Dossiê Baianas de Acarejé
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... Dez horas da noite,na rua desertaA preta mercandoparece um lamento (...)
Na sua gamelatem molho cheirosoPimenta da costa, tem acaraj
Hum, hum, humHum, hum, hum, acaraj eco l l i Vem benzer, hem
T quentinho
Todo mundo gosta de acarajO trabalho que d pra fazer que ...
A preta do acaraj (Dorival Caymmi)
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Departamento de Patrimnio Imaterial
GERENTE DE IDENTIFICAO
Ana Gita de Oliveira
GERENTE DE REGISTRO
Ana Cludia Lima e Alves
GERENTE DE APOIO E FOMENTO
Teresa Maria Cotrim de Paiva Chaves
Projetos Celebraes e Saberes da Cultura
Popular
CHEFE DO SETOR DE PESQUISA
Ricardo Gomes LimaCOORDENADORA-GERAL DO PROJETOCELEBRAES E SABERES
Letcia Vianna
PESQUISADORES RESPONSVEIS PELOINVENTRIO OFCIO DAS BAIANAS DE
ACARAJElizabete de Castro MendonaRaul Lody
ASSISTENTES DE PESQUISA
Ceclia de MendonaCleo Vieira
ESTAGIRIA
Gisele Muniz
APOIO TCNICO
Fundao Carlos Chagas Filho de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FaperjMuseu da Repblica - Projeto Cultura Repu-blicana e BrasilidadeFundao Universitria Jos BonifcioLaboratrio de Pesquisas em Etnicidade,Cultura e DesenvolvimentoUniversidade Federal do Rio de Janeiro
PRESIDENTE DA REPBLICA
Luiz Incio Lula da Silva
MINISTRO DA CULTURA
Gilberto Gil Moreira
PRESIDENTE DO IPHAN
Luiz Fernando de Almeida
CHEFE DE GABINETE
Luiz Fernando Villares e Silva
PROCURADORA-CHEFE FEDERAL
Lcia Sampaio Alho
DIRETORA DE PATRIMNIO IMATERIAL
Marcia SantAnna
DIRETOR DE PATRIMNIO MATERIAL EFISCALIZAO
Dalmo Vieira Filho
DIRETOR DE MUSEUS E CENTROS CULTURAIS
Jos do Nascimento Junior
DIRETORA DE PLANEJAMENTO EADMINISTRAO
Maria Emlia Nascimento Santos
COORDENADORA-GERAL DE PESQUISA,DOCUMENTAO E REFERNCIA
Lia Motta
COORDENADOR-GERAL DE PROMOO DOPATRIMNIO CULTURAL
Luiz Philippe Peres Torelly
DIRETORA DO CENTRO NACIONAL DE
FOLCLORE E CULTURA POPULAR
Claudia Marcia Ferreira
INSTITUTO DO PATRIMNIO HISTRICO
E ARTSTICO NACIONAL
SBN Quadra 2 Edifcio Central BrasliaCep: 70040-904 Braslia-DFTelefone: (61) 3414.6176 Fax: (61) 3414.6198www.iphan.gov.br [email protected]
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Edio do Dossi
GERENTE DE EDITORAO DO IPHAN
Inara Vieira
EDIO DE TEXTO
Lucila Silva Telles
REVISO DE TEXTO
Maria Helena Torres
COPIDESQUE
Mara Mendes GalvoPROJETO GRFICO
Victor Burton
DIAGRAMAO
Gerncia de Editorao do Iphan:Inara VieiraDuda Miranda
Ana Lobo (estagiria)Joo Gabriel Rocha Cmara (estagirio)
SELEO DE IMAGENSElisabete de Castro MendonaRebecca de Luna Guidi
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
Jos Reginaldo dos Santos GonalvesSolange Barnab
Joclio dos Santos
Ficha Tcnica Ofcio das Baianas de Acaraj
REGISTRO DO OFCIO DAS BAIANAS DEACARAJ
Processo no. 01450008675/2004-01
PROPONENTES:
Associao das Baianas de Acaraj, Mingau, Receptivos eSimilares do Estado da BahiaCentro de Estudos Afro-OrientaisTerreiro Il Ax Op Afonj
DADOS DO PROCESSO:Pedido de Registro aprovado na 45a. reunio do ConselhoConsultivo do Patrimnio Cultural, em 01/12/2004Inscrio no Livro dos Saberes em 21/12/2004.
PGINA 2
TABULEIRO DE BAIANA,
LAVAGEM DO BONFIM. SO
CRISTVO (RJ), 2003.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
PGINA 4
GRAVURAS DO LIVRO USOS
E COSTUMES DO RIO DE
JANEIRO NAS FIGURINHAS DE
GUILLOBEL. ORGANIZADO
POR CANDIDO GUINLE DE
PAULA MACHADO, 1978.
Elaborao do Dossi e dos anexos
PESQUISA E TEXTOS
Elizabete de Castro MendonaLetcia ViannaRaul Lody
FOTOGRAFIAS
Ana Paula PessoaChristiano JniorElisabete de Castro MendonaLus Antnio Duailibi
Francisco Moreira da Costa
ICONOGRAFIAS
Caryb
INSTITUIES PARCEIRAS
Associao das Baianas de Acaraj, Mingau, Re-ceptivos e Similares do Estado da Bahia - AbamCentro de Estudos Afro-Orientais - Ceao/Universidade Federal da BahiaTerreiro Il Ax Op Afonj
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sumrio
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10 APRESENTAO
12 prefcio
14 identificao15Ofcio das baianas de acaraj19Acaraj dos orixs22Comida de santo, comida degente, meio de vida25Relao do Ofcio com a Feirade So Joaquim26Modo de fazer e significadosdos principais itens alimentarestradicionais que compem o acaraj32Traje de baiana36Relao do ofcio com as festasde largo44No tabuleiro da baiana tem...
52 o acaraj nacontemporaneidade
56 Dinmica e mudanas -
o sentido do registro
60 O desafio da salvaguarda
64 fontes bibliogrficas
65 referncias fotogrficase iconogrficas
66 anexos66 Atores sociais: os informantes67Decreto-lei Municipal n 12.175de 25 de novembro de 199872Certido de patrimnioimaterial nacional73Referncias bibliogrficas sobreo ofcio das baianas de acaraj
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APRESENTAo
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baianas de acaraj so monumentosvivos de Salvador e do Brasil.
o que a baiana tem!
Luiz Fernando de AlmeidaPresidente do Iphan
Oacaraj um bolinho de feijo-fradinho, cebola e sal, frito emazeite-de-dend. uma iguariade origem africana, vinda com os
escravos na colonizao do Brasil.Hoje est plenamente incorporado cultura brasileira. alimento dodia-a- dia comida de rua emSalvador e em tantas outras cidades,
vendido com acompanhamentoscomo a pimenta, o camaro, o
vatap e, s vezes, molho de cebolae tomate...Tambm tem sentidoreligioso, comida de santo nosterreiros de candombl. o bo-linho de fogo ofertado puro, semrecheios, a Ians e Xang... e cheiode significados nos mitos e ritos douniverso cultural afro-brasileiro.
Pela tradio que se afirmou aolongo de sculos quem faz o acaraj a mulher, a filha de santo quandopara uma obrigao, ou a baiana deacaraj quando para vender na rua.No perodo colonial as mulheres,
escravas ou libertas, preparavamacaraj e outras comidas e, noite,com cestos ou tabuleiros na cabe-a, saam a vend-los nas ruas de
Salvador ou ofereciam aos santos efiis nas festas relacionadas ao can-dombl.Hoje o ofcio de baiana deacaraj o meio de vida para muitasmulheres e uma profisso que sus-tenta muitas famlias.
O registro do Ofcio das baianasde acaraj como Patrimnio Cultu-ral do Brasil, no Livro dos Saberes, ato pblico de reconhecimento daimportncia do legado dos ances-trais africanos no processo histricode formao de nossa sociedade e do
valor patrimonial de um comple-xo universo cultural, que tambm
expresso por meio do saber dos quemantm vivo esse ofcio.
Com suas comidas, sua indu-mentria, seus tabuleiros e a sim-patia acolhedora e carismtica, as
BAIANA NA FESTA DE SANTA
BRBARA, PADROEIRA DAS
BAIANAS DE ACARAJ.
IGREJA DE NOSSA SENHORA
DO ROSRIO DOS PRETOS,
PELOURINHO. SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
PGINA 8
FESTA DE SANTA BRBARA,
PADROEIRA DAS BAIANAS
DE ACARAJ. MERCADO DE
SANTA BRBARA, BAIXA DO
SAPATEIRO EM SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
ABAIXO
RITUAL PARA XANG.
ICONOGRAFIA: CARYB.
(DETALHE)
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prefcioprefcio
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Este livro uma compilaoampliada dos artigos publi-cados ao longo dos cinco anos doprojeto Implantao de Inventrio:
Celebraes e Saberes da CulturaPopular, patrocinado pelo Minis-trio da Cultura, do qual o pro-cesso de inventrio e registro doofcio das baianas de acaraj foi umsubprojeto. Conta ainda comtextos do CD-ROM Festa deSanta Brbara, resultadodo inventrio dessa festa,patrocinado pela Petrobrase do catlogo da exposio Oque a baiana tem: pano-da-costae roupa de baiana, alm de verbe-tes retirados do Dicionrio de artesacra & tcnicas afro-brasileiras.
PROCISSO DE SANTA
BRBARA, PADROEIRA DAS
BAIANAS DE ACARAJ.
SALVADOR (BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
ABAIXO
AJER, RITUAL PARA XANG.
ICONOGRAFIA: CARYB.
(DETALHE)
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identificao
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Segundo vrios depoimentosda primeira metade do sculo XX,anos 40 e 30, as famlias ficavamesperando, s sete horas da noi-
te, a mulher do acaraj passar, eera uma espcie de cerimnia (...),porque sua voz era especialmenteaguda e alta para anunciar de lon-ge I acaraj, i abar; a o povose preparava, pegava o dinheiro, ias portas. Esse acaraj e esse abariam nas portas, como se come aindana Costa dfrica. acaraj, e nosanduche; com pimenta, algum ca-maro, mas basicamente acaraj.[Ubiratan Castro de Arajo, ex-di-retor do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federalda Bahia em entrevista realizada em18/12/2001]
Oacaraj, bolinho de feijo-fra-dinho (Phaseolus angulares Wild),cebola e sal, frito em azeite-de-dend (Elaesis guineensis L), de ori-
gem africana; seu nome original ,em locais do Golfo do Benim, fri-ca Ocidental, acar1, que, em ioru-b, significa comer fogo acar(fogo) + ajeum (comer) e advmdo modo como era apregoado nasruas: acar, acar aj, acaraj2. Suatradio, na Bahia, vem do perodocolonial, quando as mulheres es-cravas ou libertas preparavam-noe, noite, com cestos ou tabulei-ros na cabea, saam a vend-lo nasruas da cidade.
