DO DIREITO AO MÉTODO E DO MÉTODO AO DIREITO - Deisy Ventura

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[In FRAGALE, Roberto; CERQUEIRA, Daniel (organizadores). O papel das disciplinas propedêuticas no currículo dos cursos de Direito. 2005. Disciplina de Metodologia] DO DIREITO AO MÉTODO E DO MÉTODO AO DIREITO Deisy Ventura A diversidade de nossas opiniões não decorre de que alguns sejam mais razoáveis do que os outros, mas somente de que conduzimos nossos pensamentos por caminhos diversos, e não tomamos em consideração as mesmas coisas. René Descartes, Discurso do método (1637) En tren con destino errado Se va más lento que andando a pie Jorge Drexler, Alto el fuego (1999) INTRODUÇÃO Todo ser humano conduz sua ação rotineira consoante um método ou diferentes métodos – desde a ducha, a refeição ou o estacionamento, até a pesquisa de ponta e o pensamento de vanguarda. Amiúde, o faz inconscientemente, porque muita lucidez esfuma-se no abismo que separa os significados comumente atribuídos à palavra método. De simples “caminho para se atingir uma meta” ao solene “modo de agir com disciplina, técnica e organização”, é como se a razão (que se refere Doutora em Direito da Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), Consultora Jurídica da Secretaria do MERCOSUL (Montevidéu), Professora da Universidade Federal de Santa Maria (RS), da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA) e do Mestrado em Direito da Universidad de la República e do CLAEH (Montevidéu).

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[In FRAGALE, Roberto; CERQUEIRA, Daniel (organizadores). O papel das disciplinas propedêuticas no currículo dos cursos de Direito. 2005. Disciplina de Metodologia]

DO DIREITO AO MÉTODO E

DO MÉTODO AO DIREITO

Deisy Ventura∗

A diversidade de nossas opiniões não decorre de que alguns sejam mais razoáveis do que os outros, mas somente de que conduzimos nossos pensamentos

por caminhos diversos, e não tomamos em consideração as mesmas coisas.

René Descartes, Discurso do método (1637)

En tren con destino errado Se va más lento que andando a pie Jorge Drexler, Alto el fuego (1999)

INTRODUÇÃO

Todo ser humano conduz sua ação rotineira consoante um método ou

diferentes métodos – desde a ducha, a refeição ou o estacionamento, até a

pesquisa de ponta e o pensamento de vanguarda.

Amiúde, o faz inconscientemente, porque muita lucidez esfuma-se no

abismo que separa os significados comumente atribuídos à palavra método.

De simples “caminho para se atingir uma meta” ao solene “modo de agir com disciplina, técnica e organização”, é como se a razão (que se refere

∗ Doutora em Direito da Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), Consultora Jurídica da Secretaria do MERCOSUL (Montevidéu), Professora da Universidade Federal de Santa Maria (RS), da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA) e do Mestrado em Direito da Universidad de la República e do CLAEH (Montevidéu).

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ao caminho) se tivesse burocratizado e a paixão (que atine à meta),

desaparecido.

Logo, o primeiro passo para compreender a vital importância do

método é recuperar a sua banalidade, destituindo o adjetivo “metódico” de

qualquer conotação pejorativa. Valer-se de um método não é, como parece,

um aborrecimento ou uma restrição da liberdade1. Bem ao contrário, quem

não tem alternativas, não é livre. Mais triste, porém, é o destino de quem as

tem e as ignora ou despreza: é livre e não sabe.

Com efeito, nada mais corriqueiro do que a definição, por um sujeito,

de objetivos, imediatos ou distantes, e a pretensão de que se realizem

graças à determinada ação. A razão (como consciência)2 e a paixão (como

libido) 3 estão presentes tanto na definição das metas, como na escolha e na

1 Este artigo, como qualquer outro, atribui arbitrariamente determinado sentido a palavras que mereceram, historicamente, gigantesca produção científica, filosófica e literária. Assim, a palavra liberdade aqui será usada simplesmente como possibilidade de escolha diante de uma pluralidade de orientações possíveis. Não se trata da ausência de elementos coercitivos, mas de uma margem de indeterminação, de um poder de escolha, apego ou recusa. Ver, em particular, Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris: P.U.F., 1970, em particular o Capítulo III – edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível em <www.uqac.uquebec.ca>. 2 Aqui compreendida, em sentido largo, como a atividade mental que consiste em produzir novas informações a partir de conhecimentos adquiridos e de informações fornecidas por uma dada situação. Em sentido estrito, o raciocínio é a operação mental que permite, a partir de proposições aceitas (premissas), afirmar a pertinência de outras proposições (conclusões), Dictionnaire encyclopédique de l’éducation et de la formación, 2. ed., Paris: Nathan, 1998, p. 497. Um debate racional, por exemplo, é uma discussão na qual os interlocutores se puseram de acordo em precisar os critérios de validade do que se diz. 3 René Descartes escreve, em 1649, o texto fundador da idéia moderna de paixão: “o principal efeito de todas as paixões nos homens é que elas incitam e dispõem sua alma a querer coisas para as quais elas preparam seu corpo; de modo que o sentimento do medo incita a querer fugir, o da bravura a querer combater, e assim sucessivamente” (art. 40), Les passions de l’âme, Paris: Mozambook, 2001, p. 26 – edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível em <www.mozambook.net>. Sobre a evolução histórica do conceito, ver a excelente coletânea organizada e apresentada por Mériam Korichi, Les Passions, Série Corpus, Paris: Flammarion, 2000. No modesto âmbito deste artigo, paixão significa o impulso que se manifesta independentemente da consciência e da vontade do sujeito, que sofre dele um efeito cuja causa não domina totalmente. Será usada como sinônimo de libido e de desejo, diferindo porém do sentimento (estado afetivo da consciência que provém de uma certa reflexão ou julgamento) e da emoção (movimento efêmero da consciência que se faz acompanhar de manifestações corporais). Salvo quando a analogia é citada expressamente, o termo paixão aqui exclui totalmente sua dimensão romântica e amorosa (o amor é “um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que está lá fora. Amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. (...) O amor é uma rede lançada sobre a eternidade, o desejo é um estratagema para livrar-se da faina de tecer redes”, Zygmunt Bauman, Amor Líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos, Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 24-25).

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travessia dos caminhos. Aqui se confrontam, com igual força, os limites

impostos pelos contextos vividos e o poder da vontade irresignada.

Logo, compreender o que se faz, e a serviço de quais finalidades, é

um exercício de translucidez que permite, ademais de azeitar o

discernimento4, repensar continuamente as metas estabelecidas, ao tê-las

sempre presentes.

Pensar com consciência metodológica pode ser um passeio pela

estufa onde a razão fermenta, livre e eficiente, a serviço do querer. Seja ele

menos ou mais conformado com a realidade, o indivíduo percebe que os

logros não despencam das árvores: o “vitorioso”, no senso comum social, é

precisamente o sujeito que encontrou maneiras de colher os frutos,

reduzindo assim o peso relativo do “acaso”, do “divino”, da “sorte” ou da

“inspiração” na explicação de seu êxito ou fracasso.

Ao transpor este raciocínio elementar para o campo científico,

emergem, em cada nicho do saber, os nexos de causalidade entre a

seqüência de atos praticados e os resultados obtidos pelo sujeito que os

promoveu. O domínio dos métodos adquire, então, distinta dimensão

valorativa, e aparta o leigo do cientista.

A palavra metodologia, num mundo de quereres padronizados,

“vendidos” conjuntamente com os meios correspondentes, significa não mais

do que “corpo de regras e diligências estabelecidas para realizar uma

pesquisa” ou “parte de uma ciência que estuda os métodos aos quais ela

própria recorre”. Isto ocorre por ao menos dois motivos: de um lado, o

indivíduo dificilmente se reconhece na ciência; de outro, ele se reconhece na

vulgarização infame dos métodos como receitas para alcançar metas.

4 “O inimigo da consciência não é somente o jugo do espírito pela cultura, ele também está no interior do espírito (recuo, memória seletiva, mentira a si mesmo). Os avanços da consciência não são mecanicamente ligados aos progressos do conhecimento, como provam os extraordinários avanços do conhecimento científico, que determinaram, é certo, progressos localizados de consciência, mas também falsas consciências (certeza de que o mundo obedece a leis simples) e consciências mutiladas (encerradas em uma disciplina particular). ... O pensamento aciona a inteligência e se esclarece pela reflexão (consciência). A consciência controla o pensamento e a inteligência, mas necessita ser controlada por elas. A consciência necessita ser controlada ou inspirada pela inteligência, que por sua vez necessita de tomadas de consciência. Por isto, as múltiplas dificuldades para que possa emergir uma consciência lúcida”, Edgar Morin, La méthode 5 – L’humanité de l’humanité, L’identité humaine, Paris: Seuil, 2001, p. 103.

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Quanto ao primeiro aspecto, o desenvolvimento da técnica, a serviço

dos imperativos da economia, exigiu uma impressionante evolução da

ciência, que gerou a cristalização dos saberes disciplinares. Ainda que os

mais importantes filósofos da ciência, no século XX, tenham aportado

densas e diversas leituras da relação entre a ciência e o método, o

conhecimento científico segue sendo somente aquele que resulta do uso e

pode ser testado por um método científico5. Ora, ainda que escolarizado, o

homem comum não se sente capaz de produzir ciência, e não raro sequer

compreende a ciência, apartado que está do jargão que expressa o método

científico em cada disciplina6.

No entanto, qualquer ser humano pode reconhecer-se no extremo

oposto. Fora da ciência, e às vezes dela disfarçados, há métodos para todos

os objetivos que se possa ter: curar-se de doenças, ser amado, enriquecer,

emagrecer, aprender, negociar, triunfar... A julgar pelo mercado editorial de

massas, por exemplo, a dúvida e o incerto não existem. A vida humana é

reduzida a receitas prontas, tanto do querer como do agir, num verdadeiro

fast food do pensamento7.

Distraídos de sua missão educativa, e inconscientes de sua

responsabilidade científica, os Cursos de Direito constituem um espaço

bastante peculiar do ensino superior. No passado, foram um viveiro de

atores sociais de relevo, provavelmente porque os conteúdos de suas

disciplinas vasculham o indivíduo, o Estado e a sociedade. A vida humana,

5 Embora cada disciplina disponha de seus métodos, o “método científico”, em geral, pode ser definido como “o método pelo qual cientistas pretendem construir uma representação precisa – ou seja, confiável, consistente e não arbitrária – do mundo à sua volta”, Ronaldo Mota et al., Método Científico & Fronteiras do Conhecimento, Santa Maria: CESMA, 2003, p. 44. 6 Os juristas não escapam ao determinismo excludente. Entre muitos exemplos clássicos, Fernando Carnellutti considera que “a metodologia não é outra coisa que a ciência que se estuda a si mesma e assim encontra o seu método. Mas se também a metodologia é ciência, ou melhor, se também a metodologia é ação, o problema do método apresenta-se também à metodologia. Assim, aquilo que se pode chamar introspecção da ciência chega até o infinito. [...] uma verdadeira circulação do pensamento que recorda a circulação do sangue. Como a metodologia ajuda à ciência, a ciência serve à metodologia ou, em outras palavras, esta última, ao descobrir a regra da ciência, descobre a sua própria regra”, Metodologia do Direito, Campinas: Bookseller, 2002, p. 17. 7 No âmbito do ensino profissional, em particular, fazem grande sucesso os professores ditos “pragmáticos”, que desovam uma sucessão de “dicas” do que “realmente funciona” na “vida real”, quase sempre acompanhados do clássico “embora eu não concorde e saiba que não deveria ser assim”.

