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“Dos cortes das piaçavas à pesca da garoupa”: contrabandista, presidentes da câmara,
juízes – experiências de Professores Públicos primários no século XIX
Antonio Lisboa1
Resumo
Esse texto analisa atuações de professores públicos na comarca de Porto Seguro – Província
da Bahia (1849-1883). O intuito é apreender suas experiências sociais e históricas enquanto
homens e enquanto professores primários, tais como seus variados negócios, contrabando e
participação política institucional que se articulavam ao exercício do magistério de forma
costumeira e como passaram a ser negativizados em consonância a constituição de um sistema
de ensino provincial a partir da criação da Diretoria Geral dos Estudos, em 1849. Esse
trabalho dialoga com conceitos da história social da cultura, atrelado ao campo/área história
da educação.Do lugar de professores construíram uma rede de apoiadores que permitiu aos
mesmos, experiências favoráveis dentro e fora do magistério, e nelas contornaram a
disciplinarização do tempo escolar. As relações sociais construídas em torno do magistério
estabeleceram-se de forma a contribuir em autoreconhecimentos e inter-reconhecimentos
entre os professores e demais detentores de capitais sociais daquela sociedade.
Palavras-chave: Professores primários. Instrução pública. Atuações e disciplina.
Experiências.
Apresentação
O professor e seus predicados
[...] Encarregado de educar as novas gerações, essas gerações que nascem, o
professor como que de algum modo completa a obra de Deus, e, seguindo a
maneira porque desempenha o seu sagrado ministério póde ser um poderoso
instrumento de civilização e de progresso ou germen de corrupção e de
morte. [...]Apostolo da religião, ao mesmo tempo que da civilização o
professor aproxima-se do sacerdote. [...].2
“Completar a obra de Deus” talvez não fosse uma tarefa fácil! Para alguns, a profissão
do magistério era mesmo um sacerdócio, mas não os encontrei na Comarca de Porto Seguro.
Os professores da comarca tinham outros bons predicados, estavam envolvidos com a política
na câmara; envolvidos com as disputas dos negócios, desde a pesca da garoupa ao
contrabando de piaçavas. Estavam envolvidos em uma teia de capital social que os protegiam.
Atuaram diretamente nos espaços públicos da municipalidade através das relações com outros
detentores de capitais sociais para garantir seus lugares, seu magistério e demais interesses. E
1 Mestrando em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Graduado em História –
UNEB. E-mail: [email protected]. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ione Celeste Sousa. Essa pesquisa tem
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB. 2O documento está hospedado no site da Unicamp, no Grupo de Estudo HISTEBR. Incompleto, não podemos
listar a autoria. Foi, contudo, escrito no Império. Os predicados do professor, São Paulo, 1875. Disponível em:
<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/fontes_escritas_imperio_manuscritos.html> Com acesso em: 10
maio 2014.
2
afinal, por que eles estavam nessas atividades; o que os fizeram possuir tais experiências
sociais e históricas; o lugar, ou título de professor contribuiu para isso, e em que medida?
No contexto imperial,3 os professores possuíam o árduo trabalho de levar civilização
aos meninos e, também meninas. Mas entre o desejo de que os mestres fossem sujeitos
polidos e a realidade, havia um distanciamento extremamente avassalador. Nem todos os
mestres mantinham nas suas relações de trabalho um comportamento condizente com
regulamentos e normas disciplinares da profissão.Esse hiato está relacionado às suas
experiências. E os que analiso neste texto fizeram outros usos desse lugar – o ser professor.
No intuito de perceber as experiências sociais e históricas, esse texto investiga
atuações de professores públicos na comarca de Porto Seguro – Província da Bahia (1849-
1883), atreladas avariados negócios, contrabando e a participação política institucional.
Aquelas se articulavam ao exercício do magistério de forma costumeira, contudo, passaram a
ser negativizadas em consonância com a constituição de um sistema de ensino provincial
tendente a disciplinar cada vez mais o (a) professor (a), com vistas a disciplinar a escola e seu
universo.
A proposição desse texto se funda na ideia de experiênciassociais, a partir da
interpretação do conceito thompsoniano para história da educação4, numa perspectiva de sua
vinculação a categoria de trabalho e compartilhamento do mesmo sentido social da profissão,
analisando como e em que aspectos o título de professor as possibilitou.
As experiências desses profissionais tornaram o cenário do magistério um oposto às
propostas educacionais da Diretoria Geral dos Estudos da Província da Bahia. Além de que
não estavam desatreladas de outras realidades na Província, as propostas de educação e
civilização da população sofreram modificações em virtude daquelas experiências.Desse
modo, se compreende que o processo da composição, construção e desenvolvimento do
magistério permitevislumbrar novos planos de fundo tanto da instituição, como dos sujeitos.
“Tal perspectiva nos permite pensar como o processo de escolarização, as culturas escolares
não são um pressuposto, elas são o processo e o resultado das experiências dos sujeitos, dos
sentidos construídos e compartilhados e/ou disputados pelos atores que fazem a escola.”5
Concebe-se que:
3 Cf. SOUSA, Ione Celeste de J. Prover as aulas, regular o Tempo: uma leitura sobre cultura escolar na Bahia
Oitocentista; SOUSA, Ione Celeste de J. Presença masculina na educação baiana do século XIX. 4FARIA FILHO, Luciano Mendes de; BERTUCCI, Liane Maria. Experiência e Cultura: contribuições de E. P.
