Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

92
1 Introdução Neste ensaio será proposta uma interpretação expandida do conceito de Ecologia (no que diz respeito à Filosofia), com base no modelo ontológico delineado pela Ontologia Objeto-Orientada, que passará a abranger todo tipo de relação entre entes de qualquer espécie, e não apenas a relação entre organismos e habitats. Essa ampliação decorre da maneira como entes outrora excluídos desse campo do pensamento hoje impingem sobre o cotidiano, as decisões e o futuro dos seres humanos. 1 Atualmente questões ecológicas estão presentes nas mais variadas esferas da vida, das decisões domésticas a respeito do lixo a decisões políticas intergovernamentais com relação às emissões de carbono. Sendo assim, um conceito de Ecologia que permeie todas essas esferas é desejável, se não necessário, para que seja possível lidar com as questões que as condições atuais do planeta suscitam. Está a ser negociada a inclusão de uma nova época na escala temporal da Geologia - chamada Antropoceno, a "Idade do Homem" - caracterizada pelas marcas claramente discerníveis do impacto humano na crosta terrestre; uma camada de carbono depositada ao longo dos séculos, cuja origem é a queima de combustíveis fósseis, e uma camada de matéria radioativa, depositada a partir de 1945, com as primeiras explosões nucleares. 2 Somando-se a isso a constatação indiscutível de que os ritmos acelerados da atual fase de aquecimento global são de origem antropogênica, é fácil construir uma narrativa na qual o ser humano é o vilão. Porém, demonizá-lo, como 1 Morton, 2010, pp. 11, 28 2 Morton, 2013-B, pp.4-5

description

ecologia; ontologia orientada a objetos

Transcript of Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

Page 1: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

1

Introdução

Neste ensaio será proposta uma interpretação expandida do conceito de Ecologia

(no que diz respeito à Filosofia), com base no modelo ontológico delineado pela

Ontologia Objeto-Orientada, que passará a abranger todo tipo de relação entre entes de

qualquer espécie, e não apenas a relação entre organismos e habitats. Essa ampliação

decorre da maneira como entes outrora excluídos desse campo do pensamento hoje

impingem sobre o cotidiano, as decisões e o futuro dos seres humanos.1 Atualmente

questões ecológicas estão presentes nas mais variadas esferas da vida, das decisões

domésticas a respeito do lixo a decisões políticas intergovernamentais com relação às

emissões de carbono. Sendo assim, um conceito de Ecologia que permeie todas essas

esferas é desejável, se não necessário, para que seja possível lidar com as questões que

as condições atuais do planeta suscitam.

Está a ser negociada a inclusão de uma nova época na escala temporal da

Geologia - chamada Antropoceno, a "Idade do Homem" - caracterizada pelas marcas

claramente discerníveis do impacto humano na crosta terrestre; uma camada de

carbono depositada ao longo dos séculos, cuja origem é a queima de combustíveis

fósseis, e uma camada de matéria radioativa, depositada a partir de 1945, com as

primeiras explosões nucleares. 2 Somando-se a isso a constatação indiscutível de que os

ritmos acelerados da atual fase de aquecimento global são de origem antropogênica, é

fácil construir uma narrativa na qual o ser humano é o vilão. Porém, demonizá-lo, como

1 Morton, 2010, pp. 11, 28

2 Morton, 2013-B, pp.4-5

Page 2: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

2

aponta Bruno Latour, significa tomá-lo ainda como um ente excepcional, e é

exatamente isso que este ensaio procura evitar ao fundamentar seu conceito de

Ecologia sobre bases objeto-orientadas.3

A Ontologia Objeto-Orientada (cujo preceptor é o filósofo americano Graham

Harman) define os objetos como os entes individuais específicos que compõem o

cosmos.4 São objetos: entes de qualquer escala, materiais ou não, contanto que

possuam unicidade, ou seja, resistam ser reduzidos a suas partes, efeitos ou relações.

De raquetes a elefantes, de Hamlet às cataratas do Iguaçu, todos são igualmente

objetos. Este modelo fornece o esquema para uma ontologia plana, não-hierárquica,

que problematiza o papel coadjuvante ao qual o correlacionismo prevalecente - a

noção, cuja origem atribui-se ao pensamento de Immanuel Kant, de que há uma fenda

entre o sujeito transcendental (humano) e a coisa em-si - relega tudo o que não

abrange, em outras palavras, a Ontologia Objeto-Orientada estabelece um patamar

ontológico único, compartilhado por todo tipo de objeto, sem que um deles (ou uma

categoria de objetos) possua estatuto privilegiado ou especial acesso à realidade (por

via da racionalidade ou de qualquer outra forma).5

Ao localizar todo tipo de ente num mesmo nível ontológico, o papel de cada um

na constituição da realidade é reconhecido, o que abre caminho para um pensamento

mais ecologicamente consciente, ou seja, que leva em consideração a maneira como

objetos de toda sorte existem, conjugam-se e interagem - sejam eles humanos ou não-

humanos, visto que, nos moldes desta orientação, o humano consta como mais um

objeto entre muitos.6

3 Latour, 1994, p. 123

4 Harman, 2011-A, pp.5-6

5 Latour, 1994, p. 56

Morton, 2013-B, p. 9 6 Morton, 2013-A, pp. 62-4

Harman, 2012-A, p.17

Page 3: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

3

A crise ambiental anuncia uma crise no pensamento; quando Etienne Turpin cita

a formulação deleuziana que afirma que a capacidade de elaborar problemas é a tarefa

fundamental da Filosofia, ele aponta para a maneira como a concepção do Antropoceno

representa uma oportunidade para a descoberta de novos rumos, e para uma profunda

transformação na trajetória do pensamento. O Antropoceno (e a crise ambiental que o

acompanha) convoca discussão por parte não só da comunidade científica, mas também

das humanidades, da classe política e do público em geral.7 Na base deste debate está o

lugar ocupado por cada objeto (natural, vivo, senciente, humano, ou não) no plano

ontológico, o tema deste ensaio encontra-se, assim, no ponto de partida para tais

transformações e descobertas.

A primeira parte deste ensaio ocupar-se-á, nomeadamente, dos objetos.

Inicialmente será apresentada a crítica ao chamado correlacionismo. A fenda entre o

sujeito e o objeto em-si, tradicionalmente uma exclusividade humana, será distribuída

pela Ontologia Objeto-Orientada entre todos os objetos. Estes, da mesma maneira

como o sujeito humano, serão incapazes de acessar qualquer outro objeto diretamente,

toda interação acontecerá sempre através de simulacros sensíveis produzidos no ato da

interação.

Em seguida, será delineada a maneira como os objetos vem sendo abordados ao

longo da história da Filosofia. Serão descritas as duas principais estratégias usadas para

anular o objeto (o minar e o dissipar) em favor de um outro ente.

Na seção ´Os Objetos e suas Relações` serão introduzidas algumas das principais

noções que constituem a estrutura deste modelo; o objeto real e o objeto sensível (a

essência que se retira de qualquer contato e o perfil estético que se mostra,

respectivamente), a estrutura do como (a maneira como um objeto tem acesso ao

7 Turpin, 2013, p.10

“(...) problems get the solutions they deserve according to the terms by which they are created as problems.”

Page 4: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

4

outro) e a causalidade vicária (causalidade indireta, a forma como objetos reais jamais

se encontram diretamente, mas são sempre mediados pelos objetos sensíveis).

Na segunda parte do ensaio o tema da Ecologia será posto em foco e

desenvolvido, sempre em relação às bases ontológicas estabelecidas na primeira parte.

Será discutida a maneira como a Ecologia hoje sofre com a imprecisão, pois, sua própria

definição encontra-se muitas vezes apoiada sobre conceitos problemáticos (a Natureza

ou o natural, por exemplo) mas que, ainda assim, questões relacionadas à Ecologia são

cada dia mais variadas e mais presentes - dada a compreensão de que o ser humano

transformou-se em uma das mais potentes forças planetárias ao mesmo tempo que foi

apontado como responsável pelos atuais transtornos climáticos. Contudo, o objetivo

deste ensaio não é tornar precisos esses conceitos; alguns deles serão rejeitados (como

o próprio conceito de ´Natureza`, que não existe à parte dos entes que a constituem),

outros serão apresentados em toda a sua nebulosidade e imprecisão, traços que, como

será observado, são comuns aos objetos em geral.8

Em seguida, o estranho-estranho será apresentado como contraparte do discurso

ecológico ao objeto real do discurso ontológico; o ente individual, que se afasta de

qualquer encontro direto mas que, ainda assim, é o elemento fundamental na

constituição do ambiente. A interconexão entre todos os estranhos-estranhos compõe

aquilo a que Morton dá o nome de malha que, nos termos de Harman, corresponde ao

éter sensível no qual todos os objetos encontram-se submersos.9

O encontro com estranho-estranho será apresentado como um evento

essencialmente inquietante, pois, no coração de cada ente existe um hiato entre sua

essência (o objeto real em plena execução) e sua aparência (seus traços estéticos, a

parte que se mostra aos entes com os quais interage), ou seja, o objeto não pode jamais

8 Morton, 2013-A, p. 48

9 Morton, 2010, p.8

Morton, 2013-A, pp. 75-6 Harman, 2005, pp.33-44, 77, 81-4, 84-7

Page 5: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

5

ser totalmente identificado com a maneira como ele aparece para outro objeto. Assim,

será descrito também o modo como dessa inquietação ontológica nasce a ansiedade

fundamental (intrínseca ao ser humano) que motivou o desenvolvimento e o

estabelecimento da agrilogística - o programa agricultural surgido no período Neolítico

(por volta de dez mil anos atrás), que desde então veio a dominar as técnicas de

produção de alimentos (a agricultura e a criação de animais) em todo o planeta.10

Devido a sua grande eficiência a agrilogística possibilitou o desenvolvimento

civilizacional nos moldes (e escala) existentes hoje mas, por outro lado, ao mesmo

tempo em que aparentava eliminar a ansiedade e a contradição, ela estabeleceu

barreiras rígidas entre as esferas humana e não-humana, e reduziu a qualidade de

existência à mera quantidade (nos moldes da conclusão repugnante de David Parfit).11

As condições de possibilidade do Antropoceno têm, assim, raiz na maneira como a

agrilogística impele o ser humano a enquadrar o ambiente de modo a transformá-lo

num armazém de materiais.12

Desta maneira, uma perspectiva objeto-orientada para a Ecologia no

Antropoceno - encapsulada na Ecologia Sombria desenvolvida por Timothy Morton -

não só problematiza o privilégio do sujeito humano na Filosofia, mas sugere caminhos

para o desenvolvimento de relações mais equilibradas entre humano e não-humano,

visto que estas duas esferas não existem em separação absoluta mas, pelo contrário,

determinam-se mutuamente.

Ao estabelecer entes autônomos como elementos primários, anteriores às

relações que engendram esta abordagem concede a cada um deles existência real, que

exige reconhecimento. A Ecologia Sombria está em linha com a fenomenologia de

Alphonso Lingis, que descreve a realidade como um espaço interobjetivo no qual cada

10

Morton, 2014-A, segundo seminário 11

Parfit, 1984, pp. 381-90 12

Morton, 2013-B, pp.106-7 Heidegger, 1977, p.17

Page 6: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

6

objeto emana "uma ressonância (...) que invade nossa sensibilidade". Eles expedem

directivas - comandos - sobre os objetos com os quais interagem, e a coexistência torna-

se uma questão de sintonia (attunement) em meio a profusão de entes que existem

radicalmente próximos ao mesmo tempo que absolutamente separados pela fenda

irredutível que cerca cada objeto.

Page 7: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

7

I - As bases ontológicas

Esta primeira parte do ensaio procurará demonstrar a maneira como a realidade

é quantizada, ou seja, composta por partes, e ainda, como são os chamados objetos

estes elementos constituintes fundamentais.13 Objetos serão, portanto, descritos na

qualidade de entes ontologicamente primários, que existem sinceramente - um termo

ao qual Harman dá (seguindo Emmanuel Levinas) um significado específico, a saber, o

modo como entes existem "absorvidos em ser exatamente aquilo que são".14 Será

discutido ainda, o modo como estes objetos existem cindidos entre sua essência e sua

aparência: a primeira, a pura execução de uma realidade específica e individual, que o

define ao mesmo tempo que permanece obscura e retirada; enquanto a segunda, o

perfil estético que aparece, aquele que é apreendido por um outro objeto no momento

da interação, ou seja, a representação que lhe corresponde).15

Correlacionismo

A OOO surge em meio a uma gama de filosofias recentes, agrupadas sob a

denominação Realismo Especulativo, que vêem de maneira crítica aquilo a que Quentin

Meillassoux dera o nome de correlacionismo - a noção, de origem kantiana, de acordo

13

Harman, 2002, pp.34, 43-4 Morton, 2013-A, p. 42 14

Harman, 2005, pp. 59-60, 136 15

Harman, 2011-A, pp. 20-50 (especialmente pp. 29, 39) Harman, 2005, pp. 76, 86

Page 8: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

8

com a qual um indivíduo tem acesso somente àquilo que se encontra circunscrito na

correlação entre a esfera subjetiva (do indivíduo humano) e a esfera objetiva (das coisas

no mundo).16 A OOO busca expandir o escopo desta correlação afirmando que todo

objeto acessa de fato a realidade, porém, à sua maneira. Também fazem parte deste

grupo nomes como Quentin Meillassoux (e seu materialismo especulativo), Ray Brassier

(que defende um niilismo transcendental), Iain Hamilton Grant e Jane Bennett (que

subcrevem ao materialismo transcendental e ao neo-vitalismo, respectivamente), entre

outros.

Quando Immanuel Kant, na Crítica da Razão Pura, aponta para o hiato

intransponível existente entre a coisa-em-si e o objeto da experiência humana, ele

cimenta uma noção central para a Filosofia moderna, conhecida hoje como sua

correlação. Esta, consiste na proposta de que os princípios do entendimento puro não

possuem uma correspondência direta com a realidade objetiva, mas contêm em si, e a

priori, o “esquema da experiência possível”.17 Para Kant, objetos são dados ao indivíduo

por via da sensibilidade, que o provê com intuições que, por sua vez, referem este

objeto (externo) ao entendimento (interno).18 Desta maneira, um abismo é situado à

volta da experiência (humana), uma noção subsequentemente passada adiante através

da história da Filosofia. Bruno Latour reconhece a penetrância desta herança quando

afirma que o kantianismo fora responsável por transformar uma mera distinção numa

separação total: a coisa-em-si tornou-se algo remoto e inacessível enquanto,

simetricamente, o sujeito transcendental foi posto numa esfera infinitamente retirada,

e as relações entre os dois passaram a ser mediadas pelos fenômenos.19

Hoje, essa correlação vem sendo questionada pelo Realismo Especulativo por

diferentes vias e razões, mas principalmente porque ao aderir-se a esta correlação, nos

16

Meillassoux, 2010, pp.5-7 17

Kant, 1989, pp. 257-258 18

Kant, 1989, pp. 21-23 19

Latour, 1993, pp. 55-56

Page 9: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

9

termos estabelecidos por Kant, o campo da Filosofia (juntamente com a Arte e a

Ciência) fica restrito à pequena região da realidade acessível ao humano (ou a um grupo

limitado de entes racionais), uma região que existe dentro de um espaço muito maior, a

dimensão da causalidade, que não se restringe àquilo que acontece entre entes

racionais, ou entre ente racionais e o mundo, mas inclui átomos de hidrogênio, vento,

narcisos, chips de silicone, meteoros e engrenagens; "O trabalho anônimo da existência

acontece na pura execução das coisas sendo aquilo que são, e não em um suposto

acesso que possamos ter a esta execução".20

São duas as preocupações principais deste ensaio no que concerne a chamada

revolução copernicana de Kant, a derrubada definitiva da ponte entre a experiência do

sujeito racional (em outras palavras, humano) e a coisa-em-si, a saber, a) o privilégio do

ser humano como ente designador de realidade; b) a maneira como, inadvertidamente,

Kant dá continuidade a um processo que começara mais cedo, com Descartes, e que

pode ainda ser observado, no qual questões epistemológicas gradualmente assumem o

papel de destaque na investigação filosófica, e a especulação a respeito daquilo que jaz

fora do eixo entre a mente humana (ou racional) e o mundo é posta de lado, tornando-

se uma tendência menor no cenário da Filosofia moderna.21

Segundo Latour, no espírito do método cartesiano, cujo alicerce é a dúvida

insistente, nasce no século XVII o ´fato científico` - uma descrição física precisa do

mundo, com base na matemática dos cálculos e na experiência empírica das medições -

e este é, a partir de então, tomado como fundamento de toda a realidade, além de ser

ainda frequentemente usado para encerrar discussões, uma vez que tradicionalmente

nenhum outro tipo de conhecimento possui igual valor como garantia de verdade.22

Husserl já identificara esta tendência: “Tornou-se quase um lugar comum (...) afirmar

20

Harman, 2002, p. 239 21

Latour, 1999, p.6 Morton, 2013-A, p. 79, 210 22

Latour, 1993, p.33

Page 10: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

10

que só pode haver um método cognoscitivo comum a todas as ciências e, portanto,

também à Filosofia. Esta convicção corresponde perfeitamente às grandes tradições da

Filosofia do séc. XVII, a qual também defendeu que a salvação da Filosofia depende de

ela tomar como modelo metódico as ciências exactas e, acima de tudo, pois, a

matemática e a ciência natural matemática”.23 Este favorecimento do saber ôntico,

conclui Meillassoux, exclui da prática filosófica justamente aquilo que constitui o caráter

revolucionário do conhecimento científico: seu teor especulativo, pois, devido aos

mecanismos da correlação kantiana a Filosofia fica impedida de fazer asserções em

relação ao modo de existir dos objetos do mundo, por estar restrita à maneira como

estes percolam o entendimento humano. Assim, a metafísica deixa, em grande parte, de

apresentar-se como guarida de compreensão acerca daquilo que se encontra fora da

articulação entre a subjetividade humana e a esfera objetiva.24 Harman dá a parte da

Filosofia continental recente a alcunha de Filosofias do Acesso (Philosophies of Access),

por tomarem a área circunscrita pela fenda kantiana como sítio privilegiado, espaço

exclusivo no qual toda filosofia verdadeiramente rigorosa pode ser desenvolvida.25

É exatamente na direção contrária a esta tendência que surge a OOO, como

braço ontológico do Realismo Especulativo, um grupo bastante diversificado, cujo traço

comum é a posição crítica em relação ao correlacionismo kantiano. Porém, enquanto

Meillassoux, por exemplo, discorda do correlacionismo por este afirmar a

impossibilidade do acesso direto à esfera real e a consequente finitude do

conhecimento humano acerca do mundo (Meillassoux defende que o acesso a um

conhecimento absoluto é possível através da matemática que, para ele, escapa

correlações), a OOO junta-se ao coro de críticas num outro tom. Harman reivindica a

possibilidade de ir-se além da tendência para uma abertura relacional especial e

exclusiva, da qual o ser humano consta como único beneficiário, à maneira das

23

Husserl,1986, pp. 46-47 24

Meillassoux, 2010, pp. 119-121 25

Harman, 2011-A, p.136

Page 11: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

11

Filosofias do Acesso, e procura lidar com todo tipo de objeto dentro de um sistema

compreensivo.26

Correlacionismo distribuído

Em contraste com o método cartesiano o pensamento de Harman não parte da

dúvida radical, mas da ingenuidade sincera, uma ingenuidade que possui uma

significação precisa e específica, a saber, a maneira como todo objeto existe

constantemente absorvido na atividade de ser aquilo que ele é, um papel que nenhum

outro ente é capaz de exercer. - "aquela forma primitiva de inocência com a qual todo

ente já está tingido desde o início". (Harman, 2005, p.130)27 A experiência humana

imediata é povoada por objetos que ´mobiliam` seu ambiente e, assim, é daí que parte

uma descrição ontológica cujo foco recai exatamente sobre estes objetos. É importante

realçar como a categoria dos objetos (na OOO) engloba entes de toda variedade -

“canela, microondas, partículas interestelares e espantalhos” (Morton, 2013-A, p.42)28-

inclusive entes que não são considerados objetos no sentido corrente do termo, como

cores ou números - “afinal, é perfeitamente possível discutir o sentido de ´número` e

fazer novas descobertas sobre entes matemáticos - a prova mais simples concebível de

que as propriedades dos números não se encontram visíveis num vislumbre (...). É neste

sentido que até mesmo as ideias devem ser consideradas objetos”. (Harman, 2002,

p.36)29

26

Harman, 2011-A, pp.136-8 27

Harman, 2011-A, p.6 Harman, 2005, pp. 71, 128, 130, 135-6, 141 "(...) sincerity, that bedrock form of innocence with which all being is laced from the start". Harman ecoa conceitos de ingenuidade e sinceridade de José Ortega y Gasset e Emmanuel Levinas, respectivamente, em sua concepção da sinceridade do objeto . Gasset: "Es vano todo empeño que pretenda desalojar del mundo la ingenuidad. Porque, en definitiva, lo que verdaderamente hay no es sino la sublime ingenuidad, es decir, la realidad" (Ortega y Gasset, J. Obras Completas, Vol. VIII, p.50) 28

Morton, 2013-A, p.42 “(...) cinnamon, microwaves, interstellar particles and scarecrows” 29

Harman, 2002, p. 36

Page 12: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

12

Se inicialmente parece estranho ter a experiência humana como plataforma de

partida para uma ontologia que visa quebrar a restrição correlacionista que tende a

favorecer o humano, cabe aqui um esclarecimento. Kant impõe duas limitações

epistemológicas, a) o em-si é posto mais além de qualquer possibilidade de acesso

direto e, b) esta impossibilidade é inerente ao esquema da experiência possível

característica do ser humano. A OOO concorda com a primeira limitação, porém, um de

seus pilares principais consiste na negação da segunda.

Enquanto Kant privilegia a articulação entre a subjetividade do indivíduo humano

(ou, numa leitura generosa, do ser racional) e a realidade em-si (“...o que é realmente

característico da posição de Kant é que a relação humano-mundo tem prioridade sobre

todas as outras”, afirma Harman), a OOO expande o escopo da abordagem: “Colisões

inanimadas devem ser tratadas exatamente da mesma maneira que percepções

humanas, mesmo que estas sejam formas de relação obviamente mais complicadas.”

