Diversidade Religiosa e Direitos Humanos .pdf

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  • Este material resultado do Termo de Cooperao n 4092/2010 firmado entre aUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o Ministrio da Educao (MEC). Asopinies expressas neste livro so de responsabilidade de seus autores e no representamnecessariamente a posio oficial do Ministrio da Educao ou do Governo Federal.

    Copyright: Diretoria de Polticas de Educao em Direitos Humanos e Cidadania (DPEDHUC/SECADI/MEC) (2013)

    UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAUReitor

    Joo Natel Pollonio MachadoVice-Reitor

    Griseldes Fredel BoosPr-Reitoria de Pesquisa, Ps-Graduao,

    Extenso e CulturaMarcos Rivail da Silva

    Centro de Cincias Humanas e da ComunicaoClvis Reis

    UNIVERSIDADE FEDERAL DESANTA CATARINA

    ReitoraRoselane Neckel

    Vice-ReitoraLcia Helena Pacheco

    Pr-Reitoria de ExtensoEdison da Rosa

    Centro de Cincias da EducaoNestor Manoel Habkost

    PROJETO DIVERSIDADE RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS:conhecer, respeitar e conviver

    CoordenaoReinaldo Matias Fleuri (UFSC)Lcia Schneider Hardt (UFSC)

    Lilian Blanck de Oliveira (FURB)Simone Riske-Koch (FURB)Elcio Cecchetti (SED/SC)

    EDITORA DA FURB

    Editor ExecutivoMaicon Tenfen

    Conselho EditorialEdson Luiz Borges

    Elsa Cristine BevianJoo Francisco Noll

    Jorge Gustavo Barbosa de OliveiraRoberto Heinzle

    Marco Antnio WanrowskyMaristela Pereira Fritzen

    CapaLuciane Tavares Silveira e Ndia Silveira

    Editorao e revisoSmirna Cavalheiro

    Tiragem desta edio: 3.000 exemplares

    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Universitria da FURB

    D618d Diversidade religiosa e direitos humanos: conhecer, respeitar e conviver

    / Reinaldo Matias Fleuri ... [et al.] (orgs). - Blumenau: Edifurb, 2013. 232 p. ISBN 978-85-7114-195-7 Inclui bibliografia. 1. Pluralismo cultural. 2. Direitos humanos. 3. Educao religiosa. I.

    Fleuri, Reinaldo Matias. CDD 261.8

  • Sumrio

    Apresentao | 7

    Prefcio | 11

    Captulo IDIVERSIDADE RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS: conhecer, respeitar e conviverElcio Cecchetti, Lilian Blanck de Oliveira, Lcia Schneider Hardte Simone Riske-Koch | 19

    Captulo IIETHOS E DIREITOS HUMANOS: um legado da diversidade culturalTarcsio Alfonso Wickert | 39

    Captulo IIIRELAES INTERCULTURAIS, DIVERSIDADE RELIGIOSA E EDUCAO: desafiose possibilidadesReinaldo Matias Fleuri | 57

    Captulo IVDIVERSIDADE RELIGIOSA INDGENA: diferentes maneiras de ser e estar no mundoSilvia Maria de Oliveira e Maria Dorothea Post Darella | 81

    Captulo VRELIGIES AFRO-BRASILEIRAS: direitos, identidades, sentidos e prticas do povo-de-santoCristiana Tramonte | 101

    Captulo VIRELIGIES ORIENTAIS: a conscincia do um na conscincia do universoLuiz Jos Dietrich | 117

    Captulo VIIRELIGIES MONOTESTAS: conhecimentos para encontros e dilogos emconvivncias respeitosasLuiz Jos Dietrich e Elcio Cecchetti | 137

    Captulo VIIINOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS E RELIGIOSIDADESJoo Lupi | 167

  • Captulo IXPESSOAS SEM RELIGIO, ATEUS E AGNSTICOSDaniel Sottomaior Pereira | 185

    Captulo XEDUCAO, DIVERSIDADE RELIGIOSA E CULTURA DE PAZ: cuidar, respeitar econviverElcio Cecchetti, Lilian Blanck de Oliveira e Lcia Schneider Hardt | 203

    Autores | 229

  • Apresentao

    Diretoria de Polticas deEducao em DireitosHumanos e Cidadania

    (DPEDHUC/SECADI/MEC)

  • 8Prezada Educadora,Prezado Educador,

    O Ministrio da Educao (MEC), por meio da Secretaria de Edu-cao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso (SECADI), faz che-gar at voc a obra Diversidade religiosa e direitos humanos: conhecer,respeitar e conviver.

    Trata-se de uma publicao elaborada por um grupo de educa-dores, com formao em distintas reas do conhecimento, e que, diaria-mente, trabalham, estudam e pesquisam as temticas da diversidade reli-giosa e dos direitos humanos no cotidiano escolar da educao bsica.

    Este volume, estruturado em dez captulos, apresenta conheci-mentos fundamentais para a compreenso crtica da diversidade religiosae sua relao com a promoo dos direitos humanos no contexto social,poltico, educacional e religioso.

    Socializa conhecimentos indispensveis para a promoo da dig-nidade humana, medida que favorece o reconhecimento das alteridadese o respeito s histrias, identidades, memrias, crenas, convices e va-lores de diferentes grupos religiosos, bem como das pessoas sem religio,ateus e agnsticos, buscando desta forma contribuir para a eliminao depreconceitos que legitimam processos de excluses e desigualdades.

    Parte de pressuposto que a diversidade cultural um dos patri-mnios da humanidade, uma vez que serve de referncia para a constru-o das identidades pessoais e coletivas. Diversidade esta que se expressade maneira muito intensa em nosso pas, especialmente no campo religi-oso, onde convivem inmeras crenas e tradies religiosas, assim comopessoas sem religio, ateus e agnsticos.

    Entretanto, a presena da diversidade cultural religiosa, em facedo complexo processo histrico de formao do povo brasileiro, exigeateno e esforos conjuntos no sentido de erradicar conflitos e relaesde poder que buscam homogeneizar os diferentes anulando suasdiferenas.

    Tal processo, muitas vezes, ocorre no prprio contexto escolar,por meio de prticas e tentativas de invisibilizao, silenciamentos e dis-criminaes relacionados s diferentes identidades e valores de carterreligioso e no religioso.

    Nesse sentido, a presente obra quer subsidiar prticas pedaggi-cas que ajudem a superar preconceitos, intolerncias e violncias no con-

  • 9texto escolar e social, possibilitando o acesso a um conjunto de conheci-mentos relacionados diversidade cultural religiosa e os direitos huma-nos.

    Esperamos que o livro Diversidade religiosa e direitos humanos:conhecer, respeitar e conviver seja objeto de discusso coletiva nas reuni-es pedaggicas, faa parte dos encontros de estudos das diferentes re-as de conhecimento, subsidie a reviso dos projetos poltico-pedaggicosdas escolas e, principalmente, seja incorporado nos planejamentos e pla-nos de ensino, para que no cotidiano escolar se fomente o respeito sdiferenas, o dilogo, a liberdade religiosa e os direitos humanos.

    Diante da violncia e da intolerncia religiosa, educandos eeducandas, educadores e educadoras, gestores e gestoras so desafiadosa compreender que todos so diferentes, mas iguais em direitos, e queprecisamos conviver, respeitando uns aos outros, no constante propsitode promoo dos direitos humanos e da terra.

    Bom estudo e leitura!

  • Prefcio

    Reinaldo Matias FleuriLilian Blanck de OliveiraLcia Schneider Hardt

    Elcio CecchettiSimone Riske Koch

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    1 Jos Saramago, um dos mais notveis dentre os escritores portugueses, recebeu o PrmioNobel de Literatura, em 1998.

    Os ensaios de Saramago1 que refletem sobre a cegueira e a luci-dez nos parecem ser metforas muito apropriadas para pensar a diversi-dade religiosa e os direitos humanos. Em sua obra Ensaios sobre a ceguei-ra, o autor provoca a reflexo sobre o que significa a habilidade de enxer-gar, explorando a sutil diferena entre olhar e ver. A primeira, uma habili-dade possvel e, a segunda, uma observao mais atenciosa, detalhada.Parece que nessa direo que podemos entender a epgrafe do livro: sepodes olhar, v. Se podes ver, repara, pois reparar mais do que ver,implica alargar e aprofundar o entendimento sobre o que se observa.

    O ato de reparar est diretamente ligado ampliao de dadonvel de conscincia, trazendo luz, clareza aos fatos, relaes e concep-es que, sob um olhar que no v, podem ser naturalizadas e reproduzidasnas prticas cotidianas. Visualizar sob vrios pontos de vista, analisar, ques-tionar e buscar compreender so atitudes que possibilitam lampejos delucidez, brechas necessrias para resistir e intervir na realidade.

    A sada no , s, a presena da lucidez, tampouco sua ausncia,mas a percepo do jogo entre essas foras, para compreender o que nostornamos enquanto desenvolvemos ou no algumas sensibilidades ematerialidades.

    Neste sentido, a demanda pela promoo dos direitos humanose da terra uma necessidade histrica diante da alternncia dos temposde cegueira e lucidez que caracterizam e (de)marcam a humanidade.

    Saramago, em palestra proferida no II Frum Social Mundial, rea-lizado em Porto Alegre, em 2002, contou a histria dos habitantes de umapequena aldeia, que viviam nos arredores de Florena h mais de quatro-centos anos. Era tradio do lugar que o sino, quando tocado, identificas-se algo especial, marcando e comunicando os acontecimentos da comu-nidade local, inclusive quando da morte de um dos seus moradores. Con-ta a histria que, em um determinado dia, o sino tocou de um jeito total-mente diferente e deixou a populao impactada. Em pouco tempo todosestavam prximos da igreja, tentando descobrir o que teria ocorrido. Es-peravam que algum dissesse por quem deveriam chorar. Afinal, quemhavia morrido? De repente, sai da igreja um campons, que no era osineiro de sempre, e avisa que ele mesmo havia tocado o sino, no em

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    2 O termo Outro (com a inicial em maisculo) quer representar os Outros e Outras,que para Levinas (2005), representa aquele que no pode ser contido, que conduz paraalm de todo contexto e do ser. O Outro no pode ser reduzido a um conceito; rosto,presena viva que interpela, convoca, desafia e constri.

    memria de uma pessoa que falecera, mas anunciando a morte da Justia.O que levou o campons a praticar tal ato?

    Segundo a histria, acontecera que um conde ou marqus semescrpulos andava tomando as terras dos camponeses. Os lesados protes-tavam e reclamavam, mas nada acontecia. Alguns decidiram apelar para aJustia, mas sem resultado, pois a explorao continuava. Em desespero, ocampons lembrou-se do sino, utilizando-o como estratgia para chamara ateno das pessoas, fazendo-as ver, para que ento pudessem se orga-nizar para a mobilizao e luta.

