geração politizada e utópica dos anos 1960 a 1970. Renato Russo condensa muito bem o ethos das novas gera-ções. O cerceamento político arrefeceu e elas são marcadas pela angústia existencial e não pela política. O José Belmonte é um exemplo. O René Sampaio também. O Adirley Queiroz estaria mais próximo do Vladimir pelo gosto documental, mas é um franco atirador. Se quisermos usar uma imagem, ele seria um Vladimir alucinado e anárquico, pois parte do documentário para a ficção”.

Filho de um Dom Quixote sertanejo comunista e de uma mãe católica fervorosa que levava comida para os pobres e os presos, ele herdou o idealismo social e a compaixão humana militantes. Aos 80 anos, ele continua entusiasmado com o projeto de um docu-mentário sobre o pintor pernambucano Cícero Dias e a exercer uma solidariedade franciscana, pungente, democrática e absoluta.

Depoimentos

“Lembro-me de Vladimir Carvalho, o Rosselini do sertão, Vertov das caatingas, Flaherty de Euclides da Cunha”. / Glauber rocha, cineasta, em Revolução do Cinema Novo (reproduzido no Correio Braziliense, 31/01/2015).

“Sempre tive muita admiração pelo trabalho dele. É muito original, muito autêntico. Ele dialoga com o documentário antropológico, com Jean Rouch, e dialoga com o documentário brasileiro, investigativo e social (...) A obra do Vladmir é como os bons vinhos, vai melhorando com o tempo. Coisa de mestre”. / renato barbieri, documentarista, diretor de Atlântico Negro – Na rota dos orixás (1998) e Bianchetti (2010).

“Conheci o Vladimir vendo Conterrâneos velhos de guerra, (...) Tenho uma admiração muito grande por ele. Às vezes, quando bate um desâ-nimo, uma vontade de desistir das coisas tão difíceis, eu me lembro do Vladimir e me animo novamente”. / iberê carvalho, cineasta, diretor de O último Cine Drive-In e Para pedir perdão.

“Vladimir representa a figura emblemática de uma luta política que permitiu o surgimento de uma produção local para muitos, como professor, realizador e pensador de cinema”. / José eduardo belmonte, cineasta, diretor de Alemão e Se nada mais der certo.

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XI. Resenha

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Autores

Adelson Vidal AlvesHistoriador, pós-graduado em História Contemporânea e professor de História .

Luiz Eduardo SoaresAntropólogo, professor de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ex-secretário nacional de Segurança Pública .

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O golpe, as armas e a política

Adelson Vidal Alves

A rememoração do Golpe de 64, que completou 50 anos no último ano, produziu intensa movimentação editorial no país. O livro aqui examinado é um destes esforços biblio-

gráficos. O trabalho, essencialmente, reúne o olhar das forças democráticas sobre o golpe e também sobre todo o percurso do regime que sentenciou o Brasil a 21 anos de restrições às liberda-des civis e políticas. Os mais de 30 artigos abordam, com relativa desigualdade, o comportamento das esquerdas e das forças opo-sicionistas durante o regime, assim como a antessala da chegada dos generais ao poder. Mais que isso, também apresentam a re-flexão da atuação e articulação de vários atores sociais e políticos que compuseram a arena política do período ditatorial brasileiro. Reflexão essa que nos faz compreender o desenvolvimento teórico destes atores e sua aplicação, correta ou equivocada, no desenho do destino final do governo dos generais.

A obra, ainda, nos obriga ao registro de um elogio especial destinado à Fundação Astrojildo Pereira por seu esforço persis-tente em manter de pé ações que honram a luta, histórica ou atual, das forças progressistas comprometidas com a democracia e suas instituições. Deve-se registrar, porém, que não foi possível resenhar o livro em sua totalidade de artigos. Houve a opção de escolher 8 dos 31 trabalhos, que entendi como a essência da mensagem, sem, no entanto, mostrar qualquer desprezo pelos outros trabalhos, que podem e devem receber atenção em outros artigos ou resenhas.

