Às vezes perdemos tanto tempo na vida com brigas... com intrigas bobas...
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Sartre fotografo por Willy Ronis
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SARTRE,A TRANSPARÊNCIA E
O OBSTÁCULOManuel da Costa Pinto
Rep
rodu
ção
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Albert Camus escreveu no ro-
mance A peste que uma “uma forma
cômoda de travar conhecimento com
uma cidade é procurar saber como se
trabalha, como se ama e como se
morre”. O mesmo é válido para os
homens e, quando se celebra os vinte
anos de morte de uma personalidade
como Jean-Paul Sartre, o acento recai
necessariamente sobre suas exéquias
– pois elas revelam os extremos da
reverência apaixonada e do ódio
respeitoso. O enterro do autor de Anáusea foi provavelmente o último
grande cortejo público de um inte-
lectual francês, reunindo uma
multidão que incluía intelectuais,
estudantes, políticos, operários,
militantes e minorias de toda ordem.
A dignidade reservada e familiar que,
apenas quatro anos depois, marcou o
sepultamento de Michel Foucault –
sucessor natural de Sartre no posto de
figura central da intelectualidade
francesa – mostra a singularidade do
escritor existencialista, seu status de
estadista sem Estado que encarnava a
consciência e as contradições de uma
era: o século de Sartre.
É esse aliás o título do mais impor-
tante livro publicado no âmbito das
homenagens ao pensador da rivegauche: Le siècle de Sartre, do filósofo
Bernard-Henri Lévy (editora Grasset).
E a obra começa, justamente, pela cena
cinematográfica (e impensável em
qualquer outro país que não a França)
de uma manhã de abril, luminosa e
friorenta, com grupos que se formavam
diante do prédio em que Sartre vivera,
no boulevard Edgar Quinet, e seguiam
para o cemitério de Montparnasse:
“Esses milhares de homens e
mulheres, talvez dezenas de milhares,
vindos de todas as regiões do mundo,
tinham em poucos minutos invadido
as aléias do cemitério. Esses viventes.
Esses fantasmas. Esses insurgentes e
esses pequenos burgueses misturados
num zunzunzum contido. Esses
esquerdistas. Essas crianças. (...) O
grupo da NRF [Nouvelle Revue
Française] e o da Associação dos Argeli-
nos da França. Esses paparazzi à
espreita. Essas mulheres em lágrimas.
Esses cachos de jovens que provavel-
mente não o tinham lido, mas que
estavam ali, pendurados nas árvores.
Africanos. Asiáticos. Vietnamitas da
tendência Île de Lumière e vietnamitas
da tendência Ho Chi Minh – que gos-
tariam de ter se evitado, mas que a
massa, que não se mete nesse tipo de
querela, lançava uns contra os outros.
Rostos célebres. Anônimos. Casais que
o arrastão havia separado e que se fala-
vam à distância antes de se perderem
de vista. Antigos adversários, o crânio
luzente de um, o olhar melancólico
do outro – com um ar tão emocionado
que por pouco teríamos esquecido os
sarcasmos e a ferocidade de ontem. E
também, é claro, afogados na multidão,
sacudidos, às vezes arrastados pela tor-
rente, às vezes empurrados para fora
do cortejo, o círculo dos íntimos, os
apóstolos, cujos nomes eram murmu-
rados com a consideração respeitosa
que se dirige às testemunhas da
verdadeira fé – e mais longe ainda,
sentada sobre um banquinho portátil,
diante da cova aberta, com o turbante
em desordem, atropelada e quase
brutalizada, apesar do fiel que tentava
abrir aos socos um pouco de espaço
em torno dela, uma mulher bela e
triste, perdida em seu luto. Quem era
HÁ VINTE ANOS MORRIA O ESCRITOR EFILÓSOFO QUE DOMINOU A CENA
INTELECTUAL FRANCESA DO PÓS-GUERRA ECUJA OBRA POLIÉDRICA MARCA O TRIUNFO DA
LITERATURA SOBRE OS ATAQUES SOFRIDOS
PELO EXISTENCIALISMO
Na página oposta, reunião no ateliê de Picasso, em Paris.Em pé, da esquerda para a direita: Jacques Lacan, Dominique Éluard,
Pierre Reverdi, Louise Leiris, Picasso, Zance de Campan,Valentine Hugo, Simone de Beauvoir e Brassaï.
Sentados Jean-Paul Sartre, Albert Camus,Michel Leiris e Aubier.
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o homem capaz de produzir seme-
lhante prodígio? Que misterioso poder
de sedução havia feito com que uma
única vida fosse suficiente para reunir
fervores tão disparatados? Como, por
que uma voz, uma única voz, a voz seca
e metálica de Sartre, tinha conseguido
se fazer ouvir em tantas línguas e por
tantos destinos singulares?”