Thompson para uma história social da escolarização. Currículo sem Fronteiras, v.9, n.1, pp.10-24, Jan/Jun 2009. 5FARIA FILHO, Luciano Mendes de; BERTUCCI, Liane Maria. Op. Cit., p. 18.
3
As ações de homens e mulheres reais são os retratos mais fiéis das
experiências sociais e históricas organizadas. [...]
A construção das experiências históricas e sociais perpassam todos os
segmentos da existência humana e elas se organizam em função das
formações religiosas, das atitudes e também das atividades profissionais
exercidas.6
A partir do raro escrito de Thompson sobre educação, essa reflexão é clarificada:
A experiência modifica, às vezes de maneira sutil e às vezes mais
radicalmente, todo o processo educacional; influencia os métodos de ensino,
a seleção e o aperfeiçoamento dos mestres e o currículo[...].7
A experiência modifica a constituição do processo educacional, tão quanto pode
influenciar os próprios sujeitos. Para Thompson aquela, mesmo sendo uma categoria
imperfeita, é necessária ao historiador, “já que compreende a resposta mental e emocional,
seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a
muitas repetições domesmo tipo de acontecimento”.8
[...] O que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que dão
origem a experiência modificada; e essa experiência é determinante, no
sentido de que exercepressões sobre a consciência social existente, propõe
novas questões eproporciona grande parte do material sobre o qual se
desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados. [...].9
O crucial nesse complexo é entender que os sujeitos não estão desatrelados da
consciência social, e que há entre eles, um diálogo.10Para esse estudo, aplicamos a seguinte
hermenêutica: não é possível analisar os professores sem conceber o mínimo de relação entre
os seus pensamentos (e como reflexo, as ações) com o lugar de trabalho.
Thompson ressaltou quanto a negação da experiência (empiria):
[...] não é perdoável em alguém que se propõe a refletir sobre a história, já
que experiência e prática são manifestas; nem é perdoável num "marxista",
já que a experiência é um termo médio necessário entre o ser social e a
consciência social: é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que
dá cor à cultura, aos valores e ao pensamento: é por meio da experiência que
o modo de produção exerce uma pressão determinante sobre outras
atividades: e é pela prática que a produção é mantida. A razão dessas
omissões se tornará clara quando examinarmos a outra expulsão, a expulsão
da agência humana.11
6MELO JÚNIOR, João Alfredo C. de C. A noção de experiência histórica e social em Edward Thompson:
Percursos iniciais. História e Perspectivas, Uberlândia (1): 393-413, jan./jun. 2014, p. 400. 7 THOMPSON, E. P. Os românticos: A Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2002, p. 13. 8 THOMPSON, E. P. A miséria da Teoria. Ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento de Althusser.
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p. 15. 9 THOMPSON, E. P. op. Cit., 1981, p. 16. 10 THOMPSON, E. P. op. Cit., 1981, p. 17; p. 34. 11 THOMPSON, E. P. op. Cit, 1981, p. 122.
4
Nessa perspectiva a análise da instrução não se dá apenas observando as modificações
nas legislações com vista a compreender os processos de disciplina que a Diretoria de Estudos
propunha aos professores; as propostas educacionais; ou o discurso ideológico do Estado em
busca da formação de identidades nacionais, por exemplo. É preciso sentir esse colorido que
está presente na ação humana, nas experiências12.
No intercalar de experiência e cultura, Thompson acreditava haver maior riqueza.
Pois as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como
idéias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, [...]. Elas também
experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses
sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco,
e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na
arte ou nas convicções religiosas. Essa metade da cultura (e é uma metade
completa) pode ser descrita como consciência afetiva e moral.13
É dessa amarração teórica que se propõe a leitura da vida dos professores e suas ações.
Tanto como um conjunto de atividades no magistério, quanto a partir deste. Nas maneiras
como lidaram com a política, como atuaram na sociedade, como articularam suas redes de
apoio e como isso decorreu nos anos de suas vidas, mas, essencialmente, como o papel de
professor está vinculado a tais experiências.
“Dos cortes das piaçavas à pesca da garoupa”: professores na Comarca de Porto Seguro
– formações, aquisitivos e suas experiências sociais e históricas
O quadro de professores (a) públicos (a) encontrado na Comarca de Porto Seguro é
bem diverso.A partir de 1850 esse quadro de mestres foi marcado principalmente pelas
atividades dos professores nos espaços públicos, essencialmente nas câmaras municipais,
atreladas a experiênciascomerciais ou políticas, principalmente a última.
Os três professores que trato neste texto fizeram parte da legislação municipal ou
outras atividades na Câmara. Suas atuações variaram entre os empregos públicos14 como
vereadores (alguns presidentes da câmara), juízes de paz, juízes de órfãos, e outros. Essas
atividades permitiram aos mesmos a consolidação de capitais (políticos e econômicos).Foi a
partir desse capital social, definição de Pierre Bourdieu, de que o mesmo é uma rede durável
de relações úteis de interconhecimento e inter-reconhecimento,15 que os professores da
12 THOMPSON, E. P. op. Cit, 1981, p. 182. 13 THOMPSON, E. P. op. Cit, 1981, p. 189. 14 Optou-se por utilizar o termo, ao invés de cargos, devido os documentos. 15 Cf. BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 67.
5
Comarca asseguraram lugares de ‘destaque’ na sociedade. Suas experiências como sujeitos
estão atreladas a esses aquisitivos, ou a economia de apoio através dos capitais.