(Harman, 2011-A, pp.45-6)30 Posto de outra forma, um objeto, em seu existir enquanto

aquilo que ele é (em sua sinceridade fundamental), encontra-se absolutamente

afastado de qualquer outro. A pedra ou o lagarto que o ser humano toma como tema de

suas reflexões escondem-se dele na mesma medida em que ele distancia-se dos dois; e

ainda, esta pedra e este lagarto nunca se revelam completamente um ao outro, ou

mesmo a si próprios. Todo ente encontra-se envolvido num carnaval de objetos, porém,

nenhum deles corresponde ao ente em-si, nem mesmo seu próprio corpo.31 Da mesma

forma como se retiram do contato direto com a subjetividade humana, os objetos

retiram-se também do contato direto com qualquer outro ente, e em defesa desta

“After all, it is quite possible to discuss the meaning of ´number` and to make new discoveries about mathematical entities - the simplest conceivable proof that the properties of numbers are not visible at a glance (...). It is in this sense that even ideas must be regarded as real entities.” (minha ênfase) 30

Harman, 2011-A, pp.45-6 “(...) what is truly characteristic of Kant's position is that the human-world relation takes priority over all others.” “Inanimate collisions must be treated in exactly the same way as human perceptions, even if the latter are obviously more complicated forms of relation” 31

Morton, 2014-B, em conferência.

Page 13: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

13

afirmação a OOO sustenta que a existência de uma hierarquia ontológica não faz

sentido, pois, todo objeto (de qualquer natureza) respeita o mesmo esquema básico no

executar de sua realidade e nas relações nas quais se envolve - "a existência no interior

de objetos é definida pela sinceridade e pelo envolvimento, não pela transcendência e

pela análise crítica".(Harman, 2005, p.255)32 Para a OOO as coisas-em-si encontram-se

eternamente fora do alcance humano, o que não se dá devido a uma marca trágica

específica de sua espécie mas, é comum a entes de qualquer qualidade.33 Se a posição

correlacionista situa uma fenda entre a mente humana e os objetos do mundo (o

primeiro jamais desvela o segundo em sua totalidade); a OOO situa esta mesma fenda à

volta de todo e qualquer objeto. Assim, todos os entes são incapazes de desvelar uns

aos outros total e completamente, “quando objetos retiram-se para o interior de suas

escuras realidades subterrâneas, não se distanciam somente dos seres humanos, mas

também uns dos outros”. (Harman, 2002, p.2)34

Mais acerca da maneira como se dão as relações entre objetos será apresentado

à frente, mas é importante que desde já fique claro a forma como a OOO não busca

abolir o correlacionismo kantiano, pelo contrário, assevera-se que o mesmo é válido

para todo tipo de objeto; a privação do em-si é democraticamente multiplicada e

distribuída através de toda a paisagem ontológica: “[a OOO] sustenta que a relação que

o humano tem com o pólen, o oxigênio, as águias ou os moinhos de vento não é de um

tipo diferente da interação destes objetos entre si”.(Harman, 2005, p.1)35 A perspectiva

que um ser humano tem acerca da realidade é essencialmente antropomórfica na

32

Harman, 2005, p. 255 "Existence in the interior of objects is defined by sincerity and involvement, not transcendence and critique." 33

Harman, 2011-B, p. 171 34

Harman, 2002, p. 2 “When the things withdraw from presence into their dark subterranean reality, they distance themselves not only from human beings, but from each other as well.” 35

Harman, 2005, p.1 “(...) object-oriented philosophy holds that the relation of humans to pollen, oxygen, eagles, or windmills is no different in kind from the interaction of these objects with each other.”

Page 14: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

14

mesma medida em que a perspectiva de uma pedra é “lito-mórfica”, ou a de um gato é

“felino-mórfica”.36

Há momentos em que a OOO é acusada de aproximar-se do pampsiquismo, uma

doutrina muitas vezes vista como absurda dentro da esfera do privilégio da

subjetividade humana na Filosofia desde Kant.37 Entretanto, a OOO diferencia-se do

pampsiquismo - que consiste na tese que atribui algum grau de senciência a todo ente

que compõe a realidade física - na medida em que não atribui senciência, ou mente, aos

objetos em geral, mas ela afirma que os objetos (todos ocupando o mesmo patamar

ontológico) interagem sensivelmente, ou seja, através de suas qualidades sensíveis

(estéticas), pois sua essência (real) retira-se de todo e qualquer contato, deixando para

trás somente sua aparência, seus traços perceptíveis.38 Todo objeto é, para a OOO,

dotado da capacidade primitiva de produzir e interpretar fenômenos, uma capacidade

que consiste simplesmente no modo como ele traduz os traços sensíveis dos objetos

com os quais se relaciona, enformado por suas limitações próprias.39 Isso não deve ser

entendido como a antropomorfização das capacidades dos objetos, pois, como afirmado

anteriormente, cada objeto possui seu próprio estilo de interpretação da realidade, sua

própria perspectiva; por exemplo, o estilo “lito-mórfico” de percepção é enformado pela

execução da realidade específica daquela pedra. Ao descansar sobre a mesa o copo a

interpreta como uma superfície sólida que suporta seu peso e, por isso, não cai ao chão.

A chama que queima a folha de papel a traduz como algo inflamável, e apesar de não

ser capaz de encontrar outras características desta mesma folha (como sua cor, sua

textura, o odor de perfume nela impregnado, a beleza da caligrafia antiga ali registrada,

a intensidade da paixão expressa no texto que esta folha de papel - parte de uma carta

de amor - contém) a chama ainda assim consome o papel.

36

Morton, 2013-A, pp. 82, 120 37

Harman, 2011-A, p.120 38

Sprigge, 2000, p.654 39

Harman, 2005, pp.19, 165, 174, 186, 192

Page 15: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

15

Desta forma, neste ensaio serão usados verbos como interpretar, traduzir, ou

mesmo perceber para descrever a maneira como um objeto encontra outro objeto. É

fundamental que estes termos sejam tomados num sentido muito básico e rudimentar,

que pode ser estendido a todos os objetos. Aqui, este encontro consiste em todas as

formas nas quais o objeto é afetado, aquilo que o toca, não necessariamente de forma

física. No exemplo acima, a chama encontra a folha de papel como combustível,

enquanto a folha interpreta a chama como algo que a consome. Também vale chamar a

atenção para o uso da palavra estética (e termos associados); esta expressão, derivada

do verbo grego αισθάνομαι (aisthánomai), fora originalmente identificada por

Alexander Gottlieb Baumgarten com o latim sentio, no sentido da percepção por meio

dos sentidos.40 Porém, assim como a ideia de tradução é neste ensaio empregada em

sensu lato, também é ampla a interpretação dada ao termo estética, que passa a

guardar relação com tudo aquilo que diz respeito à esfera sensível, nos moldes acima

descritos. Um evento estético é, portanto, a maneira como um objeto (qualquer)

impinge sobre outro.41

De acordo com o modelo da OOO, objetos são entes de escalas variadas,

materiais ou não, naturais ou não, simples ou compostos, duráveis ou efêmeros, que

compõem o universo; de forma que martelos, sobreiros, embriões congelados, times de

futebol, bancos de dados, números irracionais, a maratona de Nova Iorque e a Liga da

Justiça são todos igualmente objetos.42 Eles são ainda compostos por objetos, e existem

no interior de objetos - “Toda a realidade desenrola-se no interior de um objeto - ou

melhor, no interior de incontáveis objetos, que se estendem por cima e por baixo uns dos

outros indefinidamente” - no entanto, eles não podem ser reduzidos a um conjunto de

40

Budd, Townsend e Martin, 2000, pp. 7-10, 78, 664-5 41

Morton, 2013-B, p. 51 42

Harman, 2005, pp. 76-7 Harman, 2011-A, p.5

Page 16: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

16

partes, tampouco a mera parte de um todo maior, em outras palavras, não podem ser

minados. (Harman, 2005, p.193)43

Objetos não podem ser reduzidos a suas partes ou à sua percepção por parte de

outros entes, assim como não podem ser reduzidos a seus efeitos sobre o ambiente em

que se encontram. Assim, objetos existem paradoxalmente divididos, confinados no

isolamento da execução de suas realidades específicas (fora do alcance de qualquer

outro objeto), ao mesmo tempo que exibem traços estéticos (sensivelmente

perceptíveis) que, ao contrário de seu núcleo executor, não se escondem ou recuam.44 A

este núcleo isolado a OOO dá o nome de Objeto Real, enquanto o perfil estético (aquilo

que se mostra) recebe o nome de Objeto Sensível. Objetos devem, nestas condições, ser

concebidos (mesmo que um tanto contraditoriamente) como indivíduos discretos e

autônomos que, ao mesmo tempo, não se encontram inteiramente desconectados de

seus componentes ou de outros objetos, pois, todos encontram-se submersos no

oceano de traços sensíveis emanados pelos objetos reais, que este ensaio chama de

plano estético-causal, a esfera na qual existe a possibilidade de interação e contato.45

Uma crítica da história da ontologia

Harman, numa análise das diferentes estratégias adotadas ao longo da história

da Filosofia na abordagem dos objetos, afirma que, em geral, filósofos procuram evitar

tratá-los como fundamento da realidade e, para tal, tomam uma de duas saídas: por um

lado, escapam para um nível mais profundo, subjacente aos objetos, por outro, dão

preferência a um nível acima, do qual objetos são apenas instanciações pontuais. A

busca por um nível mais profundo é o chamado minar (undermine) dos objetos, o

43

Harman, 2005, pp. 85, 193 “All reality unfolds in the interior of an object - or rather, in the interiors of countless objects, stretching above and below each other indefinitely” Morton, 2013-A, pp.43, 169 44

Harman, 2005, pp. 33-44, 76-7 45

Harman, 2013-A, p.238

Page 17: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

17

movimento oposto é seu dissipar (overmine); estes dois movimentos podem ainda ser

combinados.46

Minando o objeto

Os filósofos pré-socráticos foram os primeiros a adotar a estratégia que mina

objetos em busca de um plano mais profundo. Nas teorias dos elementos, por exemplo,

o cosmos seria composto por um elemento em diferentes graus de compressão (Tales,

Anaxímenes) ou pela combinação de um pequeno grupo de elementos básicos

(Empédocles), e o atomismo (Demócrito) é ainda, mais uma variação do mesmo tema.

Também em busca de um nível mais profundo que o dos entes que se mostram no

mundo e na experiência humana houve, ainda entre os pré-socráticos, aqueles fundiram

tudo o que existe num grande todo ou άπειρον (Apeiron) que existiu no passado mas

fragmentou-se, que existe no presente e faz da multiplicidade de objetos uma ilusão dos

sentidos, ou que existirá no futuro quando as diferentes forças em ação hoje já

houverem cancelado umas às outras (Pitágoras e Anaxágoras, Parmênides,

Anaximandro, respectivamente).47

Outra alternativa, mais recente mas que ainda parte da mesma estratégia, são as

teorias processuais, como as de Henri Bergson ou Gilles Deleuze, que procuram pensar a

realidade como algo fluido mas que, no entanto, ao tomarem o Ser como algo dinâmico

(o devir, o jogo da diferença) acabam também por rejeitar os objetos na qualidade de

elementos constituintes básicos, descrevendo-os como instanciações (estáticas

pontuais) de tais fluxos ou processos dinâmicos, que são tidos como mais profundos ou

fundamentais.48

Todas estas abordagens debilitam o objeto, e têm em comum o fato de que os

anulam em favor de uma realidade subjacente, seja esta constituída por pequenas 46

Harman, 2011-B, pp. 172-5 47

Harman, 2011-A, pp. 8-9 48

Harman, 2011-A, pp. 9-10

Page 18: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

18

partículas, por um todo omni-englobante ou por um processo fundamental. Todas elas

têm, ainda, dificuldades em explicitar o motivo pelo qual a unicidade do fluxo (ou do

todo mais primário) fragmentar-se-ia, ou, no caso de múltiplos elementos ou processos,

como e por que o que é plural viria a combinar-se. Estas teorias também têm dificuldade

em justificar qualidades emergentes - aquelas identificadas quando o objeto como um

todo apresenta características que seus componentes não possuem isoladamente.49

Dissipando o objeto

Outra maneira de retirar o objeto do centro da investigação filosófica e tomá-lo

como uma hipótese desnecessária é dissipá-lo. Isto ocorre quando o objeto é definido

relacionalmente: pela maneira como se mostra a um observador, como um feixe

arbitrário de qualidades imediatamente percebidas, como eventos ao invés de

substâncias subjacentes, ou ainda, quando objetos são considerados reais apenas na

medida de seus efeitos.50

Para Harman, o Empirismo consta no grupo de filosofias que dissipam o objeto,

pois afirma que a mente humana é o responsável por interligar traços díspares em

feixes que formam unidades maiores, apreendidas segundo o hábito.51 Para usar o

exemplo de Harman, se a palavra “maçã” for simplesmente o apelido dado a uma série

de qualidades discretas habitualmente ligadas (vermelho, doce, sólido, etc), o objeto

maçã é incapaz de sustentar-se e já não pode ser tratado como um ente autônomo,

pois, o que existe realmente são impressões individuais, entrelaçadas pela mente

(humana) que as percebe. Contudo, este modelo falha, pois, na experiência são

encontrados objetos unificados; “as qualidades individuais das coisas já se encontram

imbuídas com o estilo ou um senso da coisa como um todo. Mesmo se exatamente o

49

Harman, 2013-B, em conferência 50

Harman, 2011-A, pp. 10-1

Harman, 2011-B, p.172 51

Harman, 2005, p. 92

Page 19: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

19

mesmo tom de vermelho da minha maçã puder ser encontrado numa camisa ou numa

lata de tinta spray que esteja por perto, as cores terão uma sensação distinta em cada

um dos casos, já que elas estão ligadas à coisa à qual pertencem”. (Harman, 2011-A,

p.11)52 Apesar do objeto não poder ser reduzido às suas qualidades estéticas, estas

encontram-se definitivamente ligadas ao objeto, constituindo sua parte visível.53

Outro exemplo manifesto da dissipação dos objetos pode ser encontrado no

idealismo absoluto de George Berkeley, que não admite a existência de objetos fora da

mente.54 Se “esse est percipi” (“Ser é ser percebido”), como afirma o filósofo, mais uma

vez, e de modo radical, toda a realidade fica dependente da mente humana,

impossibilitando a existência de objetos reais autônomos.

Enquanto a posição correlacionista defende objetos que dependem de uma

mente (racional), Alfred North Whitehead e Bruno Latour são dois exemplos de uma

outra possibilidade, eles sustentam que objetos existem de maneira co-determinante,

ou seja, um dado objeto só pode ser determinado em relação a outros entes - neste

caso entes de qualquer qualidade - com quem ele estabelece alguma forma de relação.

Os objetos de Latour são definidos como aquilo que transforma, modifica, perturba ou

cria outro(s) objeto(s).55 Similarmente, os objetos de Whitehead são delineados a partir

da soma de suas preensões - a forma como um objeto apreende outros.56 Note como

estes entes já não dependem da mente humana, tampouco de mente alguma, para que

sejam estabelecidos; este é um traço importante, pois, desta maneira toda a esfera do

não-humano pode ser incluída na tarefa da determinação do real, enquanto as relações

entre quaisquer objetos passam a ocupar o mesmo nível ontológico - um dos objetivos

52

Harman, 2011-A, p.11 "(...) the individual qualities of things are already imbued with the style or feel of the thing as a whole. Even if the exact hue of red in my apple can also be found in a nearby shirt or can of spraypaint, the color will have a different feel in each of these cases, since they are bonded to the thing to which they belong." 53

Harman, 2011-A, pp. 48-49 54

Downing, 2013 55

Latour, 1999, pp. 303, 308, 311 56

Whitehead, 2010, p.63, para uma definição das preensões positivas e negativas. Harman, 2011-A, p.12, 46

Page 20: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

20

deste ensaio. Entretanto, esta co-determinação implica a redução dos objetos ao modo

como se manifestam para um outro, pois, nenhuma parte de sua realidade intrínseca

fica guardada em reserva, fora do alcance de outros entes.57

Como é possível concluir, objetos podem ser dissipados de diversas formas, basta

que seus contornos sejam definidos relacionalmente, roubando-lhe de sua

primordialidade ontológica e autonomia. Porém, este não é o único problema criado

pela dissipação dos objetos. Se um ente (ou a realidade como um todo) correspondesse

estritamente ao modo como fosse dado num certo momento, não haveria motivação

para que mudança alguma ocorresse, pois, não existiriam no objeto reservas que

efetivassem tal mudança; o objeto encontra-se-ia esgotado naquela expressão

pontual.58

Harman aponta ainda para a maneira como o filósofo francês Tristan Garcia

combina as duas possibilidades (o minar e o dissipar do objeto) quando define o objeto

como a diferença entre seus componentes internos e o contexto externo.59 Desta

maneira, é primeiro necessário determinar as partes componentes do objeto (minando-

o), e na sequência é executada a ação dissipadora da listagem dos efeitos que este

objeto tem em seu contexto, só então é possível traçar seus contornos, obtidos através

da subtração da parcela de elementos constituintes do contexto geral. Esta posição é

problemática na medida em que o objeto torna-se algo absolutamente frágil, que deixa

de ser o mesmo ente caso qualquer mudança, mesmo ínfima, ocorra em seu contexto

ou partes.60

57

Harman, 2011-A, The Quadruple Object, p.12 58

Harman, 2011-A, The Quadruple Object. pp.12-13 59

Harman, 2012-B, p. 8 60

A esta combinação das estratégias que minam (undermine) e também dissipam (overmine) o objeto Harman dera o nome de duomining.

Page 21: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

21

Devido a todas essas dificuldades uma ontologia objeto-orientada busca prevenir

que objetos sejam quebrados em pequenas partes ou engolidos por objetos maiores

(minados), além de evitar eles sejam definidos simplesmente como projeções ou

reflexos de outros entes (dissipados). Tal objeto-orientação incide, portanto, sobre um

nível intermediário, povoado por entes autônomos que se retiram e isolam, elevando-se

acima de seus componentes - que fazem do objeto algo demasiado superficial - mas

mergulhando sob as manifestações mentais e efeitos-para (outros entes) - que os

condena à dissolução.

Harman aponta Aristóteles como o primeiro filósofo (ocidental) a tomar objetos

individuais como tema central, “para ele [Aristóteles], o abismo importante já não se

encontra entre as formas perfeitas e suas manifestações imperfeitas na matéria. Ao

invés disso, existem duelos acontecendo no coração dos próprios objetos: entre um gato

individual e seus traços acidentais fugazes, ou entre aquele gato e suas qualidades

essenciais”. As próprias mônadas postuladas por G.W. Leibniz são, assim como os

objetos de Harman, herdeiras de Aristóteles, pois, são descritas como entes não só

individuais, como também unificados. Todas estas teorias (Aristóteles, Leibniz, Harman)

podem ser descritas como filosofias que lidam com substâncias.61

Entretanto, se tradicionalmente substâncias devem ser naturais, simples,

indestrutíveis e reais (ou possuir ao menos algumas destas características), os objetos

da OOO não são obrigados a apresentar nenhum destes traços, podendo até tomar a

forma de um objeto artificial, composto, fictício e passível de ser aniquilado.62 Os

contornos de um objeto são traçados pela maneira como ele não pode ser minado ou

dissipado, ou seja, reduzido a suas partes ou definido em relação a outro objeto;

pessoas, bonecas de plástico, sardinhas e raios solares, são todos objetos.63

61

Harman, 2011-A, pp. 17-18 62

Harman, 2005, pp.85-86 63

Morton, 2013-A, p.222

Page 22: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

22

A decisão de tomar-se o objeto, nestes moldes, como fundamento ontológico

parte tanto dos problemas que outros modelos apresentam, como também da maneira

como objetos hoje, com a (recente) compreensão de que a História não é

exclusivamente humana, mas consiste na interseção entre múltiplos entes e diferentes

temporalidades, fato que o Antropoceno demonstra de maneira especialmente

reveladora. Objetos, como a máquina a vapor ou o plutônio, que incidem violentamente

não apenas sobre a existência humana, mas também sobre o planeta e todos os seus

(outros) habitantes, exercem agora larga influência sobre todo tipo de decisão humana.

Novas políticas, novos hábitos e novos desafios são impostos sob a sombra do

aquecimento global e seus efeitos perturbadores de escala planetária.64

Os objetos e suas relações

A seguir o conceito de objeto será aprofundado e será também descrita a forma

como estes objetos estabelecem relações entre si. A proposta a ser desenvolvida

consagra os objetos como entes ontologicamente primários, irredutíveis (a seus

fenômenos, relações, usos ou efeitos), portanto, autônomos que, independentemente

de suas naturezas específicas, encontram-se no mesmo patamar ontológico.65 Esta

desierarquização põe em questão a centralidade, e mesmo a necessidade, do ser

humano na determinação do real (a postura correlacionista), e distribui tal papel

democraticamente entre os variados entes. Será defendido que os diferentes objetos

executam suas realidades específicas segundo um mesmo modelo, de acordo com o

qual eles existem divididos entre um nível profundo - o objeto real - que se retira e isola

64

Morton, 2013-A, p.49 Morton, 2013-B, pp.4-5 65

Harman, 2011-A, pp. 142-143 Harman, 2005, pp.79, 85, 110, 190, 192 Morton, 2013-A, pp.17-8, 30, 55, 169

Page 23: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

23

de qualquer contato, e uma superfície de efeitos estéticos - o objeto sensível - que

funciona como o intermediário nas relações entre objetos.66

Dois filósofos merecem destaque nesta seção - o pai da fenomenologia, Edmund

Husserl, e seu herdeiro rebelde, Martin Heidegger - pois, as ideias de ambos serviram

como base para a concepção do objeto nos moldes descritos acima - como componente

ontologicamente primário, autônomo e irredutível a suas partes ou a seus efeitos. Dos

objetos intencionais de Husserl, Harman deriva o objeto sensível, e numa

reinterpretação da análise do instrumento de Heidegger, ele chega à noção de objeto

real.