Esse trecho inicial dá bem o tom
do livro de Lévy – um livro apaixo-
nado, explicitamente simpático a seu
herói, aparentemente hagiográfico,
mas que na verdade é um panegírico
da figura do intelectual total, do leitor
onívoro e escritor polígrafo que autor
de As palavras encarnou como nin-
guém nesse século que assim podemos
considerar legitimamente o “século de
Sartre”. A cena do cemitério de Mont-
parnasse concentra o desenvolvimento
das mais de 600 páginas seguintes. Lévy
retoma a vida conjugal ou as muitas
vidas conjugais que Sartre manteve, a
partir do epicentro Simone de Beau-
voir, com inúmeras amantes; a obra
literária materializada em romances
como A náusea e Os caminhos da liber-dade e em peças teatrais como As mos-cas e As mãos sujas; a filosofia de O sere o nada e Crítica da razão dialética; os
engajamentos sucessivos (suas ligações
com a Resistência, com o Partido
Comunista, com os rebeldes de maio
de 68 e com os maoístas) – Lévy reto-
ma essa incandescência criativa, essa
voracidade intelectual, esse ativismo
político e sexual para traçar não um
retrato harmônico que seja a síntese
dialética da tese-antítese ambulante
que foi Sartre, mas um instantâneo,
sempre provisório, das diferentes
personas que o coabitam.
Na verdade, essa figura poliédrica
criada por Lévy obedece a uma
preocupação legítima: formular um
antídoto para duas variedades de
veneno que começavam a se espalhar
pela vida intelectual francesa logo após
aquela manhã em que Paris enterrou
seu último ídolo supremo. O primeiro
veneno – no fundo inofensivo, é bem
verdade – diz respeito à vida íntima
do filósofo. Com a publicação de Acerimônia do adeus, por Simone de
Beauvoir, e com a publicação da
correspondência entre eles (Cartas auCastor), o grande público teve acesso
ao caráter das relações amorosas entre
os dois: o caráter livresco, mais do que
carnal, de sua cumplicidade conjugal;
o caráter carnal, e partilhado em
epístolas libertinas, dos relaciona-
mentos extra-conjugais de ambos; o
bissexualismo de Castor (apelido de
Simone de Beauvoir) e seu êxtase nos
braços de Nelson Algren (a editora
Nova Fronteira acaba de lançar um
volume com suas cartas ao poeta norte-
americano) – enfim, toda uma minúcia
de detalhes que fazem as delícias da
imprensa marrom e dão munição à
baixeza de críticos que querem reduzir
uma obra a sublimações neurastênicas,
a sintomas de uma pretensa patologia
erótica. O segundo veneno – muito
mais maligno – é aquele que quis
vestir o cadáver de Sartre com o fardão
do humanista profissional, esclero-
sado, nostálgico de totalizações e
grandes sistemas filosóficos, cioso de
sua autoridade de maître à penser.
Bernard-Henri Lévy consegue uni-
ficar essas duas formas de maledicência
num alvo comum, respondendo com o
único argumento que nos fez e nos faz
ler Sartre: a literatura, e não apenas
sua ficção teatral e seus romances ou
contos, mas a escrita sartreana, essa
prosa ensaística ímpar, nem exclusi-
vamente conceitual, como nos filósofos
tradicionais, nem aquela “transmutação
estética do desespero” que Starobinski
vê nos moralistas franceses e que po-
demos ver também em Camus (o amigo
com o qual Sartre rompeu e que ho-
O filósofoJean-Paul Sartrenos anos 50
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menageou, comovido, após o acidente
de carro que o matou em 1960: sempre
a morte a dar a última palavra sobre os
homens), mas tudo isso reunido numa
mesma “vertigem da letra”, no “duplo
romance da literatura e da vida”.
“Duplo romance da literatura e da
vida”. Não se trata de um jogo de
palavras de Lévy. Se é verdade que
todo romancista nos passa, cifrada no
texto, a chave da gênese pessoal de
sua obra (uma obsessão, um rancor, um
amor, uma nostalgia) e se podemos,
não obstante, aproveitar a obra sem
utilizar a senha de acesso a seu segredo
(os estruturalistas e, antes deles, os
formalistas russos nos ensinaram que
a obra é tudo e a vida, quase nada),
em Sartre tudo se passa como se vida
e obra existissem para arrancar a si
mesmas de sua gratuidade.
Vida vivida como obra: eis o sentido
das cartas trocadas entre Sartre e
Beauvoir. “Como não se surpreender,
no coração do século XX, mas no mais
puro estilo do século XVIII, com esta
relação, ao mesmo tempo feliz e
perigosa, límpida e misteriosa, que tem
tanto de ‘casamento de almas’ quanto
de libertinagem? (...) Não com-
preenderemos nada da relação entre
Sartre-Beauvoir se, para o mal e para o
bem – os livros que eles escreveram a
partir disso... –, não tivermos em mente
o modelo precedente de Laclos...
‘Adeus, minha encantadora Castor. Ela
acaba de chegar e termino essa carta
sob seu olhar. Você conhece meus
sentimentos, mas não ouso escrevê-los,
pois poderiam ser lidos às avessas’: é
uma cena das Relações amorosas ou da
vida de Casanova”, escreve Lévy sobre
o paralelismo entre Valmont/Sartre e
Marquesa de Meurteuil/Simone de
Beauvoir. Mas o que importa nesse
paralelismo é o “programa de verdade”,
a “transparência sem desejo de
pureza”, a elisão entre público e
privado, o conúbio “amor e liberdade”
que perpassa essa história que encontra
na escrita a sua necessidade.