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em sua dimensão individual e coletiva, deveria passar inteira por estes

bancos, desde a elaboração dos parâmetros de conduta (sobretudo, a lei;

logo, a política), até o sistema de controle social (em particular, a

Administração Pública e o Poder Judiciário).

No entanto, os Cursos de Direito foram jogados a um pragmatismo

indigno até mesmo da formação meramente técnica. A efervescência política

e cultural ficou no passado, e deu lugar à regurgitação, não de uma

dogmática de cunho cientificista, mas sim do conhecimento previamente

mastigado dos manuais didáticos, associado à cuspida narrativa de práticas

profissionais nem sempre auspiciosas, por vezes travestidas de doutrina8.

Nos Cursos de Direito brasileiros, o auto-conhecimento e as

experiências são quase inexistentes: as pesquisas de campo não são

encorajadas, embora praticamente inexistam dados confiáveis sobre o

sistema judicial, sobre a produção legislativa, sobre as disfunções do

Estado, etc. Quanto ao aprofundamento teórico por meio da pesquisa

jurídica ou transdisciplinar, grassa, ainda, o paquidérmico antagonismo entre

teóricos e práticos, como se a teoria não iluminasse a ação, e a prática não

atualizasse a teoria.

Portanto, se malquista ou vilipendiada, é porque a Metodologia, entre as disciplinas ministradas nos Cursos de Direito, desponta como uma daquelas cuja utilidade é menos compreendida. Tratando-se de

deveres escolares ou pesquisa científica, pensa o aluno, qual seria o

interesse de um jurista, que sequer enquanto freqüenta o ensino superior se

reconhece como universitário?

O fato de que numerosos programas concebam a disciplina de

Metodologia como o “ensino” das normas vigentes sobre a elaboração de 8 Sabendo que o operador do direito exerce um contínuo exercício de interpretação, é chocante, inclusive sob o prisma pragmático, que se possa imaginar o ensino reduzido à descrição do mero ato operativo do direito. Já seria ruim que o conhecimento que informa a interpretação fosse enciclopédico ou dicionarizado, e não aberto e crítico. Porém, “provavelmente não existem mais juristas que tenham um conhecimento enciclopédico de seu direito nacional, nem de suas práticas ou instituições. Mais sério ainda, a instrumentalização recente da formação jurídica produziu uma geração de advogados que sabem menos sobre a história, os fundamentos sociais, políticos ou econômicos de sua tradição jurídica que os comparatistas que o estudam no exterior, que se desculpam por sua subjetividade”, Daniel Jutras, “Énoncer l’indisible: le droit entre langues et traditions”, Revue internationale de droit comparé, Ano 52, Nº 4, outubro-dezembro de 2000, p. 788.

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trabalhos escritos, reduzindo o conteúdo da disciplina às regras que

emanam da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou

congêneres institucionais, corrobora a ojeriza que soem merecer as aulas de

Metodologia. É desolador testemunhar a ação de um profissional que

“ensina” qual a palavra a colocar em negrito ou itálico numa referência

bibliográfica, ou anima vigorosos debates sobre quantos centímetros deve

ter o tamanho da margem, quando uma citação longa é inserida no corpo de

um texto. Que desgosto o de ver burocratas do ensino, quase militarizados,

tomarem de assalto as disciplinas de Metodologia!

Clara está a importância de que a expressão formal da produção

acadêmica seja padronizada, sobretudo para facilitar sua compreensão e

difusão. Também é evidente que muitos alunos chegam semi-alfabetizados

aos bancos das Faculdades, e que seus trabalhos escritos podem estar tão

distantes do rigor quanto do asseio. Mas a função da disciplina de

Metodologia é atacar problemas anteriores, dos quais a confusão e o

desgrenho formais são apenas conseqüências.

Despertar a consciência, ordenar o pensamento sem aprisiona-lo, exercitar o raciocínio, encontrar e triar a informação, desenvolver o senso crítico, identificar metas, assimilar diferentes métodos, potencializar a ação, sustentar a diversidade de enfoques e de opiniões, produzir conhecimento, estes são os desafios metodológicos.

Trata-se não tanto do ensino de determinados métodos mas,

sobretudo, do desenvolvimento da aptidão para aplicar, e mais adiante adaptar ou até criar métodos que servem ao pensamento e à ação.

Por tudo isto, este artigo pretende apresentar a disciplina de

Metodologia no currículo dos Cursos de Direito como utensílio fundamental a

todas as demais disciplinas, e igualmente à futura atividade profissional,

quando da inserção do aluno no mercado de trabalho.

Rompe-se o automatismo da atividade de ensino e, em particular, de

avaliação, concebendo a Metodologia como um leque de modos de realizar

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uma pretensão prévia e precisamente definida, e se humaniza uma prática

discente que se vem reduzindo a mecânico consumo9.

Assim, ao não ensinar o aluno a mobilizar sua razão conforme seus

objetivos, um Curso de Direito deixa de cumprir uma incontestável

obrigação: ainda que se pretenda, equivocadamente, uma mera

transmissora do conhecimento técnico, uma escola jurídica necessita

despertar no aluno a consciência das próprias metas e o domínio da vontade

(I) para, a seguir, torná-lo capaz de escolher ou forjar seus próprios

caminhos (II).

I – DO DIREITO AO QUERER SER

Passando a tropa em revista, Carlos Magno depara-se com uma

reluzente armadura branca. Uma voz a ele se apresenta como Agilulfo, o

cavaleiro inexistente. O imperador ordena ao cavaleiro que erga a viseira,

constata que o elmo está vazio e, estupefato, pergunta:

“ – E como é que está servindo, se não existe?

– Com força de vontade – respondeu Agilulfo – e fé em nossa santa causa!

– Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o próprio dever. Bom, para alguém que não existe, está em excelente forma ! ”

De todo modo, Agilulfo era o último da fila e o imperador, “já velho,

tendia a eliminar da mente as questões complicadas”10.

A adorável metáfora de Calvino, extraída de um romance que narra as

agruras de batalhar sem existir, pode servir como introdução ao âmbito do

9 O automatismo é justamente o elemento que permite diferenciar o homem: “radical [...] é a diferença entre a consciência do animal, mesmo o mais inteligente, e a consciência humana. Pois a consciência corresponde exatamente ao poder de escolha do qual dispõe o ser vivo; ela é co-extensiva à margem de ação possível que cerca a ação real: consciência é sinônimo de invenção e de liberdade. Ora, no animal, a invenção nunca passa de uma variação sobre o tema da rotina. Limitado pelos hábitos da espécie, ele chegará sem dúvida a alargá-los por sua iniciativa individual; mas ele não escapa ao automatismo que por um instante, somente o tempo de criar um novo automatismo: as portas da sua prisão se fecham tão logo abertas; tentando romper suas correntes, ele consegue apenas estendê-las. No homem, a consciência rebenta as correntes. No homem, e apenas no homem, ela se liberta”, Henri Bergson, L’évolution créatrice, Paris: P.U.F., 1959, p. 178 – edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível em <www.uqac.uquebec.ca>. 10 Ítalo Calvino, O cavaleiro inexistente, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 10.

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querer na aprendizagem, processo que a ciência já provou ser

eminentemente volitivo, portanto, vinculado ao anseio, à disposição e ao

apetite.

Ora, disciplinas sem vontade são armaduras vazias, assim como a

vontade desarmada está fadada à inoperância. Mas a sociedade

escolarizada, a exemplo do velho imperador, segue eliminando da mente as

questões complicadas e sofrendo as conseqüências de seu autismo.

Que o aluno queira e saiba o que quer, resulta de uma nova vontade,

senão negação, ao menos evolução da anterior (1). Este processo culmina

necessariamente com a revalorização do saber como utensílio social,

produzida graças à vitalidade do processo educativo (2).

1. Construir a vontade

Não há clichê mais vergonhoso, no ambiente escolar, do que falar de

paixão na aprendizagem. A tal ponto se difundiu o discurso fácil do prazer de

aprender, que numerosas instituições se tornaram escravas do pretenso

desejo do aluno, reféns do experimentalismo e de atividades lúdicas.

Neste caso, baseada em meritórias teorias pedagógicas, é a escola

que se enquadra ao aluno, e não o aluno que se enquadra à escola. A fôrma

se molda, então, à massa. Os abetumados que saem deste forno põem em

questão, de modo recorrente, a efetiva funcionalidade do sistema escolar.

Entre formação e regurgitação, a pedagogia se rebaixa ao senso

comum para atrair e cativar o aluno, e adere, então, a uma cultura cujo

patrão é o gozo11. Ora, se não há mais dúvidas de que aprender depende de

uma decisão, que depende, por sua vez, da vontade, a paixão não é nada

mais do que o móvel que pode levar a esta decisão e à sua constância,

assim como ao extremo oposto.

11 Embora o gozo seja normalmente associado ao prazer sexual, aquele se encontra além deste. A palavra pode ser usada para designar a repetição de um comportamento desprovida da consciência de porquê fazê-lo, Charles Melman, O Homem sem Gravidade – Gozar a qualquer preço, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003, p. 204. Há, ainda, a absoluta necessidade de exposição, para além do gozo: “não é mais possível hoje abrir uma revista, admirar personagens ou heróis de nossa sociedade sem que eles estejam marcados pelo estado específico de uma exibição do gozo”, ibid., p. 16.

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Aqui há ao menos três problemas práticos e um grave equívoco de

fundo. No cotidiano, um efeito de saturação opera sobre o estudante,

causado pela descartabilidade sistêmica das rotinas que consome12. A

superficialidade de educadores apaixonados e apaixonantes (libertários pela

metade) desgasta o princípio do uso pedagógico do desejo, ao associá-lo ao

romantismo e à ineficácia. Há até mesmo uma ideologia do espetáculo para

enfrentar o dilúvio de informações, o frenesi de comunicação e a aceleração

do ritmo de vida contemporâneo, em detrimento da função precípua da

educação: a construção do pensamento e do sentimento13.

Particularmente em relação ao professor, há inquietantes percentuais

de profissionais acometidos pelo burnout (consumir-se em chamas)14. Trata-

se de um risco ocupacional a que estão expostas especialmente as pessoas

que trabalham em profissões que exigem contatos interpessoais muito

intensos. O burnout erige-se sobre expectativas elevadas e não realizadas,

sobretudo quando o professor teve um engajamento muito forte no início. A

falta de reconhecimento provoca a erosão gradual da energia e da

disposição, como conseqüência de um stress crônico e prolongado.

Do ponto de vista dos alunos, opera o equívoco de valorar um desejo

apenas porque é desejo, reproduzindo uma visão mítica do sentimento (ou

mesmo do prazer), já destroçada, senão pela psicanálise, pela

12 Tal efeito pode ser associado à toxicomania: “o sujeito se encontra num estado de dependência da ativação, buscada por si só. A cessação desta ativação inapropriada provoca uma falta. Os jovens se comportam como toxicômanos da agitação, da violência e da perda do vínculo social. Ao mesmo tempo, produz-se, como nos mecanismos de dependência toxicômana, uma hipersensibilidade dos receptores de dopamina. Quando um neurotransmissor é secretado, ele precisa encontrar receptores para agir sobre as células-alvo. Quando uma fonte de neurotransmissor se exaure, os receptores ampliam sua resposta, multiplicam-se e se sensibilizam para tentar compensar o déficit. O mínimo estímulo exógeno provoca, então, seja qual for seu interesse, uma reação inapropriada, uma agitação, uma turbulência ligada à hiper-sensibilização do sistema”, Jean-Didier Vincent, “Les neurones de l’ennui”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 16-17. 13 “Os pedagogos devem desconfiar da agitação ou da sedução, que não despertam o aluno. O estudo é o teste da paciência, que corresponde à transferência da brutalidade instintiva em direção do espírito, afastando a alienação do ódio”, Jacques Birouste, “L’ennui plutôt que la haine”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 53. A seguir, o autor pondera que o sucesso, junto a alunos a quem faltam modelos de identificação com os professores e vias confiáveis para ter acesso a um futuro promissor, só pode ser obtido quando se favorece “a volta da confiança nas aptidões intelectuais e sentimentais”, ibid., p. 56. 14 Marilda Lipp et al., O stress do professor, Campinas: Papirus, 2002, p. 65.

