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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DESLOCAMENTO E MEMÓRIA NA TRILOGIA COLOMBIANA DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ DIOGO DE HOLLANDA CAVALCANTI Rio de Janeiro 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

DESLOCAMENTO E MEMÓRIA NA TRILOGIA COLOMBIANA DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ

DIOGO DE HOLLANDA CAVALCANTI

Rio de Janeiro

2016

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DESLOCAMENTO E MEMÓRIA NA TRILOGIA COLOMBIANA

DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ

DIOGO DE HOLLANDA CAVALCANTI

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como quesito para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

Orientadora: Professora Doutora Elena Cristina Palmero González

Rio de Janeiro

2016

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CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

C377d Cavalcanti, Diogo de Hollanda Deslocamento e memória na trilogia colombianade Juan Gabriel Vásquez / Diogo de Hollanda Cavalcanti. -- Rio de Janeiro, 2016. 148 f.

Orientadora: Elena Cristina Palmero González. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2016.

1. Literatura Hispano-Americana. 2. JuanGabriel Vásquez. 3. Literaturas em deslocamento.4. Deslocamento. 5. Memória. I. Palmero González,Elena Cristina, orient. II. Título.

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A meus pais, Pedro e Ana.

A minha mulher, Débora.

A nossa filha, Cecília.

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Agradecimentos:

A minha orientadora, Elena Palmero González, pelo entusiasmo, a competência e o afeto que

presidem sua prática.

Às professoras e professores que me honram ao integrar a banca: Ana Cristina dos Santos

(UERJ), Ary Pimentel (UFRJ), Luiz Barros Montez (UFRJ) e Silvia Cárcamo (UFRJ).

À CAPES, por financiar a pesquisa.

Aos professores e alunos que me transformaram nos últimos anos.

A Carlos Alberto Della Paschoa (Instituto Cervantes do Rio de Janeiro), Jasper Vervaeke e

todos que me ajudaram na obtenção de livros e outras fontes bibliográficas.

Aos que, generosamente, me apoiaram e escutaram ao longo da pesquisa: Alaor Filho,

Alexandre Rodrigues, Ana Lea-Plaza, André Garcia, Andrea Lombardi, Cátia Martins, Davis

Diniz, Diana de Hollanda, Guarani Cavalcanti, Jacqueline Farid, Janice Caetano, Joshua

Schneyer, Luciano Prado, Lúcio Artioli, Marco Lucchesi, Marcelo Bortoloti, Marcelo

Suplicy, Marcio Gomes da Costa, Mario Rodríguez, Miguel Ángel Zamorano, Miguel Conde,

Pura Martínez, Rafael Gutiérrez, Regina Guterman, Susana Kampff Lages, Sylvia

Moretzsohn, Terezinha Santos, Victor Lemus, Vinícius Loureiro, Vitor Nuzzi – entre outros

tantos que, injustamente, esqueço de mencionar aqui.

A meus pais: Ana Maria de Hollanda Cavalcanti e Pedro Cavalcanti – poetas, prosadores e

professores insubstituíveis.

A Débora Guterman, que mantém as janelas abertas e me diz palavras não inventadas.

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RESUMO

CAVALCANTI, Diogo de Hollanda. Deslocamento e memória na trilogia colombiana de

Juan Gabriel Vásquez. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

Esta tese propõe a análise de três romances do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez: Los

informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) e El ruido de las cosas al caer

(2011). Considerando as obras como uma trilogia, a pesquisa procurou verificar de que

maneira o deslocamento físico e cultural de Vásquez – que escreveu os livros quando vivia

Europa – influenciou a abordagem que faz da Colômbia. As hipóteses têm como ponto de

partida o trabalho de Abril Trigo (2003), que sugere que os deslocamentos, ao acarretarem um

esquecimento criativo que envolve o distanciamento do imaginário social e da memória

histórica do país deixado, estimulam uma propensão questionadora na memória, passível de

romper com os paradigmas anteriores e propor novas formas – mais críticas e inclusivas – de

olhar a comunidade nacional. Ao gerar uma disposição particular à recordação e fomentar

uma memória crítica, o deslocamento também contribui para uma das marcas dos romances

de Vásquez: o permanente gesto reflexivo em relação à memória – e, de forma mais ampla,

em relação ao passado e às complexidades de narrá-lo. Desenvolvidas de forma reiterada e

consistente, suas reflexões sobre a memória produzem uma visão coesa, algo próximo de uma

poética, cuja análise também é empreendida na tese. Adicionalmente, o trabalho aponta que o

deslocamento, mais do que a condição física de extraterritorialidade, é tomado por Vásquez

como um lugar de enunciação e um instrumento de concreção de uma poética, segundo a qual

a literatura serve para fazer perguntas, e não expressar certezas.

Palavras-chave: Juan Gabriel Vásquez; literatura hispano-americana; literaturas em

deslocamento; deslocamento; memória.

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RESUMEN

CAVALCANTI, Diogo de Hollanda. Deslocamento e memória na trilogia colombiana de

Juan Gabriel Vásquez. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

Esta tesis propone el análisis de tres novelas del escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez:

Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) y El ruido de las cosas al

caer (2011). Considerándolas como una trilogía, la investigación buscó verificar de qué

manera el desplazamiento físico y cultural de Vásquez – que escribió los libros mientras vivía

en Europa – influye en su recreación literaria de Colombia. Las hipótesis tienen como punto

de partida el trabajo de Abril Trigo (2003), que sugiere que los desplazamientos, por acarrear

un olvido creativo que incluye el alejamiento del imaginario social y la memoria histórica del

país dejado, estimulan una propensión cuestionadora en la memoria, pasible de romper los

paradigmas anteriores y proponer nuevas formas – más críticas e inclusivas – de mirar a la

comunidad nacional. Al generar una disposición particular al recuerdo y fomentar una

memoria crítica, el desplazamiento también contribuye para una de las marcas de las novelas

de Vásquez: el permanente gesto reflexivo en relación a la memoria – y, de manera más

amplia, en relación al pasado y las complejidades de narrarlo. Desarrolladas de modo

reiterado y consistente, sus reflexiones sobre la memoria producen una visión cohesiva,

cercana a una poética, cuyo análisis también será efectuado en la tesis. El trabajo también

sostiene que el desplazamiento, más allá de la condición física de extraterritorialidad, es

tomado por Vásquez como un lugar de enunciación y un instrumento de concreción de una

poética, según la cual la literatura sirve para hacer preguntas, y no expresar certezas.

Palabras clave: Juan Gabriel Vásquez; literatura hispanoamericana; literaturas en

desplazamiento; desplazamiento; memoria.

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ABSTRACT

CAVALCANTI, Diogo de Hollanda. Deslocamento e memória na trilogia colombiana de

Juan Gabriel Vásquez. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

This thesis proposes the analysis of three novels by Colombian writer Juan Gabriel Vásquez:

Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) and El ruido de las cosas al

caer (2011). Considering the novels as a trilogy, the research aims to understand how

Vásquez´s physical and cultural displacement could have influenced his approach to

Colombia in these three books, all written while the author lived in Europe. The starting point

for the hypotheses presented here is Abril Trigo´s argument (2003) that displacements, for

provoking a creative oblivion which includes the detachment from the social imaginary and

historical memory of the country left behind, stimulates a questioning propensity in memory,

capable of breaking former paradigms and proposing new ways – more critical and inclusive

– of looking at national community. Fostering a particular form of remembrance, connected to

the constitution of a critical memory, displacement also contributes to one of the main

characteristics of Vásquez´s novels: the constant reflection on memory – and, in a wider

perspective, on the past and the complexities involved in its narration. Presented in a

consistent way, his ideas about memory produce a coherent view, something close to a

poetics, which this thesis also analyzes. In addition, the study argues that displacement, more

than the physical condition of extraterritoriality, is taken by Vásquez as a place of enunciation

and a tool to materialize a poetics according to which literature serves to put forth questions,

instead of certainties.

Keywords: Juan Gabriel Vásquez; Spanish American literature; writing in displacement;

displacement; memory.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................10

I DESLOCAMENTO E MEMÓRIA NA LITERATURA HISPANO-AMERICANA

CONTEMPORÂNEA.....................................................................................................18

1.1 – Deslocamentos: releituras......................................................................................18

1.2 – Lembrar à distância................................................................................................25

II O ESCRITOR EM BUSCA DE UM ESTILO............................................................36

III LOS INFORMANTES.................................................................................................45

3.1 – As encruzilhadas da memória.................................................................................45

3.2 – O imperativo da reflexão........................................................................................53

3.3 – As dissonâncias da nação.......................................................................................60

IV – HISTORIA SECRETA DE COSTAGUANA............................................................69

4.1 – O narrador deslocado.............................................................................................69

4.2 – História e ficção: encontros e desencontros...........................................................80

4.3 – Entre Conrad e García Márquez.............................................................................86

V EL RUIDO DE LAS COSAS AL CAER……................................................................98

5.1 – O resgate de uma experiência................................................................................98

5.2 – O adulto-criança sob o signo do desamparo........................................................108

5.3 – A voz e o olhar dos deslocados ...........................................................................114

CONCLUSÕES.............................................................................................................119

REFERÊNCIAS............................................................................................................122

APÊNDICE: Entrevista com Juan Gabriel Vásquez.....................................................138

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INTRODUÇÃO

Esta tese propõe a análise de três romances do escritor colombiano Juan Gabriel

Vásquez: Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) e El ruido de las

cosas al caer (2011). A leitura está centrada em dois aspectos principais: a influência do

deslocamento físico e cultural de Vásquez (que escreveu os três livros fora da Colômbia) e as

reflexões sobre memória que permeiam as obras.

Nascido em 1973, em Bogotá, Vásquez é um dos nomes de maior destaque na

literatura hispano-americana contemporânea, elogiado com a mesma ênfase por

representantes da geração anterior, como Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, e escritores

surgidos nas últimas décadas, como o argentino Rodrigo Fresán, que o apontou como um dos

maiores romancistas políticos da América Latina (FRESÁN, 2011). Traduzido para 18

idiomas e editado em mais de 30 países, Vásquez publicou até agora sete romances, um livro

de contos, um de ensaios e uma pequena biografia sobre uma de suas referências literárias,

Joseph Conrad.

Embora tenham tramas independentes, Los informantes, Historia secreta de

Costaguana e El ruido de las cosas al caer podem ser lidos como uma trilogia1, por

compartilharem uma mesma proposta temática – de reescrita do passado colombiano – e

terem em comum alguns procedimentos narrativos, como a enunciação em primeira pessoa, o

discurso metaficcional e a presença da figura paterna como fio condutor do enredo, que é

sempre uma investigação sobre a história nacional. Por terem sido escritas na Europa (onde

Vásquez viveu 16 anos, 13 deles em Barcelona), constituem um conjunto textual fecundo para

estudar a influência dos deslocamentos, hoje, em relatos que se nutrem da memória individual

e coletiva de uma nação.

O problema central da tese se expressa na seguinte pergunta: de que forma o

deslocamento de Vásquez, o fato de viver na Europa quando escreveu os romances,

influenciou a abordagem que faz da Colômbia?

Minhas hipóteses têm como ponto de partida o trabalho de Abril Trigo (2003), que

sugere que os deslocamentos, ao acarretarem um esquecimento criativo que envolve o

distanciamento do imaginário social e da memória histórica do país deixado, estimulam uma

propensão questionadora na memória, passível de romper com os paradigmas anteriores e

propor novas formas – mais críticas e inclusivas – de olhar a comunidade nacional. Marcados

pelo questionamento tenaz da história hegemônica e do imaginário social colombiano, os

1 Vásquez refuta essa classificação.

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romances de Vásquez respaldam a teoria de Trigo, evocando fatos esquecidos e realçando a

violência encoberta pela ideia de nação homogênea.

Ao gerar uma disposição particular à recordação e fomentar uma memória crítica, o

deslocamento também contribui para uma das marcas dos romances de Vásquez: o

permanente gesto reflexivo em relação à memória – e, de forma mais ampla, em relação ao

passado e às complexidades de narrá-lo. Desenvolvidas de forma reiterada e consistente, suas

reflexões sobre a memória produzem uma visão coesa, algo próximo de uma poética, cuja

análise também será empreendida nesta tese.

Adicionalmente, pretendo mostrar que o deslocamento, mais do que a condição física

de extraterritorialidade, é tomado por Vásquez como um lugar de enunciação – e, como tal,

um lugar ao mesmo tempo concreto e desejado (ACHUGAR, 2006, p.19). Ao falar sobre a

Colômbia, o autor adota deliberadamente a perspectiva de quem está de fora. Declara ter com

o país “uma relação de romancista estrangeiro” (HOLLANDA, 2013) e, muito mais do que

um conhecedor, assume a posição de um pesquisador, que se lança sobre um território

desconhecido em busca de respostas.

Essa escolha – que demonstra, por si só, as especificidades dos deslocamentos hoje,

desvencilhados do sentimento de perda identitária de outros momentos – tem impacto tanto

ideológico como estrutural, influenciando, por exemplo, o caráter investigativo, quase

detetivesco, das obras. Neste sentido, Vásquez faz do deslocamento o instrumento para

concreção de uma poética, segundo a qual a literatura serve para fazer perguntas, e não

expressar certezas. Esta concepção, expressa pelo escritor em diferentes ocasiões, é

consubstanciada não apenas pela estrutura e o caráter inquisitivo das obras, como também

pela presença de personagens deslocados, que em todos os romances são ou narradores ou

testemunhas decisivas nas revelações feitas pela trama.

Definido o objeto, o problema e as principais hipóteses da pesquisa, os objetivos do

trabalho compreendem a necessidade de:

estudar a trilogia colombiana de Juan Gabriel Vásquez (Los informantes,

Historia secreta de Costaguana e El ruido de las cosas al caer) em suas principais

coordenadas temáticas e compositivas;

integrar o estudo crítico à análise interpretativa, examinando a influência do

deslocamento na reconstrução memorialística, nas estratégias compositivas e na

visão histórica que emerge dos textos;

desenvolver fontes teóricas em torno das noções de deslocamento e memória

para o estudo crítico de textos literários marcados pela experiência do deslocamento cultural;

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Para o desenvolvimento da pesquisa, conjugo procedimentos de análise textual e

hermenêutica literária com procedimentos provenientes da crítica cultural, dos estudos

comparados e da historiografia literária.

Embora tenha merecido resenhas2, concedido entrevistas e participado em 2012 da

principal festa literária do país – a Flip, de Paraty –, Juan Gabriel Vásquez praticamente não é

estudado na academia brasileira, conforme indicam anais de eventos como o Congresso

Brasileiro de Hispanistas e o banco de teses e dissertações da CAPES e de oito universidades

(UFRJ, UFF, USP, Unicamp, Unifesp, UFMG, UFRGS e PUC-Rio). A exceção têm sido os

trabalhos que, desde 2011, venho publicando sobre o autor – entre eles a dissertação de

mestrado “Deslocamento e memória em Los informantes, de Juan Gabriel Vásquez”, que

defendi no início de 2012, na Faculdade de Letras da UFRJ.

Em nível internacional, contudo, nota-se um interesse crescente, expresso em artigos,

eventos e em pelo menos uma tese de doutorado, de autoria de Jasper Vervaeke, da

Universidade de Antuérpia, defendida no início de 2015. Atento à intertextualidade na obra de

Vásquez, Vervaeke aponta, por exemplo, rastros de W. G. Sebald, Thomas Pynchon e Jorge

Luis Borges em Los informantes (VERVAEKE, 2012). Ao mesmo tempo, num perfil

publicado na antologia crítica The contemporary Spanish-American Novel. Bolaño and after

(VERVAEKE, 2013), lançada pela editora Bloomsbury, o pesquisador identificou

proximidades entre Vásquez e V.S. Naipaul. Perfil parecido, uma espécie de apresentação da

obra do autor, integrou a antologia Les espaces des écritures hispaniques et hispano-

américaines au XXIe siècle, publicada pela editora da Universidade de Limoges (RAMOS-

IZQUIERDO; BARATAUD, 2012). No artigo “Vacillements. Poétique du desequilibre dans

l´ouevre de Juan Gabriel Vásquez”, Catalina Quesada Gómez, professora da Universidade de

Miami, analisa a obra de Vásquez desde seus romances de estreia, Persona (1997) e Alina

Suplicante (1999) – hoje rejeitados pelo autor –, até Historia secreta de Costaguana, eleito

por Carlos Fuentes (2011) um dos romances canônicos da literatura hispano-americana de

inícios do século XXI. Um ano antes, num dossiê sobre a Colômbia elaborado pela revista

Nuova Prosa (Milão, Greco & Greco editori), Quesada Gómez destacava a obra de Vásquez

como um exemplo do desapego das gerações atuais em relação à terra em que nasceram.

Entre os pontos de ruptura com as gerações anteriores – notadamente a do boom da literatura

2 Os três livros estudados na tese foram editados no Brasil: Os informantes (L&PM, 2010, trad. Heloisa Jahn),

História secreta de Costaguana (L&PM, 2012, trad. Heloisa Jahn) e O ruído das coisas ao cair (Alfaguara, 2013, trad. Ivone C. Benedetti).

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hispano-americana – está o abandono de projetos de busca identitária, nacional ou latino-

americana, já que as identidades são cada vez mais assumidas como múltiplas e alheias aos

apelos homogeneizantes dos Estados-nação. Também merecem menção o artigo “Le recit

cannibale: Historia secreta de Costaguana, de Juan Gabriel Vásquez”, de María Angélica

Semilla Durán (Universidade Lumière Lyon 2), publicado em uma coletânea destinada a

homenagear a professora Milagros Ezquerro3, e o primeiro colóquio dedicado exclusivamente

a Juan Gabriel Vásquez, realizado em outubro de 2015 na Universidade Paul Valéry, em

Montpellier (França). O evento teve apresentações de 20 pesquisadores – a maioria europeus

–, além de uma conferência do próprio Vásquez.

Na Colômbia, uma das interessadas na obra de Vásquez é a professora da Pontificia

Universidad Javeriana Luz Mary Giraldo, que, além de abordar a obra do autor em artigos,

incluiu algumas páginas sobre Los informantes, analisando sobretudo a identidade híbrida dos

imigrantes alemães, em seu livro En otro lugar: migraciones y desplazamientos en la

narrativa colombiana contemporánea (Bogotá, 2008). Ricardo Carpio Franco, da

Universidade de Cartagena, publicou artigo na revista digital Espéculo, ligada à Universidade

Complutense de Madri, sobre história e ficção em Historia secreta de Costaguana – aspectos

também abordados por Pablo Montoya, em fragmentos do livro Novela histórica en

Colombia: 1988-2008. Entre la pompa y el fracaso (Medellín, 2009). Aparentemente, o

segundo romance da trilogia é o mais estudado de Vásquez, objeto também de apresentações

nas duas últimas edições das Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana (Jalla)4.

Longe de querer ser exaustivo, este panorama reforça a importância do tema desta

tese, realçado pela ausência de outros estudos sobre a obra de Vásquez no Brasil. Além disso,

as duas questões que norteiam a leitura – o deslocamento e a memória – merecem atenção

cada vez maior do meio acadêmico, que as reconhece, de maneira geral, como indispensáveis

para compreender a literatura e a cultura contemporâneas. A memória em situações de trauma,

um dos temas de Los informantes, foi, por exemplo, um dos eixos do projeto temático

“Escritas da Violência”, que reuniu, de 2006 a 2010, 17 pesquisadores de nove universidades

brasileiras e estrangeiras, sob a coordenação de Márcio Seligmann-Silva, da Universidade de

Campinas (Unicamp). Problemas ligados às mobilidades culturais e às poéticas da memória,

3Hommage à Milagros Ezquerro. Theorie et fiction. Editado por Michèle Ramond, Eduardo Ramos-Izquierdo e

Julien Roger.México/Paris: Rilma 2/ADEHL, 2009. 4ROJAS, Vivian; RUIZ, Olga Lucía y VELASCO, Mauricio: “Tres novelas colombianas entre la historia y la ficción.

La carroza de Bolívar, El crimen del siglo e Historia secreta de Costaguana”. In: Jalla 2012. Cali. RENDÓN, Efraín. “La reconstrucción del relato histórico en Historia secreta de Costaguana (2007), de Juan Gabriel Vásquez como aporte a los debates decoloniales. In: Jalla 2014. Heredia, Costa Rica.

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por sua vez, vêm tendo destaque no grupo de trabalho (GT) “Relações literárias

interamericanas”, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e

Linguísticas (Anpoll), do qual participo, desde 2012, como convidado. Com mais de 30

pesquisadores ligados às literaturas das quatro principais línguas das Américas (inglês,

espanhol, francês e português), o GT tem como um dos princípios romper com as concepções

mais rígidas de literaturas nacionais e estabelecer o comparatismo entre os estudos literários

de todo o continente. Estes esforços têm sido empreendidos em eventos, orientações de

trabalhos de pós-graduação e nas diversas publicações produzidas até agora pelo grupo, como

os livros Entre traços e rasuras: intervenções da memória nas escritas das Américas (2013),

organizado por Elena Palmero González e Stelamaris Coser; Conceitos de literatura e cultura

(2005, 1ª edição), organizado por Eurídice Figueiredo; Dicionário de figuras e mitos

literários das Américas (2007), organizado por Zilá Bernd, e Dicionário das mobilidades

culturais: percursos americanos (2010), também organizado por Bernd. Atualmente, está no

prelo um dicionário de conceitos sobre memória, com cerca de 40 verbetes vinculando a

memória a diversos temas e áreas do conhecimento. A obra, organizada por Elena Palmero

González e Stelamaris Coser, está sendo editada pela EdUFF, com financiamento da FAPERJ

e publicação prevista para 2016.

Apesar disso, ainda é relativamente baixo o número de trabalhos que abordam os

deslocamentos contemporâneos à luz das transformações que, nas últimas décadas,

impactaram as noções de cultura nacional, literatura nacional e identidade nacional, vistas não

mais como entidades homogêneas e atreladas às ideias de território nacional e Estado-nação.

Também proporcionalmente escassas são as abordagens que relativizem a questão do trauma

(inaplicável em alguns casos) e focalizem, acima de tudo, as especificidades das escritas

nascidas do encontro de culturas, línguas e lugares. Aproximações com esse prisma parecem

mais frequentes nos departamentos de literaturas francófonas ou de língua inglesa, tomando

muitas vezes como corpus a obra de autores de países pós-coloniais. Nos estudos literários

hispano-americanos, continua a haver um predomínio de trabalhos sobre escritores que

produziram no exílio político, o que suscita, inevitavelmente, questões diferentes das que trato

nesta tese. Da mesma forma, pesquisas sobre as relações entre memória e deslocamento são

pouco expressivas do ponto de vista quantitativo. Vale dizer que, no âmbito historiográfico,

desde a década de 1980 existem esforços para transcender os recortes nacionais e englobar

autores que produzam fora da América Latina, inclusive em outros idiomas. Porém, ainda que

seja um consenso na metodologia, tal enfoque continua a ser problemático na práxis crítica e

historiográfica.

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As inúmeras formas de mobilidade que marcam a história da literatura hispano-

americana – viagens, emigrações, exílios, diásporas, nomadismos, entre outras – levaram-me

a adotar um conceito abrangente de deslocamento (PALMERO GONZÁLEZ, 2010ª), que

abarca todas essas variedades e inclui acepções que inclusive prescindem da movimentação

física, como a mobilidade linguística, o deslocamento discursivo (ou seja, como lugar de

enunciação) e o deslocamento como paradigma crítico e historiográfico para a abordagem da

literatura hispano-americana. Meu interesse central, contudo, está nos deslocamentos

contemporâneos – e, especialmente, nos movimentos definitivos ou mais duradouros, como o

dos escritores que, voluntariamente, instalam-se fora de seus países, como fez Juan Gabriel

Vásquez durante 16 anos.