O objeto sensível

Através da chamada redução fenomenológica (ἐποχή - epoché) - que consiste na

suspensão das considerações a respeito de tudo que é transcendente à mente - “O eu

como pessoa, como coisa do mundo, e a vivência como vivência desta pessoa, inseridos

(...) no tempo objetivo: tudo isso são transcendências e, enquanto tais,

gnoseologicamente zero” - Husserl busca atingir o conhecimento das essências

imanentes dos objetos.67 Esta suspensão completa de toda consideração acerca do

mundo natural objetivo é uma maneira radical de manter-se circunscrito na correlação

kantiana, e faz com que os objetos intencionais da fenomenologia sejam

fundamentalmente dependentes da consciência (humana).68

Ao dirigir sua atenção a um certo objeto, ao tomá-lo como tema, o indivíduo o

“intenciona”; o que é desta maneira “intencionado” - o objeto dos atos mentais de um

indivíduo - é aquilo a que Husserl dá o nome de objeto intencional. Estes objetos

66

Harman, 2011-A, pp. 5, 20-50 67

Husserl, 1986, pp.69-72 68

Harman, 2011-A, p.22

Page 24: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

24

intencionais são sempre realidades mentais íntegras, ou seja, não são simples maços de

atributos perceptíveis, mas sim, objetos (intencionais) unos.69

Da mesma maneira, os chamados objetos sensíveis da OOO são aqueles que

apenas existem relacionalmente. São eles os “perfis sensíveis”, ou fenômenos, que um

objeto apreende com base em outro, com quem entra em contato. Nas palavras de

Harman: “objetos sensíveis são aqueles que existem apenas na experiência de um

outro objeto - como as imagens mentais de gatos ou árvores em contraposição a estes

objetos em-si”. (Harman, 2012-A, p.18)70

No âmbito deste ensaio, a principal diferença entre os objetos intencionais de

Husserl e os objetos sensíveis da OOO encontra-se na maneira como a OOO não limita a

capacidade intencional a indivíduos dotados de mente.71 Objetos estão constantemente

construindo “modelos sensíveis” dos objetos com os quais interagem (segundo a

estrutura do como, que será apresentada à frente); estes modelos são a própria

condição de possibilidade para o contato entre objetos (como também ficará explícito

na discussão acerca da causalidade vicária); "um objeto sensível é uma aparência-para

outro objeto". (Morton 2013-B, p.118)72

A maneira como Husserl rejeita a entrada de quaisquer preconceitos com origem

na realidade objetiva em sua análise fenomenológica, e privilegia exclusivamente a

esfera subjetiva humana é, em grande parte, fonte do mesmo tipo de antropocentrismo

presente, e exacerbado, em Heidegger - que, por sua vez, sustenta que somente através

da interrogação acerca do sentido do Ser do Dasein (e para Heidegger Dasein é

exclusivamente humano) é possível atingir-se uma interpretação do sentido do Ser

69

Harman, 2011-A, p.24-5 70

Harman, 2012-A, p.18 “In my own philosophy, sensual objects are those that exist only in the experience of another object - such as mental images of cats and trees in distinction from these objects themselves.” 71

Harman, 2005, p.19 72

Morton, 2013-B, p. 118 "A sensual object is an appearance-for another object."

Page 25: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

25

(Sein) em geral.73 Ambos (Husserl e Heidegger) mantêm-se fiéis aos limites traçados por

Kant, que em sua Crítica da Razão Pura declara: “toda a nossa intuição nada mais é do

que a representação do fenómeno; (...) as coisas que intuímos não são em si mesmas tal

como as intuímos, nem as suas relações são em si mesmas constituídas como nos

aparecem (...), se fizermos a abstração dos sentidos em geral, toda a maneira de ser,

todas as relações dos objectos no espaço e no tempo e ainda o espaço e o tempo

desapareceriam; pois, como fenómenos, não podem existir em si, mas unicamente em

nós”.74 Neste movimento Kant extingue a possibilidade de conhecimento humano

acerca de tudo que jaz para além dos fenômenos.

A OOO assegura ser necessário abandonar-se o pressuposto tácito que afirma

que a fenda entre o humano (ou o Dasein) e o mundo é a única abertura filosoficamente

significante, o único caminho ao longo do qual os problemas da Filosofia podem

desenrolar-se; “todo preconceito vago em relação à suposta gradação entre os

diferentes tipos de entes (...) não devem ser contrabandeados para dentro da esfera das

distinções ontológicas básicas”. (Harman, 2005, p.190)75

O objeto real

Assim como Harman toma como base para seu objeto sensível o objeto

intencional de Husserl, ele faz uso da compreensão heideggeriana a respeito da esfera

objetiva (visto que Heidegger não restringe sua investigação ao âmbito dos fenômenos)

ao delinear o, já mencionado, objetos real, que consiste no desempenho de uma

73

Harman, 2005, p.74-5 Morton, 2013-B, p.14 Heidegger, 1977, p. H15 74

Kant, 1989, p.78-79 75

Harman, 2005, p.190

“All loose initial prejudice concerning the supposed gradation between different types of living and inanimate entities must not be smuggled into the realm of basic ontological distinctions.”

Page 26: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

26

realidade específica da qual somente ele é capaz; uma execução que se dá de maneira

oculta, em total isolamento.76

Apesar da prescrição fenomenológica, presente na introdução ao segundo

volume de suas Investigações Lógicas, que exorta a Filosofia a voltar-se para as

“próprias coisas”, Husserl toma a consciência da primeira pessoa como

epistemicamente básica, afirma que seu estudo sistemático é a tarefa fundamental da

Filosofia e, paradoxalmente, acaba por tratar das coisas do mundo somente na medida

em que estas se mostram à consciência.77 E é exatamente sobre este ponto (a

insistência em lidar apenas com aquilo que se encontra de alguma forma presente na

mente) que gira a crítica de Heidegger àquele que fora seu mestre, pois, ele acredita

que os atos mentais conscientes compõem apenas uma pequena fração de tudo aquilo

que constitui a experiência de um indivíduo, na maior parte das vezes as coisas com as

quais ele interage não chegam a irromper à consciência, pois, o objeto retira-se em

favor de sua execução.78

No terceiro capítulo da primeira parte de Ser e Tempo, Heidegger desenvolve sua

célebre análise do instrumento, na qual demonstra como o Dasein, em grande parte,

não encontra os entes do mundo na forma de uma simples percepção pura, mas em seu

“uso”.79 A não ser que o instrumento sofra alguma espécie de avaria, esteja ausente, ou

ainda, servindo de obstáculo aos objetivos do Dasein, ele encontrar-se-á retirado - na

execução silenciosa de seus efeitos, que é a expressão de sua realidade única e

específica - além de fundido numa grande rede de atribuições e referências à qual todo

instrumento pertence, e da qual Dasein é o referente máximo.80 Assim, toda ação

76

Harman, 2011-A, pp.73-4 77

Husserl, 2007, pp.29-30 Harman, 2011-A, p. 21 78

Harman, 2011-A, pp. 36-7 79

Heidegger não limita o termo “uso”, bem como o termo instrumento (das Zeug), a seu sentido corrente; por “uso” ele designa a forma como o ser humano conta com estes objetos de maneira não temática, e por instrumento, qualquer tipo de objeto passível de ser encontrado (e “utilizado”) pelo Dasein. Heidegger, 1977, p.H67 80

Heidegger, 1977, pp.H68-76

Page 27: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

27

humana dá-se em meio a uma multiplicidade de instrumentos: “os debates mais

matizados em um laboratório estão à mercê de um fundamento silencioso de piso,

parafusos, ventiladores, gravidade e oxigênio atmosférico”. (Harman, 2002, p.18)81

Heidegger evidencia o modo como, no desenrolar de seu dia a dia, o Dasein não

encontra objetos como agregados de matéria física mas, ele conta com, e faz uso de

seus efeitos. Uma cerca de arame, antes de ser encontrada como tópico da

preocupação do carteiro (caso isto ocorra), é encontrada de maneira não temática

(Zuhanden), como um instrumento do qual ele faz uso na medida que a cerca ajuda a

constituir uma realidade na qual o cão não o consegue morder.82

Esta constatação - de que usualmente as coisas não aparecem simplesmente

como fenômenos, mas escapam para uma esfera despercebida e velada - é novamente

ampliada e redistribuída pela OOO, que remove o Dasein do papel de herói fundador de

toda a realidade e afirma que todo tipo de objeto possui esta mesma capacidade, muito

básica e primária.83 Assim como para Whitehead, para Harman todo tipo de relação

está situado no mesmo nível ontológico, independentemente do envolvimento

humano.84 Se o carpinteiro utiliza o martelo sem, ao mesmo tempo, dar-se conta de sua

composição química, da maneira como o cabo prende-se à cabeça metálica, ou da

evolução histórica daquela ferramenta, ou seja, apenas fazendo uso de seu efeito-

martelo, então, da mesma maneira, o martelo “fará uso” do prego, sem que seja

imprescindível que ele tenha consciência de que material específico aquele prego é

composto, qual é sua cor ou peso, mas simplesmente encontrando um ente que

naquele momento expressa uma realidade específica (de algo rígido, que resiste às

marteladas e pode ser enterrado num pedaço de madeira).

81

Harman, 2002, p.18 “(...) the most nuanced debates in a laboratory stand at the mercy of a silent bedrock of floorboards, bolts, ventilators, gravity, and atmospheric oxygen.” 82

Daí a oposição Zuhanden / Vorhanden, na qual o primeiro termo expressa a modalidade não temática, e o segundo a modalidade temática do encontro do Dasein com os entes no mundo. 83

Harman, 2011-A, p. 44 84

Harman, 2011-A, p. 46

Page 28: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

28

Entretanto, a OOO rejeita a noção de que enquanto não tomados teoreticamente

(Vorhandenheit) os objetos encontram-se fundidos num grande todo instrumental, pois,

esta seria uma maneira de minar (a autonomia de) cada ente específico. No modelo

objeto-orientado, o objeto executa constantemente aquilo que ele próprio é, uma

realidade una, não-permutável, autônoma, e a única maneira de fazer-lhes jus é

considerá-los a) livres de toda relação, e b) mais profundos que qualquer

reciprocidade.85 Objetos reais, declara Harman, “são a krypto ousia [κρυπτώ ουσία]

indomável ou a realidade que de fato constitui cada ente: sua execução irredutível em

meio ao cosmos, absolutamente distinta da execução de qualquer outra coisa”.

(Harman, 2005, p.110)86 Enquanto uma superfície de efeitos estéticos é apreendida por

objetos que entram em relação, a essência real ou, o Ser em sentido profundo,

encontra-se infinitamente retirado e inacessível. Posto de outra forma, todo objeto

possui estes dois lados: uma essência, que se afasta e isola de qualquer contato sendo,

ainda assim, responsável pela determinação daquele objeto específico, e sua

aparência - dotada de múltiplos traços, porém, unificada - o modo como ele é

percebido por outros objetos.

Tanto um estudo científico aprofundado, quanto o uso não-temático que um

objeto faz de outro, não são capazes de alcançar totalmente a realidade expressa por tal

objeto; em outras palavras, nem a teoria, nem a prática o esgotam.87 Harman elabora:

“Uma faca tem obviamente uma realidade muito diferente quando usada na cozinha de

um restaurante, num banquete de casamento ou num triplo homicídio macabro. Mas

(...) não existe uma oposição real entre uma faca isolada na consciência e uma faca

invisivelmente usada (...) em ambos os casos ela é tratada apenas em relação a outro

85

Harman, 2011-A, p. 47 86

Harman, 2005, p. 110 “(...) the unmasterable krypto ousia or hidden reality that actually makes up each entity: its irreducible execution amidst the cosmos, utterly distinct from the execution of anything else.” 87

Harman, 2011-A, p.39

Page 29: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

29

algo, não em si própria”. (Harman, 2011-A, p.43)88 Por isso, ele afirma que a real

oposição presente na análise do instrumento de Heidegger não é aquela entre teoria e

prática - como muitos comentadores afirmam - mas aquela que existe entre a realidade

retirada de um objeto real (jamais encontrada por outro) e a apreensão parcial e

sobredeterminada que dele é feita por um outro objeto, enformado por suas

respectivas capacidades e limitações.89

A estrutura do como

A possibilidade de um objeto ser encontrado como aquilo que ele é (aquele

objeto específico) por outros entes (ex.: uma cadeira é uma cadeira para os seres

humanos, que desfrutam de sua qualidade de assento) confirma sua primordialidade

ontológica, pois, os contornos específicos de um objeto correspondem aos contornos

específicos da diferença ontológica que Heidegger insiste em manter clara: a diferença

entre os entes em geral (Seiendes) e o Ser (Sein) desses entes - “aquilo que determina

entes como entes”. (Heidegger, 1977, p. H6)90

Para Harman, “todo fenômeno é necessariamente uma aparência tomada ´como´

algo, seja este algo uma alucinação vazia ou um fato inquestionável. Mas a coisa ´como´

coisa não é o mesmo que a coisa-em-si, que não pode, nunca, ser abertamente

encontrada”. (Harman, 2002, p.69)91 Assim, a coisa-como-coisa corresponde ao

88

Harman, 2011-A, p. 43 “A knife obviously has a very different reality when used in a restaurant kitchen, at a wedding banquet, or in a grisly triple homicide. But (...) There is no real opposition between an isolated knife in consciousness and an invisibly used knife (...) in both cases it is treated only in relation to something else, not in its own right.” 89

Harman, 2011-A, p.42-3 90

Harman, 2002, p. 238 Heidegger, 1977, p. H6 “Das Gefragte der auszuarbeitenden Frage ist das Sein, das, was Seiendes als Seiendes bestimmt, das, woraufhin Seiendes, mag es wie immer erörtert werden, je schon verstanden ist. Das Sein des Seienden ´ist` nicht selbst ein Seiendes” 91

Harman, 2002, p. 69

Page 30: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

30

fenômeno, o objeto da experiência de um ente (qualquer); enquanto a coisa-em-si é a

substância determinante do objeto, aquela essência que recede e retira-se de qualquer

relação, jamais podendo ser acessada diretamente.

Harman deriva este encontrar-como, em grande parte, da noção da estrutura do

como (Als-Struktur) desenvolvida por Heidegger: “Aquilo que é revelado pelo

entendimento - aquilo que é compreendido - encontra-se já acessível de tal forma que

seu ´como` pode ser destacado explicitamente. O ´como` compõe a estrutura da clareza

de algo que é compreendido. Ele constitui a interpretação. Ao lidar com aquilo que se

encontra à mão [Zuhandenen] no ambiente e interpretá-lo circunspectamente, nós

´vemos` algo como uma mesa, uma porta, um carro, ou uma ponte; mas o que assim

interpretamos não precisa ainda ser decomposto em uma afirmação que o caracterize

definitivamente. Qualquer visão pré-proposicional do que está à mão é, em-si, algo que

já compreende e interpreta”. (Heidegger, 1977, p.H149)92

Entretanto, para a O.O.O. esta interpretação, este encontrar algo como aquilo

que ele é, novamente em contraste com Heidegger, é algo comum a toda e qualquer

espécie de objeto, não estando restrita à relação que o Dasein (humano) tem com os

entes do mundo; “Se de alguma forma o papel não encontrasse a faca ´como` faca, ele

jamais poderia ser danificado por tal faca. Isto para dizer que o tipo específico de dano

que ele sofre demonstra que o papel encontra, sim, a faca como faca e não como uma

chama ou uma pedrinha inofensiva”. (Harman, 2002, p.32)93 Com este exemplo Harman

“Every phenomenon is necessarily an appearance taken ´as` something, whether it be empty hallucination or unshakeable fact. But the thing ´as` thing is not the same as the thing itself, which can never be openly encountered.” 92

Heidegger, 1977, p. H149 (minha ênfase) “Das im Verstehen Erschlossene, das Verstandene ist immer schon so zugänglich, daß an ihm sein ´als was` ausdrücklich abgehoben werden kann. Das »Als« macht die Struktur der Ausdrücklichkeit eines Verstandenen aus; es konstituiert die Auslegung. Der umsichtigauslegende Umgang mit dem umweltlich Zuhandenen, der dieses als Tisch, Tür, Wagen, Brücke ´sieht`, braucht das umsichtig Ausgelegte nicht notwending auch schon in einer bestimmenden Aussage auseinander zu legen. Alles vorprädikative schlichte Sehen des Zuhandenen ist an ihm selbst schon verstehendauslegend.” 93

Harman, 2002, pp. 32, 70

Page 31: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

31

deixa clara a maneira como um objeto é experimentado como aquilo que ele é por um

outro objeto qualquer (não somente pelo ser humano), além da forma como senciência,

consciência, inteligência ou mente, não são, de forma alguma, atributos essenciais para

que experiência, pecepção ou interpretação exista, ao menos no sentido primitivo e

rudimentar aqui adotado: a versão caricatural e sobredeterminada que um objeto faz de

outro.

Assim, todos os objetos (ser humano, palmeira, drosophila, tupperware, muralha

da China, cometa ou grão de pó) experienciam a realidade através de descrições

individuais que são capazes de produzir a partir deste contato - certamente diferentes e

provavelmente menos complexas que os fenômenos da experiência humana, porém,

qualitativamente da mesma espécie e, portanto, tratadas como fenômenos por este

modelo. Visto que ente nenhum se pode fazer presente de maneira a desvelar sua

realidade mais profunda completamente, a estrutura do como é, já de partida, sempre

um simulacro.94

Em seu existir, cada objeto está constantemente a interpretar a realidade na qual

encontra-se presente; ele a traduz em fenômenos congruentes à sua própria estrutura;

pode-se dizer, por exemplo, que a percepção humana é uma tradução antropomórfica -

enformada pelos limites do organismo humano, sistemas simbólicos específicos e

condições socialmente mediadas de construção de conhecimento - dos objetos do

mundo. As ideias de Alphonso Lingis, apesar de baseadas numa definição de objeto mais

estreita (restrita a entes materiais), assemelham-se ao pensamento objeto-orientado

quando ele afirma que através de sua forma um objeto é secretamente em si mesmo ao

mesmo tempo que o é para quem o percebe; “sob as formas que fizeram os objetos

palpáveis e domesticados, suas naturezas internas estão vestidas e ocultas”. (Lingis,

“(...) if paper did not somehow encounter knife ´as` knife, it could never be damaged by that knife. That is to say, the special kind of damage it undergoes shows that it does encounter the knife as a knife, rather than as a flame or harmless pebble.” 94

Harman, 2002, pp. 71-5

Page 32: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

32

1998, p.77)95 Harman dá o seguinte exemplo: uma truta que teve a infelicidade de

habitar um lago poluído pode descobri-lo venenoso, entretanto, ´venenoso` não é um

atributo estático estacionado na superfície do lago à espera de ser encontrado, mas

uma propriedade relacional que requer a truta não menos que o lago para efetivar-se.

Este exemplo demonstra como independentemente das propriedades usadas na

definição do lago, elas serão sempre relacionais. Por este motivo não é possível

especificar o Ser do lago (ou de qualquer objeto) diretamente, pois, seus contornos são

sempre traçados através da perspectiva de um outro objeto.96 Porém, isto não significa

que o lago não existe em-si mas antes, que não é possível para ente algum acessar o

lago-em-si diretamente.

Causalidade vicária

Porém, possível alcançar os objetos indiretamente, e apenas indiretamente. É

exatamente nisso que toda relação entre entes (sejam eles humanos ou não) consiste: o

que é encontrado, - uma vez que a essência fundamental de um objeto está sempre

escondida - são perfis sensíveis, manifestações estéticas, aparências.

É característico da própria relacionalidade o modo como o contato entre

objetos reais nunca acontece diretamente, mas sempre através de um objeto sensível.

A forma como o objeto obrigatoriamente se afasta de todo e qualquer tipo de contato

não significa que ele esteja escondido (espacial, material ou temporalmente) podendo

ainda ser encontrado; retirado de toda relação implica que a essência deste objeto - o

que o determina como aquilo que ele é - encontra-se absolutamente isolada, fora do

alcance de qualquer tipo de acesso, qualquer forma de percepção, mapeamento,

95

Lingis, 1998, pp.74-7 “Under their forms which have made things graspable and domesticated, their inner natures are clothed and concealed.” 96

Harman, 2002, p. 224 O termo ´aparência`, neste texto, não está restrito ao conjunto de características apreendidas visualmente, mas refere-se ao conjunto global de atributos que podem ser encontrados num dado objeto.

Page 33: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

33

narrativa, teste ou extrapolação heurística.97 O objeto “não é um prático ´universal` em

funcionamento, mas sempre um indivíduo, sempre a execução discreta de uma realidade

localizada não-permutável”. (Harman, 2002, p.270)98

Se não existe contato direto entre objetos reais, ao mesmo tempo que, de

alguma forma, correntes causais são de fato estabelecidas entre os entes no mundo

(como atesta a experiência humana), estas relações devem dar-se obrigatoriamente de

maneira indireta, via objetos sensíveis. A esta conexão indireta, a maneira como todo

tipo de encontro entre objetos ocorre, Harman dá o nome de causalidade vicária.

"Assim como a percepção explícita, a reação causal é sempre apenas uma resposta a

uma gama limitada de fatores no ente causativo; outros traços são preteridos, [e

permanecem] escondidos do objeto que vai a seu encontro". (Harman, 2002, p.223)99

Lingis descreve precisamente este mecanismo quando declara que um objeto é “ao

engendrar imagens de si próprio, reflexos, sombras, máscaras, caricaturas de si mesmo”,

e ele afirma ainda que objetos não podem ter sua realidade reduzida aos “puros fatos”

da observação empírica, tampouco a seu perfil prático; todo objeto possui uma

profundidade inascessível. (Lingis, 1998, p.114)100

A única espécie de contato possível é aquele que acontece entre o objeto real e

o objeto sensível que ele experiencia. Assim, as relações entre objetos são sempre

assimétricas, ou seja, ocorrem numa única direção.101 O objeto-real-barco encontra o

objeto-sensível-mar como algo com uma densidade específica, sobre o qual ele 97

Morton, 2013-A, p. 54 98

Harman, 2002, p. 270 “The tool-being is not a handy functioning ´universal`, but always an individual, always the discrete execution of some localized and unexchangeable reality.” 99

Harman, 2007, pp. 187-221. Harman, 2002, p. 223 "Just like explicit perception, causal reaction is always only a response to a limited range of factors in the causative entity; other features are passed over, concealed from the object that runs up against it." 100

Lingis, 1998, p. 114 “A thing is, we argue, by engendering images of itself, reflections, shadows, masks, caricatures of itself. Things are not reduced to their reality by being reduced to facts; the ´pure facts´ of empirical observation are abstracts of intersecting scientific theories, logics, and effects of technological engineering. But things are also not reduced to their reality by being perceived in their practicable format.” 101

Harman, 2011-A, pp.75-8

Page 34: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

34

consegue flutuar; o segundo é, assim, uma tradução produzida pelo primeiro

(enformada por sua composição material, sua forma, etc), cuja base é o perfil sensível

irradiado pelo objeto-real-mar. A ligação inversa (entre o objeto-real-mar e o objeto-

sensível-barco) constitui uma outra relação.