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neurobiologia15. As ações cotidianas se inspiram muito menos de

sentimentos próprios, que são infinitamente móveis, do que das imagens

invariáveis às quais estes sentimentos aderem16. Não somente a

assimilação de padrões sentimentais pela cultura, como o poder do indivíduo

sobre si mesmo são aqui negligenciados17.

Logo, a exaltação ao desejo minimiza não somente o fato de que ele

pode ser escuso, brutal ou frívolo, mas também negligencia a escravidão

moderna: quando não é o sujeito que guia seus desejos, e sim os desejos

que guiam o sujeito, exclui-se a possibilidade de projeto, em particular de um

urgente projeto de mudança social com o qual toda atividade educativa, se

civilizatória, deve estaria engajada. Com efeito, o desejar adulto deve ser um

trabalho18.

É bem verdade que, ao educar, o espontaneísmo pode ser menos

danoso que a arbitrariedade19, mas que futuro se pode esperar de

15 “Nossa percepção atual de núcleos e de circuitos nos quais as informações neuronais são tratadas, abre numerosas hipóteses de trabalho que permitem considerar a existência de mecanismos conscientes e voluntários que utilizariam a supressão, a racionalização ou a reavaliação de dados para modificar as informações correspondentes”, Lucy Vincent, Petits arrangements avec l’amour, Paris: Odile Jacob, 2005, p. 31. Nesta obra de alta vulgarização, a autora descreve detalhadamente o processo cerebral de transformação do enamoramento em vínculo afetivo estável. A narração de experiências acompanhadas pelo estudo de imagens cerebrais indica claramente que “a emoção pode ser modulada por uma decisão consciente”, em especial por meio de um esforço de concentração que cria ou suprime circuitos entre os neurônios, e aumenta ou reduz a presença de substâncias vinculadas ao prazer, como, por exemplo, a ocitocina, ibid., p. 34-36. 16 Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris: P.U.F., 1970, p. 77. 17 Ora, até o orgasmo é o efeito de uma decisão, seja ela consciente ou não, Catherine Millet, La vie sexuelle de Catherine M., série Points, Paris: Seuil, 2002, p. 206. Com efeito, Millet evoca a dimensão consciente do prazer e seus limites: “durante grande parte de minha vida, tive relações sexuais com total indeterminação do prazer. Em primeiro lugar, devo admitir que, para mim, que tive muitos parceiros, nenhuma solução é mais adequada que a que procuro solitariamente. Neste exercício, controlo a ascensão do meu prazer quase em milésimos de segundos, o que não é possível quando é preciso levar em conta o ritmo do outro e que dependo também dos seus gestos, não apenas dos meus. Esboço minha história”, idem, p. 206. A imaginação permite modificar os cenários e os atores, corrigindo os rumos da excitação, pelo que “o prazer solitário é possível de narrar, o prazer obtido na união é mais difícil. (...) O contrário de uma anestesia local que suprime a sensibilidade mas permite manter o espírito acordado; meu corpo não é nada mais do que a borda de um dilaceramento vivo, enquanto a consciência fica num estado de entorpecimento”, p. 210-1. 18 Recorrendo à analogia com o amor, Alice Ferney pensa que “amar é um trabalho! Quero dizer: uma ação, uma vontade, uma prestação.[...] Amar também é uma decisão”, in Dominique Simonnet et al., Historia del Amor, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2004, p. 158. 19 Sem esquecer que “a espontaneidade não está relacionada ao objeto, mas à imagem do objeto, na qual a consciência pode muito bem ter uma participação criadora. Receptividade

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profissionais formados a partir de seus desejos adolescentes, por sua vez

forjados, em geral, numa cultura da barbárie?20

Chega-se ao problema de fundo, que é, desafortunadamente,

peremptório: estruturar a aprendizagem sobre as regras do jogo de um

desejo pré-existente significa que a escola reproduzirá a cultura que inspira

este jogo, quando, na verdade, a escola deveria questiona-la e oferecer

algo, senão em troca, a mais. O que está em questão é “a relação entre a

nossa cultura e o trabalho de pensamento. É um problema de civilização e, a

seguir, um problema político no melhor sentido do termo”21.

Não é menor, por sua vez, o problema da auto-referência: o sujeito

tende a aderir apenas ao que ele já conhece, ou o que já faz parte do seu

ambiente22. Ao buscar o prazer do aluno, numa associação aventureira entre

educação e entretenimento, o professor pode ser forçado a legitimar, no

espaço educativo, idéias e práticas importadas de uma realidade cuja

reprodução não corresponde aos valores humanistas aos quais deve servir

um educador.

com respeito ao objeto e espontaneidade com respeito à imagem do objeto no sujeito podem perfeitamente coexistir”, Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 21. 20 De regra, neste ponto, objeta-se a imutabilidade do caráter do indivíduo. Para Bergson, porém, nosso caráter não é algo dado, senão a nossa própria evolução, em cada uma de suas etapas, sobretudo em seus momentos mais intensos, que são os momentos de crise. O autor considera vã a oposição entre o eu que sente e pensa, e o eu que age, e pueril a conclusão de que um pode “pesar” mais do que o outro. O caráter é, portanto, livre, e por isto há, entre nós mesmos e nossos atos realmente livres, “esta indefinível semelhança que encontramos às vezes entre a obra e o artista”, Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris: P.U.F., 1970, p. 129-130. 21 Alain Vaillant, “L’écrivain ou le sublime potache”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 45. No mesmo sentido, o neurologista Antonio Damasio pondera: “aquilo que chamamos de relações sociais ou cultura vem apenas de nossos cérebros. São os cérebros que produzem e veiculam comportamentos, romances, poemas e leis. De uma certa maneira, pode-se ver as regras sociais e éticas, as instituições como prolongamentos da busca de equilíbrio que a evolução conduziu”, in “Oui, il y a une biologie des sentiments”, L’Express, Paris, 7 de junho de 2004, p. 4. 22 Experiências com o uso de multimídia nas atividades de ensino, por exemplo, revelam que o caráter mais ou menos explícito de títulos ou conceitos influi na escolha de uma ferramenta pelos alunos: “nossos resultados reforçam a hipótese da dimensão autônoma e cultural da atividade de utilizador de um sistema multimídia, no sentido de que o ator estabelece uma relação assimétrica com o ambiente, agindo apenas com as características pertinentes para sua organização interna, fazendo referência a sua situação cultural individual e coletiva”, Serge Leblanc et al., “Autoréférence et exploitation opportuniste d’un environnement hypermedia ‘ouvert’: étude de l’activité d’utilisateurs”, Savoirs – Revue internationale de recherches en éducation et formation des adultes, 2004-6, Paris: L’Harmattan, p. 96.

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Por isto, ter em conta as expectativas dos alunos não significa pautar-

se por elas, tampouco tê-las como adversárias. É preciso ensiná-los a

desejar o que antes não desejavam: não somente o prazer imediato, mas

também o esforço; além do far niente, o trabalho; o espetáculo, mas

igualmente o exercício; nem sempre uma felicidade feita, às vezes a por

fazer – não para criar um desejo, mas para guiar uma vontade; não para

seduzir, mas para instruir23.

Ensinar, portanto, não impõe necessariamente negar, mas despertar

e ordenar (no sentido de pôr em ordem) desejos contingentes24 em benefício

de um querer ser, não raro pendente entre os alunos, ainda que

pretensamente adultos.

Melhor, então, trabalhar paixões desmistificadas, tomadas em sua

condição de vínculo social, tendo em conta a existência de diferentes

desejos: libido dominandi (desejo de dominação), libido sciendi (desejo de

saber) ou libido sentiendi (desejo sexual). Ainda que a fronteira entre os três

tipos de desejo seja tênue, o que interessa agora é manusear o desejo de

saber, com o qual nasce todo o ser humano, e é embotado ao longo das

diferentes etapas de sua formação.

Para tanto, é preciso superar a insistência, tanto a leiga como a

acadêmica, em perceber a paixão como algo alheio, senão oposto à razão25.

A paixão depende necessariamente de alguma forma de razão para

elaborar-se como tal. Isto não significa que o sujeito tenha consciência do

seu próprio desejo: dominar a paixão (não no sentido de reprimi-la, e sim de

23 André Comte-Sponville, “Philosophie de l’ennui”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 108-109. 24 Aqui se pode recorrer novamente à analogia entre o amor e o desejo: “o amor não é democrático, não responde à justiça nem ao mérito. Segue sendo da ordem da preferência, vale dizer, da escolha indevida de um ser em detrimento de outro”, Pascal Bruckner, in Dominique Simonnet et al., Historia del Amor , Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2004, p. 148. 25 Já em Rousseau, “o entendimento deve muito às paixões, que lhe devem muito também: é por sua atividade que nossa razão se aperfeiçoa; nós buscamos conhecer apenas porque nós desejamos gozar, e não é possível conceber porque aquele que não tivesse desejo nem medo se daria ao trabalho de pensar”, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, Paris: Gallimard, 1995, p. 87. Para uma visão contemporânea do problema, ver o instigante trabalho de Antonio Damasio sobre a integração dos dois “mundos” que são a paixão e a razão, L’erreur de Descartes, Poche nº 40, Paris: Odile Jacob, 2001.

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ter o domínio de, ser apto a conduzi-la) depende da racionalização, ou seja,

da maneira como a razão é mobilizada26.

Neste momento, cabe tratar do pensamento como tomada de

consciência e possibilidade de julgamento da própria vontade que tende à

ação. Ao explicar as razões que a levaram a redigir sua última e inacabada

obra, na qual se debruça sobre as atividades do espírito, Hannah Arendt

conta que a idéia surgiu ao assistir o processo contra Eichmann, em

Jerusalém. Acusado de haver praticado atos monstruosos, ele não

demonstrava fortes convicções ideológicas, nem motivações malignas, mas

sim uma evidente falta de pensamento (o que não significa estupidez):

“A única diferença entre Eichmann e o resto da humanidade era que ele a ignorava totalmente. Esta ausência de pensamento – tão corrente na vida de todo dia, na qual dificilmente se tem tempo e ainda menos vontade, de parar para pensar – que despertou meu interesse. O mal (tanto por omissão como por ação) é possível quando faltam não somente os ‘motivos repreensíveis’ (conforme a terminologia legal) mas também os motivos, simplesmente, o mínimo movimento de interesse ou de vontade? ...

... a atividade de pensar, por si só, o hábito de examinar tudo o que vem a produzir-se ou chama a atenção, sem prejulgar seu conteúdo específico ou suas conseqüências, esta atividade faz, então, parte das condições que levam o homem a evitar o mal e mesmo o condicionam negativamente em relação a ele?”27.