    Ainda no sabemos se em outra parte do mundo um sino queantes tenha dobrado pela morte de humanos chorou a morte da Justia.Entretanto, a histria nos mostra que a Justia continua morrendo todosos dias. E, por isso, preciso continuar a tocar os sinos, denunciando,criando alternativas e estratgias de enfrentamento de uma realidade ondeos direitos humanos e da terra no se materializam em relaes sociaisequitativas e solidrias. a cegueira, outra vez, que no nos permite ver ereparar como vivemos.

    Em relao diversidade religiosa, a convivncia entre sujeitoscom culturas, identidades e crenas diferentes, historicamente, foi marcadamais por tempos de cegueira que de lucidez. Representaes sociais equi-vocadas, preconceituosas, negadoras, rotuladoras e exotizadoras em rela-o ao Outro2 tm fomentado a intolerncia religiosa em distintos contex-tos, espaos e lugares. So cegueiras produzidas pela falsa percepo quesomente existe uma verdade cujo domnio pertence ao grupo que inte-gro, jamais ao grupo do Outro. O dogmatismo religioso, segundo Martini(1995, p. 35), consiste em fazer com que indivduos e grupos se projetemnuma ilusria infinitude ao pretenderem realizar em si prprios atotalidade.

    Este um problema extremamente complexo porque tais atitu-des, costumeiramente, no carregam motivaes exclusivamente religio-sas, mas agregam razes de ordem econmica, social, poltica e cultural,variveis a cada experincia histrica.

    Diferentes grupos humanos foram criando e desenvolvendo, aolongo do tempo, distintas leituras, olhares e saberes, buscando formas de

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    superar limites, descortinar horizontes e dar sentido a vida. Esses gruposconfiguraram cosmovises, crenas e tradies religiosas capazes de de-senvolver e instaurar processos de libertao e/ou opresso; autonomiae/ou dependncia; participao e/ou alienao.

    Deste modo, crenas religiosas podem ser utilizadas para produ-zir cegueiras, endossar lgicas opressivas e exploradoras, subverter senti-dos, alienar pessoas em favor de desejos particulares, movendo/alterandoa vida cotidiana, destruindo, mutilando, silenciando mundos e vidas.

    Embora muitos documentos e declaraes nacionais e internacio-nais j tenham sido construdos com o objetivo de regulamentar, delimitare defender os direitos humanos e da terra, ainda imprescindvel dobraros sinos diante das desigualdades e injustias que persistem em materia-lizar-se, contraditoriamente, em nossa sociedade, seja no campo religiosoou em outros contextos.

    no dobrar dos sinos que os direitos humanos emergem e seafirmam nos processos histricos como lampejos de lucidez. no tocardos sinos que os no reparados pelas cegueiras das estruturas sociais exi-gem reconhecimento, liberdade e distribuio equitativa dos bens pblicos.

    porque as vtimas de violaes reclamam reparao que osdireitos precisam ser efetivados. porque continuam na luta,mesmo contra todo tipo de dono e todo tipo de cerca,enfrentando todo tipo de violncia e represso, que asociedade reconhece e, dessa forma, incorpora direitos.(BRASIL, 2010, p. 6-7).

    Portanto, os direitos humanos so afirmados historicamente nosembates constantes contra a explorao, o domnio, a vitimizao, a ex-cluso e todas as formas simblicas e materiais que reduzem o ser e adignidade humana.

    Por quais motivos os sinos devem dobrar hoje? Por quem? Emquais situaes e contextos a dignidade humana est sendo negada?

    Este o desafio que compartilhamos com voc!Com o objetivo de socializar conhecimentos sobre a diversidade

    cultural religiosa, com vistas ao enfrentamento de pr-conceitos, lgicas,silenciamentos, invisibilizaes, discriminaes e violncias praticadas porquestes religiosas, a presente obra apresenta algumas de nossas rodasde aprendizagens com outros pares, nas diferenciadas jornadas em estudos,pesquisas e, prioritariamente, em vivncias no e com o cotidiano escolar.

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    Os autores Elcio Cecchetti, Lilian Blanck de Oliveira, Lcia SchneiderHardt e Simone Riske-Koch, no Captulo I, intitulado Diversidade religiosae direitos humanos: conhecer, respeitar e conviver, apresentam aproxima-es histricas e conceituais da diversidade cultural e religiosa e dos direi-tos humanos, para, assim, conhecer, respeitar e conviver. Para os autores, escola, enquanto lugar de trnsito de culturas, no compete buscarhomogeneizar, mas garantir a liberdade religiosa, por meio da igualdadede acesso ao conhecimento de todas as culturas, tradies/grupos reli-giosos e no religiosos, promovendo os direitos humanos e a justia cultural.

    No Captulo II, Tarcsio Alfonso Wickert desenvolve o conceito e anatureza do ethos, enquanto legado cultural humano decorrente da bus-ca de lugares seguros para a existncia em um mundo de finitudes e incer-tezas. Neste habitat coexistem diversas expresses religiosas e no reli-giosas que precisam ser respeitadas e reconhecidas, desafio que recai so-bre a educao e prpria escola, lugar de encontro de diversos ethos e,por isso, local de aprendizado das habilidades necessrias para ver e ques-tionar as cegueiras da homogeneidade, do etnocentrismo e da indiferena.

    Em seguida, no Captulo III, Reinaldo Matias Fleuri, em Relaesinterculturais, diversidade religiosa e educao: desafios e possibilidades,reconhecendo a presena nas escolas de crianas e jovens que professamdiferentes crenas religiosas e no religiosas, discorre sobre a necessidadede se desenvolver propostas educacionais para trabalhar pedagogicamentecom temticas relativas diversidade religiosa. Este um desafio educa-cional analisado sob uma perspectiva intercultural, que implica no desen-volvimento de atitudes de tolerncia, reciprocidade e civismo na relaoentre pessoas que seguem diferentes opes relativas religio.

    O tema do Captulo IV, Diversidade religiosa indgena: diferentesmaneiras de ser e estar no mundo, de Silvia Maria de Oliveira e MariaDorothea Post Darella, aborda a diversidade dos povos indgenas, e des-creve aspectos particulares da cultura Guarani, destacando sua cosmovisocultural e religiosa.

    No Brasil, importante parcela da populao composta por des-cendentes de africanos, povos que trouxeram bases culturais religiosasque influenciaram decisivamente as prticas espirituais do pas. Em Reli-gies afro-brasileiras: direitos, identidades, sentidos e prticas do povo-de-santo, Cristiana Tramonte busca analisar e descrever estas culturas, noCaptulo V, considerando a diversidade das prticas religiosas afro-brasi-leiras e destacando seus mitos e ritos.

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    Luiz Jos Dietrich, no Captulo VI, intitulado Religies orientais: aconscincia do Um na conscincia do universo aborda alguns dos ele-mentos principais do Hindusmo, Budismo, Confucionismo e Taosmo, taiscomo ritos, smbolos, mitos, textos e tradies sagradas, visando a contri-buir para ampliar conhecimentos da diversidade religiosa e dos direitoshumanos. Cada uma dessas religies tem uma identidade prpria que seabre a muitas compreenses, constituindo referenciais culturais para dife-rentes maneiras de ser, viver e conviver.

    Em seguida, Luiz Jos Dietrich e Elcio Cecchetti apresentam umcaptulo sobre as religies monotestas do Judasmo, Cristianismo eIslamismo, no qual contextualizam o contexto histrico do surgimento eevoluo destas religies, destacando seus principais lderes e fundado-res, suas crenas, doutrinas, livros sagrados, ritos e valores tico-morais.Assumindo uma posio epistemolgica de reconhecimento da diversida-de cultural e religiosa, os autores intentam que os conhecimentos apre-sentados possam promover o encontro, dilogo e convivncia respeitosaentre os diferentes credos.

    No captulo VIII, Joo Lupi, assentando-se nos direitos das mino-rias religiosas e nos princpios de tolerncia e respeito, discorre sobre asbases tericas e histricas dos Novos movimentos religiosos e religiosida-des existentes na contemporaneidade.

    Na sequncia, Daniel Sottomaior Pereira, no Captulo IX, intituladoPessoas Sem-Religio, Ateus e Agnsticos, apresenta e analisa alguns da-dos sobre o campo religioso brasileiro, a fim de evidenciar a presena depessoas sem filiao religiosa, ateus e agnsticos. Alm disso, autor obje-tiva problematizar alguns preconceitos, discriminaes e violncias prati-cadas contra essas pessoas, uma vez que ferem a liberdade de conscinciae crena prevista no art. 5 da Carta Magna brasileira (1988), direito que seestende tanto aos que tm religio como aos que no a tm, e tanto osque creem como aos que no creem.

    Por fim, no Captulo X, Educao, diversidade religiosa e culturade paz: cuidar, respeitar e conviver, Elcio Cecchetti, Lilian Blanck de Olivei-ra e Lcia Schneider Hardt problematizam o uso do conhecimento paradestruio e dominao do Outro. Apontam para a necessidade de consi-deramos as diferenas para educar, cuidar e conviver, o que requer o de-senvolvimento de uma cultura de reconhecimento da diversidade em suasmltiplas formas de expresso, condio bsica para o exerccio da liber-

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    dade, responsabilidade e dignidade, pilares para a construo da culturade paz.

    Assim, nos permitam e nos deem o prazer de adentrar em suasvidas, escolas e culturas. Sintam-se tambm convidados a entrar nas nos-sas para, coletivamente, buscarmos estudar, discutir, trocar e, assim, cole-tivamente construir outros olhares e prticas pedaggicas sobre astemticas da diversidade religiosa e dos direitos humanos e da terra.

    Os organizadores

    REFERNCIAS

    BRASIL. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversi-dade. Documento de Referncia: orientaes para a implementao da educao em direi-tos humanos na educao bsica. Verso Preliminar. Braslia, 2010 (mmeo).

    LEVINAS, E. Entre ns: ensaios sobre a alteridade. Petrpolis: Vozes, 2005.

    MARTINI, A. O provisrio e o transcendente. In: MARTINI, A. et al. O humano, lugar do sagra-do. 2. ed. So Paulo: Olho dgua, 1995. p. 33-38.

    SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira: romance. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    ______. Palestra proferida no II Frum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, 2002.

  • Captulo I

    Diversidade religiosae direitos humanos:conhecer, respeitar

    e conviver

    Elcio CecchettiLilian Blanck de OliveiraLcia Schneider Hardt

    Simone Riske-Koch

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    PALAVRAS INICIAIS

    Conviver com a diversidade cultural algo complexo e desafia-dor, talvez uma das grandes problemticas da humanidade. O respeito diversidade cultural uma das garantias para a promoo dos direitoshumanos e da terra e uma das tarefas imprescindveis da educao.