Minha aproximação teórica do deslocamento tem como principal referencial a

antropologia e a crítica cultural contemporânea. Para dimensionar o fenômeno na atualidade e

realçar suas particularidades, tomo como base os estudos de James Clifford (1997), Arjun

Appadurai (1996), Stuart Hall (2003) e Abril Trigo (2003). Para abordar o deslocamento

como lócus de enunciação, valho-me de Hugo Achugar (2006) e, ao evocar aspectos políticos

e mercadológicos no tom e nas movimentações dos escritores, recorro a Josefina Ludmer

(2010), Lidia Santos (2013) e Jorge Volpi (2009).

As articulações de memória e deslocamento respaldam-se novamente em Abril Trigo

(idem), complementado por Fernando Aínsa (2010) e Aníbal González (2012); as reflexões

sobre esquecimento, lembrança e perdão, cruciais para a análise de Los informantes, baseiam-

se na filosofia de Paul Ricoeur (2007), com aportes de Jeanne Marie Gagnebin (2006); as

discussões sobre a memória testemunhal são balizadas em Beatriz Sarlo (2005) e Ricoeur

(idem); as questões ligadas à memória nacional têm como principal referência Hugo Achugar

(idem) e os comentários sobre a valorização da memória partem, em grande medida, do

panorama descrito por Andreas Huyssen (2000).

Para abordar o tema do novo romance histórico e discutir as relações entre história e

ficção – fundamentais para a leitura de Historia secreta de Costaguana –, recorro

principalmente a Noé Jitrik (1995), Hayden White (1994), Linda Hutcheon (1988), Seymour

Menton (1993), Jacques Le Goff (1982) e Tzvetan Todorov (1991). Nas discussões sobre o

passado e seu potencial de intervir no presente – visão dominante nos romances de Vásquez –

apoio-me novamente em Ricoeur (2005), Le Goff (1998) e outros historiadores da Escola dos

Anais, como Marc Bloch, Michel de Certeau, Lucien Febvre e Fernand Braudel. Com eles se

consolida uma nova postura em relação ao passado, visto não mais como um universo fechado

e passível de um resgate integral, mas como algo vivo, pulsante e modificável no presente.

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Como diz Le Goff, “toda história é uma história contemporânea [...] porque suas

consequências ainda mexem conosco e estão sempre presentes, reinterpretadas à luz do

presente” (1998, p.121).

A tese está dividida em cinco capítulos. O primeiro propõe uma introdução,

predominantemente teórica, sobre os temas do deslocamento e da memória, analisando o

interesse que despertam hoje e sua presença ressignificada na literatura hispano-americana.

Embora a figura do escritor deslocado jamais tenha saído do cânone literário da região –

desde, pelo menos, os Comentarios reales, do Inca Garcilaso de la Vega (1606) –, nunca a

experiência de estar fora foi vivida com tanta naturalidade. Isso aparece nos relatos ligados à

memória que – conjurando “o fantasma de um Alzheimer coletivo” (ACHUGAR, 2006,

p.168) – proliferam dentro e fora da América Latina desde o fim do século XX. Segundo

Fernando Aínsa (2010) e Aníbal González (2012), ao recriarem na ficção os países que

deixaram para trás, os escritores em deslocamento se mostram hoje imunes a qualquer tipo de

nostalgia – sentimento que, apesar do cosmopolitismo que celebraram, ainda esteve presente

entre os autores do boom, como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Neste sentido,

a obra de Vásquez – carregada de críticas à Colômbia, de personagens deslocados e de

conexões com a história mundial – é um exemplo expressivo dessa nova postura em relação à

nação, além de exibir, com intensidade acima da média, um interesse em refletir sobre a

memória, outra característica da literatura contemporânea.

No segundo capítulo, mostro que os temas da memória e, principalmente, do

deslocamento já estão presentes nos três primeiros livros de Vásquez: os já citados romances

Persona e Alina suplicante e o livro de contos Los amantes de todos los santos (2001). Neles,

a começar pelos textos de orelha, Vásquez busca se posicionar como um escritor que escreve

de fora e experimenta de outra forma o deslocamento. Nessas obras, longe da excelência que

caracterizaria a trilogia, despontam elementos que se tornariam constantes, como as tensões

entre pais e filhos e a solidão dos protagonistas.

Em seguida, passo à análise dos três romances que constituem o objeto central da tese.

Embora expressem inúmeras proximidades, optei metodologicamente por uma abordagem

individual, reservando um capítulo para cada obra. Assim, o terceiro capítulo é dedicado à

análise de Los informantes. Aprofundando e expandindo a leitura feita na dissertação de

mestrado (HOLLANDA, 2012), observo que o romance de Vásquez, ao tratar da memória da

Segunda Guerra Mundial, não apenas reaviva um episódio esquecido – articulando o passado

com o presente e atacando os pilares do imaginário social colombiano – como empreende

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uma vigorosa reflexão sobre o ato de rememorar, colocando em xeque desde o narrador

jornalista às testemunhas que tornam possível o seu relato.

O quarto capítulo tem como tema Historia secreta de Costaguana, romance em que a

postura crítica de Vásquez transcende o campo da memória e chega à escrita da história e suas

relações com a ficção. Em um tom que oscila entre a farsa, a ironia e a paródia, o personagem

narrador, José Altamirano, conta sua vida – e, por extensão a história da Colômbia no século

XIX – questionando, principalmente, o discurso e os métodos historiográficos. Questiona-se,

por exemplo, sobre o espaço que deve dedicar aos acontecimentos. Ou sobre a conveniência,

para fins estilísticos, de alterar ligeiramente alguns dados. Na acusação que faz a Joseph

Conrad – de roubar sua história para escrever Nostromo – emerge um dos temas que abordarei

no capítulo: as fronteiras difusas entre história e ficção.

A análise da trilogia é concluída no quinto capítulo, dedicado a El ruido de las cosas

al caer. No livro, vencedor do Prêmio Alfaguara (2011) e do IMPAC (2014), Vásquez volta a

articular o passado recente com o mais remoto, buscando explicações para a violência que

assolou a Colômbia nas últimas décadas. Além de, mais uma vez, colocar um personagem

deslocado como determinante para as revelações da trama, o romance reforça os principais

pontos da poética da memória criada nas obras anteriores. Novamente, a história do país é

acessada pela trajetória de uma família, que se desmantela depois que o pai – um piloto de

avião que trabalhava para traficantes – é preso em uma tentativa frustrada de entrar com

cocaína nos Estados Unidos. Mais uma vez, a reconstrução memorial depende do empenho do

protagonista: afetado pelo passado, é ele que vai atrás de informações, ouve pessoas, vasculha

documentos privados e – nas inevitáveis lacunas – utiliza a imaginação para complementar ou

elucidar os fatos. E, como em todos os demais romances, não há vida privada, por mais

reclusa e prudente, capaz de se manter incólume à ação dos “grandes acontecimentos”.

Após as conclusões, anexo como apêndice a entrevista que realizei com Vásquez em

julho de 2012, publicada no volume 15/1 da revista ALEA (jan-jun 2013). Nela, inquiro

propositalmente sobre alguns dos tópicos desenvolvidos na tese. Neste sentido, proponho a

leitura desse material não como texto ancilar, como é comum na leitura de apêndices, mas sim

como um diálogo com vários dos argumentos que elaboro na tese. Se toda entrevista tece uma

narrativa, como diz Leonor Arfuch em La entrevista, una invención dialógica (1995), sugiro

uma leitura produtiva dessa narrativa, considerando a obra do escritor e, sobretudo, a trama

tecida por mim na articulação deste trabalho.

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I DESLOCAMENTO E MEMÓRIA NA LITERATURA HISPANO-

AMERICANA CONTEMPORÂNEA

1.1 Deslocamentos: releituras

Imaginemos um aluno de Letras que, com a ementa da disciplina em mãos, queira

pesquisar um pouco sobre os autores que lerá no curso de literatura hispano-americana.

Considerando um programa bastante plausível (o Inca Garcilaso de la Vega, Sor Juana Inés de

la Cruz, Andrés Bello, Esteban Echeverría, Rubén Darío, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar,

Roberto Bolaño), o aluno se surpreenderá com o fato de que, com exceção de Sor Juana (que

se moveu apenas pelos domínios da Nova Espanha), todos os escritores previstos passaram

parte importante da vida – às vezes a mais fecunda – fora da América Latina. A situação não

mudaria muito se o professor privilegiasse outras leituras (por exemplo: Simón Bolívar,

Domingo Faustino Sarmiento, José Martí, Oliverio Girondo, Gabriel García Márquez e

Ricardo Piglia). Em qualquer abordagem panorâmica, o deslocamento dos escritores

aparecerá como uma condição permanente da literatura hispano-americana.

Os motivos, naturalmente, variam conforme a época e o autor. Se no romantismo e no

neoclassicismo predominaram os exílios políticos – já que os grandes nomes da literatura

eram também figuras de proa na política –, no modernismo e na vanguarda as viagens

significaram um rito de formação artística, um aggiornamento na modernidade que tinha Paris

como sede. O próprio hábito de viajar, como lembra Jacinto Fombona (2005), foi cada vez

mais sendo visto como fértil para a literatura, e a escrita se tornou um motivo e não só uma

decorrência dos deslocamentos. A busca de mercado, de novas possibilidades de publicação,

também se impôs desde cedo como um fator determinante. Numa crônica publicada no La

Nación e incluída no livro España contemporánea (1901), Rubén Darío já se referia ao

“sueño rosado de un escritor hispano-americano tener un editor español” (apud FOMBONA,

p.199).

A atualidade desse desejo, assim como a continuidade dos deslocamentos, é

evidenciada nos eventos e coletâneas que propõem oferecer um panorama da literatura

produzida pelas novas gerações. Dos 16 hispano-americanos selecionados para a antologia

Los mejores narradores jóvenes en español, da revista inglesa Granta (2010), oito estão

radicados fora da América Latina5. Da mesma forma, dos 39 escritores com menos de 39 anos

considerados promissores no festival Bogotá 39, realizado em 2007, pelo menos 15 viveram

fora da região nos últimos anos. A maioria se divide entre os Estados Unidos e a Espanha,

5 Em julho de 2015.

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atraídos pelo mercado editorial e a oferta de outras atividades ligadas à literatura, como a

investigação acadêmica e a colaboração em suplementos literários. Como nota o mexicano

Jorge Volpi – um dos 39 escolhidos em Bogotá –, apesar do fortalecimento de algumas

editoras independentes (principalmente no México e na Argentina), a indústria editorial

latino-americana continua tímida em relação aos conglomerados instalados na Espanha

(alguns deles integrados a gigantes globais, como a Alfaguara, comprada pela Penguin

Random House). Diante disso, Volpi – que morou em vários países, entre eles a Espanha –

considera que, para um escritor hispano-americano, “publicar nas editoras espanholas não

significa uma invasão bárbara ou um ato de traição, mas a única forma de escapar de sua

gaiola nacional e de ser lido nos demais países da região” (VOLPI, 2009, p. 157-158, tradução

nossa).

Embora levante várias questões importantes – como os condicionamentos de uma

literatura voltada majoritariamente para um público externo –, não nos interessa aprofundar

aqui este aspecto pragmático do deslocamento, que Lidia Santos (2013) definiu como

“cosmopolitismo de mercado”. Analisando particularmente a inserção de latino-americanos

no universo editorial dos Estados Unidos, Santos identificou uma inversão das etapas

geralmente previstas no processo de internacionalização dos escritores. Antes, segundo ela,

este percurso começava pelo sucesso interno, desdobrava-se para o reconhecimento na Europa

e culminava com a entrada do escritor nos circuitos internacionais de vendas de livros. Hoje,

se o autor publica nos Estados Unidos, consegue pular as etapas que, no passado, teria de

cumprir para ter seu livro traduzido. “Sem passar pelo cânone nacional, já nasce, ou sonha

nascer, „cosmopolita‟”, afirma a professora (p.290, tradução nossa).

Concentremo-nos, no entanto, em outras diferenças entre o fenômeno dos

deslocamentos hoje e em outros momentos da história. A primeira delas é a magnitude.

Mesmo sem apresentar estatísticas, estudiosos dos deslocamentos afirmam que os

movimentos migratórios, por mais que existam desde as origens da humanidade, atingiram

níveis sem precedentes nas últimas décadas. Abril Trigo (2003, p.41) afirma que o

aprofundamento da globalização intensificou um crescimento iniciado no fim do século XIX

com a corrida imperialista, a modernização dos meios de transporte e os excedentes de mão

de obra resultantes das inovações industriais.

Neste contexto, a percepção de um mundo transnacional (uma das marcas do

capitalismo financeiro) tornou-se cada vez mais difundida, e não apenas pelos fluxos humanos

vazando fronteiras, mas também pela formação de blocos políticos supranacionais como a

União Europeia, que testemunham, segundo Stuart Hall (2003, p.36), a “erosão da soberania

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nacional”, em um mundo cujo centro cultural está “em toda parte e em lugar nenhum”. Isto

não significa o esgotamento dos Estados-nação, mas sua subordinação, em vários aspectos, a

operações globais mais amplas. A globalização cultural, diz Hall, é desterritorializante. “Suas

compressões espaço-temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os laços

entre a cultura e o lugar” (idem).

As tecnologias de transporte e comunicações, efetivamente, geram experiências

radicalmente novas. Em livros publicados na década de 1990, quando a internet engatinhava e

não havia Skype (2003), Facebook (2004), You Tube (2005) nem WhatsApp (2009), James

Clifford (1997) e Arjun Appadurai (1996) destacavam formas de conexão que, já na época,

subvertiam as noções de distância. Clifford dava o exemplo de cidades que, separadas por

milhares de quilômetros, viviam relações de fronteira, graças à circulação de pessoas,

dinheiro, mercadoria e informação. Appadurai, por sua vez, mencionava os trabalhadores

turcos que, de seus apartamentos em Berlim, assistiam a filmes rodados na Turquia, e os

motoristas de táxi paquistaneses que, circulando pelas ruas de Chicago, escutavam sermões de

mesquitas do Paquistão em cassetes enviados por amigos e parentes.

Possibilidades como essas – que se multiplicaram e sofisticaram nos últimos anos –

atenuam a ruptura que, mesmo em movimentos voluntários (como os que privilegiamos nesta

tese), sempre ocorre em maior ou menor medida na experiência do deslocamento. Hoje, o

que se vive está mais próximo de uma simultaneidade, um “estar dentro e fora ao mesmo

tempo”, como define Stuart Hall (idem). Além disso, graças aos meios de comunicação de

massa – que fomentam, juntamente com os movimentos migratórios, o que Appadurai chama

de “trabalho de imaginação” –, a subjetividade contemporânea já é permeada de referências a

outros lugares, de forma que quem não saiu de seu país frequentemente pensa em fazê-lo,

repensando os vínculos com o lugar de nascimento.

Esses fatores ajudam a compreender as diferenças entre os deslocamentos

contemporâneos e outras formas de dispersão características de momentos anteriores, como as

imigrações do início do século XX e o exílio político dos sul-americanos perseguidos por

regimes autoritários entre as décadas de 1960 e 1980. Nos dois casos, por circunstâncias

diversas, o apego a uma identidade nacional era flagrante: no primeiro, no esforço por se

adaptar a um novo meio e integrar a nacionalidade do país de acolhida (em fazer parte, apesar

da dor da ruptura, de uma grande comunidade na nova terra); no segundo, na resistência a

experiências de hibridação e no desejo de manter intacta uma identidade atada ao país

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deixado.6 Embora seja impossível generalizar, o sujeito deslocado de hoje tende a ser menos

rígido em suas negociações identitárias, pois antes mesmo de partir costuma se mostrar mais

maleável.

Considerando as reflexões teóricas que, desde a década de 1980, colocaram em crise a

ideia de nação e identidade nacional, Claudia Ferman (1997) aponta a insuficiência do termo

“exílio”, pois se baseia, justamente, numa suposta estabilidade dessas duas categorias. O

exilado, observa Ferman, é aquele cuja identidade não varia nos processos de translado e que

não se mobiliza no movimento transnacional de que participa. “A categoria de „exílio‟ dá

muito pouca conta da permanente instabilidade de nossas identidades”, resume (p.7, tradução

nossa).

Um conjunto expressivo de escritores latino-americanos vive hoje o deslocamento

despojado de conceitos monolíticos de identidade. O posicionamento híbrido, flagrante em

tantas narrativas, é assumido com desenvoltura quando falam sobre a decisão de se

estabelecer fora de seus países. No discurso que proferiu ao receber o prêmio Rómulo

Gallegos de 1999 (ou seja, quatro anos antes de morrer), o chileno radicado em Barcelona

Roberto Bolaño, que também morou vários anos no México, afirmou:

[…] a mí lo mismo me da que digan que soy chileno, aunque algunos colegas

chilenos prefieran verme como mexicano, o que digan que soy mexicano, aunque

algunos colegas mexicanos prefieren considerarme español, o, ya de plano,

desaparecido en combate, e incluso lo mismo me da que me consideren español,

aunque algunos colegas españoles pongan el grito en el cielo y a partir de ahora

digan que soy venezolano, nacido en Caracas o Bogotá, cosa que tampoco me

disgusta, más bien todo lo contrario. Lo cierto es que soy chileno y también soy

muchas otras cosas (BOLAÑO, 1999).

Improváveis em outros tempos, declarações como essa se proliferaram nos últimos

anos. O escritor barranquillero Julio Olaciregui, estabelecido em Paris há mais de duas

décadas, define-se, por exemplo, como “pós-colombiano” (QUESADA GÓMEZ, 2011, p.34).

O argentino Rodrigo Fresán, que vive em Barcelona em 1999, diz que sua pátria é sua

biblioteca7. O peruano Fernando Iwasaki, há 26 anos em Sevilha, afirma que, para ele, não

existe literatura espanhola nem literatura hispano-americana, somente literatura em espanhol

(CORRAL, 2004, p.28). Jorge Volpi – que, como dissemos, viveu em vários países – observa

o seguinte sobre os autores hispano-americanos nascidos depois de 1960: “Embora nenhum

6Em sua obra Em estado de memória, publicada originalmente em 1990, Tununa Mercado comenta essa

resistência, citando “profissões de fé simplesmente patrioteiras” entre os exilados argentinos na Cidade do México, como manifestações com a bandeira do país durante a Copa do Mundo e a Guerra das Malvinas (MERCADO, 2011, p.38; edição brasileira com tradução de Idelber Avelar). 7Clarin, Revista de nueva literatura, 07/01/2007.

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deles renegue abertamente sua pátria, trata-se agora de uma mera referência autobiográfica e

não de uma denominação de origem” (VOLPI, 2009, p.168, tradução nossa).

Essas afirmações mostram que, para esses autores, mais que uma circunstância

geográfica, o deslocamento é assumido como um lugar de enunciação – ou seja, um lugar ao

mesmo tempo “verdadeiro e imaginado, concreto e desejado, histórico e ficcional”, como

define Hugo Achugar (2006, p.19). O ensaísta entende o lugar como um posicionamento

identitário, lembrando que o lugar de onde se fala (ab situ) nem mesmo precisa ter um caráter

geográfico. Assim, o que esses escritores expressam é um desejo de distanciamento duplo –

físico e discursivo – de sua nação de origem.

Esta declaração de desprendimento aparece em dois conhecidos manifestos de

escritores hispano-americanos da década de 1990: o prefácio da antologia de contos McOndo

(1996), organizada pelos chilenos Alberto Fuguet e Sergio Gómez, e o Manifesto Crack,

apresentado no mesmo ano por cinco escritores mexicanos: Jorge Volpi, Eloy Urroz, Ricardo

Chávez Castañeda, Pedro Ángel Palou e Ignacio Padilla8. Nos dois documentos, os grupos

buscam se diferenciar da literatura produzida pela geração do boom e rechaçam, sobretudo, os

estereótipos perpetuados por pastiches do realismo mágico. Uma reivindicação dos signatários

é, precisamente, a de ambientar suas narrativas em qualquer época histórica e em qualquer

lugar do mundo, retomando uma defesa feita mais de 40 anos antes por Jorge Luis Borges em

“El escritor argentino y la tradición”.

De fato, um panorama da produção literária dos últimos 20 anos mostra itinerários

incomuns para a ficção hispano-americana. Um exemplo é o volume de contos Microbios

(2006), do argentino radicado em Paris Diego Vecchio, que escolhe lugares como Edmonton

(Canadá) e a ilha de Fyn (Dinamarca) para histórias já por si singulares, que mesclam a

temática médica com a literatura. Com exceção de uma trama passada na Patagônia, não há no

livro de Vecchio nenhum elemento que o associe a seu país de origem. Caso parecido é o do

peruano radicado nos Estados Unidos Carlos Yushimito, que, sem jamais ter vindo ao Brasil,

publicou uma série de contos ambientados em favelas cariocas e outros rincões do país (um

deles inspirado na vida de Virgulino Ferreira, o lendário Lampião). Não por acaso, a diáspora

foi tomada como eixo da antologia da narrativa argentina organizada em 2010 por Luis

Gusmán. Alargando noções identitárias e extrapolando limitações temáticas e territoriais, a

seleção de Gusmán incorpora, entre outros exemplos, a nipo-americana Anna Kazumi Stahl,

8 O manifesto foi lido pela primeira vez em agosto de 1996 no lançamento conjunto de romances dos cinco

autores (CASTILLO PÉREZ, 2006).

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que nasceu e cresceu nos Estados Unidos e foi para Buenos Aires aos 25 anos para aprender o

idioma em que escreve, o castelhano.

Mas, apesar desses exemplos – que poderiam ser acrescidos de inúmeros outros –, a

maioria dos escritores acaba escrevendo sobre os países que deixaram para trás, seguindo uma

tradição antiga que remonta pelo menos ao século XVII, quando o Inca Garcilaso de la Vega

publicou seu clássico sobre a civilização incaica, Los comentarios reales, 45 anos depois de

se mudar do Peru para a Espanha. A grande diferença, segundo Aníbal González (2012), é

que hoje, pela primeira vez, os autores falam de seus países sem nenhuma inflexão nostálgica,

elemento que até mesmo no boom, com todo o cosmopolitismo que o caracterizou, esteve

presente em muitas narrativas, ainda que de forma “reflexiva”, conforme define o crítico.

Es cierto, como ha recordado Jorge Volpi, que a los autores del boom se les acusó

inicialmente de ser cosmopolitas y desarraigados, pero no es menos cierto el hecho

de que sin la gravitación de esa nostalgia reflexiva que tiende a desembocar en lo

nacional no se entienden a plenitud ni Rayuela ni la mayoría de las demás obras

maestras del Boom: ni los remordimientos mexicanos de Artemio Cruz en La muerte

de Artemio Cruz, ni los recuerdos ardientes de La Habana nocturna de Tres tristes

tigres, ni las añoranzas del Caribe colombiano en Cien años de soledad, ni el dolor y

el placer de una adolescencia limeña en La ciudad y los perros. La memoria

individual de cada uno de estos autores está marcada y enmarcada por la armazón

colectiva de una memoria social a la cual estos autores tienden a entregarse, como si

– a pesar de sus exilios involuntarios y expatriaciones voluntarias, o tal vez a causa

de estos mismos – ellos sufrieran del temor infantil de la separación de la madre, que

es también la „madre patria‟ (GONZÁLEZ, 2012, p.88).