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Iniciemos, então, pelo texto de Roberto Freire, deputado e presidente nacional do PPS. Freire, homem de convicções demo-cráticas, nos traz uma bela narrativa de sua trajetória pessoal, o que enriquece seu artigo com detalhes preciosos de sua memória. O levante de 1935 e outras opções do PCB são trazidos à tona como erros históricos, no julgamento do autor. Ele registra a reno-vação do partidão a partir de 1956/1958, sobretudo com a famosa Declaração de Março, que colocou o partido nos rumos de uma política ampla e democrática, na certeza da necessidade de afirmar o caminho pacífico até o socialismo. Nem mesmo a supervalori-zação do PCB na derrota da ditadura foi capaz de arranhar o brilho do artigo.

Seguindo, temos o trabalho de Luiz Sérgio Henriques, editor do site Gramsci e o Brasil e organizador das obras do comunista italiano em português. Com sua costumeira escrita refinada, Luiz Sérgio aborda a problemática de frente democrática. Inicia tratando do caráter da ditadura brasileira. A despeito de avalia-ções simplistas, que dão a ela a roupagem reacionária e até fascista, Henriques recupera a lúcida compreensão de que, por aqui, não se repetiram as experiências de alguns golpes que triun-faram na América Latina. Prevaleceu o processo de modernização, ainda que pelo alto e com congelamento das atividades políticas da sociedade civil. Vem ainda o alerta para aqueles que se propõem compreender os caminhos do PCB sem perceber os momentos tensos de ilegalidade. O autor também traz a avaliação quanto a “passagem de bastão” entre as esquerdas (PCB-PT), no que diz respeito ao protagonismo nacional, sem, no entanto, deixar de fazer críticas aos governos petistas, que, aproveitando-se das conquistas da democratização, não foram capazes de assimilar a importância das vitórias que trouxeram a institucionalidade inau-gurada com a Carta de 1988.

O sociólogo José Antonio Segatto dá atenção especial aos acontecimentos que antecederam o fatídico 31 de março de 1964. Elogia os tempos de Jango, tratados pelo autor como auge da experiência democrática, na qual foi possível a emergência de vários setores das classes subalternas como força organizada no cenário político. Destaque para os camponeses e seus sindicatos rurais, que foram capazes de conquistar o Estatuto da Terra, depois de serem deixados de lados no processo de revolução passiva em 1930, quando o Brasil muda seu eixo agrário-expor-tador e ingressa na industrialização.

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A abordagem de Segatto também faz menção aos momentos históricos brasileiros em que a democracia fora ameaçada por golpes: 1954 contra Getúlio; 1955 contra Juscelino Kubitschek; e 1961, quando se tentou impedir a posse de João Goulart. São lembranças que nos ajudam a compreender a marca do golpismo presente em nossas elites, mas que também alcançou as esquerdas. Lembra bem o autor as várias tentativas de promoção das reformas de base de cima para baixo, inclusive com fecha-mento do Congresso, como defendeu Leonel Brizola, o mais afoito das lideranças esquerdistas.

Finalizando seu artigo, o professor da Unesp traz à tona outro emblemático episódio: o Plano Trienal. O plano foi construído por Celso Furtado e San Tiago Dantas, numa tentativa de reorganizar a economia nacional. Com os ânimos acirrados, a direita acusou o plano de nacionalista e estatista e a esquerda acusou o governo de sacrificar os trabalhadores. Com o clima tenso e o presidente no meio de várias pressões, ficou difícil sustentar a democracia.

O jornalista Luiz Carlos Azedo faz, em seu curto artigo, uma colocação incômoda para muitos da esquerda. Isto porque, como lembra o autor, os tempos atuais, com Comissões de Verdade e mandatos presidenciais sucessivos de dois resistentes da dita-dura (sendo um deles guerrilheira), costumam dar glamour à luta armada no regime militar. A posição de Azedo ressalta a hege-monia dos liberais no processo de redemocratização, tendo Ulisses Guimarães, o MDB e o PMDB como principais protagonistas.