Assim, desenvolver no aluno o hábito de pensar criticamente sobre o

que faz ou deixa de fazer é, numa perspectiva coletiva, também um

imperativo ético. Entre suas fontes mais daninhas da incompreensão, estão

o erro de comunicação (imprecisão da linguagem ou interpretação

equívoca), a indiferença (cálculo mental que impede o reconhecimento do

dano causado ou da desgraça alheia), a crença (do simples falseamento do

intelecto por teorias religiosas ao fundamentalismo), o egocentrismo (em

26 Philippe Choulet, La passion, Paris: Ellipses, 2004, p. 19. O autor preconiza: “nada de desprezo pelo sentido forte de paixão, apesar das reservas. Mais vale ver esta potência com a lucidez do geômetra, para nela reconhecer a periculosidade (ameaça da servidão) ou as promessas (a criação de um mundo). E para fazer uma apologia racional das paixões, uma ‘defesa e ilustração’ submetida a certas condições, para tratar das ‘grandezas e misérias recorrentes’, é preciso, antes de mais nada, dizer que elas nada têm de diabólico”, ibid., p. 11. 27 Hannah Arendt, La vie de l’esprit, Paris: P.U.F., 2005, p. 21-22.

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particular, o auto-engano), a cegueira (o não querer ver cotidiano) e o medo

de compreender28.

Deixar-se conduzir pela paixão, em lugar de conduzi-la, constitui

historicamente uma das maiores fontes de incompreensão e, não raro, da

barbárie29. Conduzir requer antes compreender. Para Edgar Morin, o

trabalho de compreensão coloca o sujeito que tenta compreender em total

assimetria com aquele que não pode ou não quer compreender,

notadamente com o fanático que não compreende nada – e que

evidentemente não consegue compreender a razão pela qual os demais não

o compreendem.

É como se a compreensão comportasse um vício terrível, que

conduzisse à fraqueza e à abdicação. Mas “compreender não é justificar. A

compreensão não desculpa nem acusa. A compreensão favorece o

julgamento intelectual, mas não impede a condenação moral”; assim,

compreender “conduz, não à impossibilidade de julgar, mas à necessidade

de tornar complexo nosso julgamento”30.

Importa que, uma vez acionada a consciência, diante do desejo

genuíno ou pretensamente espontâneo, de uma parte, e da razão fundada

nas idéias (ou no senso comum), de outra parte, a vontade (o querer ser

algo) possa se rebelar e guiar a ação31. Agir sobre a paixão não significa,

28 Edgar Morin, La méthode 6 – Éthique, Paris: Seuil, 2004, p. 130-134. 29 “Salvar a paixão das paixões, é apostar em sua capacidade de chegar à grandeza e ao sublime. Nietzsche já dizia que somente a grande virtude poderia salvar a virtude das pequenas virtudes, e a grande política salvar a política das políticas nacionalistas e passionais. Escutemos, justamente, na voz dos filósofos e escritores, este chamado à disciplina dos espíritos, que nos dá as chaves do aumento do campo de consciência, e da verdadeira compreensão da liberdade como potência e realidade”, Philippe Choulet, La passion, Paris: Ellipses, 2004, p. 11. 30 Edgar Morin, La méthode 6 – Éthique, Paris: Seuil, 2004, p. 135-136. 31 A identificação da vontade como um terceiro em relação à razão e à paixão é de Hannah Arendt, La vie de l’esprit, Paris: P.U.F., 2005, p. 273. O texto original de Bergson, no qual ela se baseia mas não cita diretamente, é instigante: “nos auto-interrogando escrupulosamente, nós veremos que nos ocorre de pesar motivos, deliberar, quando, na verdade, nossa decisão já foi tomada. Uma voz interior, quase imperceptível, murmura: ‘por que esta deliberação?’ tu sabes qual será o resultado, e tu sabes bem o que tu vais fazer’. Não importa! Parece que nos tentamos preservar o princípio do mecanicismo e a obedecer as leis da associação de idéias. A intervenção brusca da vontade é como um golpe de Estado do qual nossa inteligência teria o pressentimento, e que ela legitima antecipadamente por uma deliberação regular. É verdade, porém, que se pode perguntar se a vontade, ainda que ela queira por querer, não obedece a alguma razão decisiva, e se

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porém, sufocá-la, mas sim dominá-la antes de ser sua vítima, o que supõe

uma educação da vontade.

Por conseguinte, o primeiro ensinamento a transmitir ao aluno é que o desejo ou a falta de desejo de aprender está diretamente ligado aos desafios de ser mais ou de ser menos, porque a atividade que leva ao

conhecimento não é desejável em si: ela se faz desejar somente por aqueles

que nela vêem uma maneira de existir, presente ou futura32. Neste sentido, é

preciso transformar em quadrado o tradicional triângulo aluno, professor e

instituição, adicionando a realidade como elemento incontornável da

aprendizagem.

2. Dominar o tédio

Quando se fala em incorporar a realidade às técnicas de ensino, não

se trata, de modo algum, de manusear elementos reais como

entretenimento. É preciso considerar que a chamada realidade não é jamais

uma realidade “em si”, mas o resultado de uma visão organizada que impõe

necessariamente uma interpretação33.

No âmbito deste artigo, a palavra realidade não tem um valor positivo

em si. Bem ao contrário, empregada em seu sentido vulgar de movimento do

mundo, constitui um universo a ser enfrentado e mudado. O importante,

aqui, é a correspondência entre o discurso e a realidade, evitando o desuso

do conhecimento, também responsável pelo desgaste do saber como valor,

em benefício do contínuo crescimento do pragmatismo vazio que congela as

estruturas do pensamento e da ação.

Portanto, toda instituição produz uma secreção de tédio ao mecanizar

seus procedimentos e ao se tornar indiferente à diversidade do real; o

professor, por sua vez, antes de se confrontar com seus alunos, deve se

querer por querer seria querer livremente”, Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris: P.U.F., 1970, p. 71-72. 32 François Flahault, “Sentiment d’exister et rapport au savoir”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 59-60. 33 Gerard Fourez et al., Nos savoirs sur nos savoirs – Um lexique d’épistemologie pour l’enseignement, Bruxelas: De Boeck, 1997, p. 45.

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confrontar consigo mesmo, e pensar que convicção, que paixão ele vai

compartilhar34.

É por isto que toda a aula, inclusive a de metodologia, deve

necessariamente incluir alguns minutos de esclarecimento sobre os objetivos

de formação que por meio dela devem ser alcançados, e sua aplicabilidade

futura. Trata-se de vincular o estudante a um projeto de existência e levá-

lo, pouco a pouco, a fixar objetivos claros a longo prazo, o que naturalmente

fará com que sua vida universitária se transforme em caminho, desejado e

escolhido.

Neste particular, o tempo desempenha um papel importante. Estudar

e aprender implica aceitar que surgirão dificuldades e fazer esforços para

superá-las. Raramente, o prazer é imediato: quase sempre ele é adiado, e a

aula não é mais do que seu instrumento35. Aqui aparece, como desafio, a

imensa heterogeneidade da composição das salas de aula, que impõe ao

professor uma geometria variável de ritmo.

A cadência é um desafio maior, porque o ambiente de aprendizagem

está em total defasagem com a cultura de excitação que caracteriza os

jovens, que constituem a ampla maioria dos alunos dos Cursos de Direito.

Ao menos de início, os professores estão longe de ser seus modelos. O

tédio pode ser um sinal de luta entre a obrigação de estar presente e a

vontade de fazer outras coisas, mas é igualmente o sinal de um conflito de

valores36. Amorfos ou ausentes, hiperativos ou quase intratáveis, os

adolescentes raramente buscam um modelo profissional. Normalmente,

freqüentam a Faculdade para cumprir seu papel familiar, para incrementar

ou buscar um sustento futuro.

A mecânica do tédio se instala exatamente graças ao tempo quase

espacial, imenso e que parece não passar nunca, que separa o presente do

futuro. Neste ponto, podem ser úteis os estudos do psicanalista François

34 Alain Vaillant, “L’écrivain ou le sublime potache”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 44-45. 35 Marie-Noëlle Audigier, “Le défi des manuels: rendre le programme attrayant”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 48. 36 Véronique Nahoum-Grappe, “L’ennui à l’adolescence”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 30.

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Roustang, tratados a seguir37. Quando o indivíduo se entedia, o tempo

parece longo. Sem conseguir prever claramente o fim da espera (porque o

tempo do relógio não é o seu próprio tempo), nem de fazer outra coisa

senão esperar este fim, o sujeito se deixa ganhar pela impaciência, que logo

se transforma em aversão (origem latina da palavra). E anseia pelo

momento de retomar uma atividade que o absorva, para que o tempo que o

persegue volte para dentro do relógio. Inversamente ao tempo, porém, o

espaço se retrai: o indivíduo não pode mover-se de onde está, restando

apenas “voar” para outros lugares e fazer de conta que está presente.

A reação ordinária do ser humano, agora inimigo do tempo e do

espaço, é fugir do tédio, em lugar de enfrentá-lo e empurrar suas paredes.

Para não deixar que o vazio se instale, os indivíduos se esvaem em

atividades. A cultura não oferece outros caminhos senão o trabalho e o

lazer. O que importa é não deixar que o tempo se alongue, e deixe à mostra

a condição humana, que é pura incerteza.

Por conseguinte, nada é mais humano do que o tédio38, e não se trata

de eliminá-lo, mas sim de dominá-lo. É preciso, então, que o tempo e o

espaço deixem de ser inimigos do indivíduo. Roustang propõe quatro

exercícios para tanto: a presença, a espera, a paciência e a potência.

A presença parece natural, mas na verdade se aprende e se

desenvolve, mescla concentração em si e esquecimento do alheio. É uma

resistência à distração, à fuga e à angústia; uma luta para concentrar a

atenção no próprio corpo e no ambiente onde se está. A espera requer a

renúncia às questões quando e como o exercício vai terminar. A paciência é

a sensibilidade à alteração das nuanças do espaço e do tempo, uma tensão

37 “Reconduire l’ennui à sa source”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 21-28. Ver igualmente La fin de la plainte, Paris: Odile Jacob, 2000. 38 Divergindo da famosa citação de Balzac, de que o tédio nasceu na universidade, que já soube e ainda saberá fazê-la florescer e frutificar, Honoré de Balzac, La Comédie humanie, I – I – 4, Un début dans la vie, Paris: Furne, 1845, p. 477 – edição eletrônica (texto integral) disponível em <www.paris.fr/musees/balzac/furne/presentation.htm>. Entre abundantes exemplos de mestres da literatura implacáveis com os estudos, há Flaubert: “eis-me de saco cheio na aula, às 6 horas da manhã, sem ter o que fazer e tendo diante de mim a agradável perspectiva de mais quatro horas assim. (...) eu tenho o coração mais vazio do que uma bota. Eu não posso nem ler, nem escrever, nem pensar”, Carta à Ernest Chevalier, Rouen, 23 de julho de 1839, Gustave Flaubert, Correspondance, Paris: Gallimard, 2004, p. 40.

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em direção às bordas da impaciência. A consciência do tédio pode levar,

assim, ao coração e ao lugar da possibilidade, e transformar-se em potência:

o desperdício de energia próprio ao tédio é apto a converter-se em intensa

concentração. Em todos estes exercícios, a consciência do método – da

aula, do estudo, de pesquisa – é um aliado de peso.

Por outro lado, é bastante evidente que aluno adia a dor da evolução

como se o período da Faculdade fosse infinito39. É preciso resgatar, diante

do aluno, o vínculo entre a formação, como realidade presente, e o exercício

profissional, como realidade futura.

Neste sentido, causa estupor o autismo que leva milhares de

estudantes a pensar que a Faculdade é um fim em si mesmo. É como se a

presença física nas aulas, o recorta e cola de trabalhos graças à Internet, as

provas preparadas na véspera ou simplesmente coladas, não

sentenciassem de imediato seu pertencimento ao batalhão de não-

profissionais, ou seja, daqueles para quem o diploma em Direito nada

acrescentou, e seguem sobrevivendo graças à atividade que

desempenhavam anteriormente.