Note-se também que, entre os escritores do boom, unidos por mais de uma década em

torno da Revolução Cubana (1959) e de outros projetos socialistas, como o de Salvador

Allende no Chile, havia uma causa de emancipação política da América Latina, que envolvia

a literatura no propósito de afirmar uma identidade regional. Tida por alguns críticos como

uma das marcas do fenômeno do boom, essa mobilização tem um exemplo no discurso de

García Márquez no recebimento do Prêmio Nobel, em 1982. Na ocasião, vestindo um típico

traje caribenho, o escritor pediu que se respeitassem os caminhos trilhados pela América

Latina em busca de uma identidade própria.

Pues si estas dificultades nos entorpecen a nosotros, que somos de su esencia, no es

difícil entender que los talentos racionales de este lado del mundo, extasiados en la

contemplación de su propia cultura, se hayan quedado sin un método válido para

interpretarnos. Es comprensible que insistan en medirnos com la misma vara con

que se miden a sí mismos, sin recordar que los estragos de la vida no son iguales

para todos, y que la búsqueda de la identidad propia es tan ardua y sangrienta para

nosotros como lo fue para ellos (GARCÍA MÁRQUEZ, 2010, p.26).

O uso da palavra “esencia”, que mostra uma concepção de identidade raramente

adotada hoje, demarca ainda mais a distância das palavras de García Márquez em relação ao

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discurso habitualmente proferido pelos autores que começaram a publicar nas últimas três

décadas. Nestes, como nota Catalina Quesada Gómez (2011, p.35), a busca de uma identidade

coletiva tem sido cada vez mais substituída pelo esforço contrário de desmantelar a ideia de

nação como comunidade coesa e homogênea.

Para Josefina Ludmer (2010), o tom antinacional da literatura latino-americana foi

particularmente forte nos anos 1990, devendo-se à influência dos projetos neoliberais que se

alastraram pela região, propondo a reformulação dos Estados mediante programas de

privatização e desnacionalização. Ludmer cita obras que, exacerbando o tom crítico, fazem

uma verdadeira diatribe contra os países de seus autores. É o caso de La virgen de los sicarios

(1994), do colombiano Fernando Vallejo, Contra o Brasil (1998), do brasileiro Diogo

Mainardi, e El asco. Thomas Bernhard en San Salvador (1997), do salvadorenho Horacio

Castellanos Moya. Todas, segundo Ludmer, convergem na acidez com que investem, numa

atitude profanatória, contra a identidade nacional e cultural desses países. Compartilham

também o lugar de enunciação dos narradores, personagens que vivem ou viviam fora e agora

têm de suportar, penosamente, o retorno ou a breve estada em um ambiente que já não

toleram.

Nossa voz antipatriótica está e não está territorialmente na nação: está fora-dentro, e

não só porque vem de fora por um tempo. Está fisicamente e linguisticamente e

provisoriamente dentro, mas está intelectualmente fora em relação ao território da

nação. Separa o olho da língua: olha o país a partir do primeiro mundo e o diz em

uma voz interior latino-americana. A posição fora-dentro (neste caso da nação) é

uma posição central no presente e nas políticas territoriais. Implica ver as nações

latino-americanas a partir do primeiro mundo (a partir de fora e de outro território

nacional), e dizê-lo aqui mesmo, na língua de dentro. E assim se estabeleceu a

política de desnacionalização dos anos 1990 na América Latina (LUDMER, 2010,

p.163, tradução nossa).

Ludmer identifica nessas obras uma atitude performática que põe em cena um discurso

exaltado que já impregnava a atmosfera privatista dos anos 1990, vociferando e amplificando

as injúrias que se diziam em surdina. “A literatura é como um eco múltiplo, deformado e

monstruoso de algo ouvido e escrito que se quer duplicar e que aparece como ficcional e real

ao mesmo tempo [...]”, comenta a crítica argentina (p.161), qualificando de “cínico,

autoritário e hierárquico” o tom antinacional dos anos 1990 (PELLER, 2009, tradução nossa).

Ao se deter, no entanto, no gesto de “profanação” ostentado pelos três livros, Ludmer

cita um comentário de Giorgio Agamben que, se levado a um contexto mais amplo – ou seja,

para além das hipérboles destas verrinas –, ilumina um aspecto fundamental da literatura que,

como a de Vásquez, insurge-se contra o imaginário nacional nos últimos anos.

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Em “Elogio da profanação”, incluído no livro Profanações (2007), Agamben diz que a

profanação, ao tornar profano o que é sagrado, restitui algo ao uso comum dos homens,

retirando da esfera religiosa e sacra em que se achava limitado. De acordo com o filosofo, a

religião subtrai do uso comum lugares, coisas, animais ou pessoas, deslocando-os para uma

esfera à parte: toda separação contém um núcleo religioso e não há religião sem essa

separação. Agamben distingue secularização de profanação. A secularização limita-se a

deslocar algo de um lugar para outro, deixando intactas as forças (por exemplo, a

secularização política dos conceitos teológicos). Já a profanação implica a neutralização do

que se profana: depois de profanado, o que estava separado perde sua aura e é restituído ao

uso comum. Trata-se de duas operações políticas: a primeira está ligada ao exercício do poder,

enquanto a segunda desativa os dispositivos do poder e restitui ao uso comum o que havia

sido confiscado. A criação de um novo uso, segundo Agamben, só é possível desativando o

uso anterior, tornando-o inoperante.

Apropriando-nos da definição do filósofo, podemos entender a profanação de uma

nação como, possivelmente, a tentativa de restituí-la ao uso comum – ou, em outras palavras,

refundá-la sob um paradigma democratizante. Essa compreensão vai ao encontro do esforço

para se instaurar uma “memória democrática” que Hugo Achugar (2006, p.160) identifica na

América Latina das últimas três décadas. De acordo com o autor, após um longo período de

regimes autoritários, manipuladores, excludentes, há hoje na região a busca por uma memória

e uma história inclusivas, em que caibam não apenas os presidentes, os generais, os

latifundiários, mas todos os setores da sociedade.

Na avaliação de Achugar, longe da derrocada, os Estados-nação passam por uma

redefinição, norteada, entre outros fatores, pelo enfrentamento à concepção homogeneizante

que prevalecia no século XIX. Hoje, segundo ele, predomina no âmbito acadêmico a ideia da

nação como “uma espécie de cenário-processo onde múltiplos sujeitos sociais representam

sua leitura” (p.156). Ou, na definição de Prasenjit Duara, um espaço em que diferentes

projetos nacionais se enfrentam e negociam entre si (p.157). Achugar destaca o desafio que é

pensar a categoria de nação “como lugar simbólico de um nós não uniforme, mas sim

inclusivo e respeitoso da diversidade” (p.156).

1.2 Lembrar à distância

Repensar o conceito de nação e questionar a memória histórica são esforços

indissociáveis que, para diferentes autores, encontram no deslocamento uma condição

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privilegiada. Muitos dos escritores que produzem em situação de deslocamento dizem que a

distância do país natal ajudou a dar-lhes uma visão mais nítida da realidade que deixaram.

Mario Vargas Llosa (2009, p.365), por exemplo, declarou que só descobriu a América Latina

quando se mudou para Paris na década de 1960. Entre os autores mais jovens, manifestações

desse tipo continuam frequentes.

Mas há, de fato, a perspectiva de uma visão mais lúcida para quem, de longe, lança os

olhos sobre o país deixado? Esta hipótese é corroborada por um estudo de Abril Trigo (2003)

que, partindo de um trabalho etnográfico com uma comunidade de uruguaios nos Estados

Unidos, sugere uma propensão questionadora na memória de indivíduos que vivem em

situação de deslocamento. Trigo argumenta que, ao mudar de país, os sujeitos sofrem uma

fratura identitária que os leva a empreender, de maneira quase imperceptível, um movimento

de resgate e reciclagem de memórias culturais até então soterradas na memória histórica e no

imaginário social da nação deixada. Uma das principais consequências é o surgimento de

novas formas de olhar a comunidade nacional – formas alternativas que conseguem se

desvencilhar da ação homogeneizadora da memória histórica, incorporar diferenças antes

asfixiadas e colocar em xeque os pilares do imaginário social.

Para explicar o funcionamento do imaginário social, Trigo recorre ao conceito de

interpelação ideológica proposto por Louis Althusser (1971; 1972). Assim como a ideologia,

o imaginário social é sustentado pelo prazer que provoca no indivíduo – o prazer do

pertencimento, o prazer que une os membros de uma comunidade em torno de uma fantasia

coletiva. Discernir o que há de falacioso nos símbolos, mitos e valores sobre os quais repousa

a ideia da nacionalidade é geralmente mais difícil para o sujeito que permanece sempre no

mesmo país, nutrindo sua identidade dos atributos que lhe renovam, a cada dia, a convicção

de integrar uma coletividade. Da mesma forma, enxergar e denunciar as imposturas da

memória histórica – ou seja, da memória transmitida nas narrativas dominantes – tende a ser

mais árduo para quem jamais se ausenta, física ou imaginariamente, da terra em que nasceu.

Produzida pelos aparelhos ideológicos do Estado e guiada primordialmente por objetivos

nacionalistas (TRIGO, 2003, p.98), a memória história se dirige, acima de tudo, aos

indivíduos de uma nação. E, para isso, se vale de um aparato discursivo que abrange desde

eventos, como aniversários, comemorações cívicas e festivais, a lugares como monumentos,

museus e santuários9.

9 Sobre os lugares da memória histórica, ver NORA, Pierre (ed). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984.

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Em sua dupla condição psicológica e social, a memória não é a mera repetição e

recuperação das marcas do ontem, mas a construção de um passado posto a serviço de um

projeto de futuro a partir das circunstâncias do presente (TRIGO, 2003, p.93). Fora de seu

país de origem, com novas exigências imaginárias, os indivíduos deslocados reformulam suas

lembranças experimentando um processo de “esquecimento criativo” que os distancia, cada

vez mais, do imaginário social e da memória histórica. Trigo diz, por exemplo, que, com o

passar dos anos, os migrantes entrevistados por ele praticamente deixaram de celebrar as

festas nacionais do Uruguai e raramente invocam seus símbolos pátrios. A quebra desses

vínculos anteriormente prazerosos deflagra uma crise identitária que provoca, entre outros

efeitos, a irrupção da chamada imaginação radical, força questionadora com a qual o

indivíduo, que o imaginário social quisera domesticar e reduzir a mero sujeito-súdito, afirma-

se como sujeito-agente e, através de práticas antagônicas, no questionamento tenaz e

persistente do imaginário social, conquista a autonomia, tornando-se mais apto a desconstruir

as narrativas dominantes e sugerir novas formas de pensar o nacional (idem, p.80-85, tradução

nossa).

Por indevidas que sejam as generalizações – sobretudo pelo perfil econômico e

cultural radicalmente diferente da comunidade estudada por Trigo –, é impossível não

identificar coincidências entre o processo descrito pelo autor e o trabalho desenvolvido por

inúmeros escritores em deslocamento, que capitanearam nos últimos anos algumas das

empreitadas mais arrojadas de retorno literário ao passado da América Latina. Analisando um

amplo corpus de hispano-americanos, Fernando Aínsa (2010) destaca o expressivo conjunto

de narrativas em que os autores reconstroem à distância, com olhar crítico e desmistificador, o

país ou a cidade em que nasceram. Aínsa cita Fernando Vallejo com Bogotá (escrevendo do

México), Juan Villoro com o México (escrevendo de Barcelona), Abilio Estévez com Havana

(também de Barcelona), Carlos Franz com o Chile (escrevendo de Madri), entre outros tantos

que mostram que “um espaço nacional construído fora das fronteiras não só é possível, como

recomendável” (AÍNSA, 2010, p.31, tradução nossa).

Muitas vezes, depois da mudança, um longo período antecede o início da escrita sobre

a terra natal. Para Juan Gabriel Vásquez, foram oito anos entre sua saída da Colômbia e a

publicação de Los informantes, seu primeiro livro sobre o país. Estaria aí o esquecimento

criativo mencionado por Trigo? “Una de las consecuencias de emigrar es que al cabo de un

tiempo desaparece el espejismo de la comprensión: aquella ilusión apenas humana de que uno

entiende el lugar de donde viene”, comentou Vásquez (2009, p.187), em breve ensaio sobre a

condição de escritor deslocado.

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Outros autores relatam situações semelhantes, como o hispano-argentino Andrés

Neuman, que se mudou para a Espanha em 1991 e somente seis anos depois conseguiu

escrever sobre sua cidade natal, Buenos Aires. “Para entonces, entre mi lugar de origen y yo

había la distancia justa: lo conocía bien, pero había comenzado a olvidarlo y, por lo tanto, a

ser capaz de imaginármelo. Sin memoria profunda no hay ficción que valga” (CORRAL,

2004, p.43).

Com frequência, mais do que matéria-prima, a memória se torna o próprio tema das

obras, com seus percursos cheios de dilemas, zonas escuras e enigmas que, para além da

trama, levantam questões de caráter ético, político e literário. Esta metamemória, como

poderíamos chamar, aparece às vezes sutilmente, como no romance Bariloche (1998), de

Neuman, em que o quebra-cabeça do protagonista representa o jogo de forças entre

lembranças e esquecimento; outras vezes, porém, é uma marca permanente, com a reflexão se

impondo a cada gesto do narrador, como nas obras que constituem o foco desta tese. Embora

se cruzem em diferentes pontos, os três romances evocam problemas específicos que nos

estimulam a uma aproximação teórica que se antecipe à análise que faremos nos capítulos

seguintes.

Em Los informantes, que se defronta com a memória da Segunda Guerra Mundial na

Colômbia agonizante dos anos 1990, o personagem narrador se move por um país dividido

entre a lembrança e o esquecimento, a palavra e o silêncio, o desejo de perdão e a exigência

de reparação. Para além dos efeitos práticos em sua investigação, essas tensões suscitam

dilemas éticos e até mesmo filosóficos. Por que evocar episódios que muitos querem ver

silenciados? Que benefícios pode trazer ao futuro a lembrança de conflitos, ignomínias, fatos

que ainda hoje dividem os que os viveram? Pelas questões que aborda, a obra nos convida a

um diálogo com o clássico A memória, a história, o esquecimento (2007), de Paul Ricoeur.

Ciente dos abusos que podem ocorrer dos dois lados – ou seja, tanto do esquecimento

quanto da memória –, Ricoeur propõe a busca de uma “memória justa”, que decorreria

precisamente do equilíbrio entre lembrar e esquecer. Uma premissa, segundo ele, é o

empenho para não esquecer acontecimentos como o Holocausto (Shoah, no termo hebraico) e

outros genocídios e crimes contra a humanidade. Jeanne Marie Gagnebin observa que o

imperativo do não esquecimento – cujo propósito, lamentavelmente fracassado, é o de evitar

que atrocidades semelhantes voltem a ocorrer – tornou-se central nas discussões sobre a

memória desde pelo menos 1947, quando Theodor Adorno e Max Horkheimer publicaram a

Dialética do esclarecimento (GAGNEBIN, 2006, p.100). Nas últimas décadas, a exigência

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vem sendo qualificada como o “dever de memória”, conforme expressão consagrada pela

historiografia francesa (HEYMANN, 2006).

A importância desse esforço é ressaltada por inúmeros fatores – psíquicos e políticos,

individuais e coletivos – que se impõem no caminho da recordação. Ricoeur resume-os em

três situações: a memória impedida, a memória manipulada e o esquecimento comandado.

A memória impedida é um fenômeno psicopatológico, que se dá principalmente após

situações dolorosas, quando os indivíduos desenvolvem mecanismos de defesa que

impossibilitam o trabalho de luto necessário para superar as perdas. A memória manipulada é

produto da história dominante (que alguns chamam de “história oficial”), a qual se vale da

inevitável seletividade de toda narrativa e suprime episódios, desloca ênfases, modifica os

protagonistas, entre outras manobras. Por último, segundo Ricoeur, o terceiro grande entrave

à recordação é o esquecimento comandado, instituído pelo poder público mediante

instrumentos legais, como editos e decretos.

Bem antes de os Estados-nações surgirem, no fim do século XVIII, o esquecimento

havia sido adotado diversas vezes como política pública para reaproximar populações

divididas. Em Atenas, por exemplo, um decreto baixado em 403 a.C. proibiu a evocação dos

conflitos entre oligarcas e democratas. Em 1588, o célebre Edito de Nantes, promulgado por

Henrique IV, tentou sedimentar a paz entre católicos e protestantes com os seguintes termos:

“a memória dos fatos ocorridos permanecerá apagada e adormecida como coisa não ocorrida;

fica proibido renovar a memória deste passado” (apud RICOEUR, 2007, p.460-461).

Além de proporem algo impossível – o apagamento deliberado do passado, o faz de

conta de que nada ocorreu –, medidas como essas têm efeitos mais nocivos do que positivos

sobre o futuro. Primeiro porque impedem, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, que

haja “uma reapropriação lúcida do passado e de sua carga traumática”, como diz Ricoeur

(idem, p.462). Ou seja, abortam desde o princípio os trabalhos de memória e de luto que

poderiam, segundo o filósofo, possibilitar o perdão e, posteriormente, o alcance de uma

“memória feliz, apaziguada e reconciliada”. Em segundo lugar, porque limitam as

possibilidades de aprendizado que os eventos traumáticos podem oferecer.

Ao realçar as complexidades de rememorar, Vásquez põe em evidência alguns

elementos centrais da escrita da memória, entre os quais os testemunhos, que assumem nas

três obras – mas particularmente em Los informantes – um caráter irremediavelmente duplo:

indispensáveis e ao mesmo tempo traiçoeiros. Este tema convoca reflexões como a de Beatriz

Sarlo, que, em Tiempo pasado: cultura de la memoria y giro subjetivo (2005), questiona a

transformação do testemunho numa espécie de ícone da verdade nas últimas décadas,

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desconsiderando a falibilidade da memória e outros obstáculos que recaem sobre a

reconstrução do passado. Sarlo adverte:

Só uma confiança ingênua na primeira pessoa e na lembrança do vivido pretenderia

estabelecer uma ordem presidida pelo testemunhal. E só uma caracterização ingênua

da experiência reclamaria para ela uma verdade mais alta (SARLO, 2005, p. 63,

tradução nossa).

A ensaísta ressalva que, para alguns momentos históricos, recomenda-se a abstenção –

ou o diferimento – da aplicação de dúvidas metodológicas nos testemunhos, como nos

depoimentos prestados por vítimas das ditaduras na Argentina, quando as declarações diziam

respeito não apenas a elas, mas constituíam “a matéria-prima da indignação e o impulso para

as transições democráticas” (idem, p.61). Porém, o que Sarlo nota é uma generalização da

importância dos testemunhos, que outorga até mesmo aos depoimentos corriqueiros uma aura

de fidedignidade imune a qualquer questionamento. “Todo testemunho quer ser acreditado e,

no entanto, não carrega em si mesmo as provas pelas quais sua veracidade pode ser

comprovada” (idem, p.47).

Estas contradições também são apontadas por Ricoeur, que cita experiências feitas

pela psicologia judiciária nas quais várias pessoas assistem à mesma cena (gravada por uma

câmera) e, ao relatar o que viram, dão versões não apenas divergentes entre si, mas

discrepantes, em vários aspectos, do registrado pela câmera. Além dos problemas de

percepção, retenção e reconstituição que esses experimentos evidenciam, os testemunhos são

afetados por outros fatores, como o tempo decorrido em relação ao vivido, que pode levar ao

que Freud chamou de “elaboração secundária”, ou seja, uma remodelação do sonho (neste

caso a lembrança), a fim de torná-lo, entre outras coisas, mais coerente e compreensível.

Ricoeur refuta também um dos pilares da credibilidade do testemunho: a ideia de que

estabelece uma fronteira bem definida entre realidade e ficção. “A fenomenologia da memória

confrontou-nos muito cedo com o caráter sempre problemático dessa fronteira”, diz (idem,

p.172).

Essa questão reaparece, com abordagem diferente, em Historia secreta de

Costaguana, romance que, mais uma vez, relata o passado com uma postura desconfiada em

relação às ferramentas de que dispõe. As reflexões, no entanto, extrapolam o campo da

memória e se concentram na escrita da história. Neste sentido, o livro se encaixa na categoria

de “metaficcção historiográfica” proposta por Linda Hutcheon (1988), assim como exibe

vários dos traços que levaram Seymour Menton (1993) a cunhar o termo “novo romance

histórico da América Latina”, referindo-se a obras que, nos últimos 30 anos, abordam o

passado valendo-se de recursos como a paródia, a intertextualidade e a metaficção. Para

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analisar esses aspectos, convém fazer um panorama, ainda que breve, do chamado romance

histórico, desde suas origens, no início do século XIX, às mais recentes manifestações, que

incorporaram mudanças significativas na forma de compreender a história.

Impulsionado pela crise de identidade que se seguiu às bruscas mudanças no quadro

social da época, o romance histórico surgiu durante o Romantismo, quando autores como

Walter Scott, Chateaubriand e Victor Hugo satisfizeram o gosto de um público que, depois

dos abalos provocados pela Revolução Francesa (1789-1799), procurava encontrar no passado

elementos que compensassem a falta de certezas sobre o futuro (JITRIK, 1995). Na América

Latina, que também passava por uma reviravolta após a independência das antigas colônias, a

chegada do gênero se deu de forma quase instantânea e logo o dotou de características

próprias, como a presença de figuras históricas importantes entre os protagonistas,

diferentemente do que se verificava nas narrativas europeias, que, como notou Lukács (2011),

quase sempre tinham anônimos entre os personagens centrais.

Nos dois âmbitos, a ascensão da ficção histórica coincidiu com a própria consolidação

do romance como o conhecemos hoje e com uma forte valorização da história, sob os

auspícios do Iluminismo. Havia para isso um imaginário favorável, que nutriu a convicção de

que o romance histórico era “a culminação ou a máxima realização” do que era romancear,

como observa Noé Jitrik (idem, p.15), lembrando que, bem antes de a literatura moderna

produzir histórias narradas no presente e até mesmo no futuro, a noção que prevalecia era a do

relato clássico, segundo a qual o objeto a ser referido advinha sempre de um saber anterior,

fosse real, imaginário ou fantástico. Desta forma, se todo romance era a narrativa de algo

sabido ou acontecido, o romance histórico era o romance por excelência, já que o saber

histórico – numa visão idealizada que perdurou por muito tempo – era tido como o modo mais

pleno e total do saber.

O termo “romance histórico” contém um oximoro que expressa um acordo talvez

sempre violado entre duas instâncias opostas: a “verdade”, que estaria do lado da história, e a

“mentira”, que se situaria do lado da ficção. Um acordo entre tais categorias, diz Jitrik (idem,

p.9-11), jamais poderia ser perfeito, pois cada uma delas encarna uma dimensão própria da

língua e da palavra, compreendida como relação de apropriação do mundo. Apesar disso, a

fórmula promove a ruptura dos limites semânticos dos dois termos, sugerindo que uma

mentira pode conter mais verdade (ou uma verdade diferente) do que uma verdade

apresentada homogeneamente como tal. Da mesma forma, produz-se um efeito de

relativização: a ideia de que a verdade pode ser mais completa se houver alguma intervenção

da mentira. Para referir-se às diferentes verdades que se podem extrair de um fato histórico, o

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filósofo e linguista Tzvetan Todorov (1991) propôs os termos “verdade de adequação” e

“verdade-desvendamento”. A primeira, buscada pela ciência e pela história convencional, só

admite como medidas o tudo e o nada – ou, por extensão, dedica-se a verificar se algum

fenômeno aconteceu realmente ou não. Já a verdade-desvendamento, perseguida por

romancistas e intérpretes, toma como medidas o “mais e o menos” – ou seja, preocupa-se

acima de tudo em compreender as razões de um acontecimento.