Os professores da Comarca se empenharam em construir uma teia que os colocavam
entre os detentores de capitais sociais. Suas experiências parecem ter tons distintos de
professores que em primeira instância exerciam outras atividades por maior renda, o que de
fato era necessário se observado os seus salários. Os aqui estudados foram mais ‘famintos’
por relações sociais e participações políticas, garantidas pelo lugar de professor.
Tenho até aqui utilizado o termo professor (o que masculiniza a profissão). Os perfis
que traçarei neste artigo são de homens que estavam no magistério. Isso resultante da escassez
de fontes sobre as mestras.16
Comentei acima sobre os salários, e para uma ilustração, segue oQuadro 01.
QUADRO 01: Valores do ordenado (salários) dos mestres e mestras – divisão por categorias
de classes das aulas.
Ano Ordenado em Mil réis anuais
Por categorias das aulas Categoria por sexo do valor
do ordenado Das de 1ª Classe Das de 2ª Classe Das de 3ª Classe
1851 400$000rs. Feminino/Masculino
1856 400$000rs. Feminino/Masculino
1863 600$000rs. Feminino/Masculino
1870 800$000rs. 900$000rs. 1:000$000rs. Feminino/Masculino
1883 800$000rs. 1:000$000rs. 1:400$000rs. Feminino/Masculino
FONTE: (1) Relatório da Diretoria Geral dos Estudos (1851/1856/1863/1883); (2) Reforma Barão de
São Lourenço; (3) Relatório do Presidente da Província (1870).17
Esses salários anuais eram valores irrisórios. Em outro estudo,18 analisei as
possibilidades dos gastos mensais de uma casa com 2 filhos em comparativo entre os valores
do salário dos professores e a carestia dos bens de consumo do período na Comarca. Desse
16 Isso pede uma nota de esclarecimento! Não pude até o momento me ater às experiências das mulheres mestras
em virtude da extensa ausência de fontes. Ainda está por vi tal possibilidade. Alguns questionamentos podem
esclarecer melhor essa argumentação: as fontes sobre as professoras são escassas por quais razões; a maior parte
das aulas era de meninos (ensinadas apenas por homens), o que isso significa; além disso, onde encontraremos
indícios sobre essas mulheres? Essas inquietações serão adiadas, elas por si, resultarão em outro texto a partir de
uma análise pelas relações de gênero. 17Devem ser compreendidas nesta tabela que entre as décadas de 1850 e 1870 existiram diversas discussões
sobre a divisão de cadeiras (aulas primárias). No entanto, somente a partir de 1870 estão divididas entre 1ª, 2ª e
3ª classe nos relatórios. As de primeiras eram as mais comuns, e poderiam existir em todas as localidades; as de
segunda classe eram as que estavam nas cabeças de comarca (na Comarca de Porto Seguro, eram as da Vila de
Porto Seguro [uma de meninos e outra de meninas]); e as de terceira classe eram as da capital baiana. A partir
de 1881 na Reforma Bulcão estabeleceu-se nova divisão, sendo que as de primeiras classes passaram quando se
tratava de povoados e distritos (lugar sem câmara)para denominação de contratadas, com remunerações
baixíssimas de 500$000 réis anuais; e as demais na sequência: 1ª – vilas; 2ª – cabeça de comarca e 3ª – as da
capital. 18 Durante a monografia cruzei alguns dados de gasto e consumo. Cf. Lisboa, 2015.
6
gráfico, computei que os salários quando não apertados, eram insuficientes, principalmente
nos casos em que o professor tivesse mais de 2 filhos – o que era comum.
Para melhor ilustrar a composição do quadro de professores na Comarca, apresento o
Quadro 02, contendo operíodo aproximado em que estavam na cadeira, ou da posse.
QUADRO 02: Professores/a da comarca de Porto Seguro – BA, com listagem dos (a) mestres
(a) públicos (1850-1883).
Vila Nome Formação Cadeira do
sexo Ano
Porto Seguro
José Martins Sampaio - Masculino 1854
José Gabriel da Rocha Ley Aluno-mestre Masculino 1857
José Baptista dos Santos Silva Junior - Masculino 1877
Jozé Martins de Lima e Mello - Masculino 1878
Brazilino Machado Viegas - Masculino 1879
Hygino Coelho dos Reis Não era aluno-
mestre
Masculino 1880
D. Antonia Miquelina Gonçalves - Feminino 1854
D. Maria Joaquina da Silva Netto Aluna-mestra Feminino 1855
D. Ursulina Maria das Virgens Dourado Aluna-mestra Feminino 1879
Santa Cruz
Manoel Auxilio de Figueredo Aluno-mestre Masculino 1854
Pedro Jorge de Gusmão Rocha - Masculino 1878
José Leonardo Marinho Junior Aluno-mestre Masculino 1879
João Pereira de Souza - Masculino 1881
D. Maria Eufemia Correia Aluna-mestra Feminino 1874
D. Leopoldina Adaria Moreira Aluna-mestra Feminino 1882
Trancoso
Vicente Ferreira Ramos - Masculino 1844
Alexandre José de Mello Moraes Filho - Masculino 1872*
Caetano [Ulberto] da Rocha Guimarães - Masculino 1874
Luis Apollinario da Rocha Guimarães - Masculino 1875
Vila Verde
Manoel Alexandrino Borges Aluno-mestre Masculino 1854
Joaquim Cancella de Figueiredo Aluno-mestre Masculino 1857
Manoel de Lima Rocha Pitta - Masculino 1874
Belmonte
Bernardino d'Oliveira Pinto - Masculino 1854
Manuel Alexandrino Borges Aluno-mestre Masculino 1856
Raphael Rodriguez Cardozo - Masculino 1864
Canavieiras Manuel Francisco Soares - Masculino 1854
Arraial
D’Ajuda
Manuel Joaquim Bemfica Não é aluno-
mestre
Masculino 1875
FONTE: (1) APEB, Seção Colonial e Provincial – Maços: 1448/3958/3960/3961/6551; (2) Relatórios
dos Diretores de Instrução de 1854, 1880 e 1881; (3) Relatório do Presidente do ano de 1860.
