DO OLEIRO, EM A CAVERNA CENTRO UNIVERSITÁRIO RITTER DOS REIS – UniRitter PROGRAMA DE...
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Márcia Morales Salis
DO OLEIRO, EM A CAVERNA,
A REALIDADES DA CERÃMICA ARTÍSTICA BRASILEIRA
Porto Alegre 2010
1
CENTRO UNIVERSITÁRIO RITTER DOS REIS – UniRitter PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
Márcia Morales Salis
DO OLEIRO, EM A CAVERNA, A REALIDADES DA CERÂMICA ARTÍSTICA BRASILEIRA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profa Drª Regina da Costa da Silveira
2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
S166o Salis, Márcia Morales.
Do oleiro, em ―A caverna‖ a realidades da cerâmica artística brasileira / Márcia Morales Salis. – 2010.
97 f. ; 30 cm. Dissertação (mestrado) – Centro Universitário Ritter dos Reis,
Faculdade de Letras, Porto Alegre, 2010. Orientadora: Prof
a Drª Regina da Costa da Silveira.
1. Identidade. 2. Artesanato. 3. Artífice. I. Título. II. Silveira,
Regina da Costa da.
CDU 39
Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Dr. Romeu Ritter dos Reis
3
Márcia Morales Salis
DO OLEIRO, EM A CAVERNA, A REALIDADES DA CERÂMICA ARTÍSTICA BRASILEIRA
Dissertação apresentada e aprovada, como requisito para obtenção do título de
Mestre em Letras, na área de concentração Linguagem, Interação e Processos de
Aprendizagem, pela banca examinadora constituída por:
______________________________
Profª. Dr. Regina da Costa da Silveira
LETRAS -UNIRITTER
_________________________
Profª. Dr. Leny da Silva Gomes
LETRAS - UNIRITTER
______________________________
Profª. Dr. Márcia Helena Barbosa
LETRAS - UPF
Porto Alegre
2010
5
Agradeço ao Centro Universitário Ritter dos Reis pela oportunidade de cursar um mestrado multidisciplinar em Letras; a todas as professoras, com quem eu tive a honra de conviver durante o curso; aos meus colegas de aula e a todos os funcionários do UniRitter. Agradeço, especialmente, a amizade, a generosidade e o incentivo em todos os momentos a três grandes amigas, grandes exemplos: minhas colegas Martha Guterres Paz e Eva Esperança Guterres Alves e minha orientadora Profª. Dr. Regina da Costa da Silveira.
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SE CRIA ASSIM
Quem cria tem que durmir Pensar bem no passado
De tudo ser bem lembrado Jirar o juizo como louco
Ter a voz como um pipoco Ter o corpo com energia
Ler o escudo do dia Conservar uma oração
Fazer sua oração Ao deus da poesia.
Deve durmir muito cedo Muito mais cedo acordar Muito mais tarde sonhar
Muito afoito e menos medo Muito honesto com segredo
Muito menos guardar Muito mais revelar
Pra ter mais soberania Muito pouca covardia Não durmi pra sonhar
[Poema de Mestre Galdino, Alto do Moura-Caruaru -PE]
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RESUMO
Este trabalho trata da constituição da identidade do oleiro a partir da sua
representação literária em Saramago e da presença de artesãos do barro em
determinados lugares de produção, exposição, divulgação e comercialização de
objetos artesanais em cerâmica no Brasil. Ao examinar as expressões identitárias de
que trata Stuart Hall (2006), verifica-se que o ofício artesanal se equipara ao
intelectual, discussão essa que Richard Sennett (2009) também propõe em seus
estudos que partem da Enciclopédia de Diderot, das guildas medievais, ao artífice
empreendedor. Examina-se a gênese da criação do personagem Cipriano Algor,
oleiro, em A caverna (SARAMAGO, 2000), relacionada à exposição permanente de
arte popular no Museu Casa do Pontal (RJ), considerando o importante fato de que
o autor Saramago visitou essa exposição antes da publicação do romance. Walter
Benjamin (1992), quando trata do fenômeno aurático da obra de arte, servirá nesta
dissertação de suporte teórico para a análise de formas de produção do artesanato e
do lugar em que se encontram os objetos artesanais em cerâmica figurativa.
PALAVRAS-CHAVE: A caverna. Saramago. Oleiro. Identidade. Artesanato. Aura.
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ABSTRACT
This work deals with the constitution of the identity of the potter from its literary
representation in Saramago and the presence of artisans from clay at certain places
of production, exhibition, distribution and marketing of crafts in Brazilian ceramics. By
examining the expressions of identity that comes Stuart Hall (2006), it appears that
the artisan equates to the intellectual, discussion which Richard Sennett (2009) also
proposed in their studies starting from the Encyclopedia of Diderot; the medieval
guilds, for the craftsman entrepreneur. It examines the genesis of the character
creation Cipriano Algor, a potter, in The Cave (SARAMAGO, 2000), related to the
permanent exhibition of folk art at the Museum Casa do Pontal, considering the
important fact that the author Saramago visited this exhibition, before the publication
of the romance. Walter Benjamin (1992), when explores the auratic phenomenon of
the art work, will serve in this dissertation as theoretical support for the analysis of
forms of handicraft production and the place where the handmade objects in
figurative ceramic are.
KEYWORDS: The Cave. Saramago. Potter. Identity. Craftsmen. Aura.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Hefesto ………………………………………………………………………... 28
Figura 2 – Ferramentas utilizadas por Zé Caboclo, expostas no Museu do Barro (Caruaru-PE) …………………………………………………………………… 54 Figura 3 – Torno da Escola Municipal de Oleiros Joaquim Antonio de Medeiros, em São José (SC) ...……………………………………………………… 65 Figura 4 – Lampião e Maria Bonita representados em moringas antropomórficas confeccionadas por Mestre Zé Caboclo, expostas no Museu do Barro (Caruaru-PE) ...……………………………………………………. 77
Figura 5 – Foto de uma peça de Zé Caboclo de Alto do Moura (Caruaru- PE) ….... 82
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................10
2 JOSÉ SARAMAGO E A PERSONAGEM CIPRIANO ALGOR .........13 2.1 O PERSONAGEM CIPRIANO ALGOR E O ESPÍRITO DO LIVRO A CAVERNA..................................................................................................................21
3 AS HABILIDADES MANUAIS DO ARTÍFICE CIPRIANO ALGOR ...28 3.1 A CRIAÇÃO DOS BONECOS E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO OLEIRO ........................................................................................35
4 A INSPIRAÇÃO PARA OS BONECOS DE BARRO NA ANTIGA ENCICLOPÉDIA DA FAMÍLIA ALGOR.................................................46 4.1 A ENCICLOPÉDIA DE DIDEROT E A VALORIZAÇÃO DO TRABALHO ARTESANAL..............................................................................................................49
5 DAS MÃOS ÀS MÁQUINAS: O SIGNIFICADO DE ARTE POPULAR E DE ARTESANATO COMO FORMAS DE REPRESENTAÇÃO CULTURAL............................................................................................53 5.1. DA OLARIA, ÀS GUILDAS MEDIEVAIS: O ARTESÃO EMPREENDEDOR E A GLOBALIZAÇÃO .......................................................................................................64
6. A AURA BENJAMINIANA NOS OBJETOS DE BARRO..................75 6.1 O CONCEITO DE ―AURA‖ E O ―SALTO INTUITIVO...........................................76 6.2 A EXPERIÊNCIA ―AURÁTICA‖...........................................................................78
CONSIDERAÇÕES FINAIS …………………………………..…………...86
REFERÊNCIAS …………………………………………………………......90
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1 INTRODUÇÃO
A produção de cerâmica artística brasileira vem merecendo a atenção de
pesquisadores e admiradores de artesanato e de arte popular. Os estudos culturais
do jamaicano Stuart Hall (2006), as considerações de Antonio Candido (2009) e as
reflexões sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, de Walter
Benjamin (1992) sinalizam a importância do assunto que transita entre tradição e
modernidade. Richard Sennett, por sua vez, na obra O artífice (2009), estabelece
discussão ao equiparar o ofício artesanal ao ofício intelectual.
Com o objetivo principal de examinar a representação literária do personagem
Cipriano Algor, oleiro, em A caverna (SARAMAGO, 2000), parte-se da constatação
de que o autor José Saramago visitou o Museu Casa do Pontal (RJ) em 1997,
experiência que, comprovadamente, o influenciou na criação de seu protagonista.
Em A caverna (2000), a presença da família Algor torna possível ilustrar uma cultura
identitária, a dos artífices do barro, artesãos empreendedores que expõem o produto
de seu ofício artesanal em museus, feiras e lojas de artesanato.
De metodologia marcadamente qualitativa, a presente dissertação analisa
comparativamente a representação de um personagem e a realidade dos artífices do
barro e suas condições de produção, exposição e comercialização da cerâmica
artística figurativa brasileira. O trabalho trata, portanto, de verificar a possível
constituição da identidade do oleiro a partir da representação literária em A caverna
(2000), em um processo que envolve linguagem, tradição e modernidade (HALL,
2006).
O protagonista do romance, Cipriano Algor, artesão oleiro, representa um
indivíduo empenhado em continuar sobrevivendo de seu ofício artesanal. Sua
profissão entra em choque com o universo dominado pela produção em massa de
objetos fabricados em série e comercializados no Centro, entendido como a
representação das grandes lojas, espécie de shopping center.
Baseados em Biografia José Saramago (2010), de João Lopes Marques,
discorremos sobre a vida e a obra de José Saramago. De acordo com Maria Alzira
Seixo, Vera Bastazin e Salma Ferraz verificamos no conteúdo de outros escritos do
escritor português, representações da realidade relacionadas ao universo das artes
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em cerâmica, com as quais irá se deparar o leitor do romance A caverna (2000).
Frente aos ideais do escritor José Saramago, em Horácio Costa, aos aspectos
relevantes para o estudo do romance, em Antonio Candido, e ao conceito aristotélico
de mimeses, analisamos o processo de construção da identidade do protagonista
Cipriano Algor, junto ao espírito do livro A caverna.
Apoiados em Stuart Hall (2006), investigamos se o oleiro Cipriano e os
artesãos brasileiros dos principais pólos de produção de cerâmica artística no país -
imprimem no produto de seu trabalho suas impressões individuais, frutos do
imaginário e dos hábitos cotidianos, e criam obras em que se reconhecem valores
estéticos e artísticos, históricos e culturais, em um processo contínuo em que as
―identidades tradicionais‖ estão em desaparecimento. Para Richard Sennett, um
artesão desenvolve e aperfeiçoa, ou ressuscita suas habilidades artesanais através
da prática, o que dá ensejo a questionamentos sobre as diferenças entre os
conceitos de arte e de artesanato. Em Walter Benjamin (1992) explicamos que para
o oleiro o barro é um elemento material que lhe permite expressar, falar, construir ou
desconstruir a si próprio e, como a língua, é um médium de criação.
A partir das reflexões de Richard Sennett (2009) sobre a história da
Enciclopédia francesa, de Denis Diderot, salientamos que desde Hefestos é possível
encontrar elementos referentes à valorização do artesão e do artesanato, o que
contribui para o processo de constituição identitária do oleiro. Nesse sentido, a
intenção dos enciclopedistas franceses é comparada aos acontecimentos com
Cipriano Algor e sua família.
Consideramos que a transição do capitalismo agrário para o industrial
constituiu o duplo movimento de conter e resistir, objeto de estudo da ―cultura
popular‖, conforme Stuart Hall (2006). Para Néstor Garcia Canclini (2008) a tradição
deve ser compreendida junto à inovação, frente aos problemas referentes à
produção e à venda de artesanato. O que Hall denomina de ―lutas culturais‖, remete
a representações identitárias dos artífices do barro, que se modificam conforme as
vontades ou necessidades que surgem na sociedade de consumo, a partir do ―lugar‖
em que está inserido o objeto em cerâmica. Novas articulações entre o global e o
local oportunizam que a definição dos termos arte popular e artesanato se construa
em benefício da continuidade do trabalho dos artífices do barro, tal qual assinala o
pesquisador Ricardo Gomes Lima, ―independente do fato de serem mãos eruditas
ou populares‖.
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Ao discorrer sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, Walter
Benjamin (1992) afirma que reside na obra de arte um ―invólucro‖ que preserva nela
mesma a sua essência de beleza, diretamente ligada ao despertar de uma
consciência crítica no seu observador. O contato com obras artesanais – expostas
em museus, feiras, lojas, etc. - desperta a sensibilidade e a consciência crítica do
homem. Nesse sentido, Richard Sennett (2009) refere-se ao ―salto intuitivo‖ e suas
quatro etapas, que, junto ao pensamento benjaminiano, explica o resultado do
fenômeno aurático que aconteceu com José Saramago, após a visita ao Museu
Casa do Pontal (RJ), antes de escrever o livro A caverna.
Para Antonio Candido (2009), existe a ―verdade da existência― e a ―verdade
da ficção‖. Cumpre saber se essas duas expressões encontram correspondência e
estão representadas na realidade de artesãos brasileiros e na ficção, através dos
acontecimentos com o oleiro, personagem de Saramago. Nessa aproximação,
pretende-se verificar conceitos como tradição, modernidade, aura, arte popular e
artesanato, em um universo em que os indivíduos transitam entre o tradicional,
entendido como o trabalho manual, e a industrialização e a consequente perda da
aura dos objetos artísticos.
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2 JOSÉ SARAMAGO E A PERSONAGEM CIPRIANO ALGOR
José de Sousa Saramago nasceu a 16 de Novembro de 1922, numa casa
humilde da Rua da Alagoa, freguesia de Azinhaga do Ribatejo, concelho da Golegã,
a 32 km de Santarém, 102 km de Lisboa.
José de Sousa teria sido também o meu nome se o funcionário do Registo Civil, por sua própria iniciativa, não lhe tivesse acrescentado a alcunha por que a família de meu pai era conhecida na aldeia: Saramago. (Cabe esclarecer que saramago é uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres). Só aos sete anos, quando tive de apresentar na escola primária um documento de identificação, é que se veio a saber que o meu nome completo era José de Sousa Saramago... Não foi este, porém, o único problema de identidade com que fui fadado no berço. (SARAMAGO, 2010
1)
Poeta, crítico literário, tradutor, cronista e com experiência na área de edição
de jornais, José Saramago publica o seu primeiro romance, Terra do pecado, em
1947. Em 1939, após concluir o curso de serralheiro mecânico, Saramago passou a
trabalhar ocupando funções administrativas ―na Caixa do Abono da Família do
Pessoal da Indústria Cerâmica, que, aliás, desempenhou até cerca da década de
sessenta‖ (SEIXO, 1999, p.11). Anos depois, trabalhou no Editorial Estúdios Cor, e
só começaria a despontar como uma personalidade no panorama cultural português
no início dos anos 1970. Saramago, nesse período, escrevia para o ―vespertino A
Capital e no prestigiado semanário oposicionista Jornal do Fundão” (LOPES, 2010,
p. 44) e, também, desempenhava a função de crítico literário na revista Seara Nova.
Desempregado, em 1975, é o momento de dedicar-se definitivamente à literatura.
Para melhorar o orçamento familiar, mas também por gosto, comecei, a partir de 1955, a dedicar uma parte do tempo livre a trabalhos de tradução, actividade que se prolongaria até 1981: Colette, Pär Lagerkvist, Jean Cassou, Maupassant, André Bonnard, Tolstoi, Baudelaire, Étienne Balibar, Nikos Poulantzas, Henri Focillon, Jacques Roumain, Hegel, Raymond Bayer foram alguns dos autores que traduzi. Outra ocupação paralela, entre Maio de 1967 e Novembro de 1968, foi a de crítico literário. (SARAMAGO, 2010
2)
1 Autobiografia, publicada no Blog da Fundação José Saramago Disponível em:
http://www.josesaramago.org/saramago/detalle.php?id=677. Acesso em 8 jun.2010. 2 Ibidem.
15
As crônicas publicadas em A capital, que Saramago escreveu entre os anos
de 1968 e 1969, foram compiladas no livro Deste mundo e do outro, publicado em
1971, pela Editora Arcádia. A bagagem do viajante, lançado pela Editora Futura, em
1973 é ―um repositório de textos aparecidos em A capital e Jornal do Fundão‖
(SEIXO, 1999, p.10) e, segundo Maria Alzira Seixo, são textos jornalísticos
que do jornalismo colhem a sua brevidade e efemeridade e assumem uma relação directa com a literatura (na medida em que a crónica, partindo da notícia que faz o tempo, dá mais lugar ao sujeito da escrita que qualquer outro escrito jornalístico, quer no plano da opinião, quer no da sensibilidade).(SEIXO,1999, p.17)
Em 1974, publica-se o livro As opiniões que o DL teve contendo os editoriais
que Saramago escreveu para o Diário de Lisboa, seguido por Os apontamentos, de
1976, que reuniu as ―intervenções escritas de José Saramago durante os oito meses
em que foi director-adjunto do Diário de Notícias, do11 de março de 1975 ao 25 de
Novembro.‖ (ibidem), e
eludem marca mais acentuadamente literária para se proporem como emissões alargadas de uma opinião que se pretende genérica, colectiva, a dos leitores que, na resposta crítica aos acontecimentos do tempo, o jornalista procura representar. (SEIXO, 1999, p. 17)
Assim, foram publicadas em livros entre os anos de 1968 e 1972, as crônicas
do escritor, que foram retiradas da imprensa e deslocadas do seu local de origem –
o contexto jornalístico. Pode-se dizer que este foi o marco inicial da inserção de
Saramago no espaço literário. Conforme Vera Bastazin afirma, é o momento em que
os seus escritos aproximam-se do ―objeto de qualidade artística, que pode chegar,
em seu grau máximo de literariedade, a ser considerada como um conto ficcional ou
mesmo um texto em prosa poética‖ (BASTAZIN, 2006, p. 9).
Estava, assim, consolidada a marca de um estilo livre e imaginativo que não
vincula ―a sua escrita à actualidade noticiosa e política, os textos de Saramago
espraiaram-se naturalmente para os mais variados temas‖ (LOPES, 2010, p. 44).
Lopes, em Biografia José Saramago, escreve que
segundo Horácio Costa, os eixos mais significativos seriam três: ―o primeiro [...] representado pela escrita memorialística, seguido pela vertente de reflexão moral sobre o acontecer histórico-social (português, no mais das vezes), e por uma terceira vertente, a da ficcionalização‖. (ibidem, p. 44)
16
Maria Alzira Seixo, em Lugares da Ficção em José Saramago (1999) afirma
que
há pontos de referência que de modo claro emergem na sua obra: uma infância dominada por leituras, pelo amor da mãe e pela vibração da vida rústica; uma vivência amorosa e sentimental especialmente prezada; uma intervenção política e social rigorosa e afirmativa, feita de fidelidades críticas e de corajosa determinação; um amor da cultura que lhe advém de uma sede de saber inextinguível; um sentido de disciplina que combina exemplarmente a relação regular com o trabalho e um impulso poético extremamente original (SEIXO, 1999, p.12)
Para João Marques Lopes (2010, p. 45), em Biografia José Saramago, ―há
muitas crônicas em que se finca a intertextualidade face à tradição literária e certa
ficcionalidade onde surge embrionariamente o desenho de situações, personagens e
espaços mais tarde aproveitados em romances‖. Em relação às crônicas compiladas
em A bagagem do viajante, de José Saramago, Vera Bastazin (2006, p. 11) escreve:
Resguardando elementos básicos da crônica, tais como a função emotiva e referencial da linguagem – que expressam pensamentos e emoções sensíveis do cronista como homem que vive, sente e observa atentamente os fatos e espaços que o circundam –, o texto se desenvolve assumindo características peculiares da prosa poética. Ele está centrado em um conteúdo lírico e recria o real por meio do adensamento da linguagem, da desautomatização da percepção e da singularização dos fatos narrados. Esses últimos – os fatos narrados – são retirados do real e assumem caráter textual inovador, metafórico e, acima de tudo, poético.
Na crônica ―A oficina do escultor‖, um dos textos que compõem o conjunto
das crônicas do livro A bagagem do viajante (2007), segundo Vera Bastazin, em seu
artigo intitulado José Saramago: hibridismo e transformação dos gêneros literários
(2006, p. 10), ―esse processo de transmutação entre gêneros se perde totalmente e
não se consegue mais detectar referências sejam elas temáticas ou estruturais, em
relação à crônica‖. Para a autora, uma característica peculiar das crônicas de
Saramago publicadas nas páginas dos jornais é a ―transitoriedade‖, que se perde ―à
medida que essa se desloca da imprensa efêmera – e conquista o espaço nobre do
livro de ficção‖.
―A oficina do escultor‖ sugere ―sons, imagens e sensações diversas,
responsáveis pela configuração da escultura/escritura que se produz no interior da
oficina – lugar de trabalho, onde ocorrem grandes transformações‖ (ibidem, p. 10),
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são representações de realidades dos artesãos em suas olarias residenciais, com as
quais irá se deparar o leitor do romance A caverna. Adiante, a autora afirma que:
Saramago, como artista da palavra, compõe e decompõe significados, cria signos tal como o escultor cria formas sensíveis e plurais que se movimentam e se transformam em sintonia contínua com o próprio homem, cuja mente microcósmica pensa o mundo e a si mesma em paradigmas desafiadores. Eis a presença do escritor, do poeta, do crítico da contemporaneidade. (ibidem, p.14)
Para o professor e crítico literário brasileiro Antonio Candido (2009, p. 75), ―o
aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da
sua composição, não da sua comparação com o mundo real‖. Nessa direção, pode-
se dizer que, em sua grande maioria, as narrativas de José Saramago remetem o
leitor a um universo de acontecimentos históricos e a tradições portuguesas.
Segundo Maria Alzira Seixo, as suas crônicas cobrem os campos
da actualidade (parte-se por vezes de uma notícia nos jornais); os da memória (regressa-se à infância, suas marcas, suas recordações, suas nostalgias); os do ambiente (evoca-se a cidade, outras cidades conhecidas, o campo, os vários tipos de ruralidade); os da tipologia humana (o amola-tesouras, o cego do harmônio, os freqüentadores do café, etc, etc.) os da sugestão frásica e vocabular (um verso, uma frase – a sua capacidade evocativa poderão ser matéria para uma crônica); os da cultura (domínios da arte, vultos de escritores, leituras, etc.); miúdas situações do quotidiano anônimo, efabulações de tipo onírico que hesitam entre a vocação para o destinatário infantil e uma acentuada propensão do escritor para os domínios do maravilhoso e do fantástico que mais tarde veremos concretizar-se melhor na sua restante obra. (SEIXO, 1999, p. 19-20)
Frente a evocações da cultura, do ambiente e do cotidiano que circundam as
práticas oleiras, retratadas através de Cipriano Algor, entendemos que Saramago
pode ser que tenha criado o personagem oleiro a partir de observações a realidades
que ele mesmo vivenciara ou que ele talvez imaginara. De qualquer forma, cabe ao
leitor entender que ―um tipo eficaz de personagem é a inventada‖ (CANDIDO, 2009,
p. 69) – tal qual o humilde e fascinante oleiro Cipriano Algor, e, assim, consideramos
o que afirma Antonio Candido (ibidem) sobre a personagem de ficção:
esta invenção mantém vínculos com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja do mundo que o cerca; e que a realidade básica pode aparecer mais ou menos elaborada, transformada, modificada, segundo a concepção do escritor, a sua tendência estética, as suas possibilidades criadoras.
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Respeitadas as concepções e as possibilidades criadoras de José Saramago,
ainda que este trabalho evidencie que ―uma das grandes fontes para o estudo da
gênese das personagens são as declarações do romancista‖ (CANDIDO, 2009, p.
69)
convém notar que por vezes é ilusória a declaração de um criador a respeito de sua própria obra. [...] Ele pode pensar que copiou quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou; ou que se deformou, quando se confessou. (ibidem)
Confessionais ou não, para a análise proposta neste trabalho, consideramos
momentos da vida do escritor português, narrados por ele no livro As pequenas
memórias (2006, p. 48), entre eles, a convivência em sua infância e adolescência
com um vizinho oleiro. Tornou-se fundamental para esta dissertação o fato de que
Saramago visitou o Museu Casa do Pontal (RJ), deparando-se com a inspiradora
obra de Zé Caboclo3, antes de escrever o livro A caverna, descrito por ele no livro
Cadernos de Lanzarote II (1999, p. 472). A partir dessas anotações de Saramago, –
conforme referimos posteriormente no capítulo 6.2 deste trabalho, interessa para a
análise proposta o que João Lopes escreveu sobre o livro A Caverna , que
começou a germinar um ano antes do Prêmio Nobel, quando o escritor passava perto de um painel publicitário que anunciava a inauguração do Centro Comercial Colombo e lhe surgiu a ideia de escrever um livro eventualmente intitulado ―O Centro‖. No fim de Novembro de 1997, mais de dois meses depois, ao visitar um museu de arte popular no Rio de Janeiro, esta iluminação inicial desenvolveu-se. (LOPES, 2010, p. 110)
Retornamos ao início do ano de 1972 e o fim de 1973, quando José
Saramago assume a responsabilidade de editorialista do jornal Diário de Lisboa,
embora não sendo jornalista profissional. Alheio às inúmeras funções que cabiam às
profissões ligadas ao jornalismo, Saramago adentrava o mundo jornalístico,
escrevendo os editoriais e as crônicas4 e coordenando o suplemento cultural. Além
3 Mestre Zé Caboclo é um dos discípulos de Mestre Vitalino, de Alto do Moura (Caruaru-PE),
conforme referimos posteriormente neste trabalho. Curiosamente, a palavra Caboclo designa ―selvagem brasileiro que tinha contato com os colonizadores. Nome com que são designados os mestiços de branco com índia, mulatos acobreados, de cabelo corrido, habitantes dos sertões, do interior brasileiro. [...] Por se tratar de um personagem do povo, a figura do caboclo é muito freqüente na literatura regional brasileira e em seu folclore‖ (BERND,2007, p.64). 4 Parece evidente em algumas crônicas publicadas no livro lançado em 1971, intitulado A bagagem
do viajante, em três delas, principalmente, ―Saudades da caverna‖ (SARAMAGO, 2007, p. 45), “Os portões que dão para onde” (ibidem, p. 71) e ―A oficina do escultor‖ (ibidem, p.175), que Saramago já remetia o leitor a determinadas situações e espaços reais – embora híbridos - que seriam posteriormente trabalhados no enredo do romance A caverna (i2000).