Através da estrutura do como e mediados pelos objetos sensíveis os objetos reais

fazem contato (sempre indireto), influenciando-se e tomando parte nas correntes

causais. Ao passo que a esfera sensível (em outras palavras, o domínio estético) abriga

toda e qualquer relação possível entre objetos, conclui-se que toda relação causal é,

essencialmente, uma relação estética, uma afirmação que Harman qualifica da seguinte

maneira: “(...) se agora dizemos que o universo tem uma estrutura estética ou

metafórica, isso não tem relação alguma com o tema já gasto do artista humano

projetando seus valores sobre um universo arbitrariamente perspectivo. Pelo contrário,

esta é uma afirmação metafísica sobre o modo como as gotas de chuva ou as

tempestades de areia interagem entre si mesmas quando não há ser humano algum em

cena. Esta ideia não consiste no velho conto pós-moderno da ´vida como literatura`, mas

sim, na própia causalidade como música, escultura e teatro de rua”. (Harman, 2005,

p.174)102

Aquilo a que se dá o nome de causalidade depende, assim, das duas fendas

abordadas acima, aquela que existe dentro do próprio objeto - cindindo-o entre sua

essência retirada (o objeto real) e seus efeitos estéticos (o objeto sensível) - e a fenda

102

A conclusão de que toda relação causal é uma relação estética aparece em múltiplos livros e artigos tanto de Harman como de Morton. Por este motivo, no artigo On Vicarious Causation (que, como o título indica, é inteiramente dedicado a este tema) ele defende a Estética como primeira filosofia. Morton dedica todo o seu livro Realist Magic - Objects, Ontology, Causality ao desenvolvimento desta única afirmação, sendo assim uma fonte ampla de argumentação neste sentido. Harman, 2007, p. 221 Morton, 2013-A, especialmente pp. 20-1, 24, 30-6, 64-74, 82, 90-101 Harman, 2005, p.174 “For this reason, if we now say that the universe has an aesthetic or metaphorical structure, this has nothing to do with the shopworn theme of a conscious human artist projecting values onto an arbitrary perspectival universe. Instead, it is an actual metaphysical statement about the way that raindrops or sandstorms interact among themselves even when no humans are on the scene. The point is not the old postmodern chestnut of ´life as literature`, but rather causation itself as music, sculpture, and street theater.”

Page 35: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

35

intransponível que existe ao redor dos diferentes entes.103 Sem estas duas tensões o

cosmos poderia ser resumido na maneira como é ele dado em um instante qualquer,

não havendo uma fonte plausível para o dinamismo que possibilita qualquer mudança;

o resultado seria um universo estático.104 Entretanto, exatamente porque um objeto

nunca é uma expressão adequada de si próprio, já que entes são sempre aparências, e

aparências são sempre para-um-outro-ente, é possível afirmar que objetos são

dialeteicos (do grego διαλέθεια - dialetheia - dupla verdade), ou seja, são aquilo que

mostram e, ao mesmo tempo, não são redutíveis àquilo que se mostra. Existe, assim,

dentro de cada objeto uma certa instabilidade que, no entanto, concede dinamismo

suficiente para impulsionar toda causalidade.105

Morton afirma que “objeto não significa objetificado. Antes, significa totalmente

incapaz de objetificação”; com esta afirmação ele pretende ilustrar a maneira como

objetos existem sempre fendidos entre a execução íntima de sua realidade específica e

única - o objeto real - e seu perfil estético, que se mostra sinceramente e influencia

outros objetos, envolvendo-se nas correntes da causalidade - o objeto sensível.106 Este

ensaio abordou até aqui esta contradição no coração do objeto; foi também

apresentada a maneira como objetos são os elementos componentes do universo de

maneira geral, possuindo primordialidade ontológica em relação a seus efeitos e suas

partes. Outro ponto aqui discutido foi a maneira como entes de toda espécie são

considerados objetos pela OOO, sejam eles materiais, simples, duradouros, naturais, ou

não; e todos eles ocupam o mesmo patamar ontológico, pois, obedecem as mesmas

regras no que diz respeito ao modo como existem e interagem.

103

Morton, 2013-B, p.83 104

Harman, 2011-A, p.12 105

Morton, 2013-A, especialmente pp. 31-2, 74-6 106

Morton, 2013-A, p.176

Page 36: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

36

O restante deste ensaio ocupar-se-á das implicações que uma base ontológica

nestes moldes tem para a Ecologia. Será defendido que com o encetamento do

Antropoceno, esta maneira (não-antropocêntrica) de pensar tornou-se não só possível,

mas incontornável.

Page 37: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

37

Ecologia Objeto-Orientada

Ecologia: ubíqua e imprecisa

Se, por um lado, é reconhecida a maneira como, apesar de abranger uma grande

variedade de subdisciplinas, a Ecologia desempenha um papel marginal dentro da

Filosofia, por outro, ´filosofias ecológicas` abundam fora da academia. 107 A partir de

meados do séc. XX - quando as evidências dos transtornos ambientais causados pelo ser

humano no planeta atingiram uma magnitude incontornável - considerações

especificamente ligadas ao meio ambiente, e à influência humana sobre este,

começaram a emergir de maneira semelhante a como nos séculos XVIII e XIX as

alterações na paisagem, provocadas pelo início e subsequente instalação da indústria,

induziram filósofos e poetas românticos a refletir acerca do mundo à sua volta e a

exaltá-lo, tendo como foco de sua reflexão todo o meio ambiente - em outros termos, a

Natureza.108 O livro Silent Spring, de Rachel Carson, que documenta os efeitos

prejudiciais do uso indiscriminado de pesticidas, é o primeiro exemplo significativo de

obras, surgidas ao longo do último meio século, que tomam o meio ambiente como

tema central e é muitas vezes reconhecido como impulsionador de toda uma onda de

outras considerações.109

107

Sarkar, 2014

Morton, 2014-A, primeiro seminário 108

Luke, 1997, p. xi Hay, 2002, pp. 4-11 109

Luke, 1997, p. 211

Page 38: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

38

Como justificativa parcial para esta ausência de investigações filosóficas

abertamente dedicadas à Ecologia este ensaio aponta para dificuldades na definição dos

limites do próprio conceito (de Ecologia), que são inúmeras, além da difícil relação entre

teoria e ativismo ecológico (ou ambiental) que, por vezes, são equivalentes e

confundem-se mas, por outras, apresentam objetivos contrastantes (o primeiro mais

focado na estruturação teórica e no desenvolvimento das bases conceituais e o segundo

nas questões de ordem prática, de efeitos mais imediatos).110

Muitas vezes associada a, quando não dependente de, dicotomias e conceitos

problemáticos (como Natureza/Cultura, vida/não-vida, humano/não-humano) a

Ecologia tende a tratar de certas porções do cosmos em detrimento de outras; florestas,

recifes de coral e ursos panda são incluídos, enquanto eletricidade, balões de festa e

teclados de computador parecem situar-se totalmente fora de seu escopo. De maneira

intuitiva, com base nas significações correntes, é fácil reconhecer uma associação de

observadores de pássaros como uma instituição de alguma forma ligada a questões

ecológicas, enquanto o mesmo não ocorre com um grupo que faz campanha para salvar

o parque infantil do bairro.111 Este exemplo hipotético demonstra como ideias acerca do

significado e da abrangência da Ecologia são imprecisamente determinadas, pois,

recorrem a limites vagos, como as fronteiras entre o que é natural ou não (o que, por

sua vez, levanta a pergunta o que se encontra ´fora` da Natureza?).

Entretanto hoje, já na segunda década do séc. XXI, mais que nunca questões

relacionadas à Ecologia estão sendo pensadas e postas em prática em diferentes

esferas. A Ecologia - em sentido corrente, restrito ao tratamento das relações entre

organismos e o meio ambiente, conceito que será alargado mais à frente -

Outra obra influente, que data do início da década de sessenta, é Our Synthetic Environment, escrita por Murray Bookchin, sob o pseudônimo Lewis Herber. Esta obra também trata do uso de pesticidas, e de defende uma visão de mundo condizente com o entrelaçamento primordial entre os entes no mundo. Para mais, Luke fornece uma longa e exaustiva lista de referências abrangendo as variadas tendências ecocríticas do séc. XX nas notas ao longo da obra, pp.211-47. 110

Hay, 2002, p.1 111

Hay, 2002, p. 2

Page 39: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

39

presentemente já informa (e enforma) variadas áreas da vida, da cultura e da

sociedade.112 Transformações estão a ocorrer como consequência do despertar de

consciência em relação ao impacto que o estilo de vida humano exerce sobre o planeta,

bem como mudanças impostas pelas próprias alterações dos sistemas terrestres (como

alterações climáticas, de nível e acidificação dos oceanos, ou da composição

atmosférica); de novos hábitos no cotidiano - como a separação e reciclagem do lixo, ou

o abandono do uso de sacos plásticos em supermercados (para citar dois exemplos

patentes) - à maneira como planos e decisões políticas têm agora de levar em

consideração a crise ambiental - com a implementação de impostos “verdes”, e o

surgimento de inúmeros partidos cuja bandeira principal guarda relação com o meio

ambiente - ou ainda, a maneira como questões ecológicas mostram-se cada vez mais

influentes e importantes para as artes (vide o surgimento de inúmeras vertentes da

chamada arte ambiental nas últimas décadas), a arquitetura (cada vez mais preocupada

em encontrar opções sustentáveis), a ciência e a tecnologia (que avançam a passos

largos no desenvolvimento de implementos e modelos cada vez mais compreensivos e

complexos de ecossistemas, do clima, etc.). A Ecologia, como se vê, já permeia

diferentes aspectos da vida humana. Devido a esta abrangência, infinitamente profunda

e ampla, é imprescindível que a Ecologia seja pensada e discutida seriamente, de

maneira transdisciplinar, a combinar insights da biologia com as artes, a computação, a

Filosofia, etc, pois, todas essas disciplinas encontram-se (ecologicamente) ligadas e

podem acrescentar perspectivas igualmente importantes a esta discussão, num debate

que toca absolutamente todos os entes do planeta, como afirma Rajendra Pachauri,

atual presidente do IPCC.113

“(...) Existe simplesmente um sem-número de entes únicos (fazendeiros, cães, íris,

lápis, LEDs, e assim por diante) a quem devo obrigação pelo simples fato de que

112

Morton, 2010, pp.13, 28 113

IPCC, Assessment Report 5 Working Group II Report Press Conference

Page 40: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

40

existência é coexistência”, se a simples existência de um objeto implica sua coexistência

(num mesmo patamar ontológico) com uma infinidade de outros objetos, de modo a

impingir sobre eles sua realidade específica, isso significa que não existe um espaço

´fora` ou ´além` dessa malha de interconexões. (Morton, 2013-B, p.125)114 Este

enredamento inescapável transforma a consciência da proximidade (por vezes difícil e

perturbadora) entre todos os entes em algo inevitável. O espaço de possibilidade para a

reflexão ecológica encontra-se envolto em objetos e é composto por objetos, num

ambiente abarrotado e claustrofóbico do qual o ser humano é (mais uma) parte. Tal

conjugação significa ainda que, como Derek Parfit aponta, são necessárias novas teorias

da beneficência, pois, tanto a moralidade do senso-comum, quanto princípios do

interesse próprio falham frente à complexidade da malha de interconexões, formada

pelos objetos em relação. "Apesar de cada ato ter efeitos triviais, é frequentemente

verdade que juntos nós impomos grandes prejuízos sobre nós próprios e outros. Alguns

exemplos são poluição, congestionamento, esgotamento de recursos, inflação,

desemprego, recessão, sobrepesca, sobrexploração da agricultura , erosão do solo, fome

e superpopulação". (Parfit, 1984, p.443-4)115 Ações estatisticamente insignificantes, en

masse, têm efeitos potencialmente gigantescos - como a própria alteração da

composição atmosférica do planeta, uma realidade pela qual a ação humana (a queima

de combustíveis fósseis e liberação de outros poluentes) contínua e generalizada é

responsável, apesar da impossibilidade de culpabilização de indivíduos.116 Deixar de lado

teorias que defendem o interesse próprio envolve um contato mais íntimo com outros

entes, além de indivíduos futuros.117

114

Morton, 2013-B, p.125 “(...) there are simply a number of unique beings (famers, dogs, irises, pencils, LEDs, and so on) to whom I owe an obligation through the simple fact that existence is coexistence.” (minha ênfase) 115

Parfit, 1984, p. 443-4 “(...) though each act has trivial effects, it is often true that we together impose great harm on ourselves or others. Some examples are pollution, congestion, depletion, inflation, unemployment, a recession, over-fishing, over-farming, soil erosion, famine, and overpopulation." 116

IGBP, 2013 pp. 12, 15 117

Morton, 2013-B, p.128

Page 41: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

41

O termo Ecologia foi originalmente cunhado pelo zoólogo alemão Ernst Haeckel

em 1866 com o objetivo de designar as ´economias` das formas vivas - uma definição

biocêntrica (hoje muitas vezes equivalente ao termo Bionomia) que também leva em

conta o inorgânico, porém, apenas na medida em que este é ambiente para, e

influencia, o orgânico.118 Desde então os contornos exatos do conceito variaram,

tornando-se mais ou menos abrangentes de acordo com o foco escolhido

(conservacionismo, gerenciamento de recursos, planejamento urbano, etc).

Seguem abaixo três definições de Ecologia, a primeira advinda da Filosofia, a

segunda dos Estudos Ambientais e a terceira da Ecologia Profunda:

a) Ecologia trata “[d]as interações entre organismos individuais e o meio ambiente,

incluindo as interações com membros da mesma e de outras espécies” ; (Sarkar, 2014)119

b) Ecologia “como o estudo da totalidade das interrelações entre uma sociedade

humana e tudo em seu ambiente”; (Luke, 1997, p.xii) 120

c) A Ecologia é “o estudo científico interdisciplinar das condições de vida de organismos

em interação uns com os outros bem como com o ambiente, orgânico e inorgânico”.

(Naess, 1989, p.36)121

Inúmeros pressupostos transparecem nestas interpretações, conceitos usados na

definição (como ambiente e organismo) são, muitas vezes, disputados, ou sofrem da

mesma imprecisão daquilo que buscam definir. Também chama a atenção o

antropocentrismo sem disfarce da segunda acepção, flagrantemente correlacionista,

que coloca o ser humano como único organismo a ocupar um lado da equação

118

Haeckel, 1866 p. 286 119

Sarkar, 2014 “The science of ecology studies interactions between individual organisms and their environments, including interactions with both conspecifics and members of other species. “ 120

Luke, 1997, p. xii “´ecology` (...) as the study of the totality of all interrelations between a human society with everything in its environment.” 121

Naess, 1989, p.36 “the interdisciplinary scientific study of the living conditions of organisms in interaction with each other and with the surroundings, organic as well as inorganic.”

Page 42: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

42

ecológica, enquanto todo o resto, tudo aquilo que não é humano (e o que exatamente é

o humano?), é posto, em contraposição, do outro lado.122

No âmbito da Ética Ambiental - sem dúvida a área da Filosofia na qual a Ecologia

figura com maior proeminência - o problema da determinação de limites fica ainda mais

claro. Na busca de um critério universal para a atribuição de direitos a entes não-

humanos, por exemplo, muitas opções existem, porém, a questão parece estar ainda

longe de um acordo unânime. Enquanto Peter Singer, em seu célebre trabalho Animal

Liberation, defende que a capacidade para o sofrimento deve constituir o limite de

consideração moral123, ele próprio afirma, em Ética Prática, que a posse de um conceito

de si próprio como ser vivo com um futuro talvez seja um critério mais adequado.124 Há

ainda aqueles que chamam atenção para o perigo do especismo com a criação de novas

hierarquias, para o interior das quais alguns não-humanos são movidos, enquanto os

excluídos continuam a ser tratados simplesmente como recursos naturais, desprovidos

de interesses moralmente significativos.125

Assim, muito da discussão acerca da definição de conceitos e da instauração de

critérios e limites, em toda a extensão do pensamento ecológico, gira à volta de quanto

e que partes do universo não-humano são dignas de consideração. Na falta de

referências o próprio ser humano torna-se referência e uma espécie de utilitarismo-

padrão passa a subtender a maneira como questões de cunho ecológico são

ponderadas. Morton dá o nome de agrilogística a essa tendência, e remete sua origem

aos primórdios da agricultura, há cerca de dez mil anos, no Crescente Fértil.126

122

Vale apontar que Luke formula esta acepção a partir de diversas definições dadas por correntes

variadas (de movimentos ambientalistas radicais ao consumismo ´verde`) que ele apresenta criticamente em seu livro, assim, exatamente por colocar-se criticamente, ele enfatiza tal correlacionismo. 123

Singer, 1990, pp. 8-9 124

Singer, 2000, p. 145 125

Francione, 2008, p.144 126

Morton, 2014-A, primeiro e Segundo seminários

Page 43: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

43

Uma noção expandida de Ecologia

“Yo soy yo y mi circunstancia,

y si no la salvo a ella no me salvo yo”127

- José Ortega y Gasset

Este ensaio não pretende adotar nenhuma das definições correntes do termo

Ecologia, ao contrário, ele procura estabelecer novos contornos, mais largos, pois, os

limites estreitos impostos pelo contexto no qual originou-se o termo (o universo das

chamadas ciências biológicas) não se mostram adequados a outros contextos, ou sob a

luz do Antropoceno e das mais recentes constatações de outras áreas científicas. Como

visto, muitas vezes a Ecologia é descrita como a economia das relações estabelecidas

entre organismos e outros organismos, e também entre estes e tudo aquilo que compõe

seus habitats.

São chamadas ecológicas relações como: mutualismo, simbiose, inquilinismo,

predação, competição, parasitismo, entre outras. Porém, no âmbito deste ensaio a

Ecologia não está restrita a estas relações, e também deve ser distinguida da economia,

e também da política, na medida em que não lida exclusivamente com relações de

produção e consumo, ou com relações de poder, mas ocupa-se da análise, descrição e

heurística de relações de todo gênero, entre objetos de toda espécie, e o modo como

estes delineiam os contornos do mundo e do próprio pensamento. Objetos não podem

ser determinados através de suas relações, ao contrário, somente objetos discretos

autônomos podem-nas estabelecer; entretanto, uma vez ligados objetos influenciam-se

uns aos outros por vezes sutil, por vezes drasticamente.128 Esta influência, de maneira

geral, e as relações que nela resultam, constituem o objeto de investigação da ecologia.

127

Ortega y Gasset, 2004, Vol. I, p. 757 128

Harman, 2011-A, p. 19

Page 44: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

44

Assim, um dos objetivos deste ensaio é estabelecer uma base objeto-orientada

para a Ecologia, incomensuravelmente mais ampla que o campo exclusivo de

organismos e habitats. Isto significa que, deste ponto em diante, sob o rótulo Ecologia

(ou ecológico) cairão todas as relações estabelecidas entre entes de qualquer tipo. A

Ecologia guarda relação com quaisquer objetos e não apenas com os habitantes

ameaçados da Amazônia, as criaturas abissais das Marianas ou os pinguins do Atacama.

A porcentagem de dióxido de carbono na atmosfera concerne a vida e o bem-estar de

grande parte dos organismos na Terra, a temperatura e taxa de acidificação dos oceanos

e o ritmo de derretimento da neve nos Alpes suíços, mas também guarda relação com

companhias aéreas low cost, políticas de planejamento urbano, laptops e moinhos

d´água, pois, o dióxido de carbono é apenas um exemplo de objeto, e os objetos

encontram-se todos interconectados numa esfera de influência mútua, a dimensão

estético-causal, descrita como uma malha (um termo que sugere tanto os fios de uma

rede, como os espaços entre eles, refletindo não só a unicidade e coesão dos objetos e

suas relações, mas também a fenda que os caracteriza e a fragilidade dessas

conexões).129 “A existência de um objeto é irredutivelmente uma questão de

coexistência”, todavia, esta coexistência não significa que objetos existem unicamente

em relação mas, ao contrário, devido ao modo como objetos reais retiram-se de toda

relação eles jamais se esgotam em suas aparências (seu objeto sensível

correspondente), há sempre uma reserva de possibilidades, um excesso mantido à parte

de qualquer relação (sua essência real). (Morton, 2013-A, p.45)130

129

Morton, 2010, p. 28 130

Morton, 2013-A, p. 45, 113, 145-6, 159-60, 211 “The existence of an object is irreducibly a matter of coexistence.”

Page 45: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

45

O estranho-estranho e a malha de interconexão

“Quand je me joue à ma chatte,

qui sçait si elle passe son temps de moy

plus que je ne fay d'elle?”131

Michel Montaigne

Na primeira parte deste ensaio foi argumentado que todo tipo de ente (seja ele

material, natural, simples, durável, ou não) deve ser considerado como objeto. Os

objetos foram descritos como elementos ontologicamente primários, ou seja, anteriores

a quaisquer relações das quais possam fazer (ou vir a fazer) parte, pois, são

absolutamente irredutíveis tanto a essas relações, quanto a uma (ou a soma) de suas

partes, eles não podem ser fundidos numa totalidade holística, além de não poderem

ser resumidos a seus efeitos sobre outros objetos. Foi também demonstrada a maneira

como os objetos existem cindidos entre sua essência real, que se retira de toda forma

de contato enquanto é responsável pela execução daquela realidade específica, e seu

perfil sensível, a representação que cada outro objeto dele produz a cada encontro.

Esta breve recapitulação serve para que sejam aqui apresentados dois dos

conceitos fundamentais a figurar nesta segunda parte do presente ensaio - o estranho-

estranho e a malha - introduzidos pela primeira vez na obra The Ecological Thought, de

Timothy Morton. Nesta obra Morton utiliza tais termos de maneira ainda estreita, em

referência aparentemente exclusiva aos organismos (vivos) e à rede de relações que

estes estabelecem com outros organismos e com entes não-vivos, respectivamente;

“(...) os estranhos-estranhos [são] todas as formas vivas com as quais encontramo-nos

conectados”, já a malha inclui “todas as formas vivas (...), assim como todas as formas

mortas, além de seus habitats, que também são compostos por entes vivos e não-vivos”. 131

Montaigne 1947, pp.172

Page 46: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

46

(Morton, 2010, p.28-9)132 Porém, em obras subsequentes, com a aproximação de

Morton ao movimento da Ontologia Objeto-Orientada, ambos (estranho-estranho e

malha) são alargados e passam a incluir não só os seres vivos e suas relações mas, todo

objeto e toda a esfera estético-causal (região na qual o encontro entre objetos - reais e

sensíveis - acontece, a esfera da causalidade vicária). Atualmente, Morton afirma que a

estranheza (termo com significado preciso em sua ecocrítica) é condição ontológica de

todo ente; “a interconexão de todas as coisas é uma trama finamente tecida que paira

frente àquilo a que eu (...) dera o nome de estranhos-estranhos: todos os entes, de

esferovite e ondas de rádio a amendoins, cobras e asteróides, são irredutivelmente

inquietantes”. (Morton, 2013-A, p.75)133

Das afirmações acima nascem perguntas como: em que exatamente consiste este

aspecto inquietante que Morton atribui aos objetos, será mesmo necessário articular

uma conexão entre todos os entes, e ainda, qual é a relevância desta estranheza para a

deliberação acerca da Ecologia? Qual é a diferença entre a malha de interconexão e um

conceito totalizante, como mundo ou Natureza (ambos conceitos que Morton considera

contra-produtivos para o discurso ecológico)?134 Abaixo, segue a tentativa de responder

a estas e outras questões, assim como a de traçar as implicações que decorrem da

perspectiva (objeto-orientada) assumida por este ensaio para a Ecologia no

Antropoceno.

