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    ESTUDOS FEMINISTAS 399 2/2002

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    PPPPPARTOARTOARTOARTOARTOMARIA LUCIA MOTT

    Centro Universitrio Adventista

    Apesar de as mulheres darem luz desde o incio dos tempos e de seu corpo estarprogramado para a reproduo da espcie, as prticas e os costumes que envolvem o

    nascimento e o parto tm variado ao longo do tempo e nas diferentes culturas. Comoescreveu o historiador francs Jacques Glis, o nascimento no se restringe a um atofisiolgico, mas testemunha por uma sociedade, naquilo que ela tem de melhor e de pior.

    Essa viso do parto como um evento cultural seja realizado entre tribos ditasprimitivas, seja em uma maternidade de ponta em uma cidade de Primeiro Mundo recente. Com a crescente medicalizao do parto no final do sculo XIX e por quase umsculo, o nascimento interessou basicamente aos mdicos, que foram por muito tempo osseus principais porta-vozes. Nos ltimos 40 anos, porm, profissionais de diferentes reas,sobretudo pesquisadoras que incorporaram a reflexo feminista, trouxeram uma importantecontribuio, no apenas na rea acadmica, mas tambm na da assistncia.

    O principal objetivo deste Dossi trazer para primeiro plano trabalhoscomprometidos com um olhar renovado sobre a assistncia ao parto, tema cujo debatese faz necessrio, no importando sob qual ngulo se observe, seja o das gestantes, dasparturientes e dos recm-nascidos, seja aquele dos profissionais envolvidos, como os doslocais de atendimento. O Dossi visa tambm a desencadear discusses e levantar novosproblemas, e espera-se, portanto, que as pginas dos prximos nmeros da Revista possamdar seqncia ao trabalho aqui iniciado.

    Os trs primeiros artigos referem-se s mudanas no papel das parteiras em ummomento crucial da histria da assistncia ao parto, quando comea a se verificar umcrescente envolvimento dos mdicos na cena do parto, a condenao das prticastradicionais e a exigncia de uma formao e um diploma para o exerccio profissional

    das parteiras. Embora a medicalizao do parto e a perda de poder das parteiras seja umtema muito discutido na historiografia internacional, os artigos apontam para assingularidades e a impossibilidade de se fazer uma leitura linear desse processo. Essapassagem no foi semelhante em todos os lugares, nem significou a perda imediata daimportncia e do poder das parteiras, fossem elas tradicionais, fossem formadas segundoo modelo biomdico.

    Na Maternidade Port-Royal de Paris, no sculo XIX, conforme o trabalho de ScarletBeauvalet-Boutouyrie, asparteiras-chefes continuaram tendo primazia. Contrariamente aoque ocorria na maioria dos hospitais e maternidades francesas e europias, onde os mdicoseram empossados como chefes de maternidades, naquela instituio as parteiras

    mantiveram sua ascendncia sobre os parteiros, controlando os partos e sendo responsveis

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    MARIA LUCIA MOTT

    ANO 10 400 2 SEMESTRE 2002

    pela formao de parteiras. Ao longo do sculo, foram diretoras do estabelecimento e sefirmaram como verdadeiros cirurgies, fazendo operaes e usando instrumentos, comoo frceps, apesar de proibidos por lei.

    No Japo, o processo tambm no foi simples nem linear. A leitura que Aya Homeifaz da histria das parteiras no sculo XIX destaca essa complexidade. As parteiras formadase diplomadas por mdicos se colocaram como agentes da medicalizao e receberamapoio de diferentes grupos, entre eles as autoridades da higiene, interessadas na introduodos princpios de assepsia no Japo. Porm, a substituio das parteiras tradicionais pelasmedicalizadas no foi imediata: no s coexistiram por muito tempo, como, em algumasregies, as parteiras diplomadas acabaram fazendo treinamento com as desqualificadasparteiras tradicionais, seja pela falta de lugar para a prtica obsttrica, seja para teracesso a uma clientela fiel e resistente s novas tcnicas.

    Franoise Thbaud discute a medicalizao do parto e da maternidade na Frana,no perodo entre as duas guerras (1919-1939), quando vrias medidas foram tomadas emvista do decrscimo de nascimentos. Foi, ento, elaborada uma agenda natalista, com o

    objetivo de salvar as mes e, sobretudo, as crianas. Ao lado de mudanas nas polticassociais (como o seguro-maternidade) foram programadas reformas sanitrias visando adiminuir a mortalidade materna e a infantil, destacando-se entre elas a remodelao e aampliao dos servios nas maternidades, a transferncia dos partos no domiclio para asmaternidades e a criao de uma srie de outros servios que iam desde o pr-natal ato desmame. Se tais medidas tiveram repercusso na vida das parturientes e dos bebs,tambm refletiram na situao profissional das parteiras, que viram seu campo de trabalhoinvadido no apenas por mdicos, mas tambm por profissionais como enfermeiras,visitadoras sanitrias e assistentes sociais.