Quando foi possível identifiquei a formação, a localidade da cadeira e o nome do
mestre ou mestra. Para alguns casos, o ano é o de provimento na cadeira (aula), mas em
outros, é a referência de quando os encontrei listados em algum documento enquanto
professores.
Esboçarei abaixo traços das experiências de três professores da Comarca. As fontes
permitiram tratar de: José Sampaio na Vila de Porto Seguro; Manoel Auxílio em Santa
7
Cruz; e Vicente Ferreira Ramos na Vila de Trancoso, na respectiva ordem. Que entremos ao
mar, entre fios de piaçavas e da rede, rede da pesca, mas também, rede de relações. Os fios de
piaçavas, que finos como as penas que cobriam o papel branco e hoje podem dar cores aos
movimentos da instrução e dos professores, são fios que tecem a história.
Não apenas professores: traços das experiências de professores públicos na Comarca
Professor, vereador e Juiz de Paz: assim posso definir o professor público José
Sampaio. Nascido em dez de junho de 1813, era cidadão brasileiro, natural de Porto Seguro,
casado com D. Antonia Miquelina Gonsalves Sampaio com quem teve uma filha legitima.
Além dessa filha, teve mais dois ilegítimos com Maria Francisca de Souza, mulher que era
desimpedida. O professor faleceu em vinte de fevereiro de 1890. 19
José Sampaio começou a exercer o magistério antes de 1854, isso por que se jubilou20
em fins da década de 1850 na cadeira de primeiras letras da Vila de Porto Seguro. Do seu
exercício no magistério, não obtive muitas evidências. Contudo, é valioso salientar que
quando da visita de inspeção das aulas feita em 1850/5121 o professor não foi listado entre
aqueles sem zelo com o ensino. Isso pode significar que o mesmo possuía uma prática no
ensino dentro das regularidades básicas exigidas.
Em 1851 para o exercício da cadeira de primeiras letras o Prof. J. Sampaio recebia o
ordenado no valor de 400$000 réis anualmente. Esse era o valor pago ao professor (a) de
primeiras letras. A forma de pagamento era extremamente penosa, uma vez que os mesmos
recebiam em parcelas, que podiam ocorrer somente ao final do ano (casos comuns), ou
dividia-se em 3 ou 4 parcelas anualmente.22 Isso colocava os professores em alguns
“arrochos”.23
Devo ressaltar que no período de seu exercício no magistério, as aulas eram dadas
(obrigatoriamente pelo Regulamento) em duas sessões diárias. Também se incluíam na
19 APEB. Seção Judiciária. Doc. 08/3397/17. Inventário José Martins Sampaio (1890). 20 Jubilar-se é o ato de ‘aposentar’ no serviço do magistério. Desde 1836 (Lei n.º 35/1836) até a década de 1860
essas jubilações oscilavam, sem um parâmetro especifico. Comumente recebia-se vitaliciedade aos 5 anos de
exercício, e muitos pediam jubilação a partir de 10 anos de exercício. Essa prática a partir de 1870 foi mais bem
regulada, conseguindo-se a jubilação com ordenado integral somente após 20 anos de exercício, acompanhada da
proibição de ficarem em exercício recebendo outras gratificações (comumente era mais um terço do salário). 21Relatório sobre o estado da Instrução Pública da Provincia da Bahia apresentado [...] por Casemiro de Sena
Madureira, Director [...] 1851. Bahia, Typographia Const. de Vicente Riveiro Moreira, rua do Tijolo nº 10, 1851.
Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/114/>. Acesso em: 12 maio 2014. 22 APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Instrução Pública. Maços (3958/3961/3961). E Relatório (1856). 23APEB. Seção Judiciária. Livro de Nota 366/CX102 – Escrituras. Escritura de hipoteca (1866).
8
atividade do ensino primário, as obrigações com as missas aos domingos, onde o professor
primário acompanhava seus discípulos como meio do ensino religioso.24Isso demanda discutir
quais possibilidade o professor teria para complementação de renda, ou outras atividades na
sociedade.
Já quanto a característica apresentada no início desse texto, de que os professores da
Comarca exerceram atividades políticas na câmara, identifiquei que o Prof. José Sampaio era
em 1857, vereador da Câmara Municipal de Porto Seguro. Havia pouco mais de um ano de
sua jubilação de professor público.Um ano antes (1856), o professor estava também listado
entre os eleitores da Vila de Porto Seguro para deputados. Entre os vários homens que
participaram, Prof. J. Sampaio estava entre os quatro mais votados.25 Devo ainda destacar que
neste mesmo ano, Prof. José Rocha Ley e Prof. Vicente F. Ramos também foram listados
enquanto candidatos a eleitores, tendo diminutos votos. Eram novos na vila, fator que pode ter
influenciado o baixo número de votos, ainda não haviam consolidado seus lugares.