Ao analisar as transformações sofridas pelo gênero, Jitrik destaca tanto a influência de

novas concepções estéticas – que renovaram o romance de modo geral – como as mudanças

ocorridas na própria ideia de história. Embora não dê detalhes sobre estas últimas, podemos

citar as inovações produzidas pela Escola dos Anais, na França, desde os fundadores do

movimento, Marc Bloch e Lucien Febvre, até os criadores da chamada “Nova História”, entre

os quais Fernand Braudel, Jacques Le Goff, Michel de Certeau e Pierre Nora. Além de

consolidar uma nova postura em relação ao passado – visto não mais como um universo

fechado e passível de um resgate integral, mas como algo vivo e modificável no presente –,

esses intelectuais contribuíram para colocar em xeque o caráter absoluto da verdade histórica.

Michel de Certeau, por exemplo, enfatizou em diversos trabalhos as estratégias narrativas que

faziam da história, tal como a literatura, “uma obra de ficção” (LE GOFF, 1982, p. 35).

A história não é científica, se por científico se entender o texto que explicita as

regras da sua produção. É uma mistura, é ficção científica, em que a narrativa apenas

tem a aparência do raciocínio mas que também não é menos circunscrita por

controles e possibilidades de falsificação. Assim se entendem as citações, as notas, a

cronologia, todas as manhas que apelam para a credibilidade ou para as

“autoridades”. Estes expedientes permitem suprir, por uma narratividade, o que falta

em rigor. Efetivamente, esta mistura liga num mesmo texto a ciência e a fábula, as

duas metades simbólicas e abstratamente distintas de nossa sociedade. (CERTEAU

apud LE GOFF, 1982, p.32-33).

Na mesma direção, o historiador norte-americano Hayden White classifica os

trabalhos historiográficos como ficções com pretensões de verdade. Segundo White, as

narrativas históricas são “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto

descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que

com os seus correspondentes nas ciências” (WHITE, 1994, p.98, grifo do autor).

Como era de se esperar, essas abordagens produziram impacto imediato nos romances

de extração histórica. Críticos como Linda Hutcheon (1988), Seymour Menton (1993),

Fernando Aínsa (1996), María Cristina Pons (1996), Luz Mary Giraldo (2000) e Antônio

Esteves (2010) apontaram, quando não uma fratura, uma mudança sem precedentes em

relação à ficção histórica tradicional, numa guinada que, para a maioria deles, se intensificou

na década de 1970, quando as novas concepções sobre a historiografia repercutiram

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fortemente nos círculos intelectuais de todo o mundo. Nos últimos anos, o adjetivo “novo”

tornou-se indispensável nas referências ao romance histórico contemporâneo. Os narradores,

segundo os críticos, passaram a ostentar com muito mais intensidade a desconfiança em

relação à história hegemônica e ao discurso histórico de maneira geral.

As estratégias variam de um autor para outro e têm pontos de convergência segundo

a visão contemporânea do narrador ante o passado. A maioria relativiza as versões

oficiais e tradicionais da história, põe em crise a autoridade tanto do historiador

quanto do narrador do presente, confronta textos oficiais nos arquivos, nas crônicas

e em diversas fontes e reativa-os com estruturas atuais que dialogam com as formas

do passado recriado ou com aquele a que se faz referência, projetando

simultaneamente uma visão dupla: a do ontem e a do hoje, sem a mediação do futuro

(GIRALDO, 2000, p.166-165, tradução nossa).

Num esforço maior de síntese, Seymour Menton (1993, p.42) aponta seis

características definidoras do “novo romance histórico”: 1) a subordinação da reprodução

mimética do passado à apresentação de certas ideias filosóficas, como a imprevisibilidade da

história e a impossibilidade de conhecer a verdade histórica; 2) a distorção da história

mediante omissões, exageros e anacronismos; 3) a ficcionalização de personagens históricos;

4) a metaficção; 5) a intertextualidade, especialmente a reescrita de outro texto (palimpsesto);

6) o caráter dialógico, carnavalesco, paródico e de heteroglossia. Ampliando a relação, María

Cristina Pons (1996) cita também a subjetividade e a não neutralidade na escrita da história, a

relativização da historiografia, o questionamento do progresso histórico e o abandono da

dimensão mítica, totalizadora ou arquetípica na representação da história.

Como mostraremos na nossa análise, Historia secreta de Costaguana exibe todas

essas características, constituindo-se, ao mesmo tempo, como um romance histórico e um

romance sobre a história.

Note-se que, nos três romances que analisaremos, o jornalismo aparece como

elemento incontornável, para o bem e para o mal, nas investigações empreendidas pelos

protagonistas. Se em Los informantes o narrador é, ele próprio, um jornalista em luta contra o

esquecimento, em Historia secreta de Costaguana a profissão é exercida pelo pai, que

promove o esquecimento manipulando a opinião pública. Já em El ruido de las cosas al caer,

a imprensa é mediadora permanente da sensação de insegurança que toma conta da Colômbia.

Recordações traumáticas do narcoterrorismo confundem-se com lembranças de transmissões

televisivas, como o assassinato do candidato à presidência Luis Carlos Galán. Vásquez capta

o papel determinante que, nas últimas décadas, os meios de comunicação desempenham na

conformação das memórias coletivas e individuais. Segundo Andreas Huyssen (2000, p.20-

21), “não podemos discutir memória pessoal, geracional ou pública sem considerar a enorme

influência das novas tecnologias de mídia como vínculos para todas as formas de memória”

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(p.20-21). Esta influência se dá de diversas maneiras, uma delas impulsionando o

esquecimento. Este, conforme Huyssen (p.18), cresce no mesmo ritmo da expansão da

memória.

Muito antes do advento da internet e da cultura de hiperconectividade que caracteriza

os dias atuais, as relações entre jornalismo e esquecimento já eram advertidas por autores

como Goethe e Nietzsche, que sublinhavam a passividade e o conformismo que o excesso de

informações gerava (DIAS, 2001; KELLNER, 2000). Em um de seus textos sobre a

modernidade (“Sobre alguns temas de Baudelaire”), Walter Benjamin nota que o próprio

discurso jornalístico – pautado pela novidade e a objetividade, e caracterizado pela

desconexão entre as notícias – produz a separação entre fato e experiência, ou seja, relata os

fatos sem transmitir uma experiência nem preservar uma memória. “Na substituição do antigo

relato pela informação e da informação pela „sensação‟, reflete-se a atrofia progressiva da

experiência”, escreveu o crítico alemão (2000, p.36).

Ao comentar as diferenças entre jornalismo e literatura, Ricardo Piglia (2012) reforça

a visão de Benjamin: “Com o fluxo incessante de informações, assistimos a certas catástrofes,

assistimos a certos acontecimentos sem nos sentir implicados, como se fôssemos meros

espectadores”, disse o escritor (tradução nossa). Segundo ele, enquanto a literatura consegue

envolver o leitor por transmitir uma experiência, o jornalismo nos atinge superficialmente por

difundir apenas informações. Por isso, apesar do manancial de dados que temos à disposição,

vivemos sempre com a sensação de estar desinformados.

É neste contexto que, em El ruido de las cosas al caer, o protagonista busca

compreender e superar o trauma que sofre ao ser atingido por um tiro no centro de Bogotá.

Entre as perguntas que se multiplicam, uma delas se refere às próprias possibilidades

terapêuticas da escrita, já que, 13 anos depois, Antonio Yammara continua tão solitário e

desolado quanto nos meses posteriores ao atentado.

Em todos os romances, o deslocamento dos personagens é uma condição permanente,

garantindo o olhar de estranhamento, expondo as dissonâncias nacionais e deixando outras

marcas que tentaremos, a cada capítulo, apontar.

É curioso que o tema da extraterritorialidade apareça já no primeiro conto de Vásquez,

publicado no anuário de seu colégio quando tinha apenas oito anos. Nesta primeira história, o

protagonista era um menino que, por caminhos misteriosos, ingressa num barco em Bogotá

(cidade sem acesso ao mar) e viaja até Londres, onde permanece um breve período passeando

com um cachorro aficionado por salsichas. Por coincidência (ou ironia da memória), Historia

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secreta de Costaguana tem parte da trama ambientada na capital inglesa, para onde emigra o

personagem narrador, José Altamirano, sem, contudo, nenhuma intenção de voltar.

Com exceção do volume de contos Los amantes de todos los santos, Vásquez rejeita

terminantemente os livros que publicou antes da trilogia: os romances Persona e Alina

suplicante. Porém, tanto pelos elementos temáticos como estilísticos, sua leitura nos parece

relevante para obter uma compreensão mais ampla da trajetória do escritor.

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II O ESCRITOR EM BUSCA DE UM ESTILO

O deslocamento aparece como elemento temático e lugar de enunciação desde o livro

de estreia de Vásquez, o romance Persona, publicado quando o escritor tinha apenas 24 anos.

O texto de orelha, cartão de visita do estreante, não deixa dúvidas sobre suas intenções: quer

ser visto como alguém que escreve de fora, porém ressignificando a experiência

extraterritorial.

Trata-se de uma obra “excéntrica” e contrária “a todos los tópicos del mundo del

exilio”, informa a orelha. A trama é ambientada em Florença, mas uma Florença que não é

“fruto del verismo del siglo XIX, sino de la conjetura novelesca, una ficción que le adeuda

más a los catálogos de arte que a la experiencia humana de su joven y talentoso autor”

(VÁSQUEZ, 1997). Da mesma forma, o personagem principal, o escritor e jornalista Javier

Del Solar, “tampoco es el clásico individuo embargado por la nostalgia, sino un ser lúcido y

hedonista, que vive su historia de amor en tierras europeas con gusto y lejos de los fantasmas

de la añoranza”.

Esta veemente negação da nostalgia é reforçada ao longo da obra, quando Del Solar e

sua companheira Helena descartam, reiteradas vezes, a possibilidade de voltar à Colômbia.

Autor de um livro sobre arte e colaborador de revistas especializadas, Del Solar vai a Florença

estudar “la belleza”, enquanto Helena viaja para aprender italiano. Os dois se conhecem

“tristemente por un hecho tan trivial como el ser ambos bogotanos, venir ambos de esa ciudad

abominable” (p.30). Helena tem saudades de casa, porém considera impensável voltar à

Colômbia, sentindo-se contagiada pelo ódio de Del Solar pelo país (idem). Diferentemente

dos romances da trilogia, esta aversão aqui é proferida sem detalhes, o que leva o leitor a

associá-la ao trauma da violência que, aqui e ali, emerge influenciando atitudes. Sem

mencionar as bombas que, nos anos anteriores, explodiram em Bogotá, o narrador nos conta

que as notícias sobre o atentado à Galeria degli Uffizi – que matou cinco pessoas em 1993 –

“ya no los aterraban” (p.22). Ao mesmo tempo, um simples atraso a um encontro é motivo de

apreensão: “Ya estaba preocupado, regañó Del Solar a Helena. Esto no es Colombia, sabes,

repuso ella: aquí no tiene por qué pasarme nada” (p.52).

A rejeição de Del Solar a seu país o leva, inclusive, a apresentar-se como espanhol –

“lo que no implicaba explicaciones (p.71)” – e olhar com desinteresse ícones da cultura

colombiana, como o pintor Botero (p.52). A este rechaço, contrapõe-se a volúpia com que se

entrega às caminhadas por Florença, que se abre como espaço fértil e eletrizado pelo desejo.

Tal como em James Joyce, Vargas Llosa e Cortázar – que têm destaque entre as inúmeras

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citações da obra – o deslocamento é vivido como uma condição instigante que impulsiona a

criação artística. Esta sensação é explicitada pela menção a duas obras paradigmáticas escritas

parcial ou integralmente em Paris: os romances La ciudad y los perros (1962), de Mario

Vargas Llosa, e Rayuela (1963), de Cortázar, que inauguraram o boom da literatura hispano-

americana e marcaram a estreia dos dois escritores no gênero romance. O desejo de se filiar a

essa tradição de escritores radicados na Europa aparece também no final, quando Vásquez diz

que a obra começou a ser escrita em Florença, em 1995, e foi concluída em Paris, em 1996.

Joyce também é citado por seu romance de estreia, Retrato do artista quando jovem

(1916), cuja influência na obra de Vásquez é evidente. Persona tem uma estrutura circular,

com tempos intercalados e uma narrativa em terceira pessoa que se alterna com monólogos

interiores dos quatro personagens principais: os colombianos Del Solar e Helena e os italianos

Gianna Alessandri e Stefano Pozzi. A ação transcorre em três dias do outono florentino de

1993, concentrando-se numa longa noite no apartamento de Pozzi e Alessandri, quando

desejos e tensões se equilibram precariamente em meio a um jogo de cartas. Namorados no

passado, Alessandri e Del Solar mantêm-se perigosamente próximos, nutrindo mútua

admiração que desperta sobretudo o ciúme de Pozzi, adúltero contumaz que teme

comportamento idêntico por parte da esposa. Helena, por sua vez, anula-se na relação com

Del Solar, a quem se entrega em jornadas inexauríveis que incluem a longa e irrestrita

exibição de seu corpo. Egocêntrico, presunçoso, sexista, Del Solar é o artista do grupo,

invejado por Pozzi e adorado pelas duas mulheres. Seus monólogos interiores são carregados

de citações, numa incessante demonstração de saber à qual se rendem, inebriados, os três

amigos. “La opinión de nadie era tan definitiva como la de ese hombre”, pensa Stefano (p.82).

“Sin ti no hubiera conocido nunca a Joyce, a Proust, a Schopenhauer”, reconhece Helena

(p.86). Olhando para a namorada, ele diz para si mesmo: “Yo la he creado” (p.101).

Contraponto silencioso à verborragia circundante, Helena é também a que menos se

mostra, a que transmite a imagem mais distante do que verdadeiramente é. No decorrer da

noite, convicta da atração de Del Solar por Alessandri, decide partir para o balneário de

Viareggio, aproveitando os bilhetes adquiridos por Alessandri. Já para esses personagens, o

deslocamento tem um significado que ecoará por toda a obra de Vásquez: o da possibilidade

de escapar, de fugir de uma situação negativa confiando nas promessas de um novo espaço.

Del Solar, ao chegar a Florença, “venía escapando” de sua “ciudad abominable” (p.30);

Stefano perambula pelas ruas para não se defrontar com os fantasmas de seu casamento (p.

33); Alessandri busca superar a crise com um fim de semana em Viareggio, e Helena decide ir

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ao balneário para se livrar do jugo de Del Solar. Os lugares aprisionam e infligem a dor, mas

também libertam e viabilizam desejos.

Esta dupla natureza aparece também em Alina suplicante, o segundo romance de

Vásquez, em que a ida a Paris deixa de ser um mero recurso de fuga e se torna o meio de

realização do desejo reprimido entre dois irmãos. Algumas referências permitem situar a ação

no fim da década de 1980 – provavelmente em 1988 –, quando a guerra entre o narcotráfico e

o governo ainda não havia atingido o auge, mas já tinha produzido alguns dos lances mais

dramáticos, como os assassinatos do ex-ministro da Justiça Rodrigo Lara Bonilla, em 1984, e

do jornalista Guillermo Cano, diretor de El espectador, em 1986. Apesar disso, praticamente

não há ecos da violência entre os personagens principais. As breves menções ao tema em nada

sugerem o clima de terror descrito em Los informantes e El ruido de las cosas al caer; e,

longe de caracterizar uma situação histórica específica, têm um caráter vago, que as torna

adaptáveis a qualquer grande cidade latino-americana: um homem chega ao hospital após

levar uma facada (p.19), uma expressiva quantidade de armas é apreendida numa praça

(p.119), comentários sobre a insegurança que depois se repetem, praticamente idênticos, nas

ruas de Paris. Chama atenção que, num cotidiano brutal como o da Bogotá dos anos 1980, um

policial se disponha a atender a uma queixa pueril, como a de um jovem inconformado por ter

sido expulso de casa pelo pai.

A Colômbia do romance, portanto, por mais que tenha suas mazelas – a corrupção, a

poluição, a desordem urbana –, está longe do país abominável de outras obras. São de cunho

existencial e essencialmente amoroso os sobressaltos que, no vaivém de avenidas, ruas

engarrafadas, restaurantes, universidades, quartéis e hospitais, acometem os personagens. São

as encruzilhadas da consciência que impelem Alina duas vezes para fora da Colômbia. É a

paixão pela irmã que leva Julián à sua caça. Refugiados num quarto de hotel – um dos

clássicos não lugares apontados por Marc Augé (1994) –, os dois se entregam, em Paris, ao

desejo que não se permitiram consumar na Colômbia. Rendem-se a isso como um destino

inelutável, a emboscada final de uma conspiração como as que tramavam os deuses contra os

heróis das tragédias gregas.

Publicado pela editora Norma – na época uma das maiores da Colômbia e hoje voltada

exclusivamente à educação –, Alina suplicante rendeu a Vásquez as primeiras aparições nos

cadernos culturais colombianos. Em sua coluna no jornal El tiempo, o principal diário do país,

o jornalista Mauricio Becerra (1999) anunciava-o como “un escritor para tener en cuenta en

los próximos años”, embora identificasse, em contrapeso aos elogios, alguns “resabios de

escritor en proceso de madurez”. Vásquez disse a Becerra que um dos pontos de partida de

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seu livro foi a leitura de A morte da tragédia, de George Steiner, que fortaleceu sua percepção

de que o romance contemporâneo havia deixado de explorar a riqueza da tragédia grega. Foi

nos rastros dessa tradição que ele teria escrito Alina suplicante, como a própria orelha da

edição se encarrega de afirmar. Porém, por diferentes aspectos, o livro se assemelha mais a

uma obra do romantismo.

Dificilmente o leitor de María (1867), do colombiano Jorge Isaacs, deixará de sentir

certa familiaridade nessa história de amor proibido, nas duas viagens que separam o casal e na

atmosfera que marca sobretudo o primeiro reencontro, quando Alina – a exemplo do que faz

Efrain ao rever María – experimenta na solidão de seu quarto a ebulição de desejo provocada

pelo contato com o irmão. Uma diferença decisiva – além do fato de serem irmãos, e não

primos – é que, no romance de Vásquez, Julián consegue vencer a prostração e encontrar

Alina na Europa, enquanto a heroína de Isaacs, condenada pela epilepsia, languidesce e morre

antes de Efrain retornar da Inglaterra. Além disso, o comportamento de Alina é a antítese da

pudicícia típica da mulher romântica. Leitora de Byron (e não de Chateaubriand, como

María), Alina veste roupas sensuais, bebe incansavelmente e chega a arrancar um beijo do

irmão na pista de dança de uma discoteca.

Esta aura romântica é reforçada pela voz narrativa em terceira pessoa, que mantém

sem firmeza uma onisciência didática e não raro inverossímil, recordando os titubeios

frequentes de alguns românticos hispano-americanos. É notável como Vásquez, do primeiro

ao segundo romance, substitui um paradigma tipicamente vanguardista – expresso tanto nas

referências quanto nos procedimentos que adota, como o monólogo interior e o fluxo de

consciência – por uma estética conservadora que, ao buscar a clareza que faltara a Persona,

acaba pecando pelo excesso, resvalando no simplismo e na puerilidade. Assim como no

romance de estreia, o narrador onisciente alterna sua perspectiva entre todos os personagens

principais, mas desta vez sem misturar a terceira pessoa com a primeira. Essa alternância é

feita de forma brusca, prejudicando a naturalidade e a fluência da ação. O resultado, além de

uma artificialidade recorrente, é a fragilidade na caracterização dos personagens, que não

dispõem de substância suficiente para convencer o leitor. Caso emblemático é o

comportamento de Martín, o pai dos irmãos, em relação a Julián. Ora na frieza, ora nas

tentativas de aproximação, seus movimentos são inconsistentes, vazios. Como compreender,

por exemplo, a súbita decisão de revelar que tem uma amante? A própria Alina, que dá título

à obra, não incomodaria se fosse meramente ambígua e imprevisível – como são, em geral, os

grandes personagens literários. O problema é a frouxidão com que despontam suas

contradições, que emergem quase ao acaso, sem tensões que as contraponham, parecendo,

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mais do que tudo, tropeços de um narrador cambaio. Exemplo disso é a confusão de

sentimentos despertada pela aproximação de Virginia e Julián. Como crer no ciúme

mencionado pelo narrador, se linhas acima Alina “se sintió como abrazada por la evidencia de

que esta niña había terminado por enamorarse del solitario empedernido que era su hermano”

(p.99).

Deparando-nos com esses problemas, é fácil entender por que, já depois de

consagrado, Vásquez passou a desprezar os primeiros romances ao falar de sua obra. Ambos

resistem como testemunhas indesejáveis de uma imaturidade capaz de causar desconforto no

artista de hoje. Note-se que, em Persona, os mergulhos psicológicos também são insuficientes

para dar profundidade aos personagens. Misturando a primeira e a terceira pessoa, o narrador

percorre o pensamento de todos, mas igualmente de forma abrupta e por vezes confusa. O

forte erotismo descamba para a vulgaridade, como nas diversas frases sobre ereção ou nas

considerações sobre o púbis feminino, “que Del Solar recordaba oscuro y rico como um

sarcófago egipcio” (p.72). As comparações, uma das virtudes da prosa de Vásquez, são

frequentemente temerárias. O couro do sofá é “resbaloso como un árabe” (p.61). O tempo

“nada como un perro” (p.58). Uma mulher ostenta “una sonrisa de flor mojada, de templo”

(p.17). Além disso, crivadas de citações e demonstrações de erudição, as páginas de Persona

exalam afetação intelectual, ao mesmo tempo que mantêm (rivalizando com menções a Dante

e Joyce) frases francamente tolas, como “Qué idioma bello, hombre. Ragazza, pizza, jacuzzi.

Io so´pazzo, paparazzi” (p.52)

Seria injusto, contudo, não reconhecer os méritos do escritor precoce. Ainda mais

importante é observar como despontam nas duas obras alguns elementos formais e temáticos

que serão marcantes nos romances da trilogia. Em Alina suplicante, além de elemento

temático, o deslocamento é assumido como lugar de enunciação pelo escritor, que faz questão

de informar que concluiu a obra em Paris; além disso, no texto de orelha, Vásquez aparece

morando na Bélgica, na pequena cidade de Aywalle, na região das Ardenas, cenário da

maioria dos contos de Los amantes de todos los santos.

Da mesma forma, esses primeiros escritos já exibem o interesse pela memória – “esa

mítica facultad de los hombres” (1997, p.72) –, assim como pela permanência do passado,

evidenciada na atração de Del Solar por Alessandri e no inextinguível desejo entre Alina e

Julián. A relação conflituosa com o pai, as possibilidade da linguagem, a oratória, o direito, o

jornalismo, são outros elementos já presentes e que ressurgirão, amadurecidos e

diversificados, no trabalho posterior de Vásquez.