19
disso, o escritor trabalhava profissionalmente ―no seio de uma equipe de jornalistas
com a função de redigir textos que deveriam nortear uma linha editorial‖ (LOPES,
2010, p. 48), o que, possivelmente, o levou a escrever limitando-se a determinadas
restrições temáticas e formais.
Quando comparados com as crónicas para A Capital e para o Jornal do Fundão, os editoriais anônimos que publicou no Diário de Lisboa – para cima de uma centena – são naturalmente mais colados à actualidade noticiosa e incorporam uma dose bem mais reduzida de imaginação, transfiguração e literariedade. Portanto, interessam sobretudo à compreensão do homem político e não do escritor. (ibidem, p. 48)
Destacava-se o posicionamento político de Saramago nos editoriais5 que ele
escrevia. O escritor posicionava-se contra a censura e o cerceamento de liberdades
democráticas e comentava corajosamente certas matérias sensíveis ao cenário
político nacional e internacional da época, ―e até chegou a aludir à necessidade da
reforma agrária‖ (LOPES, 2010, p.48).
Conforme revela Maria Alzira Seixo sobre livro As opiniões que o DL teve e
em Os apontamentos, de José Saramago:
Nas Opiniões, Saramago manifesta as interrogações e perplexidades a que podia ter direito a condicionada liberdade de expressão dos tempos do caetanismo; nos Apontamentos (e apenas dois anos mais tarde , portanto), assume uma frontal posição de coincidência com o processo revolucionário de 75, não escamoteando, no entanto (e será bom recordá-lo!), críticas severas a algumas das faces desse processo; [...] É urgente reler estes dois livros à luz do presente, relembrar muitos dos condicionamentos que o imediato ante-25 de Abril impunha à condição humana portuguesa e percorrer com minúcia como o Diário de Notícias acompanhou esse crucial período da nossa história, entre o 11 de Março e o 25 de Novembro, a ver de uma vez por todas se tenta compreender uma acção que, com irregularidades e deficiências (que aliás o próprio articulista constantemente admite), marcou de modo determinante a vida portuguesa dos tempos da revolução, que sem a suficiente ponderação se tem de modo fácil e leviano constantemente condenado, muitas vezes como álibi para outros erros e para outras formas menos confessadas de influência incerta sobre o processo democrático que após o 25 de Abril, nos deu ao menos este bem precioso da liberdade. (SEIXO, 1999, p. 17-18)
Mas, Saramago também foi criticado e censurado, o que o levou a demitir-se
do jornal, em fins de 1973, também ―por discordar da decisão do administrador do
5 ―Esses editoriais, embora anônimos, vieram marcar a primeira intervenção claramente política de
José Saramago em público e foram, na sua maioria, recolhidos e editados pouco depois do 25 de abril de 1974 no livro As Opiniões que o DL teve‖ (LOPES, 2010, p. 51).
20
Diário de Lisboa, Lopes de Souto, de não intervir abertamente ao lado da oposição
no âmbito das eleições de Outubro desse mesmo ano‖ (LOPES, 2010, p.50). Sobre
isso, João Marques Lopes (ibidem) ainda declara:
Em suma, nestes editoriais de 1972 e 1973 do Diário de Lisboa, José Saramago mostrava uma intervenção cívica audaz em prol da transformação política, social e econômica de um país ainda cerceado pelo fascismo, e, na medida do possível, em conformidade com o ideário comunista que o informava.
No ano de 1980, é publicado o romance Levantado do chão, quando
Saramago constrói uma obra que
parece ir ao encontro de um romance como gênero narrativo paradigmático [...] [em que] o fundamental se transfigura pelo acúmulo da experiência literária anterior, intensa e diversa, disso resultando uma proposta de urdidura ficcional muito específica que imediatamente vai ao encontro da sensibilidade fascinada dos leitores contemporâneos. (SEIXO, 1999, p. 36)
Precisamente em 4 de novembro de 1982, é lançado pela Editorial Caminho o
livro Memorial do convento, que teve mais de 50.000 exemplares vendidos em 10
edições, em apenas dois anos. Era o momento de consagração do escritor
português em seu país e no exterior. A obra chegou a ser traduzida para 12 idiomas
no final dos anos 80. Entre 1984 e 1989, antes da publicação de A caverna, José
Saramago publicou três romances: O ano da morte de Ricardo Reis (1984) – que
vendeu cerca de 20.000 exemplares em apenas um mês –, Jangada de pedra
(1986) – com 40.000 exemplares publicados na primeira edição –, e História do
cerco de Lisboa (1989) – com tiragem inicial de 50.000 exemplares, que, para
surpresa da crítica, demoraram cinco anos para se esgotarem.
Editado no país e no estrangeiro, lido cá e lá, premiado e condecorado, convocado para conferências e colóquios um pouco por todo o lado, resenhado e estudado sob a forma de recensões de artigos e ensaios para revistas literárias, e até já no registro superior da monografia graças aos livros ―O essencial sobre Saramago‖ (1987), da autoria de Maria Alzira Seixo [...] e ―José Saramago entre a história e a ficção‖, da investigadora brasileira Teresa Cristina Cerdeira da Silva, o autor tinha a sua realização profissional mais do que assegurada. E agora aparecera-lhe Pillar Del Rio! (LOPES, 2010, p. 81)
Assim, foi na década de 1980 que José Saramago profissionalizou-se,
definitivamente, como escritor, deixando a imprensa como o principal modo de se
21
sustentar escrevendo textos6, e passou por ―uma alteração substancial na sua vida.
Não só na literária, mas sim na privada‖ (LOPES, 2010, p. 80).
João Lopes assinala que José Saramago ―sempre foi muito circunspecto a
respeito das suas relações afectivas e da sua vida privada‖ (ibidem, p. 81). Foi para
Ilda Reis7 - sua primeira esposa, mãe de sua única filha, Violante8 e com quem o
escritor viveu por vinte e seis anos entre os anos 1940 e 1970 - que Saramago9
escreveu os seus primeiros versos, conforme ele próprio narra no livro As pequenas
memórias (2006, p. 49), ―uma quadra ao jeito popular‖, levada ao amigo, o vizinho
oleiro, para que ele a pintasse em ―um pratinho em formato de coração‖ (ibidem),
para o escritor presentear sua amada:
Cautela que ninguém ouça. O segredo que te digo: Dou-te um coração de louça
Porque o meu anda comigo.
Assim, nascia um poeta que não aceitaria ser chamado de poeta. Salma
Ferraz (2003, p. 21) afirma que, ―na sua poesia, já [é possível] notar a preferência
por certos temas e motivos que se consolidarão mais tarde nos romances‖. José
Saramago afirmou em nota à reedição do livro Os poemas possíveis – 16 anos após
a primeira edição, em 1966 –, que ele somente permitiu a reedição do livro
6 Mas, mesmo assim, alguns de seus artigos ainda poderiam ser lidos em uma coluna no Jornal de
Letras, Artes e Ideias (LOPES, 2010, p.75). 7 ―Foi uma das melhores gravadoras portuguesas e a primeira mulher de Saramago, agressiva no
discurso, teimosa na sua verdade, sempre pronta a partir para mais uma luta. Nascida em Lisboa a 1º de Janeiro de 1923, teria hoje 85 anos se não tivesse falecido há uma década. A minha mãe era uma mulher de uma sensibilidade e afectividade enormes, mas muito retraída e metida consigo própria, fechada dentro dos seus medos, da sua casa, sem dar direito ao seu espaço‖ (BERNARDES, 2008, entrevista). 8 Violante Saramago Matos, filha única do escritor José Saramago, militante dos velhos tempos do
MRPP, presa pela PIDE, ex-deputada do PS e do BE, nasceu do ventre de Ilda Reis, primeira mulher do Nobel da Literatura José Saramago. Viveu com os pais até 1970, ano em que casou com Danilo Matos, um estudante do Técnico, madeirense e militante ativo do MRPP. (VÁRIOS, 1998; BERNARDES, 2008, reportagens/entrevistas). 9 Do início dos anos 1970 até meados dos anos 1980, Saramago teve como companheira a escritora
portuguesa Isabel de Nóbrega9, a quem costumava ―dedicar os livros que publicava desde as
crónicas de Deste mundo e do outro (1971)‖ (LOPES, 2010, p. 81) até a última dedicatória, na primeira edição do romance O ano da morte de Ricardo Reis, de 1984. Depois dessa época, todas as referências a ela desaparecem, inclusive, nas dedicatórias das próximas edições do mesmo livro. Em entrevista ao jornalista e escritor espanhol Juan Arias
9, autor do livro José Saramago: El amor
possible, de 1998, divulga-se o início do relacionamento afetivo entre Saramago e a jornalista espanhola Pillar Del Rio.
22
porque nele teriam começado a definir-se nexos, temas e obsessos que viriam a ser a coluna vertebral, estruturalmente invariável de um corpo literário em mudança [pois] o romancista experiente secou com unha seca o poeta de ontem. (SARAMAGO apud FERRAZ, 2003, p. 21)
O escritor autodidata, um homem simples e crítico humanista, filho de
portugueses de origem humilde constrói a sólida carreira de romancista e adentra a
modernidade, dando início ao Blog de José Saramago10, aproximando-se cada vez
mais dos leitores. Saramago mantém-se um escritor ativo aos 87 anos de idade,
vindo a falecer às 12h30 horas [horário local em Portugal] do dia 18 de junho de
2010, na sua residência de Lanzarote, em consequência de uma múltipla falha
orgânica, após uma prolongada doença.
2.1 O PERSONAGEM CIPRIANO ALGOR E O ESPÍRITO DO LIVRO A CAVERNA
A partir da leitura do livro A caverna e de outros escritos do autor,
entendemos que ―Saramago, portanto, valoriza um narrador ‗intruso‘, que não
participa dos acontecimentos da fábula, mas está sempre presente no discurso‖
(CALBUCCI apud FERRAZ, 2003, p. 204), e somos levados a crer que, por isso, ―os
narradores revelam, de certa maneira, o que pensa Saramago‖ (FERRAZ, 2003, p.
205).
Para Horácio Costa11, Saramago afirma:
No meu caso, o homem e o escritor, como eu disse antes, não apenas estão juntos, mas estão fundidos um no outro. Então eu diria que a ficção para mim, hoje, não sendo uma carreira, é o recurso que eu tenho para expressar minhas dúvidas, minhas perplexidades, minhas ilusões, minhas decepções. (COSTA apud FERRAZ, 2003, p. 203)
Pode ser que tenha sido a ficção literária, recepcionada pelos diversos
leitores mundo afora, e através da criação de seus personagens, comunicando-se
com as diversas realidades, a forma que José Saramago encontrou para continuar
10
Blog de José Saramago. Disponível em http://blog.josesaramago.org/ Acesso em out. de 2009. 11
COSTA, Horácio. A construção da personagem de ficção em José Saramago. In. Colóquio- Letras. Lisboa. Calouste Gulbenkian, 1999, p. 205-216.
23
se posicionando frente às adversidades e injustiças sociais que ele próprio, em
algum momento, talvez tenha vivenciado.
Retornando ao cenário de Lisboa do início dos anos 1990, perante o
sepultamento da alternativa comunista, era chegada a vez do pensamento pós-
moderno, dos conceitos de globalização, de sociedade de consumo. Para Saramago
e para as gerações de intelectuais atuantes até meados daquela década, que
acreditavam na ideologia marxista ―agora dada como falida, indefinida, partida em
cacos e incapaz de afinar com a própria realidade‖ (LOPES, 2010, p.103),
provavelmente, o mundo inteiro parecesse mais ―uma desrazão do que outra coisa‖.
Os tantos fatos sociais, políticos e econômicos das décadas de 1970 a 1990
podem também ter sido determinantes ―das alegorias saramaguianas‖ que, segundo
assinala Lopes (2010, p.103) ―vão de Ensaio sobre a cegueira até Ensaio sobre a
Lucidez‖. São romances que se firmaram como narrativas ―acerca da irracionalidade
do Mundo contemporâneo a serviço do mercado, do lucro e da competição a todo o
custo‖ (ibidem).
Assim, estava enquadrada a produção ficcional do escritor português ―de
meados dos anos 1990 até 2004 mais precisamente no quadro da pós-modernidade
e da desrazão‖ (ibidem, p. 104). Para Salma Ferraz, Saramago faz parte de uma
geração que
produzia uma literatura de combate, e, para eles [intelectuais da geração de Saramago], o escritor era aquele que tinha uma missão, um pensamento revolucionário, um ideal a defender, a tal ponto que o homem se confundia com a figura do escritor. Saramago é herdeiro desta tradição, pela missão de combate e militância que assume em seus textos e porque, como pessoa, se confunde com sua escrita, às vezes, com seus personagens. (FERRAZ, 2003, p. 204)
Depois de Ensaio sobre a cegueira (1997), José Saramago concentra-se em
um novo livro, cujo título seria Todos os nomes, lançado em 3 de novembro de 1997,
o último romance do escritor antes da indicação ao Prêmio Nobel. Entre os
acontecimentos que giravam em torno do recebimento do Prêmio Nobel de
Literatura (1998), primeira vez recebido por um escritor de língua portuguesa, saía a
publicação do livro A caverna, em 2000.
Saramago, em entrevista à revista Visão, no ano de 2004, é possível que
estivesse traduzindo em palavras o espírito do livro A caverna:
24
Nós ainda somos descendentes do Iluminismo, da Enciclopédia, dos valores da Revolução Francesa, que durante dois séculos foram referências. Acabamos de atravessar uma ponte e na margem já não há lugares duradouros. Isto não é fatalismo e nada se processa em linha recta: ao mesmo tempo que isto acontece sente-se uma necessidade de voltar atrás, uma insatisfação, sobretudo dos jovens, perante um Mundo que já não oferece mais nada, só vende! (SARAMAGO apud LOPES, 2010, p.105)
Diante do enredo no romance analisado neste trabalho, podemos recorrer ao
conceito aristotélico de mimeses12, entendido como maneira de transformação do
real. Isso porque o autor da obra trouxe para a literatura um universo de
acontecimentos envolvendo um oleiro, artesão do barro – a vida afetiva e familiar de
um viúvo de meia-idade, representada no personagem Cipriano Algor, a sua relação
com a jovem viúva Isaura, sua filha e o genro. Essas vivências, além de apontarem
para o amor, a amizade e o respeito entre um pai e uma filha, entre um cão (de
nome Achado) e o seu dono, entre um sogro e um genro, servem principalmente
para representar circunstâncias comuns a um ofício que mantém o sustento de
artesãos ceramistas com origens diversas.
Nessa transformação e ao mesmo tempo imitação do real escancara-se ao
leitor um conjunto de problemas socioeconômicos e culturais, tais como os
contrastes da injusta guerra contemporânea entre o produtor-consumidor
(representado pelo oleiro e sua família) e o mercado (simbolizado pelo caráter
alegórico do Centro).
Entre os ideais do escritor José Saramago e os ideais do oleiro Cipriano Algor
– personagem inventado por um autor com uma personalidade crítica e atuante
política e socialmente – pode haver algo em comum e que se encontra além do
conteúdo do livro A caverna. Algo próximo ao que boa parte de seus primeiros
escritos contêm, e que permanecem registrados naquilo tudo que seus poemas ou
contos, suas crônicas ou artigos e comentários costumavam denunciar.
12
―Aristóteles vai formular os primeiros conceitos ligados à arte, em especial à literatura, registrando o conceito de Mimeses como maneira de transformação do real. ‗Trans-formar‘, segundo a proposta aristotélica, significa mudar a forma, imprimir nela uma nova maneira de ver e de interpretar o real. Diferentemente de Platão, que considerava a arte como cópia distorcida, e, portanto, falsa e desprezível do real, Aristóteles imprimia-lhe um valor altamente positivo – fosse pela originalidade expressiva trazida em seu bojo, fosse pela condição potencial de criar novos olhares, novas formas de percepção do objeto e, por extensão, do próprio mundo. Nessa controvérsia entre cópia perigosa e desprezível e mimeses criativa reside a primeira grande contribuição ligada à natureza e ao valor do objeto literário. Até hoje, as contribuições deixadas pelos filósofos gregos representam aspectos fundamentais para qualquer reflexão sobre o fenômeno literário‖ (BASTAZIN, 2006, p. 2).
25
Saramago, em A caverna, com seu estilo próprio de narrar13, parece tratar de
seres puramente ―intencionais‖, sem referir-se a seres ―autônomos‖, refaz o mistério
de seres humanos populares ―através da apresentação de aspectos que produzem
no leitor certa opalização e iridescência, e reconstituem, em certa medida, a
opacidade da pessoa real‖ (CANDIDO, 2009, p. 35).
O autor dirige o ―olhar‖ do leitor por caminhos que se abrem a partir da
descrição das características físicas, do comportamento e de determinadas
situações em que estão envolvidos os personagens. É quando vão se desvendar
estados psíquicos ou íntimos que tornarão esses personagens, até certo ponto,
inesgotáveis aos olhos do leitor.
É possível que o leitor construa o próprio mundo imaginário, relacionando-o
diretamente a alguma realidade exterior à obra, e, assim, tomado pela função
mimética, viva de forma intensa e imaginária os destinos e as aventuras do
personagem Cipriano Algor, de sua filha Marta, de seu genro Marçal ou de sua
futura companheira, a viúva Isaura Estudiosa.
Entretanto, na medida em que o valor estético de A caverna se acentua aos
olhos do leitor, ―o mundo imaginário se enriquece e aprofunda, prendendo o raio de
intenção dentro da obra e tornando-se, por sua vez, transparente a planos mais
profundos, imanentes à própria obra‖ (CANDIDO, 2009, p. 42). Isso seria uma
espécie de ―revelação‖, que acontece quando o prazer estético ―integra e suspende
a distância da contemplação, o intenso envolvimento emocional e a revelação
profunda‖ (ibidem, p. 43). Manifestando-se contrariamente ou não às mais íntimas
concepções de mundo do leitor, é um acontecimento único e irrepetível que vem à
tona através da experiência estética entre o leitor e a obra.
Portanto, é o próprio leitor que sempre continuará alterando significados,
conforme vai se deixando invadir pelo valor estético, pelo espírito do livro A caverna,
até o final da obra. Beth Brait (1990, p. 66) assevera que é ―nesse mundo de
palavras, nessa combinatória de signos, [que] o leitor vai se alfabetizar, vai ler o
mundo e decifrar a sua existência‖.
13
“Na realidade, utiliza só vírgula e ponto final, não distinguindo discursos directos e indirectos, de modo que os seus romances têm de ser lidos diferentemente dos outros romances. Isto significa que o texto exige uma atenção especial aos leitores, dando-lhes a impressão de estarem envolvidos directamente no mundo real e, ao mesmo tempo, fictício, ambos construídos nas suas obras.‖ (YONG-JAE, Kim. 1998, em entrevista: O Mundo Literário de José Saramago. IN: Camões Revista de Letras e Culturas Lusófonas Número 3, Outubro-Dezembro de 1998. Disponível em
http://www.instituto-camoes.pt/revista/mundliterjs.htm Acesso em nov. 2009.)
26
A narração em primeira ou terceira pessoa, a descrição minuciosa ou sintética de traços, os discursos direto ou indireto livre, os diálogos, os monólogos são técnicas escolhidas e combinadas pelo escritor a fim de possibilitar a existência de suas criaturas de papel. Dependendo das intenções e principalmente de sua perícia ele vai manipular o discurso, construindo essas criaturas, que, depois de prontas, fogem do seu domínio e permanecem no mundo das palavras à mercê dos delírios que esse discurso possibilita aos incontáveis receptores. (ibidem, p. 67)
Demonstrando imensurável apuro técnico, José Saramago inova ao colocar o
leitor diante de uma alegoria que funciona como uma espécie de distopia14 ―de um
mundo abandonado pela razão‖15, e utiliza ditados populares e provérbios, bem
como ―outras miudezas de uma linguagem mais próxima do quotidiano para efeitos
narratológicos inesperados‖ (LOPES, 2010, p. 99). Por isso,
A opacidade da cidadania transformada em imagem das coisas que se podem comprar e vender, qual uma nova ―caverna‖ platônica que a impedisse de ver o eu e o outro em relações de solidariedade humana por fora das alienações coisificadas, é transportada nesta alegoria saramaguiana. (ibidem, p. 111)
Parte do enredo desta alegoria saramaguiana gira em torno do cenário de
uma antiga olaria e remete o leitor não só a realidades portuguesas, mas, também, a
realidades brasileiras relacionadas a práticas artesanais, o que sugere verificarmos
o resultado de pesquisas sobre os principais núcleos de produção de cerâmica
artística no Brasil16. Nesta obra – conforme a explicação de João Marques Lopes
(2010, p.99) – pode-se perceber uma espécie de ―corte com a realidade
portuguesa‖17 e, também, ―a ruptura mesmo mais geral com coordenadas
14
―Uma Distopia ou Antiutopia é o pensamento, a filosofia ou o processo discursivo baseado numa ficção cujo valor representa a antítese da utopia ou promove a vivência em uma ‗utopia negativa‘‖ (JACOBY, 2007, p. 31). 15
―Da barbárie do Ensaio sobre a cegueira à gélida burocratização em chave ontológica, gnosiológica, ética e política de Todos os nomes, da absolutização do mercado em A caverna à opacidade da identidade do eu a si próprio em O homem duplicado e à ilusão da democracia em Ensaio sobre a lucidez, tal parece ser agora o eixo da ficção saramaguiana‖ (LOPES, 2010, p. 99). 16
―Alguns núcleos mais ativos constituíram estilo próprio e se tornaram referências importantes. Merecem destaque: o Alto do Moura, próximo a Caruaru, e as cidades de Tracunhaém, Recife e Olinda, em Pernambuco; a região do Vale do rio Jequitinhonha [...],e as cidades coloniais do sul de Minas Gerais; o entorno de São Luis, capital do Maranhão; a região nordeste e o litoral de São Paulo; núcleos em volta de Teresina, capital do Piauí; Juazeiro do Norte e algumas localidades litorâneas, no Ceará; Salvador, Cachoeira e mais algumas cidades do Recôncavo, na Bahia; e ainda Pirenópolis, em Goiás, e alguns núcleos nas cercanias da capital de Santa Catarina.‖ (MASCELANI, 2002, p.21) 17
―Eventualmente, Lanzarote e a sua geografia lunar poderão ter dado algum contributo para a desrealização das circunstâncias de tempo e lugar antes normalmente associadas a uma vivência visivelmente portuguesa, para um estilo mais seco e para caminhos alegóricos. Talvez a mundialização do nome e da obra do escritor, anterior, concomitante e posterior ao Prêmio Nobel,
27
espaçotemporais concretas, o ‗enxugamento‘ do estilo barroco [...] e a metamorfose
do todo ficcional em alegorias‖ (ibidem).
Afinal, é o próprio Saramago que, ao conceber a metáfora A Estátua e a
Pedra, conforme cita Salma Ferraz, afirma o seguinte:
Encontrei, outro dia, uma fórmula que me parece boa, é como se durante todo esse tempo eu estivesse descrevendo uma estátua – o rosto, o nariz – e ágora eu me interessasse muito mais pela pedra de que se faz a estátua. Quer dizer, já descrevi a estátua, todo mundo já sabe que estátua é essa que eu estive descrevendo desde Levantado do chão até o Evangelho segundo Jesus Cristo. A partir de Ensaio sobre a cegueira, em Todos os nomes e no próximo romance, [A caverna] se o escrever, trato da pedra... É uma metáfora que há que se entender como tal [...]. Mas, no fundo, quer dizer algo mais do que aquilo que à primeira vista parece. [...] Quando olhamos para uma estátua, não estamos a pensar na pedra que está por trás da superfície. Então é como se eu, a partir de Ensaio sobre a cegueira, estivesse a fazer um esforço, para passar para o lado de dentro da pedra. [...] Não penso que estou a escrever livros melhores que antes. Não tem a ver com qualidade, mas com intenção. É como se eu quisesse passar para o lado de dentro da pedra. (SARAMAGO apud FERRAZ, 2003, p. 206)
O que, no fundo, ―pode querer dizer algo mais do que aquilo que à primeira
vista parece‖ (ibidem), pode estar representado nos acontecimentos em torno do
protagonista Cipriano que, junto a sua filha Marta e seu genro Marçal – guarda no
Centro, vive com num lugar próximo a uma grande cidade, à qual se chega após
adentrar-se por uma via onde convivem o ―cinturão industrial‖ e o ―cinturão verde‖ –
local este sob hectares de cobertura plástica destinado ao cultivo de produtos
agrícolas hortifrutigranjeiros. É nessa paisagem campestre que Cipriano fabrica as
louças de barro, em uma olaria que ele herdara de seu pai e de seu avô, também
oleiros.