Essa informação de que o professor foi bem votado demonstra o seu alcance de
capitais sociais e das relações estabelecidas que o fazia estar entre os que detinha ‘destaque’
na sociedade porto-segurense. Notou-se que o lugar de ser professor público na Vila de Porto
Seguro garantiu ao mesmo tal possibilidade.
Terminada a atuação na câmara, o professor Sampaio continuou a exercer emprego
público.Pela “Relação nominal dos Juizes de Paz Eleitos”26 encontrei o Prof. J. Sampaio
eleito para exercer o lugar de Juiz de Paz do 4º ano (1860). Após esta aparição nos
documentos da câmara, não o encontrei novamente em exercício de alguma função/atividade
pública. Tanto como presidente da Câmaraou juiz, esse lugar garantia ao mesmo maior
destaque na sociedade. Esse tipo de juizado resolvia pequenos atritos, uma espécie de
moderador local desses conflitos. Isso lhe garantia algumas possibilidades, e principalmente, a
visibilidade. Poder social: talvez seja a melhor colocação para o status do juiz de paz.
O aquisitivo acumulado pelo professor José Sampaio não foi um dos maiores entre os
professores analisados. A partir de cadernetas e apólices percebe-se que tinha meios
acumulativos de ‘dinheiro’. O que é importante na realidade da comarca, que não era tão
próspera. O professoroptou por manter seus acúmulos financeiros em apólices. O único
24 Resolução 379 de nov. de 1849 e o Regulamento de 26 de fev. de 1850 – Francisco Gonçalves Martins. In:
Relatórios dos Diretores de Instrução. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/114/>. Acesso em: 12 maio
2014. Não encontrei relatos sobre essa atividade do professor aos domingo. 25APEB. Seção Colonial e Provincial. Série C. das Câmaras Municipais. Maço 1384 –Porto Seguro – (1856). 26APEB. Seção Colonial e Provincial. Série C. das Câmaras Municipais. Maço 1384 –Porto Seguro – (1857).
9
professor que encontrei na pesquisa com tal prática.27 No seu testamento, informou: “Declaro
que tenho depositado na Thezouraria de Fazenda Geral da Bahia, [...], duas de conto de réis
(cada uma) e uma de quinhentos mil réis,[...].”28Deixou a caderneta ao neto Constancio, de
723$000 réis.
Além desses e de outros pequenos bens móveis, o professor deixava em 1890 alguns
bens de raiz. Dentre eles estavam três casas, uma no valor de 1:500$000rs. (um conto e
quinhentos mil réis), e a mais simples de 300$000 réis na Vila Alta. Outra casa simples,
situada na rua 15 de Novembro que só tinha uma porta e uma janela, e nesta não havia
divisão.29Sendo que o Prof. J. Sampaio não recebia nenhuma gratificação por aluguel de casa,
indicamos que esta possa ter sido a casa-escola em que o professor trabalhava quando exerceu
o magistério público. Também, onde sua mulher podeter ensinado mais tarde juntamente com
o mesmo, no magistério particular. Era comum que o professor tivesse um sobrado, ou duas
casas contíguas, uma para o magistério e outra para morada.
A “fortuna” deixada pelo Prof. José Sampaio foi de 6:044$820rs. (seis contos quarenta
e quatro mil e oitocentos e vinte réis). Esse valor foi deixado sem dívidas. Tomando por base
o cálculo usado por Kátia Mattoso de dez contos de réis para ser incluído entre os ricos,
podemos pensar que, numa realidade da vila de Porto Seguro, ter ficado um total líquido
acima de seis contos já era alguma boa quantia.
O Prof. J. Sampaio também fez parte de duas irmandades. No seu inventário faz
referência a um morgado30 que as envolvia, uma era a Irmandade d’Ajuda e a outra
Irmandade dos Passos (já extinta em 1890). Sendo assim, obtive evidências de que o
professor tinha não somente o capital social devido seus vínculos com a Câmara, mas
também, pela experiência na irmandade, que é prenhe de relações de interconhecimentos.
Na Villa de Santa Cruz, da mesma Comarca, encontrei o ex-professor Manoel Auxílio
criticado não somente no aspecto moral, mas principalmente pelo seu comportamento
autoritário. Foi assim que o denominaram de: “O homem é o diabo”. Se tratava de Manoel
Auxílio, que de professor público esteve envolvido nocontrabando de piaçava em Santa Cruz.
27 Deve-se ressaltar a importância dada a isso por Mattoso, ela se referiu ao ato de guardar dinheiro em poupança
por aqueles que se encaixavam na classe de ricos. Isso levando em consideração a capital baiana quem tivesse
10:000$000rs. acima, a autora denominou de ricos. MATTOSO, Katia M. de Queirós. op. cit., p. 609. 28APEB. Seção Judiciária. Doc. 08/3397/17. Inventário José Martins Sampaio/ Cópia Testamento (1890). 29APEB. Seção Judiciária. Doc. 08/3397/17. Inventário José Martins Sampaio (1890). 30 A definição do termo Morgado, é segundo dicionário do século: Herdeiro de morgado. Morgado. Bens
vinculados em certos sucessores, que não se podem alhear. Para melhor compreensão, alhear, é: traspassar a
alguém a posse, o direito a propriedade do que he nosso. Cf. PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da
Lingua Brasileira. Typographia de Silva: Ouro Preto, 1832. Esse morgado era acima de um conto de réis.