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Sua obra dá um salto qualitativo na coletânea de contos Los amantes de todos los

santos. Com uma edição colombiana de 2001 e uma segunda edição feita na Espanha em

2008, o livro marca a estreia de Vásquez na editora Alfaguara, uma das maiores do mundo

hispânico, hoje parte do conglomerado Penguin Random House. O volume reúne sete contos

(cinco na edição colombiana) ambientados entre a Bélgica e a França, países em que o

escritor residiu entre 1996 e 1999. Com exceção do primeiro conto, de apenas nove páginas,

os relatos têm entre 18 e 43 páginas, nas quais Vásquez aprofunda temas e recursos

estilísticos que caracterizarão sua obra madura.

Um aspecto singular, no entanto, é a ausência quase absoluta de referências à

Colômbia, com a única ressalva do conto “Lugares para esconderse”, em que o personagem

narrador tem um artigo encomendado por uma revista colombiana e é, ele próprio,

provavelmente colombiano, embora não haja mais que indícios sugerindo essa possibilidade

(o texto da quarta capa, porém, coloca-o taxativamente nessa condição). No mais, os contos se

internam em uma paisagem alheia à América Latina, narrando as vicissitudes de belgas,

franceses e indivíduos de nacionalidade incerta. O cenário principal é a região das Ardenas,

onde transcorrem quatro dos sete relatos (além de parte de um quinto). Por informações

extratextuais – da orelha do livro anterior a entrevistas dadas por Vásquez –, sabemos que o

escritor viveu durante cerca de um ano na região, mas não há o intuito de uma caracterização

documental. As Ardenas do livro, mais que um lugar específico, representam uma geografia

de fragilidade e solidão, onde nem mesmo as sólidas e antigas propriedades são capazes de

proteger os homens das perdas da vida e dos fantasmas do passado. Organizados rigidamente,

grupos mantêm a imemorial tradição da caça, mas o desejo de pertencimento é traído pelas

rupturas, pelas surpresas que vêm nem sempre do bosque, mas da escuridão dos próprios

caçadores. Não há rifle que previna o fim de um casamento, um suicídio entre os amigos, uma

traição dentro de casa. Não há cão suficientemente destro para farejar os acontecimentos que,

como animais sorrateiros, irrompem em nossa vida para mudar-lhe o curso definitivamente.

São essas questões, de cunho fundamentalmente existencial, que Vásquez extrai do

tópico da caça, tão inusitado para a literatura hispano-americana como o cenário das Ardenas,

região que – diferentemente de Paris – provavelmente faz sua estreia nas letras da América

Latina. Temas centrais de sua obra, como a permanência do passado e a reformulação das

lembranças, amadurecem aqui e atingem, em alguns casos, a elaboração conceitual que

aparecerá nas obras seguintes. Exemplo é o conto “El inquilino”, em que o casal Georges e

Charlotte não consegue se livrar da lembrança do amigo Xavier, que anos antes fora amante

de Charlotte e, mesmo preterido, continua a frequentar a residência do casal. Entregue ao

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álcool e jamais curado do amor perdido, Xavier se suicida no meio de uma manhã de caça, e

sua trágica decisão desata um aluvião de recordações em Charlotte e Georges. Este se dá

conta de que o gesto do amigo modificará para sempre as lembranças que tinham dele. “Lo

que más lo sorprendía era la forma en que la imagen de Xavier comenzaba a cambiar: ya esas

memorias estaban viciadas por el suicidio” (2008, p.85). Xavier estará para sempre presente

na memória do casal.

Era una inocencia o una ingenuidad creer que el pasado era capaz de enterrar a sus

muertos. A partir de esa noche, Moré se apropiaría de una parte de la casa: sería un

inquilino permanente, alguien a quien Georges vería con sólo voltear la cabeza […]

(2008, p.88).

A experiência do deslocamento atravessa os contos do livro. Em quase todos, os

personagens trafegam por estradas e múltiplas localidades que se alternam entre campos,

longas noites e frio intenso. Mais do que um lugar, as Ardenas são um conjunto de lugares

subsumidos na vastidão. Empregos, namoros, consultas médicas, compras – as atividades

conectam diferentes municípios e às vezes cruzam as fronteiras nacionais, chegando à França

ou à Alemanha. Excedem também os limites urbanos, imiscuindo-se no rural e contribuindo,

entre idas e vindas, para a sensação de simultaneidade que marca a vida dos personagens.

Mesmo aqueles que se aferram a um lugar sentem um desenraizamento, expresso não

necessariamente na percepção identitária, mas na transitoriedade que constatam em suas

vidas. Quase todos os títulos aludem às experiências de habitar ou deslocar-se. Em “Lugares

para esconderse”, uma artista plástica viaja para a casa do pai, nas Ardenas, fugindo da

angústia que o casamento lhe inflige. “Si por mí fuera, aquí me quedaba hasta el día del

juicio” (p.166), ela diz ao amigo escritor, que também considera a região um refúgio. Frase

quase idêntica é dita por Agatha, em “La vida en la isla de Grimsey”, quando o homem que

conheceu horas antes – o imigrante Oliveira, que chegara à França quando criança – avisa que

é hora de deixarem o motel: “Si por mí fuera, me quedaba aquí hasta mañana” (p.186).

Solitários que se encontram casualmente – como os de “Los amantes de Todos los Santos” –,

Oliveira e Agatha viajam para se distanciar do passado, da herança familiar, da perda de

alguém querido, como a filha de Agatha, que se suicidou numa seita religiosa. Ela sonha com

a ilha de Grimsey, na Islândia, onde o dia jamais acaba (p.188). Ele parte para Barcelona, para

“vivir una vida distinta y de alguna manera liberada y lista para responder al cambio” (p.214).

Em “El regreso”, primeiro conto do livro, deslocamento e memória se entremesclam

para abordar, em chave alegórica, um dos temas fundamentais da experiência da migração: a

impossibilidade de retorno ao lugar de origem. O conto narra a história de Madame Michaud,

mulher solitária e obcecada com o casarão em que vive desde a infância, nas proximidades de

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Liège. Incomodada com os planos do cunhado em relação à propriedade – reformá-la e tornar

as terras produtivas –, Madame Michaud assassina o rapaz e, por causa disso, é levada à

prisão. No cárcere, que vive como “un exilio doloroso” (p.18), ela passa o tempo inteiro

mergulhada num desenho que fez da casa. Trinta e nove anos depois, quando finalmente é

libertada, regressa imediatamente para o casarão da infância. Porém, chegando, encontra-o de

tal forma modificado – do terreno às dependências –, que é tomada por uma “confusão”, um

“desnorteamento” que a faz retroceder e afastar-se da casa, depois de quatro décadas

pensando obsessivamente nela.

Agradeció que el taxi la esperara aún, porque no estaba segura de ser capaz de

encontrar el camino de salida entre tantos senderos nuevos que conducían a tantas

nuevas dependencias, a tantas construcciones recientes que Sara había proyectado y

erigido con paciencia de artista a lo largo de treinta y nueve años, y que en muchos

casos no estaban todavía ocupadas ni cumplían función alguna, porque su única

justificación era reemplazar una memoria o un afecto en la mente de Madame

Michaud para que ahora ella, en el puesto trasero del taxi, se preguntara adónde

podría ir, qué lugar quedaba para ella en el mundo (p.21-22).

Além do deslocamento e da memória, outros temas centrais da obra de Vásquez

aparecem nesta coletânea. As tensões entre pai e filho, já presentes nos dois primeiros

romances, retornam em cinco dos sete relatos. Aqui, a figura paterna não serve de fio

condutor para investigações sobre a história nacional, como ocorre na trilogia; porém, o ponto

de vista é sempre o do filho, que se debate com uma herança que recebeu e que, na maior

parte das vezes, recusa-se a aceitar. “Porque eso era un hombre, la ropa de los que le han

precedido”, define Georges, pensando na influência que Xavier sofrera de seu pai (p.84).

Filho de um renomado ginete, Oliveira decide vender a propriedade que herdou, com

todos os cavalos, disposto a romper não apenas os vínculos com a equitação como deixar para

trás as lembranças da infância nômade, quando as consecutivas mudanças do pai privaram-no

de qualquer possibilidade de enraizamento. “Oliveira no pertenecía a ninguna parte y su padre

tenía la culpa de ello” (p.179). Já o personagem narrador de “En el café de la République”

antecipa em parte uma situação de Los informantes, ao ter um livro demolido não

diretamente, mas indiretamente pelo pai, cuja péssima reputação compromete as críticas sobre

sua obra. O protagonista sai de casa, distancia-se, mas não consegue se livrar da sombra

paterna. “Tus ironías, tus sarcasmos. Aunque no lo aceptes, todo eso lo has heredado” (p.105),

diz sua ex-mulher.

Este e outro conto (“Lugares para esconderse”) apresentam outro elemento recorrente

na obra de Vásquez: a autofiguração do escritor, bastante frequente na narrativa

contemporânea e particularmente na colombiana, como apontou Aleyda Gutiérrez Mavesoy

(2014). Há, porém, pouco em comum entre os escritores dos dois relatos, exceto a solidão que

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atravessa a obra. Solidão que raramente é fortaleza e, no mais das vezes, confunde-se com a

mais extrema fragilidade. No ateliê de Claire, em “Lugares para esconderse”, há um livro de

Giacometti com uma frase ridicularizada pelo protagonista, mas que dialoga com toda a

literatura de Vásquez: “Siempre he tenido la impresión o el sentimiento de la fragilidad de los

seres vivos, como si a cada instante les fuera precisa una energia formidable para mantenerse

en pie” (p.155).

Esta fragilidade, o medo e a sensação de vulnerabilidade são de tal forma poderosos

que aproximam adultos da condição infantil, como ocorrerá com o protagonista de El ruido de

las cosas al caer. Não são poucas, no decorrer dos contos, as imagens relacionadas a crianças.

Da mesma forma, o ato de proteger por vezes oculta a necessidade de ser protegido, como no

Leopold de “La soledad del mago”:“... los cuidados que prodigaba lo cuidaban sobre todo a

él” (p. 139). Ou então é a criança que protege diretamente o adulto, tal como a filha de Agatha

em “La vida en la isla de Grimsey”, que vela o sono da mãe, certifica-se de que ela respira,

assim como fazia, anos antes, a mãe com a filha bebê.

Entre os aspectos estilísticos, vemos a depuração de procedimentos que marcam a

escrita de Vásquez, como as comparações, os longos períodos em polissíndeto, as oscilações

do tempo mediante o uso alternado de prolepses e analepses. Mas todos esses aspectos

passariam ainda por um aprimoramento, numa evolução crescente ao longo dos romances que

analisaremos. O ritmo, por exemplo, carece da precisão que atingirá seu auge no primeiro

capítulo de El ruido de las cosas al caer. Há, por vezes, palavras em excesso, como em “Los

amantes de Todos los Santos” e “La vida en la isla de Grimsey”. Da mesma forma, as

imagens, por mais que ousadas, nem sempre são bem-sucedidas. Os contos mostram, apesar

dos acertos, um escritor em busca de um estilo.

Nos próximos romances, que analisaremos a seguir, Vásquez enriquece o tema da

memória e do deslocamento com uma virada fundamental: a inclusão do fator histórico entre

as vicissitudes dos personagens. Além disso, passa a ambientar todas as narrativas na

Colômbia, fazendo de suas tramas grandes investigações sobre o passado nacional. Os

traumas dos personagens interessam tanto como as fraturas do país, havendo estreita relação

entre eles. A perspectiva, no entanto, continua a ser a do deslocamento. Nos três romances, os

personagens deslocados têm papel decisivo no resgate de acontecimentos silenciados. As

tensões com o pai, onipresentes em toda a obra, constituem o impulso e a via de exploração

do passado. Estruturalmente, os romances são edificados como uma busca, o desvendamento

de um segredo que captura o leitor até a última linha.

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III LOS INFORMANTES

3.1 As encruzilhadas da memória

Publicado em 2004, Los informantes é o primeiro livro de Vásquez que articula a

trajetória dos personagens com as consequências de episódios históricos e sociais. É o

primeiro em que a Colômbia é tratada com profundidade, tornando-se não apenas cenário,

mas um dos temas principais do enredo. E o primeiro em que a memória extrapola a dimensão

individual e se debate entre as tensões da esfera pública. A memória, como ocorrerá nos

romances seguintes, não se limita a ser um instrumento, uma ponte entre passado, presente e

futuro. Trata-se, ela própria, de um objeto de reflexão, um campo cheio de encruzilhadas que

desafiam e submetem os personagens.

A trama se inscreve na órbita da Segunda Guerra Mundial, tema determinante para a

intensificação do interesse pela memória nas últimas décadas (HUYSSEN, 2000). Vásquez

constrói a narrativa em torno de um episódio quase esquecido da história latino-americana: as

perseguições sofridas por imigrantes dos países do Eixo depois que os governos locais,

pressionados pelos Estados Unidos (RINKE, 2015), alinharam-se ao bloco dos Aliados.

Acolhidos nas décadas anteriores, italianos, japoneses e alemães passaram a ser duramente

hostilizados, e castigados com expropriação de bens e confinamento diante de qualquer

suspeita, comprovada ou não, de que tivessem envolvimento com o nazifascismo. Famílias

foram destruídas, patrimônios dilacerados e inúmeros suicídios cometidos por pessoas

incluídas nas chamadas listas negras do Departamento de Estado Norte-Americano.

O interesse maior do romance, contudo, mais do que evocar esses acontecimentos, é

mostrar como eles continuam vivos e o quão difícil – embora necessária – é a tarefa de

rememorá-los. Cinquenta anos depois da guerra, o jornalista colombiano Gabriel Santoro

retorna àquele período numa investigação aparentemente sem fim, tamanhos os acréscimos e

revisões que suas sucessivas descobertas o obrigam a fazer. Gabriel começa com a biografia

da melhor amiga de seu pai, a judia alemã Sara Guterman, que chega à Colômbia em 1938

escapando do nazismo com a família; em seguida, ao saber que o pai tivera participação ativa

em alguns episódios, escreve uma nova obra, espécie de ampliação e revisão da anterior,

intitulada, metaficcionalmente, Los informantes; por último, um ano depois, publica um

postscriptum que, mais uma vez, determina uma nova visão dos fatos – sem eliminar, no

entanto, as incertezas que pairam sobre alguns.

Seus consecutivos esforços confirmam o que escreveu Ricouer (2005, p.35-40) sobre

o passado: diferentemente do que creem, não é apenas o futuro que está aberto e

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indeterminado; também o passado está sujeito a novas interpretações, capazes, inclusive, de

influenciar o rumo de nossos projetos. O que temos supostamente de mais familiar – o pai –

guarda segredos suficientes para desfazer nossas convicções mais férreas. Não há histórias

definitivas, nem relatos que digam tudo. Toda narrativa tem necessariamente uma dimensão

seletiva que condena à parcialidade o que se conta. Iluminam-se alguns aspectos, mas outros

ficam obrigatoriamente na escuridão (RICOEUR, 2007, p.455).

O romance faz ao mesmo tempo uma reconstrução memorialística e uma reflexão

sobre a memória. Este duplo propósito é favorecido pela estrutura metaficcional, em que, tão

importante quanto os fatos, é o percurso de sua revelação. A escolha de um narrador jornalista

permite uma indagação múltipla sobre diferentes etapas da investigação histórica. Profissional

híbrido por excelência, o jornalista se move por fronteiras difusas, entre as quais a da história

e a da literatura. Uma boa reportagem é sempre uma pesquisa e uma narrativa. Uma entrevista

é a interpelação de uma memória e a confecção conjunta de uma história. Em todos esses

momentos, Gabriel Santoro adverte armadilhas, obstáculos psíquicos, políticos, éticos.

Barreiras de toda sorte se levantam em seu percurso.

As complicações começam pela fratura quase irremediável entre os que querem

lembrar e os que querem esquecer. As pessoas mais próximas do jornalista – Sara e seu pai –

representam, emblematicamente, os dois extremos dessa tensão. Atormentado pela culpa,

Gabriel pai é incapaz de esquecer a traição à família Deresser, mas torce para que as listas

negras desapareçam definitivamente da memória pública do país. Sara, em contrapartida, fala

com avidez sobre sua experiência, mas tem os anseios de recordação tolhidos pelos filhos e

pelo pacto de silêncio estabelecido com Gabriel. Já Enrique, o amigo traído, compartilha as

lembranças com a família, mas não admite levá-las para fora de casa.

Tão rígidas são as amarras da memória, que somente um acontecimento fortuito

permite ao narrador contar sua história. Não fosse a morte trágica de Gabriel e a estridente

irrupção de Angelina – que, perante câmeras e holofotes, escancara ao país as infâmias do

professor de retórica –, a investigação do protagonista teria atolado no marasmo, no

infrutífero embasbacamento com a capacidade de superação do pai. Há, no lugar disso, a

inevitável queda da glória para o opróbrio, o ilustre membro da sociedade rebaixado à

condição de pária. Tão importante é a transformação do pai que a ela se referem os títulos de

todos os capítulos (“La vida insuficiente”, “La segunda vida”, “La vida según Sara

Guterman”, “La vida heredada”).

A ameaça de esquecimento, pois, atravessa o romance de Vásquez. As barreiras

impostas no âmbito privado estendem-se à esfera pública, onde são reforçadas por novas

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práticas de silenciamento. Se na Colômbia do livro há uma política predominante em relação

à memória, esta se caracteriza pela omissão de fatos traumáticos ou capazes de provocar o

dissenso. A ideia de uma nação católica, solidária e unida é imposta a fórceps nas cerimônias

de governo, homenagens, celebrações de dias pátrios. As comemorações – que Ricouer (2007)

considera um dos recursos mais frequentes de manipulação da memória – disseminam-se de

tal forma que constituem uma tradição (VÁSQUEZ, 2004, p.25). São ocasiões em que uma

mesma história é contada e recontada infinitas vezes, sem brechas que possibilitem a

expressão de novas vozes, a ressurreição dos mortos excluídos das narrativas dominantes.

Lugares de memória aparecem enxovalhados (como os monumentos cobertos de

fezes) ou atuando na direção contrária (como os arquivos, onde a memória, ao invés de

protegida, é transformada em lixo). “El funcionario que me la dio me confesó la verdad. Esos

papeles los cortaban en tiras y los ponían junto al mesón de trámites, para que la gente que iba

a poner la huella tuviera con qué limpiarse los dedos”, diz Enrique (p.316). Os meios de

comunicação, por sua vez, abordam a história com sensacionalismo e ligeireza. O

entrevistador de Angelina lamenta que as listas negras estejam “tristemente olvidadas entre el

gran público” (p.194), mas não ajuda a mudar a situação ao enveredar pela futricagem, o

desagravo raivoso de uma mulher abandonada.

Numa sociedade de vínculos frágeis, selados pelo casuísmo e a hipocrisia, o fantasma

da proscrição é um motivo a mais para não falar. O pertencimento é uma condição provisória

e sempre mantida a um alto preço. “Vaca sagrada” da sociedade (p.25), Gabriel sabe que cairá

em desgraça se as comportas de seu passado forem rompidas. Não há, por isso, vestígios da

juventude em seu apartamento nem, muito menos, documentos que o apontem como

informante das listas negras (p.223). A herança do banimento também é um fardo do qual se

esquivam, ou tentam esquivar-se, os filhos de Sara – que a proíbem de contar o passado aos

netos – e Enrique, que assiste muito jovem ao aniquilamento social do pai.

Ao silenciamento da memória, sucede então o inevitável: o passado começa a ser

usurpado. Por vezes num revisionismo flagrante, como quando Gabriel, desesperado com o

livro do filho, tenta difundir um episódio fictício de sua vida, no qual aparece não como

delator, mas como vítima de uma delação injusta (p.70-71). Outras vezes, num efeito inercial

– o hábito de não dizer, de não lembrar as coisas como foram –, que provoca um

deslocamento inicialmente suave, mas depois deletério dos fatos do passado. É o que ocorre,

por exemplo, quando uma revista antepõe o adjetivo “suposto” ao antissemitismo do ministro

López de Mesa – o mesmo que, entre outras declarações, disse que os judeus tinham “una

orientación parasitaria de la vida” (p.266). “Yo entiendo que el tema sea difícil de tratar entre

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os ciudadanos colombianos, pero no debería serlo en los medios”, protesta a livreira que

decide enviar uma carta de reclamação à revista (p.269).

Há, como este, inúmeros casos de inadequação – ou no mínimo tensão – entre palavras

e coisas no livro. A palavra ora diz pouco, ora diz mal, ora diz nada. E tudo o que diz depende

do contexto. Já nas primeiras páginas, após citar um fragmento da biografia de Sara, Gabriel

observa que alguns termos, como “Auswanderer” e “listas negras”, haviam mudado de

significado depois da publicação de sua obra (e, principalmente, das descobertas que fez sobre

o pai, das quais saberemos adiante). A instabilidade do passado necessariamente estende-se às

palavras. Até mesmo seu nome passa a significar outra coisa depois de perder seu homônimo

mais próximo (p.104):

Rellenando los formularios de la cremación había escrito, por primera vez en mucho

tiempo, el nombre completo de mi padre, y me había estremecido el automatismo de

mi mano, que había memorizado esos movimientos a través de años de escribir

Gabriel Santoro, pero siempre refiriéndose a mí, no a un muerto. El contenido de mi

proprio nombre, aquello que nos parece inmutable (aunque no sea más que por la

fuerza de la costumbre), se estaba transformando (VÁSQUEZ, 2004, p.104).

Essa mutabilidade dos significados – sua historicidade, seu condicionamento às

circunstâncias – é expressa também nos comentários de Peter Guterman sobre o nome Europa

(p.38-39) ou na resposta de Gabriel sobre a petrolífera “Troco”, em que o pai trabalhara: “Es

un nombre de empresa. Como cualquier otro nombre. No quiere decir nada” (p.108). Ou seja,

não quer dizer nada por si, depende do contexto. Significativamente, na página seguinte,

Angelina afirma que Gabriel pai, sim, importava-se muito com os nomes (p.109). Embora se

refira aos rótulos dados aos relacionamentos, podemos estender a preocupação a outras coisas,

ao desejo de nomeá-las e, com isso, controlá-las. “Nomear é apropriar-se”, já disse Stephen

Greenblatt (1989) em seus estudos sobre a conquista da América.

Se a memória pública, como escreveu Hugo Achugar (2006, p.183), resulta de um

constante embate de memórias, é nas palavras que se travam algumas das principais batalhas.

Palavras são instrumentos de poder e podem agrilhoar memórias e esvaziar experiências10

. É

inadmissível, diz Sara (p.83), empregar o mesmo termo – “campo de concentração” – para

designar os Läger dos nazistas e os locais de confinamento para imigrantes do Eixo. Colocar

o Hotel Sabaneta na categoria de Auschwitz é amenizar os horrores deste, esquecer aquilo que

não pode ser esquecido: “el lenguaje no nos puede hacer estas trampas. Una cosa es una cosa

y otra cosa es otra cosa”, diz ela (p.83).

10

Convém lembrar a definição de Roland Barthes, segundo quem a língua “é simplesmente fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (1978, p.13).