Tal prtica de comrcio ambu-lante de alimentos j era realizadana costa ocidental da frica comoforma de autonomia das mulhe-res em relao aos homens, o que,com freqncia, lhes conferia o pa-pel de provedoras de suas famlias.No Brasil, desde tempos coloniais,
assim como na frica, o ganho3 decomidas realizado por escravas per-mitia, alm de prestao de serviosa seus senhores, maior sociabiliza-
o entre escravos urbanos, o quecontribuiu para o cumprimentodos ciclos de festas-obrigaes docandombl e, muitas vezes, para acriao de irmandades religiosas.
Aps o perodo escravocrata e atnossos dias, com finalidade religio-sa ou comercial, a venda de acarajpermite que as mulheres aprendamuma profisso que ainda sustentagrande parcela da populao de Sal-
vador, e que assumam seus mlti-plos papis4 como chefe de famlia,5me e devota religiosa.
As histrias de vida das baia-nas de acaraj apresentam muitospontos em comum. Em geral pro-
venientes de estratos mais baixosdas camadas mdias da sociedadeda Bahia, iniciam-se na atividadepor instruo de suas mes e avs
ofcio dasbaianas deacaraj
ACARAJ DE IANS, NO IL
OXUMAR.
ICONOGRAFIA: CARYB.
(DETALHE)
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ou, ainda, de outras baianas, pois oofcio atualmente organizado nosmoldes de pequenas empresas do-msticas e realiza-se como estratgia
de sobrevivncia ou de complemen-tao de renda familiar.
Herdeiras dos ganhos, as baia-nas de tabuleiro, baianas de rua, baianas deacarajou simplesmente baianas, se-gundo o costume regional6, preser-
vam receiturios ancestrais africa-nos, sobretudo da costa ocidental,com destaque para os dos Iorub.
Verdadeiras construtoras do ima-ginrio que identifica a cidade deSalvador com suas comidas, suaindumentria, seus tabuleiros e suasmaneiras de vender , essas mulhe-res, monumentos vivos de Salvadore dos terreiros de candombl, soum tipo consagrado, revelador dahistria da sociedade, da cultura eda religiosidade do povo baiano.
Ao estabelecerem elos entre osterreiros de candombl e os espaos da
GANHO DE COMIDA, SCULO
XIX.
FOTO: CHRISTIANO JR.
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cidade, as baianas de acaraj tornampblicos cardpios sagrados, geral-mente desenvolvidos nos terreirospelas iabasss, conhecedoras dos in-
gredientes e das maneiras ritualiza-das de preparar comidas de santos.
Assim, na mistura dos temperos,como pimenta-da-costa e outraspimentas, com azeite-de-dend,quiabo, feijes, camaro seco e gen-gibre, por exemplo, transferem paraos tabuleiros heranas simblicasem forma de acaraj, abar, aca,bolinho-de-estudante, cocadas, bo-los... Esses elos so reafirmados porutenslios de trabalho (mocs, ba-laios, cestos), indumentria e rela-es sociais que se estabelecem entrea baiana e aqueles que consomem oacaraj.
Enquanto testemunhos pa-trimoniais integrados religio, arquitetura, populao, ao turis-mo, as baianas de acaraj mantm
viva uma tradio ancestral, impor-
BAIANA DE ACARAJ EM SEU
TABULEIRO. SALVADOR (BA),
1983.
FOTO: LUIZ ANTNIO
DUALIBI.
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tante componente de um sistemaculinrio que, alm de alimentar esatisfazer o paladar, articula dife-rentes dimenses da vida social: liga
os homens aos deuses, o sagradoao profano, a tradio moderni-dade. Imerso na dinmica culturaldas grandes metrpoles brasileiras,sobretudo em Salvador, o acarajest sujeito a variados processos deapropriaes e ressignificaes nosdiferentes segmentos da sociedade,
junto arquitetnico do Pelourinho.Assim, ao olhar patrimonial une-se o olhar cidado, no intuito deidentificar ou pontuar na geografia
urbana lugares tradicionais pon-tos de venda onde, diariamente, celebrado o hbito de provar comi-das de santo e de gente.
sem, contudo, perder seu vnculocom um universo cultural espec-fico e fundamental na formao daidentidade brasileira. Nesse contex-
to, as baianas de acaraj integram ecompem o cenrio urbano coti-diano e a paisagem social daque-la cidade. Representam tradiesafro-descendentes fundamentaisdas identidades da populao quemora e transita nas reas centrais eantigas, em que se destaca o con-
BAIANAS DE ACARAJ
COMERCIALIZANDO EM
SEUS PONTOS DE VENDA
- TERREIRO DE JESUS,
PELOURINHO.SALVADOR
(BA), 2001.
FOTO: ELIZABETE DE
CASTRO MENDONA.
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19Ofcio das Baianas de Acaraj{ }dossi iphan 6
acarajdos orixs
O acaraj, para mim, um ra-paz subjugado a uma mulher. Por-que na realidade acar uma bolade fogo, ento acar era um segredo
entre Oxum e Xang. S Oxumsabia preparar o acaraj, porque oacaraj a forma figurada do ager,que aquele fogo que feito nasegunda obrigao de Xang no diado ager, que vem representado deduas formas: primeiro, o orix en-tra com suas esposas levando a pa-
nela do ager, ou seja, a panela dacomida dele, a famosa panela queOxum preparava, tampava e diziapara Oi que botasse na sua cabeae levasse a Xang. Oi sempre levavae entregava a Xang, e Xang se re-tirava da frente de Oi e depois ele
vinha e devolvia a panela como se jtivesse comido o que tinha dentro.
Um dia, j estava cansada dasincurses de Xang (Oxum eramais sensual do que ligada a sexo),disse: eu vou dividir esse homem
com ela. Ento preparou novamen-te o ager e disse a Oi: Voc vailevar para ele, mas no olha o quetem dentro. A ela botou na cabea
o que ela sempre levou, mas Oxumnunca tinha dito antes que ela noolhasse e, ento, pensou: ela vaiolhar para ver o que Xang come.
A, na metade do caminho, Oiolhou para os lados e viu que noestava sendo observada, abriu a pa-nela e subiu aquela lngua de fogo.
Ento ela disse: Eu sei o queele come, ele come acar. Tampourpido a panela, botou na cabeae se apresentou na frente de Xan-g. Mas como todo o povo iorubfala, os deuses sempre sabem oque o outro fez ou vai fazer, eles seentendem e se saem bem por suasastcias. Ento, quando ela che-gou, Xang olhou bem nos olhosdela e disse assim: Voc viu o queeu como? Ela disse: Sim, acar.
A ele disse: O que o acar? Ela
disse: fogo, Xang come fogo. Aele disse: S minhas esposas podemsaber meu segredo, s as minhasesposas comem. Mas no era bem
assim; Oxum preparava, mas nocomia. A ele disse para ela: Vocmeta sua mo a e vai comer comi-go agora. A ela olha o fogo e comeacaraj, umjque quer dizer comerem iorub; acaraj quer dizer co-mer acar. Ento ela passa a usar oacaraj tambm para ela (...) O que
aconteceu? Ela passou a ser uma desuas esposas. [Nancy Souza, ialaxdo Terreiro Il Ax Op Aganju -Nao Ktu em entrevista realizadaem 2001. ]
No universo do candombl, oacaraj comida sagrada e ri-tual, ofertada aos orixs, principal-mente a Xang (Alafin, rei de Oy)e a sua mulher, a rainha Oi (Ian-s), mas tambm a Ob e aos Ers,nos cultos daquela religio.
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Seu formato e mistura so di-ferenciados de acordo com o orixa que so ofertados. Assim, a Xangso oferecidos os maiores e alonga-
dos, que podem encimar um pratode quiabos, dend e pimentas, ama-l; os ofertados a Oi so menores,e podem ser servidos puros, comsete pimentas-da-costa ou enfeita-dos com camares secos; os dos Ersso menores e redondos. As oferen-das a Oi e Oxagui, orixs ligados
ancestralidade, so colocadas nobambuzal, local por eles habitado.
Nos terreiros, para a oferendados alimentos votivos entre eles oacaraj , existem rituais especficosque correspondem ao orix e na-o de origem a que o terreiro estfiliado, por exemplo:
A cerimnia realizada no dia dafesta de Xang pelos terreiros vincu-lados nao Ktu e que representaseu ager realizado, conforme o re-lato da ialax Nancy Souza.
Inicialmente uma filha de Oxumdana e carrega o fogo em memriada panela que Oxum levava todos osdias para Xang. Em seguida, outrafilha de Oxum carrega uma mesa, ame Yaquequere, um prato, e outrafilha de Oxum, uma toalha. Arru-mam a mesa, a toalha e o prato ecolocam os acarajs embebidos emazeite sobre a mesa. Coloca-se fogono azeite, entram Ians e Xang, pe-gam-nos com as mos e os comem.
A cerimnia para Xang rea-lizada pelo Terreiro Casa Branca7,conforme relata o pesquisador RaulLody, no artigo O rei come quia-bo, a rainha come fogo, de 1998.O rito tem como momento solene ahora de organizar a roda de Xang,
(...) quando, inclusive, visi-tantes ilustres so convidados a delaparticipar. Nisso, um og vai ato peji de Xang e apanha o xre
OXUM: DEUSA DO RIO.
ICONOGRAFIA: CARYB.
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21Ofcio das Baianas de Acaraj{ }dossi iphan 6
instrumento musical, chocalho, ge-ralmente confeccionado em cobre, passando a agit-lo, sempre to-cando levemente o instrumento no
solo, antes de voltar a utiliz-lo. Aroda vai girando, cadencialmente, etodos aguardam, com ansiedade, asprimeiras manifestaes dos orixs.Em momento especial, comeama chegar os santos, iniciando por
Xang, em seguida Ians, Oxossi,Oxum, outros e outros, todos che-
gam para a festa.Os orixs so recolhidos ao sa-
bagi local para a troca das roupasrituais e colocao dos paramentose ferramentas havendo, assim, umbreve intervalo. Passada uma hora,retomam os msicos os seus lugarese comeam a executar o dar, popu-larmente chamado de ilu ou aguerde Ians. Ento aparecem no salotrs Ianss vestidas ritualmente, e,levando cada uma delas, na cabea,uma bacia de cobre, comportando
quase uma centena de acarajs cada.Todas danam, levantam ventos coma passagem rpida das saias amplase rodadas. Todos de p comeam a
gritar: Eparrei, Eparrei Oi, sau-dando o orix que retribui ofere-cendo acarajs para todos os presen-tes. acaraj para comer, guardarou passar pelo corpo e despacharlimpando, purificando, fortalecen-do compreenses desse orix-mu-lher, mulher meio homem, que
come fogo no ajar de Xang.Antes, contudo, oferecem aca-
rajs aos espaos sagrados do ter-reiro, quando cada Ians, sedutorae viril, quase voa at as portas, emtorno da pilastra coroada por Xan-g, chegando com imagem de rai-nha at o pblico assistente.
Nos terreiros do EngenhoVelho, da Casa Branca ou da Casade Oxumar, vinculados s naesKtu e Nag-Vodum, respectiva-
mente, no dia da festa do orix,as filhas de Ians entram no cen-tro do salo ou do barraco de festacom pequenos tabuleiros de acara-
j, sentam-se em um apoti (pequenobanco ritual) e comeam a servi-loscomo as baianas de acaraj.