Há, porém, um contingente ainda mais curioso: o daqueles que,

depois de titulares de um diploma, resolvem formar-se. Aqui se encontram

os autodidatas e um vasto público de cursos preparatórios para concurso, ou

de cursos de atualização ou especialização. Via de regra, a consciência da

própria inaptidão profissional é despertada por uma experiência

desafortunada no mercado, ou pela simples constatação da impossibilidade

de inserir-se no mercado.

Este querer tardio é um sintoma importante da disfunção do sistema

educativo, de sua incapacidade de alinhar o querer imediato do aluno ao

39 Não se trata apenas de ingenuidade ou inexperiência, mas também de insegurança ou conservadorismo, porque a ilusão da falta de urgência justifica a acomodação. É como se nunca fosse tarde demais para agir. Ora, “todo totalitarismo se baseia numa noção de tempo infinito, de um tempo que se impõe como uma extrema duração. O tempo finito é a consciência de um início e de um fim, mas com a convicção de que é possível um constante renascimento, uma cadeia de inícios e começos. Esta experiência do tempo finito é uma experiência humana do tempo baseada na liberdade. Entendo aqui a liberdade como o poder de criação, como possibilidade de criar outras realidades além das existentes, como esperança de ruptura com as realidades anteriores”, Fernando Bárcena, “El aprendizaje de lo nuevo”, Revista Española de Pedagogía, Año LIX, No. 223, septiembre-diciembre 2002.

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futuro querido ou que se está por querer. É também conseqüência da

desvalorização do professor, do estudo e do pensamento como elementos

necessários ao projeto individual do aluno. Nada mais nocivo do que a visão

de que o estudo não importa, mas a realidade, sim, é que ensina.

Em primeiro lugar, diante da crescente complexidade técnica do

Direito e da própria vida, a realidade não é assimilável sem prévia formação.

A sabedoria popular pode ser relevante no plano dos valores, mas o

exercício profissional baseado no empirismo e na experiência, na melhor das

hipóteses, é incapaz de superar a realidade, quando, na verdade, grande

parte do trabalho do lidador do Direito consiste justamente em encontrar

maneiras de reinventar situações reais.

Em segundo lugar, mesmo que excepcionalmente o aluno inapto se

tenha ardilosamente adaptado à realidade, o caso é ainda mais grave: há

não somente o risco coletivo, de que, por inépcia, cause dano à sociedade,

mas o risco individual, de que conclua, ao final da vida, que serviu a um

querer que não era o dele.

A metodologia é, assim, um utensílio valioso para exercitar

constantemente a definição consciente de objetivos, capazes de guiar o

desejo do aluno e de reiterar o escopo de cada atividade acadêmica, tendo

como pano de fundo a redefinição de seus modelos e valores, essencial à

formação. Uma vez estabelecidos os objetivos, é preciso enfrentar o

problema da diversidade de meios para alcançá-los.

II – DIFERENTES MÉTODOS PARA DIFERENTES DIREITOS

José Mujica, hoje Ministro de Estado, um dos nove reféns da ditadura

militar uruguaia, passou treze anos preso num poço, de onde era retirado

periodicamente para ser torturado. Quando foi libertado, em março de 1985,

assim expressou a divergências existentes no seio da força política à qual

pertencia.

“Há certas questões de método que salpicam a pureza da nossa causa. Devemos ter claro que as diferenças entre a família

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tupamara podem ser muito grandes, mas não o suficiente para que não o tenhamos claro e definido. [...] as discrepâncias são boas, ajudam a definir caminhos”40.

Homem do povo, que nunca freqüentou bancos universitários, Mujica

oferece um exemplo emblemático de associação entre método, diferença e

caminho. De suas palavras desprovidas de rigor formal, se pode reter

algumas idéias de rigor moral: o conteúdo valorativo que existe cada método

(que pode eventualmente comprometer a pureza de uma causa); a

importância, não da medida da discordância, mas da consciência de que ela

existe; e a valoração positiva da divergência, numa perspectiva evolutiva.

Ditas idéias deveriam ser moeda corrente na universidade, mas quase

nunca o são. A divergência rapidamente se transforma em confronto, senão

em guerra de facções. As teorias se esgotam justamente porque se fecham,

refutam tudo que as contraria e com isto não se atualizam. No cotidiano do

ensino jurídico, porém, as divergências são pasteurizadas (entre correntes

doutrinárias ou jurisprudenciais, por exemplo) e os caminhos se oferecem

prontos.

A disciplina de metodologia deve ser percebida, antes de tudo, como

o modo de aprender direito – no sentido de apreender, refletir, tornar-se apto

a aplicar o apreendido num contexto real e, para alguns, transcender o

apreendido e inovar. Uma das razões que levam o aluno à compilação e à

memorização é justamente o medo de encontrar algo diferente ao escolher

um novo caminho (1). Quando ele está decidido, porém, a aprender, há um

conjunto de medidas que permitem pensar a ação e escolher o(s) método(s)

capazes de tornar mais útil a atividade empreendida (2).

1. Vencer o medo

A liberdade é muito mais difícil de gerir do que a submissão. Quando

surge um desafio, vem com ele a tentação de buscar refúgio em algum

objeto que supra, o mais rápido possível, um desejo que este mesmo objeto,

e não o sujeito, suscitou. No mundo escolar, aqui encontramos os temas

40 Apud María Ester Giglio, De tupamaro a ministro (El loco encanto de la sensatez), Buenos Aires: Capital Intelectual, 2005, p. 9-10.

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batidos, a cultura dos manuais didáticos (num universo que se resume ao

patético “para Fulano, para Beltrano”), os enfoques clássicos e as resenhas

intermináveis.

Há também os arremedos de ciência: os lamentáveis projetos

artificiais, que aplicam modelos de manuais de metodologia, quase sempre

elaborados por especialistas em ciências exatas ou ciências sociais outras, e

depois de mastigados, resultam em grotescos esboços de hipótese,

problema, marco teórico e, horror supremo, metodologia.

Uma das grandezas da escola é justamente a de se opor

vigorosamente à tendência de mimetismo descomprometido, mostrando que

o fazer é acessível, que as dificuldades podem ser superadas e que os

problemas se resolvem. É preciso ter claro que “o saber é modesto, mas

real, ele não determina a ação, mas ele pode guiá-la e a autonomia não se

confunde com o autismo”41.

Em outras palavras, se uma atividade é proposta ao aluno (seja de

ensino, pesquisa ou extensão), que a ela dedicará seu tempo, por que não

enfrentá-la realmente, e dela não tirar um efetivo proveito?

A primeira coragem necessária é a de abordar cada tema ou situação

para entendê-lo, renunciando a simplesmente repetir enunciados pré-

existentes. Neste sentido, há três aptidões básicas a desenvolver: o espírito

de análise, o espírito de síntese e o espírito crítico42.

O espírito de análise requer a habilidade de “decompor”

mentalmente o objeto, estudando-o “de longe” e “de perto”. Em se tratando

de um texto, primeiramente se promove um olhar global, depois frase a

frase, palavra a palavra. Numa situação, há que perceber o conjunto e, logo,

cada um de seus elementos. Para um enfoque jurídico, é preciso apreciar o

objeto em seu contexto geral (histórico, econômico, social, etc.) e a seguir

buscar todos os problemas jurídicos que ele pode suscitar.

41 Françoise Hatchuel, Savoir, apprendre, transmettre – Une approche psychanalytique du rapport au savoir, Paris: La Découverte, 2005, p. 142. 42 O fio do raciocínio desenvolvido sobre os três espíritos se deve a Marie-Anne Cohendet, Méthodes de travail, Paris: Montchrestien, 1998, p. 37-42.

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Paralelamente, é imperioso adquirir o espírito de síntese. Ele pode

ser definido como a aptidão a reagrupar os elementos esparsos que se

encontram em torno de uma idéia ou situação. Requer o procedimento

inverso ao seguido na análise. Não se trata de dissecar uma idéia em

diversos elementos, mas de reunir numerosos elementos em torno de uma

idéia.

A síntese é determinada pelo tempo ou pelo espaço de que dispõe o

ator que a promove. O imenso exercício aqui é o de encontrar o que há de

relevante no objeto apreciado. Descartar o inútil ou o secundário requer a

capacidade de encontrar o principal, que por sua vez só existe caso a caso.

A tentação aqui é a de repetir enunciados inteiros ou concentrar-se nos

aspectos que se conhece melhor, ou ainda de aprofundar-se demasiado em

algum ponto interessante, fazendo com que a árvore esconda a floresta (no

caso, um panorama breve e correto da floresta).

No entanto, o objeto da reflexão jurídica é precisamente demonstrar

uma idéia essencial que permita compreender um fenômeno complexo.

Raramente é possível ou desejável dizer tudo. É preciso aprender a triar o

que é importante e o que é acessório. Trata-se de encontrar o elemento

fundamental, decisivo, a chave. Do poder de síntese depende em grande

parte a qualidade do trabalho do operador do direito.

Quanto ao espírito crítico, ao contrário do uso vulgar da palavra, não

se trata de formular julgamentos de valor, tampouco comentários negativos

ou infundados. Consiste na disposição de tomar um recuo em relação ao

objeto, a pôr em questão as aparências, as “evidências” e as idéias feitas. O

interrogar-se em permanência é típico do jurista, porque a melhor solução

não pode ser encontrada se a questão proposta não foi bem compreendida.

Por conseguinte, o senso crítico deve preceder a própria análise do

objeto: opera já em sua escolha, quando esta é possível, e orienta a própria

análise. Ele exclui a ação meramente descritiva, a pura repetição do que se

está vendo ou do que se leu.

Exercer o senso crítico permite, assim, avaliar a coerência dos

argumentos, a compatibilidade entre marcos regulatórios, e entre estes e

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dadas condutas. Permite igualmente levar em conta as repercussões da

problemática e das eventuais soluções a ela atribuídas (ou a ausência de

soluções) sobre a vida social. É o caso dos efeitos perversos de

determinadas normas, ou a inaptidão à efetividade de certas medidas

judiciais.

Entretanto, o que é enunciado deve ser fundado sobre um raciocínio

preciso, rigoroso e franco. A franqueza não exclui nem a polidez nem a

prudência. Se o trabalho do jurista não é uma simples lista de

conhecimentos sobre um objeto, tampouco é um panfleto para defender ou

atacar dada posição. Há uma imensa diferença entre afirmar, por exemplo,

que uma norma é “ruim” (juízo valorativo), ou que ela é inconstitucional ou

colide com norma de mesma hierarquia (controle de legalidade), ou que ela

será de difícil aplicação (apreciação sobre a efetividade), que ela não é

desejada pela sociedade (consideração sobre a legitimidade), etc.

O jurista deve estar comprometido com seus princípios, não aferrado

a suas idéias. A própria sobrevivência e atualização de seus valores

depende da atualização e do questionamento permanentes.

O espírito crítico requer, ainda, a curiosidade e a coragem. A

curiosidade depende da abertura de espírito e do tino para encontrar novos

temas e novos enfoques43. Mas a coragem é essencial: é muito mais

perigoso pôr em causa as idéias batidas do que seguir os caminhos já

calcados pelas pegadas dos outros. O maior perigo não é o externo mas,

como sói ocorrer, o interno, porque o espírito crítico requer o esforço

constante de esquecer suas opiniões pré-existentes e de ser o mais

objetivo44 possível, para re-fundar sua convicção depois de cada análise.