Certo dia, Cipriano Algor, ao chegar ao Centro – lugar que comercializava
com exclusividade as louças de barro que fabrica junto à filha Martha –, é avisado
por um funcionário que seus produtos artesanais não seriam mais postos à venda,
por terem sido considerados obsoletos pelos consumidores. O oleiro passa pela
rejeição de seu ofício e resiste ao apagamento de sua profissão, ao decidir
tenha também contribuído nestas sendas de ressimplificação e universalização do processo narrativo para permitir um diálogo mais profícuo com leitores que são agora oriundos de todas as latitudes. Porém, estamos a crer que estas transformações da estilística e da arquitetura narratológica vão sendo integradas numa metamorfização bem mais ampla de alegorizações de uma distopia avessa à dimensão futurante em forte contraste com as subversões portadoras de outros mundos que se encontravam em Levantando do chão, em Memorial do convento e nas outras obras dos anos 80‖ (LOPES, 2010, p100).
28
empreender, junto a Marta, a fabricação um novo produto - os bonecos de barro,
cujas características ele irá buscar na antiga enciclopédia da família.
Na passagem em que Cipriano Algor resolve verificar o que há no subsolo
daquele prédio imenso, após ele ter decidido morar no Centro com sua filha e seu
genro - porque também os bonecos de barro foram rejeitados pelos consumidores
do Centro -, o oleiro esclarece à filha Martha que
Lá em baixo há seis pessoas mortas, três homens e três mulheres, [...] Essas pessoas somos nós, disse Cipriano Algor, [...] eu, tu, o Marçal, o Centro todo, provavelmente o mundo. [...] Vocês decidirão a vossa vida, eu vou-me embora. (SARAMAGO, 2000, p. 334)
O que Cipriano assistiu no subsolo e comunicou à sua filha confirma suas
expectativas em relação ao Centro – um local vigiado, fechado e com janelas que
nunca se abriam, um lugar em que não se admitiam cães nem famílias numerosas,
um local organizado ―segundo um modelo de estrita compartimentação das diversas
actividades e funções‖ (ibidem, p. 39). É a passagem que parece representar que o
oleiro toma conhecimento da sua própria condição humana, de sua identidade. Por
isso, numa espécie de experiência aurática18, Cipriano dá início à saída da própria
caverna em que se encontrava – a de dentro de si mesmo.
Assim, o espírito do livro A caverna (2000), a descrição das circunstâncias e
do espaço que envolve a família de oleiros, as habilidades manuais de Cipriano e de
Marta, as características da Olaria, do Cinturão Agrícola, do Cinturão Industrial, do
Centro, constitutivos da obra do escritor português, remete o leitor a realidades
brasileiras originais e, ao mesmo tempo, a acontecimentos comuns a indivíduos
habitantes de diversos lugares do planeta.
3 AS HABILIDADES MANUAIS DO ARTÍFICE CIPRIANO ALGOR
18
Conceito de Walter Benjamin a que se refere a autora Taís Helena Pascale Palhares (2006, p. 99).
29
A Grécia arcaica celebrava o artífice19 - denominação utilizada por Richard
Sennett - através de Hefesto, ou Vulcano para os romanos, reconhecendo as
dádivas que eram concedidas aos mortais. Hefesto era o deus do fogo e o patrono
dos ferreiros e dos artesãos em geral. Ele era responsável, segundo a lenda, pela
difusão da arte de usar o fogo e da metalurgia geralmente representado pela figura
de um homem barbado, de meia-idade e que veste uma túnica sem mangas, com
um gorro sobre o cabelo desgrenhado (Figura 1). Filho de Hera e de Zeus, ele teria
nascido feio e coxo, e sua mãe, envergonhada, o teria jogado ao mar, até ele ser
recolhido pela titânia Tétis, que o educou na ilha de Lemnos.
Figura 1 – Hefesto. Fonte: Disponível em: www.twakan.com/numero11/Mitos11.htm. Acesso em: maio 2010.
Por ordem de Zeus, Hefesto, ao retornar ao Olimpo, casou-se com Afrodite, a
mais bela das deusas, e tornou-se o ferreiro divino, instalado no centro dos vulcões.
Assim, ―acossado desde o primeiro instante pelo infortúnio, é alma forte e lúcida,
com discernimento bastante para fazer mudar em beleza a dor que o destino lhe
19
Neste trabalho, a palavra artífice refere artesão ceramista, artista ceramista, oleiro ou artífice do barro. Salientamos que Richard Sennett, autor de O artífice, afirma que ―a atividade artesanal se estende a todo o tipo de profissão‖ (2009, p.79).
30
remete‖ (FRANCHINI, 2007, p. 34). Hefesto, o deus do fogo, cresce ―metido em sua
forja20 nas profundezas da terra, confeccionando as mais belas peças de ferro,
bronze e metais preciosos de todo o tipo‖ (ibidem, p. 34).
Um hino a Hefesto foi escrito por Homero e enfatiza a valorização do artífice
que civilizou o homem das cavernas ao fabricar ferramentas como a faca, a roda e o
tear, para o uso comunitário. Segundo Richard Sennett, esses utensílios eram
ferramentas para o desenvolvimento de habilidades entre os indivíduos. Estes
deixavam, assim, de ser nômades e davam início a práticas como a caça, a coleta e,
também, a defesa de territórios. No hino
Canta, Musa da voz clara, as celebradas habilidades de Hefesto. Com Atena e seus olhos brilhantes, ele ensinou gloriosos ofícios de todo o mundo – homens que antes moravam em cavernas nas montanhas, como animais selvagens. Mas agora que aprenderam ofícios graças a Hefesto, famoso por sua arte, eles levam uma vida tranqüila em suas casas o ano todo. (HOMERO apud SENNETT, 2009, p. 31)
Na Grécia arcaica, o artífice era homenageado como um civilizador que
associava ―a cabeça às mãos‖. Já na era clássica, modifica-se a concepção a
respeito do trabalho dos artífices e ―o leitor de Aristófanes encontra um pequeno
indício dessa mudança no desprezo com que ele tratava os oleiros de Kittos e
Bacchios como estúpidos bufões, em virtude do trabalho que executam‖ (SENNETT,
2009, p. 33). Nesses escritos citados por Sennett, encontram-se as considerações
aristotélicas referindo que ―em toda profissão os arquitetos são mais estimáveis e
sabem mais e são mais sábios que os artesãos, pois conhecem as razões das
coisas que são feitas‖.
Substituiu-se a palavra demioergos – artífice –, pela palavra cheirotechnon –
trabalhador manual. Demioergos é a combinação de público (demios) com produtivo
(ergon), e Homero a utiliza no hino de Hefesto para designar o artífice porque os
demioergos ocupavam uma posição social privilegiada entre os poucos ―aristocratas
abastados‖ e a ―massa de escravos‖ que faziam a maior parte do trabalho.
20
“Forja é um sistema composto dos seguintes itens: fornalha (material carburante e ar), bigorna,
martelos, tenazes e líquidos para arrefecimento (óleo/água). Neste sistema o ferreiro atua no metal aquecido a fim de gerar uma forma desejada. A principal ação é a deformação da estrutura inicial. Posteriormente segue-se para o tratamento térmico para conferir ao metal as qualidades desejadas‖ (Infopédia)
31
Muitos desses demioergos tinham grande capacitação técnica, mas seus
talentos não se traduziam em direitos ou reconhecimento. Conforme afirma Sennett
(2009, p. 32), esses artífices estavam entre os ―trabalhadores manuais
especializados, como os oleiros – médicos e magistrados de escalão inferior, e
mesmo cantores profissionais e arautos, que eram, na antigüidade, os difusores de
notícias‖.
Para Homero, no hino, os poetas também são artífices. Mas Platão, segundo
Sennett (ibidem, p. 34), ―observou que em sua época, embora ‗os artífices sejam
poetas [...] não são chamados poetas, têm outros nomes‖. Sennett destacou que o
filósofo clássico temia que ―esses nomes diferentes e mesmo essas capacitações
diferentes impedissem os homens de entender o que tinham em comum‖
(SENNETT, 2009, p. 34).
A antiga denominação de demioergos – relacionada à busca pelo
aperfeiçoamento técnico e pela qualidade dos objetos confeccionados manualmente
– vincula-se à identidade de um artífice, tal qual ao personagem Cipriano Algor. Por
esse motivo, o mito de Hefesto é lembrado neste trabalho para subsidiar a análise
referente ao processo de constituição identitária do protagonista do romance de
José Saramago.
É com a descrição do trabalho manual realizado pelo oleiro nas lidas com o
barro, que Saramago dá inicio ao romance:
O Homem que conduz a camioneta chama-se Cipriano Algor, é oleiro de profissão e tem sessenta e quatro anos, posto que à vista pareça menos idoso. [...] As mãos que manejam o volante são grandes e fortes, de camponês, e não obstante, talvez pelo cotidiano contacto com as maciezas da argila a que o ofício obriga, prometem sensibilidade. (SARAMAGO, 2000, p. 11).
A partir da descrição das mãos de Cipriano Algor, consideramos o ―facto de
este demonstrar um conhecimento profundo de seu ofício, que, porém não se trata
de um conhecimento acadêmico do seu ofício‖ (VICENTE, 2008, p.6). Em análise
acerca das habilidades manuais de Cipriano Algor, que se desenvolvem a partir do
movimento denominado ―preensão‖, interessa o pensamento de Richard Sennett
(2009, p.174). Tal movimento, segundo o autor de O artífice, tem início logo na
segunda semana de vida, nos recém-nascidos, e se aperfeiçoa até o final do
32
primeiro ano de vida, quando então esse processo do desenvolvimento humano
recebe o nome de trato piramidal21.
Segundo Sennett (2009, p.174-175), citando a explicação de Frank Wilson, é
a partir do desenvolvimento do trato piramidal que ―a mão está pronta para uma vida
inteira de exploração física‖. O dedo polegar permite a ação de agarrar algo, e,
assim, quando o fazemos, estabelecemos os ―fatos concretos‖, o que tem a ver com
o raciocínio22 empreendido pelo artesão oleiro, em A caverna.
Para compreendermos o processo de construção da identidade do oleiro
Cipriano Algor, recorremos à reflexão de Richard Sennett, encontrada no Capítulo 5,
―A mão‖, item denominado ―Preensão agarrar algo‖:
Raymond Tallis fez a descrição mais completa de que até hoje dispomos sobre preensão. Ele organiza o fenômeno em quatro dimensões: antecipação, como a que determina a forma assumida pela mão ao tentar pegar o copo; contato, quando o cérebro recebe dados sensoriais através do tato; cognição lingüística, no ato de dar nome àquilo que seguramos; e por fim reflexão sobre o que fazemos. Tallis não insiste em que estas dimensões devam configurar um movimento de autoconsciência. Nossa orientação pode continuar voltada para o objeto; o que a mão sabe é o que a mão faz. Mas eu acrescentaria um quinto elemento: os valores desenvolvidos pelas mãos altamente capacitadas. (SENNETT, 2009, p.175, grifo nosso)
O oleiro Algor, que costuma honrar seus compromissos com o Centro,
posiciona-se na fila junto a outros fornecedores em seus veículos abarrotados de
mercadorias, e dá início a mais uma entrega de suas louças de barro no Centro. É
quando ele recebe do subchefe da recepção a notícia de que somente metade da
louça de sua furgoneta seria descarregada e colocada à venda no Centro; a outra
metade, que não fora vendida, seria devolvida ao oleiro. Assim, ―Cipriano Algor tem
as mãos a tremer, olhava em redor, perplexo, a pedir ajuda, mas só leu desinteresse
nas caras dos condutores que haviam chegado depois dele‖ (SARAMAGO, 2000, p.
22).
Cipriano, então, retorna para sua casa e começa a raciocinar tentando
compreender os motivos da rejeição dos objetos de barro, tanto pelo Centro como
21
―Estabelece a ligação entre a região motora primordial do córtex e a medula espinhal‖ (SENNETT, 2009, p.175). 22
Sennett (2009, p. 174) adverte que, embora a ―preensão‖ confira ―determinada configuração ao entendimento mental, assim como à ação física, [nós, humanos] não esperamos para pensar até que todas as informações estejam à mão, antecipamos o significado‖
33
pela ―gente das barracas‖, que viviam num local afastado do sítio dos Algor e do
Centro, a uns dois quilômetros do Cinturão Industrial. Deste lugar assustador,
―aglomerações caóticas de barracas feitas de quantos materiais, na sua maioria
precários‖ (ibidem, p.14), surgiu apenas um homem ―com toda a pinta de assaltante
habitual‖ (ibidem, p.26) que ofereceu ajuda ao oleiro e levou a bilha e os doze pratos
oferecidos por Cipriano que, em um gesto de desespero, havia aberto as portas de
sua furgoneta esperançoso de que alguém se interessasse em levar a louça
rejeitada.
Decepcionado, Cipriano começa a cogitar sobre o futuro bem próximo e difícil,
refletindo sobre as diferenças entre as louças de plástico e as de barro:
A ominosa visão das chaminés a vomitar rolos de fumo deu-lhe para se perguntar em que estupor de fábrica daquelas estariam a ser produzidos os estupores das mentiras de plástico, maliciosamente fingidas à imitação do barro, É impossível, murmurou, nem o som nem o peso se lhes pode igualar, e há ainda a relação entre a vista e o tacto que ali já não sei onde, a vista que é capaz de ver pelos dedos que estão a tocar o barro, os dedos que, sem lhe tocarem, conseguem sentir o que os olhos estão a ver. (ibidem, p. 27)
Martha, após a notícia da rejeição das louças, sugere ao pai a produção de
um novo produto: os bonecos de barro. Inspirada nas imagens da antiga
enciclopédia que pertence à família Algor, ela aprontou os desenhos dos seis
modelos de bonecos de barro seriam oferecidos ao Centro, em três séries iniciais, ―a
primeira totalmente fiel aos originais, a segunda desafogada de acessórios, a
terceira limpa de pormenores supérfluos‖ (ibidem, p.81).
Cipriano, impaciente, reuniu as cópias transpostas para o papel e dirigiu-se à
olaria para começar a modelar o barro. O oleiro
fez, desfez e refez bonecos com figura de enfermeiras e de mandarins, de bobos e de assírios, de esquimós e de palhaços, quase irreconhecíveis nas primeiras tentativas, mas logo ganhando forma à medida que os dedos começaram a interpretar por sua própria conta e de acordo com as suas próprias leis as instruções que lhes chegavam à cabeça. (SARAMAGO, 2000, p.82).
Com essa atitude, Cipriano comprova que tem em si desenvolvido todas as
capacidades de uma mão inteligente, pois é através da sensibilidade da ponta dos
dedos, que o oleiro que se orienta ao desempenhar o seu trabalho artesanal. Afinal,
conforme a reflexão de Cipriano que se confunde com a voz do narrador
34
Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. [pois, o cérebro] nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais difusas, e sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer. (SARAMAGO, 2000, p. 82)
De acordo com Sennett (2000, p. 169), há dois séculos, Immanuel Kant já
havia dito que ―a mão é a janela que dá para a mente‖, o que nos leva a concluir que
a mão é um dos membros do corpo humano que produz movimentos controlados
pelo cérebro e que esses movimentos, ―aliados ao tato e às diferentes maneiras de
segurar com as mãos‖ (ibidem, p. 169) evoluíram fisicamente, junto à evolução de
nossa espécie, e interferem na nossa maneira de pensar. Sobre o assunto, Richard
Sennett (ibidem, p. 264) afirma:
A mão precisa ser sensibilizada na ponta dos dedos, o que lhe permite raciocinar sobre o tato. Uma vez alcançado isto, podem ser abordados os problemas de coordenação. A integração entre a mão, o punho e o antebraço permite então aprender as lições de força mínima. Feito isto, a mão pode trabalhar com o olho para contemplar fisicamente o que vem pela frente, antecipando e assim sustendo a concentração. Cada etapa, apesar de desafiadora, dá sustentação à passagem para a seguinte, mas cada uma delas é um desafio por si mesmo.
Sennett (ibidem, p. 170) chama a atenção para o que aconteceu por volta de
1833, antes de Darwin23, quando Charles Bell24, entre tantas de suas experiências,
sustentou que ―o cérebro recebe do toque informações mais confiáveis que as
imagens do olho‖, enquanto que os olhos estariam à mercê de ―aparências falsas e
enganosas‖.
A partir dessas reflexões, depreende-se que a atitude de ―pegar com as mãos
é um ato voluntário, uma decisão, em contraste com movimentos involuntários como
piscar‖ (SENNETT, 2009, p. 171). O autor de O artífice assinala que os indivíduos
são dotados de uma ―rede neural‖ bastante complexa e muito bem ordenada que
lhes permite raciocinar e praticar atos, utilizando olhos, cérebro e mãos,
23
―Naturalista britânico que convenceu a comunidade científica sobre a ocorrência da evolução das espécies por meio da teoria da seleção natural e sexual‖ (The complete work of Charles Darwin On Line, 2009, biografia). 24
―Cientista, inventor e fundador da companhia telefónica Bell‖ (Alexander Grahm Bell Family Collection, 2009, biografia).
35
harmoniosamente, pegando, vendo e sentindo o mundo de coisas ao redor. Aqui,
nos remetemos ao que diz o narrador sobre Cipriano Algor:
A pasta está boa, húmida, plástica no ponto, fácil de trabalhar, ora, perguntamos nós, como poderá ele estar tão seguro do que diz se só lhe pôs a palma da mão em cima, se só apertou e moveu um pouco de pasta entre o dedo polegar e os dedos indicador e médio, como se, de olhos fechados, todo entregue ao sentido interrogador do tacto, estivesse a apreciar, não uma mistura homogênea de argila vermelha, caulino, sílica e água, mas o ardume e a trama de uma seda. O mais provável, como [...] é saberem-no os seus dedos, e não ele. (SARAMAGO, 2000, p. 148, grifo nosso)
Embora bastante antigo ―o debate para saber se o toque transmite ao cérebro
informações sensoriais diferentes das que chegam pelo olho‖ (SENNETT, 2009, p.
170), por um bom período de tempo achava-se que o toque fornecia dados
diferentes daqueles emoldurados pelos olhos. Ainda que os dedos possam obedecer
à consciência como não obedecê-la, para o oleiro de A caverna, ―ainda são os
dedos que tem de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da
epiderme ao tocar o barro, [...] o abecedário em relevo do mundo‖ (SARAMAFO,
2000, p. 83).
Denomina-se ―toque localizado‖, segundo Sennett (2009, p.170) o que ocorre
quando os dedos da mão, ao tocar determinada superfície25 na busca de uma
informação, estimulam o cérebro a pensar. É como Cipriano avalia a qualidade do
barro, raciocinando e sendo levado à ―natureza do material‖, procurando saber o que
falta e o que excede à massa, para que se possa melhor desenvolver seus
trabalhos.
É certo que consegue ver mais ou menos claramente visto o que os olhos lhe mostram, mas as mais das vezes sofre do que poderíamos designar por problemas de orientação sempre que chega a hora de converter em conhecimento o que viu. (SARAMAGO, 2000, p. 83)
Assim, nos remetemos ao ―veredicto de Cipriano Algor‖ que ―deve estar de
acordo com a realidade física do barro‖ (ibidem, p. 148), pois, para o oleiro ―não são
25
Em análise sobre o livro Memorial do convento (SARAMAGO, 1982, p. 86), Teresa Cristina
Cerdeira da Silva menciona a passagem: ―Baltasar conta a Blimunda casos da sua guerra, e ela segura-lhe o gancho do braço esquerdo como se verdadeira mão segurasse, é o que ele está sentindo, a memória da sua pele sentindo a pele de Blimunda (Memorial do convento, p. 86)‖ (SILVA, 1989, p. 57, grifo nosso) remete ao significado do ―toque localizado‖ (SENNETT, 2009, p. 170).
36
os conhecimentos do jardim de infância da olaria, é o bê-a-bá do ofício‖ (ibidem, p.
149) que servirá para solucionar os problemas que surgem, até que o barro esteja
no ponto certo para ser moldado, pois,
ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco, com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos veem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico, ou sobrenatural, [...] foram os dedos e os pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. (SARAMAGO, 2000, p. 83)
Cipriano, na voz do narrador, explica o significado da relação das mãos do
artesão com o objeto feito por ele, mediado pelo material – o barro. Isso nos leva a
crer que ―as informações armazenadas sobre o ato de segurar‖ (SENNETT, 2009, p.
170) um objeto ajudam o cérebro a conferir sentido a uma ―fotografia tridimensional‖
desse mesmo objeto, pois, ―a curva da mão e a percepção nela do peso‖ do objeto
―ajudam o cérebro a pensar em três dimensões‖. E, além disso, ―as mãos, quando
trabalham a terra, confundem-se com ela‖ (SARAMAGO, 2009)26.
Assim, quando o artista se questiona sobre o que ele mesmo faz, quando
acerta e quer repetir o que foi feito, quando ele erra e volta ao passado, procurando
soluções, ―em vez de usar a ponta dos dedos como mero criado‖, o toque localizado
―faz o caminho inverso, da sensação para o procedimento‖, é quando o artista
raciocina ―retroativamente, da conseqüência, para a causa‖ (SENNETT, 2009, p.
178).
Salientamos que o ato de agarrar e a preensão são capacidades manuais,
que se desenvolvem na própria estrutura óssea das mãos, e, independentemente do
formato ou do tamanho ―a verdadeira diferença entre as mãos capazes e as
desajeitadas está na maneira como cada uma delas é estimulada e treinada‖
(ibidem, p. 308).
Portanto, é a cultura que funciona como um sistema aberto em relação ao
cérebro e, de uma forma específica, os diferentes tipos de ambiente o estimulam ou
deixam de estimular, reprimindo ou desencadeando capacidades e habilidades
26
Este trecho foi publicado em 16 de julho de 2009 no blog O Caderno de Saramago.
37
humanas. E ―o corpo humano está cheio de possibilidades que requerem
organização social e cultural para se tornarem manifestas e concretas‖ (ibidem, p.
308).
É o sociólogo e historiador norte-americano que nos chama atenção para as
habilidades essenciais que constituem a perícia artesanal, ―que não são
excepcionais‖ e que ele denomina de capacidades de ―localizar, questionar e abrir. A
primeira está relacionada com tornar algo concreto; a segunda, com refletir sobre
suas qualidades; e a terceira, com expandir o seu sentido‖. São capacitações em
que o cérebro processa ―paralelamente informações visuais, auditivas, táteis e de
linguagem simbólica‖ (ibidem, p. 309).
3.1 A CRIAÇÃO DOS BONECOS DE BARRO E O PROCESSO DE
CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DO OLEIRO
Do calor do sol aos fornos das olarias utilizados para tornar as peças mais
firmes e duráveis, a história da cerâmica percorreu o cotidiano de todos os povos,
auxiliando-os. O artesanato em cerâmica utilitária ou decorativa desenvolvidos no
Brasil remete a estudos multidisciplinares. Na cerâmica utilitária, são as cores, as
texturas, os desenhos geométricos ou figurativos; na cerâmica decorativa, são os
cangaceiros, os retirantes, os vendedores, os músicos, as rendeiras, os médicos ou
dentistas operando, os casais com filhos, as mulheres em seus afazeres
domésticos. Tudo isso diz algo além do design desses objetos de barro que retratam
estados da alma, saberes e culturas, em figuras e cenas típicas, que salientam a
cultura regional e a cultura brasileira, contando histórias do cotidiano de
personagens e de personalidades do povo através dos objetos.
A análise dos acontecimentos com o oleiro Cipriano e Marta, sua filha, levou-
nos a perceber que os personagens, ao fabricarem as louças na olaria – rejeitadas
pelo Centro, seu único comprador – e ao darem início à produção de bonecos de
barro para continuarem sobrevivendo em seu ofício artesanal, desenvolveram suas
habilidades manuais através do impulso da criação.
38
Entendemos que os personagens do livro, assim como os artífices de Alto do
Moura (Caruaru-PE) - um dos principais pólos brasileiros de cerâmica artística no
Brasil -, utilizam o barro como matéria-prima e como medium de criação, para
comunicar o que há em si, a partir desse elemento material, constituindo suas
representações identitárias27 e sentimentos de pertencimento a uma família, a um
grupo, a uma sociedade, à natureza e a uma época.
Nas feiras e nos mercados, nos museus brasileiros e no mundo afora, os
bonecos de barro retratam figuras e cenas típicas do dia a dia de pessoas do povo -
denominação que qualifica um indivíduo ou grupo de pessoas para além de sua
posição socioeconômica. Nessas obras, salienta-se a cultura regional, mas,
principalmente, a cultura brasileira, que é fruto de um contínuo processo de
transculturação28.
É possível que a história de Cipriano Algor se assemelhe, em parte, à do
Mestre Vitalino29 e de seus discípulos e familiares, residentes no agreste
pernambucano, próximos a indústrias, à zona rural com pequenas plantações de
milho, à tradicional feira de Caruaru e aos modernos shoppings centers que
surgiram recentemente.
Da leitura de A caverna e com as reflexões que permeiam essa narrativa,
depreendemos que tudo aquilo que é confeccionado manualmente e exclusivamente
pelo oleiro de Saramago – assim como pelos filhos dos mestres artesãos ceramistas
de Alto do Moura –, vai se aperfeiçoando e se moldando aos tempos e às
necessidades.