    A escola, para contribuir na promoo da liberdade religiosa edos direitos humanos, precisa desenvolver prticas pedaggicas que exer-citem a sensibilidade diante de qualquer discriminao religiosa, perce-bendo as cegueiras que produzem injustias e processos de excluso edesigualdades.

    Este captulo discorre sobre as temticas da diversidade religiosae direitos humanos, apresentando alguns conceitos e trajetrias histri-cas, visando a promover na escola o dilogo acerca das inmeras vivncias,percepes e elaboraes religiosas que integram o substrato cultural dahumanidade. Assim, o estudo, a pesquisa e o dilogo sobre a diversidadecultural religiosa se apresentam como um dos elementos para a formaointegral do ser humano que podem encaminhar vivncias fundamentadasno conhecer, respeitar e conviver com os diferentes e as diferenas.

    1 DIVERSIDADE CULTURAL E DIREITOS HUMANOS

    Nada igual no universo! Isso faz da Terra um planeta nico eespecial, bero de incontveis formas de vida. Diversidade a marca donosso mundo e se manifesta nos ecossistemas naturais e na prpria hu-manidade.

    A espcie humana adquiriu formas diversas atravs do tempo edo espao. Em contextos histricos especficos, cada sujeito ou grupo so-cial se constitui como ser singular e, ao mesmo tempo, plural, no seio deuma ou de vrias culturas, por meio das tramas de relaes tecidas com oOutro1, o mundo e o desconhecido, produzindo smbolos, conhecimen-tos, prticas, sentidos e significados que do sentido sua vida e ao con-

    1 O termo Outro (com a inicial em maisculo) quer representar os Outros e Outrasque, para Levinas (2005) representa aquele que no pode ser contido, que conduz paraalm de todo contexto e do ser. O Outro no pode ser reduzido a um conceito; rosto,presena viva que interpela, convoca, desafia e constri.

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    texto no qual est inserido. Pela ao e interao dos sujeitos, as culturasconstroem formas diversas de ver e ser em determinados tempos, espaose lugares no qual se encontram circunscritas (OLIVEIRA; CECCHETTI, 2010).

    A diversidade cultural, segundo a Conveno sobre a Proteo ea Promoo da Diversidade das Expresses Culturais, publicada pelas Na-es Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO, 2005, p. 5),representa a

    [...] multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupose sociedades encontram sua expresso. Tais expresses sotransmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. Adiversidade cultural se manifesta no apenas nas variadasformas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite opatrimnio cultural da humanidade mediante a variedade dasexpresses culturais, mas tambm atravs dos diversos modosde criao, produo, difuso, distribuio e fruio dasexpresses culturais, quaisquer que sejam os meios etecnologias empregados.

    Resultado da singularidade de cada grupo social e de seus pro-cessos de territorializao2, a diversidade cultural constitui-se em um dosmais valiosos bens da humanidade. expresso da riqueza de cada comu-nidade, portadora de conjuntos de smbolos e significados que servem dereferncia para a constituio das identidades pessoais e grupais. umadas fontes do desenvolvimento humano, de ampliao dos horizontes esentidos, medida que cada cultura apenas parte de um mundo com-plexo que tem muito a aprender com as outras culturas existentes(CECCHETTI, 2008).

    A diversidade cultural necessita ser reconhecida, valorizada e com-preendida como um patrimnio da humanidade, mesmo quando exigeesforos para a convivncia entre povos e culturas diversas. Nesse senti-do, a Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural, publicada pelaUNESCO logo aps os atos de terrorismo praticados em setembro de 2001,afirma ser indispensvel o reconhecimento da diversidade cultural, pois:

    2 Para Haesbaert (2006, p. 314), o processo de territorializao compreende as relaesde domnio e apropriao do espao pelo humano, de forma concreta ou simblica, criandomediaes espaciais que proporcionam efetivo poder de reproduo enquanto grupossociais (ou enquanto sujeitos), poder este que sempre multiescalar e multidimensional,material e imaterial, de dominao e apropriao ao mesmo tempo.

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    Artigo 1 A diversidade cultural patrimnio comum dahumanidade: A cultura adquire formas diversas atravs dotempo e do espao. Essa diversidade se manifesta naoriginalidade e na pluralidade de identidades que caracterizamos grupos e as sociedades que compem a humanidade [...].Artigo 2 Da diversidade cultural ao pluralismo cultural:Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-seindispensvel garantir uma interao harmoniosa entre pessoase grupos com identidades culturais a um s tempo plurais,variadas e dinmicas, assim como sua vontade de conviver.[...] Inseparvel de um contexto democrtico, o pluralismocultural propcio aos intercmbios culturais e ao desenvolvi-mento das capacidades criadoras que alimentam a vida pblica.Artigo 3 A diversidade cultural, fator dedesenvolvimento : A diversidade cultural amplia aspossibilidades de escolha que se oferecem a todos; uma dasfontes do desenvolvimento, entendida no somente em termosde crescimento econmico, mas tambm como meio de acessoa uma existncia intelectual, afetiva, moral e espiritualsatisfatria.

    Garantir uma interao positiva entre diferentes identidades cul-turais faz parte da busca pela promoo da dignidade humana. Valorizar ereconhecer a diversidade implica considerar que cada sujeito/grupo socialtem se forjado num processo histrico diferente, constituindo sua identi-dade a partir de uma perspectiva que condiciona, possibilita e limita ummodo de ser humano (LANGON, 2003). Da pode-se concluir que as cultu-ras no abarcam apenas modos de se relacionar, seja com os membros doseu ou de outros grupos, seja consigo mesmo, mas constituem fontes desentido e significado para cada um dos seus integrantes.

    As culturas configuram um mundo simblico e atribuem signifi-cados, limites e possibilidades s formas de como os humanos leem, sen-tem e experienciam o mundo e a vida, produzindo sentidos e identidades.Desse modo, fornecem o vnculo entre o que os sujeitos so capazes de setornar e o que eles realmente se tornam (LANGON, 2003).

    Cada cultura, grupo social ou sujeito uma perspectiva, uma lo-calizao, um modo de ver e se relacionar distinto. Para Montiel (2003), asculturas so elaboraes coletivas nas quais os sujeitos se reconhecem,autorrepresentam e compartilham vises e significados comuns da reali-dade que os cerca. Tradicionalmente, estavam relacionadas a ambienteshistricos e espaciais precisos, demarcados por uma etnia, lngua, crena

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    religiosa ou modo de produo especfico. Nesses contextos, as culturasfuncionavam como uma espcie de cimento que amalgamava os mem-bros de cada populao (padro cultural). Mas, a partir do sculo XX, asnovas tecnologias conectaram comunidades para alm de suas fronteirasnacionais, possibilitando que milhes de pessoas pudessem interagir, rom-pendo e provocando novas combinaes de espaos, tempos e territrios.

    O cenrio mundial torna-se cada dia mais complexo. As socieda-des se transformam constantemente e so cada vez mais diversas. A per-manente reconfigurao das identidades culturais e nacionais resulta naproduo de novas identidades hbridas, fragmentadas e multifacetadas.

    Paradoxalmente, v-se a crescente tentativa de uniformizao,estratgia do capitalismo globalizado para uma padronizao dos hbi-tos, modos de pensar, agir e viver, produzindo processos de massificaoe homogeneizao de formas universais de consumo. Em oposio a esseprocesso, surgem inmeras iniciativas de afirmao das identidades cul-turais tradicionais por meio da (re)valorizao de aspectos tradicionais dasculturas, como, por exemplo, o fortalecimento dos costumes, modos deproduo e lnguas originrias.

    O atual crescimento dos movimentos fundamentalistas3 tambmpode ser compreendido como reaes frente s tentativas de homoge-neizao que, de forma violenta, tm causado vrios conflitos e atentadosde extrema brutalidade.

    Esse quadro nos mostra que conviver com a diversidade cultural algo complexo e desafiador, uma das grandes problemticas da huma-nidade. Reconhecer o Outro em sua alteridade, ou seja, acolh-lo em suarealidade concreta, scio-histrico-cultural, requer constantes lampejosde lucidez. Entretanto, inmeras cegueiras resultantes da autocompreensoexclusivista de olhar a realidade, percebem as diferenas como ameaasao andamento da vida e, por isso, inmeras so as tentativas dedesqualificao, superposio, desvalorizao, anulao, negao e exclu-so dos diferentes.

    O respeito diversidade cultural uma das garantias para a pro-moo dos direitos humanos. um imperativo tico inseparvel do res-peito dignidade humana. Ningum pode invocar a diversidade cultural

    3 Compreendemos os fundamentalismos como posturas e prticas dogmatizadas emverdades institudas, impostas e assumidas como sendo nica e/ou absolutas.

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    para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nempara limitar seu alcance (UNESCO, 2001).

    2 DIVERSIDADE CULTURAL RELIGIOSA: APROXIMAES CONCEITUAIS

    Vrias cincias como a antropologia, a arqueologia e a histria,entre outras, apontaram a presena do religioso em diferentes culturas,desde tempos imemoriais. Historicamente, os humanos buscam respostaspara o enigma do mundo, da vida e, em especial, da morte. Nesse empre-endimento, desenvolveram diferentes saberes, linguagens e tecnologias,como as artes, danas, msicas, arquiteturas, smbolos, ritos, mitos, textos,prticas, valores e significados. Inseridos em diferentes territrios eterritorialidades, cada sujeito/grupo cultural acabou por produzir diferen-tes cdigos, conhecimentos e sentidos s suas experincias cotidianas,conduzindo o agir humano para alm do material e concreto, influencian-do na construo de prticas sociais impregnadas pela busca de significa-o das coisas do mundo (ANDR; LOPES, 1995).

    Condicionados por fatores biolgicos, geogrficos, culturais esociais, os humanos, desde o princpio, perceberam-se como seres finitose inconclusos em um mundo imprevisvel e inseguro. Mas, ao mesmo tem-po, descobriram-se como seres de transcendncia, criando inmeras pos-sibilidades e estratgias para sua sobrevivncia.

    Para Andr e Lopes (1995), a transcendncia emerge como umaatitude de rebeldia do humano contra os limites do cotidiano buscandosuperar as condies e limitaes por meio do desejo, da intuio e dacriatividade. Ao vivenciar situaes que estimulam a ruptura provisriadas rotinas e a suspenso temporria da lgica cotidiana, emerge umadimenso simblica que se expressa no significado misterioso da existn-cia. Ao se tornar consciente de sua finitude, os humanos buscaram respos-tas para o desconhecido, desenvolvendo conhecimentos que lhe deramcondies de intervir no meio social e em si mesmos.

    A transcendncia se manifesta e desenvolve a partir da percep-o do limite que se radicaliza com a presena da morte. Diante dela, afinitude transparece e instaura-se a provisoriedade, pois a certeza da mor-te estimula o desejo de superao e tambm abre espao para um anseiode eternidade:

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    A experincia da morte torna-se um dos alicerces daconstruo [...] do projeto humano. A subjetividade deixa deestruturar-se a partir dos limites (que a morte agudiza), e simda possibilidade de super-los. No podendo vencer a morteno plano fsico, o homem o faz no plano simblico. (MARTINI,1995, p. 35).