Os terreiros, nessa perspectiva,alm de lugares de sociabilidade e re-lao com o sagrado, so ncleos derepasse de saberes que mantm ativasas tcnicas relacionadas s tradies
africanas e, assim, constituem-secomo referncias coletivas.
AJER, RITUAL PARA XANG.
ICONOGRAFIA: CARYB.
(DETALHE)
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Comida de santo,comida de gente,meio de vida
O mercado de acaraj umgrande mercado que os orixs derampara as mulheres de santo da Bahia.[Ubiratan Castro de Arajo, ex-di-retor do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federalda Bahia em entrevista realizada em
18 de dezembro de 2001]
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23Ofcio das Baianas de Acaraj{ }dossi iphan 6
Presente em todas as festas delargo e no dia-a-dia da cida-de, o acaraj vendido nas ruas pelasbaianas de acaraj frito na hora,
diante dos fregueses, que, de p, ocomem com as mos, dispensan-do o uso de talheres. Elemento dosistema culinrio baiano, impor-tante marca identitria e refernciacultural, o acaraj, vindo das mosde uma baiana, articula universossimblicos relacionados esfe-
ra da culinria votiva e s chamadascomidas de rua, onde se apresentacomo meio de vida e fonte de rendapara uma parcela da populao.
A tradio da venda do acara-j na rua tem origem no universodo candombl: a obrigao do acaraj,autorizao para produo e vendapblica por mulheres iniciadas nospadres dos rituais tradicionais docandombl e escolhidas por Oi, ti-nha como objetivo angariar recur-sos parafazer o santo, isto , cobrir
os gastos necessrios s obrigaesde iniciao. Segundo esse precei-to religioso, tradicionalmente oacaraj era vendido em gamelas demadeira redondas, semelhantes susadas nos terreiros de candomblpara oferecer aos orixs e adeptos omesmo alimento sagrado.
Atualmente, a venda de acarajno est mais ligada exclusivamen-te tradio religiosa. Ampliou seuespao nas ruas de Salvador e tor-
nou-se meio de vida para boa parteda populao. Os vnculos com ocandombl, no entanto, permane-cem ainda muito marcantes, o que
se manifesta no modo ritualizadocomo algumas baianas de acaraj or-ganizam seu espao de venda na rua.O ritual de preparao caracteriza-se, primeiro, pela limpeza do ponto,
varrido e lavado com gua e seiva dealfazema; em seguida, colocam sobreo tabuleiro cabeas de alho, folhas,
acar torrado com salsa e cobrem-no com papel manilha. Sobre o pa-pel manilha colocam moedas, foga-reiro, frasco (em geral de maionese)com gua, arruda, guin, pinho-roxo, figa, contas de Ogum, de Exu,de Oxum, de Iemanj e de Oxal;depois, discretamente, incensam olocal. Faz parte do ritual, tambm,colocar no tabuleiro imagens de me-tal de Santo Antnio ou de SantoOnofre e oferecer sete acarajs aosIbejis (Ers), representados por sete
PGINA AO LADO
IANS, DEUSA DOS VENTOS
E DAS TEMPESTADES NO
CANDOMBL DO PAIZINHO.
ICONOGRAFIA: CARYB.
ABAIXO
BAIANA DE ACARAJ EM SEU
TABULEIRO. SALVADOR (BA),
1983.
FOTO: LUIZ ANTNIO
DUALIBI.
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meninos que passem pelo local.Seja como funo sagrada ou
meio de vida, a tradio do acaraj encontrada em outras localidades
do pas, por exemplo, na Casa dasMinas, ou Querebet de Zomado-nu, templo do culto aos voduns doBenim, em So Lus, no Maranho,e no Terreiro Ob Ogunt e Stiodo Pai Ado, no Recife. Entretan-to, existem especificidades em cadaestado para a comercializao: em
Recife, onde tm quase a metade dotamanho do acaraj baiano, com amedida de uma colher das de ch, ee levam um pequeno camaro sobrea massa, so vendidos sem molho econsumidos vrios de uma s vez; noMaranho, o tamanho o de umacolher das de sopa e so vendidosapenas com camaro seco e pimenta;e na Bahia, os acarajs so grandes,com recheio, e tm o formato deuma escumadeira. Nesse contexto, em Salvador, stio inventariado pelo
CNFCP/Iphan, que se revela demodo mais evidente a complexidadede seu universo e onde desempenharelevante papel identitrio.
A comercializao do acaraj,em Salvador, est ligada a duas en-tidades: a Federao de Cultos Afroe a Associao das Baianas de Aca-raj, Mingau, Receptivos e Simila-res do Estado da Bahia (Abam). AFederao de Cultos Afro entida-de cultural a que pertencem algu-
mas baianas de acaraj, uma vez que,inicialmente, para desenvolver essaatividade, tinham de ser vinculadasao candombl. No apresenta carterde associao ou cooperativa de clas-se. A Abam, fundada em 19 de abrilde 1992, entidade de classe, comestatuto prprio. Com quase trs milprofissionais de tabuleiro associados,seu objetivo qualificar e capacitaras baianas para que possam oferecerservios melhores, com higiene, qua-lidade e, principalmente, tradio.
SEDE DA ASSOCIAO
DAS BAIANAS DE ACARAJ,
MINGAU, RECEPTIVOS E
SIMILARES DO ESTADO DA
BAHIA. SALVADOR (BA), 2002.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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BARRACA DE CAMARO SECO,
MERCADO SO JOAQUIM.
SALVADOR (BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
relao
do ofcio coma Feira de sojoaquim
Considerando-se que a noo desistema culinrio (ou sistemas)8compreende um conjunto estrutu-rado de elementos que abrange tan-to os processos de transformao deprodutos como os universos simb-licos e as cosmologias a eles articu-
lados, seus espaos de ocorrnciatambm fazem parte desse conjun-to. Nesse contexto, ser dada nfase Feira de So Joaquim, tradicionalde Salvador, como elemento cons-
[somam] quase esse nmero9 .Representa tambm importan-
te espao de ocupao da mo-de-obra local, uma vez que ali traba-
lham, direta ou indiretamente, maisde 10 mil pessoas, boa parte comsua histria de vida atrelada feira,e muitos deles, empregados ou fi-lhos de antigos feirantes, so hojedonos de barracas ou boxes, peque-nos empreendimentos familiares.
L se encontram, em meio a
outros produtos, as diferentes va-riedades de feijo entre elas o fei-
jo-fradinho e o azeite-de-den-d, bases do acaraj e do abar.
titutivo desse sistema.Trata-se de mercado onde
possvel encontrar produtos carac-tersticos da Bahia; apresenta-se
tambm como mediador entre aproduo e o consumo dos princi-pais ingredientes que fazem par-te da culinria baiana: nessa feira,as baianas encontram os elementosnecessrios preparao tanto dascomidas domsticas quanto das quecompem seus tabuleiros, expostos
no espao da rua.Lugar onde se realizam tro-
cas econmicas e prticas culturais,representa importante ponto dereferncia local, como indicam aspalavras do feirante Expedito Evan-gelista, para quem a feira no sum marco para a cidade, pratica-mente (...) referncia para o Bra-sil. No existe outra feira fixa noBrasil do tamanho dessa, [cerca de]dois ou trs mil boxes, fora as ban-cas que so praticamente fixas e que
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modo de fazer esignificados dos
primeiros itensalimentarestradicionaisque compem oacaraj
Dez horas da noite na rua deserta.A preta mercando parece um lamento...
(I abar)
Na sua gamela tem molho cheiroso.Pimenta-da-costa, tem acaraj.
( acaraj eco olalai Vem benz--em, t quentinho.)
Todo mundo gosta de acaraj
O trabalho que d pra fazer que Todo mundo gosta de acarajTodo mundo gosta de abar
Ningum quer saber o trabalho que dTodo mundo gosta de abar
Dez horas da noite na rua deserta.Quanto mais distante mais triste o lamento.
(I abar)
(Dorival Caymmi A preta do acaraj)
Acano de Caymmi reafirma otrabalho rduo de produzir ecomercializar o acaraj. Durantemuito tempo, seguindo a tradio
dos terreiros e do perodo colonial,o feijo-fradinho, seu principalcomponente, era modo com umrolo cilndrico em pilo de pedraspera em uma face; comercializadono formato de uma colher de sopa,em tabuleiros ou balaios levados nacabea10 , era anunciado em pre-
ges entoados pelas baianas.Segundo Vivaldo da Costa
(apud Miranda, 1998:17), a pri-meira descrio etnogrfica dosmodos de fazer acaraj de ManoelQuerino, no ensaio A Arte Culi-nria na Bahia, de 1916, publicadopostumamente em 1928. Querino,
primeiro negro a publicar livrossobre a histria e a cultura afro-brasileira, baseou sua pesquisa emdepoimentos de informantes co-nhecedoras da cozinha africana, tias
BAIANA DE ACARAJ EM SEU
TABULEIRO. SALVADOR (BA), 1983.
FOTO: LUIZ ANTNIO DUALIBI.
PGINA AO LADO
BAIANA DE ACARAJ EDNA DA
CONCEIO FERREIRA LAVANDO O
FEIJO PARA O PREPARO DA MASSA
DO ACARAJ E ABAR, SALVADOR
(BA), 2002.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA DA
COSTA.
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suas, consangneas ou de parentes-co ritual, pertencentes aos terreirosnags mais tradicionais da Bahia.O autor cita o acaraj no tpico so-
bre os alimentos puramente afri-canos, e descreve a receita sem osacrscimos atuais, tais como vata-p, caruru e salada, j que o acara-
j era consumido puro, protegidopor parte de uma folha de bananei-ra, levando, no mximo, quandoera pedido, um pouco de molho
preparado com pimenta malaguta,sca, cebola e camares, modo napedra e frigido em azeite de cheiro(Querino, 1954:31). Hoje, po-rm, incorporam-se, na forma derecheio, outros elementos da culi-nria local (camaro seco, vatap ecaruru). A salada de tomate e cebola
tambm foi introduzida recente-mente. Esses recheios ampliaramo tamanho do acaraj vendido nasruas e tornaram-no uma espcie desanduche, chamado de sanduche
nag ou acaraj-burguer.Segundo as baianas, o segre-
do do bom acaraj reside no modocomo a massa preparada e batida
na panela, com colher de pau, antesde se fritar cada poro no dendfervente. Clarice dos Anjos, ex-presidente da Abam11, explica comoprepara seu acaraj:
cessa o feijo, tirando todo oolho, para economizar gua; para
lavar o feijo a gente gasta mui-ta gua, ento no momento quea gente cessa o feijo, pode ligaro ventilador e sacudir o feijo nafrente do ventilador; automatica-mente vo cair todas as cascas e to-dos os olhos que estiverem ali, voficar as bandinhas todas inteirinhas,
s grudadas, o que vai sair quandoele dilata. Bota de molho por duashoras, ele vai inchar e solta toda apalha que estava grudada nele; lavatrocando de gua at ficar limpo
sem uma sujeirinha, porque mi-nha massa da cor de coco. Pega ofeijo, coloca numa peneira e deixaescorrer por cerca de 15 minutos
(...) e depois passa [no moinho].Para cada quilo de feijo, so
dois dentes de alho. A massa doacaraj tem que ser massa grossa,porque o acaraj tem que ser levee crocante (...) Depois voc pegae bate duas cebolas pequenas paracada quilo [de feijo], acrescenta
na massa e bate bastante at ela fi-car como clara de ovo. Bota o azeitepara fritar, coloca uma cebola gran-de porque o que chama o clien-te, o cheiro vai longe e evita que oazeite queime muito rpido. Vaimodelando o acaraj (...) e colocano fogo. [entrevista realizada em
13/12/01]
E cada um dos recheios:
existem dois tipos de vatap: o
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BAIANA TNIA PREPARANDO
O ACARAJ EM SUA COZINHA.