A transição para a democracia contou com o olhar moderado e equilibrado das forças liberais e de centro, enquanto a esquerda persistia em seu sectarismo. Difícil não lembrar que as esquerdas torceram o nariz para a candidatura de Tancredo Neves no Colégio eleitoral. O PT chegou a expulsar quatro parlamentares que votaram no habilidoso político mineiro. O Partido dos Trabalha-dores voltaria a repetir seu sectarismo na construção da nova Constituição quando votou contra da tribuna, chamando a nova Carta de “vagabunda”.

A discussão quanto à velha questão sobre o que de fato acon-teceu em 1964 (golpe ou revolução?) ganhou a atenção de Ivan Alves Filho. O autor alerta para o caráter deste tipo de debate, sempre exposto a visões subjetivas e apaixonadas, haja vista a proximidade do objeto histórico em questão. Mesmo assim, Ivan Alves delimitou a diferença entre golpe e revolução, lembrando que o primeiro é tão somente a usurpação do poder por um grupo

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que geralmente mantém intacta as estruturas sociais, enquanto uma revolução promove mudanças profundas com distribuição de renda. 1964 seria, ainda, segundo o autor, o resultado de conflitos entre atores sociais de cima e de baixo, mas também uma cisão nas classes dominantes.

Com Luiz Werneck Vianna, um dos grandes intérpretes do Brasil, o golpe recebe comparações com um outro tempo brasi-leiro: o Estado Novo. Para o autor, trata-se de dois momentos modernizantes e autoritários do país, que lançaram bases de nossa ida à modernidade, sufocando, porém, a atuação livre dos atores sociais. O sociólogo elenca semelhanças, mas também dife-renças, sobretudo ao identificar 1937 com o estilo europeu, parti-cularmente italiano, e 1964 com o modelo americano. Finaliza identificando as consequências sociais do regime, promotor de desigualdades e exclusão, e chamando a responsabilidade para a recuperação da democracia política.

Por fim, chegamos aos dois últimos artigos propostos nesta resenha, escritos pelo cientista político Marco Aurélio Nogueira e pelo historiador Alberto Aggio.

Nogueira traz a reflexão necessária sobre a história e seus desdobramentos: a relação entre passado, presente e futuro. Isto porque nada começa do zero, o que aconteceu ontem influencia hoje e nos dá elementos para construir o amanhã. Olhando por esta perspectiva, Marco Aurélio nos propõe, mais que simples-mente entender 1964, tirar dele lições que nos vacinem contra novos golpes que possam interromper a caminhada cívica e demo-crática na qual sonham trilhar todos os cidadãos de bem. Para isso, faz-se necessária uma reflexão cientifica, entendendo motivos, significados e legados que os 21 anos de ditadura militar deixaram para o Brasil.

O sociólogo ainda faz críticas duras a partidos e políticos de hoje, que ainda não conseguiram compreender verdadeiramente a necessidade de analisar o tempo dos generais e agir para que as novas gerações vejam nele um exemplo do que não pode ser nosso país. Como afirma Nogueira, o golpe não foi inevitável, mas fruto de ações dos homens, com seus erros e cegueiras. Conseguiu apoio até mesmo entre as massas, não sendo assim um simples golpe das elites reacionárias. Repensar 1964 seria a forma peda-gógica permanente para seguirmos convencidos da necessidade de consolidar a democracia.

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Alberto Aggio, historiador e especialista em América Latina, nos apresenta uma competente comparação entre o golpe brasileiro e o golpe chileno, o golpe que destituiu João Goulart e o que destituiu Salvador Allende. O artigo é cheio de detalhes dos dois aconteci-mentos, seja para mostrar semelhanças, como a presença dos EUA e a redemocratização pactuada, seja para acentuar as diferenças, como a ênfase neoliberal da ditadura chilena, que praticamente foi precursora dos neoliberalismos de Tatcher e Reagan.

A ditadura chilena trouxe sequelas mais longas, devido à repressão e à violência de Pinochet, o ditador que foi a personali-zação dos anos de chumbo de nosso vizinho sul-americano. Foram golpes que não aconteceram simultaneamente, motivo pelo qual Aggio mostra com habilidade a particularidade de cada um, apre-sentando ao leitor uma abordagem rara de acontecimentos distintos, mas que nos soam tão próximos.