O imoralismo, o desejo de transpa-
rência e a promiscuidade paradoxal-
mente fiel de Sartre em relação a
Beauvoir e vice-versa pertencem a uma
intuição primeira que governa sua vida
e sua filosofia – que governa sua vida
porque governa sua filosofia (e
facilmente poderíamos aplicar a Sartre
o raciocínio de Merleau-Ponty sobre
Cézanne: não devemos buscar as razões
dessa obra na sua biografia, mas
devemos ver, nos acontecimentos dessa
vida, a biografia que essa obra exigiu).
Em O ser e o nada, Sartre havia pos-
tulado a existência de uma contrapo-
sição fenomenológica entre, de um
lado, a opacidade das coisas, dos entes
ou objetos do mundo, do ser-em-si,
com sua viscosidade resistente ao sen-
tido; e, de outro, a consciência indi-
vidual, esse nada, essa pura vacuidade
para-si que se abre para a experiência
do objeto e o “nadifica”, transfor-
mando sua opacidade em idéia, senti-
mento – incluindo-se aí (e isso será
decisivo) até mesmo uma outra cons-
ciência (um outro sujeito), que será
percebida também ela como objeto
opaco e será “nadificada”. No encon-
tro entre dois Nadas, entre duas cons-
ciências, portanto, uma resistirá à
tentativa da outra de transformá-la em
objeto, em Ser do mundo, em contin-
gência, postulando assim uma neces-
sidade (a determinação de uma cons-
ciência por outra) que, por brotar ao
mesmo tempo desse encontro inter-
subjetivo e da exigência de que a
consciência resista a se tornar “puro
objeto para o outro”, implica também
o reconhecimento de que “estamos
condenados à liberdade”.
A partir daí, os domínios do amor,
da política e da arte adquirem em
Sartre transformam-se em espaço de
Michel Foucault, sucessor deSartre no papel de estrela dafilosofia francesa
Div
ulga
ção
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CRONOLOGIA
1905 Nasce no dia 21 de junho em Paris.
1924-28 estuda na École NormaleSupérieure, na mesma turma deRaymond Aron, Canguilhem e PaulNizan. Conhece Simone de Beauvoir.
1931 É nomeado professor de filosofiaem Havre.
1933 Leciona do Instituto Francês deBerlim.
1934 Volta à França, onde leciona emdiversos liceus.
1939 Com a eclosão da Segunda Guerra,é mobilizado pelo exército francês.
1940 É preso pelos alemães em Padoux(Lorena).
1941 É libertado e volta para a França.
1942-44 Professor de khâgne (cursopreparatório paea a École NormaleSupérieure) no liceu Condorcet, em Paris.
1943 Publica O ser e o nada.
1945 É colocado em licença por prazoindeterminado. Funda, com MauriceMerleau-Ponty, a revista Les TempsModernes. Viaja aos EUA como jornalista.
1952 Adere ao Partido Comunista.
1960 Publica Crítica da razão dialética. Visitao Brasil.
1964 Publica As palavras. Recusa o PrêmioNobel de Literatura.
1965 Adota Arlette El Kaïm.
1968 Engaja-se no movimento estudantil demaio. Condena a invasão daTchecoslováquia pelos tanques soviéticos.
1970 Apóia o grupo maoísta “EsquerdaProletária” e torna-se diretor do jornal ACausa do Povo, evitando assim represálias aseus editores.
1973 Assume a direção do jornal esquerdistaLibération. Fica totalmente cego e deixa deescrever.
1980 Morre em Paris no dia 15 de abril.
VIDA E OBRA DE
POU
LOU
Sartre, de Denis Bertholet (editoraPlon, 600 págs.), não é certamente umabiografia tão reveladora quanto aquelade Camus escrita por Olivier Todd (quemostrava o fundo de desespero dodonjuanismo solar do autor de O mito deSísifo) – talvez porque a vida pública deSartre seja demasiado conhecida. Mas éde qualquer forma um trabalho minuciosoem que Bertholet (autor de uma obra sobrea vida de Paul Valéry) estabelece umdiálogo cerrado com As palavras – afascinante autobiografia em que Sartrefala do seu sentimento de desenraizamentodo mundo em função da morte de seu pai,quando ele ainda era um recém-nascido(o que justificaria a famosa frase “Eu nãotenho super-ego” e explica sua obsessãocom a idéia de gratuidade, de não-determinação das coisas e de si mesmo, queele tentou corrigir pela literatura, com aqual o escritor justapõe um universonecessário ao mundo contingente que ocerca).
As vicissitudes do pequeno Poulou, suadupla experiência de reinar absoluto numlar burguês e descobrir a um só tempo sua
feiúra física e a condescendência comque era tratado pelos adultos, estão nagênese de uma trajetória intelectualmarcada pela idéia de desalienar-se
de si mesmo que começa a ser formulada,objetivamente, com seu ingresso naprestigiosa École Normale Supérieure, emque o jovem Jean-Paul conviveu comnomes que seriam igualmente famosos,como os de Raymond Aron, Paul Nizan(que morreu na Segunda Guerra), ofilósofo da ciência Georges Canguilhem e,sobretudo, Simone de Beauvoir.