SALVADOR (BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
que voc usa para almoo, que levaamendoim, castanha, leite de coco eu no aconselho baiana a levaresse tipo de vatap para o pon-
to porque castanha muito oleo-sa, azeda. Baiana trabalha muito aosol, ao calor, ento chega uma certahora que isso vai estar ruim. O va-tap para o tabuleiro da baiana feito com gengibre, cebola, cama-ro e um pouco de amendoim.
Bate tudo isso no liqidifica-
dor, coloca num recipiente comazeite, bota gua para ferver e vemcom a farinha de trigo, coloca den-tro deste tempero, mexe para noembolar voc sabe a histria do
vatap: se no mexe, ele embo-la mais no fogo; mas do meu jeito, diferente: voc bota a gua para
ferver, este tempero j est tododissolvido, voc vem com a guafervente, joga naquele tempero ebate, engrossa na hora, voc noprecisa perder tempo mexendo.
Engrossou, voc coloca no fogo,passa a colher, ele j est fervendo;pouco tempo, ele j est cozido; odiferencial a gente colocar uma
pitadinha de acar, o leite de cocono doce, o vatap fica gostoso;como a gente no coloca o leite decoco porque esse material vai estarexposto ao sol, a gente coloca umacolher de ch de acar que ficaequilibrado o sal e o acar, comose voc estivesse fazendo ketchup;
no tem o molho de macarro quevoc equilibra o sal e o acar? Amesma coisa o vatap.
(...) O camaro, tirada a ca-bea, os olhos, os cabelinhos dabarriga, que junta muita areia, e orabo, que tem o esporo que fura agarganta do cliente; coloca de mo-
lho cerca de 40 minutos, escorre napeneira (...) e refoga s com cebolae azeite, deixa mudar um pouco decor. (...) A pimenta, de prefern-cia seca, que d aquela cor escura; se
no tiver, pode comprar a mistura-da, mas a maioria da vermelha, 80%da vermelha; estala, bate no liqi-dificador ou no multiprocessador
com um pedao de gengibre, umdente de alho e um pouco de sal; ogengibre que d aquele ardor (...)a flor do azeite, ela que vai dar ocaldo; bota em recipiente. Antiga-mente a pimenta era torrada (...)eu encontrei um outro meio que dno mesmo: bato no liqidificador,
boto o azeite para ferver, quando eleestiver fervendo, jogo dentro.
(...) O caruru tem o mesmotempero do vatap (...) a gente colo-ca o azeite no fundo da panela; se fi-car muito pesado, coloca meio copode gua, sal a gosto, quiabo picado.[entrevista realizada em 13/12/01]
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feijo: elemento bsico
Consumido no pas inteiro, ofeijo constitui a base da alimentaobrasileira, ocupa posio privilegia-da em nossos sistemas culinrios edesempenha importante papel na
construo das identidades regio-nais, tendo em vista a diversidade detipos domesticados e os usos singula-res em cada regio, seja no consumocotidiano ou ritualizado.
Segundo Cascudo (1983:490),existem registros em documentos dosculo XIII da existncia de feijesna Europa, apesar de ressaltar que,
em Portugal, o feijo no tem aprocura, a indispensabilidade, apredileo com que consumidono Brasil. O autor insinua, ainda,que a tradio do uso dos feijes nacultura africana bem antiga, em-bora no estabelea datas, e lembraque no temos muitas referncias
da origem dessa leguminosa, cujasverses de origem e usos apontampara a sia e at mesmo o continenteamericano, o Brasil includo.
Quanto s diversas hipteses deorigem e domesticao do feijoeiro,o portal da Embrapa Arroz e Feijo12
tambm cita:
Dados mais recentes, combase em padres eletroforticos defaseolina, sugerem a existncia detrs centros primrios de diversida-
de gentica [de feijes], tanto paraespcies silvestres como cultivadas:o mesoamericano, que se estendedesde o sudeste dos Estados Unidos
at o Panam, tendo como zonasprincipais o Mxico e a Guatemala;o sul dos Andes, que abrange desdeo norte do Peru at as provncias donoroeste da Argentina; e o norte dos
Andes, que abrange desde a Colm-bia e Venezuela at o norte do Peru.
Alm destes trs centros americanos
primrios, podem ser identificadosvrios outros centros secundriosem algumas regies da Europa, siae frica, onde foram introduzi-dos gentipos americanos (...). Osfeijes esto entre os alimentos maisantigos, remontando aos primeirosregistros da histria da humanidade.
Eram cultivados no antigo Egito e naGrcia, sendo, tambm, cultuadoscomo smbolo da vida.
Alm do acaraj, que tem no
FEIJO-FRADINHO VENDA
NA FEIRA DE SO JOAQUIM.
SALVADOR (BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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feijo-fradinho (ou fradim) a basede sua massa, em diversas outrascomidas votivas percebe-se a apro-priao, levada para o espao do
cotidiano e do consumo geral,da influncia africana no uso dealimentos produzidos com feijes,por exemplo, abar e feijoada.
Ernesto Lacerda (Ribeiro: s/d),diretor-executivo da Empresa Baia-na de Desenvolvimento Agrcola(Ebda), diz que o feijo-fradinho,
embora mencionado como a base dasreceitas de acaraj, apenas a deno-minao de uma das muitas varie-dades do feijo vigna, entre as quaisesto o massaca, o boca-preta e o caupi.
O feijo comercializado na Feirade So Joaquim em Salvador prin-cipal ponto de compra dos ingre-
dientes para preparo dos alimentosque compem o tabuleiro da baiana , em grande parte, originrio deIrec, localidade que concentra amaior produo de feijo de todo o
Nordeste e a segunda no pas. Mu-nicpio baiano localizado na zona daChapada Diamantina Setentrional eque abrange toda a rea do Polgonodas Secas, Irec conhecido como aCapital do Feijo.
Dend: atestao do acaraj
O dendezeiro, palmeira africana(Elaesis guineensis Jacq. palmcea) trazidapara o Brasil nos primrdios da es-
cravido e aqui aclimatada, abun-dante na Bahia e em outros estadosdo Nordeste. Do fruto (igi op) dessarvore, sagrada para os Iorub, tira-
se o azeite-de-dend (ep). Sendoassim, ao ofertar o acaraj, oferta-setambm o ep, azeite no qual se fritao acaraj e cuja cor se assemelha do fogo, smbolo marcado pelo
vermelho e marrom de Oi.O consumo ou no de dend pe-
los orixs marca identitria, carac-
teriza-se pelo uso de cores13, roupas,metais14, objetos sagrados, assenta-mentos, comidas e adornos corpo-rais. Para o povo de santo, o dendatribui a esses elementos caractersti-ca ideolgica que se reflete na tica,na hierarquia, no comportamentoe em diversas posturas. um tabu
alimentar entre os filhos dos orixsbrancos, tambm chamados de orixs
funfun, em especial, Oxal.
PIMENTA MALAGUETA E
QUIABO, FEIRA LIVRE DE
SBADO, CACHOEIRA (BA),
2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
ABAIXO
FEIJO, MERCADO
MUNICIPAL DE CACHOEIRA
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
PGINA AO LADO
AZEITE-DE-DEND VENDA
NA FEIRA DE SO JOAQUIM.
SALVADOR (BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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Aprimeira e marcante identifica-o da baiana de acaraj ocorrepelo traje, rica e complexa mon-tagem de panos. Turbante, tecidoem diferentes formatos, texturas etcnicas de dispor, conforme inten-o social, religiosa, tnica, entre
outras; anguas, vrias, engomadas,com rendas de entremeio e de pon-ta, espcie de segunda saia; saia, ge-ralmente com cinco metros de roda,tecidos diversos, com fitas, rendas,
entre demais detalhes na barra;camisu15, geralmente rebordada naaltura do busto; bata16 por cima e emtecido mais fino; pano-da-costa17
ou pano-de-alak de diferentesusos, tecido de tear manual, outrospanos industrializados, retangu-lares, de visual aproximado ao daspeas da frica. As expresses estar desaia ou usar saia podem referir-se aoelaboradssimo conjunto que montaa roupa tpica da baiana.
O turbante afro-brasileiro deinfluncia afro-islmica, e tinhaa funo de proteger a cabea dosol dos desertos ou de outras reastrridas do continente africano.Com seu uso e funo ampliados,distingue a mulher em diferentespapis sociais; compe estticas que
informam as condies econmicase as intenes de uso e exibe, mui-tas vezes, detalhes, sutilezas desper-cebidas pela maioria no iniciada.
De muitas formas pode-se
O que que a baiana tem?Que que a baiana tem?Tem toro de seda, tem!Tem brincos de ouro, tem!Corrente de ouro, tem!Tem pano-da-costa, tem!Tem bata rendada, tem!
Pulseira de ouro, tem!Tem saia engomada, tem!Sandlia enfeitada, tem!Tem graa como ningum (...)(Dorival Caymmi O que que a baiana tem?)
traje da baiana
BAIANA NA FESTA DE SANTA
BRBARA, NA IGREJA
DE NOSSA SENHORA DO
ROSRIO DOS PRETOS,
PELOURINHO. SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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amarrar o toro (turbante) na ca-bea. Existem os toros amarradosde modo chamado de orelha, orelhi-nha, sem orelha, com pano branco,
engomado, detalhado em bordadorichelieu nas pontas, totalmente liso ediscreto, ou em panos listrados dediferentes cores, em brocado, seda,lam etc. O toro protege o ori (ca-bea); para as mulheres iniciadas nocandombl, o estar de toro tem signi-ficados prprios, como tambm o
estar sem toro em momentos religiososespeciais, nos quais se estabelececontato mais direto com o sagrado.
As saias armadas, volumosas earredondadas so acrscimos dasindumentrias europias saias francesa e apiam e complemen-tam coreografias, uma vez que as
roupas, alm de identificar pessoase personagens, atuam nos compor-tamentos que vo de liturgias aoteatro coletivo e de rua, cortejos e
DETALHE DO SAPATO DA
BAIANA TNIA. SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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autos dramticos.Batas largas, frescas e cmodas
so presenas muulmanas, assimcomo o changrim, chinelo de ponta,
de couro branco, lavrado.Os fios-de-contas18, chama-dos de ilequpelo povo de santo,especialmente os dos terreiros decandombl Ktu-Nag, so distin-tivos de usos feminino e masculino,embora sua maior expresso e foraesttica estejam no domnio da
mulher. Acrescenta-se aos fios-de-contas uma infinidade de objetosque buscam reforar os sentidossimblicos das cores e tambm dosmateriais empregados.