Se é o caso que objetos reais nunca se encontram de forma direta, mas o fazem

sempre vicariamente, através de simulacros sensíveis (a maneira como aparecem para

um outro objeto), parte desse objeto encontrar-se-á eternamente fora do alcance de 132

Morton, 2010, pp. 28-9 “(...) strange strangers, the life forms to whom we find ourselves connected.”; “All life forms are the mesh, and so are all dead ones, as are their habitats, which are also made up of living and nonliving beings.” 133

Morton, 2013-A, p. 75 “The interconnectedness of everything is a finely woven tissue that floats in front of what elsewhere I have called strange strangers: all entities, from Styrofoam and radio waves to peanuts, snakes and asteroids, are irreducibly uncanny.” 134 Sua obra de 2007, por exemplo, tem o título Ecology Without Nature, e nela ele desenvolve o argumento de que o conceito de Natureza já não é heuristicamente útil, pois, ele abafa a existência real e específica de cada um dos entes que constituem tal Natureza.

Page 47: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

47

qualquer outro ente, inclusive dele próprio. Qualquer descrição do objeto jamais

corresponde ao objeto em-si; “Um bloco de cimento é duro e frio para uma mosca, é

áspero para o meu dedo, é frágil para um golpe de karatê bem posicionado. Ele é

invisível para um neutrino.”, apesar das múltiplas interpretações possíveis (a da mosca,

do dedo, do golpe, ou do neutrino) o bloco é, ainda, um objeto real específico,

impermutável, e não se resume a nenhuma delas. “Posto de outra forma, nenhum ente

é redutível ao hic et nunc das energias que libera”. (Morton, 2013-A, p.27; Harman,

2002, p.224)135 Sendo assim, todo objeto é em certa medida um estranho (no sentido de

algo que é desconhecido), pois, parte da realidade de cada objeto retira-se e esconde-se

de todo contato, permanecendo sempre inatingível atrás das pesadas cortinas

ontológicas, mais além de qualquer possibilidade de descrição, análise ou uso.

Porém, o objeto é duplamente estranho, como indica a repetição do adjetivo na

composição do termo. Ele é estranho para os objetos que o encontram (por possuir uma

parte sempre velada), ele é inquietante, em sentido freudiano - da sensação de

familiaridade e estranhamento simultâneos136 - mas, também é estranho em si (e talvez

mais estranho por este motivo que por qualquer outro), pois, não pode ser reduzido a

seus atributos, partes, relações ou efeitos, ao mesmo tempo que só pode ser

percebido como objeto através destes. O objeto “falha em coincidir com sua aparência-

para um outro objeto”, ele apenas deixa um rastro de signos indiciais, correspondente à

forma como são percebidos, enquanto escapa a apreensão total. (Morton, 2013-B,

p.196)137 Morton argumenta que neste sentido a OOO segue e sustenta a descoberta

135

Morton, 2013-A, p. 27 “A cinder block is hard and cold for a fly, it´s stubbly to my finger, it´s fragile to a well-placed karate chop. It´s invisible to a neutrino.” (minha ênfase) Harman, 2002, p. 224 “Put differently, no entity is reducible to the hic et nunc of its specific unleashed energies.” 136

Morton, 2010, p. 50 Freud, 2003, pp.123-62 137

Morton, 2013-B, pp. 77, 176, 196 “An object fails to coincide with its appearance-for another object, no matter how accurate that appearance-for.”

Page 48: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

48

fenomenológica que descreve a maneira como objetos não são percebidos na forma de

uma multiplicidade de sensações, só posteriormente agrupadas numa unidade, mas

que, ao contrário, o objeto como um todo é já ´intencionado´ pelo indivíduo.138

Estes estranhos-estranhos, em sua existência contraditória, encontram-se não

somente próximos (sendo compostos por objetos e situados no interior de objetos)

mas, em conjunto compõem a chamada malha que, ao contrário de um sistema

fechado, consiste em “uma vasta e espalhada malha de interconexão, sem centro ou

borda definidos. Ela é intimidade radical, a coexistência com outros entes, sencientes ou

não - e como é que podemos tão claramente fazer tal distinção?”. (Morton, 2010, p.8)139

A pergunta ecoa a hesitação, a incerteza, a ironia e a atitude contemplativa

fundamentais para o pensamento ecológico “crítico e auto-crítico” promovido por

Morton, que admite a impossibilidade de chegar-se a uma posição exterior a quaisquer

contextos, a partir da qual seja possível analisar a malha, ou traçar esses limites e

determinar fronteiras sem preconceitos ou inclinações.140

A malha nunca é percebida diretamente, ela só pode ser conhecida através dos

estranhos-estranhos. A malha aponta para as formas de conexão e separação

simultâneas que existem entre os objetos do mundo sem estabelecer uma substância

subjacente (comum a todos os entes - como a extensão cartesiana, a noção de matéria

ou mesmo de Natureza); a malha aponta, portanto, para a existência de entes

Um exemplo de signo indicial são as pegadas, indícios de uma pessoa ou animal; ou ainda, a fumaça, signo indicial do fogo, como no ditado popular “onde há fumaça, há fogo”. 138

Morton, 2013-A, p. 61 139

Morton, 2010, p. 8, 28-30 “It is a vast, sprawling mesh of interconnection without a definite center or edge. It is radical intimacy, coexistence with other beings, sentient and otherwise - and how can we so clearly tell the difference?” 140

Morton, 2007, pp. 13, 67 Morton, 2010, p. 16 Morton, 2013-B, pp. 2, 22, 134-58, 160 - Nesta obra Morton aborda essa impossibilidade e dá a ela o nome de hipocrisia. Ele argumenta que, hoje em dia, a humanidade vive constantemente sob a sombra desta hipocrisia, pois, descobriu-se protagonista de todo um período geológico (o Antropoceno) ao mesmo tempo em que descobriu-se, ela própria, vilã da crise ambiental.

Page 49: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

49

singulares - os estranhos-estranhos - que se encontram profundamente ligados apesar

de jamais se conhecerem totalmente.141

A interconexão generalizada representada pela malha corresponde, em

Heidegger, a sua contextura instrumental (a rede de referências e atribuições na qual

está fundido todo objeto encontrado circunspectamente à mão - Zuhanden), porém, a

malha diferencia-se da contextura instrumental global (na qual os instrumentos não

existem separadamente) pois, concede unicidade e autonomia a cada elemento que a

compõe, e salienta a extrema proximidade, apesar da separação absoluta, entre eles.142

“Existência é coexistência”, mas não a coexistência hamônica e equilibrada com

base na fundamental intuição de um princípio (transcendental) de Natureza e do modo

como o ser humano é parte dela, como defende, por exemplo, a Ecologia Profunda.

Morton está disposto a lidar com a imprecisão, a incerteza, a inquietação e as

consequentes (e inúmeras) dificuldades que existem anexadas a uma ideia de Ecologia

nestes moldes; “O pensamento ecológico, o pensar da interconexão, possui um lado

sombrio que está presente não numa estética hippie da vida sobre a morte, ou a

Bambificação sádico-sentimental dos entes sencientes, mas em uma afirmação ´gótica`

da ideia contingente e necessariamente estranha de que queremos permanecer com um

mundo que morre: uma ecologia sombria”. (Morton, 2007, pp.184-5)143

141

Morton, 2010, p. 57 142

Morton, 2013-B, p. 83 Heidegger, 1977, p.H68 143

Morton, 2013-B, p.125 Morton, 2007, pp.184-5 “The ecological thought, the thinking of interconnectedness, has a dark side embodied not in a hippie aesthetic of life over death, or a sadistic-sentimental Bambification of sentient beings, but in a ´goth` assertion of the contingent and necessarily queer idea that we want to stay with a dying world: dark ecology.” (minha ênfase) Naess, 1973, pp. 95-100 Devall, Sessions, 1985, pp. 67, 75-6

Page 50: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

50

Agrilogística

Cerca de dez mil anos atrás, em diferentes partes do mundo pessoas começaram

a domesticar plantas e animais, fora este o início da chamada Revolução Neolítica.144 O

impacto das inovações técnicas e culturais nascidas neste período não pode ser

subestimado, elas viriam a definir o modo de vida do ser humano através do globo pelos

milênios subsequentes, transformando-se no padrão que ainda hoje prevalece. O

surgimento da agricultura deu-se em um momento de invenção e desenvolvimento

profundos, cuja abrangência e poder transformativo só seria equiparado pelas

transformações nascidas com a Revolução Industrial.

Morton argumenta que a agrilogística - nome que ele dá à estratégia agricultural,

originada no Crescente Fértil - surge da tentativa de aplacar duas formas de ansiedade.

A primeira, e mais óbvia, é a ansiedade que quaisquer comunidades dependentes da

caça e/ou da coleta como fonte exclusiva de alimento enfrentam constantemente: a

insegurança e a incerteza de como ou quando virá a próxima refeição.145 É fácil imaginar

como um campo de cultura que assegura a produção de uma certa quantidade de

alimento, dentro de um certo período de tempo, além de representar mais comida por

menos esforço, é atraente, visto que a outra opção não fornece garantias. Uma

comunidade nômade (ou semi-nômade) de caçadores/coletores está constantemente

dependente da riqueza, abundância e generosidade da paisagem local, o que nem

sempre assegura o suprimento das necessidades da população.

A segunda forma de ansiedade descrita por Morton é, entretanto, ainda mais

primordial, trata-se do anseio e do desassossego, de origem ontológica, despertado pelo

encontro com o estranho-estranho, e pela existência contraditória em meio a uma

multidão heterogênea de entes em uma realidade que nunca se revela totalmente. Na

144

Diamond, 1987, pp.64-6. 145

Morton, 2014-A, primeiro seminário

Page 51: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

51

tentativa de fixar horizontes e combater a contradição que existe no coração de todo

objeto - a fenda entre ser (o objeto real) e parecer (o objeto sensível) - o humano

recorreu à abertura ostensiva de campos firmemente delimitados e à monocultura.

Numa luta contra o estranho e o acidental o campo é reconfortante, pois, está sempre

presente - visivelmente demarcado, quando não fisicamente cercado. O campo de

agricultura funciona como uma tela em branco sobre a qual seres humanos podem

violentamente (porque a abertura de um campo implica a remoção de tudo que lá

estava antes) projetar a satisfação de suas necessidades.146

A agrilogística é, assim, aquela que Heidegger chamara de metafísica da presença

posta em prática - uma noção que remete a um conceito de Natureza que a equipara a

um simples estoque de materiais (Bestand) e conduz à sua exploração nestes mesmos

termos. O campo destaca-se da paisagem transformando-se num armazém. Para

Heidegger, a metafísica da presença representa uma ameaça à possibilidade de respeito

autêntico pela Natureza, pois, limita o conhecimento das características e qualidades do

meio ambiente a suas propriedades ônticas; seu Ser (em sentido ontológico) é ignorado,

restando apenas o escrutínio do modo como seus elementos podem vir a ser úteis ou

danosos para quem os considera.147

A progressiva adoção da agricultura teve como resultado a gradual

transformação do modo de vida da população humana ao redor do planeta. Uma fonte

relativamente segura e abundante de alimento (porque o rendimento de cada safra de

vegetais plantados é inúmeras vezes maior que o da coleta de frutos, raízes e bagas, e o

pastoreio mais eficaz que a caça) permitiu que um estilo de vida sedentário fosse

adotado em lugar do nomadismo. Como consequência alimentos começaram a ser

armazenados para garantir a nutrição durante os meses de inverno, comunidades mais

numerosas puderam desenvolver-se, bem como novas tecnologias (utensílios e

146

Morton, 2014-A, primeiro seminário 147

Blackburn, 1994, p. 300

Page 52: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

52

ferramentas para a agricultura e criação de animais, tijolos e argamassa, moinhos),

surgiram ainda novas estruturas sociais.148

Entretanto, esse passo evolutivo sem par no desenvolvimento civilizacional

humano, ao contrário do que inicialmente possa parecer, veio acompanhado de uma

série de inconvenientes. Foi constatado que cerca de três mil anos após o encetamento

da prática da agricultura também haviam aparecido os primeiros indicadores da

desigualdade social e sexual (a transformação da mulher em parte do ´mecanismo` do

campo e a ascenção de uma classe dominante), do surgimento e da proliferação de uma

série de doenças, diminuição da estatura média e expectativa de vida, empobrecimento

da dieta (agora dependente de uma ou duas variedades de plantas amiláceas, como o

trigo, o arroz e o milho), aparecimento de uma ideologia voltada para a guerra (pela

necessidade de defesa dos campos e das comunidades que se desenvolviam à sua

volta), além de indícios de que a carga de trabalho pesado aumentara significativamente

em comparação a períodos anteriores (pré-agriculturais) devido a novas necessidades: a

aragem dos campos, corte de árvores, fabricação de tijojos de barro, preparação de

argamassa de cal, moagem de cereais, abertura de pedreiras, etc.149

Tudo isso aponta para a maneira como o modelo agrilogístico pode de fato

sustentar um número maior de pessoas que a caça e a coleta. Porém, apesar dos

benefícios a estratégia agrilogística também traz consigo uma série de desvantagens e,

como sugerem descobertas recentes no ramo da arqueologia e da paleopatologia, em

última instância, a agricultura representa menos prêmios que prejuízos, pois, maximiza

a existência em detrimento da qualidade de vida, num exemplo perturbador daquilo

148

Diamond, 1987, pp.64-6 Diamond, 1998, pp. 33-191 Hershkovitz, Gopher, 2008, pp. 441-479 149

Whittle, A. 2003, pp. 162-167 Hershkovitz,, Gopher, 2008, pp. 441-479

Page 53: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

53

que Derek Parfit chama de “a conclusão repugnante”, a conclusão de que é melhor que

existam mais pessoas do que pessoas mais felizes.150

O modelo agrilogístico é estruturado de forma a suprir exclusivamente as

necessidades humanas; da horta e do pomar são excluídas todas as espécies que não as

selecionadas pelo agricultor. No momento em que todo ente que não tem serventia

direta para o humano é banido, um padrão utilitarista emerge, e é este padrão que

subjaz e é responsável pela transformação da espécie humana no principal agente

geofísico deste período - o Antropoceno.

A agricultura, herdada deste passado distante e incrementada ao longo da

História, chega aos dias de hoje numa versão extrema, a da agricultura industrial, com

base no uso de fertilizantes sintéticos e modificações genéticas. Com base em uma

distorção dos recursos - abertura de campos de cultivo (e consequente destruição do

que ocupara a área), irrigação, fertilização, controle de insetos, fungos e nematóides,

etc - é criada uma abundância artificial e transiente que não pode ser mantida

indefinidamente. Num sóbrio conto sobre como o efeito cumulativo de ações

aparentemente desprezíveis podem ter consequências inesperadas que, por sua vez,

podem atingir magnitudes devastadoras, Jared Diamond enumera exemplos de povos

que durante séculos usufruiram dos recursos naturais disponíveis desta maneira

(cultivando e controlando a paisagem) até atingirem uma proporção insustentável e

entrarem em colapso, num processo que, pelo menos em parte, fora fruto de problemas

ecológicos oriundos da destruição involuntária dos recursos naturais, dos quais tais

sociedades dependiam. Ao redor do globo constam exemplos de ecocídios deste gênero

- os Anasazi e Cahokia na América do Norte, as cidades maias na América Central, as

sociedades moche e do Tiahuanaco ao Sul, a Grécia micênica, a Creta minóica, o Grande

Zimbabué no continente africano, Angkor Wat e as cidades do Indo na região de

150

Diamond, 1987, pp.64-6 Morton, 2014, primeiro seminário Parfit, 1984, pp. 381-90

Page 54: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

54

Harappa na Ásia e, talvez o exemplo mais célebre, a Ilha de Páscoa na Polinésia.151 Um

paralelo entre estas comunidades (uma vez prósperas) em suas respectivas regiões e a

população humana no planeta Terra, apesar de parecer simples e automático, não

funciona na prática, pois, cada um desses casos possui tantas especifidades que linhas

gerais não podem ser traçadas a partir de seu conjunto. Esta é uma situação frequente

na Ecologia, pois, a criação de modelos com base na (extremamente) complexa teia de

relações é uma tarefa que somente nas últimas décadas tem-se provado possível,

através do uso de potentes computadores.

Ciente de que uma parcela significativa das causas do aquecimento global advém

da agricultura e da criação de animais (da remoção da cobertura vegetal original para o

plantio aos gases de efeito estufa emitidos por bovinos) e do caráter insustentável do

estilo de vida moderno (baseado na exploração constante, crescente e sem limites dos

recursos disponíveis) a humanidade já não pode ignorar o fato de que a estratégia

agrilogística é, a longo prazo, auto-destrutiva.

Porque o impacto humano vem se mostrando de tal forma profundo e

furiosamente transformador, a ponto de sobrepor sua História à dos sistemas

terrestres, é necessário que a conduta humana (enquanto espécie) seja reavaliada. O

Antropoceno inaugura e o aquecimento global exige o pensar a longuíssimo prazo, uma

necessidade que o IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme) escolheu

descrever com as seguintes palavras: "a Terra como um todo é agora um campo de

testes global à medida que a humanidade acelera seu experimento involuntário em

escala planetária com seus próprios meios de suporte de vida". (IGBP, 2004, p.35)152

151

Diamond, 2005, pp. 18-23 152

IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme), 2004, p. 35 “In fact, the Earth is now a global test bed as humanity accelerates its unintended planetary-scale experiment with its own life-support system.”

Page 55: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

55

O Antropoceno

Marcas significativas nas camadas rochosas da crosta terrestre delimitam o

início/fim de cada época/período geológico. Estas marcas podem ter origem em eventos

como deslocamentos tectônicos, impacto de grandes meteoros, glaciações, vulcanismo

ou outras alterações na dinâmica do sistema planetário. Porém, entre meados do séc.

XVIII e início do séc. XIX (com o início e posterior estabelecimento da indústria, cuja

principal fonte de energia são, até hoje, os combustíveis fósseis) as modificações

antropogênicas sobre o meio ambiente intensificaram-se radicalmente - fato que pode

ser observado claramente através dos inúmeros gráficos representando mudanças

globais (população, uitlização de recursos hídricos, consumo de fertilizantes,

urbanização, e diversas outras) elaborados por cientistas de áreas variadas nas últimas

duas décadas153, bem como através da inspeção da fina camada de carbono depositada

no leito de lagos profundos e núcleos de gelo, cuja origem é a queima de combustíveis

fósseis.154 Diferentemente de períodos de aquecimento planetário anteriores, os fatores

responsáveis pelas atuais mudanças são inerentemente sociais, “atividades humanas

levaram a mudanças globais na atmosfera, clima, litosfera e biosfera terrestres sem

precedentes na história humana, quiçá na história do planeta”; o ser humano pode ser

considerado o principal fator geofísico contribuindo atualmente para a configuração do

planeta.155

Em 2000 foi publicado o artigo seminal, de co-autoria de Paul Crutzen e Eugene F.

Stoermer, no qual o termo Antropoceno aparece pela primeira vez em referência ao

153

Como, por exemplo, os inúmeros gráficos presentes nos relatórios de entidades multinacionais como o IPCC e o IGBP retratando as mudanças globais. Este ensaio toma como base o quadro construído

pelo IGBP em 2004 mostrando a maneira como índices diversos sofreram, nas últimas décadas, alterações em ritmo acelerado, sem precedentes na história do planeta. Ver Anexo I. IGBP, 2004, pp.15,17 154

Em 1999 foram publicados os dados extraídos do núcleo de gelo de Vostok, na Antártida, que permitiu a análise da atmosfera e da variação de temperatura no planeta nos últimos 420.000 anos. Esta análise foi fundamental no desenvolvimento da ideia do planeta como sistema complexo. Petit, 1999, pp. 429-436 155

Ellis, 2013, p.32 IGBP, 2004, p.23

Page 56: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

56

intervalo temporal geológico presente, no qual condições e processos geologicamente

significantes foram, e continuam sendo, profundamente afetados pela atividade

humana. A raiz grega do termo - Άνθρωπος (anthropos) - põe em foco o papel

fundamental do ser humano, na qualidade de espécie dominante, no descortinamento

deste período, papel que nenhuma outra espécie jamais desempenhara com

semelhante eficiência em toda a história da vida na Terra.156

Apesar da oficialização do termo pela Comissão Internacional de Estratigrafia (ISC

- International Commission on Stratigraphy) encontrar-se ainda pendente, a ideia de que

a Terra encontra-se neste período - o Antropoceno - é já amplamente aceita dentro de

áreas variadas (em especial no ativismo ambiental, estudos climáticos e do sistema

terrestre, mas também nas Artes e na própria Filosofia), tendo adquirido desde a data

de publicação do artigo de Crutzen e Stoermer enorme força retórica.157

Os limites que definem o início do Antropoceno permanecem sob discussão. A

proposta original foi a de começar a contagem a partir do encetamento da Revolução

Industrial na Europa, porém, datas anteriores (o estabelecimento da agricultura, ou

mesmo antes) e posteriores (o começo da Era Nuclear) também já foram sugeridas.158

Morton escolhe uma data precisa, abril de 1784, dia no qual o multifuncional motor a

vapor, desenvolvido por James Watt, foi patenteado na Inglaterra, um momento chave,

pois, foi ele (o motor a vapor) quem alimentou e permitiu o florescer da Revolução

Industrial.159 Em 16 de julho de 1945, com o primeiro teste nuclear (chamado Trinity

Test - no Novo México, Estados Unidos) uma nova camada, desta vez de materiais 156

Crutzen, P. e Stoermer, E.F. 2000 “The ´Anthropocene´”, Global Change Newsletter 41 (IGBP). pp. 17-18 Um outro exemplo de transformação radical de origem biótica no planeta é o Grande Evento de Oxigenação (GOE). Bactérias fotossintetizantes começaram a excretar oxigênio (subproduto da fotossíntese), este acumulou-se na atmosfera ao longo de bilhões de anos, num processo responsável pelo maior evento de extinção em massa da história do planeta, mas também responsável pela composição rica em oxigênio da atmosfera hoje, da qual depende a maior parte da vida que existe atualmente no planeta. Holland, 2006, pp. 903–915 157

Chakrabarty, 2013, em conferência 158

Ellis, 2013, pp.32-35 159

Morton, 2013-B, pp.4-5

Page 57: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

57

radioativos, passou a ser depositada sobre a superfície do planeta, dando início ao

período hoje conhecido como a Grande Aceleração, no qual o ritmo do impacto humano

sofreu um incremento drástico.160 Dipesh Chakrabarty chama atenção para o modo

como este aumento - uma elevação aguda nos níveis da agricultura, da industrialização

e do consumo de água e energia - reflete a crescente democratização dos padrões de

consumo em âmbito global.161

A validação oficial do Antropoceno tem o potencial de ajudar a integrar

discussões entre diferentes disciplinas, porém, a inclusão do humano na categoria de

força geofísica não depende desta oficialização. A classe científica, de modo geral, já

reconhece e salienta o fato, também observável no próprio cotidiano quando analisado

cuidadosamente. O Antropoceno consiste na interseção de escalas temporais

absolutamente distintas - a escala temporal do sistema terrestre, difícil de imaginar por

ser contada em bilhões de anos, a escala temporal da vida no planeta, também muito

mais extensa (milhões de anos) que a terceira escala, a da História humana (que não se

estende além de alguns milhares de anos). O que fora parte exclusiva do domínio

geológico e do domínio evolutivo - as transformações gigantescas, quase

inimaginavelmente profundas e retiradas da experiência humana - agora é também

parte e agente na História, que, por sua vez, deixa de ser domínio exclusivo do humano,

ao passo que todo tipo de objeto força entrada no horizonte de suas preocupações na

forma da crise ambiental.