A partir daí, Bertholet oferece umafresco da vida parisiense da eraexistencialista, com a corte de Sartresendo progressivamente engrossada poruma infinidade de discípulos e (a cadarepresentação de suas peças teatrais...)atrizes que se transformam em amantes –pano de fundo pessoal para suas viagense oscilações políticas, para suas polêmicasamizades (Camus, Merleau-Ponty) epara o retrato íntimo de um homementediado com a política (emboraconvencido de sua responsabilidade cívicae filosófica), generoso, desprendido dodinheiro e das glórias literárias (elerecusou o Nobel em 1964) e cuja vida foi,acima de tudo, conseqüente com suafilosofia e seus livros.
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exercício da pura liberdade, queprocura constantemente escapar do
desarrazoado da contingência por
meio de cristalizações, instâncias domundo que criam sua própria neces-
sidade – mas que podem freqüente-
mente afogar a consciência na espes-sura do acontecimento, reduzindo-a
um objeto (“o importante não é o que
fazem aos homens, mas o que estesfazem com que quiseram fazer deles”),
ou simplesmente derivar para a má-fé
(que em Sartre nada tem a ver com osentido ético-moral do linguajar cor-
riqueiro, referindo-se antes à atri-
buição, aos fatos, de uma causalidadeque nos desvia de nossa responsabi-
lidade sobre eles), dando início a uma
nova cadeia de cristalizações que reali-zem e constituam, no plano dos seres,
o desígnios desse espírito que se lança
no turbilhão que ele mesmo cria.
A volubilidade amorosa de Sartre
é, assim, o contraponto de seus múl-tiplos engajamentos políticos, aparen-
temente contraditórios – seu antico-
munismo inicial, depois sua adesão aoPC e finalmente sua condenação do
regime soviético e a simultânea defesado marxismo, que encontra no
maoísmo uma última possibilidade,
uma última cristalização. Na políticacomo no amor haverá, porém, um
centro fixo, haverá Castor e essa
intuição fenomenológico-existencialaos quais sempre retornam suas repre-
sentações, seus textos, ensaios filosó-
ficos, romances ou meras correspon-dências – afastando assim de Sartre a
sombra do humanista entronizado
num sistema filosófico e contrapondoa esse clichê a imagem de um Rousseau
do século XX, furioso, engagé e enragé,utopista da transparência que não sedetém diante dos maiores obstáculos,
mas se lança neles sem medo de sujar
as mãos na história e assumindo aresponsabilidade por seus atos e
sobretudo por seus erros.
No livro de Lévy, a obra de Sartre
ganha estatuto literário, criando seu
próprio mundo e as representações
que o habitam. A tal ponto que, ao
comentar a literatura sartreana, Lévy
estabelece um paralelo surpreendente
entre procedimentos estilísticos pre-
sentes em Dos Passos, Joyce e Céline,
mas – o que é ainda surpreenden-
temente! – atribui as ousadias formais
de livros como A náusea e Os caminhosda liberdade à essência de sua filosofia
(e não à emulação desses vanguar-
distas):
“Só existem ali mônadas que
interferem umas sobre as outras, sem
que qualquer uma delas possa pre-
tender ter um privilégio ontológico”,
escreve Lévy sobre a ausência de ponto
de vista dominante em Os caminhos daliberdade. “E é esse ponto de sua
doutrina filosófica que é fonte de
originalidade técnica e literária; é essa
aposta metafísica que torna possível
não somente a passagem de um
narrador a outro, mas também a
ausência de hierarquia na sucessão de
narrativas; é porque Sartre é filósofo
que Com a morte na alma pode abrir
páginas em que vemos se entrelaçarem
seis perspectivas sobre a mesma situação
(...); é porque ele é esse filósofo,
porque ele produz, filosoficamente,
esse conceito de um mundo estilhaçado
numa infinidade de consciências que
são, cada uma delas, um universo
absoluto; porque ele é, numa palavra,
esse leibniziano sem Deus ou esse
pascaliano sem fé imaginando o
universo como uma totalidade quebrada
cujo centro está em toda parte e a
circunferência em nenhuma – é por
tudo isso que ele é capaz de reinventar,
na esteira dos americanos, e depois de
Proust e Céline, o romance polifônico
à francesa.”
Conferindo valor literário, demiúr-
gico, à filosofia sartreana, Lévy põe um
valor positivo nessa ficção filosófica
(usualmente tida como didática, mera
ilustradora de meditações metafísicas).
Com isso, finalmente, a própria
concepção do literário em Sartre ga-
nha outras cores – e Lévy restitui a
seu devido e merecido lugar um livro
tão erroneamente lido quanto Que é aliteratura? (usualmente tido como um
panfleto conclamando os escritores ao
engajamento partidário):
“O conceito de engajamento não é
um conceito político que insiste sobre
os deveres sociais do escritor; é um um
conceito filosófico que assinala os
poderes metafísicos da linguagem.