O livro não chega a fazer uma revolução historiográfica, mas traz detalhes e olhares minuciosos sobre aspectos que podem passar despercebidos em outras abordagens. Visto do ângulo das forças democráticas, vai além de uma simples coleção de artigos de combate aos males da ditadura, constituindo reflexões maduras de pesquisadores sérios e comprometidos com os valores democráticos.

Não foi possível, como dito anteriormente, abordar todos os textos. Ficaram de fora escritos preciosos como o de Armênio Guedes. Porém, acredito ter sido possível um primeiro conheci-mento da obra, que ainda traz documentos e artigos históricos do PCB e alguns de seus militantes mais destacados. Mesmo guardando certa semelhança nas teses centrais sobre o objeto histórico, trata-se, sem dúvida, de uma contribuição preciosa para quem quer conhecer os anos de chumbo sem os heroísmos e fatalismos que a moda acadêmica e jornalística pode apre-sentar em nossos dias.

Sobre a obra: 1964: as armas da política e a ilusão armada. Caetano Pereira de Araújo (Org.). Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2014. 505p.

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Bravura cívica

Luiz Eduardo Soares

Cada um de nós tem suas admirações particulares. Rober-to Saviano é um dos meus herois, desde que li Gomorra e soube de sua saga pessoal. Agora, em ZeroZeroZero, seu

livro mais recente, ele foi ainda mais longe. Saviano atua em um gênero que pinça o nervo de nosso tempo: convencionou-se deno-miná-lo jornalismo literário. Para os céticos, esse título significa nem literatura, nem jornalismo. Uma espécie de dupla traição: à autonomia estética do discurso literário e à objetividade neutra do jornalismo, supostamente desapaixonado, livre da força po-ética das palavras e refratário à imaginação. Prefiro virar esses argumentos pelo avesso: sem o encantamento da linguagem, que requer ourivesaria estética, os relatos, por mais comprometidos que fossem com a descrição fiel da experiência, perderiam a voz, consumidos numa aridez opaca. Sem o toque da imaginação, o que seria das narrativas? Sem fantasia, o que seria do realismo? Sem a arquitetura formal que dá à literatura a dignidade da arte, o que seria da verossimilhança documental? Sem afeto, sedução, empatia e compaixão, como celebrar o pacto da objetividade com o leitor? E sem o cascalho do cotidiano, e seus odores, o que se-ria da ficção? Além disso, Saviano é um desses exemplos raros e comoventes de bravura cívica que o cinismo militante da opinião pública costuma recusar-se a reconhecer, depois de uma salva de palmas protocolar n’alguma premiação para apaziguar nossa consciência. Afinal, reconhecer suas opções, sua trajetória e os riscos que alguém assim aceita correr em nome do que um dia chamamos “bem comum” nos envolveria a todos, nos mobiliza-ria, nos obrigaria moralmente a dar-lhe as mãos, chamá-lo irmão, abrir-lhe nossas casas, engajando-nos na mesma cruzada cidadã. Melhor tocar a vida. Já são muitos os nossos problemas privados. Vamos então à obra.

ZeroZeroZero, de Roberto Saviano, é um grande livro cuja leitura será indispensável para quem tiver coragem de olhar nos olhos a barbárie contemporânea e de repensar o que supomos saber sobre nosso tempo – e talvez sobre nós mesmos. Parece exagero? Explico meu entusiasmo. Os grandes livros, em minha opinião, são os que nos transformam, incidindo sobre a visão de

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mundo e os sentimentos dos leitores. Iria mais longe: são aqueles que também transformaram seus autores.

Impacto dessa magnitude existe quando se lê Gomorra, a obra sobre máfias italianas que tornou seu autor mundialmente conhe-cido e respeitado – menos pelos criminosos, que reagiram fazendo de sua vida um inferno, obrigando-o a exilar-se e a cercar-se de escolta, dia e noite. Esse mesmo efeito transformador, em voltagem ainda mais intensa, é provocado por seu livro mais recente, que a Companhia das Letras acaba de lançar no Brasil, em excelente tradução. Entre os dois, Roberto Saviano explorou o universo lite-rário, dialogando de outra forma com seus fantasmas. Em Zeroze-rozero, apelido da cocaína pura, Saviano deixa a ficção de lado, mergulha no osso do real, e retoma o fio da meada maldita, seguindo o rastro de sangue e pólvora mundo afora, identificando os vestígios da crueldade mais assombrosa e desnudando o processo econômico e político que fez da cocaína o segundo negócio mais lucrativo do planeta, abaixo apenas do petróleo.