10
Manoel Auxilio de Figueredo, professor público da Vila de Santa Cruz, provido em
1854 foi um homem de muitas disputas, muitos inimigos e de forte ação na mesma vila. Do
seu magistério, ressalto a importância de ser aluno-mestre. Da sua prática no magistério, são
parcas as considerações. Mas através do sujeito Manoel Auxílio, apreende-se as ações do
professor público. As experiências do homem político tiveram, nitidamente, reflexos na vida
social daquele lugar.
Prof. Manoel Auxílio teve a política imbricada à sua vivência como cidadão de Santa
Cruz. Através de diversos processos cíveis surgiram suas várias experiências sociais. Um
homem de políticas e negócios, detentor de uma rede de protetores, na câmara e noutros
cargos públicos. “O homem é o diabo”, foi uma expressão encontrada em um dos processos
cíveis movidos contra o professor. O mesmo sabia que detinha essa rede de apoio e a utilizava
muito bem. Fervoroso nos negócios públicos, segundo os documentos, o mesmo possuía
influência nas atividades políticas do local. Por ter algumas pequenas propriedades de
plantações, como, por exemplo, de mandioca e piaçavas, constantemente tinha disputas com
alguns desafetos na vila de Santa Cruz e com a câmara de Belmonte.
Em 1879, identifiquei queixas que a Câmara Municipal de Santa Cruz fez contra o
Juiz comissário das comarcas de Porto Seguro e Canavieiras. Em resposta ao juiz de direito, o
juiz comissário apresentou parte do nosso professor. Denunciava que “Em primeiro lugar
tenho a ponderar-a V.Exª que tal representação é obra de Manoel Auxilio de Figueredo, que
se dizendo influencia eleitoral da localidade, se julga authorisado a devastar os terrenos
devolutos, nos fundos de sua propriedade de coqueiros sita a Mugiquiçaba:[...].”31 Na mesma
correspondência ainda informava que a câmara era favorável às devastações que o ex-prof. M.
Auxílio realizava ao longo da costa em terrenos devolutos próximo ao Rio Mogiquiçaba
(atualmente município de Belmonte), o que por lei era proibido segundo os autos de processo.
Essa devastação era da mata e dos coqueiros de piaçava. Manoel Auxilio comercializava
piaçava extraída ‘ilegalmente’.32
Noutra correspondência do mesmo ano, a câmara de Santa Cruz comunicou a
presidência da província os “reais motivos da demarcação das terras entre Santa Cruz e
Belmonte”.33 Em defesa do Prof. Manoel Auxílio, acusou o juiz comissário de estar
interessado na piaçava do terreno para enriquecer o sogro e a si mesmo. Esse documento
demonstra a relação estabelecida por Prof. M. Auxilio para consolidação de seu capital
31APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Justiça. Doc. 2545. Correspondências de Juízes (1878-1889). 32APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Justiça. Doc. 2545. Correspondências de Juízes (1878-1889). 33APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Justiça. Doc. 2545. Correspondências de Juízes (1878-1889).
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(político e econômico) através do capital social, o que fez de sua experiência uma verdadeira
zona de disputas na política.
Também no ano de 1879 ainda havia outros problemas com professor Auxílio. O Juiz
Municipal o representaria pelo contrabando de piaçavas.34 Nessa conjuntura foi expedido
mandato para que fosse apreendida toda piaçava armazenada na Fazenda Coqueiros,
propriedade de Prof. Manoel Auxílio. Em todas essas correspondências havia elementos de
articulação dos grupos. De um lado a câmara e seus vereadores a favor de Prof. M. Auxílio,
do outro, o Juiz Municipal e o Juiz Comissário também com seus interesses lucrativos. A
câmara de Belmonte também estava envolvida diretamente, pois era vinculada ao juiz
comissário.35
Além desses indícios, encontrei diversas dividas do professor.36 Essas negociações
ultrapassaram em 1879 o valor de 3:319$119rs. (três contos trezentos e dezenove mil cento e
dezenove réis).Assim como os demais professores, Manoel Auxílio também convivia com
essas dependências de credores, em vista dos outros negócios que fazia (resultante talvez do
módico ordenado do magistério).
Contudo, as brigas de professor Auxílio não eram apenas pelos interesses econômicos.
Anos depois das disputas na Câmara pela devastação das terras e retiradas de piaçava,
identificamos Prof. M. Auxílio envolvido em questões políticas muito acirradas. No ano de
1890, Manoel Auxílio exercia o emprego de 2º juiz de paz da vila, e como tal encabeçou as
atividades da mesa de alistamento eleitoral. O problema em torno disso foi a divergência de
ideais políticos e as radicalidades desses grupos em Santa Cruz.
No papel de juiz foi acusado de caprichos, injustiças e desmandos no alistamento.
Também de ocultação das atas e livros da mesa, de ter inserido somente conteúdos que quis
na ata, trancado a intendência entre 18 a 24 de maio de 1890, e de ter ordenado que não
fossem despachadas diversas petições e requerimentos de cidadãos de Santa Cruz, e que de
não ter repassado a cópia da ata do alistamento e da lista final.37
De fato, ao que tudo indica, a casa da intendência ficou fechada por diversos dias,
enquanto Prof. Manoel Auxílio articulava com outros poderes a manutenção da ordem,
34 Essa piaçava era principalmente comercializada em Belmonte (como consta nos documentos), sendo a mesma
‘exportada’ para fora (possivelmente Minas Gerais e Salvador). 35APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Documentos avulsos. Maço 1418 –Santa Cruz – 1846 a 1888. 36APEB. Seção Judiciária. Doc. 70/2506/06. Processo Cível. (1881). 37APEB. Seção Judiciária. Doc. 65/2516/11. Processo Cível. (1891).