Entre os personagens de A caverna e os indivíduos de Alto do Moura, os
costumes são preservados, fotografados através da modelagem ou da escultura de
27
Representações identitárias ―é um conjunto organizado de opiniões, de atitudes, de crenças e de
informações referentes a um objeto ou a uma situação. É determinada ao mesmo tempo pelo próprio sujeito (sua história, sua vivência), pelo sistema social e ideológico no qual ele está inserido e pela natureza dos vínculos que ele mantém com esse sistema social (ABRIC, 1994, p. 156). Nesse sentido, são todas as manifestações artísticas e culturais dos artesãos envolvidos no processo de criação, execução, divulgação e comercialização de objetos artesanais. 28
―Transculturação é o processo pelo qual um fenômeno passa de uma cultura para outra, dizendo, por isso, respeito aos contactos e aos cruzamentos de culturas diferentes‖ (Infopédia, 2009). 29
―Vitalino nasceu em 1909, no Sítio Campos, distrito de Caruaru. Sua mãe fazia utensílios domésticos em barro, e aos seis anos de idade, ele começou a moldar formas de pequenos animais, com o que sobrava do trabalho de dona Joana Maria da Conceição. Em 1948, ele vai, com a família, para o Alto do Moura e começa a ter seu trabalho reconhecido em todo o país, e levado para exposições e premiações em outras regiões do Brasil e do exterior. O Mestre morreu aos 54 anos de idade, em 20 de janeiro de 1963, e perpetuou entre seus familiares e seguidores a arte figurativa, como característica do povo e da região e como modo de sobrevivência dos artesãos e artistas populares de Alto do Moura‖ (WALDECK, 2009).
39
personagens únicos ou em grupos. Esses registros garantem a perenidade dos
costumes. São cenas reconstruídas no barro através da cosmovisão individual e
local, retratando as expressões identitárias de cada artífice e de sua família,
envolvidos no processo de criação, de reprodução, de divulgação e de
comercialização das peças de barro.
Em A caverna, o fazer artesanal de Cipriano Algor entra em choque com a
modernidade. Sem poder concorrer com a produção de objetos utilitários fabricados
com matérias e tecnologias bem diferentes das utilizadas pelo oleiro em sua olaria
residencial, e pode parecer que as habilidades artesanais tenham começado a
desaparecer ―com o advento da sociedade industrial‖ (SENNETT, 2009, p. 19).
Entretanto, uma habilidade artesanal, por estar diretamente ligada à
constituição física humana, não se constitui apenas no produto obtido através dos
trabalhos manuais. Conforme nos referimos neste trabalho, tais habilidades são
desencadeadas ou reprimidas através da cultura. Portanto, elas não se extinguem
socialmente, nem culturalmente, uma vez que são intrínsecas à constituição física
do ser humano.
Para Cipriano Algor, que imaginava poder dar continuidade ao trabalho na
olaria, a rejeição das louças pelo Centro aponta para algo ainda mais avassalador
do que seu medo de não mais conseguir prover o próprio sustento e o de sua filha
Marta. Significa a desestabilização de suas representações identitárias intimamente
ligadas às tradições familiares, alicerçadas nas práticas artesanais iniciadas pelo
avô e aperfeiçoadas pelo pai de Cipriano, também oleiros.
Segundo o sociólogo Stuart Hall (2006), por estarmos vivenciando um
processo contínuo em que as ―identidades tradicionais‖, que, de certa forma
estabilizavam a sociedade, estão em desaparecimento, ―a identidade somente se
torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo,
coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza (HALL,
2006a, p. 9). Cipriano estava em crise, e, levado pelas circunstâncias, o oleiro
duvida de seu futuro na olaria, sentado no banco de pedra, sob a antiga amoreira30,
30
Curiosamente, o papel foi inventado na China em 105 A.C, onde se descobriu que a camada interna da casca da amoreira ―misturada a trapos, cânhamo e velhas redes de pescaria podia ser reduzida a fibras que, trituradas e emaranhadas, formavam uma folha. [...] No inicio do século VIII, os árabes invadiram a China, e descobriram o segredo da manufatura do papel. Os Árabes foram os primeiros a introduzir as oficinas de papel no ocidente. Em 1150, os Árabes [que dominaram a Peninsula Ibérica por 700 anos] estabeleceram as fábricas de papel na Espanha Toledo e Valença,
40
ele relembra o seu passado e articula o seu futuro, pois, caso os bonecos de barro
também sejam rejeitados, o oleiro Algor irá morar no Centro com sua filha e seu
genro.
Retomando aspectos culturais dos oleiros, é em Alto do Moura que famílias
inteiras, de geração a geração, misturam suas tradições culturais a práticas
artísticas cuja matéria-prima é o barro. Foi lá que os primeiros mestres artesãos
começaram a trabalhar criando louças e bonecos, peças que, até hoje, são copiadas
e reproduzidas por seus familiares e seguidores. É quando cada um, ao seu modo,
imprime no produto de seu trabalho suas impressões culturais, intimamente ligadas
ao imaginário e aos hábitos cotidianos, cria obras em que se reconhecem valores
estéticos e artísticos, históricos e culturais.
Em A caverna, depois de anos fabricando objetos utilitários do mesmo modo
que seu pai e seu avô, Cipriano e a filha decidiram-se pela fabricação de bonecos,
em substituição às louças31. A escolha dos modelos partiu da antiga enciclopédia da
família, incidindo sobre seis figuras escolhidas para serem oferecidas ao Centro.
Entre modelos variados, pai e filha escolheram, então, o esquimó, o assírio de
barbas, o bobo, o palhaço, a enfermeira e o mandarim.
É possível afirmar que cada modelo de boneco de barro vai se abrir em sua
pluralidade de significados32. Dada a escolha, feita de acordo com características
apresentadas pela enciclopédia, desde a fabricação, a comercialização, a entrega
ao Centro até a chegada, afinal, às mãos dos consumidores, esses bonecos podem
obter sentidos que revelam aspectos importantes seja da cultura em que surgem,
seja na comunidade a que são destinados.
Enquanto Cipriano modelava a enfermeira e Marta se ocupava em modelar o
palhaço, quando ―nem um nem outro se sentiam satisfeitos com as tentativas, estas
que abasteceram por muitos anos os países da Europa.‖ Disponível em http://www.eba.ufmg.br/alunos/kurtnavigator/arteartesanato/papel.html Acesso em maio, 2010. 31
Em Portugal ainda há alguns núcleos produtores de cerâmica artesanal que fabricam quantidades de peças de barro com características típicas de cada região oleira. Segundo Emanuel Ribeiro, ―a nossa cerâmica não possue (sic) as formas requintadas de certos vasos pertencentes a civilizações passadas. [...]. Assim analisemos as louças negras de Tondela (Molelos), de Bisalhões, de Vilar de Nantes.[...]Analisemos as louças vermelhas de Estremoz, de Viana do Alentejo, de Tomar.[...].As louças amareladas de Teivas, de Caçarelhos, as amarelo terrosas de Miranda do Corvo. Olhemos também para a cerâmica de Viana, do Porto e Vila Nova de gaia; para a de Coimbra e de Lisboa e as formas simples em todas elas aparecem como poesia ingênua, com aquela musicalidade da trova popular que fala principalmente ao coração...‖ ( RIBEIRO, 1927, p. 39-43) 32
―Cada artesão escolhe temas conforme suas preferências individuais, porém não deixam estes de ser influenciados pela natureza ambiente e pelos modos de vida próprios da área cultural a que pertence o artesão.‖ (MARTINS, 1976, p. 3)
41
depois de outras, talvez porque copiar seja, afinal de contas, mais difícil do que criar
livremente‖ (SARAMAGO, 2000, p. 156), é que se percebe que a ―habilidade
artesanal designa um impulso humano básico e permanente‖ (SENNETT, 2009, p.
19). Cipriano e Marta tinham em suas mãos as habilidades dos artífices do barro,
ressuscitadas com a prática, através do impulso da criação.
As habilidades artesanais que um artesão desenvolve e aperfeiçoa, ou
ressuscita em si através da prática, dá ensejo a questionamentos sobre as inúmeras
particularidades que por vezes estabelecem diferenças entre os conceitos de arte e
de artesanato. Entendemos que é possível aproximar esses conceitos, uma vez que
o que os une é simplesmente ―a vontade humana de criar‖, esta que, conforme
Ângela Mascelani33 (2008, p. 140) afirma
Se estende sobre a vontade de acolher, de ter para si uma obra [...]. Criar é abrir caminhos, aprender com a experiência, ver antes. Olhar a madeira e ver a obra pronta. Na greta do barranco, ver a terra úmida, fria e, com o tato, sentir o tônus do barro. [...] Lançar-se no mundo da arte e do artesanato é inventar outras formas de discurso, outros léxicos, arquitetar caminhos, cruzar veredas.
À maneira de Cipriano e Marta, usando de sua criatividade de artesãos,
ambos decidiram trilhar novos caminhos na tentativa de concluírem, ao seu gosto,
os primeiros seis moldes que serviriam de modelo para os 1.200 bonecos que
seriam encomendados pelo Centro. Estes primeiros foram levados à tábua de
secagem, para que lá se desidratassem e fossem colocados no calor do forno da
olaria. Sobre esse processo, declara-se a voz do narrador:
Conta-se que em tempos antigos houve um deus que decidiu modelar um Homem com o barro da terra, que antes havia criado, e logo, para que ele tivesse respiração e vida, lhe deu sopro nas narinas, [...] depois daquele ato criativo supremo, o tal deus não voltou nunca mais a dedicar-se às artes da olaria. [...] É um facto histórico que o trabalho da modelagem, a partir daquele memorável dia, deixou de ser um atributo exclusivo do criador para passar a incipiente competência das criaturas, as quais, escusado seria dizer, não estão apetrechadas de suficiente sopro ventilador. (SARAMAGO, 2000, p. 182-183)
Possivelmente, aquele artesão – tal qual Cipriano Algor e Martha - que
modela bonecos representando figuras humanas e tem no barro a matéria-prima
33
Pesquisadora e Diretora do Museu Casa do Pontal, na capital do Rio de Janeiro.
42
para seu trabalho motive-se pelo impulso humano da criação. Pela leitura do texto
bíblico, no Gênesis (2;7), é possível verificar que as atitudes de Cipriano têm sua
origem primeira na narrativa bíblica: ―O Senhor Deus formou, pois, o homem do
barro da terra, e inspirou no seu rosto um sopro de vida, e o homem tornou-se alma
(pessoa) vivente‖.
Ora, tanto Cipriano Algor e sua filha, como aqueles artistas populares ou
artesãos que usam o barro como matéria-prima para criar um produto artístico,
utilitário ou figurativo, além disso, estão criando é a si próprios. Por isso, pode-se
dizer que as formas34 dos bonecos escolhidos pelo oleiro a partir das imagens
dispostas na enciclopédia, nascem regidas pelas ―leis da utilidade e da harmonia,
com novos motivos e perfis que possuam a linguagem estética do nosso momento
histórico, onde se possam reflectir todas as presentes emoções e sentimentos‖
(RIBEIRO, 1927, p.53).
E assim ela [a cerâmica] conserva quase que intacto o ritus ingênuo da primeira hora, a linguagem simples dos seus ornamentos, o sentimento melódico das linhas que a mão do artista balbucia numa improvisação panteísta, ou não é mais do que a invocação dum contorno que registra a afectividade dum instante. (ibidem, p.27)
Como num processo identitário da tradição em processo (Hall, 2006), esses
artífices ceramistas, oleiros como os Algor, agem conforme suas próprias idéias,
seus sentimentos e emoções, e representam no barro as suas crenças e costumes.
Ou, ainda, motivados pelo imaginário coletivo cristão, pela sensação de que estejam
criando seres à imagem e à semelhança de si mesmos ou dos indivíduos ao redor,
criem bonecos conforme o seu deus os criou.
Por isso, dizemos que é em conjunto com o ato de criar o produto de seu
trabalho que aquele que o faz com as suas próprias mãos, ao desenvolver suas
habilidades manuais, constrói a própria identidade. O artesão busca expressar suas
necessidades em suas criações. É através do seu trabalho que ele se integra à
natureza, mas, também a um grupo, à comunidade e à sociedade.
Assim, em todas as formas de manifestações culturais, acham-se
representados, como quer Stuart Hall, os ―elementos de reconhecimento e
34
―O estudo morfológico da cerâmica denuncia-nos que também a figura humana lhe emprestou uma grande parte dos seus contornos‖ (RIBEIRO, 1927, p.17).
43
identificação, algo que se assemelha a uma recriação de experiências e atitudes
reconhecíveis, às quais as pessoas respondem‖ (HALL, 2006, p. 239).
Ângela Mascelani, em suas pesquisas no Vale do Jequitinhonha35, quando
entrevistou um dos artistas locais e procurou interpretar seu pensamento, concluiu
que o artista nos ―fala dos sentidos, da abertura para outros sentidos que estão
silenciados, do aprimoramento da sensibilidade e da entrega ao reconhecimento.
Fala da solidão e da comunhão com a natureza. Experiência unificadora à qual se
entrega o bom artista‖ (MASCELANI, 2008, p. 149).
Para Mascelani, o que propicia a esse artista a solidão na natureza é
justamente ―o apego a Deus, que é inteiramente natureza‖ (ibidem). É o momento
em que ele ―escuta os sons, sente a matéria e vai captando em si, misturando-se
àquilo tudo que está ao seu redor‖, que é a própria fonte de sua inspiração. ―Uma
inspiração que não é apressada. Que sabe que o tempo é necessário. Tempo da
arte‖, complementa Mascelani (ibidem).
Walter Benjamin, em seu importante tratado sobre a obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica, assevera que ―o que numa essência espiritual é
comunicável, transmite-se nela, isto é, cada linguagem comunica-se a si mesma‖
(BENJAMIN, 1992, p.180). Diante do exposto, constatamos que a linguagem do
barro comunica – através do que possa ser produzido com esse elemento da
natureza disponível em abundância – e é parte constitutiva do ato de criação de um
artesão ou de artista ceramista.
Em Anatomia da cerâmica portuguesa, Emanuel Ribeiro (1927, p.51) ao
analisar a arte em cerâmica como força integral da própria natureza, esclarece que
nada nasce espontaneamente ―mas sim é sempre o producto de uma evolução mais
ou menos rápida, sugeita (sic) às mesmas leis da evolução animal, às mesmas
metamorfoses das revoluções psíquicas e morais‖.
Em uma das versões da origem bíblica do homem, segundo a qual ele teria
em sua gênese a constituição do barro, é nessa alegoria da criação primeira, depois
do sopro divino, que o modelo do homem feito de barro reparte-se e se multiplica em
uma infinidade de tipos humanos. Tais representações do real podem ir além dos
35
O Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, é formado pelos municípios de Turmalina, Minas Novas, Caraí, Porto dos Volantes, Araçuaí, Joaíma, Taiobeiras, entre outros, e é uma região brasileira cujo ―extenso território perfaz cerca de 85.000 km²‖. (MASCELANI, 2008, p.23).
44
propósitos do seu próprio criador, através do múltiplo conhecimento e da
cosmovisão do intérprete, leitor e apreciador da literatura e das artes em cerâmica.
Sugere o texto literário na voz do narrador:
Escritor, afinal, além de oleiro, o dito deus também sabe escrever direito por linhas tortas, não estando cá ele para soprar pessoalmente, mandou quem fizesse o trabalho por sua conta, e tudo para que a ainda frágil vida destes barros não venha a extinguir-se amanhã no cego e brutal abraço do fogo (SARAMAGO, 2000, p. 183).
Para um oleiro, como os da família Algor, o barro é o material utilizado para
se comunicar e se expressar. Cipriano, frente à rejeição das louças, sem poder
confeccionar os objetos de barro e comercializá-los no Centro, parece sentir-se
desprovido dessa faculdade. Assim, entendemos que a essência espiritual do
homem é a linguagem pois, conforme assinala Benjamin, ―ele [o homem] não se
comunica através dela, mas apenas nela‖, e, além disso, ―toda a natureza, na
medida em que se comunica fá-lo na linguagem e, portanto, finalmente, no homem‖
(BENJAMIN, 1992, p. 185).
Concluímos que um objeto de barro, para um artesão, um ceramista, um
oleiro como Cipriano Algor, é um medium de comunicação. E aquilo que se
transmite com o barro nos objetos artesanais é a linguagem do artífice do barro e
sua ―essência espiritual‖. Por isso, a diferença nas linguagens está nos media, como
Benjamin afirmou, já que ―as linguagens das coisas são imperfeitas e mudas‖
(ibidem). Assim:
A segunda versão da história da criação que narra como foi insuflado o sopro refere, simultaneamente, que o homem foi feito da terra. Em toda a história da criação essa é a única passagem em que se fala de um material do Criador, no qual se exprime a sua vontade, de resto, concebida como imediatamente criadora. (BENJAMIN, 1992, p. 186, grifo nosso)
Assim, a utilização do barro por Cipriano Algor e pelos artesãos de Alto do
Moura, ou de outros pólos de cerâmica artística, como principal elemento material
que lhes permite expressar, construir ou desconstruir a si próprios, significa que
estes artífices falam ―segundo a linguagem das próprias coisas, a partir das quais,
45
por seu turno, irradia, silenciosa, e na magia muda da natureza, a palavra de Deus‖
(BENJAMIN, 1992, p. 194).36
Para Cipriano ou para os demais artesãos ceramistas a ―essência espiritual‖ é
também a linguagem na qual eles foram criados porque, assim como os homens
reconhecem a língua ―em que Deus é criador‖, ao fazerem objetos de barro com as
suas próprias mãos - reproduzindo os seis modelos de bonecos ou as cenas do seu
cotidiano ou de sua imaginação -, esses artífices se reconhecem ―à imagem do
Criador‖
Por isso, ―considerando que conceder a linguagem é mais do que fazer com
que se possa falar‖ (BENJAMIN, 1992, p. 194), entendemos que, apesar ―da trágica
relação entre as linguagens do homem que fala‖, a linguagem plástica assenta-se
em determinados gêneros das linguagens das coisas, de forma que nelas se
encontram a sua tradução, ―numa linguagem infinitamente mais elevada, mas talvez,
da mesma esfera‖ (ibidem). Segundo o filósofo da Escola de Frankfurt:
para o reconhecimento de todas as formas de arte, é valida a tentativa de as considerar todas como linguagens e procurar a sua conexão com a natureza, pois é certo que a linguagem da arte só poderá ser compreendida nas suas relações mais profundas com a teoria dos signos. Sem esta, qualquer filosofia da linguagem permanece fragmentária, porque a relação entre linguagem e signo vem das origens e é fundamental, [porque] a linguagem, além de comunicar o comunicável, comunica também o não-comunicável em si mesma. (BENJAMIN, 1992, p. 194)
Da obra A caverna, depreende-se que Cipriano Algor e sua família de oleiros,
bem como os demais artífices do barro, representam artesãos que desenvolveram
suas habilidades manuais, aperfeiçoadas com a prática. Tais habilidades se
constituem através do impulso da criação que é uma característica inscrita em suas
personalidades, a partir da utilização de um determinado material - o barro, que
esses artesãos aprenderam a manipular tradicionalmente.
As características de cada artesão ou de sua família, recepcionadas pelo
artesanato como manifestação artística individual, regional e nacional, encontra-se à
36
Saramago, em A viagem do elefante (2008, p. 71-72): ―há que dizer, como aconteceu com a vossa virgem, que ganeixa foi gerada por sua mãe, parvati, sem intervenção do marido, siva, [...] Um dia, tendo parvati decidido tomar banho, sucedeu que não havia guardas por ali a fim de a proteger de alguém que quisesse entrar na sala. Então ela criou um ídolo com a forma de uma rapazinho, feito com a pasta que havia preparado para lavar-se, e que não devia ser outra coisa que sabão. A deusa infundiu um boneco, e este foi o primeiro nascimento de ganeixa‖.
46
frente de produções artesanais diversas, representativas do que o artesão deseja
fazer, ou de um tema do qual ele quer tratar. O artesanato é sabidamente um
universo que se constitui através da imaginação fértil e do raciocínio lógico dos
artesãos. São eles que colaboram com a promoção de antigas tradições e saberes.
Com as mãos, esses indivíduos materializam novidades cotidianas misturadas às
suas tradicionais concepções de mundo, e as eternizam sedimentadas no barro para
em seguida transformá-las num patrimônio de raro valor que é transferido de uma
geração a outra de artífices.
Esse patrimônio, infinito, pode ser desvendado nas obras desses artífices do
barro pelo seu observador. O que nos leva a indagar, como apreciadores das artes,
entre elas o artesanato em cerâmica e a literatura, se ali não está representações
das relações humanas – entre o sagrado e o profano, entre o moderno e o
tradicional, entre o tempo e o espaço multiplicados – que vão sendo retratadas em
cada objeto esculpido pelo artífice, em cada narrativa, traduzindo infinitos modos de
ver e de sentir, de perceber o mundo e de nele se reconhecer.
47
4 A INSPIRAÇÃO PARA OS BONECOS DE BARRO NA ANTIGA
ENCICLOPÉDIA DA FAMÍLIA ALGOR
Conforme Stuart Hall (2006, p. 313), cultura quer dizer o terreno das ―práticas,
representações, linguagens e costumes concretos de qualquer sociedade
historicamente específica‖. A análise dos acontecimentos de A caverna levou-nos a
perceber que os personagens – caracterizados pelas figuras do oleiro e sua filha –,
ao abrirem a enciclopédia da família, encontraram algo além das imagens que lhes
serviriam como inspiração: descobriram a capacidade de fazer com suas próprias
mãos aqueles objetos de barro e de continuar exercendo seus ofícios artesanais.
Apoiados no pensamento de Richard Sennett (2009), que menciona a história
da Enciclopédia francesa, de Denis Diderot – e salienta que as limitações da
linguagem do artífice podem ser transpostas a partir da substituição da palavra pela
imagem -, é possível encontrar elementos para uma reflexão sobre a importância do
trabalho artesanal. Na obra de Saramago, curiosamente, o oleiro Cipriano Algor e
sua filha Marta – depois de terem as louças rejeitadas pelo Centro e decidirem pelo
fabrico dos bonecos de barro – procuraram nas imagens da enciclopédia da família
as características que ambos iriam imprimir nos modelos iniciais dos bonecos a
serem oferecidos ao chefe do departamento de vendas do Centro.
O Centro representa o único ponto de vendas dos objetos que Cipriano
fabrica em sua olaria residencial. É um enorme prédio, com um número infinito de
janelas, permanentemente fechadas para manter a temperatura ambiente. Nesse
lugar vivem algumas pessoas, embora não se admitam famílias numerosas nem
cães; elas têm acesso a serviços de saúde e também de sepultamento ou
cremação. No Centro trabalha como guarda, o genro de Cipriano – Marçal Gacho –,
cujo desejo é ser promovido para residir lá com a esposa.
Assim, depois de as louças terem sido rejeitadas pelo Centro e de Marta e
Cipriano terem decidido pelo fabrico de um novo produto – os bonecos de barro –,
pai e filha conversam. É quando ela se dá conta de que, antes de começarem a criar
os bonecos, era necessário que enviassem ao Centro uma proposta. E o ideal seria
que, nessa proposta, já estivessem os desenhos, os modelos e os preços
48
preestabelecidos para que o Centro, logo que a analisasse, prontamente pudesse
decidir sobre a compra das peças.
Movidos pela intenção de vender a maior quantidade possível de bonecos, o
oleiro e sua filha constataram que não poderiam esculpi-los diretamente no barro,
mas que deveriam fazê-los moldados em figuras femininas ou masculinas, em pé ou
sentados, e só então vesti-los, caracterizá-los e pintá-los, para salientar a sua
individualidade. E como não sabiam quais seriam as características a serem
impressas nos modelos iniciais que pretendiam oferecer ao Centro, Cipriano disse:
Estava a pensar em passar uma vista de olhos pelos livros ilustrados que aí temos, por exemplo, aquela enciclopédia velha comprada pelo teu avô, se encontrarmos lá modelos que sirvam directamente para os bonecos teremos ao mesmo tempo resolvida a questão dos desenhos que terei que levar. (SARAMGO, 2000, p. 73)
Cipriano e Marta moravam em um sítio modesto - e talvez estivessem em
uma situação financeira semelhante à daqueles artesãos que sobrevivem com a
renda do trabalho artesanal em Alto do Moura, fruto da venda instável de objetos de
barro fabricados artesanalmente, também em olarias residenciais. Mas, ainda assim,
pai e filha podiam contar com ―duas ou três centenas de livros‖ nas prateleiras da
sala, em sua maioria livros antigos ou obsoletos, entre outros mais atualizados.
Não havia na povoação ao redor do sítio dos Algor sequer um
estabelecimento que comercializasse ou emprestasse livros, a não ser uma
papelaria onde eram comercializados mediante as encomendas dos estudantes ou
de alguns moradores da vila que pudessem estar motivados em adquirir
determinado livro a partir da publicidade de alguma obra literária na TV. O genro de
Cipriano Algor – Marçal Gacho – também não costumava ler com frequência,
embora presenteasse a esposa Marta, de vez em quando, com bons livros.
A enciclopédia que pai e filha abrem sobre a mesa da cozinha
só continha gravuras a talhe-doce, minuciosas no pormenor, mas sem outros efeitos cromáticos do que as variações de um aparente cinzento resultante da impressão dos traços negros sobre o fundo invariável do papel. (SARAMAGO, 2000, p.80).