O que, por um lado, descreve um novo nível (geofísico) de influência e poder

humanos, por outro, vem acompanhado de uma ameaça à própria existência da espécie

e faz com que o Antropoceno seja muitas vezes interpretado de maneira lúgubre e 160

A população do planeta mais que dobrou na segunda metade do último século, a produção de grãos

triplicou, o consumo de energia quadruplicou, e atividades econômicas quintuplicaram. IGBP, pp.15-17 161

Chakrabarty, 2013, em conferência O que também afirma o IGBP quando, já em seu primeiro relatório do gênero, declara que "these global changes are accelerating as the consumption-based Western way of life becomes more widely adopted by a rapidly growing world population." IGBP, 2004, p. 38

Page 58: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

58

apocalíptica. Além disso, a confluência radical de diferentes temporalidades

problematiza velhas distinções - entre humano/não-humano, natureza/cultura,

organismo/máquina, público/privado, primitivo/civilizado - oferecendo uma chance

para que a validade destas distinções seja reavaliada. Os próprios contornos daquilo que

significa ser humano - expressão na qual a palavra ´ser´ pode ser lida tanto como

substantivo, quanto verbo - tornam-se difusos (e, por que não, confusos?) na tentativa

de torná-los precisos. O humano revela-se como um ente fundamentalmente

prostético, que só existe, enquanto tal, em conexão com a tecnologia característica de

sua espécie (linguagem, cultura, sistemas simbólicos).162 A isto soma-se o fato de que

somente com o (muito recente, mesmo em termos históricos) desenvolvimento de

tecnologias em áreas como a computação (com o aumento da capacidade de

processamento e armazenamento), inteligência artificial, análise de sistemas complexos,

física estatística, dinâmica não-linear, etc. - todos estes elementos não-orgânicos, cujas

condições de possibilidade são o próprio Antropoceno163 - os seres humanos foram

capazes de ´descobrir´ (ver, interpretar e compreender) os sinais que confirmam esta

nova época: “a forma na qual a informação foi entregue foi precisamente a das fórmulas

instrumentais e matemáticas da própria modernidade”. De maneira circular e irônica, a

separação entre o natural-biológico e o tecnológico-maquínico é também obscurecida.

(Morton, 2013-B, p.19)164

Já é conhecida pelas ciências a maneira como processos biológicos interagem

fortemente com processos físico-químicos na construção do ambiente que mantém o

planeta habitável para a vida, uma relação de co-determinação que é uma das 162

Wolfe, 2013, em diálogo com Claire Colebrook 163

Donna Haraway descreve em seu célebre ensaio ´A Cyborg Manifesto´: “By the late twentieth century, our time, a mythic time, we are all chimeras, theorized and fabricated hybrids of machine and organism; in short, we are cyborgs.” Haraway, 1991, p.150 164

Morton, 2013-B, pp.19, 128-129 “There we were, trolling along in the age of industry, capitalism, and technology, and all of a sudden we received information from aliens, infomation that even the most hardheaded could not ignore, because the form in which the information was delivered was precisely the instrumental and mathematical formulas of modernity itself.”

Page 59: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

59

condições de possibilidade para o próprio surgimento e evolução dos diferentes tipos de

organismos.165

O papel fundamental desempenhado por objetos de todo gênero tem motivado

autores, como Jane Bennett, a apontar para a vitalidade intrínseca da chamada matéria

bruta. Bennett, em Vibrant Matter, reivindica os “poderes animados das formações

materiais”, suas trajetórias, propensões e tendências próprias que, quando não são

negadas são, em grande parte, ignoradas. Buscando imaginar o impacto que o

reconhecimento verdadeiro e sincero desta vitalidade abiótica acarretaria na resposta a

problemas públicos, (não restritos a questões ambientais) ela apresenta inúmeros

exemplos do papel real e ativo que os variados objetos desempenham - das reações

químicas provocadas em meio ao lixo nos depósitos, bem longe dos olhos humanos, ao

efeito que ácidos graxos podem vir a ter sobre o humor e o comportamento de

indivíduos - e descreve a maneira como humano e não-humano, vida e não-vida, agem e

interagem intimamente naquilo que ela chama de “materialidade compartilhada”.166

Paralelamente, Morton pergunta (em The Ecological Thought) “Como seria um encontro

verdadeiramente democrático entre entes verdadeiramente semelhantes - será mesmo

possível imaginarmos?”. (Morton, 2010 p. 7)167 Ambas as questões, de Bennett e

Morton, permanecerão sem resposta enquanto a classificação ontológica dos entes

(que em conjunto compõem tudo aquilo que há e tudo aquilo que é) consentir que

objetos que compartilham de certos traços (materialidade, vida, consciência, ou outro)

sejam tomados como particularmente significativos.

165

Por exemplo: processos biológicos contribuem significativamente para a absorção de CO2

atmosférico pelos oceanos, o que por sua vez controla os níveis de CO2 na atmosfera durante longos intervalos de tempo. A fotossíntese do fitoplâncton reduz a quantidade de CO2 na superfície do oceano, permitindo assim que mais CO2 da atmosfera seja dissolvido. Cerca de 25% do carbono fixado pelo fitoplâncton na superfície desce para o interior, onde é armazenado por centenas de milhares de anos, contribuindo para a não-acumulação deste gás na atmosfera. IGBP, 2004, p. 9 166

Bennett, 2010, pp. vii, 4-5, 40-43 167

Morton, 2010 p. 7 “Ultimately, this includes thinking about democracy. What would a truly democratic encounter between truly equal beings look like, what would it be - can we even imagine it?”

Page 60: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

60

É justo, portanto, afirmar-se que a conjugação entre humano e não-humano e

suas implicações decorrentes têm-se mostrado cada vez mais conspícuas, e que a

descoberta do Antropoceno ao mesmo tempo que revela a ligação estranha, ainda que

íntima, entre todos os entes, levanta questões fundamentais (como as duas questões

propostas por Latour na epígrafe à este ensaio); o esforço em reponde-las é o que

ajudará a traçar caminhos, tanto para a teoria quanto a prática (humanas), que admitam

e reconheçam esta interconexão como condição ontológica de todos os objetos.

A maneira como entes de todo tipo existem estreitamente emaranhados (bolos

de chocolate, bicicletas, sinais de internet sem fio, bancos e bactérias) é refletida no

modo como o pensamento ecológico (o pensar-se a própria Ecologia) guarda relação

direta não só com ideias ditas "verdes", mas com seu próprio suporte, o conjunto de

objetos que são suas condições de possibilidade. Morton exemplifica este fato com uma

breve e fascinante passagem na qual descreve o modo como Descartes, apesar de

frequentemente vilipendiado pela ecocrítica tradicional, inicia suas Meditações

descrevendo o ambiente no qual se encontra - sentado à beira do fogo, segurando em

suas mãos o papel sobre o qual escreve - uma estratégia típica da nature writing (de

figuras como Henry Thoreau), que busca justamente ofuscar a separação entre o Eu e o

ambiente. Morton chama atenção para a forma como o raciocínio que segue tal

descrição (a fase de dúvida radical que culmina no cogito) apoia-se exatamente sobre o

contexto, a ambiência que o envolve, sendo impossível designar um (o Eu), ou outro (o

meio) como ontologicamente anterior. “´Eu penso` depende do ´Eu estou` do ´Eu estou

aqui sentado ao pé da lareira` (...) Penso, logo existo (aqui, sentado à beira do fogo)”.

(Morton, 2007, pp. 176-7)168

168

Morton, 2007, pp. 176-7 ““I think” depends upon the “I am” of “I am sitting here by the fire.” Moreover, the very philosophy of the self depends upon this environment, as Descartes starts to subject his innocent situatedness to a series of doubts that hollow out that comfortable place by the fire. “I am here” depends upon a sense of doubt, which leads to the cogito: I think therefore I am (that is here, sitting by a fire)." (minha ênfase)

Page 61: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

61

De modo semelhante, Morton descreve o próprio pensar como um evento

ecológico, o que emerge do enredamento simbiótico de uma multiplicidade de objetos -

no caso humano, bilhões de organismos (suas próprias células e microbioma) que, em

conjunto, constituem e permitem o funcionamento do corpo. (Morton, 2010, pp. 7-8)169

Assim, consciência e senciência transfor qualidades emergentes de sistemas complexos,

ao mesmo tempo que se evita o quadro simplista do eliminativismo, pois, os elementos

componentes deste sistema além de não serem exclusivamente materiais, mantêm

parte de si (que se retira de qualquer contato) sempre em reserva.

Georges Bataille, em seu livro Teoria da Religião, contrapõe a animalidade,

caracterizada pela continuidade entre o ente e o ambiente - “como água na água” - à

condição humana de separação e dualidade que, segundo ele, o homem procura

resolver com a invenção do sagrado, através de ritos e sacrifícios. Ele afirma que a

essência da religião é a busca pela intimidade perdida - “O homem é o ser que perdeu,

até mesmo rejeitou, o que é obscuramente intimidade indistinta”.170 Por esta

perspectiva a religião não é a busca por algo maior que o próprio humano, algo com o

qual este deseja fundir-se, mas, pelo contrário, é a busca pela intimidade com o Outro

(no caso da religião, o sagrado), com aquilo que é diferente do sujeito, a alteridade que

lhe é dessemelhante e estranha, resultado da condição humana de separação que ele

próprio assevera. Hoje, uma ansiedade profunda e generalizada, fruto do leque de

ameaças e incertezas com relação ao futuro - a população a multiplicar-se, o planeta a

aquecer, a abundância de discursos apocalípticos e falta de soluções efetivas - um

indicador de que o ser humano talvez esteja à procura de algo análogo é justamente o

tom de fervor religioso que permeia grande parte do discurso e da retórica

ambientalista. O humano não inaugurou o Antropoceno (a "Idade do Homem") sozinho,

169

Morton, 2010, pp. 7-8 “Thinking itself is an ecological event.” Standen, 2013 170

Bataille, 1993 p. 27

Page 62: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

62

mas em estreita colaboração com outros objetos - sílex, barro, ferro, cavalo, petróleo,

bicho-da-seda, sistemas de governo, etc - busca aproximar-se dessa estranha intimidade

entre a res cogitans cartesiana e o ambiente que a constitui, suporta e revela.

A crescente conscientização acerca das inumeráveis relações entre formas de

vida, entre vida e não-vida, e também de elementos não orgânicos entre si, começa a

derrubar lentamente a antiga noção do meio ambiente como ´caixa contentora´, pois,

revela a maneira como o ambiente é, simultaneamente, meio e produto das relações

entre objetos de naturezas diferentes. Tal constatação permite que uma apreciação

ecologicamente superior emerja, e o encontro com entes, que juntamente com o

humano constituem esta malha, torna-se profundo e significativo.171 O aprimoramento

do senso de proximidade faz ruir a ilusão de um lugar ´fora`, de uma esfera (imaginária)

infinitamente remota para onde iria o lixo deitado fora. Hoje todos sabem que o destino

do lixo são as usinas e os aterros, que o esgoto não vai para o além, mas para a usina de

tratamento - este espaço `acolá´ já não se pode manter porque questões como as ilhas

de plástico nos oceanos ou o lixo espacial são de conhecimento geral.172

A perspectiva objeto-orientada

Uma abordagem objeto-orientada para a Ecologia é significativa exatamente

porque admite e reconhece a existência e a paridade ontológica de todo tipo de ente,

além das incontáveis relações que estes engendram entre si (envolvendo diretamente o

humano ou não), ao mesmo tempo que compartilha do discernimento ecológico

fundamental: a noção de que os elementos nos quais consiste o meio ambiente

encontram-se interconectados, de diferentes maneiras. “Os objetos da OOO encontram-

se simultaneamente fechados [em si] e emaranhados [uns nos outros] num éter sensível

(interobjetivo)”. (Morton, 2013-A, p.68)173

171

Morton, 2013-B, p.128 172

Morton, 2011, p. 82 173

Morton, 2013-A, Realist Magic - Objects, Ontology, Causality. p.68

Page 63: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

63

Apesar dos objetos serem definidos com base em sua autonomia, a OOO também

descreve a maneira como eles são, essencialmente, constituídos por objetos, além de

existirem dentro de objetos, o que remete à própria etimologia do termo ecologia - cuja

raiz grega οίκος (oikos) significa casa - pois, pode-se afirmar (metafórica-, mas também

literalmente) que objetos servem de casa para outros objetos, bem como, objetos

habitam o interior de objetos.174

Como citado na primeira parte do ensaio, Harman identifica a sinceridade

(seguindo Levinas) como uma estrutura universal, comum a todo objeto; uma estrutura

semelhante ao que José Ortega y Gasset chamara ingenuidade.175 Esta sinceridade

consiste na "atividade anônima da existência", a pura execução de cada objeto, e

independe de qualquer suposto acesso humano a esse desempenho, em outras

palavras, a sinceridade (neste sentido específico) significa simplesmente que objetos

existem inescapavelmente absorvidos em suas respectivas execuções.176 A existência

nessa teia (sempre constituído por, e no interior de, objetos) é definida por esta

sinceridade e pelo envolvimento.177

O objeto individual, anterior às relações nas quais encontra-se envolvido (o

objeto autônomo e irredutível descrito na primeira parte deste ensaio) pode ainda ser

visto como algo distintamente ecológico por outra virtude. Caso seja admitido que para

relações serem estabelecidas são logicamente necessários - antes de tudo - elementos

componentes que se relacionem, são concedidos a cada objeto específico valor e

importância que ele não receberia caso fossem favorecidas as relações (dissipando-os),

ou caso objetos fossem entendidos como partes (substituíveis) de uma totalidade,

componentes de um objeto-topo dentro do qual todos os outros existem - nos moldes

“OOO objects are simultaneously enclosed and entangled in a sensual (interobjective) ether.” 174

Morton, 2013-A, p. 45 Morton, 2013-Bpp. 116-9 175

Morton, 2013-A, p. 67 176

Harman, 2002, pp. 238-9 Harman, 2005, pp. 39, 43-9, 128-35, 194 177

Harman, 2005, p. 255

Page 64: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

64

da Natureza. Além disso, como aponta Levy Bryant, a posição contrária (que especifica

cada objeto segundo suas relações) “debilita nosso senso da fragilidade das relações, de

que elas podem ser facilmente quebradas, e que a destruição destas relações

frequentemente tem consequências destrutivas incalculáveis”.178

Um dos principais resultados da adoção de uma visão objeto-orientada da

Ecologia (para a Filosofia) é a expansão de sua esfera de abrangência; a Ecologia deixa

de estar associada apenas a uma parcela reduzida de entes (ecossistemas ameaçados,

derramamentos de óleo e calotas polares), passando a referir-se a todo tipo de objeto

(de átomos e novos prédios em Dubai a pedaços de satélites para sempre perdidos na

exosfera). Esta abertura de escopo é absolutamente fundamental, pois, hoje a crise

ambiental lança ao humano o desafio de lidar com este imenso e confuso conjunto de

objetos; as variadas ciências atestam sua conjugação íntima e generalizada, além do

modo como estes objetos podem influenciar uns aos outros profundamente. Para que o

ser humano seja capaz de avaliar a situação e tomar decisões inteligentes (em relação a

sua própria conduta) é imprescindível que ele leve em consideração esta multiplicidade

de perspectivas - representadas pelos estranhos-estranhos.

Como resultado, toda ação torna-se ecologicamente significativa. Quando estão

em jogo todos os (pequenos e grandes) componentes da realidade e temporalidades

que extrapolam a escala humana, qualquer alteração pode vir a ter repercussões

imprevisíveis, pequenos gestos podem ser (positiva- ou negativamente) amplificados

numa escala de tempo tão estendida, um fato que Parfit exemplifica com o problema do

lixo nuclear. Não existem teorias do interesse-próprio capazes de abarcar a (longa)

escala temporal do decaimento radioativo - materiais radioativos podem permanecer

letais por mais de vinte e quatro mil anos - o que significa que absolutamente todos os

humanos eventualmente vivos dentro deste período serão afetados pelas decisões 178

Bryant, 2012, em seu blog Larval Subjects “The idea that relations are internal undermines our sense of the fragility of relations, that they can be all too easily broken, and that the destruction of these relations often has incalculable destructive consequences.”

Page 65: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

65

tomadas no presente no que diz respeito ao armazenamento do lixo nuclear, numa

espécie de efeito cascata.179 Este é um exemplo claro de como pensar as relações na

escala imposta pelo foco no objeto obriga o humano a dar-se conta, estar atento, e

procurar lidar (antecipadamente) com potenciais repercussões inesperadas, não-

planejadas, e muitas vezes indesejadas, de cada ação presente, dando origem àquela

que Ulrich Beck chama de sociedade de risco.180

A Natureza, uma tradução humana do grande carnaval de objetos que compõem

o ambiente circundante, pode, segundo Morton, ser entendida como um objeto

sensível, pois, o que ela designa é sempre Natureza-para (um dado ente - construída de

acordo com a estrutura do como, descrita na primeira parte deste ensaio), sempre um

fenômeno, uma interpretação.181 Lembrando que um objeto sensível é aquele que

existe unicamente quando objetos reais estabelecem uma relação (é a interpretação

sensível que um objeto faz de outro)182, a Natureza é, portanto, incapaz de subtender

ou conter objetos (reais). Pensá-la como um pano de fundo sobre o qual se desenrolam

as estações do ano, a vida dos diferentes organismos, ou as grandes catástrofes

naturais, é adotar a perspectiva da metafísica da presença, o que significa afirmar que a

Natureza possui presença objetiva constante ("Natureza" como horizonte). Sob esta

perspectiva a rede de relações torna-se mais importante, ou mesmo mais real, que seus

componentes, tendo sobre eles um efeito dissipativo.

Mas o que significa afirmar que tudo está interconectado? Harman indica duas

possibilidades: se tomada no sentido de uma conectividade forte, a afirmação aponta

para uma visão holística, na qual tudo é determinado com base em suas interações com

todo o resto; enquanto uma conectividade fraca significa simplesmente que objetos de

toda sorte fazem parte de uma mesma trama, livres de classificações dicotômicas como

179

Parfit, 1984, p. 443 Morton, 2011, p.87 180

Morton, 2013-B, p. 140 181

Morton, 2013-B, p.119 182

Harman, 2012-A, p.18

Page 66: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

66

mente/matéria, natural/não-natural, humano/não-humano, ou de uma hierarquia.183 É

no segundo sentido (da conectividade fraca) que Morton afirma que todos os objetos

encontram-se interconectados; “A crise ecológica que encaramos é tão óbvia que se

torna fácil - para alguns, estranha ou assustadoramente fácil - ligar os pontos e perceber

que tudo está interconectado. Este é o pensamento ecológico”. (Morton, 2010, p.1)184

Assim, uma ontologia plana, fundamentalmente democrática, emerge, na qual todos os

objetos possuem o mesmo estatuto ontológico. Uma ecologia construída sobre tais

bases claramente põe em causa noções de hierarquia ou privilégio, mas,

principalmente, vai além do correlacionismo que dá ao ser humano dignidade

ontológica exclusiva. Morton afirma que pensar-se a Ecologia nos termos da malha

significa abandonar a noção de um centro, de um ente que determina todo o restante,

bem como a ideia de uma separação entre ´dentro` e `fora`; a malha estende-se por

todas as escalas - dentro de um objeto existem mais objetos, e o mesmo à sua volta.185

Numa ontologia plana não existe um pano de fundo sobre o qual se destacam os

objetos, por consequência, também não há um primeiro plano; nenhum ente é

considerado especial em relação a qualquer outro.

Na obra Jamais Fomos Modernos, Latour apresenta aquilo a que dá o nome de

quase-objetos, que são compostos através de associações entre humanos e não-

humanos em “íntima fusão através da qual os rastros dos dois componentes da natureza

e da sociedade se apagam”.186 Nesta obra, ele implode separações salientando como a

relação de dependência e determinação mútuas entre essas duas dimensões (Natureza

e Cultura) precisa ser devidamente admitida para que possam ser acomodadas a

multiplicidade e a ubiquidade destes híbridos, fornecendo-lhes “um nome, uma casa,

183

Harman, 2012, p.16 184

Morton, 2010, p. 1 “The ecological crisis we face is so obvious that it becomes easy - for some, strangely or frighteningly easy - to join the dots and see that everything is interconnected. This is the ecological thought.” (minha ênfase) 185

Morton, 2010, pp. 38-9 186

Latour, 1994, pp. 54-5

Page 67: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

67

uma filosofia, uma ontologia e, (espero) uma nova constituição”.187 “Escrever sobre

ecologia”, afirma Morton, “é escrever sobre a sociedade, e não simplesmente no sentido

fraco, de que nossas ideias acerca da ecologia são construções sociais. Condições

históricas aboliram a natureza extra-social à qual teorias da sociedade podem apelar,

enquanto, ao mesmo tempo, fizeram com que entes que se encaixam sob este título

[extra-social] passassem a impingir ainda mais urgentemente sobre a sociedade”.