    Assim, a morte, situao limite por excelncia, colabora para oaparecimento das primeiras manifestaes religiosas que se concentramno culto dos mortos e, por consequncia, no culto dos ancestrais (BOWKER,1995). Essa tentativa de se relacionar com os que habitam em outro tem-po, espao e lugar manifesta-se na forma de mitos, narrativas e textosorais e escritos. Nesses, os objetos do mundo e as aes humanas adqui-rem um valor particular, tornando-se reais, porque participam de uma re-alidade que os transcende.

    O homem das cavernas, ao pintar os animais, no querianecessariamente promover uma expresso artstica, masdesejava atravs do desenho simbolizar certa magia em buscade proteo e sorte ou como instruo de como deveria agirpara conseguir bom xito em suas caadas e aes para garantira vida. Estas manifestaes pretendiam registrar a tentativade dominar o inexplicvel, para coloc-lo a seu prprio servio.Por sua vez, os gestos de adorao presentes nos ritos, festase celebraes, prprios das religies, se apresentam comoformas de expresso do reconhecimento do Transcendente edo Absoluto. Assim, a descoberta do Transcendente garante acontinuidade da vida e o medo da morte pode ser solucionadopelos ritos, magia e mitos. (OLIVEIRA et al., 2007, p. 43).

    A raiz do religioso encontra-se na percepo da finitude humanae na busca de respostas que transcendem os limites objetivos do cotidia-no. A necessidade de sobreviver e de construir significados fez com que oshumanos se constitussem em relao e interao com a natureza, comdeterminados grupos sociais e com as foras invisveis, ocultas e misterio-sas a(s) divindade(s). Dessas relaes resultaram conhecimentos quesubsidiaram condies materiais de produo da vida e de sentido exis-tncia.

    Bowker (2002) afirma que as relaes humanas com a(s)divindade(s) comearam no perodo anterior inveno da escrita, quan-do as ideias, os relatos e as crenas eram memorizadas e transmitidas pelatradio oral. Apesar das dificuldades em decifrar os significados e formas

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    pelas quais os nossos ancestrais concebiam o(s) ser(es) divino(s), essa re-lao est arraigada nas mentes e corpos humanos e integram a base deformao das culturas, nas quais o contedo muda, mas mantm a mesmarelevncia.

    Assim, pode-se deduzir que a expresso, a manifestao e a cons-truo histrico-cultural do religioso nos inmeros grupos e sociedadeshumanas, em diferentes tempos, espaos e lugares, ocorre de modo sin-gular, complexo e diverso. No terreno da busca religiosa, a humanidade jconstruiu e continua construindo diferentes e mltiplas respostas pro-blemtica da existncia e da morte. Dessas, se originaram diferentes con-cepes sobre a(s) divindade(s), em torno das quais se organizam crenas,mitologias, doutrinas ou formas de pensamento relacionadas com a esfe-ra do sobrenatural, alm da diversidade de prticas e princpios ticos emorais.

    As religies, portanto, fazem parte da cultura humana, presentesna maioria dos povos, em diferentes contextos histricos. Nas sociedadesantigas, de tradio oral, que no dispunham de conhecimentos etecnologias mais sofisticadas, as religies significavam uma fora muitopoderosa na organizao da vida social: os elementos naturais eramdivinizados, a exemplo do vento, gua, terra, fogo, animais e dos astros, eas divindades eram simbolizadas por totens e fetiches.

    No universo cultural, inegvel o papel das crenas, movimentose tradies religiosas, ora influenciando, ora sendo influenciados pelasculturas. Para Bortoleto (2001), falar de cultura, tradio e religies signi-fica abordar elementos que se conectam, coimplicam, pois esto em pro-funda relao. Esta articulao provm, inclusive, no sentido etimolgicode cultura e culto. Ambos tm origem na mesma raiz latina cultus, quesignifica adorao ao divino/sagrado. Por sua vez, religio, do verbo latinoreligare, representa a aproximao de pessoas que alimentam crenas co-muns, constituindo-se no mais antigo sistema simblico de coeso social.

    As tradies e movimentos religiosos assumiram, ao longo dostempos, a tarefa de significar a totalidade do mundo e do humano pormeio das atribuies de valores de sagrado e profano, puro e impuro,tico e no tico, projetando uma ordem csmica ao universo dos deuses,seres e humanos.

    O conhecimento religioso, resultado do processo cultural da hu-manidade, produzido por diferentes crenas, filosofias, tradies e/oumovimentos religiosos, entre outros, se constitui em um dos referenciais

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    utilizados pelos sujeitos para (re)construir caminhos, significados, senti-dos e respostas a diferentes situaes e desafios da vida cotidiana, confi-gurando identidades pessoais e sociais.

    Nesse sentido, as elaboraes simblicas relativas ao religioso,presentes em cada grupo social, so parte integrante da diversidade cul-tural e, portanto, patrimnio da humanidade. Assim, as diferentes vivncias,percepes e elaboraes religiosas integram o substrato cultural dospovos, constituindo-se em uma rica fonte de conhecimentos a instigar,desafiar e subsidiar o cotidiano das geraes.

    As religiosidades, crenas, tradies e movimentos religiosos con-tribuem e, por vezes, determinam modos de como o ser humano se definee se posiciona no mundo, orientando o relacionamento com seus seme-lhantes, com o mundo natural e com a(s) divindade(s), possibilitando dife-rentes vivncias religiosas e interpretaes de vida4 (FONAPER, 1997). Po-dem endossar, subverter os sentidos e alienar as pessoas. Exemplo dissoso algumas leituras de carter religioso decorrentes de hermenuticasque, utilizadas a favor dos interesses de alguns humanos, transitam etranscriam sentidos e significados, movendo mundos por meio dos inte-resses pessoais pronncias que destroem, mutilam, matam e senten-ciam mundos e vidas (RISKE-KOCH, 2007), fato que desafia e mobilizauma srie de atitudes e atividades de ordem pessoal e coletiva em relaoao diferente e s diferenas.

    3 DIREITOS HUMANOS: TRAJETRIA HISTRICA E CONCEITUAL

    A trajetria histrica dos direitos humanos complexa e envolvemltiplos sentidos e definies. No entanto, necessrio assumir umaperspectiva que permita compreender a relao entre a promoo dosdireitos humanos e o reconhecimento da diversidade cultural religiosaenquanto patrimnio da humanidade, bem como quanto ao direito li-berdade religiosa ou da livre adeso ou no s crenas, tradies e/oumovimentos religiosos.

    4 Historicamente, pode se identificar sujeitos ou grupos que no integram ou participamde uma tradio religiosa, como, por exemplo, o atesmo, agnosticismo e desmo, ouaqueles que optam desenvolver sua vida baseada em outros princpios.

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    Primeiramente, necessrio compreender que o prprio termodireitos humanos refere-se, de forma genrica e abreviada, a um conjuntode preceitos e exigncias entendidas como inerente ao ser humano e,segundo, uma compreenso mais atual, igualmente inerente naturezaou ao planeta Terra. Esses direitos nascem com o humano, fazem parte desua prpria natureza e da dignidade que lhe prpria. So fundamentais,porque sem eles os sujeitos no teriam condies de existir, se desenvol-ver e participar plenamente da vida social e cultural (GORCZEVSKI, 2009).

    Os direitos humanos5 no se restringem a um conjunto de leis ecostumes, mas a exigncias diferentes entre si, com uma histria particu-lar em cada caso. Para Gorczevski (2009), os direitos humanos sempre fo-ram resultado da rebeldia individual ou coletiva, na busca por reconheci-mento da existncia, com dignidade, liberdade e autonomia. Trata-se deuma conquista muitas vezes permeada por violncias, perseguies, lutas,dores e mortes.

    Cronologicamente, segundo Mondaini (2008), o primeiro ciclode afirmao dos direitos humanos na histria ocidental tem sua gneseno decorrer dos sculos XVII e XVIII, momentos caracterizados pela cons-tituio de uma nova sociedade, urbana, industrial e capitalista, radical-mente diversa da dominante na Idade Mdia, rural, agrcola e feudal. Atransio no ocorreu de maneira pacfica. Foi intercalada por tempos decegueira e lucidez, que culminaram na ascenso ao poder de outra classesocial, a burguesia.

    Buscando difundir sua cosmoviso de mundo, os burgueses fun-daram o Estado Moderno, impondo uma ruptura entre as funes da vidapblica da vida tutelada pela religio (secularizao das funes adminis-trativas, polticas e civis).

    O surgimento do Iluminismo, movimento intelectual e culturalque subverte os fundamentos pautados na religio e no absolutismomonrquico, propondo a supremacia da razo sobre a f, a centralidadedo ser humano nas explicaes filosficas sobre o universo, foram fatorespropcios para a formalizao de uma compreenso ocidental dos direitoshumanos.

    5 Para Gorczevski (2009), a expresso direitos humanos est diretamente vinculada aoutras expresses bem conhecidas, como direitos naturais, direitos morais, direitosfundamentais, direitos subjetivos, entre outras. A grande vantagem da expresso direitoshumanos, frente s demais gozar de maior popularidade e por haver sido utilizada em1948, pela ONU, em sua primeira Declarao Universal.

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    Nesse primeiro momento, a liberdade de crena religiosa e deexpresso de pensamento, a manuteno da segurana, a preservao davida, a resistncia tirania, entre outros, passam a ser apresentados comodireitos fundamentais do cidado, que devem ser respeitados pelo Estado(MONDAINI, 2008).

    Contraditoriamente, vale lembrar que essa mesma sociedade(europeia), que buscava concretizar os direitos do cidado, idntico nomesmo perodo histrico, promovia o genocdio fsico e cultural de na-es indgenas inteiras e a escravizao massiva de negros africanos nasAmricas, bem como mantinha sob seus domnios diversas colnias nafrica e na sia.

    Entretanto, esse contexto bero de ideias e concepes quecomeam a delinear o movimento dos direitos humanos: a Declarao deDireitos, elaborada na Inglaterra, em 1689; a Carta Acerca da Tolerncia(1689) e o Segundo Tratado sobre o Governo (1690), ambos do filsofoJohn Locke; Do Esprito das Leis (1748) de Montesquieu; o Discurso sobrea Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755) eDo Contrato Social (1762), de Jean-Jacques Rousseau; O Senso Comum(1776) de Thomas Paine; a Declarao de Direitos do Estado da Virgnia(1776); e a prpria Declarao de Independncia dos Estados Unidos daAmrica6 (1776) so exemplos desse processo.