49
Mas, havia sido considerada a melhor enciclopédia à época da sua
publicação, enquanto hoje, segundo o narrador, só poderá servir para indagar os
―saberes fora de uso‖, pois:
Colocadas em fila, uma após outra, as enciclopédias de hoje, de ontem e de transontontem representam imagens sucessivas de mundo, paralisadas, gestos interrompidos no seu movimento, palavras à procura de seu último ou penúltimo sentido. As enciclopédias são como cicloramas imutáveis, máquinas de mostrar prodigiosas cujos carretes se bloquearam e exibem com uma espécie de maníaca fixidez uma paisagem que, assim condenada a ser só, para todo o sempre, aquilo que tinha sido, se irá tornado mais velha, mais caduca e mais desnecessária. (SARAMAGO, 2000, p. 74)
Cipriano e Martha tinham em mãos um livro antigo, empoeirado, que
permanecera depositado na estante da antiga casa da família Algor, mas que
poderia auxiliá-los, inspirando-os para a criação dos bonecos. Foi a partir do que
representaria a enciclopédia no universo de Cipriano e de Marta, que desaparecera,
afinal, a inutilidade da melhor enciclopédia da época, comprada pelo pai de Cipriano:
Já encontraram no caminho um acadêmico com bicórnio de plumas, espadim e bofes na camisa, já encontraram um palhaço e um equilibrista, já encontraram um esqueleto de gadanha e passaram adiante, já encontraram uma amazona e um cavalo e um almirante sem barco, já encontraram um toureiro e um homem de blusa, já encontraram um pugilista e o adversário dele, já encontraram um carbineiro e um cardela, já encontraram um caçador e seu cão, já encontraram um marinheiro de folga e um magistrado, um bobo e um romano de toga, já encontraram um derviche e um alabardeiro, já encontraram um guarda-fiscal e o escriba sentado, já encontraram um faquir, também encontraram um malabarista, um lorde e um menestrel, encontraram um esgrimista e um apicultor, um mineiro e um pescador, um bombeiro e um flautista, encontraram dois fantoches, encontraram um barqueiro, encontraram um cavador, encontraram um santo e uma santa, encontraram um demónio, encontraram a santíssima trindade, encontraram soldados e militares de todas as graduações, encontraram um enfandrista e um patinador, viram uma sentinela e um lenhador, viram um sapateiro de óculos, encontraram um que tocava tambor e outro que tocava corneta, encontraram uma velha de capote e lenço, encontraram um velho de cachimbo, encontraram uma vênus e um Apolo, encontraram um cavalheiro de chapéu alto, encontraram um bispo mitrado, encontraram uma cariátide e um atlante, encontraram um lanceiro montado e outro a pé, encontraram um árabe de turbante, encontraram um chinês, encontraram um aviador, encontraram um condottiero e um padeiro, encontraram um mosqueteiro, encontraram uma criada de avental e um esquimó, encontraram um assírio de barbas, encontraram um agulheiro dos caminhos de ferro, encontraram um jardineiro, encontraram um homem nu com músculos à mostra e o mapa dos sistemas nervoso e circulatório, também encontraram uma mulher nua, porém estava tapava a púbis com a mão direita e os seios com a mão esquerda. (SARAMAGO, 2000, p. 75)
50
Além dessas informações, pai e filha encontraram na antiga enciclopédia
muitas outras figuras que não convinham aos fins que eles tinham em mente.
Decidiram, pois, escolher, dentre tantas, apenas seis figuras: a enfermeira, o
palhaço, o bobo, o assírio de barbas, o esquimó e o mandarim, ―levando sempre em
conta a facilidade do trabalho e o gosto presumível das pessoas‖ (SARAMAGO,
2000, p. 77).
4.1 A ENCICLOPÉDIA DE DIDEROT E A VALORIZAÇÃO DO TRABALHO
ARTESANAL
Respeitadas as diferenças entre os leitores da Enciclopédia de Diderot, e os
da antiga enciclopédia da família Algor, torna-se relevante para este trabalho,
salientar que os personagens, representados pelo oleiro e sua filha, buscaram
inspiração para os desenhos dos seis modelos de bonecos de barro nas imagens de
uma antiga enciclopédia. Diante desse contexto, a intenção dos enciclopedistas
franceses pode ser comparada ao que aconteceu com Cipriano Algor e sua família
de oleiros.
Richard Sennett (2009, p. 106), ao citar o filósofo Moses Mendelssohn37,
afirma que este – em Phaidon – rompeu com as crenças antigas e declarou sua fé
numa ―religião da Natureza e num Iluminismo materialista‖. Isso ocorreu porque ele
tinha uma ―visão ampla e generosa da cultura prática‖ e considerava que as ―coisas
feitas e não feitas‖ da vida cotidiana têm o mesmo valor que qualquer abstração,
pois aquele que racionalmente reflete sobre elas se aperfeiçoa.
As teorias de Mendelssohn,38 publicadas no jornal Berlinische Monatsschrift
em 1796, encerravam o debate sobre os efeitos das idéias iluministas no caos
coletivo que se armava na França anterior à Revolução. A principal fonte de
37
Moses Mendelssohn, 2009, biografia Disponível em: WWW.chazit.com/cybersio/biografias/ delet/mendelssohn.html. Acesso em 15 jul. 2009. 38
Mendelssohn inventou uma equação para explicar o termo Bildung, que seria o resultado da soma de outros dois termos: Kultur e Aufklarung. ―Kultur, explica Mendelssohn, denota o mundo prático das ‗coisas feitas e não feitas‘, e não apenas as boas maneiras e o gosto refinado [...] Aufklarung é a razão livre de Kant‖ (apud SENNETT, 2009, p. 106). O termo Bildung (Kultur + Aufklarung) era uma destilação de leituras feitas por Mendelssohn na admirável Enciclopédia ou dicionário de artes e ofícios, editada, principalmente, por Denis Diderot, cujos 35 volumes foram sendo publicados entre os anos de 1751 e 1772.
51
inspiração para Mendelssohn e suas teorias sobre Bildung foi a leitura da
Enciclopédia ou dicionário de artes e ofícios.39
Editada por Denis Diderot, esta obra – sobre a qual se pode afirmar que era o
best-seller da época – interessou tanto à nobreza russa quanto aos comerciantes
nova-iorquinos. Ela descrevia palavras e imagens em preto e branco, as diversas
maneiras de se fazer as coisas com as mãos, ou de como aperfeiçoá-las,
demonstrando a ―diferença de ênfase entre os encyclopedistes e os autores
alemães: para os franceses, as práticas diárias do trabalho é que são o foco
principal, e não o autoconhecimento kantiano ou a autoformação mendelssohniana‖
(SENNETT, 2009, p. 107). A partir dessas idéias é que derivou o credo na
Enciclopédia, celebrando aqueles cidadãos que se dedicam e realizam bem, eles
mesmos, seus trabalhos. Era destacado aí o artífice como um símbolo do
Iluminismo.
Na Enciclopédia, Diderot e seus colegas estavam celebrando a vitalidade, em
vez de se ―deterem no sofrimento dos que eram considerados socialmente
inferiores. Era o vigor que interessava: os enciclopedistas queriam que os
trabalhadores comuns fossem admirados, e não lastimados‖ (SENNETT, 2009, p.
108).
Quando o personagem de Saramago resolve consultar a antiga enciclopédia,
somos levados a crer que o conteúdo da obra foi que estimulou a visão e o
raciocínio das pessoas dessa família de artífices, ampliando-lhes o conhecimento.
Decorreu, daí, o estímulo à produção dos bonecos de barro e, como resultado, a
valorização do trabalho dos artífices, o aumento da auto-estima desses indivíduos.
Pela descrição de todas as figuras que o oleiro e a filha encontraram na
enciclopédia, pode-se perceber que tais modelos apontam estados da alma,
profissões e ofícios, comportamentos e atitudes humanas relacionadas ao trabalho
propriamente dito. Na Enciclopédia de Diderot, os desenhos ali representados
procuraram demonstrar o homem útil e produtivo, ao mesmo tempo em que colocam
39
Conforme Richard Seneett (2009, p. 107) Diderot, o principal editor da famosa Enciclopédia, mal sabia que ela alcançaria tamanho sucesso nas vendas, acostumado que estava a editar livros para arcar com suas despesas ou dívidas. E, embora o conteúdo da obra tivesse inspiração em outra obra francesa editada em 1728, Diderot achou por bem convocar novos colaboradores ―capazes de escrever artigos mais longos e mais profundos‖ para estimular o ―filósofo‖ que há nos leitores comuns. Era o momento em que se liam nas entrelinhas aquilo que descrevia a Enciclopédia de Diderot: as evidências do desprezo pelo que não faziam os ―membros das elites hereditárias‖, pois era ali que se lançava um novo olhar para os conceitos de útil e de inútil, e que estava sendo documentado, além da valorização ao trabalho, o desprezo aos ―privilégios tradicionais‖.
52
em pé de igualdade as atividades manuais e as atividades intelectuais atuando
sobre o imaginário de cidadãos comuns. Nessa circunstância, as imagens da
Enciclopédia de Diderot desdobram-se para os personagens de Saramago, que, ao
consultarem a antiga enciclopédia da família Algor, ampliam a imaginação criadora.
Para Sennett (2009, p. 110), a Enciclopédia de Diderot ―buscava arrancar os
leitores de si mesmos e conduzi-los às vidas dos artífices artesanais, para, em
seguida, esclarecer a natureza do bom trabalho propriamente dito‖. Ali estavam
representados em ilustrações aqueles que se envolviam ―com trabalhos às vezes
enfadonhos, às vezes perigosos, outras, complicados‖ (ibidem), mas que deixavam
transparecer nos rostos uma expressão de serenidade e de satisfação com o
trabalho feito nas oficinas, sugerindo que eram ambientes que – à semelhança do
que acontecia na olaria da família Algor e na família de Mestre Zé Caboclo, de Alto
do Moura – se localizavam nas próprias residências dos mestres artífices.
Para Cipriano Algor e sua filha Marta, a inspiração nascida das imagens, do
conhecimento obtido na antiga enciclopédia, é responsável pela criação e é o que dá
início a uma nova fase de produção de objetos artísticos, mesmo que a matéria-
prima continue a ser o barro. É quando se inicia um embate entre o sujeito do início
do romance e o sujeito que surge no decorrer dessa relação. Observamos que o
―sujeito da Modernidade‖ (HALL, 2006a, p. 12), que se constitui a partir de uma
exterioridade, sofre mudanças instauradas a todo momento, a partir dos conflitos
que vivencia. Conflitos esses permeados pela sensação de não pertencimento, pela
perda de poder e de status individual e social, que está presente em todas as
relações de Cipriano. Com isso, sua identidade não é fixa, justamente porque é na
Modernidade que as identidades sofrem deslocamentos ou fragmentações, havendo
uma ―mudança estrutural‖ que desestabiliza a própria imagem que o sujeito tem de
si.
Certamente, por trás do modelo dos bonecos escolhidos pelo oleiro e sua
filha, está a representação de algo que vai além do que eles mesmos podem falar
acerca de sua arte assim representada. Como uma obra literária, que no passo
novo sempre conserva rastros antigos – entendidos aqui como as leituras que
sedimentaram o conhecimento do escritor – o artesanato feito com o barro, de modo
geral, expressa sonho, conhecimento e experiências, uma soma que não tem limites
na criação do artista. Visto desse modo, o artesanato como representação da
realidade sempre alarga seus espaços para leituras e interpretações diferentes, uma
53
vez que cada indivíduo se mantém diverso em sua formação, constituição e
expressões identitárias.
54
5 DAS MÃOS ÀS MÁQUINAS: O SIGNIFICADO DE ARTE POPULAR E DE ARTESANATO COMO FORMAS DE REPRESENTAÇÃO CULTURAL
Aparentemente sinônimos, os termos artesanato e arte popular guardam entre
si algumas diferenças. Quando tratamos de artífices ceramistas, referimo-nos aos
indivíduos que, assim como Cipriano Algor, têm o barro como matéria-prima de seu
trabalho. Com efeito, para compreendermos o que representa cerâmica artística
neste trabalho, recorremos à seguinte explicação de Alberto Faria (In: COSTA, 2000,
p. 10):
A cerâmica artesanal é qualitativa e depende da sensibilidade técnica e artística de quem produz e a cerâmica industrial ou científica é de natureza quantitativa, onde o rigor dos conhecimentos e a certeza dos resultados são elementos indispensáveis. Quando a máquina se introduziu entre o homem e o barro marcou a separação irreversível entre o artesanato e a indústria. A íntima ligação entre o barro e o oleiro, esta interpenetração sensorial-intuitiva, inexplicável à luz da ciência, ao atingir a zona do afectivo é o que, em verdade, se poderá chamar a alma de toda a actividade artesanal. [...] Ao interpor-se entre o homem e a matéria cerâmica, a máquina trouxe inegáveis benefícios mas, na frieza do seu comportamento, jamais será capaz de estabelecer aquele entendimento íntimo com a matéria que trabalha
40 (COSTA, 2000, p.10).
O artesanato, existente há milênios, é, por sua vez, a maneira de fazer
objetos manualmente. Diante disso, podemos imaginar que toda a obra material
humana da Antigüidade41 até a Idade Média européia foi construída pelas mãos do
homem. Como se observa, não existia outra maneira que não a de se fazer objetos
com o uso das próprias mãos. Trata-se da hegemonia do fazer manual, período que
só se modifica no momento em que o termo artesanato começa a ser empregado,
ou seja, após a Revolução Industrial, quando o objeto criado pela indústria passa a
representar o oposto do que representa o objeto feito manualmente.
40
Trecho do prefácio escrito por Alberto Faria Frasco para o livro 25 séculos de cerâmica, de Lucília Verdelho da Costa. 41
Em Caim (2009), José Saramago nos remete à história da cerâmica na Mesopotâmia, na passagem em que Caim, nos arredores do castelo de Lilith, começa a trabalhar no oficio de pisador de barro, unindo-se a um ―grupo de homens com a túnica arregaçada com um nó acima do joelho‖, que davam voltas ―na grossa camada de mistura de barro, palha e areia, calcando-a com determinação de modo a tornar a massa tão homogênea quanto fosse possível na falta de meios mecânicos‖ (SARAMAGO, 2009, p. 49).
55
Como se confirma, a palavra artesanato significa um fazer ou um objeto que
tem por origem o fazer manual. Ou seja, são as mãos que executam o trabalho e
transformam-se no principal, senão o único, instrumento que uma pessoa utiliza para
a confecção de determinado objeto. O uso de ferramentas, inclusive máquinas,
quando ocorre, é apenas como auxiliar, como uma extensão das mãos, que nunca
ameaçam o seu predomínio.
Figura 2 – Ferramentas utilizadas por mestre Zé Caboclo, expostas no Museu do Barro (Caruaru- PE). (Foto: Márcia Salis, maio 2009)
A maioria dos instrumentos (Figura 2) que auxiliam um ceramista – entre eles
o torno de olaria – não altera o processo de execução artesanal, pois, no artesanato,
o que importa é o fazer com as mãos, sendo o gesto humano o que determina a
produção e impõe a marca do homem sobre o produto por ele desenvolvido.
As primeiras cerâmicas que se tem notícia são pré-históricas, tais como vasos
de barro sem asa, e
nesse estágio de evolução ficou a maioria dos índios brasileiros. A tradição ceramista — ao contrário da renda de bilros e outras práticas artesanais — não chegou com os portugueses ou veio na bagagem cultural dos escravos. Os índios aborígines já tinham firmado a cultura do trabalho em barro quando Cabral aqui aportou. Por isso, os colonizadores portugueses, instalando as primeiras olarias nada de novo trouxeram; mas estruturam e concentraram a mão-de-obra. O rudimentar processo aborígine, no entanto, sofreu modificações com as instalações de olarias nos colégios, engenhos e fazendas jesuíticas, onde se produzia além de tijolos e telhas, também louça de barro para consumo diário. A introdução de uso do torno e das rodadeiras parece ser a mais importante dessas
56
influências, que se fixou especialmente na faixa litorânea dos engenhos, nos povoados, nas fazendas, permanecendo nas regiões interioranas as práticas manuais indígenas. Com essa técnica passou a haver maior simetria na forma, acabamento mais perfeito e menor tempo de trabalho.
42
Portanto, se um artesão ou um grupo de artesãos cria peças bem acabadas e
se torna um artista; se amplia o seu mercado consumidor ao ponto de transformar o
seu trabalho numa pequena indústria; se produz e incorpora a adoção de máquinas
e implementos e constitui uma fábrica, ainda assim, a origem dessa evolução está
no artesanato. Para compreendermos a produção de cerâmica artística, salientamos
que perduram os debates sobre a diferenciação entre arte popular e artesanato.
Na tentativa de apresentarmos uma definição para a expressão ―arte popular‖,
pela via teórica dos estudos culturais de Stuart Hall, partimos da transição do
capitalismo agrário para o industrial, que é o momento do início de uma ―luta‖
contínua em torno da ―cultura dos trabalhadores‖. Ou seja, é o ponto de partida do
que representa a ―cultura popular‖ e suas transformações.
A ―cultura popular‖, segundo Stuart Hall (2006b, p. 232), é o ―terreno sobre o
qual as transformações são operadas‖, é onde o resultado de tudo aquilo que
persiste por um longo período de tempo se relaciona com o estilo de vida e com as
relações estabelecidas entre eles – os indivíduos – com os ―outros‖, a partir de suas
próprias condições de vida. É o ―duplo movimento de conter e resistir, que
inevitavelmente se situa em seu interior‖, o objeto de estudo da ―cultura popular‖
(ibidem).
Em relação aos significados do que representa o termo ―popular‖ relacionado
à produção artística em cerâmica, a primeira definição de Hall nos remete ao senso
comum: ―algo é popular porque as massas o escutam, compram, lêem, consomem e
parecem apreciá-lo imensamente‖ (HALL, 2006b, p. 237). O que tem a ver com o
aumento do consumo de louças de barro pela população, que também aumentou de
tamanho, desde a época colonial no Brasil.
Para Hall, ―não há uma cultura popular íntegra, autêntica e autônoma, situada
fora do campo de força das relações de poder e de dominação culturais‖ (ibidem),
porque os principais aspectos intrínsecos às relações culturais estão inseridos no
42
Projeto experimental Arte&artesanato. Disponível em
http://www.eba.ufmg.br/alunos/kurtnavigator/arteartesanato/origem.html Acesso em jun. 2009.
57
contexto da ―dominação‖ e da ―subordinação‖. Assim, o termo ―popular‖ poderia ser
definido como todas essas coisas que ―o povo‖ faz ou fez.
Mas, Hall vê duas dificuldades em aceitar este conceito: primeiro, a
dificuldade em distinguir de uma maneira finita e descritiva o que não seja popular,
e, em segundo, porque ―não se pode juntar em uma única categoria todas as coisas
que o povo faz‖ (ibidem), porque existem categorias de coisas e de atividades que
não se podem distinguir somente ―a partir da oposição pertence-não pertence‖ ao
povo. Por isso mesmo, ―estas oposições do popular e o não popular, não podem ser
construídas de forma puramente descritiva, pois, de tempos em tempos os
conteúdos dessas categorias mudam‖ (HALL, 2006b, p. 240).
Sabidamente, a beleza se manifesta necessariamente em um objeto, que é a
sua base material, sendo que toda a obra do ―povo‖ tem uma destinação objetiva e
as formas e técnicas artesanais variam de um lugar para o outro conforme a
abundância ou não dos materiais utilizados. É a partir da dedicação do artista, da
disponibilidade do material e das necessidades da população que acontecem os
processos de mudança e de classificação das obras artesanais.
Mas, seriam exatamente nessas ―mudanças‖ de tempos em tempos –
representando o momento em que as formas ―populares‖ mudam de lugar – que
―elas passam a não ter mais o valor de popular, enquanto outras coisas deixam de
ter um alto valor cultural e passam a ser populares‖, coisas que vão, e coisas que
vêm ―sendo transformadas nesse processo‖ (HALL, 2006b, p. 240). E os critérios
para isso estão vinculados ao resultado das forças e das relações que sustentam
tais diferenças, ou seja, ―em síntese, quem define o que não é popular e o que é‖,
segundo Hall, ―são as instituições‖ (ibidem).
Néstor Garcia Canclini (2008, p.120) refere-se à evolução da produção e da
venda de artesanato, e afirma que ―intervêm também em sua organização os
ministérios de cultura e de comércio, as fundações privadas, as empresas de
bebidas, as rádios, e a televisão‖, e complementa:
Os fenômenos culturais folk ou tradicionais são hoje o produto multideterminado de agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos, locais, nacionais e transnacionais. Por extensão, é possível pensar que o popular é constituído por processos híbridos e complexos usando como signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e nações. (CANCLINI, 2008, p.120-121)
58
Cipriano Algor confecciona manualmente objetos artesanais e demonstra
envolvimento artístico na criação dos bonecos, apesar de produzir suas peças de
barro com o principal intuito continuar sobrevivendo em seu ofício artesanal. O
protagonista de Saramago parece representar aqueles indivíduos que se inserem no
contexto da produção artística cerâmica denominada ―arte popular‖43, e, ao mesmo
tempo, aproxima-se de quem confecciona artesanato e é denominado de artesão
Artistas populares ou artesãos, essas ―categorias‖ podem possuir vínculos
com alguma organização – governamental, ou não –, ou com uma associação que
os insere no mercado da arte – em exposições, museus, feiras e salões de arte
popular – ou no mercado de produtos artesanais - em feiras ou em lojas. São
vínculos que se formam para amenizar as consequências das transformações
econômicas e sociais que atingem os artesãos que, como Cipriano, tem um
comprador exclusivo, um único ponto de contato com o consumidor de seus
produtos.
Ainda assim, mesmo que Cipriano e Martha tenham empreendido a
confecção dos bonecos de barro em substituição às louças rejeitadas, e assumido
tacitamente os riscos de um empreendimento desse porte, parece estar
representado em A caverna que o oleiro Cipriano Algor não estava amparado
legalmente44, nem tinha conhecimento de seus direitos de artesão ou da sua posição
de empreendedor45.
43
Para Ângela Mascelani, ‖a noção de arte popular não designa um estilo artístico, uma técnica ou sequer um tipo de objeto‖ (2008, p.21). Mas, um artesão que produz suas peças inspirado por ―razões culturais e outras‖, ao criar louças e bonecos de barro a partir do que tem ao redor de si - como Cipriano Algor -, estará representando o seu modo de ser nativo. Se esse artesão se destaca com uma obra particular é porque a sua obra ―estabelece conexões com outras linguagens artísticas, em que a criatividade e a autoria individual ocupam o lugar central‖ (ibidem). Aí, segundo Mascelani, a sua obra, ―quando finalizada, obtém uma espécie de autonomia, passando a dialogar com seus leitores, estabelecendo pontes com outros universos significativos: enfim, ganhando mundo‖ (ibidem). Esse artesão é um artista popular, segundo critérios definidos pela pesquisadora e diretora do Museu Casa do Pontal (RJ).. 44 Sem adentrarmos o universo jurídico relacionado ao artesão brasileiro, mencionamos algumas disposições legais relevantes que podem apoiar o desenvolvimento de futuras pesquisas e remetem ao contexto em que se insere o oleiro Cipriano Algor: O Projeto de Lei do Senado, n. 233, de 2002, artigo art.3º, I e II, autoriza o Poder Executivo a instituir o programa nacional de apoio ao desenvolvimento do setor artesanal e empresas artesanais e descreve os conceitos de artesão e artesanato; A PORTARIA n. 11, de 9 de outubro de 2009, estabelece regras de atendimento e inscrição do Microempreendedor Individual (MEI); O SECRETÁRIO DE COMÉRCIO E SERVIÇOS DO MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR, no uso da atribuição que lhe confere o art. 1º da Resolução n. 9, de 7 de outubro de 2009, do CGSIM, inclui, inclusive, o artesão em cerâmica (CNAE 2349-4/99) e define o OBJETO como ―Fabricação de produtos artesanais cerâmicos – Artesão em cerâmica‖. Também está claro na Constituição da República Federativa do Brasil o texto dos artigos 23 e 24 (Título III, Da Organização do Estado, Capítulo II, Da União, V) que estabelece competências da União, dos Estados e dos Municípios para
59
Para os Algor, o principal risco do empreendimento dos bonecos parece estar
representado no fato de que se esse novo produto não for comercializado com
sucesso, Cipriano abandonará a olaria para viver no Centro com Martha e Marçal.
Para compreendermos as razões do sucesso ou do fracasso nas vendas de um
determinado produto, recorremos a Stuart Hall, que explica o antagonismo constante
de forças que fazem parte de um processo ao mesmo tempo constante e variável,
que permite que alguns objetos sejam preferidos, e, outros, desprezados.
Frente à realidade social e material da classe dos artesãos oleiros, como bem
representam o oleiro e sua filha, o produto de seu trabalho se constrói através de
práticas tradicionais ditas populares e é comercializado ou não a partir do
reconhecimento de seu valor por parte dos consumidores. Portanto, ―o significado de
um símbolo cultural é atribuído em parte pelo campo social ao qual está incorporado,
pelas críticas às quais se articula e é chamado a ressoar.‖ (ibidem).