“Ah! Eu sei, eu sei, mais um livro sobre drogas e violência, dinheiro sujo, corrupção, essas coisas...”, talvez você resmungue, atribuindo à obra de Saviano a redundância que há tempos o afastaram das tediosas páginas policiais dos jornais, que lhe servem a ração diária de miséria humana. Mas antes que você desista desta resenha e do livro, pergunto-lhe o seguinte: você estaria disposto a suspender sua crença de que as práticas comer-ciais ilegais de substâncias ilícitas constituem apenas o lado B da economia global, uma espécie de margem ou sombra da qual não há como livrar-se inteiramente, mas que não participa das deci-sões que defninem nosso destino coletivo? E se eu lhe disser que não é assim que as coisas funcionam, que o lado B já se fundiu ao lado A, e que o poder que a margem mobiliza anula essa topo-grafia antiquada e ingênua? E se eu lhe afirmar que suas noções de Estado, soberania, justiça, legitimidade democrática, mono-pólio do uso da força, instituições da ordem e valores republi-canos talvez precisem de um banho de realidade, um mergulho no ácido da evidência que as deformará?

Pronto, agora que conquistei sua atenção e suspendi sua expectativa a respeito do que provavelmente seria um livro sobre cocaína e suas tramas transnacionais, compartilho com você alguns dados que abalam qualquer pessoa sensata e inteligente. Em 2009, como sabemos, o mundo entrou em colapso. As dívidas eram negociadas em fluxo contínuo e a moeda eram outras dívidas, numa cadeia infinita, cuja confiabilidade residia no suposto poder

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inabalável das instituições financeiras. Pois a hora da verdade chegou: não havia terra firme sob as vaporosas expectativas de pagamento. A bolha revelou-se o que era, e desmanchou no ar. Ou o governo americano (e logo os demais) emitia moeda e traía o dogma do livre mercado, ou outras torres tombariam: os bancos quebrariam, drenando para o ralo a economia global. O buraco inicial representava algo em torno de U$ 1 trilhão. Naquele momento, só um setor da economia continuava a girar sem problema de liquidez: o tráfico de cocaína, que lavou de imediato 352 bilhões de dólares, injetando-os nas instituições financeiras desidratadas. Cerca de um terço da liquidez mundial era dinheiro sujo de sangue. A crise demonstrou a pujança da cocaína e a vulnerabilidade do capitalismo financeiro desregulado.

São produzidas, anualmente, entre 788 e 1060 toneladas de cocaína, segundo dados do World Drug Report, de 2012. A maior fonte de exportação continua sendo a Colômbia, responsável por cerca de 60% da coca que circula no mundo, a despeito do desman-telamento dos cartéis de Medellin e Cali, e também das Farc, que se tornaram agentes do narcotráfico. A política de erradicação das plantações aplicada por sucessivos governos colombianos, em aliança com os EUA, solapou as bases tradicionais da economia camponesa e devastou o meio ambiente, o que promoveu a dispersão de comunidades rurais e o fracionamento da produção, tornando os pequenos produtores mais vulneráveis aos barões da droga, os quais intensificaram a exploração, investiram nas inter-mediacões e elevaram a margem de lucro. O resultado tem sido o êxito de centenas de micro-cartéis e o fortalecimento de um deles, o Norte del Vale. A crise colombiana não eliminou a produção, mas deslocou as disputas por mediações comerciais para o México, onde mais de 70 mil pessoas já foram assassinadas na guerra interna ao narcotráfico. Aproximadamente 20 milhões de cida-dãos cruzam todo ano os três mil quilômetros de fronteiras que separam o país dos Estados Unidos, principal consumidor. Impos-sível conter os fluxos que se adaptam a todas as circunstâncias e driblam as tentativas de controle.