Falar de engajamento não significa
‘requisitar’ os homens da pena, mas
significa lembrá-los daquilo que sabem
ou deveriam saber: que cada ato de
nominação ‘se integra no espírito
objetivo’; que, fazendo isso, ele con-
fere à palavra e à coisa uma ‘nova di-
mensão’; que cada palavra pronun-
ciada contribui para ‘desvelar’ o mun-
do e que desvelar é e será sempre
‘mudar’ esse mundo.”
O escritor Louis-Ferdinand Céline
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METAFÍSICA EHISTÓRIA
NO ROMANCE DE SARTREFranklin Leopoldo e Silva
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OS ROMANCES A NÁUSEA E DE OS
CAMINHOS DA LIBERDADE ENCARNAM
LITERARIAMENTE AS DUAS DIMENSÕES DA
LIBERDADE PRESENTES NA OBRA SARTREANA,ENCENANDO A PASSAGEM DE UMA LIBERDADE
ABSOLUTA, QUE CONSTITUI METAFISICAMENTE
O SUJEITO, PARA SUA REALIZAÇÃO NA
EXISTÊNCIA, QUE É SEMPRE HISTÓRICA
Com alguma frequência encontra-
mos, entre os estudiosos de Sartre,
uma interpretação orientada pela
divisão de seu pensamento em duas
fases: na primeira, sob a influência de
Husserl e Heidegger, predominariam
os temas existenciais tratados pelo viés
fenomenológico e que teriam encon-
trado sua expressão definitiva em Oser e o nada, um tratado de ontologia
caracterizado por uma atitude de
decidida inversão na reconstrução e
tratamento de questões tradicionais da
filosofia. Numa segunda fase, a aproxi-
mação do marxismo teria feito com que
Sartre se voltasse inteiramente para a
história, prevalecendo então a busca
das determinações e mediações por via
das quais os grandes temas da cons-
ciência e da liberdade, antes visados
na esfera do absoluto, fossem tratados
como a constituição de processos pelos
quais a singularidade humana se
contrapõe dialeticamente à totalidade
histórica.
Essa interpretação se sustenta na
notável diferença existente entre Oser e o nada e os escritos posteriores,
indicando uma inflexão reflexiva que
atingiria seu ponto mais definido na
Crítica da razão dialética e em O idiota
da família. Se simplificássemos drasti-
camente a relação entre esses dois
momentos, poderíamos dizer que a
diferença está sobretudo na passagem
da Metafísica para a História. O pró-
prio Sartre por vezes corroborou essa
visão, ao analisar retrospectivamente
as diversas preocupações presentes ao
longo de seu percurso. Contudo, creio
ser possível ver aí uma continuidade,
marcada por uma diversidade de
ênfase, o que nos permitiria encontrar,
na chamada “segunda fase”, um
aprofundamento histórico dos temas
metafísicos, de cujo tratamento
anterior, aliás, a história não estava
inteiramente ausente. Se admitirmos
essa diferença de ênfase, o enlace
entre os dois momentos seria dado
precisamente pela concepção sartriana
de Metafísica: esta não seria um
conjunto de preocupações marcado
pela distância que se abre entre a
existência humana e a Substância ou
o ser enquanto ser, mas um mergulho
profundo na própria existência, não
com a finalidade de transcendê-la, mas
de superar a obscuridade e a opaci-
dade com que ela a princípio nos apa-
rece, para que possamos então encon-
trar o absoluto, o universal e o trans-
cendente nas imbricações concretas
que fazem do homem uma questão
para si mesmo.
Dada a evidente impossibilidade
de acompanhar exaustivamente as
articulações dessa continuidade na
obra de Sartre enquanto filósofo, es-
critor e crítico, procurarei apenas fazer
algumas breves indicações a respeito,
tomando como fio condutor a relação
de Sartre com a literatura. Como se
sabe, essa relação define uma linha de
reflexão que esteve presente em
Sartre durante toda a sua trajetória,
desde os comentários escritos nos anos
30, que buscam a compreensão de
Faulkner, Dos Passos, Mauriac, Camus,
Giraudox, entre outros, até a inter-
pretação inacabada de Flaubert, pas-
sando pelo ensaio Que é a literatura?,
cujas idéias centrais são retomadas nas
conferências de 1965 sobre a função
do intelectual. Ao mesmo tempo,
deve-se considerar a atividade do
ficcionista, que se inicia com a novela
A náusea e a coletânea de contos
intitulada O muro e se interrompe com
a publicação do terceiro volume de Oscaminhos da liberdade (Com a morte naalma), ao qual deveria seguir-se um
quarto, que permaneceu inacabado. E
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ainda haveria que considerar a obra
teatral, extensa e complexa. Redu-
zindo, portanto, mesmo no interior do
universo literário, as nossas preten-
sões, vamos apenas tomar aqui como
pretexto alguns aspectos, sumaria-
mente referidos, da construção das
personagens principais de A náusea e
de Os caminhos da liberdade.A história contada em A náusea é a
da descoberta da contingência por
Antoine Roquentin, um historiador
que vive em disponibilidade, preen-
chendo a sua vida com o projeto de
biografia de uma personagem secun-
dária da história francesa do século
XVIII, razão pela qual se dirige a uma
pequena cidade do interior da França,
em cuja biblioteca se encontram os
arquivos de que necessita. Esse tra-
balho, de cujo caráter inócuo Ro-
quentin tem uma consciência difusa,
serve entretanto de única referência
para a sua existência. Essa ambi-
güidade nos mostra algo como o signi-
ficado da gratuidade: A personagem
apega-se ao que há de mais contin-
gente como se fosse a razão essencial
da sua vida. Ao mesmo tempo, é
impossível que o trato cotidiano com
o contingente não o faça revelar-se
como tal. O fastio que a gratuidade
do trabalho provoca em Roquentin faz
com que ele o abandone; mas com isso
se vê também abandonado pela única
possibilidade de sentido da sua vida.