    No entanto, o acontecimento histrico determinante na afirma-o dos direitos humanos foi a Revoluo Francesa, em 1789. Com o lemaLiberdade, Igualdade e Fraternidade influenciou os fundamentos da no-o dos direitos humanos, principalmente pela Declarao de Direitos doHomem e do Cidado7, votada pela Assembleia Nacional Francesa, docu-mento que ir influenciar as aes scio-poltico-culturais republicanas apartir de ento (MONDAINI, 2008).

    O segundo ciclo de afirmao dos direitos humanos na histriaocidental tem incio no sculo XIX, quando as duas principais correntes docampo poltico, os liberais e os socialistas, concentram suas reivindicaes

    6 Embora a Declarao de Independncia dos Estados Unidos anunciasse que todos oshomens so criados iguais, isso no impediu que a escravido perdurasse por quase umsculo, e que as mulheres norte-americanas fossem impedidas de votar at 1920 (Cf.HUNT, 2009).7 Essa declarao se referia literalmente ao homem, excluindo as mulheres. Por isso, em1791, Marie Gouze, conhecida por Olympe de Gouges, props a Declarao dos Direitosda Mulher e da Cidad, exigindo os mesmos direitos concedidos aos homens s mulheres.

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    por direitos baseados, principalmente, na noo de igualdade. Se para osliberais ela se concentrava na esfera dos direitos civis e polticos, para ossocialistas a igualdade pretendida no deixaria de ser uma utopia enquantono fosse possvel a igualdade social e econmica (BRASIL, 2010).

    O Manifesto Comunista (1848) de Karl Marx e Friedrich Engels; oEstatuto da Associao Internacional de Trabalhadores (1864); o Hino In-ternacional do Comunismo (1871) e a Declarao dos Direitos do PovoTrabalhador e Explorado (1918) so alguns dos documentos queexemplificam a luta pela igualdade social como direito humano, toreivindicada nas lutas dos trabalhadores por condies mais dignas noexerccio de suas funes. Entretanto, como se pode comprovar pelas con-tradies da histria, a preocupao com a igualdade social conviveu tra-gicamente com a instaurao de regimes polticos autoritrios, profunda-mente marcados pelo desrespeito aos direitos civis e polticos (MONDAINI,2008).

    Fora da Europa, nos pases onde o sistema capitalista foi se soli-dificando, a trajetria histrica do movimento pelos direitos humanos tri-lhou caminhos diversos. No continente latino-americano, por exemplo,grandes mobilizaes, revoltas e revolues estiveram vinculadas s ques-tes sociais, polticas e, principalmente, s lutas pela autodeterminaodos povos, s estratgias de resistncias frente ao colonialismo e a domi-nao por estrangeiros e contra o autoritarismo dos prprios governantese oligarquias histricas. Com essas transformaes surge a configuraode uma conscincia de reivindicao por uma identidade particular e pordireitos culturais que se expressam, por exemplo, no movimento indgenalatino-americano (BRASIL, 2010).

    O terceiro ciclo de afirmao dos direitos humanos surge aps aSegunda Guerra Mundial. Ele resulta do inconformismo diante da ceguei-ra vivenciada durante duas grandes guerras, onde campos de concentra-o e o extermnio em massa demonstraram que os direitos humanos es-tavam longe de serem concretizados. Alm disso, partiu da insatisfaodecorrente da existncia dos imperialismos e autoritarismos governamen-tais, que ceifaram milhares de vidas, suprimiram a liberdade e minimizarama dignidade humana.

    Diante desse cenrio, a Declarao Universal dos Direitos Huma-nos, promulgada pela Organizao das Naes Unidas (ONU), em 10 dedezembro de 1948, constitui-se em uma das referncias mais importantescontra a barbrie e o desprezo vida humana. Ela reafirma o compromis-

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    so poltico e social dos Estados nacionais para a promoo e a defesa dadignidade humana como valores fundamentais da democracia. A prpriacriao da ONU, em 1945, refunda as bases da esperana de constituiruma comunidade internacional capaz de promover a paz e os direitos hu-manos (BRASIL, 2010).

    Tambm marcou esse perodo o incio de lutas por novos direi-tos: as mobilizaes em prol da preservao do meio ambiente; a buscapor um desenvolvimento econmico que possibilite o acesso s condi-es bsicas de subsistncia os povos; as manifestaes pacifistas paraum mundo livre das armas de destruio em massa; as lutas contras asopresses civis diante das inmeras ditaduras polticas; o movimento dosempobrecidos sem terra, sem casa, sem educao, sem comida, entre ou-tros; a defesa da liberdade de expresso, de conscincia e religio; a defe-sa do direito informao, e muitas outras.

    No final do sculo XX, a globalizao, o progresso cientfico etecnolgico, os efeitos e perigos da biotecnologia, biotica, engenhariagentica e a necessidade de preceitos tico-jurdicos relativos ao incio,desenvolvimento, conservao e fim da vida humana, desencadearam aexigncia de novos direitos, conhecidos como de quarto ciclo. Dizemrespeito reproduo assistida, ao aborto, eutansia, transplantes de r-gos, clonagem, criao de clulas-tronco, entre outros (GORCZEVSKI,2009).

    O desenvolvimento da ciberntica, redes de computadores, co-mrcio eletrnico, inteligncia artificial, realidade virtual e massificaoda internet, no incio do novo milnio, despontaram uma srie de reivindi-caes, denominados direitos da era digital, ou do quinto ciclo(GORCZEVSKI, 2009).

    Como resultado de toda luta histrica para a efetivao dos direi-tos humanos, foi produzida uma gama enorme de documentos, leis, de-claraes e pactos nacionais e internacionais. No entanto, continuam osdescompassos entre o direito assegurado e direito exercido ou praticado. necessrio avanar na constituio de uma cultura dos direitos huma-nos, cujos pressupostos considerem a alteridade do Outro e a dignidadeda vida, em toda a sua diversidade.

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    4 DIVERSIDADE RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS

    A promoo da dignidade humana perpassa, entre outros pon-tos, pelo respeito e reconhecimento das diferentes formas de religiosida-des, tradies e/ou movimentos religiosos, bem como daqueles que noseguem forma alguma de religio ou crena religiosa.

    Na atualidade, a multiplicidade de expresses, movimentos e ins-tituies religiosas reclamam por reconhecimento e questionamparadigmas centrados em uma nica religio, sistema, ideologia ou tradi-o (STEIL, 1993). Segundo o autor, a diversidade regra fundamental dacontemporaneidade e, por isso, o conflito e o dilogo podem ser vistoscomo princpios sobre os quais se fundam as sociedades.

    O monlogo, comumente empreendido nas sociedades ociden-tais, que pretende (con)vencer o Outro a fazer parte de uma religio uni-versal, configura-se desprovido de sentido. A condio necessria para oexerccio do dilogo o reconhecimento do Outro, como um legtimointerlocutor:

    Sem alteridade no h dilogo. Por isso, se o pluralismo condio sine qua non para o dilogo, esta ser garantida poruma atitude relacional, capaz de romper com uma viso dooutro que o toma como uma abstrao ou uma configuraopsquica. (STEIL, 1993, p. 26).

    Lamentavelmente, representaes sociais equivocadas do Outroainda impulsionam o surgimento do preconceito e discriminao, gran-des responsveis pelos conflitos religiosos. Por isso h carncia de movi-mentos de e para o dilogo entre diferentes religies e grupos religiosos,visando construo do respeito diversidade cultural religiosa atravsdo dilogo inter-religioso e intercultural.

    Para Teixeira (2004), no dilogo inter-religioso no se pode violar,apagar ou negar o dado essencial da diversidade dentre as religies. Aocontrrio, dever-se- (re)conhecer singularidades e especificidades de cadatradio e/ou movimento religioso. No exerccio do dilogo no h fusoe nem confuso, mas este exige abertura e distanciamento de autossu-ficincias que dificultam e limitam a compreenso de que cada religio um fragmento em processos de crescimento e afirmao. O dilogo noenfraquece a f, como alguns temem, mas possibilita um aprofundamentoe ampliao de seus horizontes (TEIXEIRA, 2004, p. 19).

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    O dilogo processo mediador, articulador, fomentador e cria-dor de possibilidades para o reconhecimento do Outro no processoeducativo, atravs do qual possvel construir explicaes e referenciaisque escapam do uso ideolgico, doutrinal e catequtico (FONAPER, 1997).

    Na dinmica da abertura (pr)vocada pelo dilogo, irrompempossibilidades da construo de outros desenhos fios nas e para tra-mas identitrias individuais e coletivas. Na concepo de Freire (1987), odilogo instrumento educativo que propicia e encaminha libertaocomunitria. Nesse exerccio, saberes diferentes so socializados, revendosituaes, limites, posturas, decises, num movimento que atinge, emoci-ona, desaloja e desafia o individual e o coletivo. Nesse lugar de encontrono h ignorantes absolutos, nem sbios absolutos: h homens que emcomunho buscam saber mais (FREIRE, 1987, p. 81), conhecendo-se ereconhecendo-se sujeitos e agentes da e na histria.

    No entanto, a continuidade da existncia de prticas e relaespermeadas por tentativas de invisibilizao, silenciamentos e preconcei-tos relacionados diversidade cultural religiosa no contexto escolar e so-cial, exigem ateno e esforos no sentido de erradicar conflitos e rela-es de poder geradas por grupos hegemnicos que buscam produziridentidades e diferenas na inteno de manter privilgios, por meio deprocessos de normalizao do Outro e anulao das diferenas.

    Diante de cegueiras de carter religioso que contribuem para amanuteno de complexos processos de excluses e desigualdades, a edu-cao e as religies so apontadas como ambientes privilegiados cons-tituio de uma cultura dos direitos humanos.

    O telogo Hans Kng (1998, p. 186), em sua obra Projeto da ticamundial, enfatiza que no haver futuro no planeta sem o exerccio deuma tica mundial, um estado de paz no mundo. Para ele, o problemaconsiste no confronto entre a minha crena e a crena do outro. Nessecampo, situa-se o risco do conflito, mas tambm a possibilidade do dilogo.

    Nesse sentido, uma educao comprometida com a promoodos direitos humanos eleger o dilogo como metodologia privilegiadapara o aprendizado. O dilogo possibilitar o conhecimento do Outro emalteridade, incentivando a convivncia com as diferenas numa perspecti-va de descoberta e releitura do religioso em seus diferentes aspectos(RISKE-KOCH, 2007).

    Ao socializar e promover o dilogo acerca das diferentes vivncias,percepes e elaboraes religiosas que integram o substrato cultural da

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    humanidade, a educao oportunizar a liberdade de expresso religiosa.Desse modo, problemticas que envolvem questes como discriminaotnica, cultural e religiosa tm a oportunidade de sair das sombras, quelevam proliferao de ambiguidades nas falas e nas atitudes, para seremtrazidas luz, como elementos de aprendizagem, enriquecimento e cres-cimento do contexto escolar como um todo (BRASIL, 1997).