43 A curiosidade é precisamente uma das características naturais mais embotadas pelo ensino, quando na verdade é das mais humanas: “nossa alma é feita para pensar, quer dizer para perceber: ora, um tal ser deve ter curiosidade; pois como todas as coisas estão numa cadeia onde cada idéia precede uma e segue outra, não se pode jamais ter uma coisa sem desejar outra; e se não temos desejo por esta, não teremos nenhum prazer com aquela”, Montesquieu, Essai sur le goût ou réflexions sur les causes du plaisir, 1757, item III, edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível em <www.bmlisieux.com>. 44 Sob o prisma positivista, a subjetividade opõe-se à objetividade. Um discurso seria subjetivo quando um indivíduo ou uma coletividade o influenciou. Seria objetivo quando reflete o mundo “tal como ele é”. Diferentemente, para o construtivismo, todo o discurso é marcado pelas intenções do sujeito que o estrutura: objetividade (respeito a critérios estabelecidos previamente) e subjetividade (percepção individual ou coletiva) são

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Quando se fala da metodologia a adotar no âmbito de uma atividade,

em particular de pesquisa, geralmente as duas estrelas dos projetos

elaborados pelos alunos são o método dedutivo e o método indutivo. A

maioria dos alunos não tem idéia, visivelmente, do que se trata, e aqui uma

vez mais pode ser útil buscar no reconhecimento da banalidade dos

raciocínios a compreensão do método.

A indução é uma operação mental no curso da qual o sujeito passa de

observações múltiplas ao enunciado de uma norma ou de um modelo (como

esquema, imagem ou discurso organizado que representa a complexidade

de uma situação abordada), que dá conta das referidas observações45.

Trata-se, então, de uma generalização, que passa do particular ao geral. A

questão aqui é de saber se é possível, partindo de observações específicas,

chegar a uma regra ou modelo que seria “provado” pelo que se observou.

Nos textos acadêmicos, a indução se expressa por frases do tipo “as

experiências provam que ...” ou “as estatísticas relevam que ...”. Um

elemento “real” ou “concreto” vem em socorro, então, da idéia enunciada. O

risco de generalizar o que é peculiar, e com isto falsear a percepção sobre a

realidade, é, porém, de monta. Os elementos da realidade jamais são

totalizantes. Mas o uso contemporâneo da indução se admite, desde que se

entenda que numerosos modelos podem dar conta de uma determinada

série de observações. Ou seja, de que o resultado do raciocínio indutivo não

é mais do que uma possibilidade, ao lado de muitas outras.

Quanto à dedução, presume a existência de um modelo ou

representação prévio de uma situação46. Raciocina-se mais sobre o modelo

do que sobre a situação real, e se examina quais as conseqüências que

podem dele decorrer. Assim, as normas ou propriedades de um objeto são

reconhecidas a partir de uma teoria que é aceita pelo sujeito que pensa.

Para comprovar a pertinência deste modelo, há que verificar se as

complementares, Gerard Fourez et al., Nos savoirs sur nos savoirs – Um lexique épistemologique pour l’enseignement, Bruxelas: De Boeck, 1997, p. 79-80. 45 Gerard Fourez et al., Nos savoirs sur nos savoirs – Um lexique épistemologique pour l’enseignement, Bruxelas: De Boeck, 1997, p. 59-60. 46 Gerard Fourez et al., Nos savoirs sur nos savoirs – Um lexique épistemologique pour l’enseignement, Bruxelas: De Boeck, 1997, p. 60-61.

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25

conseqüências dele deduzidas podem ser comprovadas pela

experimentação ou pela aferição da realidade.

Estes dois raciocínios são elementares e servem diariamente aos

indivíduos, escolarizados ou não. Eles estão diretamente relacionados à

manipulação da realidade ou, dito de outro modo, ao uso dos exemplos.

Durante uma intervenção oral, o uso de exemplos torna mais acessível e

mais vibrante o discurso que pretende veicular uma idéia ou propor uma

solução. É comum que o interlocutor passe da teoria à prática, numa atitude

dedutiva, e logo da prática à teoria, num gesto indutivo, como é o caso do

tripé clássico de observação, teorização e aplicação.

No âmbito de um projeto de pesquisa, contudo, a questão se

dimensiona do modo distinto. Declarar no projeto que o método a ser usado

será indutivo ou dedutivo implica dizer se o eixo do trabalho se estrutura em

torno da indução ou da dedução, sendo de todo irrelevante saber se, ao

longo da exposição dos argumentos, serão usados raciocínios indutivos ou

dedutivos (normalmente se usa os dois). Mas como identificar o eixo de uma

pesquisa ou da resposta a um caso prático?

Com efeito, a questão anterior à definição do método é a identificação

do problema, abandonado aqui o sentido pejorativo vulgarmente atribuído à

palavra. Árdua, porém, é a tarefa de conceituar um problema porque ele, por

natureza, aparece caso a caso47. Trata-se da identificação de uma aparente

47 Durante anos, usei a metáfora de Montezuma para explicar a problematização. Todavia, descrever como ele cravava a mão no peito de uma virgem para arrancar o seu coração, ainda batendo, em sacrifício ao Sol que pensava estar esfriando, não me parecia a maneira mais delicada de ensinar, embora a imagem contivesse elementos úteis como a coragem e a pulsação. Mais tarde, observando o processo de fabricação do conhaque, encontrei uma imagem mais sofisticada deste processo mental tão difícil de representar. A destilação é um método químico que separa os ingredientes puros de uma substância composta, graças ao manejo das distintas temperaturas de ebulição de seus componentes. O álcool é uma das muitas substâncias que resultam da fermentação do açúcar natural das frutas. O conhaque resulta da dupla destilação do vinho branco feito, com uvas colhidas na “região” francesa de Cognac (delimitada por um decreto que regula o direito ao uso do nome de conhaque, appelation d’origine). O alambique de cobre mantém a mesma forma há três séculos. O vinho não filtrado entra na caldeira e é levado à ebulição. Na parte superior da caldeira há uma cúpula (chapiteau) na qual esbarram e se acumulam os vapores alcoólicos. Dali eles deslizam por um tubo fino (col de cygne), até chegar a uma serpentina cuja refrigeração os transforma novamente em líquido (brouillis), sendo descartados o caldo que resta na caldeira, assim como os primeiros vapores (têtes, de elevado teor alcoólico) e os últimos (queues, de baixo teor). O brouillis é novamente lançado à caldeira para a segunda destilação (bonne chauffe), que comporta uma ainda mais criteriosa operação de “corte” por meio da temperatura, retendo apenas o “coração” dos vapores (também chamado de

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contradição que precisa ser superada, apta a gerar um esforço de

elucidação de um paradoxo, que se oponha a uma opinião superficial, ao

senso comum ou a um discurso dogmático sobre o objeto.

Assim, o problema diferencia-se do tema porque é este em

movimento. Se o objeto abordado é x, o problema será x em relação a y. Os

textos ou as falas que são ditas “não são problematizadas” constituem

justamente a mera descrição do objeto abordado, que conduz a repetições,

colagens ou opiniões infundadas.

Desnecessário dizer o quanto este exercício acadêmico é essencial

para a formação do profissional do Direito, cuja atividade consiste

essencialmente em identificar um problema, pesquisar nas fontes

pertinentes, pensar alternativas e soluções, e externa-las por escrito ou

oralmente.

Neste diapasão, a habilidade de formular problemas pertinentes,

capaz de consagrar uma carreira acadêmica, depende não somente do

exercício constante do raciocínio por meio do método, mas de uma cultura

geral disciplinadamente construída e atualizada, do domínio cirúrgico da

linguagem, da abertura de espírito fundada na humildade e de uma

vivacidade diante das urgências da realidade que somente o engajamento

oportuniza.

Entretanto, a dificuldade de encontrar um problema não raro se deve

mais a fugas que a obstáculos. No mundo do fácil, porque buscar o difícil?

Depurar uma situação até chegar a seu núcleo e problematiza-lo,

quase sempre leva o aluno a constatações nem sempre agradáveis sobre a

realidade, que desmistificam os saberes disciplinares que lhes são

transmitidos, pondo por terra tanto a visão totalizante do direito (eis que o

mundo real não cabe no mundo jurídico) como a crença no sistema político,

administrativo e judicial48.

“espírito” ou “alma”). Assim, formular um problema é forjar um caldo de teoria e prática do qual se retira apenas o coração, para depurá-lo e melhorá-lo graças a uma espécie de destilação mental. O método seria a técnica da destilação. 48 Para não referir os conflitos com o meio social e familiar que o questionamento de certos valores pode ocasionar e para os quais o professor deve estar preparado. A coragem de superar a matriz cultural originária e renovar o próprio espírito é, porém, uma das

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Pensar a vida abertamente, em particular nos temas complexos e

candentes que carecem da atenção do jurista, invoca desde logo a dúvida,

confronta com a impotência individual do sujeito e revela a necessidade de

operar no plano coletivo para obter soluções duradouras. Em outras

palavras, rompe com a ilusão de um possível “mundo próprio” e com a idéia

de que um projeto de felicidade pode se abster da dimensão coletiva49.

Aqui, as alternativas de abordagem teórica e de proposição de

soluções práticas flertam com a ideologia – neste caso, tomada como

discurso que se apresenta como uma representação adequada do mundo,

mais legitimador do que descritivo, que motiva pessoas e legitima práticas.

Ora, é evidente que o discurso científico possui uma dimensão ideológica,

mas ao precisar os critérios que o orientam, pode evitar o efeito de engano

ou dissimulação. Este é um imperativo ético não somente da ciência, mas do

pensamento.

Dupla, então, a coragem necessária: de enfrentar um tema pertinente

de forma inovadora, e de esclarecer antecipadamente os parâmetros

utilizados para tanto. Cabe ao professor reiterar este compromisso diante do

aluno, e pensar com ele, a cada atividade, a validade de seu método e os

limites de sua ação, porque a ética nunca está garantida: “ela não é um bem

do qual se é proprietário, ele deve regenerar-se incessantemente, porque o

que não se regenera, degenera”50.

características marcantes dos que buscam o saber: “todas as opiniões que eu havia reunido até agora como crédito, o melhor que eu tinha a fazer de uma vez por todas era suprimi-las, a fim de substitui-las por outras melhores, ou pelas mesmas quando eu as tivesse ajustado ao nível da razão. E eu acreditei firmemente que por este meio eu conseguiria conduzir minha vida muito melhor se eu não a construísse sobre velhos fundamentos, e se eu não me apoiasse apenas sobre estes princípios dos quais me deixei persuadir em minha juventude sem jamais ter examinado se eles eram verdadeiros”, Discours de la méthode, Paris: Mozambook, 2001, p. 20 – edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível em <www.mozambook.net>. 49 Do mesmo modo que muitos suportam sua própria vida graças ao auto-engano, a sociedade de consumo gera um fenômeno coletivo de inverdade. Carmen González Marín escreveu um fascinante ensaio sobre as relações entre as dimensões individual e coletiva da mentira: “parece que o engano compartilhado é mais suportável, ou que o engano coletivo deixa de sê-lo para cada um em particular. (...) Somos, por acaso, vítimas – interessadas? – do maior dos enganos, o de assumir que há dois mundos – o mundo dos que falam e atuam e são os responsáveis, e o mundo dos que somente olham e portanto não o são?”, De la mentira, Madri: Antonio Machado Libros, 2001, respectivamente p. 128 e p. 137. 50 Edgar Morin, La méthode 6 – Éthique, Paris: Seuil, 2004, p. 224-225.

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Por tudo isto, é pouco provável que os métodos dedutivo ou indutivo,

empregados no âmbito de disciplinas estanques, sejam capazes de oferecer

as melhores abordagens jurídicas. A seguir, serão desenvolvidas algumas

técnicas que podem auxiliar o aluno a melhor instrumentalizar sua ação por

meio do pensamento, graças a um arsenal metodológico interdisciplinar.