Percebe então, não apenas em relação
ao seu projeto intelectual, mas tam-
bém no que concerne a toda a sua vida,
um paradoxo insuperável: o essencial
é a contingência; tudo que é
necessário revela-se como gratuito.
Não há um encadeamento objetiva-
mente verificável que dê razão de
qualquer fato da existência, porque
ela mesma é pura factualidade, isto é,
a sequência de acasos que não podem,
de direito, constituir a vida na uni-
dade e coerência com que a deseja-
mos. Existir é um fato bruto, não lapi-
dado por categorias ou razões, sem
fundamento, sem “nada por trás”,
como conclui Roquentin. Não há o
que se possa fazer a esse respeito, mas
o desespero produz uma saída: talvez
se possa fazer algo a partir desse nada;
se a vida não é necessária, talvez se
possa, com ela, construir algo dotado
de necessidade. O seu gosto pela
música, pelos blues que ouve nos cafés,
o alerta para a necessidade construída
na arte. A música é uma totalidade
necessária, ela ocorre sempre da
mesma maneira, na mesma sequência
gravada para sempre no disco. Aquele
que a fez, a cantora que a interpreta,
certamente são seres contingentes, são
vidas gratuitas; mas a canção, isto é, a
obra, escapa de tudo isso. E essas vidas,
se estão de alguma forma vinculadas a
essa permanência, também escapam
indiretamente ao nada, deixam de
estar condenadas ao confinamento no
passado, apavorante para Roquentin.
Aquilo que não pode acontecer numa
existência efetiva acontece, então, com
o que se faz dessa existência, desde
que isso que se faz seja inoculado de
necessidade: uma canção, uma nar-
rativa, um romance, sempre algo que,
brotando de uma existência individual
e contingente, esteja fora dela. Algo
que não exista, porque o que existe é
inevitavelmente contingente, sem
razão. Não estaria aí, portanto, a
salvação? Não demonstra isso que a
nossa existência é contingente justa-
mente por lhe faltar a instância desse
narrador que tudo ordenasse?
Ater-se a esse prodígio que faz
nascer do mais contingente o mais
necessário pode representar, no
entanto, muito mais a ilusão do que a
salvação. Sartre não nos relata o
destino de Roquentin, o que ele fez
depois de ter julgado entrever a saída.
Mas sabemos o que lhe falta, e
podemos avaliar a impossibilidade de
que ela seja preenchida, mesmo que
Roquentin viesse a escrever o romance
que o imortalizaria. A contingência é
como a face exterior e objetiva da
liberdade. Descobrir que se existe
contingentemente é descobrir que se
vive em liberdade. E uma coisa é tão
inelutável quanto a outra. Minha vida
não é um romance de aventuras bem
encadeado e cuidadosamente narrado
porque o que me constitui é a minha
liberdade e não a ordem narrativa da
minha existência. Percebe-se então
Albert Camus
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que o que o herói de A náusea real-
mente deseja é construir fora de si o
sentido que não pode achar em si: um
sentido determinado. E então poderá
agarrar-se a ele e beneficiar-se dele,
como alguém que se serve de um apoio
para não cair no vazio. O horror da
contingência é também a angústia
diante da liberdade. O limiar entre
essas duas coisas, que no entanto são
idênticas, tornou-se o limite que
Antoine Roquentin não transpôs.
Já Mathieu, o herói de Os caminhosda liberdade, vive, à sua maneira, a
liberdade. Essa maneira pode ser
definida como a preservação da liber-
dade. Para ele, a liberdade se opõe ao
compromisso. Não é inteiramente o
amante; nem o amigo; não assume
objetivamente qualquer posição
política; recusa a moralidade burguesa
do irmão, mas não a afronta; não
reprime seus desejos mas também não
os realiza; sua liberdade, da qual ele
tem consciência, o coloca no entanto
numa disponibilidade muito próxima
à de Roquentin. A diferença é que não
quer saltar sobre a liberdade para
salvar-se; prefere esperar indefinida-
mente que ela se realize, mas recusa
assumir concretamente qualquer
opção. Por isso se pergunta, nos
momentos de aprofundamento da
lucidez, para que serve essa liberdade.