    Assim, o estudo, a pesquisa e o dilogo sobre a diversidade cul-tural religiosa se apresentam como um dos elementos para a formaointegral do ser humano no espao escolar e encaminham vivncias funda-mentadas nos direitos humanos e direito diferena (OLIVEIRA, 2003).

    O despertar desta compreenso se apresenta com uma das maisimportantes contribuies da escola na atualidade: a participao coletivana busca pelo trmino de conflitos religiosos, violaes dos direitos hu-manos e desrespeitos liberdade de pensamento, conscincia, religio oude qualquer convico. Isso corrobora com a concretizao da Declaraopara Eliminao de Todas as Formas de Intolerncia e Discriminao comBase em Religio ou Convico (ONU, 1981), assim estabelecida:

    Artigo 2 1. Ningum ser objeto de discriminao por motivos dereligio ou convices por parte de nenhum estado, instituio,grupo de pessoas ou particulares. 2. Aos efeitos da presente declarao, entende-se porintolerncia e discriminao baseadas na religio ou nasconvices toda a distino, excluso, restrio ou prefernciafundada na religio ou nas convices e cujo fim ou efeitoseja a abolio ou o fim do reconhecimento, o gozo e oexerccio em igualdade dos direitos humanos e das liberdadesfundamentais.Artigo 3A discriminao entre os seres humanos por motivos de religioou de convices constitui uma ofensa dignidade humana euma negao dos princpios da Carta das Naes Unidas, edeve ser condenada como uma violao dos direitos humanose das liberdades fundamentais proclamados na DeclaraoUniversal de Direitos Humanos e enunciados detalhadamentenos Pactos internacionais de direitos humanos, e como umobstculo para as relaes amistosas e pacficas entre asnaes.[...]Artigo 5[...]

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    3. A criana estar protegida de qualquer forma dediscriminao por motivos de religio ou convices. Ela sereducada em um esprito de compreenso, tolerncia, amizadeentre os povos, paz e fraternidade universal, respeito liberdade de religio ou de convices dos demais e em plenaconscincia de que sua energia e seus talentos devem dedicar-se ao servio da humanidade.Artigo 6[...]e) A de ensinar a religio ou as convices em lugares aptospara esses fins.[...]

    Considerando que a escola no espao para ensinar a religioou convices de uma determinada confessionalidade, mas lugar de cons-truo de conhecimentos sobre a diversidade cultural religiosa brasileira emundial, cabe aos educadores e aos educandos refletir sobre as diversasexperincias religiosas que os cercam; analisar o papel dos movimentos etradies religiosas na estruturao e manuteno das diferentes culturas;compreender que cada sujeito ou grupo social possui seus prpriosreferenciais para lidar com os desafios da vida cotidiana e, acima de tudo,execrar toda e qualquer forma de discriminao e preconceito.

    Oportunizar tempos, espaos e lugares ao estudo cientfico e res-peitoso da diversidade cultural religiosa, entendida como patrimnio dahumanidade (UNESCO, 2001), significa romper com relaes de poder queencobrem e naturalizam esteretipos, discriminaes e preconceitos. Re-conhecer o religioso em sua diversidade, em vez de exclu-lo da escola, ouaprision-lo sob os imperativos de uma perspectiva proselitista, implicamudar no apenas as intenes do que se quer transmitir, mas os proces-sos internos que so desenvolvidos. Essa mudana necessria perpassa autilizao de outra base epistemolgica, de perspectiva intercultural, bemcomo a adoo de outros mtodos pedaggicos que abarquem a comple-xidade das culturas e das relaes humanas.

    escola, enquanto lugar de trnsito de culturas, no competehomogeneizar a diversidade religiosa, mas garantir a liberdade religiosa,por meio da igualdade de acesso ao conhecimento de todas as culturas,tradies/grupos religiosos e no religiosos, promovendo os direitoshumanos.

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    REFERNCIAS

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  • Captulo II

    Ethos e direitoshumanos:

    um legado dadiversidade cultural

    Tarcsio Alfonso Wickert

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    PALAVRAS INICIAIS

    Os modos diversos de ser e estar de todos os seres, de modoespecfico os humanos, revelam-se em direitos e deveres. Direitos em usu-fruir e acessar possibilidades descritas nas leis e na tica e deveres paracom os outros seres no respeito e garantia da dignidade da vida e daexistncia. Encontramos essa prerrogativa na Constituio Federal (BRA-SIL, 1988, art. 5), na afirmao de que todos so iguais perante a lei, semdistino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos es-trangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberda-de, igualdade, segurana e propriedade [...].

    O ser possuidor de direitos ser portador de responsabilidadediante e com o Outro. Somos, acima de tudo, revestidos de deveres paracom o Outro, o qual exige acolhida e hospitalidade, critrios fundamen-tais da dignidade humana. nessa direo que inmeros documentosnormativos e legais asseguram como princpio fundamental que todosso iguais em direitos e deveres. Isso demonstra que vivemos e habitamosum ethos no qual o respeito mtuo constitutivo de uma educao em epara os direitos humanos.

    Este captulo discute o conceito e a natureza do ethos, legadocultural humano decorrente do movimento incessante de busca de luga-res seguros para a existncia em um mundo de finitudes e incertezas. As-sim, o ethos configura-se como uma segunda natureza, produzida pelosprprios humanos. Neste habitat coexistem diversas expresses religiosase no religiosas que precisam ser respeitadas e reconhecidas, desafio querecai sobre a educao e prpria escola, lugar de encontro de diversosethos e, por isso, local de aprendizado das habilidades necessrias paraver e questionar as cegueiras da homogeneidade, do etnocentrismo e daindiferena.

    1 O ETHOS: LUGAR ONDE SE HABITA

    A definio da palavra ethos tem vrios significados. Por exem-plo, Nilo Agostini (1993, p. 21-22) compreende o termo como ponto departida para a compreenso do que funda o humanum, ou seja, ele comoque o alicerce que sustenta o humano. [...] Um modo habitual/prprio deinterpretar e habitar o mundo. Para Enrique Dussel (1997), representa um

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    sistema de atitudes que sustenta uma viso de mundo, a qual os gregoschamam de ethos. Nesse sentido, podemos verificar que o termo ethosremete a um direito, um lugar, no qual todos os humanos so seus habi-tantes. pelo ethos que todos os seres vivos so e esto na existncia.

    Historicamente, em um primeiro momento, a palavra ethos signi-ficou morada ou guarida dos animais, e somente mais tarde o termo foiutilizado no mbito humano, conservando, de alguma forma, esse primei-ro sentido de lugar de resguardo, de refgio, de espao vital seguro. En-tretanto, essa dimenso fsico-material de morar foi ampliada para a di-menso existencial, assinalando-se com isso que o ethos o lugar huma-no de segurana existencial. nesse lugar que o ser se constitui e se con-figura nas mais profundas condies de humano se faz como algum ecom algum a outridade1. Ethos trata-se, ento, de um lugar costumeiro,habitual, familiar. Por isso, em parte, ethos significa tambm: costume euso. Remete, assim, para uma maneira habitual de comportamento.

    O ethos a casa do homem. O homem habita sobre a terraacolhendo-se ao recesso seguro do ethos. Este sentido de umlugar de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor,constitui a raiz semntica que d origem significao doethos como costume, esquema praxeolgico durvel, estilode vida e ao. A metfora da morada e do abrigo indicajustamente que, a partir do ethos, o espao do mundo torna-se habitvel para o homem. O domnio da physis ou o reinoda necessidade rompido pela abertura do espao humanodo ethos no qual iro inscrever-se os costumes, os hbitos, asnormas e os interditos, os valores e as aes. (VAZ, 1995, p.12-13).

    Constatamos que o ethos, enquanto espao humano, no estdado, mas sim construdo e incessantemente reconstrudo (VAZ, 1995, p.13). nesse processo que o humano se mostra essencialmente inacabado,como ser de abertura para o mundo, para o bem, que a tica manifesta-secomo um saber racional do ethos.

    Como hbito, ao continuada ou reiterao de uma conduta, oethos refere-se j no mais a um lugar ou espao, mas ao tempo, conti-nuidade temporal. Por isso que podemos dizer que o ethos uma ma-

    1 uma exigncia que se impe para cada um de ns. Outridade o ser Outro sem sercompreendido, mas to somente acolhido e hospitalizado (hspede) em nosso lar. algumespecial, mas no necessariamente conhecido, humano em sua alteridade.

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    neira habitual e contnua de comportamento, uma forma de ser no tem-po, um jeito de ser especfico dos seres humanos.

    O ethos o lugar onde se vive e se torna humano. o alicerceque sustenta o humano, ou seja, o ethos o gnio protetor do homem(VAZ, 1995, p. 13).

    Para que o ethos seja o lugar-morada onde se expressa e exprimeo jeito humano de ser, foi necessrio a elaborao de costumes, preceitosmorais, regras e conceitos de tica, direito e justia para sustent-lo. Porisso, do ethos que emanam o conjunto de evidncias, smbolos, mitos,valores e prticas que sustentam e regulamentam tanto a vida individualquanto coletiva (AGOSTINI, 1993, p. 23). Desse modo, o ethos permane-ce para alm dos indivduos. Ele se converte em uma continuidade quecria uma consistncia para a existncia. Quer dizer, o ethos acaba configu-rando um modo de ser e de estar ante o mundo e os outros: ele umaforma de relao. Mas, uma forma de relao adquirida. Ela j est aliantes de o indivduo nascer. E, uma vez nascido, cada ser ser moldadopelo conjunto de relaes fazendo com que sua existncia se desenvolvaa partir de uma maneira especfica.

    O ethos revela que a vida humana sempre ser atravessada pelascoordenadas do espao e tempo segundo a estrutura de um grupo cultu-ral. As pessoas e as comunidades sempre sero referenciadas a partir deum sistema de relaes que far com que a vida seja vivida de uma manei-ra especfica e no de outra. Ela sempre ser percebida a partir de umethos.

    O ethos, nesse caso, denota uma constncia no agir que secontrape ao impulso do desejo (rexis). Essa constncia doethos como disposio permanente a manifestao e comoque o vinco profundo do ethos como costume, seufortalecimento e o relevo dado s suas peculiaridades. O mododo agir (tropos) do indivduo, expresso da sua personalidadetica, dever traduzir, finalmente, a articulao entre o ethoscomo carter e o ethos como hbito. (VAZ, 1995, p. 14).

    Portanto, o ethos tem em si a ideia de estabilidade, consistnciae persistncia, caractersticas que do carter configurador ao ser huma-no. Entretanto, enquanto ao, o ethos implica tambm dinamismo, mo-vimento, transformao e diversidade. O ethos-hbito no inerte, mas,

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    ao contrrio, atividade permanente, livre criao e recriao, livre reno-vao de si mesmo, desde si mesmo.