A situação do México é particularmente dramática, porque a proliferação de grupos criminosos ampliou e agravou a disputa por domínio territorial, que corresponde ao poder sobre canais de exportação para o formidável mercado norteamericano. A partir de determinado ponto, o dinheiro não é mais contado, mas pesado, e se desloca com tanta rapidez e facilidade que as narcomáfias mexi-canas não têm tido dificuldade em recrutar mercenários e cooptar

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militares, policiais e políticos, ou em armar-se com tecnologia sofis-ticada e equipamentos de última geração. Essa, aliás, é a marca que se generaliza no universo da cocaína: grana e armas, poder para corromper, chantagear e matar. Em meados dos anos 1980, Pablo Escobar, líder do cartel de Medellin, lucrava meio milhão de dólares por dia. O capo foi morto, seu cartel liquidado, mas os negócios só prosperaram, em escala global, envolvendo empreende-dores das mais distintas nacionalidades e organizações criminosas de todos os continentes.

Entre 2005 e 2007, a Marinha colombiana apreendeu 18 submarinos, identificou 30 e estimou que outros 100 estivessem em operação, transportando a droga pela costa do Pacífico até a California. O narcotráfico transnacional já acumulou capacidade técnica, acesso a componentes e capital suficientes para produzir seus próprios submarinos, muitos dos quais em fibra de vidro. Seu arsenal inclui helicópteros M18, do exército soviético, aero-naves mais novas, aviões de todas as dimensões, inclusive boeings, e embarcações dos mais variados tipos.

Falamos em armas e guerras com a superficialidade dos que não as vivenciam, diretamente, ainda que no Rio de Janeiro esta seja uma experiência diária para muita gente. A narrativa forte de Saviano não admite a indiferença e o tom blasé. O autor nos leva pela mão aos mais variados cenários da tortura perpetrada por narcotraficantes em todo o mundo, ao longo do livro. Faz questão de nos conduzir aos escombros da modernidade, o outro lado da moeda, a face perversa da economia civilizadora: a crueldade extrema. O leitor talvez tente virar os olhos, como eu fiz tantas vezes, mas há ali, em cada capítulo, uma espécie de imperativo ético que nos impele a não abandonar a vítima, a acompanhar o relato com os olhos bem abertos. As cenas se prolongam além da leitura, eu lhe asseguro. A crueldade não é regida pelo cálculo utilitário ou pelas paixões ordinárias. Há algo mais, ou menos, um excesso, ou uma falta. Não se trata de atavismo animal ou apego à natureza selvagem. Os animais matam para sobreviver. O universo selvagem busca a vida, e por isso elimina o concor-rente que ameaça. Não se compraz com a dor alheia. A crueldade é código exclusivamente humano.

Saviano nesse ponto nos dá uma lição preciosa: não procurem na natureza humana essa brutalidade assombrosa. Ela se ensina e se aprende. Por isso, o crime organizado em todo o mundo, das máfias ao terrorismo, quando adota a violência como linguagem, inventa assinaturas em seus assassinatos, disputa com grupos

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rivais a intensidade dos tormentos a que submete suas vítimas e se mede pela habilidade em transformar seu poder em dor, medo e humilhação. Na verdade, os grupos imitam-se uns aos outros para diferenciar-se e quão mais se esforçam por distinguir-se e afirmar suas marcas singulares, mais se constituem em espelhos de seus inimigos. Esta a lógica mimética e paradoxal que rege a cultura da violência. A intensificação da brutalidade é o reconhecimento prático da própria impotência: gira-se em falso e a energia deposita-se no mesmo, por isso só resta elevar a voltagem até o limite da própria força, atestando sua subordinação à órbita do outro – do qual procurava afastar-se e distinguir-se para o suplantar.