Nos candombls, as roupas debaiana ganham sentido cerimonial,e sua elaborao costuma manter
aspectos tradicionais. Nos terreirosKtu e Angola, as roupas tm ar-maes que arredondam as saias; jnos terreiros Jeje, as saias so maisalongadas e com menos armao.
TRAJES DE BAIANAS, SCULO
XIX.
FOTO: CHRISTIANO JR.
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Ainda em mbito religioso, a roupade baiana base para a dos orixs,
voduns e inquices, a que se so-mam detalhes peculiares em cores,
matrias e formatos, tais como asferramentas, smbolos funcionaisdas divindades.
O traje emblemtico da baia-na est disseminado em diferen-tes manifestaes populares. Nosmaracatus do Recife h a baianarica, baiana pobre ou catirina
com este ltimo nome, tambmnos autos do boi, em que a mu-lher do vaqueiro; crioula como achamam em cortejos e danas comoa de So Gonalo, na localidade deMussuca, Sergipe, em congadas,nas alas obrigatrias das escolas desamba. E no marketing brasileiro,
com Carmem Miranda, em solu-es visuais da baiana-rumbeira,
verdadeira sntese de latinidade. Aspencas ou molhos de balangandsou de amuletos podem ser includos
como adorno, e reforam ideais deriqueza e poder.
Hoje ausentes da composio daroupa de baiana, alguns elementos
visuais originais das pencas fixaram-se nos fios-de-conta, nas pulseirase, assim, mantm simbolicamentemarcas sociais e religiosas: of, ox,mo-de-pilo, saquinhos de couroou tecido patus , dentes encasto-ados e figas esto em fios de mian-gas, correntes de ouro ou de prata,
contas de loua, corais, languidibs,fios de bzios, entre outros.
A joalheria no traje de baiana composta de brincos argolas dostipos pitanga ou barrilzinho epulseiras (ides), de bzios, con-tas, corais, marfim, prata, ouro,cobre, lato, ferro , colares tipo
trancilim, de argolas encadeadas, eos ilequs, com as cores simblicasdos deuses pessoais, da famlia (ounao) e terreiro.
ACESSRIOS DO TRAJE DE
BAIANA (FIOS-DE-CONTAS
E PATU). PELOURINHO,
SALVADOR (BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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As baianas de acaraj e as fes-tas de largo em Salvador soreferncias culturais relevantes daBahia a que o candombl se relacio-na intimamente. Onde tem festa delargo, tem baiana de acaraj.
Essas festas religiosas19 consti-
tuem-se de atividades rituais quearticulam e relacionam universossimblicos do catolicismo oficial edo candombl; configuram, assim,o catolicismo popular20. So aspec-
tos scio-culturais relevantes noscenrios devocionais urbanos, emespecial na cidade de Salvador, noperodo de dezembro at o carna-
val, com destaque para a padroeiradas baianas de acaraj, Santa Brba-ra, celebrada anualmente no dia 4de dezembro.
festa de largo
As festas religiosas em homena-
gem aos santos catlicos so tradi-o europia cuja origem remonta Idade Mdia. Realizadas, de modogeral, no espao das igrejas e emseu entorno, caracterizam-se porintensa sociabilidade e pela presen-a simultnea de rituais religiosos novenas, missas e procisses e
manifestaes da vida cotidiana:barraquinhas, brincadeiras, m-sica, danas, comidas e bebidas.Entretanto, quando trazidas parao Brasil pelos portugueses, aqui
No dia quatro de dezembroVou no mercado levar
Na Baixa do Sapateiro (...)
Brbara, santa guerreiraQuero a voc exaltar Ians verdadeira
A padroeira de l (...)(Tio Motorista Dia quatro de dezembro)
relao doofcio com asfestas de largo
FESTA DE SANTA BRBARA NA
IGREJA DE NOSSA SENHORA
DO ROSRIO DOS PRETOS,
PELOURINHO, SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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se misturaram a outras tradiesculturais, adquiriram caractersticaspeculiares nas diferentes regies dopas e conferiram singularidades
s manifestaes da vida coletivadenominadasfestas de largo. A noode largo no Brasil, associada a essecontexto, refere-se, de modo geral,ao espao circunscrito em torno daigreja, o adro.
Em Salvador e no recncavobaiano, essas festas compem rico
calendrio baseado no ano litrgi-co catlico, cujo ciclo festivo maisimportante se estende dos primeirosdias de dezembro at o carnaval. Aarticulao entre a tradio europiae as tradies africanas mostra-semais marcante nessas localidades,pois atribui noo de festa de
largo significados que no se res-tringem ao espao sagrado da igreja,mas abrangem tambm o universoprofano das ruas. Constituem umespao simblico representado por
um conjunto de prticas e rituaisque, ao associarem santos catlicosa orixs, relacionam o catolicismooficial ao candombl. Observe-seque a confluncia dos rituais catli-cos e africanos na histria urbana daBahia mencionada por mission-
rios e viajantes desde o sculo XVII.Muitos pesquisadores que
estudam a histria social urbanaassociam essas festas aos contextosda construo social do tempo,
da formao da esfera pblica, daproduo do sentido de comuni-dade, da operao de valores quese partilham, da cristalizao dosritmos da vida social, ou seja, noescopo da ordenao das prticassociais mediante marcos de refe-
rncia temporal no calendrio localdas festas religiosas populares.
Podemos citar, como exemplo,as festas de largo de Nossa Senhorada Conceio, de Santa Luzia, do
FESTA DE SANTA BRBARA
NO MERCADO DE SANTA
BRBARA, BAIXA DOSAPATEIRO, SALVADOR (BA),
2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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Senhor dos Navegantes, da Lapinhade Reis, do Bonfim, de So Lza-ro, de Iemanj e de Santa Brbara,que ser ressaltada em funo de se
tratar da padroeira das baianas deacaraj e ser associada a Ians, orixao qual se oferta o acaraj.
Festa de Santa Brbara
O culto21 a Santa Brbara foitrazido ao Brasil pelos portugueses,
que invocavam a santa contra mortetrgica, trovoadas, raios, perigo dasarmas de fogo, exploses e tempo-rais, e, assim, fizeram-na padro-eira dos artilheiros, bombeiros,fogueteiros, fabricantes de fogos deartifcios, mineiros que lidam comexplosivos, encarcerados, pedrei-
ros, arquitetos, sineiros, tecelese chapeleiros. Na Bahia, tambm protetora dos mercadores.
No contexto do candombl,Santa Brbara corresponde a Ians
ou Oi. A Igreja catlica a celebraem 4 de dezembro, dia em que, noBrasil e especialmente em Salvador,ocorrem inmeras manifestaes:
celebrao de missas, distribuiode caruru e acarajs, toque de ata-baques, uso de vestimentas e deco-raes nas cores vermelha e branca,que correspondem tanto santacomo ao orix.
Existem verses distintas para aorigem dessa celebrao em Salva-
dor. Ansio Flix (1982), no livroBahia pra comeo de conversa, afirma queos festejos originaram-se em 1912por iniciativa de trs mulheres que
vendiam mercadorias no antigoMercado de Santa Brbara: Bibia-na, Luzia e Pinda. Naquela poca, omercado estava situado na Praa da
Inglaterra, de onde saa a procisso.Entretanto, segundo o artigo Festas
fixas, publicado pela Bahiatursa22(2005), a festa se teria originadode maneira informal, graas a um
grupo de capoeiristas e um peixei-ro, e desse ltimo seria a idia deoferecer um caruru a Santa Brbarae mandar celebrar uma missa. Pier-
re Verger, ainda, em Notcias da Bahia 1850 (1999:73), registra que, jnaquela data, essa festa inaugurava ociclo festivo de Salvador.
Sobre a participao de lide-ranas afro-descendentes na orga-nizao da festa, Joslio Santos, noartigo Eparrei, Brbara! Espetacularizao
e Confluncia de Gneros na Festa de SantaBrbara em Salvador(2005:34), locali-za referncias na memria oral queremetem a 1907, o que reafirmaa origem da festa como anterior a1912: a participao do povo desanto na festa de Santa Brbaraocorria desde a segunda metade do
sculo XIX.Independentemente da origem
que no imaginrio popular estmais relacionada ao Mercado deSanta Brbara antes localizado na
FESTA DE SANTA BRBARA NA
IGREJA DE NOSSA SENHORA
DO ROSRIO DOS PRETOS,PELOURINHO. SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
IMAGEM DE SANTA BRBARA
AO LADO DA SACRISTIA DA
IGREJA DE NOSSA SENHORA
DO ROSRIO DOS PRETOS
NO PELOURINHO, SALVADOR(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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rea do Comrcio, na Cidade Baixa, essa festa que, antigamente,segundo crnica de Pierre Verger(op. cit.:73), passava um pouco
desapercebida do grande pblico,pois ocorria em meio novena deNossa Senhora da Conceio, santade maior devoo entre os baia-nos, hoje a que mais conquistaadeptos em Salvador.
As cerimnias catlicas da festano Pelourinho so organizadas h
quatro anos por um grupo de ir-mos de devoo de Santa Brba-ra na Igreja de Nossa Senhora doRosrio dos Pretos, com alvoradade fogos s quatro horas da manh,seguida de missas s sete e s novehoras. Os cantos so entoados aosom de tambores. Em seguida, a
imagem da santa sai em procissoacompanhada das imagens de Santo
Antnio, So Cosme e So Damio,So Roque, So Miguel, So Jer-nimo, So Benedito, Nossa Senho-
ra da Conceio, So Lzaro e Nos-so Senhor do Bonfim. O percursodo cortejo comea na Ladeira doPelourinho, segue pela Rua Gre-
grio de Matos, Rua Joo de Deus,Terreiro de Jesus, Praa da S, Ruada Misericrdia, Praa Municipal,Ladeira da S, Quartel do Corpode Bombeiros, onde a procissoentra ao som de sirenas, e Merca-do de Santa Brbara, atualmentena Baixa do Sapateiro. Aps esse
trajeto, retorna Igreja do Rosriodos Pretos. Logo em seguida sadada procisso do Quartel do Corpode Bombeiros, feita a distribuiode caruru populao, e a procis-so segue para o Mercado de SantaBrbara, onde se repete a distribui-o, mas no antes da ocorrncia do
Pad de Exu23, ao som de atabaques. comum a distribuio de acarajfeita por devotos na porta da igreja.
No dia 6 de dezembro realiza-do o tradicional caruru da famlia
CAPELA DE SANTA BRBARA,
RIO VERMELHO, SALVADOR
(BA), 2004.FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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SantAnna24, preparado e distribudona rua, mais precisamente na esquinada Ladeira do Carmo com o Taboo,prximo ao Largo do Pelourinho e
ao Mercado de Santa Brbara.Anteriormente, a Festa de SantaBrbara era realizada durante trsdias de 4 a 6 de dezembro noantigo Mercado de Santa Brbara.No dia 4, acontecia a festa religiosa,com procisso e missa, no dia 5,samba-de-roda, capoeira e macule-
l, e no dia 6, o caruru. Atualmen-te, apesar de a festa ter sido reduzi-da ao primeiro dia, permanece nodia 6 de dezembro a distribuio docaruru da famlia SantAnna.