    Nesse contexto podemos dizer que o ethos uma nova naturezacriada acima da primeira natureza e a partir dela. Contudo, ela a nature-za humana, forma definida e determinada de ser. O ethos transcende per-manentemente a natureza, criando uma nova ordem de necessidades, umnovo destino, embora seja sempre provisrio e mutvel. Nas palavras deAgostini (1993, p. 24), o ethos

    [...] um sistema de disposies adquiridas (estruturaestruturada), ao mesmo tempo em que surge como geradorde estratgias, que se refazem e/ou se adaptam segundo ascircunstncias e os desafios (estrutura estruturante).

    Nenhum ethos, mesmo que configurador, definitivo. aberto,uma construo constante e eminentemente humana, lugar e territrio daliberdade e da fraternidade entre todos os seres. o recanto e o canto davida e do viver. a voz da natureza, o olhar dos seres sentido e senti-mento de todos. o estar sendo na diversidade e no respeito alteridade,multiplicidade e unidade.

    2 ETHOS: LIBERDADE E DIVERSIDADE

    Pensar ou refletir sobre o ethos e sua relao com os direitoshumanos implica necessariamente entender os (des)dobramentos e(des)contextos da sociedade em que vivemos. Isso mostra que devemospensar a sociedade a partir e com a diversidade cultural. No possvelpensar ou entender o ethos sem os pressupostos dessas diversidades naperspectiva de sua liberdade. Todos devem ser respeitados nas suas maisdiversas manifestaes.

    A liberdade um direito imanente a todos, por isso, fundamen-tal na construo de uma sociedade justa e solidria. Esse princpio estexplicitado na Constituio Federal (BRASIL, 1988, art. 5, VI), que estabe-lece ser inviolvel a liberdade de conscincia e de crena, sendo assegu-rado o livre exerccio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, aproteo aos locais de culto e as suas liturgias. Ainda no art. 5, incisoVIII, este documento declara que ningum ser privado de direitos pormotivo de crena religiosa ou de convico filosfica ou poltica, salvo se

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    as invocar para eximir-se de obrigao legal a todos imposta e recusar-sea cumprir prestao alternativa, fixada em lei.

    A definio de ethos oferecida por Dussel (1997) referenda umsistema de atitudes derivado dos valores ou vises de mundo, em que asreligies tm um lugar significativo. Um exemplo citado pelo autor podeauxiliar a compreender a relao de interdependncia entre ethos e reli-gio. O relato busca responder pergunta: Quais as atitudes de um hindue um asteca perante um prisioneiro?

    [...] um hindu, por sua viso do mundo, por sua noo do maya,por sua tenso a confundir-se diante do Brama,indiferentemente, deixar aquele homem em liberdade, e comgrande tolerncia no tentar faze-lhe nada, j que ofundamento de sua atitude matar seu desejo, para liberar-sedo individual; enquanto que o asteca, que pensa que esseprisioneiro lhe transmitir a vitalidade de seu sangue ao deus,para que aquele subsista, o sacrificar. Um ter uma atitudeagressiva, outro de sumo pacifismo. Estas atitudes so regidaspor princpios; so estes princpios fundamentais objetivos,vises de mundo, que vo dar origem a um sistema de atitudes.(DUSSEL, 1997, p. 74).

    O exemplo coloca a religio em dois mbitos, ou seja, dos valorese vises de mundo, quando os alimenta com sua doutrina explicativa e, noethos ou sistema de atitudes, quando a religio, pelo rito, materializa es-sas atitudes. Dito de outra forma, o ethos, por meio de um sistema deatitudes e, atravs de smbolos, objetos, ritos e lugares sagrados, a ma-nifestao concreta de um sistema de valores ou viso do mundo. Ainterdependncia entre valores e atitudes evidente e a correlao entreethos e religio visvel. Nessa compreenso, a ameaa ao sistema deatitudes de um determinado grupo a ameaa do seu sistema de valorese viso de mundo. Portanto, se faz mister entendermos o sentido do con-ceito de liberdade usado nesse contexto.

    A liberdade pressupe trs critrios fundamentais: a) para se con-figurar uma ao como sendo livre, o ser humano deve querer determina-das aes, ou seja, ele quer fazer ou realizar determinados atos; b) almdo querer, deve saber o que fazer. Quer realizar determinados atos, massabe o que vai fazer para realizar isso. Aqui est a conscincia do sujeitoda ao, ele sabe exatamente o que fazer e como fazer para realizar deter-minados atos de modo livre; c) querer fazer e saber o que fazer o remete

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    para o prximo passo: ele pode fazer aquilo que quer e sabe o que fazer?Este terceiro requisito exatamente o momento no qual devemos parar epensar nas consequncias dos atos isso liberdade.

    Percebemos, assim, que liberdade no a ausncia de dever, masexatamente o contrrio, a liberdade essencialmente responsabilidade.Nesse contexto, direitos humanos e diversidade cultural e religiosa estoimplicadas diretamente. No podemos pensar os direitos humanos sem aliberdade, nem o ethos sem as diversidades de expresses religiosas e noreligiosas, sem o respeito s diferenas. A liberdade um valor que per-passa o reconhecer e ser reconhecido pelo Outro, daquilo que cada umrepresenta e expressa na vida, como mxima da dignidade humana, dosdireitos e dos deveres.

    O ethos seria, ento, o ponto de partida que oferece pistas para aorganizao das diversas relaes das pessoas, mas tambm se(re)configura frente aos novos desafios que exigem a construo de sem-pre outros critrios que orientem o agir humano em liberdade. Corresponde tica realizar esse exerccio. O seu carter reflexivo e sistematizador lhepermite investigar os valores e as normas [...] e depur-los para que pos-sam inspirar e guiar da melhor forma possvel a vida humana tendo emvista a sua realizao plena (AGOSTINI, 1993, p. 23).

    Entretanto, a moral a encarregada de especificar os costumes eas normas que conduzem as relaes humanas num espao e tempo de-terminado. Ela

    [...] pode ser concebida como um conjunto fechado de normasou como a busca responsvel de organizar e sistematizarvalores e regras que sejam vlidas num determinado tempo eespao ou que tenham incidncia e valor mais abrangente.(AGOSTINI, 1993, p. 23).

    Mediante a articulao dinmica desses trs elementos (os valo-res; as normas e suas depuraes) se constri em cada tempo e espao(cultura), um modo prprio de sustentar e promover a vida. O ethos umasegunda natureza, ou natureza moral; tambm a morada interior; o habitatespiritual do ser humano (seu horizonte espao-temporal); o modo de sercostumeiro; a qualidade do viver; a forma de ser; a disposio ou atitudeperante o mundo e os outros; o carter do ser humano: sua liberdade, seuser tico. Isso significa que o ethos configura o humano como um serrelacional e toda relao tica, o que implica num (re)pensar toda ao

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    humana como uma ao responsabilizadora pelo passado, presente e fu-turo da humanidade. Tudo que fazemos deve ser pensado nas suas reaisconsequncias para o mundo para o nosso habitat.

    Segundo Hall (2005, p. 88), h dois movimentos na busca de umaconstruo e entendimento do ethos: o de tradio e de traduo. O pri-meiro aponta para as tentativas de construir um ethos puro, a fim de res-taurar a coeso, a unidade e a consolidao perante a indeterminao e orelativismo procedente das culturas hbridas. O segundo movimento, tra-duo, assinala a experincia daquelas pessoas que transpassam as fron-teiras sem nunca poder retornar. O vnculo com seus lugares e tradiesde origem permanece, mas so obrigadas a negociar com os novos ethosnos quais vivem, sem serem assimiladas e perderem totalmente sua iden-tidade de ethos.

    Contudo, essas pessoas no ficaro divididas, elas sero unificadas,mas no no sentido antigo. Elas so, irrevogavelmente o produto de vriashistrias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tem-po, a vrias casas (e no uma casa em particular) (HALL, 2005, p. 89). Estehibridismo, fuso entre diferentes tradies culturais, entendido comouma poderosa fonte criativa, produzindo novos ethos.

    Entretanto, outro movimento est em andamento: uma interaoconsciente e premeditada entre o micro e o macro ethos. Essa uma pers-pectiva presente nos trabalhos, por exemplo, de Hans Kng (1993), cujaproposta final a de moldar e nutrir um macroethos (o ethos mundial), apartir dos impulsos do microethos. Em um mundo caracterizado pela di-versidade de crenas e convices religiosas e no religiosas, o microethospode ser pensado para alm das religies. Todo ser humano deve ser com-preendido a partir de sua dignidade, enquanto humano, no enquantonatureza supostamente religiosa, pois [...] pessoas no religiosas tambmesto imbudas de orientaes ticas fundamentais e que levam uma vidamoralmente orientada (1993, p. 60).

    preciso reconhecer na histria da humanidade, a existncia deinmeras pessoas no religiosas engajadas na defesa da dignidade huma-na, que demostraram corresponsabilidade para consigo, o Outro e o mun-do.

    inegvel, pois que muitas pessoas secularizadas vivem hojeuma moral, que se orienta pela dignidade de qualquer pessoahumana. [...] fazem parte hoje a razo, a autonomia, a liberdade

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    de conscincia, a liberdade religiosa e os demais direitos dapessoa humana como foram sendo conquistados no decorrerda histria. [...] de grande importncia que as pessoasreligiosas sejam elas judias, crists, muulmanas, hindus,sihks, budistas, confucionistas, taiostas ou seja l o que for reconheam que pessoas no religiosas, quer se entendamcomo humanistas ou marxistas, a seu modo, tambm seengajam pela dignidade humana e pelos direitos humanos.(KUNG, 1993, p. 61).

    Neste sentido, uma educao em/para os direitos humanos devereconhecer os distintos microethos, religiosos ou no, para uma convivn-cia em e com dignidade em uma sociedade caracterizada pela diversidadecultural.

    3 ETHOS, DIVERSIDADE RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS

    O ethos diverso porque o ser humano diverso, resultado dasmltiplas interaes subjetivas e intersubjetivas com o Outro em suas di-ferenas. Sendo diferente em si, no lhe possvel constituir-se nahomogeneidade.

    Somos todos diferentes e temos o direito de sermos assim res-peitados e tratados poltica, religiosa e legalmente. No entanto, histricae cotidianamente convivemos com violncias, escravides, genocdios,colonialismos, perseguies e intolerncias de vrias ordens, entre elas areligiosa. Nesse sentido, somos portadores de morte e no de vida bemsupremo e valor maior.