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Esta postura rigorosa contrasta com a leviandade do padre e do representante da

prefeitura que, nas exéquias de Gabriel pai, repartem adjetivos genéricos entre frases prontas,

servindo para soterrar, e não invocar, a memória do morto. Contrasta também com o

“desapego” e o “cinismo” com que Gabriel pai maneja as palavras, usando-as como

“herramienta para mirar desde arriba” (p.305). Considerando o lugar da oratória no

imaginário social colombiano – que ainda hoje não esqueceu o epíteto “Atenas sul-

americana” dado a Bogotá no século XIX11

–, é notável que o romance concentre no mesmo

personagem a defesa do esquecimento e a maestria na arte de falar – ou “de falar de tal modo

que se consiga persuadir o interlocutor”, como se definia a eloquência nos primórdios da

retórica (TODOROV, 1991, p.171). No longo percurso trilhado a partir de então, a retórica

não raro atingiu o esplendor divorciando-se da verdade, da moral e da responsabilidade

política. Sofistas como Górgias e Protágoras, por exemplo, diziam que “não há qualquer

necessidade, para quem queira tornar-se um orador, de se instruir acerca do que é realmente a

justiça, mas sim do que sobre isso pode pensar a multidão, uma vez que é justamente ela

quem julgará” (apud TODOROV, idem, p.173). Já estetas como Quintiliano pregavam a

palavra por si mesma, voltada unicamente para a beleza e sem nenhuma intenção de utilidade.

“O encanto das letras é mais puro se elas se afastam da ação, ou seja, do trabalho, e se podem

fruir da sua própria contemplação”, dizia (idem, p.180).

Essas duas concepções parecem influenciar particularmente a prática de Gabriel pai,

orador reverenciado que, durante 20 anos, ministrou o curso da Suprema Corte de Justiça

colombiana. A um aluno que menciona as ideias de um discurso, ele rebate: “Las ideas no

importan, las ideas las tiene cualquier bestia” (p.22). Sobre um célebre discurso de sua

autoria, afirma: “La última frase es una estupidez, pero el alejandrino es bonito” (p.27).

Recordando-se desta ocasião, Gabriel filho observa, ironicamente, que o pai “habló de

reconstrucción y de moral y de perseverancia, y lo hizo sin ruborizarse, porque se fijaba

menos en lo dicho que en la figura usada para decirlo” (p.26-27).

O antagonismo entre os dois, portanto, radica-se não apenas na tensão entre lembrar e

esquecer, mas em duas visões opostas da linguagem. Enquanto o pai, defensor do

esquecimento, comunica-se estritamente pela oralidade, manifestando desprezo pelos

significados, o filho confia no poder ordenador da escrita, sempre em busca de provas para

confrontar aos testemunhos que colhe. Longe de se esgotarem em si – como os discursos

11

Alcunha herdada da geração de gramáticos, filólogos e lexicógrafos que orbitou o poder na segunda metade do século XIX – alguns deles atingindo a presidência. Sobre o tema, ver “Miguel Antonio Caro y amigos: gramática y poder en Colombia” (DEAS, 2006) e “Limpia, fija y da esplendor: el letrado y la letra en Colombia a fines del siglo XIX (Walde, 1997).

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autotélicos de Quintiliano –, os livros de Gabriel filho provocam reações imediatas: o

desespero do pai, a carta de Enrique, a agressividade de Sergio. A rememoração dos fatos

impacta a memória pública e reverbera na memória individual dos envolvidos. Depois de ler

Los informantes, Enrique se mostra arrependido pelo tratamento dispensado a Gabriel. “Si

hubiera leído tu libro antes, si hubiera sabido lo que había detrás de su visita, tal vez no le

habría dicho lo que le dije” (p.309).

É possível que, no decorrer do romance, o leitor se pergunte o que o protagonista

afinal investiga: o passado do pai ou a história do país? Essas duas instâncias, a individual e a

coletiva, mostram-se inextricáveis. São os meandros da memória familiar que conectam

Gabriel com o passado colombiano; é o passado colombiano que ilumina sua história familiar

– sem primazia de um sobre o outro. Após a morte do pai, Gabriel se assume como herdeiro e

executor testamentário – ou seja, responsável por fazer cumprir as disposições finais do

morto. E estas, antes mesmo do perdão, incluem o desejo de ser lembrado, que já expressara

ao batizar o filho com o próprio nome, destinando-o a ser a evocação permanente de sua

memória. “El nombre de mi padre lo reconoce cualquiera, y no sólo porque sea el mismo que

firma este libro”, diz Gabriel filho, em uma das primeiras páginas (p.21).

Esta função rememorativa é confirmada mais adiante, em uma passagem de grande

força simbólica, quando Gabriel se torna guardião do documento que dá ao pai o direito de ser

enterrado ao lado da mulher – espécie de vale-túmulo que levará na carteira por muitos anos.

A simbologia é ainda mais clara se pensarmos no túmulo como um lugar de memória, tendo

inclusive a mesma origem etimológica que a palavra signo.

O fato de a palavra grega sèma significar, ao mesmo tempo, túmulo e signo é um

indício evidente de que todo trabalho de pesquisa simbólica e de criação de

significação é também um trabalho de luto. E que as inscrições funerárias estejam

entre os primeiros rastros de signos confirma-nos, igualmente, quão inseparáveis são

memória, escrita e morte (GAGNEBIN, 2006, p.45).

Los informantes, nos diz o narrador (p.94), é uma herança deixada pela morte de seu

pai, que lhe deu, postumamente, sua maior lição: a da mutabilidade do passado e sua

permanência incontornável no presente. O livro nasce da “obligación de descubrirlo,

interpretarlo, averiguar quién había sido en realidad” (p.261) – ou seja, parte do

desconhecimento, como todas as narrativas que compõem a trilogia. Esta mesma perspectiva

aparece quando Gabriel cita os motivos que o levam a escrever sobre a vida de Sara.

Darme cuenta: esa era mi intención, sencilla y pretenciosa al mismo tiempo; y

pensar en el pasado, obrigar a alguien a recordarlo, era una manera de hacerlo, un

pulso librado contra la entropía, un intento de que el desorden del mundo, cuyo

único destino es siempre un desorden más intenso, fuera detenido, puesto en

grilletes, por una vez derrotado (VÁSQUEZ, idem, p.34).

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São, portanto, as circunstâncias do presente que o impelem ao passado. Considerando

o início das entrevistas com Sara, em 1987, e o postscriptum a Los informantes, em 1995, a

produção de Gabriel se dá em oito anos dilacerantes da história colombiana, quando os

confrontos entre governo e tráfico instauram um cotidiano de pânico em cidades como Bogotá

e Medellín. As incertezas, o medo e os traumas provocados pela violência ainda não têm a

centralidade que terão em El ruido de las cosas al caer (2011), porém definem a experiência

dos personagens e a relação que estabelecem com o entorno. Cada paisagem de Bogotá é um

memento mori, diz Gabriel (p.50), mencionando sequestros, atentados, assassinatos, entre

outras brutalidades que, de tão frequentes, tornam-se corriqueiras e integram a crônica de

qualquer família. Seu avô foi morto numa guerra civil (p.23). Seu pai, ameaçado de sequestro

(p.89). Angelina perdeu os pais numa bomba (p.90) e o amante em um tiroteio (p.241). A tal

ponto se difunde o costume de matar (p.75) que o erro de um jogador tem a morte como

sentença inapelável (p.278).

É nesse país convulsionado que a memória se projeta como horizonte urgente. Ao

voltar à Colômbia dos anos 1930 e 1940, Gabriel não encontra explicações cabais, relações de

causa e efeito, mas detecta práticas semelhantes de exclusão, intolerância e hipocrisia. Judeus

são hostilizados. Alemães perseguidos. Negros rejeitados. Um homem agoniza em plena rua

sem ninguém que se solidarize (p.133). Não por acaso, o último capítulo antes do

postscriptum termina com a explosão de ódio que foi o “Bogotazo”, a série de depredações,

saques e confrontos que, em 1948, após o assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, deflagrou o

período conhecido como “A Violência”, que produziu mais de 200 mil mortos numa guerra

civil de dez anos (DEAS, 2006, p.61).

As fraturas sociais, portanto, são antigas e endêmicas na Colômbia; e, como mostra o

romance, não é o silêncio nem as dissimulações que curarão feridas. Para que o perdão seja

possível, diz Ricoeur (2005, p.35-40), é preciso um “trabalho de memória”, um esforço de

rememoração capaz de superar a repetição compulsiva (a queixa incessante, a evocação

infeliz dos mesmos acontecimentos) e afrontar o trauma por meio das lembranças. A culpa de

Gabriel, o rancor de Enrique, o silêncio de ambos sugerem que, na maior parte do tempo,

mantiveram-se enredados na evocação repetitiva do trauma – Gabriel ouvindo o disco de

Wagner, Enrique lendo as cartas do pai (e tentando, inutilmente, imaginar o momento da

delação). Somente a reviravolta na vida de Gabriel – a bem-sucedida cirurgia renovando suas

perspectivas – o faz buscar a reconciliação com o passado, para a qual o perdão de Enrique é

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condição essencial. Enrique, no entanto, recusa-se a perdoar o ex-amigo e diz, precisamente,

que o havia excluído da memória.

Lo menosprecié mucho, Gabriel, y me arrepiento por eso. Menosprecié su esfuerzo.

Lo que él hizo, viniendo aquí a hablar conmigo, no es para todo el mundo. Pero

nuestra posición en este momento era muy distinta: él había pensado mucho en mí, o

por lo menos eso me decía. Yo, en cambio, lo había borrado de la mente (p.303).

O romance aponta o risco de um círculo vicioso em que as desavenças são eternizadas

sem a possibilidade de perdão. Esta ameaça é encarnada por Sergio, o colérico filho de

Enrique, que desconhecia a história da família até a publicação dos livros de Gabriel: “la cosa

también es conmigo, no sólo con mi papá”, esbraveja (p.292), sentindo como material

candente o passado longamente ignorado. “¿Era posible decir que el tiempo se había movido

en nuestro caso?”, pergunta-se por sua vez Gabriel (p.293). “Los hechos estaban presentes;

eran actuales, inmediatos, vivían entre nosotros; los hechos de nuestros padres nos

acompañaban” (idem).

Esta permanência corrosiva é um fator de opressão que, cinquenta anos depois,

Gabriel pai e Enrique tentam expurgar – o primeiro pedindo perdão, o segundo se

aproximando de Gabriel filho. A hospitalidade de Enrique, neste sentido, sugere um perdão a

posteriori, embora pareça, mais do que tudo, ditada pelo remorso que sente após a morte de

Gabriel. Cria-se então uma atmosfera dúbia entre o lugar da vítima e o do ofensor. A

possibilidade de Gabriel – frustrado com o perdão negado – ter se matado na rodovia devolve

a Enrique a culpabilidade que acossou o amigo durante as décadas anteriores. Se a delação de

Gabriel pôde ter provocado o suicídio de Konrad, o excessivo rancor de Enrique custava

agora a vida de Gabriel. Fincado nesta ambiguidade, o romance termina num tribunal atípico,

em que Gabriel e Enrique são simultaneamente julgados, vítimas e réus ao mesmo tempo.

Pois, se o primeiro traiu uma amizade, o segundo impediu que a esperança de uma nova vida

se materializasse.

Vásquez, assim, problematiza a noção de verdade, tão usurpada pela historiografia

tradicional de corte positivista, que a impõe como unívoca e redutível à verificação factual.

Em suas teses “Sobre o conceito da história” (1940), Walter Benjamin já dizia: “Articular

historicamente o passado não significa conhecê-lo „tal como ele propriamente foi‟. Significa

apoderar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja num instante de perigo”

(BENJAMIN, 1987, p.224). Ao comentar este fragmento, Jeanne Marie Gagnebin (2006,

p.40) destaca a diferenciação entre o ato de articular e o propósito positivista de descrever,

precisa e exatamente, o passado, algo que Benjamin considerava impossível do ponto de vista

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epistemológico, além de indesejável por razões éticas e políticas. Basta lembrar, entre outros

fatores, a massiva eliminação de rastros feita em genocídios como a Shoah.

A trama se move pelas ramificações de um episódio não narrado: a delação de Konrad

por Gabriel. Tudo o que sabemos dela vem do relato de terceiros – Sara, Angelina, Enrique –,

que não testemunharam a denúncia e, portanto, desconhecem suas circunstâncias. Mesmo o

reconhecimento de culpa por parte de Gabriel (p.181) não é suficiente para esclarecer uma

dúvida que uma leitura atenta deixa em suspenso: teria sido a delação realmente injusta? Não

seria a postura de Konrad de fato condenável? Ao adular Hans Bethke na frente de Sara, não

teria sido ele o traidor, considerando as violências sofridas pela família Guterman e a ajuda

que lhe dera generosamente na Colômbia? Sara diz que, apesar do desprezo sentido por

Gabriel, também teria delatado Konrad (p.252). A ambiguidade do personagem é reforçada

por sua paixão por Wagner e, especialmente, Os mestres cantores de Nuremberg, a ópera

mais cultuada pelo Terceiro Reich, que a incluiu em eventos multitudinários, como os

congressos de Nuremberg, e em peças fundamentais da propaganda nazista, como o filme O

triunfo da vontade (1935), de Leni Riefenstahl.12

3.2 O imperativo da reflexão

As névoas que encobrem a delação – e dão aos personagens uma complexidade

infensa a julgamentos cabais – espalham-se na verdade por todo o romance, que assume a

ambiguidade como elemento indispensável para uma abordagem crítica da memória. Lacunas

e contradições aparecem não apenas na matéria investigada, mas também no investigador, nas

razões que o movem, nos procedimentos que adota e, inclusive, na eficácia de seu trabalho. A

provisoriedade de seus esforços – que jamais podem ser concluídos frente à mobilidade do

passado – realça a impossibilidade de uma postura ingênua em relação à escrita e à memória.

O romance mostra o amadurecimento do protagonista a esse respeito. Los informantes,

livro que Gabriel escreve dentro da obra, é não somente uma herança da morte do pai, como

ele mesmo diz (p.94), mas também uma resposta às omissões de seu livro anterior, Una vida

en el exilio, que ao contar a vida de Sara evoca as listas negras sem mencionar uma única vez

seu pai. Nesta nova tentativa, Gabriel não consegue evitar novos erros13

, mas se mantém

12

Além disso, pesquisadores do compositor alemão, como Barry Millington (1991), apontam o antissemitismo subjacente à obra, especialmente na caracterização do personagem Beckmesser, cantor medíocre e desleal derrotado pelo herói da ópera. 13

Como quando acredita que o pai estava apenas começando a estudar alemão, idioma que, depois vem a saber, dominava na juventude. A retificação é feita no terceiro escrito contido no romance, o “Postscriptum de 1995”, fruto de seu encontro com Enrique.

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permanentemente desconfiado, colocando em xeque tudo o que ouve, o que lembra e o que

escreve.

O personagem recorre o tempo inteiro à memória, em recordações próprias e

interpelações a terceiros, porém alerta para as ciladas e sinuosidades da lembrança. Gabriel

sabe que, mesmo inconscientemente, a memória segue rumos tortuosos que, com frequência,

se distanciam do ponto de partida. Com maior ou menor intensidade, lembrar é sempre criar, e

por isso ele busca documentos capazes de corrigir sua memória quando necessário (p.94). É

preciso, conforme afirma, obter provas que extrapolem o campo meramente imaginário

(p.285),

No soy escéptico por naturaleza, pero tampoco soy ingenuo, y sé muy bien de qué

magias baratas puede valerse la memoria cuando le conviene, y, al mismo tiempo, sé

que el pasado no es inmóvil ni está fijo, a pesar de la ilusión de los documentos:

tantas fotografías y cartas y filmaciones que permitem pensar en la inmutabilidad de

lo ya visto, lo ya escuchado, lo ya leído. No: nada de eso es definitivo (p.94).

A postura cautelosa, no entanto, não lhe tolhe o ímpeto de rastreador secreto de

memórias, desbravador de espaços íntimos obcecado em capturar lembranças que, reprimidas

ou manipuladas, correm o risco de se perder. A ameaça de esquecimento paira

particularmente intensa sobre a época que investiga, a Segunda Guerra Mundial, cujos

sobreviventes são cada vez mais raros – e seus herdeiros nem sempre estão interessados em

rememorar o passado familiar. Este aspecto do romance capta com perspicácia uma mudança

fundamental na memória da Segunda Guerra. Com a morte da maioria das testemunhas, as

reconstruções memoriais têm sido cada vez mais realizadas por herdeiros diretos e indiretos

do conflito. Assim, no lugar da memória testemunhal, surge uma memória que o professor

norte-americano James Young (2000) denominou de “vicária” – ou seja, exercida por quem

não viveu diretamente as experiências lembradas. Outra categoria proposta para designar

praticamente o mesmo é a de “pós-memória”, concebida por Marianne Hirsch (1997); em

linhas gerais, refere-se à memória dos filhos sobre a memória dos pais.14

Sabe-se que fatos não experimentados podem ser lembrados se fizerem parte de um

cânone de memória familiar, escolar, individual, política (lembro que meu pai

lembrava..., lembro que na escola ensinavam..., lembro que aquele monumento

lembrava... etc.), e se traduzem num discurso distante de quem exerce a memória a

partir da experiência vivida (WALDMAN, 2009).

O alheamento dos filhos de Sara, assim como dos descendentes de outros alemães –

“gente que [...] en algunos casos ni siquiera había escuchado la lengua fuera de las

interjecciones o los insultos de un abuelo rabioso” (p.265-266) –, ilustra o isolamento de

14

Não entrarei aqui nas críticas, bastante duras, que Beatriz Sarlo (2005) faz aos dois acadêmicos e suas conceituações teóricas.

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Gabriel, o caráter solitário de sua jornada. “Seamos realistas, tú y yo estamos solos. Estas

historias ya no le importan a nadie”, lhe diz Enrique (p.334). A solidão do protagonista é

reforçada por sua condição de órfão. Gabriel começa o romance sem a mãe, perde depois o

pai e, por último, fica também sem Sara, que considerava parte de sua família. Para além do

impacto pessoal, as duas mortes representam para ele o desaparecimento, talvez irremediável,

de experiências que desejava ver transmitidas.

Yo recordaba las palabras grabadas, levantaba la cabeza para ver a los otros

comensales – mi familia – y pensaba eso que es siempre increíble: esto pasó a

ustedes. Esto, que pasó hace medio siglo, les pasó a ustedes, y aquí están ustedes,

vivos todavía, fungiendo como testimonio tangible de hechos y circunstancias que

quizás morirán cuando ustedes mueran, como si ustedes fueran los últimos seres

humanos capazes de bailar un baile andino que nadie conoce, o como si supieran de

memoria la letra de una canción que nunca se ha puesto por escrito y que se perderá

para el mundo cuando ustedes la olviden (p.85-86, grifo do autor).

Gabriel se nega a aceitar essa perda; insurge-se contra o esquecimento, convencido da

importância de lembrar o passado e buscar com isso um esclarecimento sobre o presente. A

luta pela memória – que se confina e esvanece entre culpas e rancores – o impele ao interior

de residências, escarafunchando gavetas, remexendo fotos e surrupiando cartas de arquivos

familiares. Sua principal justificativa, que não chega a formular, é o chamado “dever de

memória” (HEYMANN, 2006), ou seja, o compromisso de não deixar que certos

acontecimentos caiam no esquecimento, sob o risco de que voltem a ocorrer. Um exemplo

desse esforço é a série de conferências que organiza com Sara, objetivando, precisamente,

evocar fatos esquecidos cuja discussão, em meio às comemorações dos 50 anos da Segunda

Guerra, tornava-se, “más que permisible, pertinente y necesaria” (idem, p.266).

O trabalho de Gabriel está ligado ao que Walter Benjamin chama de rememoração

(Eingedenken), que contém diferenças fundamentais em relação à comemoração, como diz

Jeanne Marie Gagnebin. Enquanto esta “desliza perigosamente para o religioso ou, então, para

as celebrações de Estado, com paradas e bandeiras”, a rememoração, em vez de repetir aquilo

de que se lembra, “abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer,

com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança

nem à palavra” (GAGNEBIN, 2006, p.55). “A rememoração também significa uma atenção

precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois

não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente”,

complementa Gagnebin (grifo da autora).

O passado que o pai queria ver adormecido torna-se um mar encapelado a partir das

circunstâncias do presente. Não por acaso, o eminente mestre de retórica expressava horror ao

jornalismo e outras práticas que, fincadas na atualidade, movem-se naturalmente por outros

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tempos. Recordando-se do desprezo, dos sarcasmos aparentemente inofensivos com que o pai

diminuía seu trabalho, Gabriel filho diz que “nada le generaba tanta desconfianza como

alguien que se dedica a lo contemporáneo [...]. Prefería tratar con Cícero y Herodoto; la

actualidad le parecía una práctica sospechosa, casi infantil [...]” (p.62). Este temor incute a

compreensão da continuidade do passado, a consciência de que não há histórias definitivas

nem silêncios incapazes de ser quebrados.

O livro de Vásquez não faz uma defesa incondicional da memória. Para o autor, a

importância da rememoração não a isenta de um exame crítico. Por mais frutíferos que

possam ser, os procedimentos do protagonista lhe causam conflitos éticos que ecoam por toda

a obra. Reiteradas vezes, Gabriel se define como um ladrão – de memórias, histórias,

documentos –, alguém que, traindo a confiança dos outros, rouba experiências para escrever

seus livros. Longe de ser inédita, a ideia da escrita como fruto de um roubo já foi usada por

escritores como Ricardo Piglia (1973), em referência a Roberto Arlt, e John Banville (2015),

em recente entrevista à BBC. Contudo, na obra de Vásquez, a alusão tem outra complexidade,

já que a „mercadoria‟ roubada é, muitas vezes, uma lembrança traumática que se deseja ver

esquecida. É o que protesta Gabriel pai, exaltado, sem saber que a exposição que temia

ocorreria somente depois de sua morte.

La memoria no es pública, Gabriel. Eso es lo que ni tú ni Sara han entendido.

Ustedes han hecho públicas cosas que muchos queríamos olvidadas. [...] Por eso te

habría denunciado, por estafador, además de mentiroso (p.74-75).

As acusações não detêm Gabriel, mas reverberam em seu pensamento até o fim do

romance. Ao ir ao encontro de Enrique, ele pensa no “oficio cobarde y parasitario de referir la

vida de los demás, así sean los demás gente tão próxima como un padre o una buena amiga”

(p.284).

Al dármelas, al permitirme el acceso a ellas aunque fuera por una noche, había confiado en mí.

Pero las cosas no salieron como ambos lo hubiéramos preferido: tan pronto como leí la primera

carta supe que acabaría por traicionar esa confianza, y al llegar a la mitad de la segunda me

puse en la tarea de traicionarla (p.321).

Se o fim muitas vezes justifica os meios, como poderia dizer Gabriel, este argumento

se invalida quando as buscas cedem vez ao voyeurismo e o personagem viola intimidades sem

qualquer propósito que não seja o de satisfazer suas ânsias mais recônditas (p.222).

Soy de los que abre puertas de baños ajenos para mirar qué perfumes, o qué

analgésicos, o qué anticonceptivos usan los otros; abro mesitas de noche, esculco,

miro, pero no busco secretos: encontrar vibradores o cartas de un amante me interesa

tanto como una billetera vieja o un antifaz para dormir. Me gustan las vidas ajenas;

me gusta examinarlas a mis anchas. Es probable que al hacerlo viole varios

principios de la discreción, de la confianza, de las buenas maneras. Es muy probable (p.222).