Nesse perodo, muitos terreirosfazem suas festas em homenagema Ians. Sobre a referncia a Ians
na festa de Santa Brbara, JoslioSantos (op. cit.:44) afirma que
A ritualizao da revernciamaior santa/orix durante a festa
sagrada no tem tempo determina-do para acontecer. Entre saudaesdistintas Viva Santa Brbara,Eparrei, Oi, Eparrei, Brbara
e diante do andor que carrega aimagem da santa, muitos adeptosdo candombl entram em transe.
A identificao Santa Brbara/Ian-s durante a festa (...) [demonstraque] as dimenses do sincretismocomo mistura, paralelismo ou justa-posio e convergncia ou adaptao
podem ocorrer em diferentes mo-mentos rituais e/ou em um mesmoespao.
A singularidade dessa celebraocaracteriza e traduz a vida cotidiana dacapital baiana, marcada pela inten-sa sociabilidade que se expressa em
diversas manifestaes culturais; aocontrrio das demais festas de largo quase todas em declnio a de SantaBrbara atrai, a cada ano, novos adep-tos para suas cerimnias e rituais.
FESTA DE SANTA BRBARA
NO MERCADO DE SANTA
BRBARA, BAIXA DOSAPATEIRO, SALVADOR (BA),
2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
PGINA AO LADO
ACARAJ DE IANS, NO
CANDOMBL DO ENGENHO
VELHO.
ICONOGRAFIA: CARYB.
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Ians/Santa Brbara apadroeira das baianas deacaraj
Em histria narrada por PaiCosme, um velho pai de santo daBahia, no livro Orixs: deuses iorubsna frica e no Novo Mundo (1997:168),Pierre Verger descreve o orix Ian-s-Oi (Oy) que, na frica,
divindade dos ventos, das
tempestades e do Rio Nger que,em iorub, chama-se Od Oya.Foi a primeira mulher de Xange tinha um temperamento arden-te e impetuoso. Conta uma lendaque Xang enviou-a em misso naterra dos baribas, a fim de buscarum preparado que, uma vez inge-
rido, lhe permitiria lanar fogo echamas pela boca e pelo nariz. Oi,desobedecendo s instrues doesposo, experimentou esse prepara-do, tornando-se tambm capaz de
cuspir fogo, para grande desgostode Xang, que desejava guardar spara si esse terrvel poder. Antesde se tornar mulher de Xang, Oi
tinha vivido com Ogum. (...) Elafugiu com Xang e Ogum enfu-recido, resolveu enfrentar o seurival e lanou-se perseguio dosfugitivos e trocou golpes de varasmgicas com a mulher infiel quefoi ento dividida em nove partes.Este nmero 9, ligado a Oi, est
na origem de seu nome Ians (...)Esses nomes teriam por origem aexpresso Aborimesan (com novecabeas), aluso aos supostos novebraos do delta do Nger.
Segundo a liturgia catlica,Santa Brbara era uma jovem
natural da cidade de Nicomdiade Bitnia, na sia Menor. Comoera dona de uma beleza fora docomum, seu pai, enciumado,mandou tranc-la numa torre,
para, assim, evitar a aproximaode qualquer pretendente. Duranteuma viagem do pai, Brbara pediupara ser batizada na f crist e,
como na torre onde vivia existiamduas janelas, pediu que fosse abertauma terceira, em homenagem Santssima Trindade. A atitudeprovocou a ira do pai e ela foiobrigada a fugir. Durante a fuga, osrochedos da torre abriram-se paraque ela escapasse. Denunciada por
um pastor, foi capturada, julgadae condenada a sofrer inmerossuplcios, inclusive o de serexibida nua por todo o pas. Deus,compadecendo-se de sua sorte,
vestiu-a com um manto vermelho.Depois dos castigos, foi executadapor seu pai, que lhe cortou a cabea
com uma espada. Pouco depois demartiriz-la, ele morreu fulminadopor um raio e, por causa disso,Santa Brbara passou a ser invocadadurante as tempestades.
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Dessa perspectiva, o mito de Oiou Ians e a histria de Santa Brbaraapresentam correspondncia simb-lica e se caracterizam pelos atributos
de coragem, audcia, temperamentoguerreiro e colrico, alm de seremrelacionados s tempestades.
Joslio Santos (op. cit.:37) afir-ma que, at a dcada de 1920, essaassociao tambm era feita entre
Xang e Santa Brbara. Entretanto,a partir dos anos 30, comeou a de-
saparecer e, atualmente, no existeno Brasil referncia correspon-dncia com o orix masculino. Nomesmo artigo, o autor afirma que
Os papis de incorporao dosgneros masculino e feminino que asanta catlica trazia, paulatinamen-
te, deixaram de ser a ela associadosno imaginrio afro-brasileiro. certo que as definies de gnerono plano simblico do sincretismoafro-religioso se reportavam menos
a uma identidade sexual do que correspondncia de atributos, algo
j assinalado, no incio do sculo20, por Nina Rodrigues, que se
inquietava com a relao Xang/SoJernimo/Santa Brbara.Lcia Frana, uma das entrevis-
tadas para o Inventrio da Festa deSanta Brbara realizado peloCNFCP/Iphan, no estabelece rela-o com o orix masculino e descre-
ve as mulheres de Oi/Ians como
muito batalhadeiras (...).Lutam pelos seus objetivos, pe-los seus ideais, no tm medo domedo, sempre so mulheres, comodiz assim, vistosas, dinmicas (...)E suas personalidades mais fortes amar e s vezes no ser amada. E
s vezes pensam que so at vol-veis (...) Porque no amada e avoc parte pra outro (...) umacaracterstica que elas tm daqueladominao interior que perso-
nalidade da cultura do orix (...)mulheres de Ians quase no cho-ram. Eu tiro por mim (...) Eu nome deixo esmorecer com a situao
(...) [Para mim] como [para] todasas mulheres de Ians (...) tudo pragente novidade, tudo pra gente muito bonito, sabe? tudo lindo.E vai enfrentando, e se sente muitogostosa, se sente muito dinmica. um processo que a prpria cultura,a prpria personalidade das mulhe-
res que recebem Oi, que tm Oi,tm essa performance de sada. Adizem no tem sorte no amor.No questo de ter sorte no amor,tem muita sorte no amor. amada, muito desejada, muito galantio-sa, gostosssima, mulher de todahora, sabe como que ? mas...
a situao que impe dela ser toforte assim que s vezes as pessoasficam em conflito de compatibilida-de. Mas que sabem amar, sabem serexcelentes mes, mulheres fantsti-
FESTA DE SANTA BRBARA NA
IGREJA DE NOSSA SENHORA
DO ROSRIO DOS PRETOS,PELOURINHO. SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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cas. Elas tm muito esse idealismo,mulheres idealistas, muito sonhado-ras (...) E a mulher de Oi isso![entrevista realizada em 2005]
O arqutipo das mulheres filhasdesse orix tambm descrito por
Verger (1997:170):
as mulheres de Oi-Ians soaudaciosas, poderosas e autorit-rias. Mulheres que podem ser fiis
e de lealdade absoluta em certascircunstncias, mas que em outrosmomentos, quando contrariadasem seus projetos e empreendimen-
tos, deixam-se levar a manifestaesda mais extrema clera.
Segundo o mesmo autor, noNovo Mundo, em especial no Brasil,
as pessoas dedicadas a Ians,nome sob o qual ela conhecida no
Brasil [usam] colares de contas devidro gren. A quarta-feira o diada semana consagrado a ela, o mes-mo dia de Xang, seu marido. Seussmbolos so como na frica: oschifres de bfalo e um alfanje, co-locados sobre seu pej. Ela recebesacrifcios de cabras e oferendas de
acarajs (kr na frica). Ela de-testa abbora e a carne de carneirolhe proibida.
Quando se manifesta sobreum dos iniciados, ela est ador-
nada com uma coroa semelhante dos reis africanos, cujas franjasde contas escondem seu rosto. Elatraz um alfanje em uma das mos e
um espanta-moscas feito de caudade cavalo na outra. Suas danas soguerreiras e, se Ogum est presente,ela se engaja num duelo com ele,lembrana sem dvida de suas anti-gas divergncias. Ela evoca tambm,atravs de seus movimentos sinuosose rpidos, as tempestades e os ventos
enfurecidos. Seus fiis sadam-nagritando: Epa Heyi Oya!.
Entretanto, existem pratican-tes tanto do catolicismo como docandombl que negam a associaode santos catlicos com orixs. Emnmero pequeno, tais grupos no
comprometem, no imaginrio po-pular, essa referncia.
BAIANA NA FESTA DE
SANTA BRBARA NA IGREJA
DE NOSSA SENHORA DOROSRIO DOS PRETOS,
PELOURINHO. SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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Otabuleiro da baiana concentrae reproduz prticas culturaiscoletivas, entre elas, as tcnicas defeitura de alimentos tais como aba-
r, bolinho-de-estudante, cocadapreta, cocada branca, passarinha(bao bovino frito), p-de-mole-que, doce de tamarindo, lel (bolode milho), queijada e o acaraj (detodos o mais emblemtico), quetambm podem estar presentes nascerimnias religiosas e na comer-
cializao. Produzidos na cozinhado terreiro, para as cerimnias re-ligiosas, e na cozinha da residnciade quem comercializa, ao contrriodo acaraj, os demais itens alimen-tares citados acima no so fritos noponto de venda.
Os tabuleiros, assim como os
pontos de comercializao, so parteintegrante da paisagem de Salvadore recebem o nome de suas donas:o acaraj da Tnia, da Dinha, daCida, da Regina, embora a pessoa
no tabuleiro dabaiana tem...
que est sentada no tabuleiro25
no seja necessariamente a proprie-tria: pode ser sua filha, cunhada,irm ou nora, pois trata-se de em-
preendimento familiar, cujos
pontos mais tradicionais [estolocalizados no] Bonfim, MercadoModelo, Lagoa do Abaet, Itapu,
Amaralina, Praa da S, Prefeitura,Praa Municipal, Castro Alves, Re-lgio de So Pedro, Barra, Ondina,
Pelourinho, Terreiro de Jesus, o ae-roporto, porto, vrios pontos (...).A orla de Salvador, no existe orlasem acaraj. [Clarice dos Anjos ementrevista realizada em 13/12/2001]
BAIANA DE ACARAJ TNIA
BRBARA EM SEU PONTO DE
VENDA NO FAROL DA BARRA,SALVADOR (BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
PGINA AO LADO
BAIANA PREPARANDO
ACARAJ, SALVADOR (BA),
2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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Definies e significados dositens alimentares associa-dos ao tabuleiro da baiana
Abar. Sua massa preparadacom feijo-fradinho, que fica demolho at perder a casca, em pro-cedimentos similares aos do acara-
j. A massa cozida em banho-ma-ria, os bolinhos envoltos em folhasde bananeira assada (passadarapidamente pelo fogo, ganha
qualidade especial). Cada bolinholeva um camaro seco. Os temperosde sal, cebola, azeite-de-dend ecamares secos so os usuais parao abar de uso ritual religioso,sendo o de comrcio nas vendas derua nos tabuleiros acrescido de
vatap e do molho nag. tambm
conhecido por abala ou olel. Embo-ra outros orixs (Ob e Ibeji) co-mam abar e acaraj, eles so maispopulares como comida de Ians.