Embora seja possível a ocorrência, em qualquer época, desses antagonismos
em relação às ―formas e atividades cujas raízes se situam nas condições sociais e
materiais de classes específicas, que estiveram incorporadas nas tradições e
práticas populares‖ (HALL, 2006b, p.241), parece que os dois personagens sequer
suspeitavam de que os bonecos de barro também não seriam aceitos pelos
consumidores do Centro, a tempo de ambos terem articulado outras ações em
―proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência‖; e, no Título VIII, Da Ordem Social, Capítulo III, Da Educação, da Cultura e do Desporto, Seção II, Da Cultura, que dispõe sobre os bens culturais e sobre o Plano Nacional de Cultura, nos artigos 215 e 216, CF88. Citamos aqui, sobretudo o Projeto de Lei do Senado, n. 233, de 2002, que autoriza o Poder Executivo a instituir o programa nacional de apoio ao desenvolvimento do setor artesanal e empresas artesanais e descreve os conceitos de artesão e artesanato, no artigo art. 3º, I e II, utilizados neste trabalho. 45
―Empreender vem do latim imprendere. Um dos conceitos de empreendedorismo, de autoria do consultor José Carlos Teixeira, foi publicado na Revista do Banco do Nordeste Notícias, de 19/05/2000: ‗Empreendedorismo é ousar, transformar, descobrir novas vidas em cima de produtos que já existem. É sonhar para frente, dar função e vida a produtos antigos. Enfim, empreendedorismo é provocar o futuro, reunir experiências e ousadias, ir além do tradicional‘‖ (SEBRAE, cursos Aprender a empreender, Iniciando um pequeno grande negócio, 2009). No Brasil, atualmente, além de ações governamentais, existem disposições legais que disciplinam e fomentam a produção artesanal, facilitando a continuidade do trabalho e a sobrevivência de artífices, artesãos dos principais pólos de cerâmica artística brasileiros. A partir de 2009 os artesãos poderão ser incluídos no ―rol dos empreendedores‖ , com as novas regras de atendimento e inscrição no ―Microempreendedor Individual (MEI)‖, um projeto do governo que criou parte da Lei Complementar 128/08, acrescentado na Lei do Simples Nacional. A idéia do governo é de que todos os trabalhadores ditos autônomos ou informais poderão ser registrados na Junta Comercial. Esse MEI tem desoneração total de taxas, escrituração simplificada e registros elaborados pelos contadores de forma gratuita – o serviço contábil também recebeu um benefício para isso. O contador tem a obrigação de cadastrar o microempreendedor e de fazer a sua primeira declaração individual. As organizações contábeis estão se organizando no sentido de prestar este serviço gratuitamente a partir de 1º de julho. Disponível em: www.affectum.com.br/novosite/imprensa_detail.php?id_imprensa=15.Acesso em: 10 jun. 2009.
60
benefício da continuidade do trabalho na olaria. A isso se somam os
questionamentos de Cipriano sobre a existência da antiga olaria perante um Centro
ultramoderno como aquele, de certa forma, sugerindo que o oleiro e a filha
confiavam que essas forças antagônicas existiam, mas, poderiam não atingi-los.
Cipriano e Martha fabricavam os objetos na olaria da família seguindo a risca
a tradição de seus antepassados oleiros. A partir desse contexto, podemos entender
que ―tradição‖ é o elemento vital da cultura e está relacionada às ―formas de
associação e de articulação dos elementos‖, que ―vão se expressando numa cultura
nacional-popular e que não possuem significados fixos e imutáveis‖ (HALL, 2006b,
p.142), historicamente.
Esses elementos da tradição ―não podem ser reorganizados para se articular
a diferentes práticas e posições e adquirir um novo significado e relevância‖ (ibidem,
p. 243). Pois, as ―tradições‖ não se fixam para sempre, são o que Hall chama de
―lutas culturais‖ que surgem exatamente nos pontos de intersecção entre o que é
popular e o que não é popular. E isso, em todas as esferas sociais e em todas as
épocas, infinitamente, vai redefinindo o que é ―tradicional― e o que não é.
Consideremos os acontecimentos com o oleiro Cipriano Algor:
As sentidas razões de queixa de Cipriano Algor contra a impiedosa política comercial do Centro, [...] não poderão fazer esquecer, ainda que arriscando um espevitar inoportuno da adormecida fogueira das conflituosas relações históricas entre o capital e o trabalho, não poderão fazer esquecer, dizíamos, que o dito Cipriano Algor carrega com algumas culpas próprias em tudo isto, a primeira das quais, ingénua, inocente, mas como à inocência e à ingenuidade tantas vezes tem sucedido raiz maligna das outras, foi pensar que certos gostos e necessidades dos contemporâneos do avô fundador, em matéria de produtos cerâmicos, se iriam manter inalteráveis per omnia saecula saeculorum ou, pelo menos, durante toda a sua vida, o que vem a dar no mesmo, se bem repararmos. (SARAMAGO, 2000, p. 147)
O protagonista de Saramago só sabia trabalhar com o barro, o que explica
uma das razões da persistência na continuidade de seu trabalho, a partir da idéia
dos bonecos, frente às novas adaptações na olaria que seriam providenciadas para
que eles fossem confeccionados. É possível que Stuart Hall faça alusão às
capacidades que um artesão desenvolve ao se adaptar à modernidade,
reinventando técnicas ou materiais que já existiam e, inclusive, beneficiando-se de
novas tecnologias, que transformarão seus objetos artísticos em produtos
61
vendáveis, ao afirmar que cultura popular é ―a arena do consentimento e da
resistência‖ (HALL, 2006, p. 246).
Afinal, é esse ―consentimento‖ que irá auxiliá-lo na continuidade do ofício de
artesão, cuja ―resistência‖ tem origem na vontade do artífice de continuar
sobrevivendo do artesanato. Portanto, ―não é possível compreender a tradição sem
compreender a inovação‖. (CARVALHO apud CANCLINI, 2008, p.219). Assim,
o estudo atual da antropologia e da sociologia sobre a cultura situa os produtos populares em suas condições econômicas de produção e consumo. [...] Em vez de uma coleção de objetos ou de costumes objetivados, a tradição é pensada como ―um mecanismo de seleção, e mesmo de invenção, projetado em direção ao passado para legitimar o presente. (BLANCHE apud CANCLINI, 2008, p.219)
Nessa direção, situa-se o posicionamento do oleiro no romance, que, a partir
do evento da rejeição das louças, ao mesmo tempo em que resiste em seu fazer
artesanal, aceita a sugestão da filha para a fabricação e o fornecimento dos bonecos
de barro, consumando o desejo de ambos de continuarem sendo os tradicionais
fornecedores de objetos ao Centro. Afinal, conforme afirma Ângela Mascelani,
muitas tradições estabelecidas, repetidas e sancionadas pelas coletividades constituem o ponto de encontro entre essas duas dimensões – o subjetivo e o social. Encontro que permite que os laços identitários sejam fortalecidos, que as crenças e valores vigentes nos diferentes grupos humanos, sejam reatualizadas, vividas, experimentadas e transmitidas às novas gerações. (MASCELANI, 2008, p.71).
O livro A caverna remete a questionamentos sobre o que é popular e o que
não é a partir das situações vivenciadas pelo protagonista – representadas na obra
literária. O português Saramago retrata vivências que se aproximam e ao mesmo
tempo se afastam daquelas que os artesãos, ou os ditos ―artistas populares‖
brasileiros vivenciaram e vivenciam atualmente. Essa obra sugere que o ofício
artesanal de oleiro representa, inclusive, parte da identidade cultural de outros
países, além de Brasil e Portugal.
A professora e pesquisadora Lalada Dalglish46, através do resultado de
pesquisas sobre a cerâmica popular do vale do Jequitinhonha, em Noivas da Seca
(2008, p. 71), afirma que
46
Lalada Dalglish, natural de Rio Parnaíba (MG) é professora de Cerâmica no Instituto de Artes da UNESP, onde também atua como pesquisadora. É mestra e doutora na área da arte cerâmica, e
62
falar de identidade cultural da cerâmica produzida no Vale do Jequitinhonha é necessariamente falar das condições de vida das artesãs que fabricam esses objetos, mostrando como vivem, como trabalham, o que produzem e para quem vendem os seus produtos, é importante observar também as relações das artesãs com a família, com a comunidade, com os intermediadores do seu produto e a influência do mercado externo sobre as suas obras.
Por isso, podemos concluir que as representações identitárias dos artífices do
barro podem se modificar historicamente e de acordo com as vontades ou
necessidades que surgem na sociedade de consumo, conforme a época e o local de
origem do artesão e do consumidor. É o que se percebe a partir do resultado da
oscilação entre forças antagônicas de caráter social e pessoal, relacionadas ao
trabalho de artesão, e que se verifica também em relação ao ―lugar‖ em que está
inserido o objeto em cerâmica. Assim, Cipriano Algor proclama, em A caverna:
Já se tinha visto como o barro é amassado aqui da mais artesanal das maneiras, já se tinha visto como são rústicos e quase primitivos estes tornos, já se tinha visto como o forno lá fora conserva traços de inadmissível antiguidade numa época moderna, a qual, não obstante os escandalosos defeitos e intolerâncias que a caracterizam, teve a benevolência de admitir a existência de uma olaria como esta quando existe um Centro como aquele. (SARAMAGO, 2000, p. 147)
Frente à semelhança com o cenário de Alto do Moura, Caruaru (PE) - ou com
outros pólos brasileiros de cerâmica artística, entre eles o Vale do Jequitinhonha - e
a representação dos acontecimentos com a família Algor no romance, tem-se a
descrição do lugar em que se localiza a olaria de Cipriano Algor:
A olaria e a morada em que vivia com a filha e o genro ficavam no outro extremo da povoação, metidas para dentro do campo, apartadas dos últimos prédios. [...] A estrada fazia uma curva larga onde terminava a povoação, depois do último prédio via-se à distância uma grande amoreira preta que não devia ter menos de uns dez metros de altura, ali estava a olaria. (SARAMAGO, 2000, p.29)
Entendemos que a olaria representa o ―lugar‖ que, segundo Stuart Hall, ―é
específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado: o ponto de práticas sociais
específicas que nos formaram e com as quais nossas identidades estão
estreitamente ligadas‖ (HALL, 2006a, p. 72). Mas, também, a olaria parece remeter
autora do livro Mestre Cardoso a Arte em cerâmica Amazônica e o livro Noivas da seca: cerâmica popular do Vale do Jequitinhonha (2008)
63
ao que acontecia na sociedade pré-moderna, onde o espaço e o lugar coincidiam,
ou seja, os produtos eram fabricados num mesmo local, pelos próprios habitantes, e
ali eram comercializados, conforme as necessidades dos consumidores locais. Hoje,
com
a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, [...] as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como homogeneização cultural. (HALL, 2006a, p.75-76)
Mas, a olaria pode estar representando, em A caverna, um espaço social
onde se criam identidades e se fomentam relações interpessoais que se
movimentam:
num tempo e no espaço estritamente definidos, ‗[…] é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa‘ (p. 51). São identitários, relacionais e históricos. Criador de identidade por trazer em si o lugar do nascimento, da intimidade do lar, das coisas que são nossas. Demarca, de forma precisa, as fronteiras entre eu e os outros. É histórico porque fala da história nativa sem considerar a história como ciência. (AUGÈ apud BINDE, 2008, p. 123-124)
Quanto ao Centro, esse estabelecimento comercial pode ser visto como a
representação do que Marc Augè denominou ―não-lugares‖. Estes, segundo o autor,
não se definem como identitários, relacionais ou históricos. Através dos não-lugares se descortina um mundo provisório e efêmero, comprometido com o transitório e com a solidão. Os não-lugares são uma nova configuração social, característica de uma época que se define pelo excesso de fatos, superabundância espacial e individualização das referências. (AUGÉ apud BINDE, 2008, p. 124)
Recordamos a afirmação de Stuart Hall (2006a, p.72): ―os lugares
permanecem fixos; é neles que temos raízes‖. Em A caverna, o Centro parece
representar um local onde a vida social se torna ―mediada pelo mercado global de
estilos, lugares e imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação‖ (HALL,
2006a, p.75). Foi neste lugar que o próprio Cipriano Algor teve que se confrontar
com ―uma gama de diferentes identidades‖, que, de certa forma, o fizeram refletir
sobre a fragmentação de sua própria identidade.
64
Conforme afirma Stuart Hall (2006a, p.77), seria interessante pensar ―numa
nova articulação entre o global e o local―. Afinal, ―não se pode dizer é que a
tendência da modernização é simplesmente provocar o desaparecimento de culturas
tradicionais‖ (CANCLINI, 2008, p.218), já que ―há, juntamente com o impacto global,
um novo interesse pelo local‖ (HALL, 2006a, p.77), local este que representa ―uma
forma particularista de vínculo ou pertencimento‖ (ibidem, p.76)
Além disso, as identidades nacionais se fortalecem na medida em que as
identidades regionais e comunitárias se tornam visíveis, ―especialmente com
respeito a coisas como direitos e cidadania‖ (HALL, 2006a, p. 73). Entretanto,
devemos observar que existem também as contradições entre os incentivos
governamentais e os estímulos do mercado ao trabalho do artesão. E, ainda, o
próprio interesse do artesão, ou produtor de artesanato pode entrar em choque com
os interesses dos usuários, dos comerciantes, dos meios de comunicação, dos
Estados.
Dentre os tantos problemas anunciados e vivenciados por Cipriano Algor em
relação à produção e à comercialização de seus objetos pelo Centro, o pesquisador
Ricardo Gomes Lima (2009),47 citando Antonio Augusto Arantes48 chama a atenção
para outro importante problema, que pode nos orientar acerca das definições dos
termos arte popular e artesanato:
Nas sociedades industriais, sobretudo nas capitalistas, o trabalho manual e o trabalho intelectual são pensados e vivenciados como realidades profundamente distintas e distantes uma da outra. Reflitamos um minuto, por exemplo, sobre as diferenças sociais que há entre um engenheiro e um eletricista, ou entre um arquiteto e um mestre-de-obras. Além da discrepância entre salários e ao lado das formações profissionais diversas, há um enorme desnível de prestígio e de poder entre essas profissões, decorrente da concepção generalizada em nossa sociedade de que o trabalho intelectual é superior ao material. Embora essa separação entre modalidades de trabalho tenha ocorrido num momento preciso da história e se aprofundado no capitalismo, como decorrência de sua organização interna, tudo se passa como se ‗fazer‘ fosse um ato naturalmente dissociado de ‗saber‘. Essa dissociação entre ‗fazer‘ e ‗saber‘, embora a rigor falsa, é básica para a manutenção das classes sociais pois ela justifica que uns tenham poder sobre o labor dos outros.‖ (ARANTES apud LIMA,, 2006, p.5)
47
Ricardo Lima é Professor Adjunto do Instituto de Artes e do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ e pesquisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular no Rio de Janeiro (RJ). 48
Ricardo Lima refere-se a: ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Coleção Primeiros Passos, n.36).
65
Assim, ―tanto a rendeira de bilro e o oleiro quanto o escultor ou o pintor
consagrados [...] lançam mão de uma tecnologia em que a manualidade é da maior
importância. E isto é artesanato. E eles são artesãos‖, completa Lima (2005, p.7),
assegurando que:
Podemos discursar sobre este mesmo objeto, preocupados em desvelar questões de estética, de equilíbrio de massas, de proporções, de contrastes entre forma e fundo, de ritmo, de cores. De conteúdos simbólicos, de sistemas de significados, expressos ou latentes. De representações. Aí estamos falando de arte. Não importa se o objeto é o pote de barro de Benita ou a escultura em bronze de Ana Maria. Se a jóia de Gustavo ou a colcha tecida por Fatinha. Se erudito ou popular. [...] O resultado do objeto produzido, se é bem ou mal feito, belo ou feio, perfeito ou mal acabado, agradável ou não aos olhos, ao tato, à razão, aos sentidos e sentimentos, se realiza ou não a finalidade a que se destina, é questão de outra ordem. Ela está presente e pode ser analisada tanto em relação aos objetos artesanais quanto às obras de arte. (Ibidem)
Lima propõe que o termo artesanato seja reservado para se referir ao
processo de produção do objeto, à tecnologia que, predominantemente executada
com as mãos, dá forma a ele, independente do fato de serem ―mãos eruditas ou
populares‖.
5.1. DA OLARIA ÀS GUILDAS MEDIEVAIS: O ARTESÃO EMPREENDEDOR E A
GLOBALIZAÇÃO
Por entendermos que ―Saramago também recria um outro texto, jamais
reproduz qualquer história, mas sim recria a História a partir da matéria prima-prima
oferecida por ela‖ (FERRAZ, 2003, p. 119), a partir dos acontecimentos com o oleiro
Cipriano Algor, é possível investigar a evolução da produção do artesanato. O marco
principal dessa evolução pode-se dizer que foi o surgimento dos modos de fazer as
coisas com as máquinas, quando a invenção da roda ou do torno modificou todo o
contexto social e econômico, atuando também sobre o imaginário do artesão e sobre
os gostos da população.
Esse aparato – o torno, a que Cipriano se referiu como sendo primitivo -
funciona movido à força corporal. É um disco de madeira fixado horizontalmente em
um eixo que leva por cima outro disco horizontal (Figura 3). O artesão sentado, em
66
frente à mesa atravessada pelo eixo, apóia o pé no disco inferior e coloca no disco
superior o barro ao qual ele quer dar forma. Movimentando o pé, imprime ao disco
superior um movimento circular, e vai moldando os objetos de forma arredondada
com as próprias mãos.
Foi a invenção desse sistema que possibilitou ao artesão a opção de produzir
uma maior quantidade de peças mais rapidamente, anunciando o futuro da produção
em série. Com efeito, a grande quantidade de louças produzidas na olaria de
Cipriano Algor, e que foram rejeitadas pelo Centro, era confeccionada com o auxílio
do torno, onde trabalhava Justa Isasca, a falecida esposa do oleiro.
Figura 3 – Torno da Escola Municipal de Oleiros Joaquim Antonio de Medeiros, em São José (SC). ―É a única escola de ensino da tradição e ofício de oleiros do Brasil.‖ (Foto: Márcia Salis, ago.2009)
Ainda que o oleiro pareça ter consciência de que o seu trabalho artesanal não
avançou com a chegada da modernidade, esse sistema não pode ser considerado
obsoleto, pois, embora já existam tornos movidos à eletricidade, a roda do oleiro
movida pela força corporal ainda é utilizada por artesãos ceramistas, entre eles, os
que continuam produzindo peças de barro na Escola de Oleiros Joaquim Antonio de
Medeiros49, em São José (SC).
49
―Antiga Olaria do senhor Joaquim Antonio de Medeiros, típica construção de localidades habitadas por açorianos, abriga desde 1992 a sede da Escola de Oleiros Joaquim Antonio de Medeiros. Atualmente a escola tem como finalidade recuperar, valorizar e repassar técnicas de uma das atividades mais tradicionais e representativas da cultura catarinense, encontrada no município de São José. É a única escola de ensino da tradição e ofício de oleiros do Brasil. A região em que está localizada a casa – Ponta de Baixo – foi durante os séculos XIX e XX o local que detinha o maior número de olarias da cidade de São José. [...] São José destaca-se por suas expressões culturais preservadas, e uma das mais fortes é com certeza a produção de cerâmica utilitária. Os trabalhos dos oleiros josefenses são reconhecidos em níveis internacionais, visto a sua capacidade de produção e
67
Depreende-se que o uso do torno é o ponto de partida para estudos sobre a
evolução da produção de cerâmica artesanal que se mantém entrelaçada a práticas
tradicionais, partindo-se da representação do oleiro, em A caverna, ou de realidades
dos artesãos ceramistas brasileiros. Nesse sentido, as ponderações que em terceira
pessoa vêm expressas pelo narrador de Saramago
Cipriano queixa-se, queixa-se, mas não parece compreender que os barros amassados já não é assim que se armazenam, que às indústrias cerâmicas básicas, pouco falta para se converterem em laboratórios com empregados de bata branca tomando notas e robôs imaculados cometendo trabalho.[...] Aqui fazem clamorosa falta, por exemplo, higlômeros que meçam a humidade ambiente e dispositivos electrónicos competentes que a mantenham constante, corrigindo-a de cada vez que se exceda ou míngue. (SARAMAGO, 2000, p. 147-148)
Semelhantes à olaria de Cipriano Algor e família, as primeiras oficinas de que
se têm notícias, eram medievais, onde os artífices também costumavam trabalhar
com recursos limitados. Era no interior da oficina medieval que os artesãos dormiam
e se alimentavam, um local em que todos conviviam diariamente com seus filhos,
transmitindo seus ensinamentos. Lá, tudo e todos se organizavam de acordo com o
trabalho que cada um deveria executar.
A oficina, além de residência das famílias, era pequena, abrigando no máximo algumas dezenas de pessoas. [...] a oficina-residência medieval não seguia as regras de uma família moderna unida pelo amor [...] proporcionava outras recompensas emocionais mais impessoais, como uma ―posição honrosa‖ na cidade [...] Numa oficina, as habilidades do mestre podem valer-lhe o direito de mandar, e a possibilidade de absorver essas habilidades e aprender com elas pode dignificar a obediência do aprendiz ou do jornaleiro. [...] No artesanato, deve haver um superior que estabelece os padrões e treina. Na oficina os desníveis de capacitação e experiência tornam-se questões diretas e pessoais. A oficina bem sucedida estabelece a autoridade legítima em carne e osso, e não em direitos e deveres no papel. (SENNETT, 2009, p. 68)
A olaria de Cipriano - que se localizava no sítio dos Algor, junto à residência
da família –, costumava ser o local em que a sua autoridade de mestre se diluía no
convívio com a filha e cujas decisões eram respeitadas pelo genro. Conforme o que
da qualidade de suas peças‖ (trecho do parecer referente ao Decreto n. 18.700/2005, que reconhece o prédio da Escola de Oleiros como Patrimônio Histórico Arquitetônico, Tombado pela Lei Municipal n. 4429/2006).
68
ocorria nas oficinas medievais, são fatos que remetem ao modo como as instituições
se organizam nos dias de hoje frente às relações de autoridade.
Na Idade Média, a autoridade do artífice estava voltada ao fato de ele ser
cristão. E, segundo Richard Sennett (2009), historicamente, foi o Cristianismo que
primeiro abraçou ―a dignidade e a autoridade do artífice‖. Pois, o ―primitivo artífice
medieval cristão encontrou sua casa espiritual na Terra em mosteiros como o de
Saint-Gall‖ (SENNETT, 2009, p.70), que, assim como outros mosteiros semelhantes,
eram comunidades ―auto-suficientes, sustentáveis, diríamos hoje, produzindo quase
tudo de que precisavam para o seu sustento‖ e cujas oficinas ―seguiam os preceitos
da autoridade do cânone dual da fé‖ (ibidem).
Entre os anos 1000 e 1300, em Paris, com o surgimento das cidades nos
séculos XII e XIII, o Estado e a Igreja, aliados em igualdade, homenageavam os
―escultores, insufladores de vidro, tecelões e carpinteiros que fizeram o trabalho
manual‖ (ibidem), em cerimônias inaugurais daquelas comunidades urbanas,
fazendo com que a oficina começasse a se tornar um lugar diferente.
A essas comunidades urbanas dava-se o nome de guildas, que eram
corporações escoradas em ―diplomas jurídicos, mas ainda mais na transmissão de
geração em geração dos conhecimentos concretos e práticos destinados a fazê-las
sustentáveis‖ (ibidem, p. 71), pois o principal capital, ali, era o conhecimento.
Richard Sennett cita a definição do historiador Robert Lopez, que diz que as guildas
―são uma federação de oficinas autônomas, cujos proprietários, geralmente
tomavam decisões e fixavam as exigências de promoção das funções inferiores‖
(ibidem, p. 71).
Bem diferente do que acontecia na olaria de Cipriano, as oficinas medievais
não admitiam mulheres50, a não ser para fazerem a limpeza do local que era
habitado hierarquicamente por ―mestres, jornaleiros e aprendizes‖51 do sexo
50
Pode ser que a exclusão do trabalho feminino nas oficinas medievais tivesse evoluído do mito de Pandora, ou do fato bíblico de que Eva encarnava a tentação e distraía o Homem de seu trabalho, pois ―os patriarcas da Igreja consideravam as mulheres especialmente tendentes à licenciosidade sexual se nada tivessem para ocupar as mãos‖. E foi este preconceito que deu origem à prática de que ―a tentação feminina podia ser combatida através de um artesanato específico, o da agulha, fosse na tecelagem ou no bordado, mantendo permanentemente ocupadas as mãos das mulheres‖ (SENNETT, 2009, p. 72). 51
―Na guilda medieval, a autoridade masculina encarnava nos três níveis da hierarquia de mestres, jornaleiros e aprendizes. Os contratos especificavam a duração do aprendizado, geralmente sete anos, e o custo, em geral assumido pelos pais do jovem‖ (SENNETT, 2009, p. 71). De aprendiz, o jovem evoluía para jornaleiro, trabalhando por mais cinco anos até ser capaz de demonstrar que estava em condições de tomar o lugar do mestre.
69
masculino. Na olaria de Cipriano Algor trabalhava a sua filha Marta, substituindo sua
falecida esposa Justa Isasca. Martha, desde a infância praticava as artes da olaria
imitando o trabalho de seu pai.
Nas guildas, o trabalho do aprendiz vinculava-se a observar e imitar o
trabalho dos jornaleiros e dos mestres, ou seja, a cópia era o modo de aprender
inicial. Já o jornaleiro tinha que demonstrar competência gerencial para merecer a
confiança do mestre, como um futuro líder. A partir daí, a diferença entre a imitação
de um procedimento e a compreensão mais ampla de como usar o que se sabe
poderia ser considerada uma marca no desenvolvimento das capacidades.
O que era produzido nas oficinas medievais era avaliado pelos professores e
avaliadores desse processo e ―os veredictos do mestre eram definitivos, sem
possibilidade de recurso. Só muito raramente a guilda interferia nas avaliações de
um mestre de oficina, pois ele reunia em sua pessoa a autoridade e a autonomia.