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comorelatou nos autos. O professor em sua defesa justificava os atos.38 Em torno desses
desentendimentos, a vila foi marcada por ameaças e tramas. A favor do denunciante, alguns
empregados públicos, como o 1º juiz de paz que não assumiu as eleições, fazendo depois uma
segunda lista. A favor do professor, diversos empregados da intendência e outras
autoridades.O conflito foi tão emblemático, que no referido período foram realizados dois
alistamentos na Vila. E neste contexto, apareceu denominado de homem “endiabrado”, em
quem todos temiam.
Tão importante como os já citados, foram alguns outros processos encontrados em que
o professor disputava a construção de uma casa e a posse de um terreno com uma lavradora e
seu compadre. Em meio a essa documentação algumas evidências deixaram a possibilidade de
o mesmo ter tido relações com a lavradora Prudencia Brito. Os documentos explicitaram
evidenciaram também um perfil “conservador” do professor em relação a participação social
de negros (ou como indicou em uma apelação, de um homem africano). Essa evidência será
explorada em outro momento. O Prof. M. Auxílio descortinou a possibilidade de uma longa
abordagem, mas que devo por ora estanca-la.
Estanca-la porque os fios da piaçava não poderão ofuscar as redes de pesca das
garoupas. Estamos nos passos de Vicente Ferreira Ramos, o professor da aula primária da
Villa de Trancoso que terminou a vida como comerciante de garoupas. Este estava na
regência da cadeira de primeiras letras da vila a partir de 1844. É bem provável que já atuasse
no magistério a mais tempo.
Não há evidências de que era aluno-mestre da Escola Normal, possivelmente era leigo.
A aula em que Prof. Vicente Ramos ensinava era uma cadeira atípica, pelo número de
discípulos que frequentava e a capacidade de a mesma ficar aberta por muitos anos com a
média de frequência de 10/15 alunos,39número inferior aos regulamentos. O mesmo atuou na
cadeira de Trancoso até 1855, e após suspensão da cadeira não o encontrei no magistério
novamente.
Em 1856, a aula de Trancoso estava extinta, com isso o ex-professor Vicente Ferreira
mudou-se para a Vila de Porto Seguro. Nesta mesma vinda à Vila, o professor fez parte das
eleições de Juiz de Paz, sendo eleito ao 2º ano. Contudo, não tomou posse:
38 Consta nos autos do processo que o eleitor não poderia se alistar em duas localidades distintas e nem em
comarcas diferentes. Neste caso, o eleitor estava alistado em Canavieiras e Manoel Auxílio provou por atestados
que anexou ao processo para servir a sua defesa. 39 Essa baixa frequência de alunos já foi analisada em outro momento (Lisboa, 2015), e a justificativa era pelo
fato de ser uma vila de índios.
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[...] sendo convidado pela Camara para no dia 7 do corrente mez de janeiro
vir tomar a competente posse, chegado este dia oficiou dizendo qe em quanto
não tivesse demissão de Professor de um[a] Freguezia diferente d’esta não
podia tomar posse, como se mostra do officio por copia junto, cujo officio
sendo submethido á consideração d’esta Camara foi resolvido que não
constando, que o referido Cidadão fosse Professor de alguma Freguezia
[...].40
Deve-se indagar por que Vicente Ramos não quis tomar posse de juiz de paz.
Provavelmente porque ocuparia muito tempo? Essa pode ter sido uma, dentre tantas
possibilidades. Mas o interesse do ex-professor Vicente Ramos era mesmo de ser reintegrado
na cadeira, ao menos foram estas suas justificações. Encerrou sua carreira enquanto mestre no
magistério após ter sido removido da cadeira de Trancoso entre os anos de 1854 a 1856.
Após sua saída da cadeira de professor, já em 1856, Vicente Ramos estava entre os 18
homens eleitores da Paroquia Nossa S.ª da Pena (Porto Seguro), era o primeiro suplente
eleitor para deputados. Talvez um dos primeiros esforços para alcançar a participação política.
Muito similar ao Prof. Manoel Auxílio de Santa Cruz, Prof. Vicente Ramos exerceu
diversas atividades paralelas ao magistério. Uma delas era o empreendimento de pesca de
garoupa ao longo da costa entre Porto Seguro e Comandatuba em Canavieiras. E por isso
possuiu uma longa trajetória de ações e disputas nas Vilas de P. Seguro, Trancoso e na capital.
Em meio as ações políticas, também notamos seu afastamento do magistério e
permanência nos ramos de negócios. Um hyate com mercadorias do mesmo foi embargado
em 1864 no Porto de Salvador, devido ao não pagamento de uma dívida na Cidade da Bahia.
O barco ficou apreendido no porto para quitação de 361$228réis de dívida restante doutra de
2:076$082réis.41 Também não demorou muito após ter se fixado na vila de Porto Seguro, para
que Vicente fizesse parte da câmara municipal. Em 1865, o mesmo era vereador daquela
vila.42 Fator importante para compreendermos como o professor público construiu seus
espaços políticos e futuras defesas em suas disputas. A câmara pareceu-nos uma possibilidade
de facilitação dos seus negócios.