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Em momentos como esses, Gabriel se entrega a um impulso voluptuoso cuja falta de

utilidade prática assemelha-se às conexões lascivas que, segundo Barthes (1987), leitor e

escritor estabelecem com o texto literário. O protagonista se diz guiado por “perversiones” e

“fetiches” (p.222), palavras bastante usadas pelo autor francês na descrição sensualista que

faz da literatura. “O texto é um objeto fetiche e esse fetiche me deseja”, escreve Barthes em O

prazer do texto (1987, p.37). “Perversidade do escritor (seu prazer de escrever não tem

função), dupla e tripla perversidade do crítico e do seu leitor, até o infinito”, comenta em

outro fragmento (idem, p.25, nos dois casos grifo do autor)15

.

A perversão do personagem é reforçada por referências sexuais que, embora discretas,

aparecem em diversos trechos, estimulando sua curiosidade e alimentando suas culpas. Logo

no começo, Gabriel relata a angústia que sofreu quando jovem ao saber que o diagnóstico de

câncer de sua mãe foi dado no mesmo dia em que teve uma das primeiras ejaculações da vida,

masturbando-se na frente de um catálogo de roupa íntima (p.48). Mais adiante, numa

associação parecida, diz que o pai morreu na noite em que fazia sexo com uma amiga.

A veces se me ha llegado a ocurrir la posibilidad de esa coincidência: que T se

hubiera sentado encima de mí y estuviera bajando y subiendo sobre mi erección

como suele hacerlo, justo en el momento en que mi carro (manejado por mi padre) y

el bus de Expreso Bolivariano (manejado por un tal Luis Javier Velilla) se

desbarrancaban juntos a pocos kilómetros de Medellín (p.96-7).16

Desprezadas inicialmente, as críticas de um resenhista – que o acusa de narcisismo e

exibicionismo (p.272) – levam Gabriel a considerar que, talvez, transformar em público o

privado seja “un comportamiento tan enfermo como el de los hombres que van por las calles

mostrándoles a las mujeres una verga gruesa por el simple placer de chocarlas” (idem). As

reclamações de um amigo – contrariado por ser inadvertidamente incluído no livro – também

o deixam ressabiado ao comparar sua obra com a entrevista despudorada de Angelina.

Gabriel beira o incestuoso ao ligar para Angelina da cama do pai morto, perguntando,

em certo momento, como ela está vestida. Antes do telefonema, encontra um exemplar do

Kama Sutra e chega a imaginar o pai e a namorada em uma das posições indicadas no livro.

„“Cuando ella sujeta y masajea el lingam de su amante con su yoni, esto es Vadavaka, la

Yegua‟. Angelina la yegua masajeaba el lingam de mi padre, aquí, en esta cama [...]” (idem,

p.226).

15

Em artigo para o jornal Público (2013), o escritor português Valter Hugo Mãe também se reconheceu nesta condição: “O escritor é um pervertido porque é tentado pela intimidade com o leitor”. 16

A experiência do sexo em um momento trágico aparece também em El ruido de las cosas al caer, quando o protagonista, Antonio Yammara, diz que estava “con una amiga” (2011, p.228) no momento da morte do candidato à presidência Luis Carlos Galán.

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As conversas com Angelina evidenciam outra contradição do protagonista. Ao mesmo

tempo que se rebela contra a manipulação das palavras – usurpando o passado e produzindo o

esquecimento –, Gabriel trata a fisioterapeuta com superioridade, ridicularizando seu gosto e

o manejo que faz do idioma. “No tiene que hablar de puertas”, diz (p.235), debochando de

uma metáfora usada por Angelina. “Yo hablo como me dé la gana. Si no le gusta me callo, yo

no hablo tan bien como ustedes” (p.235), responde ela.

Neste sentido, Gabriel incorpora um dos aspectos mais pronunciados da personalidade

do pai: a soberba na utilização das palavras. Esta reprodução ressalta a complexidade de sua

relação com a herança, e nos faz atentar, mais uma vez, para o lugar sempre ambíguo que

ocupa como narrador. Gabriel esgrime interesses múltiplos em um percurso de contornos

difusos. As fronteiras entre o ético e o imoral, o pessoal e o coletivo, o público e o privado

não são as únicas que desafia em seu périplo pelo passado. Memória e história, jornalismo e

biografia também se entrelaçam em seu trabalho.

Embora se valha principalmente da memória, Gabriel adota procedimentos

historiográficos, como o amparo em documentos, a confrontação de dados e a transposição do

discurso oral para o regime escrito. As descobertas que faz sobre o pai lhe inspiram cautela

redobrada com os testemunhos. Sua postura reflete a decepção que tem com Sara, sua maior

informante, que em Una vida en exilio moldou seu relato de forma a poupar a figura do

melhor amigo. “„No te hagas la boba. ¿Tú sabías? Y si sabías, ¿por qué no está eso en el

libro? ¿Por qué no me lo contaste durante las entrevistas?‟”, revolta-se Gabriel, ao saber que

ela omitira a participação de seu pai em episódios relatados em seu primeiro livro (idem,

p.77).

A parcialidade dos depoimentos de Sara não é a única amostra da natureza dupla dos

testemunhos, sua condição essencial mas ao mesmo tempo falível. Em cada um dos

interlocutores – como Angelina e Enrique –, Gabriel pressente omissões, razões subterrâneas

por trás do que dizem. Como afirma Ricoeur (idem, p.504), por ser o “ato fundador do

discurso histórico”– ou seja, o momento de transposição da memória para a história, da

oralidade para a escrita – é natural que o testemunho seja questionado e confrontado com

outros depoimentos. “A história pode ampliar, completar, corrigir, e até mesmo refutar o

testemunho da memória sobre o passado, mas não pode aboli-lo”, diz o filósofo (idem, p.

505).

Até que ponto, no entanto, pode servir o rigor documental em um discurso parcial

como o biográfico? Teria um filho a idoneidade para escrever sobre o pai e a melhor amiga do

pai? A questão se impõe sobre os dois livros de Gabriel, porém com mais intensidade no

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segundo, já que, além de seus dois principais personagens, ele próprio se representa no texto,

assumindo sua parcialidade na perspectiva em primeira pessoa. Enquanto Una vida en el

exilio é narrado em terceira pessoa e descrito por Gabriel como “un reportaje con título de

documental para televisión” (p.13), Los informantes recebe diversos rótulos que explicitam,

antes de tudo, sua condição híbrida: “confissão” (p.271, p.272, p.285), “crônica” (p.265),

“memória” (p.273), “biografia” (p.273). Apesar das fronteiras porosas entre esses gêneros,

chama atenção a reincidência da palavra confissão, que aparece também descrevendo o

discurso de outros personagens, como Konrad, Sara e Gabriel pai. Nas entrevistas que

concedeu ao narrador, Sara, “menos que responder, se confesaba” (p.28). Já Gabriel pai diz

que, ao se casar, confessou tudo à mulher. “„La confesión es un gran invento‟. [...] „Los curas

se las traen, Enrique, los tipos sabem cómo es la vaina‟” (p.304).

Confessar-se, para Sara e Gabriel, representa a possibilidade de se aliviar do peso de

um passado que se tornou insuportável, seja pela culpa, seja pela experiência silenciada. Do

ponto de vista literário, Alberto Giordano nota que, “menos que na verdade, que é informe e

indistinta, quem se confessa pensa no futuro de seu ato”, nas possibilidades de transformação

que ele encerra (GIORDANO, 2008, p.28, tradução nossa). María Zambrano aponta o desejo

de se curar da desordem e da dispersão sofridas por uma vida quando a razão abre um abismo

entre ela e a verdade (apud GIORDANO, idem).

Este ponto salientado por Zambrano – a luta contra a desordem – é, precisamente, um

dos objetivos citados por Gabriel para explicar seu interesse pela escrita. Não por acaso seu

relato começa com uma cena de caos, destruição e descontrole provocada por um dilúvio em

Bogotá. Gabriel reconhece o que há de temerário em sair de casa nessas condições, mas ainda

assim atende ao chamado do pai e se arrisca pela cidade desgovernada. O embate com a

instabilidade prossegue por todo o livro e se estende, naturalmente, a outras instâncias. Um

pai que, do dia para a noite, converte-se no oposto do que sempre fora. Um país tomado pela

violência onde voltar para a casa é questão de sorte (p.20). Neste mundo inseguro,

inconstante, imprevisível, Gabriel se entrega à escrita com a esperança de encontrar uma

ordem, compreender um fluxo de acontecimentos que “siempre es desordenado y confuso”

(p.32).

Mas sua fé esmorece no decorrer do romance. As sucessivas revelações do passado e

as crueldades cada vez maiores da história colombiana mostram a insuficiência de seus

esforços de compreensão. O assassinato do jogador Andrés Escobar – dias depois de ser

responsabilizado pela eliminação da Colômbia na Copa – representa para o protagonista a

gota d‟água,

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un memorando [...] que subrayaba, más que la imposibilidad de entender a

Colombia, lo ilusoria, lo ingenua que era toda intención de hacerlo escribiendo

libros que muy pocos leen y que no hacen más que traer problemas a quien los

escribe (p.279-280).

Longe de fornecer respostas, os livros deixam apenas perguntas ao autor e seus

leitores. A dubiedade do protagonista o faz, simultaneamente, confiante e descrente no poder

da escrita. A reticência é expressa já na primeira página, ao dizer que “contaba o trataba de

contar” a vida de Sara (p.13, grifo nosso). A partir do quarto capítulo, o ceticismo fica ainda

maior, quando as revelações sobre o pai demolem suas convicções mais sólidas. Refazendo

com Sara a ronda final de Konrad, Gabriel observa que “nada, ni el relato más hábil, podía

reemplazar la potencia del mundo de verdad, el mundo de las cosas tangibles y de gente que

se frota contra uno y se choca contra uno [...]” (p.248-249). Mais adiante, prestes a encontrar

Enrique, refere-se à “superioridad de los hombres vivos sobre nosotros, los simples

habladores, los cuentacuentos, los comentaristas” (p.284), sentindo-se inseguro porque “sólo

había redactado un informe, mientras él lo había vivido” (idem). O próprio Enrique suspeita

ser incapaz de fazer com que o filho reviva as experiências que teve 50 anos antes. “¿Eso

cómo se hace? Hasta imposible será” (p.297).

Esta desconfiança quanto às possibilidades da narração aparece em toda a trilogia e é

decisiva para o final infeliz dos romances. Submetidos aos mais ásperos acontecimentos, os

personagens não encontram na escrita explicações que os tranquilizem, nem alimentam

esperanças quanto à receptividade e o poder transformador dos relatos. O aprendizado que

registram é o da perda da inocência. O mundo é mais inseguro do que pensavam. Não há

casulos invulneráveis, como por vezes pode sugerir o aconchego da vida doméstica. O

resultado é que, no final dos livros, o desalento e a solidão são sempre maiores do que antes

da experiência narrada.

3.3 As dissonâncias da nação

Longe de ser um mero pano de fundo, a Colômbia é um tema central do romance,

condicionando o destino dos personagens e desempenhando um papel matricial nas

infelicidades que se desenrolam na trama. A solidão de uns, o desengano de outros, as

diferentes mortes e desventuras são, em maior ou menor medida, desdobramentos de práticas

políticas hegemônicas e das inúmeras formas de violência encobertas pelo discurso nacional.

Ao erguer-se contra o esquecimento coletivo, Gabriel não se limita a rememorar um

episódio esquecido, como o das listas negras, mas aponta mecanismos de silenciamento que

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continuam a operar no presente, anulando divergências e dificultando possibilidades de

mudança. Seu maior alvo é o discurso da nação como comunidade coesa e homogênea.

Desbancar essa noção falaciosa é um esforço permanente do romance.

Da primeira à última página, Vásquez descreve diferenças asfixiadas, em um cenário

em que harmonia e coesão existem apenas nas encenações do governo. Dos anos 1930 aos

1990, a Colômbia do livro é um país intolerante, violento, imprevisível. E é também, entre os

vários traidores do romance, certamente o principal, por descumprir suas promessas e se

voltar contra os que lhe juraram lealdade – ou, ao menos, confiaram em suas possibilidades. A

perseguição sofrida pelos alemães – que, nos anos anteriores, haviam sido bem recebidos pelo

governo – mostra, de cara, que não se trata de um país confiável. “Los colombianos son unos

tramposos”, (p.35), comentavam os imigrantes antes mesmo de a ruptura com o Eixo mudar-

lhes radicalmente a sorte.

Vásquez opta por uma narrativa polifônica em que, com exceção do protagonista e de

seu pai, todos os personagens – que falam torrencialmente – experimentam o deslocamento de

alguma forma: imigrantes estrangeiros, refugiados, migrantes domésticos. É como se, para

narrar o passado do país, fosse preciso estar parcialmente fora. A história da Colômbia

emerge, com suas fraturas, violência e imposturas políticas, pela voz e o olhar dos deslocados,

aqueles que, por diferentes razões, não se sentem inseridos, autorizados, aceitos nem

identificados. Sujeitos que, com frequência, vivem crises identitárias e expõem a

provisoriedade e os altos custos do pertencimento.

Vítimas do nazismo, da violência e do preconceito, os informantes do livro são

testemunhas da experiência nacional fracassada. Ao narrar a trajetória da família Guterman,

Vásquez evoca o antissemitismo que prosperou na Colômbia nas décadas de 1930 e 1940. A

campanha contra taxistas e as depredações a estabelecimentos comerciais de judeus aparecem

no romance caracterizando um cenário hostil que, como indicam as menções a Luiz López de

Mesa, chegou inclusive às esferas governamentais. Segundo Lina María Leal Villamizar

(2011, p.2-3), um ano depois de se tornar ministro das Relações Exteriores (função que

desempenhou entre 1938 e 1942), López de Mesa emitiu uma ordem determinando aos

consulados a criação de “todas las trabas humanamente posibles a la visación de nuevos

pasaportes a elementos judíos”. Com isso, durante a Segunda Guerra Mundial, a Colômbia

impediu a entrada de pelo menos 15 mil judeus – muitos dos quais foram exterminados pelas

tropas nazistas.

Na mesma época, o mais inclemente racismo era manifestado por segmentos que se

orgulhavam de um catolicismo ardente. Esta contradição é exibida na aparição fugaz de

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Josefina Santamaría, a companheira de Konrad que, além de narrar as últimas horas do

alemão, testemunha o próprio banimento em uma procissão religiosa no coração de Bogotá.

Caminhando em busca de Konrad pelos arredores da Praça de Bolívar – lugares “raros y hasta

hostiles” (p.129) que ela não costumava frequentar –, Josefina passa por um grupo de

católicas, senhoras “muito decentes” (idem) que, sem interromper a reza, olham para ela

enojadas, dizendo: “una negra, una negra” (p.131). A hipocrisia dos bogotanos, da qual o

romance fornece sobejos exemplos, também é explicitada nesta cena, quando Josefina

menciona a separação entre homens e mulheres na cerimônia (p.132). Um cliente contumaz

estava entre os fiéis, piedoso, e logo depois das orações corre para a pensão para gozar de seus

favores. A falta de solidariedade também emerge de seu relato, quando ela conta as tentativas

vãs de conseguir um táxi que levasse Konrad, agonizante, a um hospital.

Com seus múltiplos infortúnios, os personagens expõem “los modos que la vida en

Colombia tiene para arruinar a la gente” (p.70). Não por acaso os símbolos nacionais se

projetam como uma sombra sobre os momentos mais difíceis da vida do protagonista, como a

internação e a morte do pai. No hospital, Gabriel nota que o seguro de vida é “una bandera

patria de colores desteñidos” (p.21) e o hematoma do pai tem as formas de uma província do

norte (idem). Mais adiante, quando se inteira do acidente que sacramentou sua orfandade,

Gabriel usa uma camisa com os dizeres Colombia nuestra (p.98). Embora sem o escárnio do

romance seguinte, Historia secreta de Costaguana, Vásquez não se furta a referências

jocosas, como o fato de o fundador de Bogotá, Gonzalo Jiménez de Quesada, ter sua estátua

permanentemente coberta de cocô de pombos (p.25).

As críticas mais virulentas vão para Bogotá. Perigosa e caótica, é descrita como

“ciudad de mierda” por Angelina e Gabriel (p.239, p.243, p.245), lugar “demente” por Sara

(p.250), e desperta o ódio irremediável de Enrique, que se muda às pressas depois da morte do

pai (p.297). Seus habitantes, segundo o narrador, cultivam a morbidez, a fofoca, a

mesquinharia. Assistem com indiferença a um desfile diário de tragédias. Posam de

moralistas. Deleitam-se com a ruína alheia.

Essas observações são particularmente ácidas no episódio da entrevista dada por

Angelina. Neste momento, ao descrever o sensacionalismo do programa, o gentílico

“bogotano” torna-se um adjetivo pejorativo, usado repetidas vezes. “Uno de esos programas

de interés rigurosamente local, de periodismo intenso y nocturno y sobre todo bogotano, que

hoy son tan comunes, pero que en ese año de 1992 eran todavía novidad para los ciudadanos

de esa capital ilustre”, comenta (p.193), referindo-se ainda à “emoción bogotana” (p.194) e à

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“audiencia bogotana” excitada pelo passatempo de dessacralizar “figuras más o menos

sacras” (p.194, grifos nossos).

A associação de nacionalismo e respeitabilidade – estudada, entre outros, por George

Mosse (apud PRADO, 1999, p.46) – tem inúmeros exemplos no romance. As reações à

entrevista de Angelina – com cartas furiosas endereçadas a Gabriel pai, mesmo este estando

morto – realçam a obsessão coletiva pela imagem de moralidade.

Los colombianos de bien, los colombianos solidarios, los colombianos rectos e

indignados, los colombianos católicos para quienes una traición es todas las

traiciones: todos repudiaron cuando hubo que repudiar, como buenos soldados de la

moral colectiva (p.254).

Não é fortuito que a caricatural homenagem a Gabriel pai vincule patriotismo e

santidade, ao referir-se ao “incienso de la santa inspiración patriótica” (p.102). No discurso

nacionalista, o patriotismo é tido como virtude, um requisito de integridade. E o poder é o

píncaro dos patriotas, o lugar destinado aos que se superam no amor à pátria. Por isso, ao

nomear seus escolhidos – os condecorados, os premiados, os reverenciados por diferentes

motivos –, a linguagem oficial é tão farta de alusões a esse respeito. No palavroso texto da

prefeitura, Gabriel pai é descrito como um “prócer” (p.101), um exemplo de “patriotismo

puro y noble” (p.102), ao mesmo tempo que tem exaltadas as qualidades morais e a devoção

religiosa. A vacuidade desse discurso contribui para deitar por terra qualquer argumentação

em favor de uma identidade essencialmente colombiana, já que os atributos tidos como

modelo nada mais são que uma compilação exasperante de clichês. A mesma falta de

substância se nota nas cartas com as quais Margarita, a esposa de Konrad, tenta retirar o

marido da lista negra do Departamento de Estado Norte-Americano. Para provar a lealdade de

Konrad à Colômbia, Margarita cita o fiel cumprimento de hábitos que entendemos como o

guia básico do colombiano de bem. São eles: a ida semanal à missa (p.160), o uso do espanhol

em casa e – fundamental no caso de um imigrante – a adaptação aos costumes da pátria, em

vez de impor os seus (p.160).

Note-se, no simplório rol, a presença obrigatória da língua e da religião, pilares do

conservadorismo que, após um longo período do século XIX integrando um tripé da política

nacional (a autoridade da língua, o hispanismo e a igreja católica17

), continuam presentes no

imaginário social colombiano18

. As imbricações entre língua e poder, como notamos,

constituem uma das preocupações centrais do romance. E as críticas à igreja não são

17

Sobre esta tríade, ver os já citados artigos de Erna von der Walde (1997) e Malcom Deas (2006). 18

Em 2014, a Colômbia tinha o terceiro maior percentual de católicos da América Latina (79%), segundo pesquisa do Instituto Pew (El País, 13/11/2014).

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parcimoniosas. Além da cena com Josefina – em que a hipocrisia dos fieis é desnudada: a

hostilidade das mulheres, a concupiscência furtiva de um marido –, o universo religioso é

tratado com sarcasmo em outro momento, quando um padre leviano apura às pressas, com um

bloquinho de repórter, informações sobre o defunto que, sem jamais ter visto, enaltecerá.

Um desdobramento da questão da língua – que, na concepção tradicional de nação, é

rígida e monolítica – é o embaraço que Konrad e Peter experimentam ao tentar se comunicar

em espanhol. Envergonhado com o sotaque, os erros gramaticais e o sentido dúbio de suas

frases, Konrad se sente um “productor de verrugas” (VÁSQUEZ, 2004, p.142) – ou seja, uma

aberração – e por isso submerge numa retração cada vez maior. Longe de prever a

pluralidade, o nacionalismo impõe a uniformização dos hábitos, a padronização da fala, e

estimula com isso a proscrição dos desvios.

Talvez seja Konrad no romance a maior vítima das ilusões do pertencimento e da

violência dos conceitos rígidos de identidade. Frente às dificuldades de se adaptar à

Colômbia, opta por exaltar uma ancestralidade vaga e cada vez mais remota: os antepassados

prussianos, os cristais da Boêmia. Mas os comentários de um nazista (que, embora

colombiano, nega qualquer ruptura em sua linhagem germânica) mostram que, para Konrad,

também não é mais possível, por mais que deseje, encontrar acolhida na nação com a qual

sonhava. “Cada alemán casado con colombiana es una línea perdida para el pueblo alemán.

Sí, señor. Perdida para la alemanidad (p.153)”, sentencia o nazista.

Assim, recolhido no Hotel Sabaneta, já sem a mulher e o filho, Konrad escreve cartas

que testemunham seu desamparo, um sentimento análogo ao da orfandade, por se saber

desguarnecido de qualquer proteção. À perda da nacionalidade, soma-se o desnorteio

religioso, ambos associados na desintegração da fé e das referências. “Cuál es mi religión y

cuál es mi país. Esas son las dos cosas a las que uno puede pedir y yo no tengo claro a quién

pedirle nada. Esto es lo que se llama ABANDONO total” (p.323, maiúsculas do autor). Chega

a ser irônico que, depois de tantas aflições identitárias, Konrad termine os dias com Josefina,

que dormia com ele em uma pensão barata “sin que le importara un carajo de dónde venía ni

para dónde iba ni por qué estaba en las que estaba ni cómo pensaba salir de ellas (p.134)”.

Mulher saída de uma região de deslocamentos, o Caribe, e que como prostituta acostumara-se

à itinerância, ao ir e vir de anônimos, às relações desenraizadas.

Com motivações diferentes e desenlaces opostos, as experiências de Konrad e Peter

compartilham porém várias semelhanças. Nos dois casos, a crise identitária ao chegar à

Colômbia não apenas se perpetua como se agrava com as perseguições internas (o

antissemitismo, a germanofobia) e a suspensão, mais adiante, do passaporte alemão, que os

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lança a um limbo, sem a possibilidade de recorrer a nenhum Estado. Peter, que como judeu se

insere numa longa tradição diaspórica, também sente com pesar a perda da cidadania alemã,

“como si se tratara de un objeto que se le hubiera extraviado por error, una llave caída de un

bolsillo” (p.38). Por outro lado, a ascensão do nazismo havia estigmatizado de tal modo o

idioma alemão que todos sentiam “lo terrible que era hablar en familia, usar con cariño o para

decir cosas bonitas la lengua que, para todos los efectos prácticos, era la lengua del

nacionalsocialismo” (p.142).