(SENNETT, 2009, p. 72-73)
Richard Sennett menciona as ourivesarias medievais como exemplo de um
ofício artesanal peculiar em que o aprendiz de ourives ficava na oficina para
aprender a fundir, limpar e pesar os metais preciosos com a participação do mestre.
Só após apresentar seu chef d’oeuvre o aprendiz poderia se transferir de cidade,
promovido a jornaleiro, frente às novas oportunidades que surgissem dali
O jornaleiro ourives itinerante apresentava seu trabalho élevé ao organismo corporativo dos mestres em cidades estrangeiras. Através de seus talentos gerenciais e de seu comportamento moral, tinha de convencer esses estrangeiros de que podia tornar-se um deles. O sociólogo Alejandro Portes observa que os modernos migrantes econômicos tendem a ter espírito empreendedor; os passivos ficam em casa. Esse dinamismo migratório era parte integrante da ourivesaria medieval. (SENNETT, 2009, p. 73)
Esse contexto medieval remete ao que acontece hoje com parte dos
integrantes dos principais pólos de cerâmica artística no Brasil, os artesãos de Alto
do Moura, herdeiros das tradições do Mestre Vitalino que, de uma forma ou de outra,
sobrevivem através de seus ofícios também em outras partes do país, longe das
cidades de Caruaru ou Recife. São os artesãos que migraram52 para outros centros
de consumo, para continuarem comercializando seus produtos em feiras nacionais e
52
Entre eles, Etemilton Silva, artesão pernambucano que reside em Nova Iguaçu (RJ) e que comercializa bonecos de barro na Feira de São Cristóvão aos finais de semana, artesanato que aprendeu a fazer inspirado no trabalho dos discípulos dos mestres pernambucanos (reportagem de 27 set. 1998, Jornal do Comércio).
70
internacionais e os artesãos que participam de feiras de artesanato itinerantes e que
fazem negócios em regiões diferentes das suas.
Embora nas guildas medievais o bom mestre fosse aquele que dirigisse uma
―casa itinerante‖, era esse trabalho migrante e ―o fluxo do comércio internacional‖
que geravam na economia medieval alguns dos mesmos receios que aqueles
artesãos ligados a movimentos folcloristas, experimentam hoje, tais como a perda da
identidade do artífice e da originalidade dos produtos por ele fabricados.
Também aqui podemos aproximar o que aconteceu com Cipriano Algor em
sua tentativa de continuar sendo fornecedor de seus produtos artesanais para o
Centro. Cipriano, em sua olaria residencial, ao resolver junto à filha Marta que faria
bonecos em vez de louças, ao aprontar a proposta de fornecimento de bonecos de
barro e ao dirigir-se às negociações com o Centro, estaria manifestando o seu
espírito empreendedor53.
Há objetos confeccionados manualmente por artesãos empreendedores que
misturam suas práticas artesanais a outras, fruto de tradições ou de inovações, de
concepções diversas que vão também sendo concebidas de acordo com a
dedicação do artesão, ou conforme as vontades dos consumidores. A antropóloga e
pesquisadora Guacira Waldeck, discorre sobre a importância das mudanças
introduzidas por Zé Caboclo e seu cunhado Manuel Eudócio, ao mencionar a
invenção do arame para a sustentação das peças de barro e a invenção de um novo
formato para os olhos dos bonecos que ambos confeccionavam - técnicas
inovadoras que foram copiadas por Mestre Vitalino. Waldeck (2008, p.11) afirma que
Em parte, essas mudanças podem ser entendidas como livre exercício da expressão própria desses dois artistas, mas não se pode ignorar a influência do mercado turístico que, ao longo do tempo, alimentou, diversificou e consolidou o repertório.
53
O espírito empreendedor ―é uma expressão corrente no meio empresarial que significa atitude empreendedora. Trata-se de um termo utilizado para caracterizar indivíduos dinâmicos, realizadores, trabalhadores, ou como bem nomeou Borges (1999), fazedores.‖ (SALEM, 2006, p.8). A palavra, segundo Tresor de langue Française é ENTREPRENEUR. Composta por ENTRE e PRENDRE. Assim, ―ENTRE: tem sentido de local e de intervalo entre duas coisas; PRENDRE quer dizer prender, mas, ―não é apenas ter em mãos, possuir, mas também adquirir um conhecimento. (...) No latim, PREHENDERE, além de significar segurar, quer dizer aprender e compreender.‖ (PORTO apud SALEM, 2006, p.12).(grifos nossos)
71
Semelhante ao que acontece nas feiras de artesanato itinerantes que
percorrem de norte a sul um país, as guildas urbanas
era um mercado inundado de produtos novos que não tivessem sido feitos por elas. As guildas da Londres e da Paris medievais, em particular, tomaram iniciativas de defesa contra o crescimento do comércio no norte da Europa [...] pela cobrança de pesados pedágios e tarifas nos portões das cidades e pela estrita regulamentação das feiras em seu interior. (SENNETT, 2009, p.74)
Mais ou menos assim é o contexto atual da comercialização de artesanato no
Brasil, principalmente nos eventos em que predominam as temáticas ligadas à
tradição e ao folclore. Ou seja, talvez como uma das alternativas de preservação das
representações identitárias dos artífices – percebidas nos objetos artesanais –, na
maioria das feiras brasileiras de artesanato, sejam elas permanentes ou itinerantes,
há a necessidade de se delimitar a participação dos artesãos quanto à
comercialização de seus trabalhos.
É através do que se denomina ―triagem‖ dos produtos a serem expostos, com
o pagamento de taxas de inscrição e de valores que o artesão-expositor paga pelo
metro quadrado utilizado, que, em geral, ocorre a inclusão ou não dos artesãos e de
seus produtos no mercado das feiras.
Em A caverna, Cipriano Algor não participou de uma ―triagem‖, nem teve que
pagar alguma taxa pela exposição de seus bonecos, pois ali, no Centro, parece
estar representado que é administração que os coloca à venda nas lojas. O que
seria feito com o novo produto do trabalho do oleiro – os bonecos de barro – era
uma espécie de teste, denominado ―inquérito‖, já que, a princípio, seriam
encomendados 200 bonecos – dos 1200 anunciados pelo chefe do departamento -,
entre os seis modelos propostos.
Sobre as encomendas e o inquérito, foi o ―senhor chefe‖ do departamento de
compras do Centro que comunicou ao oleiro, por telefone:
A decisão tomada foi positiva para a primeira fase. [...] Significa que iremos fazer uma encomenda experimental de duzentas figuras de cada modelo e que a possibilidade de novas encomendas dependerá, obviamente, do modo como os clientes receberem a produção. (SARAMAGO, 2000, p. 130)
72
Portanto, era o comportamento dos consumidores que seria avaliado através
do inquérito. Para Cipriano Algor e Marta, em um próximo telefonema comunicando
o resultado da pesquisa, seria o momento de ambos se depararem com a face do
consumidor de seus produtos. Era o momento de o oleiro compreender sua nova
situação e de se atualizar enquanto empreendedor.
Houve uma seleção prévia dos consumidores que iriam participar da
pesquisa, e, de acordo com o perfil das pessoas, foram descartados do inquérito os
―jovens modernos e os rapazes e raparigas do nosso tempo‖, pois, conforme o chefe
do departamento, por telefone, anunciou a Cipriano:
Escolhemos vinte e cinco pessoas de cada sexo, de profissões e rendimentos médios, ainda ligados a gostos tradicionais, e em cujas casas a rusticidade do produto não fosse destoar demasiado, E mesmo assim, É verdade, senhor Algor, os resultados foram maus, Paciência, senhor, Vinte homens e dez mulheres responderam que não gostavam de bom de barro, quantro mulheres disseram que talvez comprassem se fossem maiores, três poderiam comprar se fossem mais pequenos, dos cinco homens que restavam, quatro disseram que já não estavam em idade de brincar e o outro protestou pelo facto de três estatuetas representarem estrangeiros, ainda por cima exóticos, e quanto às oito mulheres que ainda falta mencionar, duas declararam-se alérgicas ao barro, quatro tinham más recordações desta espécie de objetos, e só as duas últimas responderam agradecendo muito a possibilidade de decorarem gratuitamente a sua casa com uns bonequitos tão simpáticos, Há que acrescentar que se trata de pessoas idosas que vivem sós (...) essas duas mulheres vivem fora do Centro, na cidade. ( SARAMAGO, 2000, p. 291).
Aplica-se ao resultado do inquérito promovido pelo Centro a noção de
―Indústrias Culturais‖, útil aos frankfurtianos que produziram estudos ―tão inovadores
quanto apocalípticos‖, segundo Nestor Garcia Canclini. Pois, os acontecimentos com
Cipriano e os consumidores do Centro remete ao fato de que ―cada vez mais bens
culturais não são gerados artesanalmente ou individualmente, mas através de
procedimentos técnicos, máquinas e relações de trabalho equivalentes aos que
outros produtos na indústria geram‖ (CANCLINI, 2008, p. 257). Para Canclini, os
estudos sobre a produção artesanal pouco mencionam sobre o que é produzido e
sobre o que acontece com os receptores – espectadores e consumidores.
Hoje, em uma feira de artesanato ou num corredor de lojas em um shopping
center, podemos nos deparar com o artesanato indígena ou com o artesanato de
―raiz‖; com o artesanato regional ou de culturas estrangeiras, ou, ainda, com os
73
inúmeros produtos importados e industrializados vindos dos principais pólos de
comércio internacional. Isso traduz mais uma realidade tanto do artesanato, do
artesão e do empreendedor brasileiro, como do consumidor, de modo semelhante
ao que acontecia nas guildas medievais.
Mas, apesar da dimensão trágica que estende o resultado do inquérito para a
continuidade do trabalho do oleiro Algor, há semelhanças positivas entre as guildas
do passado e as feiras de artesanato ou shopping center moderno. Salientamos que
para o consumidor é importante a possibilidade de convivência entre os fazeres
artísticos mais tradicionais e os mais modernos, que retratem as diversas culturas
regionais, através da oferta de produtos com origens diversas, de um mesmo país e
de outros.
Ainda hoje percebemos o resultado do fluxo de migração que vem ocorrendo
no Brasil, particularmente, desde a década de 70, quando, por necessidade de
sobrevivência o artesão migrava para grandes centros em busca de trabalho e
sustento. A isso incluímos o aumento do acesso aos bens de consumo pelas
pessoas – inclusive aos bens turísticos e às novas tecnologias –, que aumentaram a
visibilidade de produtos artesanais e os negócios para os artífices que estão
expondo ou comercializando seus produtos, também pela internet, e pode ser uma
das consequências da globalização.
Na Idade Média, as guildas e o artífice itinerante e, em A caverna, são os
acontecimentos com o oleiro Cipriano, em sua olaria e no Centro, situações
representativas do trabalho de artesão. Portanto, pode-se dizer que o trabalho
artesanal é parte constitutiva da identidade desses indivíduos e de suas famílias –
inclusive das identidades regional e nacional.
Os artesãos que participam de eventos, artesãos que se associam, que
empreendem o próprio negócio, que migram para outros centros ou que continuam
no mesmo lugar para daí fornecerem seus produtos para outros estados ou países,
pode ser que sejam os responsáveis por provocar o olhar do ―outro‖ sobre a sua
cultura regional representada nos objetos. Mas, pode ser que seja também este
―outro‖ – representado na figura do consumidor de produtos artesanais – venha a
direcionar o olhar a sua própria cultura regional, cujas raízes podem estar
simbolizadas nos objetos artesanais que ele mesmo escolhe e adquire para si.
Ao apresentar o resultado do trabalho de pesquisadores que pelo mundo
afora tenham relação com a cultura portuguesa, Otilia Martins Pires, em um dos
74
livros da série ―Portugal e o Outro‖ (2004, p.11), explica que ―neste início do século
XXI, a Humanidade vive uma explosão sem precedentes, da comunicação mas,
curiosamente, o intercâmbio simbólico entre as nações parece encontrar-se no seu
<<grau zero>>.‖ O ―intercâmbio simbólico‖, que acontece a partir do
―reconhecimento do olhar do outro‖, só ocorreria, conforme a pesquisadora
portuguesa, ―através da troca e pelo confronto dos nossos olhares de espectadores‖.
Ao citar Roland Barthes, Otília Pires dá provas de que a Alteridade ―surge
como reveladora de um processo de identificação [inclusive] explorada numa
perspectiva sociológica‖, e complementa:
A literatura é o lugar, por excelência, no qual se anuncia o encontro com o Outro no Aqui e no Alhures, participando assim da formação deste imaginário preconcebido. Este encontro ocorre na ambigüidade, de modo arbitrário ou por procuração, mas será sempre motivado por um duplo sentimento de atração-repulsa. Neste sentido, a escrita – sobretudo a escrita romanesca – permite a representação de arquétipos, de tópicos sócio-culturais e esboça os contornos do <<estranho>> e do <<estrangeiro>>, tornando-se assim laboratório de imaginários onde abundam temas como a indiferença, a distância, o exílio, o exotismo, o medo do Outro, o bode expiatório, enformados por mitos, estereótipos e imagens virtuais de Si mesmo e do Outro. (PIRES, 2004, p.10)
Assim, entendemos que as identidades locais se constituem ou se fortalecem
amparadas por outras identidades. Porque expõem em espaços coletivos, os
artesãos têm a oportunidade de construir novas experiências e novos saberes,
experiências extensivas também aos consumidores desses produtos.
Quanto ao consumo, é possível afirmar que além da grande oferta de objetos
para a sociedade promovida pelo comércio em lojas ou em feiras, ou pela internet,
pode ser que estas ações se baseiem no entendimento de que a utilidade da compra
é um fator secundário e que os consumidores estão mais interessados no prazer de
comprar do que na satisfação de suas necessidades básicas.
Mas, as vendas podem agregar valores ideológicos e, cada vez mais, os
consumidores se movem para o universo simbólico do status social. Segundo
Palhares (2006, p. 55), que analisa o pensamento benjaminiano, ―os objetos
passaram a ser adquiridos não pelo seu valor de uso, mas pelo significado social de
sua posse‖ e ―não apenas a compra de bens materiais para a satisfação das
necessidades, mas também o consumo de imagens e de valores para uma grande
parte da sociedade‖ (ibidem).
75
Entendemos que a facilidade de descartar as coisas pode nos ―dessensibilizar
dos objetos que efetivamente temos em mãos‖ (SENNETT, 2009, p. 127). Mas, isso
é apenas um dos reflexos do desenvolvimento avassalador e irreversível do
capitalismo na transformação de hábitos cotidianos, nas relações das pessoas com
os objetos, e, também, nas percepções dos espaços e dos seus respectivos
significados.
Pois, assim concebida, essa cultura redefine o território e cria novas
territorialidades orientadas pelo mercado. Ou seja, tanto as grandes potências
industriais e financeiras - nacionais ou estrangeiras -, como as feiras e as lojas - do
lado de fora ou do lado de dento dos inúmeros shoppings centers espalhados nas
principais capitais dos países capitalistas -, ao produzirem e reproduzirem objetos ou
ao divulgá-los e comercializá-los, criam novas subjetividades e territorialidades.
Estas são as novas identidades constitutivas de novos consumidores, que
materializam as suas múltiplas necessidades e vontades ao optarem pela compra de
determinados objetos em determinados locais em que os mesmos são postos à
venda.
76
6 A AURA BENJAMINIANA NOS OBJETOS DE BARRO
Em Obras Escolhidas, volume 1, Walter Benjamin dedica importante capítulo
sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Assim, sabe-se que a
imitação da obra de arte produzida pelo homem sempre foi possível, mas, a sua
reprodução técnica é um processo novo, ―muito embora os gregos conhecessem
dois processos técnicos para a reprodução de obras de arte: as moedas e terracotas
já eram por eles fabricadas em massa ―54.
Para Cipriano Algor, os objetos de plástico produzidos em série não tinham o
mesmo valor que os objetos de barro, feitos por ele em sua olaria residencial. Para
Benjamin, a beleza da obra de arte reside na sua ―essência misteriosa‖, definida por
ele como um ―invólucro‖, que confere ao objeto de arte um tom de ―mistério‖. Ou
seja, a aura, para Benjamin, é o ―invólucro‖ da obra de arte, o que preserva nela
mesma a sua essência de beleza, o seu caráter estético. Provavelmente, esse
invólucro esteja diretamente ligado ao despertar de uma consciência crítica no
observador55 de uma obra artesanal em cerâmica.
Para Walter Benjamin, o declínio da aura encontra-se vinculado ao desejo
cada vez maior do homem contemporâneo ou das massas de ―fazer as coisas se
aproximarem‖ (BENJAMIN apud PALHARES, 2006, p.38). Essa relação ocorreria
entre ―o sentido do efeito‖ e ―da recepção estética‖ da aura, entre ser e coisa que se
fundem num determinado fenômeno aurático. Tal fenômeno transcende a esfera do
mundo sensível e se manifesta em um momento único, entre a obra de arte e o seu
espectador - independentemente de esta obra ser única e irrepetível ou a primeira
ou a última de uma cadeia de reproduções em série, acrescentamos.
54
SILVEIRA, Regina da Costa da. O pintor d’O retrato e o Oleiro d’A Caverna na Era da Reprodutibilidade Técnica da Obra de Arte. In: NONADA. Letras em Revista. Porto Alegre, UniRitter: 2005, p. 45. 55
Aqui nos referimos oo diálogo anterior a ―Alegoria da caverna‖, ao diálogo ecrito no livro VI de A República (2003, p. 205-206), momento em que Sócrates explica a Gláucon que, dos sentidos humanos, a visão é o único que necessita de um elemento externo, a luz. Para Platão, ―o olho se assemelha ao sol‖. Portanto, os olhares, quando dirigidos a objetos não iluminados pelo sol e envoltos em sombras ou luzes artificiais ou derivadas – como as luzes do Centro, que não admitiam que as janelas fossem abertas –, reagem como se fossem cegos ou quase cegos. Mas, quando o olhar se dirige para objetos sobre os quais brilha o sol, os olhos vêem com clareza, ―têm uma visão clara‖. Daí, para Platão (2003, p. 206): ―a alma é como o olho; quando fixa sua atenção sobre um objeto iluminado pela verdade e pelo Ser, a alma percebe, compreende-o, conhece-o, parece inteligente; porém quando se fixa a um objeto ao qual se misturam as trevas, o que nasce e morre só sabe ter opiniões, vê mal, alterando o seu parecer, de alto a baixo, e parece já não ter inteligência.‖
77
Por isso, ao analisarmos o artesanato produzido em Alto do Moura e diante
da situação do oleiro, representada em A caverna, entendemos que - para esses
artífices que fabricam suas peças de barro com o uso de determinadas técnicas de
reprodução tradicionalmente transmitidas de geração a geração – é possível que
ainda se mantenha essa aura em obras por eles confeccionadas manualmente.
Pois, assim como Benjamin, entendemos que ―o que caracteriza a autenticidade de
uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua
duração material até o seu poder de testemunho histórico‖ (BENJAMIN, 1992, p.8).
E isso, porque estas mesmas obras representam o fazer artístico daqueles
indivíduos, pertencentes a um grupo, a um contexto histórico determinado e a uma
sociedade civil organizada. Assim pode-se afirmar que as peças de barro,
confeccionadas pela família Algor constituem suas expressões identitárias, comuns
aos seus criadores, suas vivências, seus saberes que são repassados de geração a
geração. É o que pode ser percebido no trabalho do Mestre Zé Caboclo, conforme
descreve Guacira Waldeck (2008, p.11):
Além de responder ao estímulo do mercado, modelando médicos, advogados, dentistas, engraxates, lenhadores, sapateiros, pescadores e outros profissionais, Zé Caboclo, resgatando a técnica sedimentada pelas louceiras do Alto do Moura, demonstra apuro técnico nas figuras agigantadas, adequadas aos grandes espaços expositivos e à decoração de interiores, como as moringas antropomorfas Lampião e Maria Bonita [Figura 4]. Esses temas – profissionais e mitos regionais – ganhavam mundo, sobretudo nas coleções do então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e de Jacques Van de Beuque (1922-2000).
78
Figura 4 – Lampião e Maria Bonita, representados em moringas antropomórficas confeccionadas por Mestre Zé Caboclo, expostas no Museu do Barro (Caruaru-PE). (Foto: Márcia Salis, jun. 2009)
Diante das inúmeras técnicas modernas de reprodução em massa dos
produtos, dada a necessidade de consumo desencadeada pelo aumento vertiginoso
da população, é possível afirmar que o contato com essas obras artesanais –
expostas em museus, feiras, lojas, etc. - continue despertando a sensibilidade e a
consciência crítica do homem.
6.1 O CONCEITO DE AURA E O SALTO INTUITIVO
Richard Sennett, em O artífice, refere-se a Benjamin para explicar uma das
etapas de sua teoria sobre o ―salto intuitivo‖, o que, segundo o sociólogo, pode
acontecer em quatro momentos na vida do artífice. Em relação ao trabalho artesanal
desenvolvido pelo oleiro Cipriano e pelos artesãos de Alto do Moura, a primeira
etapa do ―salto intuitivo‖ ocorre quando se vai além do uso normal e tradicional de
uma ferramenta de trabalho, por exemplo, quando há a ―quebra‖ de um molde que
designava uma função específica de determinada ferramenta. Essa primeira etapa
comprova que, ―nas habilidades técnicas, a idéia de possibilidade tem origem nos
sentimentos de frustração com os limites de uma ferramenta ou é provocada por
79
suas possibilidades ainda não verificadas‖ (SENNETT, 2009, p. 233). A essa
―quebra‖ Sennett dá o nome de ―reformatação‖.
A segunda etapa seria tudo o que acontece através do ―estabelecimento da
aproximação‖ entre ―dois domínios dessemelhantes‖. Seria, por exemplo, ―o invisível
e o palpável‖ (ibidem) que se aproximam através de determinados instrumentos, e
que, quanto mais próximos, mais estimulariam o raciocínio intuitivo do artesão, a
partir do momento em que ―a mão ou o olho percebe que não é a finalidade original
da ferramenta‖ (ibidem, p. 234).
Assim, após a ―reformatação‖ e a ―proximidade‖, viria a ―surpresa‖. É a
surpresa ―a maneira de dizer a nós mesmos que algo que conhecemos ou sabemos
pode ser diferente do que presumimos‖ (ibidem, p. 235). Esse terceiro momento de
uma ―seqüência não rigorosa‖ é que explicaria o instante em que o artesão se dá
conta de que ―havia no processo inicial algo mais pleno ou complexo‖ (ibidem) do
que ele próprio suspeitasse. É aqui que Richard Sennett associa esta etapa ao
conceito benjaminiano de ―aura‖, dizendo que ―o autor moderno Walter Benjamin usa
outra palavra grega, aura – ―banhado na própria luz‖ – para designar o assombro
ante a existência de uma coisa.‖ (ibidem, p.235).
Há ainda a quarta etapa, ou a ―etapa final‖, assim definida por Sennett e a
qual ele denomina de ―reconhecimento‖. É nesse momento que se reconhece que
existem limites que corrigem qualquer fantasia a respeito das certezas que se tem
sobre algo que parece fixo e imutável. Grosso modo, seria o instante em que se
volta à realidade, após ter se entrado em um sonho, e, a partir daí, organiza-se a
experiência imaginativa que se teve, a favor de resultados produtivos. Assim, ―o
salto intuitivo não se ajusta ao padrão do pensamento dedutivo, silogístico‖, por isso,
―a ênfase nos três primeiros estágios de um salto intuitivo é no ‗se’ e no ‗e se’, e não
no ‗então‖ (SENNETT, 2009, p. 236). Assim, talvez possamos explicar o resultado
do que aconteceu com José Saramago após a visita ao Museu.
6.2 A EXPERIÊNCIA AURÁTICA
Parece-nos que foi mesmo a aura de um objeto de barro, feito pelo principal
membro de uma família de artífices – Mestre Zé Caboclo - exposto no Museu Casa
80
do Pontal, no Rio de Janeiro, que surpreendeu José Saramago e o estimulou a
escrever o livro A caverna, conforme veiculado na imprensa da época, e conforme o
próprio autor do romance narrou em Cadernos de Lanzarote II (1999, p. 472). Aqui,
reproduzimos na íntegra a passagem do livro, narrada por Saramago:
Confiar nas pessoas, confiar nas circunstâncias, confiar nos acasos, como aconteceu na visita que fizemos à Casa do Pontal, um fabuloso museu de arte popular brasileira, a quarenta minutos do Rio em automóvel, milhares de peças de artesanato autêntico recolhidas por um amador francês (amador, de amar...) que, durante anos e anos, cruzou o Brasil de lês a lês, salvando de irremediável perda, em muitos casos, peças talvez únicas. Foi neste museu, contemplando umas figuras de barro, ouvindo Luiz Schwarcz, a poucos passos de distância, que ―Estes aqui podiam ser o princípio de um romance de José Saramago‖ (representavam dois camponeses de pé, conversando, como se tivessem acabado de encontrar-se no meio do caminho), foi neste museu, olhando estas figuras, sentindo agudamente a presença de todas as outras, que, de súbito, saltou na minha cabeça a centelha que andava a faltar-me para que a idéia de A caverna venha (talvez) a tornar-se em livro. São coisas que não se anunciam, acontecem sem precisar que as procurem, só há que dar por elas, nada mais... (SARAMAGO, 1999, p. 472)
Após conhecer a coleção particular do francês Jacques Van der Beuque,
exposta ao público que visita o Museu Casa do Pontal56, Saramago pode ter tido
uma ―experiência aurática‖ ao observar obras artesanais únicas, feitas por artistas
populares brasileiros. Naquela visita ao museu, o escritor português foi remetido
instantaneamente a um passado, a um presente e a um futuro de tudo aquilo que
aquelas obras transmitiram ao seu olhar sensível, envolto naquele instante ―mágico‖
e ―irrepetível‖ entre ele – espectador – e elementos da obra confeccionada por Zé
Caboclo. Foi um ―momento atemporal, mas fugidio, arrancado do fluxo do tempo;
enfim, a ocorrência de uma experiência em sentido pleno‖ (PALHARES, 2006, p.