2. Pensar a ação

Em seu sentido comum, o adjetivo cartesiano é pejorativo: designa o

espírito sistemático em excesso, em oposição ao intuitivo. No âmbito

acadêmico, porém, ainda que duramente criticado, o Discurso do Método, de

René Descartes (1637)51, segue uma referência incontornável do

pensamento filosófico52.

Para Descartes, todo método consiste na ordem e na disposição das

coisas em relação às quais é preciso voltar o olhar do espírito, para

descobrir alguma “verdade”. Para compreender as proposições mais

complicadas e obscuras, seria preciso levá-las gradualmente às mais

simples e, a seguir, partindo da intuição das mais simples, elevar-se pelos

mesmos degraus ao conhecimento de todas as outras (Regra V).

Para distinguir as coisas mais simples daquelas que são complicadas

e para buscar com ordem, seria preciso, em cada série de coisas das quais

nós deduzimos diretamente algumas verdades de outras verdades, ver qual

é a coisa mais simples, e como todas as outras coisas dela são mais, menos

ou igualmente distantes (Regra VI).

A seguir, seria necessário servir-se de todos os socorros que podem

prestar o entendimento, a imaginação, o sentido e a memória, seja para ter a

intuição distinta das proposições simples, seja para bem comparar as coisas

que se busca com aquelas que se conhece, a fim de descobri-las, seja para

51 Paris: Mozambook, 2001 – edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível em <www.mozambook.net. 52 Entre tantos, Descartes foi criticado por Pascal, Spinoza e Leibniz, e influenciou pensadores como Husserl, Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty. Para compreender o alcance de sua obra, ver, em particular, Pierre Guenancia, Lire Descartes, Paris: Gallimard, 2000.

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encontrar as coisas que devem ser comparadas entre elas, de sorte que não

se possa esquecer nenhum dos meios disponíveis ao homem (Regra XII).

Enfim, quando se compreende uma questão, cumpre abstrair de todo

conceito supérfluo, simplificá-la o máximo possível, e dividi-la por meio da

enumeração em partes (Regra XIII).

Embora os juristas contemporâneos reconheçam a inexistência da

verdade em direito, a herança cartesiana marca profundamente a prática

profissional e a produção científica francesa. Um jurista francês se

reconhece por seu extraordinário poder de síntese, expresso em textos e

falas estruturados invariavelmente em duas ou três partes, sub-divididos em

igual número de sub-partes (o plano, que equivale ao “esqueleto” do texto,

seu índice ou sumário).

Não se trata de um molde artificial que esclerosa o pensamento mas,

bem ao contrário, de um instrumento que visa a uma demonstração clara e

coerente, que permite ressaltar o que se vai dizer ou escrever, como o ritmo

está para a música, os versos para o poeta, os atos para o autor de teatro53.

O plano expressa diretamente o problema escolhido e permite tratar

todo o tema, mas nada além do tema. O problema é anunciado ao final da

introdução (deflorando-o o mínimo possível), para demonstrar sua

pertinência ao longo do exercício. Ao final de uma intervenção oral e escrita,

o interlocutor deve reter a idéia central, e não apenas memorizar um detalhe.

Através do plano, ele é capaz de ver a floresta, e não apenas a árvore.

Assim, o jurista francês anuncia de antemão o que fará, permitindo assim

que o interlocutor julgue tanto se efetivamente fez o prometido, como a

pertinência do que foi prometido.

Se este relato parece ser o de um forte condicionamento, senão uma

coerção, é preciso reconhecer que, na atualidade, sequer as visões mais

vanguardistas da ciência renunciam ao método e que a influência francesa

corre mundo, graças a autores que deram uma nova dimensão à

compreensão da vida, em particular, ao papel da educação.

53 Marie-Anne Cohendet, Méthodes de travail, Paris: Montchrestien, 1998, p. 112-3.

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É o caso de Edgar Morin, que fez do método o grande canteiro de

obras de seu pensamento54. Para o autor, a palavra método deve ser

fielmente concebida em seu sentido originário, e não no derivado, degradado

pela ciência clássica, para quem o método é um corpus de receitas, de

aplicações quase mecânicas, que exclui o sujeito do seu exercício. O

método necessita estratégia, iniciativa, invenção, arte; é uma práxis

fenomênica, subjetiva, concreta, que necessita de um paradigma teórico,

mas que pode regenerar este paradigma. O método é o pleno emprego das qualidades do sujeito e se torna central e vital

“ - quando há necessariamente, ativamente, o reconhecimento e a presença de um sujeito capaz de pesquisar, conhecer, pensar;

- quando a experiência não é uma fonte clara, não equívoca de conhecimento;

- quando se sabe que o conhecimento não é a acumulação de dados ou informações, mas sua organização;

- quando a lógica perde o seu valor perfeito e absoluto;

- quando a sociedade e a cultura nos permitem de duvidar da ciência em lugar de fundamentar o tabu da crença;

- quando se sabe que a teoria é sempre aberta e inacabada;

- quando se sabe que a teoria necessita da crítica da teoria e da teoria da crítica;

- quando há incerteza e tensão no conhecimento;

- quando o conhecimento revela e faz renascer ignorâncias e interrogações”55.

Por tudo isto, importa escolher um método, e não este ou aquele

método. Como o saber se organiza historicamente por meio de disciplinas,

cada disciplina possui seus métodos, e tende a valorar somente o que se

produz por intermédio de sua metodologia. A realidade, porém, ultrapassa

qualquer disciplina. Se é verdade que toda abordagem da realidade é

sempre parcial, a abordagem disciplinar é quase inútil, tanto é o que lhe

escapa.

54 Entre as diversas edições brasileiras, a Editora Sulina, de Porto Alegre, publicou recentemente uma caixa com os seis volumes de O Método (I – A natureza da natureza, II - A vida da vida, III – O conhecimento do conhecimento, IV – As idéias, V – A humanidade da humanidade e V – A ética). Embora as traduções brasileiras de Morin sejam sofríveis e por vezes o façam parecer um estouvado, o domínio de sua obra é incontornável para quem leciona metodologia. 55 Edgar Morin, Science avec conscience, Paris: Fayard, 1990, p. 312-3.

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Mais importante do que aderir a determinado método, portanto, é que

o sujeito saiba o que está fazendo e que o seu fazer decorra de uma escolha

consciente. A seguir, serão referidas algumas técnicas que permitem aplicar

a concepção de método aqui desenvolvida. Mas é imprescindível salientar

que a boa metodologia é sempre individual e casuística.

Em primeiro lugar, cabe lembrar que a atitude do aluno depende em

muito da consciência metodológica transmitida pelo professor, que deve

deixar claro, antes de cada aula, a meta eleita e o caminho a percorrer,

como sugere a seguinte tabela.

Construir um enfoque para a aula56

- Para que tipo de alunos?

- Com quais objetivos – para desenvolver, em particular, que competências?

- Com que representações globais do projeto a realizar, do objeto a tratar, da situação a resolver?

- De acordo com quais seqüências? Com que articulações entre elas?

- Com quais conteúdos disciplinares? Quais as interações entre eles?

- Com que pessoas e recursos?

- De acordo com qual programação? Dentro de quais prazos? Investindo quantas horas de curso?

- Almejando qual eventual produção?

- Com que modalidades de avaliação?

De nada adianta adotar globalmente uma metodologia e estipular

previamente uma programação de classe, para efeitos formais, se o

professor não tem claro, a cada encontro, que etapa está realizando. Dita

inconsciência compromete o rendimento do aluno, mas igualmente

impossibilita a auto-avaliação, fazendo com que as correções de rumo

venham ser tardias ou infrutíferas.

Em relação às atividades do aluno, sejam elas de pesquisa ou de

prática profissional, são comprovadamente mais estimulantes, educativos e

profícuos os enfoques interdisciplinares. A diferença fundamental entre um

enfoque disciplinar e um enfoque interdisciplinar é que o primeiro produz um

56 Elaborado com base em Gerard Fourez (Dir.), Approches didactiques de l’interdisciplinarité, Bruxelles: De Boeck, 2002, p. 109.

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saber organizado em torno das tradições de uma disciplina científica,

enquanto o segundo se estrutura em relação a uma situação precisa.

Já a pluri e a multidisciplinariedade se constituem pela reunião de

diversas disciplinas em torno de um problema, sem que haja um ponto de

vista integrador ou federativo. A transdisciplinariedade é, por sua vez, a

transferência de um modelo, conceito ou método de uma disciplina a outra, o

que consiste num exercício bem mais complexo.

Recuperando o conceito de interdisciplinariedade, se trata de construir

um saber próprio graças ao emprego de métodos de diferentes disciplinas

para esclarecer uma situação precisa. Enfoques interdisciplinares podem ser

desenvolvidos nos termos sugeridos pela tabela a seguir.

Construir um enfoque interdisciplinar57

1. Problematizar a abordagem - Formular o problema perguntando: “de quê se trata”? - Precisar o projeto: os contextos, as finalidades, os destinatários, o

produto visado 2. Fazer emergir o clichê Coletar aquilo que vem à mente de modo espontâneo sobre o problema 3. Estabelecer o panorama Imaginar aquilo que poderia ter em conta por meio de:

- elaboração de uma grade de análise, graças à feitura de listas de atores, de condicionantes (valores, normas, códigos, modelos, obstáculos), de desafios, de tensões e controvérsias, de escolhas e cenários possíveis

- identificação das caixas pretas58 a abrir, das disciplinas a mobilizar, dos especialistas a consultar

- se possível, verificações in loco, pela sensibilidade que o contato físico pode desenvolver

4. Definir o enfoque e passar à pesquisa

Definir aquilo que realmente será levado em conta, por meio de - seleção dos aspectos que serão integrados à síntese final - hierarquização dos dados obtidos - escolha das caixas pretas que serão abertas - abertura das caixas pretas escolhidas e descoberta de “princípios

disciplinares” 5. Elaborar uma representação

complexa ou síntese final Testar a representação feita e eventualmente ajusta-la.

57 Elaborado com base em Gerard Fourez (Dir.), Approches didactiques de l’interdisciplinarité, Bruxelles: De Boeck, 2002, p. 89. 58 Em física e em epistemologia, chama-se caixa preta um objeto, uma situação ou uma noção teórica que se utiliza sem saber exatamente como ela funciona. Abrir uma caixa preta significa investigar seu funcionamento, embora fosse possível dela fazer uso sem compreendê-la. Para proceder a esta abertura, normalmente se pede ajuda a um especialista ou a uma comunidade especializada (científica ou profissional), Gerard Fourez et al., Nos savoirs sur nos savoirs – Um lexique épistemologique pour l’enseignement, Bruxelas: De Boeck, 1997, p. 89.

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É importante destacar que, ao estabelecer o panorama, ou seja, ao

mapear o que se pode ter em conta para tratar o tema, o sujeito identifica as

disciplinas a mobilizar. Isto significa que a abordagem interdisciplinar não dispensa o conhecimento das disciplinas. Bem ao contrário, o presume.

É curioso ver professores que criticam os alunos por sua ignorância, mas

não dominam mais do que sua própria disciplina.

Do mesmo modo que o aluno, o professor precisa deter, com

segurança, os conhecimentos correspondentes à formação básica prevista

pelo currículo, que consiste no acervo mínimo para o exercício profissional.

O imperativo da especialização tem gerado a ilusão de que o

aprofundamento de uma disciplina é suficiente, e a vida a desmente de um

golpe. A especialidade do professor não o dispensa de uma visão jurídica

global, a mesma que está sendo transmitida ao aluno durante os anos em

que freqüenta o ensino superior, que, aliás, é bastante modesta em relação

ao que o conhecimento humano já foi capaz de gerar.