Outra diferença, e esta mais signifi-
cativa, entre as duas personagens, é
que Mathieu se vê obrigado a
confrontar-se com a história. A guerra
o colhe no torvelinho do absurdo e,
pela primeira vez, ele se encontra
numa situação de compromisso, mes-
mo que não a tenha buscado ou
escolhido. Eis a oportunidade. Ele está
inevitavelmente posto diante da
instância objetiva na qual poderá pro-
var a sua subjetividade, experimen-
tando-a no limite, vivendo a comunhão
conflituosa entre as consciências, na
vertigem do acontecimento. Mas para
isso haveria que assumir-se como
sujeito histórico, não basta ter sido
surpreendido pela história. Teria que
interiorizar moralmente as circuns-
tâncias e exteriorizá-las em ação,
deixar-se contaminar pela dinâmica
inerente à dor dos processos humanos,
de que a guerra é tão eloquente
testemunha. Não o faz, não pode fazê-
lo por não se sentir responsável pela
guerra, pela dor, nem merecedor da
eventual purgação que tudo isso
poderia proporcionar. Mesmo quando
suas ações se mostram corajosas e
heróicas, são ainda as reações pessoais
que predominam: a frustração, a raiva,
a vingança vividas na particularidade
de uma consciência que ao cabo se dá
conta de que não quis e não soube
correr verdadeiramente os riscos. Não
aproveita o Sursis que a história lhe
oferece.
Diante disso já podemos ensaiar
algumas conclusões. Há duas dimen-
sões da liberdade: uma que constitui
existencial e metafisicamente o
sujeito. É aquela na qual “o homem
está condenado a ser livre” porque a
sua consciência se identifica com a
liberdade, e esse é o único absoluto
real. Outra, em que essa dimensão
absoluta tem que se concretizar para
realizar-se de fato na existência que é
sempre histórica. É o plano em que a
liberdade significa libertação, o esforço
que cada um faz para tornar-se livre. A
relação entre as duas dimensões é
evidente. Só pode aspirar à liberdade
aquele que já a traz dentro de si, ainda
que vivendo-a como impossibilidade.
O escravo luta pela liberdade porque,
nele, o homem é livre. Ao mesmo
tempo, essa liberdade permaneceria
abstrata se fosse apenas atributo desse
homem universal e indeterminado.
Assim, muito embora o ser da
consciência se defina como liberdade,
isto é, a pluralidade indefinida das
possibilidades de existir, a liberdade
somente se realiza quando o sujeito
assume, no redemoinho das vicissitu-
des históricas, a tarefa de tornar-se
aquilo que já é. Esse paradoxo –
tornar-se aquilo que já é – deriva da
contradição fundamental entre a
espontaneidade da consciência e as
determinações históricas, contradição
aprofundada na vigência da sociedade
capitalista, na qual a liberdade está
submersa na opressão, da destituição
da liberdade histórica do outro. É essa
irracionalidade fundamental que
William Faulkner
Rep
rodu
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impõe a conquista da liberdade por
meio do conflito, já que a ausência do
conflito seria a anulação da possibi-
lidade da liberdade.
Podemos avaliar agora aquilo que
Roquentin e Mathieu não conseguem
perceber. A contingência não é supe-
rável porque o estar-no-mundo é, fun-
damental e originariamente, factuali-
dade contingente. Nada do que o
homem faça permitirá que escape
dessa questão sempre aberta: ele é o
ser para quem o seu próprio ser estará
constantemente em questão. A liber-
dade implica que o homem será sem-
pre incompleto e que sua existência
nunca se fechará num conjunto de
possibilidades realizadas. Por outro
lado, a liberdade não é um estado de
espírito, sereno ou inquieto. O estóico
Epiteto não é livre, apesar de assim o
pensar na serenidade isolada do seu
espírito. Tampouco Mathieu, que
experimenta as inquietações de sua
relação com o tumulto histórico. Pois
nenhum homem existe antes e à parte
de sua existência histórica. E no
entanto o homem é livre. Ele como que
desfruta de uma liberdade que ainda
está por se realizar, que ele deve
realizar. Trata-se, diz Sartre, de um
paradoxo da vida histórica. De um
lado, a consciência identificada à
liberdade; de outro a liberdade
definida pela sua realização histórica.
Essas duas dimensões da existência
não se opõem para um pensamento
que recusa a lógica da identidade abso-
luta, a unidade plenamente positiva
e a ausência total de fissuras no tecido
da realidade humana. Mas, por isso
mesmo, as ciências que se servem do
aparato analítico para constituir um
saber acerca do homem inevitavel-
mente deixam escapar as articulações
contidas nesse paradoxo constitutivo.
Pois se de um lado vigora a exigência
de universalidade, totalidade e
necessidade, características de todo
saber, de outro lado nos é dada a sin-
gularidade como valor absoluto
encarnado na individualidade livre.
Não se trata de escolher entre um sabere um não-saber, ou entre a racionali-
dade formal e a irracionalidade vivida.
Trata-se de compreender como, num
movimento de interiorização das
determinações que representam o
universal, o sujeito as acolhe e se faz
mediador de um outro movimento,
que é a exteriorização dessas mesmas
determinações, agora transfiguradas
pela singularidade subjetiva que as
incorporou e viveu. O movimento
dialético que assim se constitui destrói
os mitos da exterioridade objetiva
neutra e da interioridade subjetiva
irredutível ao seu contexto de reali-
dade.