Aca. Sua massa, base de mi-
lho ralado na pedra, preparada demaneira que fique to fina quantopossvel, pela utilizao da peneirade urupema, designao comum no
Nordeste. Aps um dia inteiro emque deixada na gua para azedar,essa gua trocada e a massa , en-to, cozida. O grosso mingau, reti-rado com colher de pau, colocadoem pedaos de folhas de bananeirapreviamente aquecidas no fogo paraatingir a textura desejada. O aca
esfriado geralmente em utensliode loua branca ou gata. Esse oaca branco. Segundo alguns pre-ceitos, coloca-se azeite-de-dendsobre os acas vermelhos prontos emel de abelha nos acas brancos. Acaraj. Preparado com feijo-fradinho, que fica de molho at
soltar a casca e depois passado empedra ou moinho, resulta em massaque ser temperada com cebo-la ralada e sal. A massa dever sermisturada at a consistncia deseja-
da, sempre com o uso da colher depau para preparar a liga. No azeite-de-dend fervente, em frigideiragrande, panela rasa ou tacho, aspores da massa de feijo so fritasat tornarem-se douradas.
O acaraj para uso profano
pode ser comido com o molhonag, mas para as prticas sagra-das apenas frito. Seu tamanho eformato tm simbolismos prpriosassociados a divindades especficas.
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O acaraj grande e alongado deXang; os menores servem paraas iabs como Ians; Ob e os Erstm em seus cardpios votivos os
pequenos acarajs de formato bemredondo. Tambm conhecidocomo acar.
Acaraj de azeite-doce. Pre-parado com os mesmos rigores doacaraj frito em azeite-de-den-d, esse tipo faz parte do cardpiodas divindades que no utilizam o
dend ou fazem pouco uso dele, daa fritura ocorrer em azeite-doce oude oliva. Bolinho-de-estudante. Pre-parado base de tapioca, acar eleite de coco. Mistura-se primeiroa tapioca e o acar, acrescenta-se oleite de coco aos poucos at dei-
xar essa massa bem ensopada: nopode ficar dura nem mole. Depoisde enrolado, o bolinho passadona tapioca, frito em azeite-doce etemperado com cravo e canela. T-
nia Brbara Nery, baiana de acarajque nos deu essa receita, explica suareceita do leite de coco: ralo coconatural, boto bagacinho e tudo,
completo com gua, at dar o pontopara deixar inchar. Caruru. O caruru para o tabu-leiro da baiana feito com gengi-bre, cebola, camaro, sal e um pou-co de amendoim e acar. Bate-setudo no liqidificador, coloca-senuma panela com azeite e quiabo
cortado; se ficar muito pesado, co-loca-se meio copo de gua. (Receitade Clarice Santos dos Anjos, baianade acaraj.)
Para o caruru de almoo,utilizam-se quiabos cortados empedaos pequenos, que so lavadospara conter a baba. So tem-
perados com sal, camaro seco,cebola, amendoim, castanha epodem, ainda, levar favas africa-nas. O caruru tradicional bemmais complexo em sua feitura, e
h necessidade de ervas tais comoa bertalha, unha-de-gato, cape-ba, bredo-de-santo-antnio, oi,almeiro, acelga, nabico, mostardae espinafre. comum a utilizaode peixes, carne-seca e frangos queso sacrificados por matanas rituais
em honra dos Ibejis ou Ers. Essascarnes so temperadas de modocomum e adicionadas vasilha dequiabo, ervas e condimentos. im-portante a fartura do dend, feito
QUIABOS VENDA NA FEIRA
DE SO JOAQUIM. SALVADOR
(BA), 2004.FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
ABAIXO
CARURU DA FESTA DE SANTA
BRBARA NO MERCADO DE
SANTA BRBARA, BAIXA DO
SAPATEIRO, SALVADOR (BA),
2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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da flor, e assim est pronto o pratoda predileo dos santos gmeos. Ocaruru servido em gamela de ma-deira ou tigela de barro redonda.
Segundo os preceitos, as crianascomem com as mos, sem utiliza-o de talheres. Em pequenas nagsso retiradas pores especiais,que ocupam lugar nos pejis. detradio colocar trs, sete ou dozequiabos inteiros no caruru, obriga-o comum mesmo para carurus de
uso profano realizados fora do ciclode setembro.Tambm conhecido como oma-
l de Ibeji e carirui, nomeia festaspopulares afro-brasileiras em que o prato principal: caruru de Cos-me, caruru das crianas, caruru dosers, caruru de Santa Brbara ou
caruru, simplesmente. Doce de tamarindo. Doce basede tamarindo e acar. Coloca-seo acar para queimar e acrescen-ta-se o tamarindo lavado. (Receita
de Tnia Brbara Nery, baiana deacaraj.) Lel. Prato preparado commilho e leite de coco. Utiliza-se o
milho miudinho do tipo chamadomilho vermelho, alm de canela,cravo, sal e acar. Todos os ingre-dientes vo ao fogo at tornarem-semassa consistente, qual se adicionasempre um pouco de leite de coco.O lel, depois de pronto, esfria efica bem durinho, pronto para ser
oferecido. Tambm conhecidocomo canjico ou lel-de-milho. Molho nag. Feito de limo,quiabo, jil, pimenta e camaroseco. Algumas pessoas adicionamazeite-de-dend. O mesmo quemolho guloso ou molho de lambo. Usoextra-religioso.
Munguz. Milho branco cozidoe temperado com acar, coco, cra-vo, canela e leite de vaca. Alimentocotidiano e tambm de perodosfestivos como o So Joo, comida
BAIANA TNIA PREPARANDO
O ACARAJ EM SUA COZINHA.
SALVADOR (BA), 2004.FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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ritual de Oxal em alguns terreirosde candombl e de umbanda. Passarinha. Depois de cozida eretirada sua pele, a passarinha (bao
do boi) temperada e frita. (Recei-ta de Tnia Brbara Nery, baiana deacaraj.) Queijada. O coco descascadoe picado colocado no fogo comacar e um pouco de gua. Podemser acrescentadas frutas: goiaba,abacaxi, jenipapo. (Receita de Tnia
Brbara Nery, baiana de acaraj.) Vatap. Existem dois tipos devatap: aquele servido no tabulei-ro da baiana feito com gengibre,cebola, camaro, sal e um pouco deamendoim e acar. Bate-se tudo noliqidificador, coloca-se num reci-piente ao fogo com azeite, farinha
de trigo e um pouco de gua, semdeixar de mexer sempre. Quandoengrossar, continua-se o cozimentoat ferver. (Receita de Clarice Santosdos Anjos, baiana de acaraj.)
O vatap de almoo um tipode papa de piro de peixe fresco,bacalhau e galinha. A papa cozidano leite de coco temperado com sal,camaro seco, pimenta e amendoim(facultativo). Para enriquecer osabor, pem-se, todavia, pedaos
de peixes (...), castanha-de-caju,gengibre, salsa e outros ingredien-tes (...). O vatap pode ser feitocom farinha-do-reino (trigo),farinha-de-guerra, flor de milho,
p-de-arroz (creme de arroz) oudo prprio po francs dormido,posto de molho e passado na penei-ra. (Vianna, 1977:39)
O vatap, tambm chamadoebatap, encontra-se no cardpiodo caruru de Cosme e em oferendas
ao orix Ians, entre outros.
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notas
1. Akar olel, em iorub.2. As baianas tambm mercavam o aca-
raj falando acaraj bem benzer. SegundoDorival Caymmi, em sua msicaA preta doacaraj, os gritos ecoavam como um lamento.
3. O ganho dizia respeito a qualquerespcie de venda pblica, incluindo a decomidas, realizada por escravos para seussenhores (geralmente pequenos propriet-
rios empobrecidos).4. Nesse contexto, os mitos, as mo-
dinhas e as canes populares que men-cionam a baiana de acaraj ou o acarajexpressam sua importncia no universo dasrepresentaes simblicas.
5. Segundo Maria Leda Marques,presidente da Associao das Baianas de
Acaraj, Mingau, Receptivos e Similares doEstado da Bahia (Abam), 70% das baia-nas de acaraj vinculadas associao so
chefes de famlia.6. Existem registros da denominaobaiana ou crioula para as escravas e suasdescendentes vendedoras de quitutes nasruas de Salvador desde o perodo colonial.
7. Terreiro tambm vinculado naoktu, cujo nome prprio em lngua africana, comodizem os adeptos do candombl, revela um ttulo rela-cionado a Xang I Nass Oi Acal MagbOlodumar (Lody, 1998).
8. Devido complexidade e amplitudedo tema alimentao, verificou-se a necessi-dade de definir categorias que pudessemorientar os inventrios a ele referentes.Nessa perspectiva, optou-se pela categoriasistema culinrio, noo que ser abordadano tpico 3 (Dinmica e mudanas osentido do registro).
9. Entrevista realizada em dezembro
de 2003.10. Av-Lallemant, viajante francsque passou pela Bahia em 1859, observouque as baianas levam seus tabuleiros comcomida e frutas num equilbrio impossvel!(...) O povo continua levando a Bahia na
cabea (apud Moura, 1998:31).11. Na ocasio em que nos revelou sua
receita, Clarice era presidente da Abam.12. www.cnpaf.embrapa.br13. Tais como: vermelho, verde, ama-
relo, azuis intensos e laranjas.14. Em especial o cobre e o lato dourado.15. Tipo de camisa de uso estritamen-
te feminino, geralmente feita de algodobranco com o decote bordado em richelieu,crivo ou com aplicaes de rendas de en-tremeio e de bico. O camisu vai at quaseo joelho serve tambm para compor aroupa de baixo e sobre ele usada a bata. tambm usado nas roupas cerimoniais
dos orixs, voduns e inquices; v-se, con-forme o santo, o uso de camisus, semprebrancos. A pea s vezes chamada apenasde camisa, com algumas variaes formais,como a presena de botes de ouro emmangas curtas.
16. Pea tradicional da indumentria debaiana. Lembra as roupas folgadas dos afro-islmicos, usada sobre o camisu ou camisa
de rapariga. A bata pode ser branca, rendada,bordada ou de estampas midas e em corespreferencialmente claras. tambm nocandombl um distintivo de alta hierarquia,prerrogativa das iniciadas que tenham cum-prido sete anos de obrigaes especficas.
PGINA 48
PREPARAO DO CAMARO
PARA O RECHEIO DO
ACARAJ E ABAR. SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
TOMATES SECOS VENDA
NA FEIRA DE SO JOAQUIM.