E o Brasil com isso? Nosso país é o segundo maior consumidor mundial, atrás apenas dos Estados Unidos. Passam por aqui, anualmente, entre 80 e 110 toneladas de pó. Metade cheira-se aqui mesmo – estima-se em 2,8 milhões o número de consumi-dores brasileiros. O resto segue para a Europa e outros destinos. O aumento do consumo de cocaína verificado na sociedade brasi-leira tem as mesmas causas do crescimento das vendas de auto-móveis, cosméticos, pacotes turísticos, cerveja, carne, smart-phones e viagra: a elevação da renda média. O mercado europeu também tem crescido bastante, ainda que por lá, de um modo geral, a situação econômica não favoreça a elevação do consumo. Este o paradoxal milagre dessa mercadoria única: ela dá lucro quando tudo vai bem, porque, afinal, tudo vai bem, e há mais dinheiro para saciar os desejos individuais. E ela vai bem quando tudo vai mal, porque ninguém é de ferro e é preciso turbinar o ânimo para compensar o baixo-astral ambiente e enfrentar mais horas de trabalho ou mais tempo ocioso – e angustiante, depri-mente. Observe que não se paga um papelote de cocaína a prazo, com cheque ou cartão de crédito. Essa economia gira velozmente porque seu combustível é a liquidez imediata e sempre disponível. Se a demanda aumenta, nenhum problema: a oferta é elástica. Um quilo pode facilmente converter-se em dois ou três ou quatro. A mágica está na mistura.

Cheira-se pouquíssima cocaína no pó que se inala em Londres, Nova York, Paris, Moscou, Roma, Rio ou São Paulo. Salvo nos salões abastados, que recebem o petróleo branco em condições especiais, e pagam por isso. A pureza média da cocaína na Europa varia entre 25% e 43%. Em minha pesquisa pessoal, da qual resultou o livro, Tudo ou nada: a história do brasileiro preso em Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína (Nova Fronteira, 2012), constatei que a coca sai da Amazônia

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colombiana com 85% de pureza (não pode ser 100% porque é necessária a adição de produtos químicos para proteger a coca da umidade e dos efeitos de algumas condições extremas) e é vendida no varejo, na Inglaterra, com apenas 15% de pureza. Ou seja, o ganho é de 600%, considerando-se o preço da mercadoria no atacado, adquirida na matriz. Claro que há os custos do trans-porte, da corrupção de agentes, a taxa média de perda etc. Ainda assim, a margem de lucro é considerável. Registre-se que a saúde dos consumidores abusivos é afetada muito mais pelos compo-nentes misturados à coca do que pela própria substância que dá nome à mercadoria.

Em todo lugar, o consumo de cocaína democratizou-se. Enquanto as Américas ficam com 450 toneladas a cada ano, a Europa consome 300 toneladas, anualmente. 13 milhões de euro-peus já usaram a droga, 7,5 milhões entre 15 e 34 anos. No Reino Unido, o número de usuários quadruplicou, na última década. Na França, dobrou, entre 2002 e 2006. Estima-se que entre 20% e 30% da produção de cocaína pura destinam-se ao mercado europeu.

As multinacionais da cocaína ramificaram-se por todas as regiões, aproveitando cada oportunidade para explorar a demanda potencial e imiscuir-se nas redes políticas, sociais e econômicas institucionalizadas. A promiscuidade com o mundo legal é seu método de autoproteção, torna-se tática de reprodução e fortaleci-mento, até converter-se em sua própria natureza, porque, a partir de determinado ponto, não é mais possível distinguir os elos legais dos ilegais, as dinâmicas lícitas das criminosas. Os narcoempresá-rios cercam-se de PhDs, gestores tarimbados que trabalham com metas e esquemas meritocráticos, operadores financeiros de primeira qualidade, sócios bem situados na arena transnacional, conselheiros econômicos e políticos refinados, com trânsito irres-trito no universo empresarial, jurídico-político e na grande mídia. O capital errante lava-se na aquisição de hotéis, restaurantes, redes de supermercados e shopping centers, revendedoras de auto-móveis, instituições financeiras e indústrias, ou associando-se a empreiteiras e megaempreendimentos, inclusive nas áreas de energia, em especial petróleo e gás.