100).
56
O acervo do Museu Casa do Pontal, tombado em 1991, é composto por mais de 8.000 obras, de 200 artistas brasileiros, produzidas no século XX. Concentra, além dos trabalhos, uma vida inteira de gerações de brasileiros que se refletem na expressão artística dos principais artistas populares dos pólos de arte popular no Brasil. É a vida de Alto do Moura, Tracunhaem, de Recife e Olinda, em Pernambuco; do Vale do Jequitinhonha e das pequenas cidades do sul de Minas Gerais; do vale do Paraíba, em São Paulo; de Salvador e do Recôncavo Baiano; de Juazeiro do Norte, no Ceará; de Teresina, no Piauí, dentre outros núcleos produtores vivos, e que estão em todas as partes do país, como em São José, SC. O Museu também abriga as coleções dos renomados artistas populares, como as obras de Mestre Vitalino, Zé Caboclo, Adalton Fernandes Lopes, Antonio de Oliveira, Manuel Galdino, Nhô Caboclo, Ciça, Dadinho e outros (MASCELANI, 2002).
81
No livro As pequenas memórias (2006) o autor alinhavou experiências de sua
infância e adolescência, em uma espécie de resgate, narrando momentos em que
viveu ou passou férias na aldeia do Ribatejo.
No lado direito do mesmo andar 9 [...] morava uma família composta de marido e mulher, mais o filho de ambos. Ele era pintor de uma fábrica de cerâmicas. [...] Éramos bons amigos, esse pintor e eu, o que deverá parecer surpreendente uma vez que se tratava de um adulto com uma profissão fora do comum no meu minúsculo mundo de relações, enquanto eu não passava de um adolescente desajeitado, cheio de dúvidas e certezas, mas tão pouco consciente de umas como das outras. O apelido dele era Chaves, [...] o senhor Chaves. Para adiantar o trabalho ou talvez para cobrar horas extraordinárias, ele fazia serão em casa e era nessas alturas que eu o ia visitar. [...] e eu passava à pequena sala de jantar onde, a um canto, iluminado por um candeeiro de bicha, se encontrava o torno de oleiro com que ele trabalhava. [...] Eu gostava de vê-lo pintar os barros, cobertos de vidrado por fundir, com uma tinta quase cinzenta que, depois da cozedura, se transformaria no conhecido tom azul deste tipo de cerâmica. Enquanto as flores, as volutas, os arabescos, os encordoados, iam aparecendo sob os pincéis, conversávamos. [...] intuía que aquele homem sensível e delicado fosse só. Hoje tenho a certeza disso. Continuei a freqüentar-lhe a casa mesmo depois de a minha família se ter mudado [...] e um dia levei-lhe uma quadra ao jeito popular que ele pintou num pratinho em forma de coração. (terá sido a minha primeira composição poética [...] que dizia; ―Cautela, que ninguém te ouça – O segredo que te digo – Dou-te um coração de louça – Porque o meu anda contigo‖ (SARAMAGO, 2006, p. 47-50).
Foi através da narrativa de suas histórias familiares que Saramago pôde
informar ao leitor que, em sua adolescência, teve contato com quem fabrica objetos
de barro, conforme ele próprio narra a sua relação com um vizinho oleiro, a quem
ele costumava visitar desde a infância. Essas situações, essas conversas e
observações de Saramago em companhia do seu antigo vizinho estão enraizadas
nas memórias do autor português, como parte daquelas situações vividas por ele,
armazenadas com determinada finalidade, que podem ter sido utilizadas no livro A
caverna. Pode ser que suas experiências passadas tenham sido uma das causas
daquela ―experiência aurática‖ que o escritor teve diante da obra do artista Zé
Caboclo, visitando o Museu Casa do Pontal, conforme nos diz Horácio Costa:
Conforme veiculado pela imprensa à época da sua publicação, foi numa visita ao ―Museu do Pontal‖, situado nos arredores do Rio de Janeiro, que José Saramago se inspirou para escrever seu último romance, A Caverna. Neste museu, o escritor “descobriu” umas estatuinhas de barro feitas há quarenta anos por um artista popular, Zé Caboclo, representando figuras humanas. (COSTA, 2002, p. 186, grifo nosso)
82
Também a portuguesa Sara Vicente (2008, p.31), em sua dissertação de
mestrado, considerou os registros de Saramago em Cadernos de Lanzarote II,
apontando a possibilidade de que
a visita ao Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, tenha assumido esta relevância na construção do romance, pois todo o ambiente envolvente ao museu reflecte a importância da arte popular cerâmica, não só na cultura (neste caso particular) a brasileira, mas simultaneamente, serve para questionar em que lugar terá ficado o artesanato na caminhada em direcção à modernidade e ao consumismo das grandes superfícies comerciais. (VICENTE, 2008, p.31)
Além disso, em uma entrevista com Angela Mascelani, feita por Giovânia
Costa e Karla Hansen57, as jornalistas informam que, em 1997, em passagem pela
cidade do Rio de Janeiro, José Saramago acatou a dica de seu amigo Chico
Buarque de Holanda58, que lhe recomendara uma visita ao Museu Casa do Pontal.
Lá, segundo Ângela, Saramago chegou quando eram quase cinco horas da tarde,
pouco antes do Museu encerrar suas atividades diárias. A seguir, um trecho da
entrevista
Na ocasião, a gente tinha um caseiro que morava lá e o caseiro disse que ele era um senhor sozinho e tinha um motorista esperando. Hoje não é possível fazer isso, mas naquela ocasião foi. E aí, o Saramago tem essa experiência de visitar o Museu completamente vazio, num final de tarde. E ele vai se deixando tocar por aquele mundo e vai fantasiando a respeito daquilo, ele deixa sua fantasia fluir. (MASCELANI, 2006)
Certamente, ao adentrar as portas da casa que o levaria ao museu de arte
popular brasileira, o escritor português encantou-se com os bonecos feitos de barro,
de papel machê, de madeira e até mesmo de miolo de pão ali expostos. Sara
Vicente afirma que
a imagem que Saramago refere, intitulada ―Bom Dia‖, de autoria de Zé Caboclo, mostra o mundo rural através de dois camponeses aí retratados. Devemos assinalar a referência a ―um velho de cachimbo‖ (SARAMAGO,
57
Entrevista com Ângela Mascelani, realizada em 08 maio de 2006, jornal digital Educação Pública, CECIERJ. Disponível em: www.educacaopublica.rj.gov.br/jornal/materias/0307.html. 58
―Conhecido principalmente como compositor e cantor de música popular, Chico Buarque trilhou com êxito o caminho da dramaturgia e incursionou pela literatura ficcional. Uma das características marcantes de sua obra como letrista é a verossimilhança com que retrata o imaginário feminino. Francisco Buarque de Holanda, filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, nasceu no Rio de Janeiro em 19 de junho de 1944‖ (Biografia, Chico Buarque de Holanda, 2010).
83
2000, p.75), como uma das hipóteses para os seis bonecos finais na olaria de Cipriano Algor. (VICENTE, 2008, p. 31)
Assim, orientados pelo que escreveu Horácio Costa (2002) – com base nos
próprios escritos de Saramago a respeito do fato –, acreditamos ser possível que um
trabalho tenha atraído José Saramago, em especial, antes de o escritor começar a
escrever o livro A caverna: dois bonecos em um aperto de mãos, moldados por Zé
Caboclo nos anos 1960.
Neste museu, o escritor ―descobriu‖ umas estatuinhas de barro feitas há quarenta anos por um artista popular, Zé Caboclo, representando figuras humanas. Esse museu privado, que reúne uma coleção de trinta mil peças de arte popular, está situado ao sul do Rio, perto do mar porém longe do centro da cidade: para chegar a ele, deve-se passar por bairros ultramodernos – a Barra – nos quais quilômetros de torres de um luxo anódino sucedem-se monotonamente, interrompidas de tanto em tanto por shopping-centers de aparência intercambiável; haverá sido esse ambiente, próximo talvez ao que poderíamos chamar de ―urbanística orwelliana‖, o outro fator que sugeriu a Saramago a escritura de A Caverna. (COSTA, 2002, p. 4)
Figura 5 – Foto de uma peça de Zé Caboclo (1921-1973) de Alto do Moura (Caruaru-PE). Adquirida na década de 1960. Dimensões: 24 x 14 x 9 cm, 745 g. (A mesma imagem foi fotografada por Rômulo Fialdini e Aníbal Sciarretta para o livro O mundo da arte popular brasileira, de Ângela Mascelani. Foto de Márcia Salis, ago.2009)
Portanto, foi nesse museu de arte popular brasileira que o ilustre escritor
português construiu experiências através do contato com a obra dos principais
artesãos brasileiros que trabalham com o barro. E pode ser que o francês Jacques
Van der Beuque, colecionador de peças artesanais, apaixonado pela cultura popular
84
brasileira e que deu início a uma das mais significativas exposições de arte popular
no país, a partir de um novo olhar sobre a cultura popular brasileira, tenha
inaugurado um novo ―lugar‖ para o artesanato em cerâmica. Van der Beuque, que
tinha a sensibilidade de um colecionador, provoca a alteração do ―valor de
mercadoria59‖, que talvez estivesse impregnado naqueles objetos que colecionava e
que ele adquiria nas feiras espalhadas pelo interior brasileiro.
Certamente, o designer e artista plástico Jacques Van der Beuque, nascido
em 1922, em Bavay, no norte da França, enxergava muito além do que ele mesmo
podia observar entre as margens do público e do privado (da rua, da casa, das
feiras, das vilas, dos povoados, dos museus). Imaginamos que era quando ele se
dissolvia na multidão, visitando as feiras e as ruas das cidades brasileiras, que se
estabelecia uma relação aurática entre os objetos artesanais e o seu olhar de
espectador, que, com conhecimentos sobre arte e design, culminou no desejo de
levar esses objetos para além de seu contexto previsto.
Segundo Ângela Mascelani, em Museu Casa do Pontal – o mundo da arte
popular brasileira :
Durante a última metade de século XX, inúmeros atores contribuíram para a consolidação do interesse pela arte popular como uma forma de arte significativa para o Brasil e os brasileiros. Entre esses, destaca-se o trabalho pioneiro desenvolvido pelo colecionador francês Jacques Van der Beuque, que, adquirindo sistematicamente obras a partir da década de 1950, veio a constituir a maior coleção de arte popular no país, e deu origem ao Museu Casa do Pontal. Nascido em Bavay, no norte da França, Jacques Van der Beuque veio para o Brasil após o término da II Guerra, logo obtendo trabalho e fixando residência no Rio de Janeiro. Formado em Belas Artes, em Lyon, desde o início interessou-se pelos objetos feitos pelas pessoas simples, do povo. Atraíam-no sobretudo a vivacidade, as cores e formas de pequenas obras que encontrava durante suas viagens pelo país. Durante mais de 40 anos, viajou e adquiriu obras, visitou vilas e povoados, entrevistou artistas, e deixou-se cativar por suas vidas. Desenvolveu com alguns artistas longas amizades. Sua persistência, assim como o bom gosto da coleção que conseguiu reunir, contribuiu para mapear a contribuição popular no conjunto das artes plásticas brasileiras. (MASCELANI, 2002, p.119)
59
―Desde que a obra de arte se torna mercadoria, essa noção (de obra de arte) já não se lhe pode mais ser aplicada; assim sendo, devemos com prudência e precaução – mas sem receio – renunciar à noção de obra de arte, caso desejamos preservar sua função dentro da própria coisa, como tal designada. Trata-se de uma fase necessária [...], ela conduz a uma transformação fundamental do objeto e que apaga seu passado a tal ponto, que, caso a nova noção deva reencontrar seu uso – e por que não – não evocaria mais qualquer das lembranças vinculadas à sua antiga significação‖. (BRECHT apud BENJAMIN, 1983, p.12)
85
O próprio Saramago, segundo Ângela, intrigou-se com o empreendimento e
declarou:
Como é que um homem, de outra cultura, um dia desembarca aqui, percorre o país, quase ponto por ponto, descobrindo, encontrando, recolhendo, organizando e depois, instala ali aquelas figuras que são da criatividade popular, tudo com uma expressão tão sólida, tão forte. É tudo realmente um assombro! O que reuniu na Casa do Pontal é inimaginável! Esse homem que fez essa coleção não era com certeza um turista, era um viajante, aquele que viaja para querer saber, para querer ver. Ele foi capaz de num ato de amor recolher e manter tudo aquilo exposto. (SARAMAGO apud MASCELANI, 2002, p.119)
O artista popular que tem algumas de suas ―figuras‖ preservadas na coleção
de Jacques Van der Beuque e que despertou em Saramago tanto encantamento
com sua obra é o Mestre Zé Caboclo60, ou José Antônio da Silva, que nasceu em
1921 e migrou para Alto do Moura61, Pernambuco, um homem simples que:
Aprende a trabalhar o barro nas brincadeiras infantis, observando a mãe e uma irmã que se dedicavam ao artesanato utilitário. Casou-se com Celestina Rodrigues de Oliveira, com quem teve oito filhos, vindo a constituir uma verdadeira oficina de cerâmica familiar, que deu origem a uma produção rica e diversificada. Conhecido pelo apelido Zé Caboclo, tornou-se um dos mais conceituados artistas de Caruaru. Contribuiu de maneira decisiva, junto com Vitalino e Manuel Eudócio, seu cunhado, para marcar um estilo na arte dos bonecos de barro daquela região. Em parceria com esse último, inovou técnicas e formas, adotando o uso do arame na estrutura das esculturas e a feitura do olho em alto relevo, ao invés de fazê-los furadinhos. São de sua autoria as alegres moringas antropomorfas de grandes dimensões, como ―Lampião e Maria Bonita‖, as esculturas da Virgem Maria e as impactantes figuras do Bumba-meu-boi e do Maracatu. Também criou temas originais, oferecendo uma leitura singela e irônica dos profissionais liberais: dentistas, advogados etc. Na pintura de suas obras, utiliza cores vibrantes e decoração floral. Seus filhos Antônio, Zé Antônio, Paulo, Horácio, Marliete, Socorro, Carmélia e Helena são artistas. (MUSEU CASA DO PONTAL, 2009)
62
60
As principais peças de Zé Caboclo encontram-se no acervo de importantes museus e em coleções particulares: Museu do Barro – Espaço Zé Caboclo, em Caruaru (PE); Museu do Homem do Nordeste, no Recife (PE); Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro (RJ); Museu do Folclore Edison Carneiro, no Rio de Janeiro (RJ) e Museu da Chácara do Céu (Fundação Raymundo Castro Maya), no Rio de Janeiro (RJ) (MASCELANI, 2002). 61
―Considerado pela UNESCO ‗O maior Centro de Artes Figurativas das Américas‘, o ALTO DO MOURA é uma comunidade de artistas, que fica distante 7 Km do centro da cidade de Caruaru, no estado de Pernambuco, e concentra mais de 1.000 artesãos‖. Disponível em: www.alepe.pe.gov.br/ paginas/?id=3598&paginapai=3597&numero=1033/2009&docid=657749. Acesso em: 03 maio 2009. 62
Portal Museu Casa do Pontal, Arte popular brasileira. Artista Zé Caboclo. Todos os direitos reservados.Casa do Pontal 2002. Disponível em: www.popular.art/br/htdocs/default.asp?criterio= artista&artigo=Zé%20Caboclo. Acesso em: 13 jul. 2009.
86
Da mesma forma que os bonecos de barro criados por mestre Zé Caboclo
representam suas concepções de mundo e suas vivências no agreste
pernambucano, entendemos que são as experiências de vida do oleiro Cipriano
Algor que estão representadas nos objetos ou nos seis modelos de bonecos de
barro, que ele e sua família confeccionam em sua olaria residencial. Além disso, a
imaginação e a criatividade daqueles artífices e de suas famílias podem ser
aproximadas ao processo de criação do escritor Saramago.
São fatos que, de certa forma, somam-se aos interesses de Jacques Van der
Beuque ao colecionar, apreçar e valorizar objetos artesanais brasileiros.. Observa-
se, portanto, nesses processos de criação e de recepção das obras de arte, entre
elas a literária, o que Palhares (2006, p.108) traduz como uma ―relação de equação
entre os homens e as coisas que abre o mundo para uma série de significações‖.
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, os assuntos e a temática tratados em A caverna sugeriram
averiguar a situação em que se encontra hoje o artesão, artista do barro. Para isso,
decidi ir ao encontro de realidades dos artesãos brasileiros, no Museu Casa do
Pontal (RJ), no Museu do Índio (RJ), no Museu do Homem do Nordeste (Recife-PE),
no Museu do Barro – Espaço Zé Caboclo (Caruaru-PE), no Museu Mestre Vitalino
(Alto do Moura - Caruaru - PE), na Feira de São Cristóvão (RJ) e na Feira de
Caruaru (Caruaru – PE) e na Escola de Oleiros de São José (SC).
A escolha desses lugares, no entanto, não foi aleatória. Fatos e depoimentos
de muita relevância serviram-me de orientação. Primeiro, considerei as informações
na resenha do livro feita por Horácio Costa (referida à página 66 desta dissertação)
baseada no conteúdo do livro Cadernos de Lanzarote II (SARAMAGO, 1999, p.
472), depoimentos do próprio José Saramago destacando a relevância de sua visita
ao Museu Casa do Pontal, Rio de Janeiro, em 30 de novembro de 1997. Nessa data,
o autor viajou ao Brasil, fato que, conforme constatei ocorrera antes de começar a
escrever o livro A caverna.
Parti da hipótese de que Saramago por certo muito se impressionara com a
obra de renomados artesãos, como é o caso do pernambucano Zé Caboclo. A partir
da leitura do livro A caverna, considerei o lugar em que estão expostos esses
objetos como indicativo dos problemas e das oportunidades para o artesão brasileiro
continuar trabalhando ou não, nos dias de hoje, com o barro como matéria-prima.
Assim, pela trilha da ficção, pude examinar o percurso do oleiro Cipriano,
visitando espaços destinados à comercialização de artesanato, feiras, e exposições
em museus. Afinal, são nesses espaços públicos que se expõe o trabalho de
artesãos do barro.
A história do artesanato em cerâmica inserido no contexto da Cerâmica
Artística no Brasil, está atrelada à história de Mestre Vitalino. Foi Mestre Vitalino que
abriu caminho para que hoje, em Alto do Moura, os artesãos convivessem e fossem
identificados pelo nome da família. Assim, sabedoria e técnica caracterizam o
trabalho e a conduta de indivíduos – artífices do barro – que possuem estilo
88
próprio,retratado em suas peças, o que traduz, de certa forma, a imaginação, os
sentimentos, o modo peculiar de viverem em família e em comunidade.
Alto do Moura é o local em que se encontram objetos artesanais, resultado de
anos de aperfeiçoamento e dedicação das famílias e da comunidade – trabalhos
feitos à mão e com o barro. É o ―lugar‖ que pode reservar aos visitantes tantas
surpresas quantas são reservadas ao leitor na obra de Saramago. Não obstante, se,
por um lado, a presença de imagens e de ações se aproxima muito da
representação literária portuguesa, por outro, tais acontecimentos e a situação social
daquela família de artífices pernambucanos se distanciam do desfecho que ocorre
na história da família Algor em A caverna.
Foi no Museu Casa do Pontal (RJ), local que Saramago visitou e apreciou
obras de artesãos brasileiros, a ponto de inspirá-lo a escrever um livro, que
encontrei a peça de barro, da autoria do Mestre Zé Caboclo. Saliento que os filhos
de Zé Caboclo que continuam desempenhando o ofício do pai são indivíduos que,
como artesãos, resistem às exigências dos tempos modernos. Eles conseguem
prover o próprio sustento com o seu trabalho artesanal, fato que se torna impossível
à família Algor. Isso fica demonstrado quando esta passa a fabricar bonecos
distintos também uns dos outros, já que pai (Cipriano) e filha (Marta) não tiveram o
merecido destaque e reconhecimento de sua obra artística, produzida
artesanalmente na Olaria da família, pelos consumidores do Centro.
Considera-se, portanto, que em todas as épocas algo mais esteve
representado nas atividades que, por sua vez, sempre estiveram incorporadas às
tradições e práticas populares ou eruditas. Entendo que as condições sociais ou
materiais - que antes sugeriam a composição de ―classes‖ -, hoje, se encontram
vencidas em um jogo multilateral repleto de antagonismos, que se movimentam ao
mesmo tempo - na esfera individual, familiar, política, econômica, ambiental e social
- de forma ininterrupta e veloz.
Nesse jogo multilateral aprendemos com Stuart Hall (2006) que não há como
especificar coisas que são preferidas, para que outras possam ser destronadas, e
vice-versa. Isso leva-nos a crer que um símbolo cultural possui infinitos significados
que lhes são atribuídos - em parte pelo campo individual e familiar; em parte, pelos
campos econômicos, políticos, ambientais e sociais entrelaçados e mutáveis.
Voltados para a realidade brasileira, hoje, o que se percebe é que
profissionais como Mestre Vitalino e seus discípulos, com seus bonecos de barro,
89
constituem uma importante referência cultural para o nordeste brasileiro, ao que se
acrescenta o Alto do Moura.
São fragmentos de origens, frutos do imaginário de pessoas comuns em seu
cotidiano, que compõem a cultura identitária e que se desvendam em cada detalhe
daqueles bonecos, sobretudo porque as técnicas de fabricação e ornamentação
dessas peças de barro são também obra da miscigenação portuguesa, africana e
indígena, entre outras culturas formadoras do povo brasileiro.
José Saramago retrata, em A caverna, com seu estilo próprio de narrar, o
contexto de uma olaria tradicional, representado na figura do oleiro Cipriano Algor e
de sua família, na vida e na constituição da identidade dos personagens que sofrem
as consequências da chegada era moderna, representada pelo Centro. Concluí que
o livro do escritor português constitui uma alegoria que, vista em seus significados,
remete à Alegoria da Caverna, de Platão, e, na medida em que ―o símbolo é, a
alegoria significa; o primeiro faz fundir-se significante e significado, a segunda os
separa‖ (Todorov apud Jeanne Marie Gagnebin, 1999, p.34), concluí que os
bonecos de barro também são formas alegóricas. São significações representadas
em cenas construídas artesanalmente no barro, que se multiplicam a cada novo
olhar de seu espectador.
Na obra da ficção saramaguiana, as características peculiares dos
personagens e de suas ações produzem questionamentos que se originam entre a
―verdade da existência‖ e a ―verdade da ficção‖ (CANDIDO, 2009), pois os múltiplos
significados que o texto propõe e as vicissitudes que compõem o itinerário do oleiro
e de sua filha levam o leitor a observar com atenção a real situação em que se
encontram os profissionais do artesanato no Brasil e fora dele.
Como diz Ítalo Calvino (2009, p. 368), ―a obra literária poderia ser definida
como a operação da linguagem escrita hoje que mais implica níveis de realidade‖ e,
por isso, uma reflexão acerca da obra literária pode ser útil para cientistas e para os
filósofos da ciência, mas, principalmente, para os sujeitos que se inserem numa vida
familiar e social, sujeitos que têm um ―filósofo‖ dentro de si mesmos, conforme o que
também assinalou Richard Sennett (2009).
Dentre as ações humanas que provocam admiração e curiosidade nas
pessoas, encontram-se as suas próprias representações culturais, das mais simples,
artesanais, às mais complexas, como a arte informatizada dos últimos tempos. E,
assim, o objeto artesanal na era da reprodutibilidade técnica pode ser visto sob um
90
novo olhar, voltado para despertar novos sentimentos e comportamentos, cujo
reflexo se percebe através da valorização dos indivíduos em seus saberes próprios,
suas origens, seus modos de vida.
De fato, a leitura de uma obra que não tem o compromisso com o real, ao
mesmo tempo, pode apresentar os diversos níveis da realidade ―ainda que
permaneçam distintos e separados, ou podem fundir-se, soldar-se, misturar-se
encontrando uma harmonia entre suas contradições ou formar uma mistura
explosiva‖ (CALVINO, 2009, p. 369), como é o caso da obra literária, aponta tanto
para realidades possíveis quanto para o sonho e para o imaginário.
Ao averiguar as razões e as circunstâncias dos desfechos dessas histórias,
da ficção e da realidade, concluí que o processo de constituição identitária é
ininterrupto, justamente porque é um processo. Por isso, é fundamental a
informação e a divulgação através da representação em narrativas escritas ou orais
das experiências vividas entre pessoas e grupos que mobilizem a atenção dos
sujeitos envolvidos em práticas públicas.
A isso, saliento, acrescenta-se a valorização dos trabalhos manuais, como
práticas que desenvolvem capacidades humanas, e a dos objetos artesanais, como
produtos que carregam em si a aura, no conceito benjaminiano, capaz de fazer o
espectador ou o próprio artista, amador ou profissional, revelar algo – talvez perdido
ou escondido, fragmentado – sobre a sua própria identidade
91
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