(Morton, 2007, p.17)188 Em outras palavras, aquilo que recebe o nome Natureza está

hoje presente, e em verdade esteve sempre, no seio do espaço social. O Antropoceno -

período geológico atual, caracterizado pela influência humana sobre a crosta terrestre -

atesta exatamente a impossibilidade desta separação.

Ecologia Sombria

“This is the way the world ends

This is the way the world ends

This is the way the world ends

Not with a bang but a whimper”189

- T.S. Eliot

O desenvolvimento de um conceito de ecologia baseado na forma como uma

miríade de objetos autônomos afetam uns aos outros e existem em proximidade radical,

não tem como objetivo a simples expansão da esfera de inclusão da Ecologia, mas busca

principalmente salientar o encontro profundamente íntimo entre objetos - de toda

natureza e toda escala - que são, e serão sempre, estranhos uns aos outros apesar

187

Latour, 1994, pp. 8-11, 55 188

Morton, 2007, p. 17 “To write about ecology is to write about society, and not in the weak sense that our ideas of ecology are social constructions. Historical conditions have abolished an extra-social nature to which theories of society can appeal, while at the same time making the beings that fell under this heading impinge ever more urgently upon society.” 189

Eliot, 1936, pp.87-90

Page 68: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

68

dessa proximidade (afinal, objetos nunca são descobertos em sua totalidade); um

encontro que estreita laços ao mesmo tempo que realça diferenças.

Morton afirma que meditar acerca da Ecologia é difícil, “envolve tornar-se aberto,

radicalmente aberto”, exige uma atitude crítica de constante reavaliação e

questionamento, "é um pensar que é ecológico, um contemplar que é ação", pois, tomar

consciência de um objeto (ou ´intencioná-lo´, em termos husserlianos) é fazer-se

vulnerável a este objeto, é estar aberto e receptivo às directivas que ele emite.190

Se por um lado o modelo de ecologia promovido por Morton - ao qual ele dera o

nome Ecologia Sombria (Dark Ecology) - procura questionar problemas, conceitos e

padrões, por outro ele sugere uma postura específica, que parte da ansiedade, da

hesitação e da incerteza frente a uma realidade essencialmente estranha. Claramente, o

objetivo de uma abordagem nestes moldes não é o de estabelecer critérios normativos

rígidos de conduta, tampouco, o de reduzir ou simplificar as inúmeras questões que a

Ecologia (como princípio das relações entre todo tipo de objeto) levanta, a Ecologia

Sombria, ao contrário, propõe uma postura contemplativa, aberta e não-violenta como

estratégia para desenvolvimento de uma "lógica de coexistência futura"; uma

coexistência que reconhece o modo como diferentes objetos desempenham diferentes

papéis enquanto engajados em uma multiplicidade de relações inerentemente

frágeis.191

A possibilidade que se revela ao humano com a ´descoberta` do Antropoceno, e

que o aquecimento global exige e impõe, de pensar-se numa escala espaço-temporal

expandida (que abarque os limites extensos e imprecisos de entes como a biosfera, bem

como as longas e lentas transformações do sistema terrestre) envolve encarar a

190

Morton, 2013-B, p.7 “Thinking the ecological thought is difficult, it involves becoming open, radically open”, “it is a thinking that is ecological, a contemplation that is doing”. Harman, 2002, p. 226 191

Morton, 2014-A, nos três seminários

Page 69: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

69

perturbadora ausência de uma ´conduta adequada´ determinada (ou determinável) em

relação ao planeta e aos entes que nele habitam, além da inescapável hipocrisia nas

fronteiras do cuidado ecológico, uma vez que as próprias condições de possibilidade

para a vida (humana ou não) implicam perturbações no meio ambiente.192

O conceito de ´Natureza` chega a ser contra-produtivo para o projeto

ambientalista por inúmeras razões. Uma delas é a maneira como uma Natureza

normativa baseia-se em sua capacidade de excluir aquilo que não é considerado natural,

entretanto, a decisão cabe sempre ao humano. Por vezes a natureza é a mais palpável

realidade, por outras é o princípio transcendente que rege alguns entes (ditos naturais)

e não outros. Mas, talvez o grande problema seja a maneira como aquilo a que se refere

o termo não coincide com o que de fato constitui o ambiente terrestre.

O conceito moderno de Natureza, herdado da tentativa de resistência à

industrialização por parte dos românticos, a estabelece como um ciclo harmonioso e

periódico, algo que, sob a perspectiva da geologia por exemplo, não passa de uma

ficção.193 O ambiente terrestre é um exemplo de um conjunto de transformações e

mudanças radicais contínuas- períodos de aquecimento e resfriamento extremos,

extinções em massa, etc. - mesmo antes do surgimento da espécie humana (a História

humana, da espécie como ela é reconhecida hoje, teve início há cerca de cinquenta mil

anos), que por sua vez, já enfrentou inúmeros períodos de mudanças climáticas

anteriores. Os últimos doze mil anos da história terrestre, o período oficialmente

denominado Holoceno, cujo início é marcado pelo fim da última era glacial, caracteriza-

se exatamente pelo aquecimento inicial e pela subsequente estabilidade de um clima

relativamente ameno, propício a uma grande variedade de espécies, inclusive a

humana.

192

Colebrook, 2013, em diálogo com Cary Wolfe 193

Morton, 2014-A, primeiro seminário

Page 70: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

70

Assim, a partir do início do Holoceno (o fim da última glaciação) o ser humano foi,

obrigado a traçar estratégias para lidar com um planeta em aquecimento. A arqueologia

fornece evidências de movimentos migratórios e do desenvolvimento de novas

tecnologias; é também neste momento que a agrilogística surge como alternativa

particularmente atraente pelos motivos já citados (a confiabilidade dos resultados,

maior rendimento por menor esoforço, etc), sendo gradualmente adotada ao redor do

globo. Discutivelmente esta fora a mais fundamental das transformações efetivadas

pelo ser humano no ambiente; seu gigantesco impacto sobre os sistemas terrestres

contribuiu para a manutenção da estabilidade climática (ainda que temporária) no

planeta, ao tentar evitar as consequências do aquecimento global que os humanos do

início do Holoceno enfrentavam, foi desenvolvida uma estratégia lógica (a agrologística)

cujo resultado a longo prazo é justamente o aquecimento global em curso hoje.194 As

transformações acumuladas (especialmente nos últimos dois séculos) vieram perturbar

esta aparente estabilidade, inaugurando um novo período de aquecimento global com o

qual o humano (enquanto espécie) tem de lidar, desenvolvendo novas estratégias de

adaptação e tendo em mente a maneira como as atividades humanas têm

consequências tão amplas e profundas que afetam o planeta (hoje mais que nunca)

numa escala verdadeiramente global, de maneira complexa, interativa e acelerada. 195

O aspecto sombrio deste modelo de Ecologia é derivado do inquietante encontro

com o estranho-estranho, e da proximidade claustrofóbica da convivência com as

multidões de objetos que não só constituem o ambiente mas o próprio humano. Esta

lugubridade vem ainda da postura destas ideias em relação ao chamado ´fim do mundo`

- um recurso retórico tão frequentemente encontrado no discurso ambientalista,

discussões sobre a crise ambiental, o aquecimento global e consequentes mudanças

194

Morton, 2014-A, primeiro seminário 195

IGBP, 2004, p. 6

Page 71: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

71

climáticas, e cada dia mais presente na cultura popular. Existe uma crescente variedade

de narrativas (especialmente no cinema) que retratam futuros distópicos, nos quais a

humanidade (ou o que resta dela) é obrigada a enfrentar um leque variado de horrores,

muitas vezes de sua própria autoria. Em geral, tais narrativas retratam o futuro (mais ou

menos distante) ao mesmo tempo que situam o presente sob a sombra deste

(eco)apocalipse, que apesar de muitas vezes iminente, é representado como algo que

ainda está por vir.196

Especialistas afirmam que "Muito mais provável que um cenário de fim de

mundo, envolvendo a extinção humana ou um colapso apocalíptico da civilização

industrial, será ´apenas` um futuro com padrões de vida significativamente mais baixos,

com riscos cronicamente mais elevados e com a destruição daquilo que hoje

consideramos alguns de nossos valores fundamentais".197 O quadro descrito por

Diamond parece tão retirado da realidade atual. Ao contrário dos filmes de desastre ele

apresenta um ´fim do mundo´ muito mais gradual, que acontece antes que os

envolvidos se dêem conta dele.

Morton insiste que o fim do mundo já aconteceu - o subtítulo de seu livro mais

recente, Hyperobjects, é justamente "Filosofia e Ecologia Após o Fim do Mundo" - e ele

especifica um momento preciso a partir do qual o mundo (enquanto conceito definido

em relação exclusiva ao humano) começou a desmoronar: Abril de 1784.198 Esta mesma

data foi anteriormente mencionada neste ensaio para determinar o início do

Antropoceno - o momento da história do planeta no qual o humano juntou-se ao grupo

dos principais agentes geofísicos sobre a Terra, um estatuto que só pôde ser atingindo

através da íntima associação entre o humano e um sem número de outros entes (não-

196

Uma breve listagem (de modo algum exaustiva) de exemplos que tiveram êxito de público inclui: Melancholia, 2011, dir. Lars Von Trier, Zentropia Entertainment The Road, 2009, dir. John Hillcoat, Dimension Films Wall-e, 2008, dir. Andrew Stanton, Pixar Animation Studios I am Legend, 2007, dir. Francis Lawrence, Warner Bros. 197

Diamond, 2005, p. 22 198

Morton, 2013-B, pp. 7,16-17, 21

Page 72: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

72

humanos como pás, motores, teares, fábricas, raios gama e moedas) que de forma

direta ou indireta são enformam suas ações. É exatamente devido à tomada de

consciência de sua inextricabilidade em relação ao contexto, ao modo como o meio

ambiente já não pode ser tomado como um simples ´pano de fundo´ para o drama

humano (pois, o pano de fundo invadiu o centro do palco), que Morton argumenta que

o conceito de ´mundo` é, hoje, insustentável. "O fim do mundo está correlacionado ao

Antropoceno, a seu aquecimento global e subsequente mudança climática drástica, cujo

alcance preciso permanece incerto enquanto sua realidade é verificada de maneira

inquestionável". (Morton, 2013-B, p.7)199 Este ´fim do mundo`, portanto, não é sinônimo

da extinção do planeta ou da espécie humana, mas o fim de uma noção de ´mundo`

como efeito estético baseado em sua imprecisão e distanciamento, além de sua

presença constante - nos moldes da Natureza como armazém de recursos (vítima da

metafísica da presença) criticada por Heidegger.

Assim, a crise ambiental vem acompanhada de uma crise dos hábitos do

pensamento filosófico, e confronta a humanidade com problemas que desafiam não só

sua capacidade de controle, mas de entendimento; “Entes não humanos são

responsáveis pelo próximo momento da história e do pensamento humanos".200

Porém, a Ecologia Sombria não é sinônimo de uma filosofia de rendição niilista.

Depois do fim do mundo, em outras palavras, hoje, o humano começa a reorientar-se a

fim de conseguir fazer sentido de mais este descentramento, que segue o que Freud

considerara as três grandes humilhações do humano (ou três feridas narcísicas), as

descobertas de Copérnico, Darwin e a sua própria, que retiraram o humano do centro

do universo, da genealogia de origem divina (com início em Adão) e do centro da

199

Morton, 2013-B, p. 7 “The end of the world is correlated with the Anthropocene, its global warming and subsequent drastic climate change, whose precise scope remains uncertain while its reality is verified beyond question.” 200

Morton, 2013-B, p. 201 “Nonhuman beings are responsible for the next moment of human history and thinking."

Page 73: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

73

própria atividade psíquica, respectivamente. Morton acrescenta a esta lista de

humilhações o deslocamento efetivado pela OOO ao situar o Ser (do) humano no

mesmo patamar ontológico que qualquer outro ente. (Morton, 2013-B, p.201)201

Harman, em contraposição a Heidegger, afirma que "O mundo não é apenas um, é

também muitos. Ele não é composto somente por partes que se empurram para além de

si próprias e perdem suas identidades numa contextura cósmica de sentido, antes, suas

partes são também pontos finais, vizinhanças fechadas que retêm suas identidades

locais apesar dos sistemas mais amplos nos quais se encontram parcialmente

absorvidas”, em outras palavras, o mundo não se constitui somente para o humano.202

O reconhecimento do Antropoceno implica o reconhecimento, dentro e fora da

ciência, da maneira como entes discretos existem intimamente ligados. A crise

ambiental trouxe consigo aquela que Morton chama de "náusea da coexistência", pois,

o não-humano passou a impingir decididamente sobre a História e muitas vezes a

oprimir e ameaçar o humano.203 A estrutura circular do Antropoceno (reminiscente dos

romances noir e de tragédias como Rei Édipo, de Sófocles, nos quais o protagonista

descobre ser o próprio vilão) também concede tons sombrios a esta conscientização.204

A "abertura radical" que Morton declara imprescindível para que uma

convivência ecologicamente superior emerja é também descrita como uma forma de

sintonia (attunement) entre estranhos-estranhos.205 Com base na reinterpretação do

imperativo categórico kantiano efetuada por Lingis (na obra The Imperative), Morton

afirma que estar em sintonia com os objetos à volta é tornar-se suscetível e vulnerável

às directivas por eles emitidas.206 E ele sugere uma ética do Outro, baseada na

proximidade com o estranho, semelhante ao que Jacques Derrida propõe quando ele

201

Morton, 2013-B, pp. 16-17 202

Harman, 2002, p.34 203

Morton, 2014, terceiro seminário 204

Morton, 2014, Segundo seminário 205

Moton, 2013-C, em conferência 206

Morton, 2014, terceiro seminário

Page 74: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

74

afirma que um princípio da ética é a obrigação que convoca a responsabilidade no que

diz respeito ao mais dissimilar, o "irreconhecível" (méconnaissable).207

Lingis situa o a priori transcendental no que ele chama de níveis (que Morton

rebatiza zonas) - as áreas dentro das quais objetos exercem seu poder de influência -

correspondente ao ´éter sensível´ da OOO, a dimensão estético-causal na qual objetos

deixam sua impressão sobre outros objetos.208 Segundo o próprio Lingis, a

correspondência entre estes níveis convoca o indivíduo como uma directiva - que não é

recebida pelo entendimento conceitual ou pela razão, não é o imperativo para

conceber-se cada padrão sensível como categoria universal e necessária, nem um

imperativo para que os objetos reconhecidos conceitualmente sejam conectados a leis

necessárias universais mas, é recebida pelo corpo sensório-motor, finalizando a

percepção feita do objeto em direção a um campo definido, ao invés de um caos de

padrões transitórios. A ética de Lingis depende, portanto, de um tipo de harmonização

ou sintonia (uma Stimmung), ou uma correspondência entre objetos que independe de

raciocínios ou cálculos éticos, pois, "a obediência aos níveis precede e torna possível

qualquer iniciativa, qualquer liberdade, de sensibilidade ou movimento". (Lingis, 1998,

p.38)209 No decorrer de sua existência, e envolvido em objetos, as estruturas materiais

dos caminhos, dos implementos e dos obstáculos aparecem como directivas que

regulam a ação do indivíduo.210 Estes níveis, ou zonas, correspondem ao ´éter sensível´

no qual todos os objetos encontram-se submersos, que Morton chama de um “campo

207

Derrida, 2009 p.108 208

Harman, 2005, p.42-4 Neste livro, Harman dedica-se à investigação desse ´éter`: "In Tool-Being, I focused on objects as withdrawn unities that never come to presence. In the present book, what interests me is the cloud of gaseous qualities that are present, in which objects do take form and become manifest”. 209

Lingis, 1998, p.38 “Obedience to the levels precedes and makes possible any initiative, any freedom, of sensibility and movement.” 210

Lingis, 1998 p. 171 Morton, 2013-B, pp.140-1

Page 75: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

75

ilusório de ironia”; o objeto e sua zona são, posto em outros termos, a coisa-em-si e seu

fenômeno, ou ainda, o objeto real e o objeto sensível.211

Em um belíssimo exemplo da maneira como objetos (entes reais e autônomos)

convivem de maneira absolutamente próxima, exercendo influência uns sobre os outros

de modo a constituirem a chamada malha de interconexão, e de como estes objetos

entram em sintonia ou dissonância, pode ser encontrado no ensaio A Defense of Poetry,

do poeta inglês Percy Bysshe Shelley, com ecos em Heidegger e também em Lingis.

Shelley traça um paralelo entre a maneira como uma harpa eólica produz som e o poeta

escreve poemas, ambos o resultado do encontro entre diferentes entes - a harpa e o

vento, o poeta e seu tema - ou seja, a tradução que um faz do outro no próprio ato da

interação.

O instrumento, muito popular na Inglaterra nos séculos XVII e XVIII, consiste em

um caixa retangular de madeira, sobre a qual cordas correm longitudinalmente,

estendidas sobre pontes em cada extremidade e ligadas a cravelhas. Posicionada no

peitoril de uma janela, a harpa vibra com a pulsação das correntes de ar produzindo

som. Shelley afirma que o ser humano é, de certa maneira, análogo a essa harpa eólica

na medida em que "O homem é um instrumento sobre o qual uma série de impressões

externas e internas são movidas", ele percebe passivamente uma corrente de estímulos

e ressoa em conformidade.212

Se deixada sozinha num ambiente externo a harpa eólica emitirá, vez ou outra,

suas vibrações estranhas, que soam surpreendentemente futuristas aos ouvidos atuais,

causadas pela fricção das correntes de ar sobre as cordas. Heidegger afirma que o som

do vento em-si nunca é ouvido, o que se ouve é o assobiar do vento na chaminé, o

sussurro do vento nas folhas de uma árvore, o vento roçando as cordas de uma harpa

eólica.213 Em outras palavras, ouve-se a tradução que o vento faz das cordas; a tradução,

211

Morton, 2013, p. 143 212

Shelley, 1904 p.13 213

Heidegger, 2002, p. 8

Page 76: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

76

em ondas de pressão amplificadas que a caixa oca faz da vibração das cordas. Ao entrar

no ouvido estas ondas serão novamente traduzidas pela cóclea, que age como um

transdutor, traduzindo vibrações mecânicas em sinais eletromagnéticos.214 Assim, uma

série de conversões, traduções, ou interpretações são necessárias para a ocorrência dos

processos perceptivos.

Lingis, por sua vez, apresenta uma extensa série de exemplos que descrevem esta

sintonia, quando na escuridão de uma caverna "tateamos as rochas, nosso tato espalha

seu relevo pedregoso diante de nós enquanto a massa de nossas mãos pressionadas

contra a rocha escorregam sobre ela. A força de nossas mãos é extraída da força que

sustenta nossa postura arqueada que é extraída da força que sustenta o chão e as

paredes da caverna". Ele fala da maneira como objetos existem em interação íntima e

constante, além de necessária para que o ambiente seja constituído como tal, "ouvimos

o grito da águia com os ventos e as paredes de rocha do canyon". E ele insiste “os meios

que nos fazem perceber nosso ambiente como tantas rotas e caminhos e interconexões

dinâmicas são exteriores e nos comandam”. (Lingis, 1998, pp.282-4)215

Assim, o momento em que o humano dá-se conta da extensão e penetrância de

sua influência sobre o "mundo" coincide com o momento em que o humano percebe

que ele também é influenciado pelos objetos que o constituem em igual medida. Como

resultado dessa dupla apreciação a Ecologia passa, no Antropoceno, a concernir tido

tipo de relação entre todo tipo de objeto, e esta compreensão levanta uma série de

questões desagradáveis. Do que fazer com os dejetos, passando pelo cálculo dos riscos,

até o enfrentamento da "conclusão repugnante" (delineada por Parfit), hoje, essas

perguntas vêm à tona continuamente, a todo momento. O lixo, por exemplo, está mais 214

Morton, 2012, p. 206 215

Lingis, 1998, p. 82-84 "(...) we grope at the rocks, our touch spreads their gritty relief before us as the mass of our hands press up against the rock and skid across it. The force of our hands draws on the sustaining force of our sprung stand which draws on the sustaining force of the cave floor and walls." “We hear the scream of the eagle with the winds and the rock walls of the canyon” “The ends which make us perceive our environment as so many routes and pathways and dynamic interconnections are exterior and command us.”

Page 77: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

77

presente que nunca no cotidiano, na forma de contentores coloridos espalhados pelas

ruas e pelas cozinhas, na maneira como deitar algo fora agora inclui a pergunta se aquilo

é ou não reciclável, no modo como se sabe que o lixo não é simplesmente "jogado fora"

mas sim, depositado em algum lugar (às vezes em locais indevidos, causando uma série

de problemas, outro fato que poucos hoje ignoram), onde o fluxo de reações e

transformações continua longe da presença humana, porém, intimamente ligado à ela.

A ansiedade primordial da existência, a inquietação perturbadora frente ao

estranho-estranho (o objeto contraditório que é aquilo que se mostra ao mesmo tempo

que não o é retorna na figura de entes como o aquecimento global (que apesar de real

nunca é encontrado diretamente, apenas em seus efeitos). Tudo isso impõe sobre o

pensamento uma escala esmagadoramente vasta, talvez mais difícil de imaginar que o

próprio infinito abstrato.216

Aceitar que o fim do mundo já aconteceu implica parar de tentar salvar o mundo,

o que à primeira vista pode parecer o exato oposto daquilo que uma teoria da Ecologia

e da coexistência poderia querer promover. Porém, após o "fim do mundo" tudo o que

resta são entes individuais em coexistência, uma profusão de estranhos objetos que

cintilam, cada um a seu modo. Este ensaio defende que neste momento, quando o ser

humano começa a reconhecer o modo como o próprio humano consiste numa

multiplicidade de não-humanos é uma incumbência da Filosofia assistir no

desenvolvimento dos termos que serão usados na formulação dos problemas

inaugurados com o Antropoceno.

216

Morton, 2010, pp. 40, 118

Page 78: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

78

Page 79: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

79

Conclusão

A proposta desenvolvida ao longo deste ensaio foi a de delinear um conceito

renovado de ecologia para a Filosofia, capaz de responder ao desafio lançado pela

compreensão de que o ser humano, enquanto espécie, nos últimos dois séculos tornou-

se a principal força geofísica em ação no planeta, inaugurando a mais recente época

geológica: o Antropoceno.