    A anlise da autora muito rica e instigante: relaciona os diferentes aspectos que

    dizem respeito assistncia ao parto polticas pblicas, controle da natalidade,transformaes na prtica obsttrica, mudanas na profisso de parteira, entre outros eao mesmo tempo no despreza o pormenor, o detalhe, as singularidades regionais e ascondies de vida das diferentes camadas sociais, o que possibilita perceber os limites eas resistncias medicalizao do parto. O texto , assim, um referencial importante paraquem trabalha com o tema.

    O segundo grupo de artigos apresentados no dossi diz respeito assistncia aoparto no Brasil. Benedita Celeste de Moraes Pinto, com base em relatos orais, analisa asprticas cotidianas de parteiras e curandeiras na regio do Tocantins, no Par norte daAmaznia. Muitas dessas mulheres, descendentes de antigos quilombolas, alm de prestarassistncia ao parto, foram fundadoras e lderes de povoados, organizaram e conduziramrituais religiosos e realizaram inmeras atividades para subsistncia do grupo, algumasdelas nem sempre identificadas como atividades femininas como a derrubada das matas,o preparo do terreno para a agricultura, a caa. Ainda hoje, a presena dessas mulheresnesses povoados rurais indispensvel: alm de parteiras, so as nicas mdicas,enfermeiras, farmacuticas da regio.

    Benedita Celeste destaca que, se de um lado suas histrias de vida as revelamcomo mulheres independentes, respeitadas e valorizadas, de outro, apontam para avivncia de situaes de opresso e desqualificao diante dos servios de sade, porelas terem aprendido o ofcio na prtica com outra parteira, sem superviso mdica. Aautora assinala que, nessa parte da Amaznia, para ser parteira no necessrio freqentar

    escolas; que ser parteira significa ter um dom e cumprir uma misso confiada por Deus.Vale dizer, uma misso difcil, visto que, nos dias atuais, muitas jovens que, acredita-se,nasceram com esse dom recusam-se a seguir o destino de suas antepassadas.

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    Maria Luiza Gonzalez Riesco e Maria Alice Tsunechiro, no artigo Formao profissionalde obstetrizes e enfermeiras obsttricas: velhos problemas ou novas oportunidades?,abordam um tema polmico, o da formao e capacitao dos profissionais no-mdicosna assistncia ao parto.

    O artigo faz um retrospecto da formao profissional de parteiras, obstetrizes e

    enfermeiras obsttricas no Brasil, desde a criao, em 1832, dos cursos de parteirasvinculados s escolas mdicas. Diferentemente de alguns pases que preservaram essescursos, no Brasil verifica-se o seu fechamento ou absoro pelas escolas de enfermagem,o que resultou na gradativa substituio das antigas parteiras e obstetrizes por profissionaisformados nos cursos de enfermagem com especializao em obstetrcia.

    O tipo de formao profissional de parteira/obstetriz ou de enfermeira obsttrica tem sido apontado como um fator que influi diretamente na forma de assistncia ao parto,sendo considerado menos medicalizado o parto realizado por parteira. Visando a um melhoratendimento s parturientes com a reduo do nmero de intervenes cirrgicas emedicamentosas desnecessrias, profissionais de diferentes reas tm defendido a criao

    de cursos de obstetrcia com exame de seleo e currculo prprios, para formao departeira/obstetriz (tcnico e universitrio). Nesse sentido, Maria Luiza Gonzalez Riesco e MariaAlice Tsunechiro apresentam uma proposta de curso de graduao em obstetrciaconduzida por escola de enfermagem.

    Os dois ltimos textos do dossi, o de Sonia N. Hotimsky e Augusta T. de Alvarenga (Adefinio do acompanhante no parto: uma questo ideolgica?) e o de Carmen SusanaTornquist (Armadilhas da Nova Era: natureza e maternidade no iderio da humanizaodo parto), trazem uma contribuio fundamental para se repensar a assistncia ao partona atualidade. As autoras fazem uma leitura crtica das propostas inovadoras, humanizadas,que visam a mudanas nas formas de atendimento. Verificam que muitas dessas propostas

    tm como limite concepes tradicionais sobre o papel de homens e mulheres nasociedade, na famlia, na maternidade, na biologia feminina e na natureza.Vale destacar que os artigos apresentados so inditos e que o espao editorial

    utilizado pelo Dossi ficou um pouco acima da mdia dos demais nmeros da Revista, emesmo assim pesquisas, autores e temas importantes no foram aqui contemplados. Ento,para proporcionar uma referncia da produo sobre o tema nos ltimos 30 anos, foiorganizada uma bibliografia sobre assistncia ao parto contendo trabalhos realizados entre1972 e 2002. Lembro ainda que outras sees do volume incorporam a temtica: emPonto de Vista encontra-se uma entrevista com Robbie Davis-Floyd, e na de Resenhasforam comentados o livros de Fabola Rohden Uma cincia da diferena: sexo e gnerona medicina da mulher, por Elizabeth Juliska Rago; os de Michel OdentA cientificizao

    do amore O renascimento do parto, por Maria Luiza de Carvalho; e o de Robbie Davis-FloydBirth as an American Rite of Passage, por Carmen Simone Diniz.

    Finalizando, agradeo o convite da Comisso Editorial para organizar o Dossi e acolaborao da equipe da Revista. Agradeo tambm as sugestes de Sonia Hotimski ede Maria Alice Tsunechiro.