Ora, se a ciência não pode dar
conta desse movimento, a literatura o
faz, quando nos mostra que o sentido
de uma vida depende da forma como
a totalidade está presente na particu-
laridade, como o indivíduo refigura as
determinações que o produzem, num
trabalho da consciência que nunca
termina, porque se trata de um tipo
de saber que consiste na elaboração
permanente da questão. Só a literatura
– e mais especificamente o romance –
pode representar o homem, na sua
individualidade histórica, como o
singular universal, colocando em ten-
são criadora a particularidade dos fatos
da vida e as estruturas universais que
eles ao mesmo tempo limitam e mani-
festam. Isso significa que o trabalho
do escritor tem como resultado a
produção de um universal. A especi-
ficidade da literatura está no modo de
produção desse universal. Do ponto
de vista objetivo e conceitual, o escri-
Sartre e Simone de Beauvoirdesembarcam no Brasil em 1960
Rep
rodu
ção
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tor nada tem a dizer. Sartre alerta para
o perigo de se transformar a literatura
numa sociologia ou numa psicologia
amadorísticas. A representação lite-
rária, a partir da qual se pode conside-
rar o romance como um “espelho
crítico” do indivíduo e da sociedade,
passa pela concepção da transitividade
essencial da palavra no âmbito da
narrativa. Esse aspecto é acentuado por
Sartre em “Que é a Literatura”. A
posição do objeto imaginário – a
criação literária – é possível graças à
liberdade que o artista tem de negar
o mundo existente. A recíproca dessa
negação é a construção de um outro
mundo que, como espelho crítico,
reflete o mundo real mas de modo a
que o leitor seja remetido não às
determinações que comumente o
alienam, mas à liberdade necessária
para julgar a si mesmo e ao mundo,
recompondo-os num esforço estético
de compreensão. Para que isso
aconteça, a palavra, no caso do
romance, deve ser, nos diz Sartre,
“sacrificada”: ela deve morrer em
benefício da vida do significado, pois
somente este cumprirá a função de
conduzir o leitor à liberdade pela qual
ele irá compactuar com o escritor, e
dessa reunião de liberdades nascerá o
sentido da obra. Os sentidos podem
ser múltiplos, mas a referência única
será a liberdade. Daí a necessidade de
que essa transitividade da palavra
permita que o leitor encontre a uni-
versalidade do humano numa cum-
plicidade histórica com o escritor. E
este convida à cumplicidade, falando
aos homens do seu tempo sobre
questões do seu tempo, convocando-
os para o exercício da liberdade de
leitura, contraparte da liberdade da
escrita. Sartre esperava que ambas
constituíssem os prolegômenos da
liberdade de ação.
A literatura tem, pois, a função de
despertar a consciência dos vínculos
entre o indivíduo e a comunidade
humana, mas jamais a cumprirá através
da subordinação a um partido ou a uma
doutrina. Sua tarefa é dramatizar a
condição metafísica da existência,
mostrando como o homem constrói o
Homem nos embates incertos e cruéis
que fazem nascer a singularidade indi-
vidual diante da história. É o que Sartre
nos mostra, na representação da liber-
dade falhada de seus anti-heróis.
Frankl in Leopoldo e Si lvaFrankl in Leopoldo e Si lvaFrankl in Leopoldo e Si lvaFrankl in Leopoldo e Si lvaFrankl in Leopoldo e Si lvaprofessor do Departamento de Filosofia na USP
BIBLIOGRAFIA
Obras de Sartre publicadas no Brasil (datasdas edições originais na França):
1936 A imaginação (ensaio), editora BertrandBrasil
1938 A náusea (romance), editora NovaFronteira
1939 O muro (contos), editora Nova Fronteira
1940 O imaginário (ensaio), editora Ática
1943 O ser e o nada (ensaio filosófico), editoraVozes
1945 A idade da razão (primeira parte doromance inacabado Os caminhos daliberdade), editora Nova Fronteira; Sursis(segunda parte do romance inacabado Oscaminhos da liberdade), editora NovaFronteira
1949 Com a morte na alma (terceira partedo romance inacabado Os caminhos daliberdade), editora Nova Fronteira
1952 Saint Genet, ator e mártir, editora NovaFronteira
1963 Que é a literatura? (ensaio), editora Ática
1964 As palavras (autobiografia), editoraNova Fronteira
1965 Em defesa dos intelectuais(conferência), editora Ática
Principais obras de Sartre na França(não mencionamos os títulos jápublicados no Brasil)
1943 Les mouches (teatro), editora Gallimard
1945 Huis clos (teatro), editora Gallimard
1946 L’existencialisme est un humanisme(ensaio), editora Nagel; Morts sans sépulturee La putain respectuese (teatro), editoraGallimard
1947 Baudelaire (ensaio), editora Gallimard
1948 Les mains sales (teatro), editoraGallimard
1951 Le diable et le bon dieu (teatro), editoraGallimard
1960 Critique de la raison dialectique (ensaiofilosófico), editora Gallimard
1971 L’idiot de la famille – tomos I e II (ensaiosobre Flaubert), editora Gallimard
1973 L’idiot de la famille – tomo III (ensaiosobre Flaubert), editora Gallimard
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