O ensaio foi dividido em duas partes, na primeira delas foi apresentada aquela

que serviu de base para o desenvolvimento deste conceito alargado de ecologia, uma

teoria geral dos objetos - a Ontologia Objeto-Orientada - que lida com um mundo

quantizado, na qual entes existem como realidades unificadas, herméticas e discretas,

os chamados objetos. 217 A segunda parte tratou das implicações de uma perspectiva

objeto-orientada para a Ecologia no momento específico do Antropoceno.

Ao definir os objetos como entes que possuem existência unificada e

autônoma, em excesso de suas relações, acidentes, qualidades e momentos, que se

retiram de qualquer contato direto e mantêm uma faceta sempre isolada, a Ontologia

Objeto-Orientada aproxima-se daquilo a que Manuel Delanda dá o nome de ontologia

plana - formada exclusivamente por indivíduos únicos, singulares, que diferem na escala

espaço-temporal mas não em estatuto ontológico. 218 Como foi discutido, este modelo

argumenta que o plano ontológico possui dois tipos diferentes de objetos, os objetos

reais e os objetos sensíveis. 219 O termo objeto é aplicado universalmente, e abarca toda

217

Harman, 2011-A, pp.5-6 218

DeLanda, 2002, p.58 219

Harman, 2011-A, pp.20-50

Page 80: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

80

espécie de ente - de cães, canhões ou castelos a eléctrons, emails e escolas de samba.

220 Para Harman nem mesmo entes imateriais, como os números, escapam desta

categoria, pois, “é perfeitamente possível discutir-se o significado de ´número` e fazer

novas descobertas acerca de entes matemáticos - a prova mais simples concebível de

que as propriedades dos números não são visíveis num relance(...). É neste sentido que

mesmo as ideias devem ser concebidas como entes reais”, em outras palavras, entes

imateriais, efêmeros, compostos, ficcionais - que muitas vezes são excluídos das

categorias mais gerais da ontologia - são, aqui, também considerados objetos, pois,

assim como os entes materiais, eles não podem ser reduzidos nem a sua estrutura ou

nem a seus efeitos sobre outros entes. 221

Foi apresentada a forma como a Ontologia Objeto-Orientada desenvolve a

estrutura básica do objeto a partir de noções elaboradas por Husserl e Heidegger:

“Heidegger estabeleceu que o Ser de um objeto não é jamais completamente

apreendido, mas aparece sempre como uma caricatura cada vez que surge enquanto

fenômeno. Nenhuma aparência do martelo, nenhuma relação para com ele, pode

apreender as profundezas do Ser-martelo. Na esfera fenomênica, Husserl mostrou que

existe uma segunda fratura. O martelo fenomênico, o objeto intencional ´martelo`,

permanece uma unidade durável enquanto giro-o em minhas mãos, observo-o de perto

ou à distância, e continuo a observá-lo enquanto meu humor altera-se da euforia à

absoluta depressão suicida”. 222 Assim, o objeto da OOO existe fendido entre seu

220

Harman, 2005, pp. 73-87 221

Harman, 2002, p.36 “(...) it is quite possible to discuss the meaning of ´number` and to make new discoveries about mathematical entities - the simplest conceivable proof that the properties of numbers are not visible at a glance, not merely vorhanden. It is in this sense that even ideas must be regarded as real entities.” 222

Harman, 2008, pp. 3, 10 “Heidegger established that the being of an object is never fully grasped, but always appears as a caricature whenever it appears as a phenomenon. No appearance of the hammer, no relation to it whatsoever, can grasp the depths of hammer-being. Within the phenomenal sphere, Husserl showed that there is a second fracture. The phenomenal hammer, the intentional object ´hammer`, remains an enduring unit as I rotate it in my hands, view it up close or from a distance, and continue to view it as my mood shifts from euphoria to utter suicidal depression.”

Page 81: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

81

executar autônomo e isolado e a apreensão sensível que dele é feita; entre a parte do

objeto passível de ser traduzida por um outro objeto e a parte que se afasta de toda e

qualquer forma de contato.

Outra característica distintiva da ontologia abordada neste ensaio é a maneira

como as relações entre os variados tipos de objetos são também colocadas no mesmo

patamar. Foi mostrado como as relações entre uma pedra e uma vidraça, ou entre

Pedro e a pedra podem ser descritas da mesma forma, pois, acontecem por via de

simplificações que um objeto (a pedra, a vidraça, Pedro) produz acerca de outro. Porque

acontecem através desta interpretação sensível, foi também afirmado que todas as

relações entre objetos são, essencialmente, de cunho estético. 223

Na segunda parte do ensaio, denominada ´Ecologia Objeto-Orientada`, as

variadas constatações da Ontologia Objeto-Orientada foram tomadas como

fundamento para uma concepção filosófica ampliada do significado do termo ´Ecologia`.

Foi afirmado que esta ampliação é particularmente relevante no atual momento de

crise ambiental no qual o humano precisa incluir-se num contexto geral maior, de uma

escala espaço-temporal distendida, a fim de avançar um modo de pensar menos

antropocêntrico.224

Procurou-se demonstrar a forma como, apesar do termo Antropoceno ainda não

ter sido oficializado pela geologia, o termo já se encontra difundido em outras áreas e

disciplinas, além de ter também adquirido enorme poder retórico, pois, contém

claramente em sua raiz - do grego Anthopos - a marca do ser humano, extamente aquilo

a que se refere. Apesar de sugestões situarem o início desta época geológica séculos no

passado, quando não milênios, o estabelecimento do Antropoceno só pôde ser

constatado retrospectivamente, em parte, devido ao desenvolvimento de

223

Harman, 2005, pp. 169-234

Morton, 2013-B, pp.19-20 224

Chakrabarty, 2013, em conferência

Page 82: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

82

computadores cada vez mais potentes e à criação de modelos suficientemente

sofisticados (ainda que incompletos e em constante aperfeiçoamento) das complexas

relações entre os diferentes sistemas terrestres. 225 Foi argumentado que o Antropoceno

é um período no qual se cruzam diferentes temporalidades - sobretudo as da história

física do planeta e a História social humana - problematizando o papel privilegiado do

humano, no sentido de que ele está no foco e de que ele é favorecido em detrimento do

não-humano, de maneira geral.

Na Filosofia, exatamente no princípio do Antropoceno, Kant propôs que um

objeto jamais corresponde ao seu fenômeno, o indivíduo está infinitamente separado

da coisa em-si. 226 Entretanto, Kant limitou-se a estabelecer essa fenda exclusivamente à

volta do ser humano (o a priori pertence ao intelecto humano). 227 Desde então a

correlação entre a realidade, o mundo, e o pensamento humano tem sido o espaço no

qual se concentra grande parte de toda a investigação filosófica; dificilmente uma

postura que reflete uma compreensão da influência mútua, quando não da

interdependência (ou ainda a imprecisão das fronteiras), entre humano e não-humano –

um discernimento fundamental para a Ecologia. 228 Portanto, para que a Filosofia seja

capaz de pensar a Ecologia hoje - no Antropoceno - ela precisa ser capaz de não só

abarcar as grandes escalas do espaço e do tempo, mas também a enorme diversidade

de objetos que se multiplicam em todas as escalas.

Fundamentar o conceito de Ecologia sobre bases objeto-orientadas resulta

numa Ecologia inclusiva, que reconhece a unicidade de cada um de seus elementos, ao

mesmo tempo que observa seus laços estreitos. Todos são contemplados com a falha

fundamental que impede um objeto de acessar qualquer objeto diretamente. As três

225

Crutzen, Stoermer, 2000, pp.17-18

Morton, 2013-B, pp.4-5 Ellis, 2013, p. 32-35 226

Morton, 2013-B, p.18 227

Latour, 1993, p.33 228

Meillassoux, 2010, pp.119-121

Page 83: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

83

principais implicações de um conceito de Ecologia nestes moldes são a) a Ecologia deixa

de estar restrita ou associada apenas a um seleto grupo de entes (sejam eles espécies

em extinção, rios poluídos ou o dióxido de carbono), b) a pluralidade de ângulos (de

pontos de vista além do humano) vem à tona, assim como o fato de que existir é já, e

sempre, coexistir, c) toda ação torna-se ecologicamente significante.

Para lidar com a enorme carga de ansiedade gerada por esta terceira

implicação, foi apresentada a Ecologia Sombria de Timothy Morton, que põe foco sobre

a descrição da estranheza intrínseca aos objetos (os estranhos-estranhos) que se

encontram ligados direta e indiretamente no que é descrito como uma malha de

interconexão, sem margens ou centro definidos. 229 Também estranha e sombria é a

noção, que esta concepção de Ecologia apresenta, de que o fim do mundo (o mundo

como caixa contentora, sempre presente, e totalmente determinado em relação ao

humano) já aconteceu, de que hoje já se vive a realidade pós-apocalíptica imaginada

pela ficção. 230 Entretanto, buscou-se demonstrar o modo como o fim (desta concepção

de) mundo realça a existência específica de cada ente, e aponta para uma "lógica de

coexistência futura" baseada em uma abertura radical ao estranho-estranho, em uma

sintonização com as directivas emanadas pelo objeto - comandos que convocam,

seduzem e tocam aqueles que se encontrem suscetíveis.

E é exatamente essa suscetibilidade, o estar-se aberto ou vulnerável, que

Theodor Adorno sugere como definição para o que ele chama de comportamento

estético. Adorno afirma que a própria subjetividade é a "ansiedade cega do

estremecimento", que a vida no sujeito é justamente aquilo que nele reverbera na

presença do outro. Esse estremecimento, essa vibração consiste no ato de ser ´tocado`

pelo outro. E ele acrescenta ainda que o comportamento estético é a postura que se

229

Morton, 2010, pp. 8, 17, 29

Morton, 2013-A. pp. 75 Morton, 2014-A, toda a série de seminários 230

Morton, 2013-B, pp.16-17, 21

Page 84: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

84

assimila ao outro - aquela que entra em sintonia com o outro - ao invés de subordiná-

lo.231 Para a Ontologia Objeto-Orientada toda relação entre objetos é uma relação

estética. Um conceito de Ecologia que pressupõe esta afirmação (que faz de toda

relação ecológica também uma relação estética) é capaz de extrapolar da definição de

Adorno a preocupação em acomodar o outro, encapsulada também na injunção pela

abertura ao estranho-estranho da Ecologia Sombria.

Assim, este ensaio termina com a proposta de que a Ecologia no Antropoceno

deve adotar contornos mais amplos, para que a especificidade dos variados entes seja

admitida, distribuindo todos os seus objetos num mesmo patamar ontológico, e

deixando de considerar a perspectiva de uma só categoria de entes (o humano) como

locus de abertura para a realidade.

231

Adorno, 2013, p.437

Page 85: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

85

Lista de referências bibliográficas

Monografias, artigos, relatórios e recursos digitais serão listados juntamente, de acordo

com o autor e a data de publicação

Bibliografia principal

Harman, G. 2002, Tool-Being - Heidegger and the Metaphysics of Objects, Open Court, Chicago Harman, G. 2005, Guerrilla Metaphysics - Phenomenology and the Carpentry of Things, Open Court, Chicago Harman, G. 2007, “On Vicarious Causation”, Collapse Vol. II: Speculative Realism, R. Mackay (ed.), pp. 187-221 Harman, G. 2008, Intentional Objects for Non-Humans, conferência dada na Université de Toulouse Le Mirail Disponível em http://erraphis.univ-tlse2.fr/ (acessado em: 25/06/2014)

Harman, G. 2011-A, The Quadruple Object, Zero Books, Winchester

Harman, G. 2011-B, “The Road to Objects”, continent. 1.3, P. Boshears, J. Allen, N.

Jenkins (eds.), pp.171-179

Harman, G. 2012-A, “On the Mesh, the Strange Stranger, and Hyperobjects, tarp Architecture Manual: Not Nature, Pratt Institute School of Technology, New York, pp. 16-19 Harman, G. 2012-B, “Object-Oriented France: The Philosophy of Tristan Garcia”, continent. 2.1, P. Boshears, J. Allen, N. Jenkins (eds.), pp. 6–21. Harman, G. 2013-A, “Aristotle with a Twist”, Speculative Medievalisms: Discography , E. A. Joy, A. Klosowska, N. Masciandaro & M. O'Rourke (eds.), punctum books, Nova Iorque

Page 86: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

86

Harman, G. 2013-B, Graham Harman Strange Objects Contra Parametricism. SCI-Arc Media Archive: Southern California Institute of Architecture. Disponível em: http://sma.sciarc.edu/video/graham-harman-strange-objects-contra-parametricism/ (acessado em 17/ago/2014) Heidegger, M. 1977, "The Question Concerning Technology", The Question Concerning Technology and Other Essays, W. Lovitt (trad.), Harper & Row, New York. Heidegger, M. 1977 [1927], Sein und Zeit, Gesamtausgabe II, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main Heidegger, M. 2002, “The Origin of the Work of Art “, Off the Beaten Track, J.Young, K.

Haynes (trad.), Cambridge University Press, pp. 1-56

Husserl, E. [1950] 1986, A Ideia da Fenomenologia, A. Morão (trad.), Edições 70, Lisboa Husserl, E. [1901] 2007, Investigações Lógicas - Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento, 2:1, P.M.S. Soares e C.A. Morujão (trad.), Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa Latour, B. 1994, Jamais Fomos Modernos - Ensaio de Antropologia Simétrica, C.I. Costa

(trad.), Editora 34, Rio de Janeiro

Latour, B. 1999, Pandora's Hope: Essays on the Reality of Science Studies, Harvard

University Press, Cambridge, Massachusetts

Lingis, A. 1998, The Imperative, Indiana University Press, Bloomington Meillassoux, Q. 2010, After Finitude - an Essay on the Necessity of Contingency, R.

Brassier (trad.), Continuum, London

Morton, T. 2010, The Ecological Thought, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts

Page 87: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

87

Morton, T. 2011 “Zero Landscapes in the Time of Hyperobjects”, Graz Architecture Magazine - Zero Landscape: Unfolding Active Agencies of Landscape, SpringerWienNewYork, Vienna, pp.79-87 Morton, T. 2012 “An Object-Oriented Defense of Poetry”, New Literary History, Vol.43, pp. 205-224 Morton, T. 2013-A, Realist Magic - Objects, Ontology, Causality, Open Humanities Press,

Ann Arbor

Morton, T. 2013-B, Hyperobjects - Philosophy and Ecology after the End of the World,

University of Minnesota Press, Minneapolis

Moton, T. 2013-C, “Some problems in Ecological Philosophy” e “What is Ecological Philosophy?”, conferências apresentadas na Erasmus University, Rotterdam, 24/set Disponível em: http://ecologywithoutnature.blogspot.pt/p/past-talks.html (acessado em 25/set/2014) Morton, T. 2014-A, “Dark Ecology: for a Logic of Future Coexistence”, Wellek Library

Lectures, série de três seminários apresentados na University of California – Irvine, 21-

23/mai

Morton, T. 2014-B, “What Is Ecological Art?”, conferência apresentada no Wordsworth

Museum, Grasmere, 21/set.

Disponível em: http://ecologywithoutnature.blogspot.pt/2014/09/what-is-ecological-

art-mp3.html

(acessado em 27/set/2014)

Bibliografia secundária Adorno, T. 2013 [1970], Aesthetic Theory, Bloomsbury Academic, London.

Bataille, G. [1973] 1993 Teoria da Religião, S. G. de Paula e V. Lamare (trad.), Editora

Ática, São Paulo

Page 88: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

88

Bennett, J. 2010 Vibrant Matter - a Political Ecology of Things, Duke University Press,

Durham

Blackburn, S. 1994, “Metaphysics of Presence”, The Oxford Dictionary of Philosophy. p. 300 Bryant, L. 2012, “Relata do not precede relations”, no blog Larval Subjects, 27/09/2012, em: http://larvalsubjects.wordpress.com

Budd, M. Townsend, D., Martin, M.G.F. 2000, "Aesthetics", "Baumgarten, Alexander

Gottlieb" e "Perception", Concise Routledge Encyclopedia of Philosophy, Routledge,

London. pp. 7-10, 78, 664-5

Chakrabarty, D. 2013, “History on an Expanded Canvas: The Anthropocene´s Invitation”,

keynote, The Anthropocene Project - an Opening (10-13/jan), Haus der Kulturen der

Welt, Berlin

Crutzen, P., Stoermer, E.F. 2000 “The ´Anthropocene´”, Global Change Newsletter 41,

IGBP, pp. 17-18

DeLanda, M. 2002, Intensive Science and Virtual Reality, Continuum, London

Devall, B., Sessions, G. 1985, Deep Ecology, Peregrine Smith Books, Salt Lake City Derrida, J. 2009 The Beast and the Sovereign: Volume 1, Michel Lisse, M.L. Mallet, G. Michaud (eds.), G. Bennington (trad.), The University of Chicago Press, Chicago Diamond, J. 1987, “The Worst Mistake in the History of the Human Race, Discover

Magazine (May), pp.64-6

Diamond, J. 1998, Guns, Germs and Steel - a Short History of Everybody for the last

13000 Years, Vintage, London

Diamond, J. 2005, Colapso - Ascensão e Queda das Sociedades Humanas, Gradiva, Lisboa

Page 89: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

89

Downing, L. 2013 "George Berkeley", The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Edward

N. Zalta (ed.).

Disponível em: http://plato.stanford.edu/archives/spr2013/entries/berkeley/

(acessado em 19/set/2014)

Eliot, T. S. 1936, “The Hollow Men”, Collected Poems 1909-1935, Faber & Faber Limited,

London

Ellis, E. C. 2013, “Using the Planet”, Global Change Newsletter, IGBP - 81, pp. 32-35

Francione, G. 2008, Animals as Persons - Essays on the Abolition of Animal Exploitation,

Columbia University Press, New York

Freud, S. 2003 The Uncanny, D. Mclintock (trad.), Penguin, London

Haeckel,E. 1866 Generelle Morphologie der Organismen. Allgemeine Grundzüge der organischen Formen-Wissenschaft, mechanisch begründet durch die von Charles Darwin reformirte Descendenz-Theorie. Berlin, Bd. 2, p. 286 Disponível em: https://archive.org/details/generellemorpho00haecgoog (acessado em 30/set/2014) Haraway, D. 1991, “A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century”, Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature, Routledge, New York Hay, P. 2002, Main Currents in Western Environmental Thought, University of New South Wales Press, Sydney

Holland, H. D. 2006, “The Oxygenation of the Atmosphere and Oceans”, Philosophical

Transactions of the Royal Society: Biological Sciences, Vol. 361. pp. 903–915

Hershkovitz, I., Gopher, A. 2008, "Demographic, Biological and Cultural Aspects of the Neolithic Revolution: A View from the Southern Levant", The Neolithic Demographic Transition and its Consequences, S.P. Bocquet-Appel and O. Bar-Yosef (eds.), Springer, New York, pp. 441-479

Page 90: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

90

IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme) 2004, Steffen, W., Sanderson,

A., Tyson, P.D., Jäger, J., Matson, P.A., Moore III, B., Oldfield, F., Richardson, K.,

Schellnhuber, H.J., Turner, B.L., Wasson, R.J., “Executive Summary”, Global Change and

the Earth System: A Planet Under Pressure, Springer-Verlag, Berlin

IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) 2013, “Summary for Policymakers”, Climate Change 2013 - The Physical Science Basis, Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change, T.F. Stocker, D. Qin, G.K. Plattner, M. Tignor, S.K. Allen, J. Boschung, A. Nauels, Y. Xia, V. Bex and P.M. Midgley (eds.), Cambridge University Press, Cambridge IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) 2014 Assessment Report 5 Working Group II, conferência de imprensa, Yokohama, Japan, 31/mar/2014, Disponível em: http://youtu.be/bZONwnqWFe8 (acessado em 10/set/2014)

Kant, I. [1781] 1989, Crítica da Razão Pura, M.P. Santos e A.F.Morujão (trad.), Fundação

Calouste Gulbenkian, Lisboa

Luke, T. 1997, Ecocritique - Contesting the Politics of Nature, Economy, and Culture,

University of Minnesota Press, Minneapolis

Montaigne, M. “Apologie de Raimond Sebond” 1947, Essais vol. II, Societé Les Belles

Lettres, Paris

Naess, A. 1973, “The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movements: A Summary”, Inquiry 16 (spring). pp. 95-100 Naess, A. 1989, Ecology, Community, and Lifestyle, D.Rothenberg (trad. e ed.), Cambridge University Press, Cambridge Ortega y Gasset, J. 2004, Obras completas, Vols. I e VIII Ed. Taurus/Fundación José

Ortega y Gasset, Madrid, pp. 757, 50 (respectivamente)

Parfit, D. 1984, Reasons and Persons, Oxford University Press, Oxford Petit, J.R. 1999 “Climate and atmospheric history of the past 420.000 years from the Vostok ice core, Antarctica”, Nature – 399, pp. 429-436

Page 91: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

91

Sarkar, S. 2014, “Ecology”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, E.N. Zalta (ed.) http://plato.stanford.edu/archives/spr2014/entries/ecology

Shelley, P. 1904 [1840] A Defence of Poetry, The Bobbs-Merrill Company, Indianapolis

Singer, P. 1990 [1975], Animal Liberation, New York Review Books, New York Singer, P. 2000 [1993], Ética Prática, A.A. Fernandes (trad.), Gradiva, Lisboa

Sprigge, T.L.S. 2000, "Panpsychism", Concise Routledge Encyclopedia of Philosophy,

Routledge, London. p.654

Standen, A. 2013, “In Search of the Bacterial Garden of Eden”, KQED Science, 03/mai Disponível em: http://science.kqed.org/quest/audio/in-search-of-the-bacterial-garden-of-eden/ (acessado em 8/set/2014)

Turpin, E. 2013, "Who Does The Earth Think It Is, Now?", Architecture in the

Anthropocene - Encounters Among Design, Deep Time, Science and Philosophy, E. Turpin

(ed.), Open Humanities Press, Ann Arbor, pp. 3-10

Whitehead, A.N. 2010 [1927-28], Processo e Realidade - Ensaio de Cosmologia, M.T.

Teixeira (trad.), Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Whittle, A. 2003, The Archaeology of People: Dimensions of the Neolithic Life,

Routledge, London, pp. 162-167

Page 92: Dissertação Mestrado Ecologia No Antropoceno

92

Anexo I

fonte: IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme) 2004, “Executive

Summary”, Global Change and the Earth System: A Planet Under Pressure, Springer-

Verlag, Berlin, pp.15, 17