SALVADOR (BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
PGINA 48
COENTRO VENDA NA FEIRA
DE SO JOAQUIM. SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
CAMARO SECO, FEIRA LIVRE
DE SBADO, CACHOEIRA
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
PGINA 49
PREPARO DO VATAP.
SALVADOR (BA), 2002.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA
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17. Tecido confeccionado por proces-so artesanal ou de feitura industrializada,mantm caractersticas de padronagem eformato retangular. O pano pode ser bico-lor, listrado ou em madras, ou totalmen-te branco, bordado em crivo, richelieu,ponto cheio ou com aplicao de rendade bilro e outras tcnicas. confeccionadoem tiras que depois so costuradas cadapano tem em mdia seis, oito ou maistiras, de acordo com o uso e explicitahierarquia, uso festivo, tipo ou qualidadedo orix, vodum ou inquice patrono.
18. Os fios-de-contas so, comoo prprio nome diz, contas enfiadas
em cordes ou fios de nilon. Conven-cionalmente, as contas eram enfiadasna palha-da-costa, em etapa posteriorsubstituda pelo cordo feito de algodo,e recentemente pelo nilon. As cores e osmateriais que formam cada fio-de-contas
variam conforme a inteno, podendomarcar hierarquia, situaes especiais, usocotidiano, alm da combinao de certas
contas especiais, como canutilhos de coral,seguis e firmas africanas que servem comoarremates dos fios.
19. Segundo o Tesauro de Folclore eCultura Popular, festa religiosa atividaderitual freqentemente realizada em home-
nagem a divindades ligadas s religies deum grupo social. Pode exaltar uma parte daexistncia do homenageado, um aconteci-mento ou outros aspectos. caracterizadapelo poder associativo. Engloba, entre ou-tras, as esferas de lazer, esttica e tradio.Possibilita a aproximao entre indivduos,divertimento que reaviva tradies, reforalaos de origem, mas tambm incorporanovos elementos e anseios. Acontece demodo extracotidiano, mas a partir de ele-mentos caractersticos do dia-a-dia
20. Segundo Carlos RodriguesBrando (1987), em O festim dos bruxos: estudossobre a religio no Brasil, catolicismo popular
um sistema quase autnomo de crenase prticas de vivncia popular da reli-gio catlica, que, em especial, enfatiza ocarter de culto aos santos. Nbia Gomese Edimilson Pereira (1988), em Negras razesmineiras: os Arturos, ressaltam que esse modelopopular permevel influncia deoutras estruturas religiosas, que se amal-gamam de maneira a formar um todo cuja
autonomia se definir sempre em relaos estruturas religiosas anteriores, que lheforneceram elementos de representao.
21. Segundo mile Durkheim (1989),no clssico As formas elementares da vida religiosa,o culto um sistema de idias cujo objetivo
exprimir o mundo, e as prticas doculto tm a funo de estreitar os laosque unem o fiel a seu deus. Essas prticastambm estreitam os laos que unem oindivduo sociedade de que membro.
22. A Bahiatursa (Empresa de Tu-rismo da Bahia S/A) o rgo oficial deturismo da Bahia sendo responsvel pelacoordenao e execuo de polticas depromoo, fomento e desenvolvimento doturismo no Estado, de acordo com as di-retrizes governamentais (site http://www.bahiatursa.ba.gov.br).
23. Oferecimento de um alimento aExu, caracteriza o incio das cerimnias
nos terreiros de candombl. O pad composto por farofa-de-dend, farofabranca e gua; pode ser complementadocom aca e acaraj.
24. Almir SantAnna mantm a tra-dio iniciada por sua famlia junto comoutros comerciantes do Mercado de SantaBrbara, h 22 anos, quando o estabele-cimento foi vendido para particulares que
proibiram o caruru.25. A expresso sentada no tabulei-ro nativa, utilizada para a mulher quebate e frita a massa do acaraj no pontode venda, independente de estar ou noatendendo a clientela.
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o acaraj na contemporaneidadeo acaraj na contemporaneidade
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Ao longo dos anos, o processode produo e comercializaodo acaraj mudou. Se nos perodoscolonial e imperial caracterizava-sepor chegar ao espao da rua j frito quando recebia, no mximo, sesolicitado, o acrscimo de pimenta e por ser vendido por meio de ga-nhos em tabuleiros ou gamelas leva-dos na cabea, no sculo XX, passoua ser frito nas ruas, onde as baianasinstalam seu ponto, que demarca-
do por caixas de vidro ou tabuleiros.Posteriormente, foram introduzidoscomo recheios o vatap, o caruru ea salada, o que, segundo UbiratanCastro de Arajo, deve-se a trs mo-mentos e influncias:
Desde menino eu j comecei
a ver o acaraj com a possibilidadede abrir e colocar o vatap e cama-ro, pouco camaro, muito poucocamaro (...) Eu nasci em 1948, masmeu pai, que era da Marinha e fez a
ACARAJ FRITANDO NO
DEND, CACHOEIRA (BA),
2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
PIMENTA VENDA NA FEIRA
DE SO JOAQUIM. SALVADOR
(BA), 2004.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
guerra aqui, contava que foi de certaforma uma influncia muito ame-ricana porque a chegada dos ameri-canos em 43/44 mudou muita coisa(...). A cidade se americanizou mui-to, com gestos, costumes, namoro(...) e uma das coisas foi o acaraj ter
essa relao com o cachorro-quente,como sanduche, essa coisa de vocabrir o acaraj e colocar coisas den-tro: o vatap e o camaro, que du-rante muito tempo foi o padro; nos
anos 70 a influncia dessas coisas depizza, essas coisas, comearam a co-locar salada que no tinha nada a ver(...). Era vatap, camaro e pimenta,e mais recente, nos anos 80 para 90,comearam a colocar caruru j porconta do turismo, a vem a pressode fora, os turistas que querem pro-
var a comida baiana, e a o tabuleirofica farto, um pouquinho de caru-ru, um pouquinho de vatap, umpouquinho de cada coisa, e a voc
comea a encher com uma srie decoisas para dar a oportunidade aosturistas de provar essas comidas, e oacaraj passa a ser um continente,passa a fazer um papel de po, todasessas adaptaes foram adaptaesque ajudaram a modificar o acara-
j (...) mas ao mesmo tempo foi esse
acaraburgue que assegurou a manu-teno do acaraj e uma capacidadede competio com as esfihas e comos chamados sanduches. [entrevistarealizada em 18/12/2001]
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A principal mudana, entretan-to, ocorreu na dcada de 1970, coma substituio do moinho de pedrapelo moinho eltrico e a introdu-o de novos equipamentos, quan-do o acaraj comeou a ser visto commaior potencial de meio de vida. Os
tabuleiros passaram a ser comple-mentados por bolinhos-de-estudan-te, abar etc. Como outras grandesmudanas, podemos citar a partici-pao dos homens como baianos de
acaraj e a introduo, no final dadcada de 1990, de evanglicos nessetipo de comrcio.
Tradicionalmente atividade ouobrigao feminina, como o prprionome indica, nos ltimos anos temsido desempenhada tambm porhomens que, no s assumem oofcio como incorporam os sm-bolos identitrios, como as roupasde origem africana. Ainda segundoClarice dos Anjos,
assim como as mulheres con-quistaram seu espao de trabalho no[campo dito] masculino, os homensesto tambm (...) conquistando oespao de trabalho deles. [] pre-conceito [dizer] que ele no pode
vender o acaraj porque homem
a mulher no pode dirigir nibus?(...) Isso hoje mundo moderno, trabalho. O acaraj nesse nvel decomrcio, de trabalho, no existeproblema nenhum. Agora [o ho-
mem] tambm tem que respeitar atradio de vestir uma indumentriaespecfica para ele. Inclusive aqui na
Associao tem um rapaz que cris-to e tirou a carteira e est comer-cializando o produto e se veste comotal. Ele fez entrevistas, apareceu emnvel nacional, uma coisa assim ma-ravilhosa, de mostrar que no localonde ele trabalha, ele profissio-nal, respeitando todas as regras daprofisso; e saindo dali, no impor-
ta o que ele seja, se ele catlico ouevanglico, no importa... Por issoque eu falo da importncia da pro-fissionalizao; tem que se capacitarpara ser profissional, para ter nor-mas e regras e disciplina. [A Abamtem] mais ou menos 25% de homensfiliados. [entrevista realizada em
13/12/01]
A opinio de Clarice, porm,no compartilhada por todas asbaianas de acaraj, principalmen-
MOENDO O FEIJO PARA
FAZER A MASSA DO ACARAJ.
SALVADOR (BA), 2003.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
PGINA AO LADO
TABULEIRO DE BAIANA,
LAVAGEM DO BONFIM, SO
CRISTVO (RJ), 2003.
FOTO: FRANCISCO MOREIRA
DA COSTA.
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te as que so ligadas ao candombl,por acreditarem que a venda em ta-buleiro deve permanecer restrita smulheres.
No entanto, por razes econ-micas, no s baianos de acaraj,mas tambm evanglicos buscaramespao nesse mercado. Ignoram, as-sim, as questes religiosas que, ini-cialmente, atribuam apenas mu-lher filha-de-santo do orix Oi aobrigao e depois o direito de ven-
der acaraj.Os evanglicos, grupo cada vezmais crescente em todos os estadosdo pas, tm entrado nesse mercado,o que lhe atribui novos significadose o vincula a outro universo religio-so. Com esse carter, atendem a umaclientela que compartilha suas cren-
as e recusa-se a consumir o acara-j relacionado ao candombl. A esseproduto d-se o sugestivo nome deacaraj de Jesus. A ressignificaoelaborada pelos evanglicos gera dis-
puta no espao simblico entre elese as baianas de acaraj, defensoras datradio ancestral. Os dois gruposfazem uso do discurso religioso paradefender suas crenas e sua reservade mercado.
Para as baianas de acaraj, a ven-da do alimento em outros estabele-cimentos parece invaso de seu es-pao e, assim, fazem uso do mesmodiscurso da tradio para defendersua reserva de mercado:
Voc v que hoje tem acaraj emPerine, Supermercado do Acaraj &Cia., acaraj do no sei onde, issotudo quer dizer que, se a gente nose cuidar, no tiver o p no cho, deque isso tradio, a gente perde otabuleiro para os grandes empres-
rios (...) e as baianas viram escravasno momento em que lavam feijo,catam camaro, fazem acaraj e elespagam uma taxa irrisria para [elas]e eles ficam mais ricos (...). Mas os
clientes que respeitam isso [a tra-dio] s querem comer no tradi-cional tabuleiro da baiana (...). Euestou, assim como as baianas e um
vereador, reivindicando que o aca-raj tem que ficar no tabuleiro dabaiana. [Clarice dos Anjos em en-trevista realizada em 13/12/01]
O processo de produo e co-mercializao do acaraj, nas ltimasdcadas do sculo XX, diversificou-
se muito. A introduo e/ou subs-tituio de instrumentos de traba-lho, o crescimento considervel donmero de pessoas que o comercia-lizam no s nos espaos da rua, mastambm nos estabelecimentos co-merciais, e o interesse que despertouem entidades civis e pblicas apon-
tam para inmeras transformaes.
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