No passado, o pó corria atrás do dinheiro, dos circuitos do capital para parasitá-lo e fertilizar a fortuna dos cartéis, ainda insulados e territorialmente circunscritos, falando sobretudo espa-nhol. Hoje, são os mercados que buscam atrair a fortuna dos cartéis e acercar-se dos narconegócios, falando todas as línguas da babel capitalista. Agora, é o dinheiro que gravita em torno do pó. Décadas

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atrás, o narcotráfico precisava de paraísos fiscais para lavar seus lucros milionários. Hoje, Nova York e Londres, Wall Street e a City são as grandes lavanderias globais, e os lucros são bilionários. O sistema bancário na matriz do capitalismo já deu mostras de que não tem grande interesse em investigar a origem de depósitos, transferências, trocas de papéis e títulos, dívidas e créditos em fluxos financeiros das mais diversas modalidades. Mesmo quando essa identificação, digamos, arqueológica é viável, hipótese cada vez menos provável. A análise de Saviano é penetrante e conclu-siva. Não autoriza ilusões.

O exemplo russo talvez seja o mais eloquente e dramático. Enquanto a União Soviética agonizava, máfias preparavam-se para o dia seguinte. Grupos criminosos durante muito tempo abasteceram a dispensa dos membros da Nomenklatura com o contrabando de todo tipo de produto e saciaram o apetite gene-ralizado na população por mercadorias ocidentais inacessíveis. Essa prática duradoura lhes permitiu acumular contatos estra-tégicos na alta hierarquia do partido comunista e informações confidenciais comprometedoras sobre funcionários poderosos. Contatos e informações, naqueles tempos sombrios, valiam mais que rublos decadentes.

Quando o muro finalmente ruiu e a União Soviética desmembrou-se, os empreendedores mafiosos estavam prontos para agir. A riqueza estatal foi rapidamente apropriada por lobos vorazes que monopolizavam o conhecimento relativo a processos decisórios, modos de operação, quais atores estariam dispostos a assumir iniciativa e que regras do jogo seriam aplicadas. Assim, agentes empreendedores da Nomenklatura em aliança com máfias locais herdaram parte expressiva do patrimônio estatal soviético e legaram à etapa capitalista que se instalava um padrão violento e despudoradamente refratário aos princípios supostamente equi-tativos do mercado. O negócio da cocaína, que já era próspero no período anterior, mostrou-se extraordinariamente promissor. Não por acaso articulou-se com empreendimentos bilionários nas áreas de petróleo e gás. Tal promiscuidade chegou a constituir-se no eixo de conflitos entre Rússia, Ucrânia e Europa, relativos à distribuição de gás, cuja importância é vital para os países euro-peus. Tampouco é arbitrário o fato de que um agente chave nessa rede estratégica, o mega mafioso Mogilevich, antes de ser desmas-carado tenha assumido o controle de um banco russo de prestígio internacional, o Inkombank, entre 1994 e 1998. Sua rede de contas envolvia o Bank of New York, o Bank of China, o suiço UBS

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e o Deutsche Bank. Outras histórias estão em curso, furando bloqueios e contando com parcerias insuspeitadas.

Reitero o ponto: dadas a magnitude, a escala e a complexidade dos fluxos financeiros provenientes do narcotráfico, tornou-se impossível separar o joio do trigo, mesmo quando há interesse em fazê-lo por parte de agentes financeiros, policiais, jurídicos e polí-ticos. A dinâmica do capitalismo financeiro globalizado e a agili-dade dos narconegócios, turbinados pela instantânea liquidez de suas operações, gestaram um novelo inextricável. Quão mais desenvolver-se a economia, mais se potencializará o narcotráfico, seja na ponta do consumo, seja por sua articulação orgânica com a economia legal. Na escala multibilionária dos mercados globais, a diferença legal-ilegal foi condenada à obsolescência, o que nos deixa diante de um dilema do tamanho do planeta: ou legalizamos as drogas e purgamos o veneno letal que infecciona e intoxica governos, instituições e sociedades, ou vamos continuar pavimentando o caminho para a destruição de governos, instituições e sociedades, crescentemente destroçados pela corrupção e a violência.

Sobre a obra: ZeroZeroZero, de Roberto Saviano. Tradução de Frederico Carotti, Marcello Lino e Maurício Santana Dias, Compa-nhia das Letras, 2014. 408p.

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