Operando a intersecção de distintos conhecimentos e sensibilidades,

claro está que cada atividade interdisciplinar merece um projeto, ainda que

este se realize mental e/ou informalmente. A insegurança que deriva da

produção individual de um método pode ser compensada pelo gesto

constante de auto-avaliação, que transforma o uso do método num exercício

ainda mais profícuo.

Grade de auto-avaliação de competências interdisciplinares59

Cri tér ios Ind icadores Formular e contextualizar a problemática

Eu posso formular com minhas palavras a situação da qual parto, perguntando “de quê se trata” e “o quê terei em conta”.

Eu posso formular claramente, por escrito ou oralmente, as quatro dimensões que determinam a representação interdisciplinar: contextos, destinatários, finalidades, produção visada.

Eu posso esboçar os limites da pesquisa em função das quatro dimensões citadas e assim precisar o projeto.

Eu posso distinguir o projeto teórico (a representação visada) do projeto prático (a ação a conduzir).

59 Elaborado com base em Gerard Fourez (Dir.), Approches didactiques de l’interdisciplinarité, Bruxelles: De Boeck, 2002, p. 161-162.

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Eu conheço as etapas da metodologia de construção de um campo interdisciplinar.

Eu posso fazer o inventário das principais representações espontâneas que surgiram na aula graças a uma “tempestade cerebral”.

Eu conheço os parâmetros da grade de análise elaborada quando estabeleci o panorama e sei utiliza-la.

Eu posso identificar as caixas pretas a abrir, as disciplinas a mobilizar e os especialistas a quem consultar em função do problema escolhido.

Dominar o método

Eu posso reajustar o panorama conforme as novas perspectivas surgidas de, por exemplo, uma verificação in loco.

Eu posso fazer uma síntese parcial do panorama.

Eu posso hierarquizar os dados listados, dar prioridades às buscas a conduzir, e então escolher as caixas pretas que vou abrir, de acordo com as finalidades do projeto.

A partir do panorama, eu posso estabelecer um plano de trabalho de pesquisa, tendo em conta o tempo disponível.

Produzir uma síntese apropriada

Eu posso apresentar, por escrito ou oralmente, uma síntese da pesquisa já realizada.

Eu posso estabelecer correlações entre diferentes pontos de vista disciplinares e/ou dimensões do problema.

Eu posso estabelecer um plano ou um esquema sistêmico, articulando os diferentes pontos da síntese.

Eu posso compreender e fazer compreender todos os enunciados usados na síntese.

Utilizar as disciplinas Eu posso empregar adequadamente as disciplinas, com vocabulário e linguagem adequados.

Eu compreendo e posso explicitar os conceitos, leis, modelos e saberes próprios às disciplinas usadas.

Eu sou capaz de relacionar as caixas pretas abertas para evidenciar as interações, as tensões e os pontos de vista divergentes.

Eu posso valer-me da precisão das disciplinas quando é útil, mas sem me perder em questões que interessam apenas aos especialistas.

Eu posso elaborar um questionário pertinente em função do problema do qual parto.

Eu posso conduzir uma entrevista sem me afastar de meus objetivos.

Eu estou aberto a novas perspectivas que se abram ao longo da entrevista, que possam trazer-me um enfoque diferente do problema de partida.

Eu posso reformular as informações que recolhi num texto coerente, em função do projeto.

Consultar fontes e especialistas

Eu posso tomar uma distância crítica em relação às informações recolhidas.

Eu posso fazer uma coleta de fontes relacionadas ao problema e classifica-las racionalmente.

Eu tomei o cuidado de confrontar diversas fontes ou pontos de vista, sem desconsiderar os interesses representados por cada uma delas.

Eu posso precisar as disciplinas de onde provém os diferentes dados.

Eu posso tomar um recuo e analisar a maneira pela qual o trabalho interdisciplinar foi conduzido.

Eu posso estabelecer os limites de “validade” da representação produzida.

Eu posso avaliar a adequação da representação em relação ao problema do qual parti.

Refletir sobre o aspecto epistemológico

Eu posso diferenciar, na representação o que é descrição, interpretação, argumentação ou escolha de ação.

Eu posso explicar o que significa “negociar uma representação” e eu posso mostrar um ou outro ponto no qual a síntese produzida foi negociada.

Eu testei a representação produzida, confrontando-a com situações precisas e/ou mostrando-a a um outro especialista disciplinar.

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É especialmente interessante o que os autores desta tabela previram

como exercício de auto-avaliação relativamente ao método. A primeira

metodologia que importa é a da própria construção de um enfoque

interdisciplinar. As primeiras quatro competências são pura consciência,

enquanto as quatro seguintes são exercícios do raciocínio que dependem

das qualidades mencionadas nas partes anteriores deste artigo: reajustar,

sintetizar, hierarquizar, escolher, estabelecer um plano. Por esta razão,

ensinar metodologia começando pelo projeto é como ensinar a andar uma

criança que não tem chão.

Mais do que avaliar as próprias competências, o aluno deve ter

especial cuidado na elaboração da síntese de sua atividade, porque é por

ela, e não por suas boas intenções, que será julgado.

Ficha metodológica para a redação da síntese de uma pesquisa60

1. A (re)formulação do problema

A Introdução à síntese descreve, com precisão, de que se trata a pesquisa? Qual é o seu objeto?

Foram indicados os desafios da pesquisa, suas finalidades e seus destinatários?

As controvérsias ou as questões conexas ao tema da pesquisa foram referidas ?

2. A adequação do conteúdo ao problema, às finalidades, aos destinatários

A pesquisa e a síntese correspondem ao problema proposto?

A pesquisa e a síntese correspondem às finalidades pretendidas?

Foram excluídas as informações parasitas, as pistas divergentes em relação ao problema e às finalidades?

O conteúdo da síntese (tom, nível da linguagem, grau de precisão) adapta-se aos destinatários visados e à utilização que dela será feita?

O título do trabalho é adequado ao objeto da pesquisa e ao conteúdo da síntese?

O problema de partida constitui o fio condutor do conjunto da síntese?

3. O rigor do conteúdo

A pesquisa é profunda ou contentou-se das primeiras informações disponíveis sobre o tema?

As conclusões da pesquisa, os argumentos e os exemplos levam em consideração as posições de referência dos especialistas reconhecidos nesta matéria?

Evitou-se interpretar fontes ou juízos de valor fora de seu contexto?

Foram demonstradas ou ilustradas as idéias apresentadas no trabalho?

60 Elaborado com base em Gerard Fourez (Dir.), Approches didactiques de l’interdisciplinarité, Bruxelles: De Boeck, 2002, p. 234-235.

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Evitou-se generalizações abusivas a partir de um só exemplo ou caso referido?

Foram eliminadas do texto as afirmações peremptórias (sem dúvida alguma, sempre, nunca, etc.)?

4. A coerência do conteúdo

Evitou-se a reunião artificial de dados sob a forma de “copiar-colar”?

Construiu-se o texto de acordo com um plano prévio e uma progressão argumentativa?

Foram bem geridas as transições entre as partes da síntese?

Foi dada atenção à utilização de liames lógicos, de procedimentos de retomada de aspectos lançados e de antecipação de idéias necessárias à compreensão do desenvolvimento posterior?

Evitou-se contradições internas do texto?

5. A distância crítica

Foram consultadas diversas fontes?

Foram confrontadas posições diferentes?

Foram analisados os argumentos expostos nas fontes?

Ousou-se opor novos argumentos ao encontrados nas fontes?

Não houve abuso de citações ou de falácias de autoridade?

6. O respeito às convenções

Foram lidas e respeitadas as recomendações do Orientador?

Foram respeitadas as convenções em matéria de citações e de referências bibliográficas?

Houve um esforço para que o texto se tornasse de mais agradável leitura para os destinatários?

7. A apropriação pessoal do trabalho

Foram reformuladas de modo pessoal, ao sintetiza-las, as informações coletadas?

Evitou-se plagiar uma fonte consultada?

Tomou-se iniciativas ou manifestou-se autonomia na realização do trabalho?

O autor é capaz de expor os resultados da pesquisa?

O autor é capaz de defender suas conclusões diante de um interlocutor?

O autor propõe uma interpretação, um julgamento, uma tomada de posição pessoal?

A vantagem desta ficha é que contém, ademais de indicadores de

avaliação metodológica, elementos éticos importantes, descritos numa

linguagem singela. Ela pode ser adaptada para exercícios outros além da

pesquisa, tanto por alunos como por professores.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Descartes, as maiores almas são capazes tanto dos maiores

vícios como das maiores virtudes. Também ao contrário das aparências,

aqueles que andam mais lentamente podem avançar muito mais, quando

seguem sempre o caminho certo, ao contrário dos que correm e dele se

distanciam61. Assim, o método, em substância, consiste em prática, não em

teoria, e esta prática se exprime sobretudo por uma escolha.

Daqui se pode reter, entre tantas outras e em guisa de conclusão,

duas idéias-chave. A primeira, despudoradamente axiológica, permite

reconhecer que embora um professor se auto-repute “bom”, sua auto-

referência positiva é inútil quando ele simplesmente responsabiliza o sistema

de ensino pelos infortúnios de sua atividade, e se curva ao visível fracasso

contemporâneo do ensino superior.

Ora, enquanto não se alcança a meta, é preciso reinventar o caminho.

Porém, o experimentalismo deve dar lugar ao profissionalismo (recorrendo à

técnica, senão à tecnologia). O professor não pode contentar-se com sua

suposta bondade. Uma vez mais, se recorre à pluma de Ítalo Calvino: “assim

passavam os dias em Terralba, e os nossos sentimentos se tornavam

incolores e obtusos, pois nos sentíamos como perdidos entre maldades e

virtudes igualmente desumanas”62.

De uma vez por todas, os professores apaixonados e engajados

devem assumir o fardo da excelência técnica, em relação aos conteúdos e

ao método; devem ousar apresentar o homem sábio como modelo, e

defender o saber como um valor. O bom soldado desarmado para pouco

serve, sobretudo ao lado de um exército que não sabe porquê está lutando.

A segunda e derradeira idéia-chave que se quer retirar da máxima de

Descartes é a imagem de que o importante numa viagem é o destino, não a

velocidade. Metaforicamente, a atividade de ensino, pesquisa ou extensão

pode ser pensada como um deslocamento no tempo e no espaço, cujo 61 Discours de la méthode, Paris: Mozambook, 2001, p. 8 – edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível em <www.mozambook.net>. 62 O Visconde partido ao meio, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 90.

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combustível é a paixão, e o veículo, a razão. Se a vontade é a ignição e o

projeto o destino, o método é sem dúvida a direção.

A propósito, a canção de Jorge Drexler citada na epígrafe deste

artigo, termina com o sintomático verso “y no será porque quiera que estoy

dejando marchar tu tren”. Se eu pude chegar à plataforma da estação, mas

ainda assim me separo do que desejo, ou me falta caminho (não me sinto

capaz de andar), ou me falta meta (não me sinto à altura do meu querer).

Sou, então, meio homem – como um caldo ácido refugado voluntariamente

na destilação – e ofendo, com minha covardia, todo aquele que jamais teve

a chance de ser livre e de transformar-se em alguém melhor.

Num mundo degradado e degradante, onde as causas parecem

sempre externas – e a mediocridade grassa por meio de falsas evidências,

do estilo “eu gostaria que fosse diferente, mas nada posso fazer” –,

embarcar no trem do pensamento e escolher um destino ousado é também

uma forma de resgatar a ambição que o homem depositou historicamente no

saber. No caso dos Cursos de Direito, em particular, mais do que uma

ambição acadêmica ou profissional, viajar com os olhos abertos gera uma

possibilidade para a ambição de justiça, que talvez devesse ser, por

vocação, nosso melhor caminho e única meta.