    O pobre, o dominado, o ndio massacrado, o negro escravo, oasitico das guerras do pio, o judeu nos campos deconcentrao, a mulher objeto sexual, a criana sujeita amanipulaes ideolgicas (tambm a juventude, a culturapopular e o mercado subjugados pela publicidade) noconseguiro tomar como ponto de partida, pura esimplesmente, a estima de si mesmo. O oprimido, o torturado,o que v ser destruda a sua carne sofredora, todos elessimplesmente gritam, clamando por justia: Tenho fome! Nome mates! Tem compaixo de mim! o que exclamam essesinfelizes. (DUSSEL, 2011, p. 18-19).

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    medida que um grupo ou religio gera intolerncias decarter religioso, ele nega a dignidade e a prtica dos direitoshumanos. Seja qual for a manifestao, religiosa ou noreligiosa, esta deve alicerar seus princpios em um ethos decorresponsabilidade para com o humano. O profundo respeitoe reverncia ao Outro, com o sentido de hierofania sempremanifestao, revelao e mistrio para ns Rosto completamente diferente em suas diferenas (LEVINAS, 1980).Nesse sentido, devemos lutar contra qualquer prtica queatente contra a vida e os direitos humanos.

    O debate em torno dos direitos humanos visa a despertar para aluta e a conquista de direitos para assegurar a promoo da dignidadenos contextos onde ela tem sido desrespeitada. O Plano Nacional de Edu-cao em Direitos Humanos (BRASIL, 2006, p. 15) desafia e convoca paraem tempos difceis e conturbados por inmeros conflitos, nada mais ur-gente e necessrio que educar em direitos humanos, tarefa indispensvelpara a defesa, o respeito, a promoo e a valorizao desses direitos.

    Uma educao em e para os direitos humanos exige outra escolae outro educador. Precisamos de sujeitos comprometidos e responsveispela causa educacional, que uma causa social, portanto, poltica. Falarem direitos humanos implica perceber que existem milhes de pessoasque ainda no tm seus direitos respeitados e reconhecidos. Por isso, pelomundo muitas organizaes governamentais e no governamentais estocada vez mais unidas em torno de uma luta comum: garantir dignidadeaos seres humanos em geral, mas especialmente aos que so desrespeita-dos e lesados em seus direitos.

    A luta pelos direitos humanos uma luta pela paz mundial, quese reverte no bem viver2 para todos os seres. Parte do respeito e da liber-dade inalienvel de todos os humanos seres de direitos iguais. Umaeducao pautada nessas premissas carrega em si possibilidades de e paraoutras vivncias na/para dignidade humana.

    Atitudes de justia e injustia so construes sociais que tantopodem ser coletivas como individuais, mas a mudana de hbito somenteocorre quando estamos convencidos dessa mudana, quando ela traz em

    2 Conceito das culturas andinas e retomado por movimentos sociais da Bolvia e do Equadorcontra as polticas neoliberais, uma ideia-fora, um conceito inspirador e mobilizador queprotagoniza uma outra forma de vida, ordem social, econmica e poltica de alcanceplanetrio (OLIVEIRA, 2012).

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    si mesma um valor prprio. Essas mudanas so questes educadoras,olhares e vozes que se direcionam a vrias direes. Essa construo fundamental medida que somos seres humanos que pertencem a algumlugar, ocupando determinado espao. Esse pertencimento nos d a dire-o na vida e na educao.

    Quando no sabemos e no reconhecemos em ns mesmos enos outros a que mundo ou lugar ns pertencemos, nada possvel trans-formar para melhor. Situar-se e encontrar-se com e em algum um passofundamental para acolhida e construo de novos saberes e novas prti-cas. Jaz aqui o solo primordial de um olhar para a outridade, um estabele-cer outras relaes intersubjetivas e humanas. fundamental entendercomo a tica da alteridade3 serve de mola propulsora para a tica da liber-tao latino-americana. Por isso que

    [...] o pensamento levenasiano, medida que pe aresponsabilidade ou o assumir-o-outro como princpio queantecede qualquer conscincia reflexiva, permite Filosofiada Libertao situar outrem como origem e raiz da afirmaodo eu-prprio. Assim, Levinas se constitui num dos principaissuportes tericos da proposta libertadora latino-americana.(ROSA, 2011, p. 134).

    Devemos lembrar que a filosofia da libertao latino-americanavisa a pensar e refletir sobre as condies sociais e econmicas dos sujei-tos excludos e oprimidos da Amrica Latina. Trata-se de pensar o Outrocomo rosto, como corpo espoliado e sofredor. Nesse sentido,

    partindo de Levinas, Dussel desenvolve a tica da Libertaoenquanto perspectiva em que o rosto do outro assumidocomo critrio de reflexo e ao. O encontro com o outro nopermite que se estabelea uma atitude de indiferena. O outro,que sempre exterioridade em relao a mim, transborda todatotalidade e livre de qualquer amarra ontologizante. Por isso,a relao que se estabelece uma relao de respeito e deescuta, que no busca uma mera compreenso do outro a fim

    3 tica da Alteridade o modo como ns tratamos respeitosamente o Outro ser humano.Este modo o da responsabilidade por todos aqueles que so excludas do bem viver nasociedade atual. Alteridade, porque a diversidade cultural e religiosa e no religiosa seconstitui a partir de todas as diferenas existentes entre ns. Somos todos diferentes, eessa uma riqueza natural. Quanto mais diverso for o mundo, mais aumentam as nossasresponsabilidades.

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    de simplesmente domin-lo. O outro se apresenta comorealidade infinita. (ROSA, 2011, p. 134).

    Para isso, necessrio considerar que somos seres naturalmentediferentes, constitudos como diferentes social e culturalmente. Essas di-ferenas ocorrem a partir da construo da pessoa no mbito social e psi-colgico. Essa construo implica ser pensada a partir de diversos valores,tais como: morais, religiosos, simblicos, sociais, etc.

    Mas, ao mesmo tempo em que somos uma construo social,somos uma constante constelao entretecida pelas subjetividades e sa-beres (re)construdos e (re)elaborados constantemente. O nosso modo deser e estar o nosso modo diferente de ser, estar e pertencer de mododiverso como existentes. Existir significa relacionar-se, relacionar-se impli-ca em tambm haver conflitos, e conflitos significam que a diversidade seexpressa e se impe como dinamicidade da prpria vida. Por isso, muitasvezes aquilo que no gostamos no Outro justamente aquilo que conflitante em ns mesmos. Nesse sentido e contexto, o desafio da diver-sidade cultural e religiosa se mostra em ns e entre ns.

    Aqui reside o grande desafio da escola: educar para o reconheci-mento e respeito aos diferentes nas suas diferenas. Nesse sentido, a Re-soluo CNE/CEB 4/2010 ressalta que esta deve oferecer uma educaode qualidade social:

    Art. 9 A escola de qualidade social adota como centralidadeo estudante e a aprendizagem, o que pressupe atendimentoaos seguintes requisitos:I reviso das referncias conceituais quanto aos diferentesespaos e tempos educativos, abrangendo espaos sociais naescola e fora dela;II considerao sobre a incluso, a valorizao das diferenase o atendimento pluralidade e diversidade cultural,resgatando e respeitando as vrias manifestaes de cadacomunidade; [...]IX realizao de parceria com rgos, tais como os deassistncia social e desenvolvimento humano, cidadania,cincia e tecnologia, esporte, turismo, cultura e arte, sade,meio ambiente. (BRASIL, 2010).

    A escola deve ser pensada em conjunto com a sociedade comoum ethos da diversidade cultural, na sua totalidade dos diferentes em suasdiferenas.

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    medida que somos todos diferentes, os conflitos so inevit-veis, mas exatamente no mbito dos conflitos, lugar das manifestaesdas diferenas, que ns nos construmos dialogicamente como identida-des. Abertura constante para o mundo, possibilidade de sermos semprediferentes em cada endereo existencial. Por isso necessrio criarmosum espao para o dilogo, um lugar do encontro de todas as vozes.

    O ser humano se realiza na comunidade, na relaointersubjetiva do indivduo com o outro, efetivada pela forada palavra dialgica Eu-Tu. O eu no passa de uma abstrao.Ele s na relao. Pode-se entender que o eu se tornarealmente eu quando, ao proferir Tu, entra no domnio do ns.O eu torna-se real, atual wirklich, quando adentra na esferado ns. (ZUBEN, 2003, p. 17).

    Essa condio comunitria acontece medida que estabelece-mos o dilogo entre todos. Encontramos em Buber uma ontologia da re-lao, que no uma abstrao, mas a prpria experincia existencial serevelando:

    A ontologia da relao ser o fundamento para umaantropologia que se encaminha para uma tica do inter-humano. Diz-se ento que o homem um ente de relao ouque a relao lhe essencial ou fundamento de sua existncia.(BUBER apud ZUBEN, 2004, p. 31).

    A razo moderna estabeleceu padres de condutas de modo li-near, analtico padronizado, portanto homogneo. Essa a conduta dasexcluses e das polarizaes, do certo e do errado, do verdadeiro e dofalso. Institui a verdade absoluta e em nome dela se mutila, invizibiliza emata milhes de seres humanos. Essa verdade impe como certo, nas cul-turas, uma nica identidade; nas religies, uma s crena; na filosofia, odogmatismo racional; nas cincias, o positivismo.

    Essas verdades assumidas e politicamente impostas como verda-des absolutas no conseguem lidar com os diferentes. Frente a essas dire-trizes que conduzem o ser humano s prticas de discriminao de qual-quer natureza, a Secretaria dos Direitos Humanos elaborou um Programadenominado Brasil sem Homofobia, lanado em 2004, visando ao

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    combate violncia e discriminao contra GLTB e depromoo da cidadania de homossexuais, Brasil semHomofobia sinaliza, de modo claro, sociedade brasileira que,enquanto existirem cidados cujos direitos fundamentais nosejam respeitados por razes relativas discriminao por:orientao sexual, raa, etnia, idade, credo religioso ou opiniopoltica, no se poder afirmar que a sociedade brasileira sejajusta, igualitria, democrtica e tolerante. (BRASIL, 2004, p.13-14).

    O Brasil assume a sua caminhada em direo ao enfrentamento eao combate a todas as formas de discriminao, pois tem como meta denao a construo de uma cultura de paz. Os direitos so asseguradosquando verdadeiramente todos so tratados com dignidade e igualdadesde direito. Uma cultura de paz requer de todos ns um comprometimentocom a liberdade, a dignidade e com a vida. Por isso que,

    [...] quando falamos em cultura, no nos limitamos a uma visotradicional de cultura como conservao, seja dos costumes,das tradies, das crenas e mesmo dos valores-muitos dosquais devem, evidente, serem conservados. A cultura derespeito dignidade humana orienta-se para a mudana nosentido de eliminar tudo aquilo que est enraizado nasmentalidades por preconceitos, discriminao, no aceitaodos direitos de todos, no aceitao da diferena. (BENEVIDES,2007, p. 1).

    A argumentao da autora implica na construo de outra men-talidade que prioriza a liberdade, justia, igualdade, solidariedade, coope-rao e a paz. e