Ao final da década de 1870 encontrei Vicente Ramos também com suas ações
judiciais para defesa de seus interesses econômicos. Em um processo que movia contra
Jesuíno Conceição, notamos que o mesmo comercializava farinha e peixes. Em 1880 a dívida
40APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Correspondências das Câmaras Municipais. Maço 1384. (1857). 41APEB. Seção Judiciária. Doc. 28/973/28. Processo Cível (1864), fls. 5-7. 42APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Correspondências das Câmaras Municipais. Maço 1384. (1865).
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era de quatro contos de réis,43e como resultado do não pagamento perdeu a Fasenda Bomfim,
em Água Branca44 (Trancoso) que apareceu no inventário de Vicente em 1893.
Em 1880, através de um processo cível apareceu o ramo dos negócios do antigo
mestre. Em virtude do afundamento da garoupeira “Flor do Brazil” em Comandatuba e a
perda de mais de 2 mil garoupas, notou-se que o mesmo não apenas comercializava peixes,
mas também, que este era seu grande empreendimento mar a dentro. Na representação contra
a Companhia Brazileira de Paquetes a Vapor, destaca-se que “Vicente Ferreira Ramos, [é]
residente em Porto Seguro, [...] dono e possuidor de uma embarcação armada á garopeira sob
o nome de “Flor do Brazil” destinada á pesca de garôpas, [...]”.45
O elemento que mais chamou atenção é a possibilidade de que Prof. Vicente Ramos
tenha utilizado mão de obra escravizada no empreendimento.46Durante o afundamento, houve
a perda de um escravo que se encontrava na pescaria das garoupas. Conforme a justificação
de Vicente, “6º Que da [abuleação], resultante de impericia ou negligencia de gente de bórdo
do Vapor, proveio a perda total da garopeira e a morte de um dos seos tripolantes de nome
José, africano, de 40 á 50 annos de idade, solteiro, escravo de D. Maria do Rozario
Cancella.”47
A partir dos depoimentos dos sobreviventes, identifiquei que o dito José era o único
escravizado presente. Isso nos impulsiona a questionar se o escravizado era alguma troca de
favores, se era uma espécie de aluguel usado em tempos de pesca, se era uma sociedade no
barco ou em última instância apenas um deslocamento do mesmo. É preciso atentar-se para a
relação estabelecida entre D. Rozario Cancella e Vicente Ramos.
É importante perceber que o ex-professor da Vila de Trancosose tornou um
‘importante comerciante’ em Porto Seguro e talvez na praça da Cidade da Bahia. E seus
aquisitivos não eram baixos. Sua fortuna ficava em 8:829$680réis em saldo líquido. Seus
bens totalizaram 10:290$510réis e dívidas de 1:460$830réis. Isso não era das maiores
riquezas, mas Vicente Ramos foi entre os quatro professores, o de maior aquisitivo.48 Não
seria arriscado considera-lo rico! Já quanto ao seu capital social (político) compreendemos
que suas ações na câmara foram em detrimento de seus interesses comerciais. A câmara
43APEB. Seção Judiciária. Doc. 33/1157/4. Processo Cível – ação decendiária. (1878), fls. 108-115. 44APEB. Seção Judiciária. Doc. 56/2007/11. Processo Cível – Arrematação dos Bens de Jesuíno. (1880). 45APEB. Seção Judiciária. Doc. 43/1520/23. Processo Cível – Justificação. (1880). 46 Similar a este, está o Prof. Manoel Auxilio em que não excluo também de tal possibilidade para os cortes de
piaçava. Em diversos documentos apareceu tal suspeita, mas que ainda não se confirmou. 47APEB. Seção Judiciária. Doc. 43/1520/23. Processo Cível – Justificação. (1880). 48APEB. Seção Judiciária. Doc. 08/3397/19. Inventário de Vicente Ferreira Ramos (1894).
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representou para o mesmo a possibilidade de produzir a rede de apoio necessária. Entre
farinha, garoupas, câmara e a antiga aula, Vicente Ramos, em essência, era um homem de
negócios, razão de ter sido punido com a perda da aula por baixa frequência de alunos e faltas
do professor.
Em traços gerais e ainda inconclusivos, com o cruzamento dos dados dos professores
apresentados aqui, destaco que o principal elemento que os envolveu foi a câmara municipal.
Fosse esta relação pelo interesse comercial, como foi a de Vicente Ramos, fosse pela política
como José Sampaio, fosse pelas duas coisas como foi o caso de Manoel Auxílio em Santa
Cruz. O espaço mais representativo para as disputas e alianças políticas desses professores foi
a câmara municipal, e elas partiram do lugar de ser professor. Na Câmara apoiavam e eram
apoiados, o que culmina profundamente em um rico capital (social e político) e suas
experiências não estão desatreladas desses capitais. Eles articularam a carreira do magistério
ou os negócios, ao capital social possibilitado pela ação política e pelos empregos públicos.
Não encontrei indícios dos professores na comarca dentro de outras instituições que
fomentassem o desenvolvimento da instrução, como, por exemplo, clubes, associações de
caridade para meninos e meninas, etc. Ainda sobre o envolvimento destes com o
desenvolvimento da instrução, é preciso aprofundar-se, principalmente pelas raras evidências
na documentação. Os caminhos ainda estão abertos para traços!
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