As dificuldades de adaptação dos dois – exacerbadas no idioma e nos contrastes

culturais – acabam fomentando um fenômeno recorrente em quem abandona um país a

contragosto. Trata-se da idealização da terra deixada e a crença num suposto poder redentor

da extraterritorialidade – como se, no caso de Peter e Konrad, a distância da Alemanha

pudesse dissolver as diferenças que fraturavam o país internamente. A esperança nesta

comunidade harmônica é simbolizada, em boa medida, no hotel da família Guterman,

batizado sugestivamente de Nova Europa. Ali, a pedido do dono, antagonismos políticos (e

preconceitos étnicos) são deixados na recepção e a diversidade se equilibra como pode, sem

desbordar para o conflito. A suposição de que esse bom convívio poderia estender-se para

todo o país é taxada de ingênua por Sara, que diz que muitos judeus incorreram no mesmo

erro (p.147). Uma ilusão parecida pode ter sido a de Konrad ao receber o casal de nazistas – e

suportar, inclusive, recriminações a seu casamento –, acreditando que, acima da adesão a

Hitler, importava o amor compartilhado pela Alemanha. Em seu ensaio “Nacionalismo e

exílio”, Edward Said adverte para essas ciladas: “Como, então, alguém supera a solidão do

exílio sem cair na linguagem abrangente e latejante do orgulho nacional, dos sentimentos

coletivos, das paixões grupais?” (SAID, 2003, p. 50).

Sara e Enrique, em contrapartida, assumem uma identidade maleável, ambígua, em

constante tensão. A inadaptação do pai representa para Enrique um antiexemplo que o faz

lançar-se na direção contrária, rejeitando a linhagem germânica e esforçando-se em ser o

exato oposto de Konrad: seguro, eloquente, sedutor. A recusa a essa herança deve-se não

apenas aos fracassos do pai, mas também aos estigmas que, como vimos, fixaram-se entre os

alemães daqueles anos. Apesar do radicalismo da juventude, Enrique chega à velhice com

uma identidade híbrida: adota um filho moreno, muda de cidade e permite que o sotaque

bogotano se contamine pelo espanhol de Medellín (p.297). Paralelamente, mostra-se flexível

nas negociações identitárias, mantendo vínculos afetuosos com o idioma alemão.

A figura de Sara, da mesma forma, encarna a posição intermediária que caracteriza o

sujeito diaspórico. Exemplo disso são as diversas vezes em que, por dominar os dois idiomas,

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aparece como mediadora, ou conciliadora, em situações de encontro entre colombianos e

falantes de alemão. Uma das mais relevantes ocorre pouco depois de chegar à Colômbia, aos

14 anos, quando atua como intérprete na reunião de um empresário suíço com o então

presidente do país, Eduardo Santos, tarefa que possibilitou à família o apoio fundamental de

Santos para a construção do Hotel Sabaneta.

Apresentada como uma mulher “prudente, incrédula, reticente” (p. 56), Sara também

personifica a ideia de “estar dentro e fora”, apontada por Stuart Hall (2003, p. 416) como

definidora da experiência diaspórica. A personagem não se identifica mais com a Alemanha,

mas tampouco deixa de considerar a Colômbia um país estranho, mantendo um olhar

permanentemente crítico. O distanciamento de seu país natal e da identidade que carregava

aprofunda-se com o passar do tempo: ela afasta-se do judaísmo, monta árvore de Natal e, por

mais que queira, não consegue explicar o trânsito entre sua própria infância alemã e a que

vivem seus netos, “gente tan alejada de Emmerich [sua cidade natal], y de la sinagoga de

Emmerich, como era posible” (VÁSQUEZ, 2004, p.81). “Los demás ven a sus hijos y se ven

en ellos”, diz. “A mí eso no me va a pasar, somos distintos. No sé si importe”, comenta

(idem), em um dos vários trechos em que reflete sobre sua identidade.

As repercussões do deslocamento em sua memória emergem com intensidade na

viagem que faz a Emmerich, 30 anos depois de se mudar para a Colômbia. Suas reações

confirmam o que diz Abril Trigo sobre o retorno à terra deixada após um período de

afastamento – trata-se, segundo ele, de “umas das experiências máximas de estranhamento”,

quando “o então-lá longamente preservado na memória se torna irreconhecível no aqui-agora

do reencontro” (TRIGO, 2003, p.56-58, tradução nossa). Entre lembranças modificadas e

episódios esquecidos, Sara percebe que a Alemanha já não é seu país, “no en el sentido, por lo

menos, que un país pertenece a la gente normal” (VÁSQUEZ, 2004, p.190). Até o medo de

chorar em público – que temia, por contrariar a determinação do pai – desaparece ao chegar à

cidade da infância. Nem o túmulo de sua irmã, de quem mal se lembrava, consegue

emocioná-la, e a antiga sinagoga da cidade não lhe parece muito mais do que um bloco de

concreto. Anos depois, Sara muda-se de Duitama – onde ficava o hotel da família – para

Bogotá, e se recusa a sair da cidade, apesar da recomendação dos médicos, que, devido a seu

aneurisma, aconselham-na a viver em um lugar mais próximo do nível do mar.

A contraposição a estes deslocamentos está em Gabriel pai e Gabriel filho, que se

recusam a deixar Bogotá, embora mantenham uma relação conflituosa com a cidade e o país.

Chama atenção que, na juventude, o pai use a palavra “asilo” (p.122) para se referir ao Hotel

Sabaneta, para onde vai nos fins de semana, fugindo da atmosfera de luto que sufocava sua

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casa. Ali, rodeado por estrangeiros de todo o mundo, vive uma espécie de autoexílio,

estabelecendo convívio tão íntimo com alemães que chega a dominar o idioma. Mais tarde,

sua inarredável presença na Colômbia – de onde jamais se ausentará – explica-se pelo

prestígio que a oratória lhe garante na sociedade. Em carta enviada ainda jovem a Sara,

Gabriel refere-se ao “poder terrible” que as palavras outorgam em um país como a Colômbia,

onde alguém ainda é capaz de moldar seu meio porque as palavras importam (p.192). Linhas

antes, usa um ditado latino (Ubi bene ibi patria) para justificar o desinteresse em deixar o

país. “Uno es de donde mejor se siente, y las raíces son para las matas. Todo el mundo lo

sabe, ¿no es cierto?”(idem).

Neste quesito, as inclinações de Gabriel filho são idênticas. “Acaso ésta sea otra de las

herencias de mi padre: la voluntad de no ser expulsado por esta ciudad tan diestra en

expulsiones” (p.276), afirma, a poucas páginas do fim. A surpreendente declaração de apego –

depois de inesgotáveis críticas à Colômbia e Bogotá – é mais uma das contradições do

personagem, conforme vimos no tópico anterior. Nem sempre Gabriel se exclui dos reproches

que faz aos colombianos. Quando Sara, por exemplo, liga para comunicar o acidente de seu

pai, diz que a escutava “con cierta distracción y un efímero lamento altruista, como suele

escucharse la noticia de una muerte ajena en Colombia” (p.97). Porém, menos que

contraditória, a conciliação de um acentuado tom crítico com o apreço à cidade denota, mais

uma vez, uma posição intermediária, um “estar dentro e fora ao mesmo tempo” que permite

ao personagem um pertencimento reflexivo, uma inserção insubmissa.

Em um breve ensaio sobre a condição de escritor deslocado19

, Vásquez fez o seguinte

comentário sobre Los informantes:

[...] quiero pensar que todas las condiciones de mi experiencia como inquilino – las

incertitumbres, las particularidades de una vida más o menos itinerante, la

experiencia fragmentada, la percepción desde fuera de un país inestable y, sobre

todo, el tratamiento de ese país como territorio desconocido – están incluidas de

manera tácita en la novela (2009, p.188).

De fato, pela voz do narrador ou dos outros personagens, o livro contém diversas

reflexões sobre a experiência do deslocamento. A identidade nacional, ou o pertencimento aos

lugares, é uma questão generalizada e determinante nas vicissitudes individuais. Ao especular

sobre os rumos de Enrique, Gabriel diz que, depois da morte do pai, ele teria começado a

viver “como la criatura sin espalda, sin nacionalidad fija y de sangre mezclada que a veces, de

19 “Literatura de inquilinos”, in El arte de la distorsión. Madri: Alfaguara, 2009.

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joven, le hubiera gustado ser” (p.212). Diz também que manter uma ausência de vinte anos

tem suas consequências, e que Enrique, ao chegar a Bogotá, descobriria que aquela cidade não

era mais a sua (p.217). Finalmente, refere-se à “claridad de los desterrados” (p.218).

Queremos entender esta observação como uma autorreferência, a afirmação de um

lugar enunciativo que o autor, oito anos depois de deixar a Colômbia, acabava de encontrar

para, finalmente, escrever sobre seu país.

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IV HISTORIA SECRETA DE COSTAGUANA

4.1 O narrador deslocado

Tendo uma trama familiar como fio condutor e uma especulação literária como pano

de fundo, Historia secreta de Costaguana é, em boa medida, um livro sobre a Colômbia

oitocentista. Da conquista da independência, em 1819, ao movimento que culminou na

emancipação do Panamá, em 1903, o romance percorre a história colombiana mostrando a

“tradição de intolerância” que, segundo Fabio López de la Roche (1990, p.112), caracteriza o

país. Presente em toda a trilogia de Vásquez, a ideia de uma nação convulsa que afugenta seus

habitantes se materializa no personagem narrador, José Altamirano, que vai para Londres

dizendo-se expulso pela história e a política colombianas. É de lá que ele recorda, 20 anos

depois de emigrar, sua vida e o passado nacional, prometendo investigar nas raízes de sua

desgraça “los desastres que los Grandes Momentos pueden imprimir en las Vidas Pequeñas”

(VÁSQUEZ, 2007, p.15).

Altamirano começa a escrever em 1924, imediatamente depois da morte de Conrad,

mas sua iniciação como narrador se dá em 1903, no depoimento que presta ao romancista tão

logo chega à Inglaterra. “Hablé sin parar, desesperadamente”, lembra-se, acrescentando que

então, na casa de Santiago Pérez Triana – “entre los restos acumulados de la política

colombiana” –, finalmente descobre seu lugar no mundo (p.249). Esse lugar, podemos inferir,

é o lugar do narrador deslocado, da voz que, de longe, conta a história de seu país, “de sus

gentes violentas y de sus pacíficas víctimas”. Lugar, em seu caso, assumidamente político,

pois o despertar para a literatura é nele indissociável da aquisição da consciência política.

É a perda de sua mulher, Charlotte – morta por um desertor da Guerra dos Mil Dias –

que lhe infunde, a um só tempo, a consciência política e a identificação da palavra como

horizonte de ação.

Y así fue que la Gorgona Política acabó por invadir la casa de los Altamirano-

Madinier. Así fue como la Historia, encarnada en el destino particular de un

soldadito cobarde y desorientado, echó por los suelos mis pretensiones de

neutralidad, mis intentos de alejamiento, mis afanes de estudiada apatía

(VÁSQUEZ, 2007, p.224-225).

Até esse episódio, a Colômbia submergia “en la sangre de los dos partidos” (p.63),

mas Altamirano, em sua “casa apolítica, apática y ahistórica” (p.197), mantinha-se

predominantemente alheio aos acontecimentos do país. Sua experiência no Panamá – onde

estava há 24 anos – por muito tempo se resumira à observação passiva das atividades do pai,

de cujos artigos discordava, mas sem opor resistência. Somente a tragédia pessoal o defronta

efetivamente com o que está à sua volta e lhe impõe a necessidade de relatar os

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acontecimentos que arruinaram sua família. É com esta perspectiva que escreve seu livro:

“ahora”, diz,“la dama exigente de la Política reclama perentoriamente mi atención y yo, al

menos durante el término de este livro, soy su obsecuente servidor” (idem, p.151).

Trata-se então de um relato de cunho político, considera seu narrador, assim como Juan

Gabriel Vásquez admite o rótulo “romance político” ao falar de Historia secreta de

Costaguana20

. Partindo disso, podemos nos perguntar então em que consiste a literatura

política de José Altamirano.

Um primeiro aspecto que ressalta é o tom jocoso com que se refere à Colômbia,

zombando da história, da sociedade e dos supostos atributos pátrios. É evidente que, entre os

alvos de suas críticas, está a própria reverência à nação e seus símbolos mais caros. Ao

mencionar, por exemplo, as constantes mudanças de nome do país – República da Colômbia,

Nova Granada, Estados Unidos da Colômbia –, propõe uma alcunha informal, “Esa Mierda de

Sitio” (idem, p.16), também aplicável à igualmente volúvel Bogotá. Nas vezes em que

comenta a história colombiana, destaca sua “trama tragicómica”, criação de “dramaturgos

mediocres”, “escenógrafos chapuceros”, “empresarios inescrupulosos” (p.37). Se a Colômbia

é uma comédia, o narrador de Vásquez está à altura, compondo as páginas mais engraçadas

publicadas pelo autor. Nem mesmo o hino nacional – “un crimen [...] contra la poesía, contra

la decencia” (p.173) – escapa a sua verve corrosiva.

Da mesma forma, personagens históricos são tratados com deboche. Simón Bolívar e

sua amante, Manuela Sáenz, “gozan de múltiples Libertinajes en el lecho presidencial” (p.44);

o general José María Melo dá um golpe de Estado entre os excessos de uma noite de esbórnia

(p.36); o presidente Rafael Núñez (autor do execrável hino) enfia-se na cama e vomita

heptassílabos; Miguel Antonio Caro, seu sucessor, faz “con una mano [...] traducciones

homéricas y con la otra, leyes draconianas” (p.197). Ao referir-se a Caro – o mais célebre dos

“presidentes gramáticos” –, Altamirano enfatiza o abismo que havia entre a Colômbia e a

democracia no século XIX: bastava receber uma crítica para que mandasse o opositor ao

desterro. Censura e fechamento de jornais também estavam entre suas práticas.

Nestas memórias iconoclastas, não há vestígio de nostalgia pátria: “sí, el aire volvía a

impregnarse de patriotismo, y sí, yo volvía a tener dificultades para respirar”, recorda-se em

uma passagem (p.230-231). Altamirano mostra a impossibilidade de se conceber uma

comunidade harmônica mesmo nos primórdios do Estado-nação. As desavenças políticas

nascem de razões pueris e quase sempre enveredam para o confronto armado. Matanças entre

20

Ver entrevista ao fim da tese.

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compatriotas são de tal forma regulares – “la versión nacional del cambio de guardia” (p.68) –

que qualquer colombiano pode aspirar à condição de herói de guerra civil (p.61). A violência

é um costume, uma prática entranhada mas sem fundamento. Sua gênese mais citada – a

ferrenha rivalidade entre conservadores e liberais – também aparece destituída de sentido.

Lectores del jurado: permítanme que les dé una brevísima lección de política

colombiana, para sintetizar las páginas transcurridas hasta ahora y prepararlos a

ustedes para las que vienen. El hecho más importante en la historia de mi país, como

acaso se habrán dado cuenta, no fue el nacimiento de su Libertador, ni su

Independencia, ni ninguna de esas fabricaciones de manual de bachillerato. […] No:

el momento que definiría la suerte de Colombia para toda la historia, como sucede

siempre en esta tierra de filólogos y gramáticos y dictadores sanguinarios que

traducen la Ilíada, fue un momento hecho de palabras. Más exactamente de nombres.

Un doble bautismo, ocurrido en algún momento impreciso del siglo XIX. Reunidos

los padres de las dos criaturas carigordas y ya malcriadas, aquellos dos varoncitos

olorosos desde su nacimiento a vómitos y a mierda líquida, se convino que al más

tranquilo se le diera el nombre de Conservador. El otro (que lloraba un poco más) se

llamó Liberal. Esos niños crecieron y se reprodujeron en constante rivalidad, y las

generaciones rivales se han sucedido unas a las otras con la energía de los conejos y

la terquedad de las cucarachas… (VÁSQUEZ, 2007, p.91)

Neste cenário desalentador, antes mesmo de nascer o protagonista perde o avô,

transpassado por uma dessas “bayonetas católicas, apostólicas y romanas” (p.18) utilizadas

pelo clero na luta contra progressistas. Mais tarde, as atividades jornalísticas do pai – na época

“más que liberal, radical, anticlerical” (p.20) – quase o levam ao mesmo fim, quando um

presbítero enfurecido faz uma emboscada para tentar matá-lo. Somente o medo é capaz de

unir neste país fraturado. Altamirano, Anatolio, Santiago Pérez Triana: de tão frequente, o

medo é como um animal doméstico, um cão fiel para todos os colombianos (p.141).

Vásquez parodia um topos clássico da literatura – a busca do pai21

–, para estruturar

sua trama. O encontro entre os dois Altamiranos é narrado sem assombro, mas marca o início

das descobertas que acompanham o amadurecimento do protagonista. Ao contrário do pai,

inveterado otimista, o filho é acentuadamente cético, a começar pelos traços que identifica nos

colombianos: mentirosos, fofoqueiros, superficiais... A suposta facúndia dos compatriotas é

motivo de escárnio e resumida ao amor pelas palavras vazias. O que mais o incomoda, no

entanto, é a conivência e a falta de memória da sociedade colombiana. Evocando uma

lembrança de sua mãe, diz que ela se comportava como a maioria dos colombianos, que

“suelen actuar a imagen y semejanza de sus Gobiernos, albergar las mismas irracionalidades,

sentir las mismas antipatías” (p.62). Falando do pai, nota que adquirira “la célebre

enfermedade colombiana de la C.S. (Ceguera Selectiva), também conhecida como C.P.

21

A menção a Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, é evidente no trecho: “Vine a Colón porque me dijeron que aquí encontraria a mi padre, el conocido Miguel Altamirano” (VÁSQUEZ, 2007, p.73); “Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre, un tal Pedro Páramo (RULFO, 2002, p.65).

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(Ceguera Parcial) e também como R.I.P. (Retinopatía por Intereses Políticos)” (p.143). A

apatia e a desmemória são características nacionais e Altamirano se erguerá contra elas: “mi

memoria y mi pluma”, afirma, estão “adictas sin remedio a los avatares de la política” (p.171).

Lembrar é uma atitude política e dará o tom de seu livro.

Altamirano parte do princípio de que “callar es inventar”, que “las mentiras se

construyen con lo no dicho” (p.87), e promete incluir tudo – as histórias “grandes y las

pequeñas” – em seu relato sobre o Panamá, que começa na construção da ferrovia e termina

no movimento que selou a independência da província. Escrever sobre o tema significa, antes

de tudo, corrigir os escritos do pai, que, fascinado pela ciência e pelo progresso, tornara-se

uma espécie de propagandista das obras locais, sobretudo do canal, que não chegou a ver

concluído. Desde o momento de sua chegada – quando se defronta com a insalubridade de

Colón –, Altamirano ressalta o contraste entre o que via e o que o pai publicava.

En sus escritos, mi padre no temía ni por un instante alterar lo que era sabido o lo

que todo el mundo acordaba. Por una buena razón, además: en Panamá, que al fin y

al cabo era un estado colombiano, casi nadie sabía; y, sobre todo, nadie recordaba

(p.105).

O narrador resgata episódios esquecidos – ou escassamente lembrados –, como os

surtos de febre amarela, o superfaturamento de obras e a morte de quase 10 mil trabalhadores

durante a construção da ferrovia. Noticiados pelo pai, esses e outros acontecimentos foram

minimizados, ou simplesmente omitidos, nos jornais em que trabalhava. “En las primeras

crónicas de Miguel Altamirano, los muertos de la ferrovía habían sido casi diez mil; en alguna

de 1863 los cifra en menos de la mitad, y hacia 1870 escribe sobre „los dos mil y quinientos

mártires de nuestro actual bienestar‟” (p.106), lembra-se o protagonista. Além de seu pai,

outros jornalistas atuavam da mesma forma – ou seja, a imprensa era uma das culpadas pela

desinformação que reinava no Panamá, induzindo o esquecimento e manipulando a memória

pública. Vale lembrar que, em Los informantes, é um jornalista que traz à luz acontecimentos

que o pai desejava ver silenciados.

Inventário de tragédias e escândalos financeiros, a crônica de Altamirano é uma

amostra das práticas políticas que vigoravam na Colômbia do século XIX. Um dos aspectos

que enfatiza é a influência das potências estrangeiras no destino do país. Ambientado num

momento-chave da história da América Latina – quando o poderio francês começa a ser

substituído pela ascendência norte-americana –, o romance mostra a intervenção direta dos

dois países na política colombiana, obtendo generosas concessões e o virtual controle do

Panamá por parte dos Estados Unidos. Antes mesmo de a província separar-se, episódios

cruciais da história colombiana foram, se não resolvidos, pelo menos intermediados por

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governos de fora, como a sangrenta Guerra dos Mil Dias, em que todas as negociações

decisivas ocorreram em embarcações estrangeiras, a maioria norte-americana. “Los

colombianos caminábamos de la mano de los hermanos mayores, los Países Adultos. Nuestro

destino se jugaba en las mesas de juego de las otras casas”, comenta o narrador (p.226),

assinalando como consequência um trecho do acordo de paz que menciona a necessidade de

“llevar a feliz término las negociaciones que tiene pendientes sobre el Canal de Panamá”

(p.227).

Mas o romance evidencia a complexidade do imperialismo, que não se sustenta apenas

nos dominadores, mas também nos dominados (SAID, 1995, p.43). Um bom indício é o

frenesi que a visita do engenheiro Lesseps desperta na elite de Colón:

Lesseps hacía una pregunta banal, abría levemente los ojos ante una anécdota, y los

colonizados sentían de repente que su vida entera adquiría una renovación de

sentido. Si Ferdinand de Lesseps lo hubiera querido, allí mismo habrían bailado para

él un mapalé o una cumbia, o mejor un cancán, para que no fuera a creer que aquí

todos éramos indios. Pues allí, en el Istmo panameño, el espíritu colonial flotaba en

el aire, como la tuberculosis. O tal vez, se me ocurrió en algún momento, Colombia

nunca había dejado de ser una colonia, y el tiempo y la política simplemente

cambiaban un colonizador por otro. Pues la colonia, igual que la belleza, está en el

ojo de quien la admira (VÁSQUEZ, 2007, p.128).

Altamirano corrige os escritos do pai, sem porém condená-lo. Não o enxerga como um

vendido nem um inescrupuloso, mas um idealista que, dominado por suas crenças, interpreta

os fatos com um filtro irremovível e não se importa eventualmente de distorcer as notícias em

prol de suas convicções. Altamirano o considera uma vítima da política colombiana, alguém

que naufraga junto com uma utopia. Em vários momentos, o Panamá se mostra aliás

uma ilusão coletiva, um sonho abraçado por muitos que, como Miguel, careciam de opções.

“Sinto que, em Vásquez, todos contribuem para cavar „a grande trincheira‟ do Canal, somente

para ser enterrados nela”, comentou Carlos Fuentes a propósito do livro (2011, p.391,

tradução nossa).

Por isso, para compreender os artigos de Miguel – a “ley de la refracción” que incidia

sobre eles –, é preciso contextualizar sua biografia, os 70 anos que viveu entre 1820 e 1890.

Como observa Erna von der Walde (1997, p.73), a polarização da política colombiana no

século XIX cindiu o país não apenas em dois partidos, mas em duas visões de mundo

antagônicas. Uma, sustentada pelo partido conservador, tinha como principais pilares a igreja

católica, o hispanismo e a autoridade da língua22

. A outra, defendida (com contradições) pelo

partido liberal, preconizava a modernização, com a abertura às ciências e à técnica. Esta

22

Esta tríade se fortaleceu sobretudo em 1886, com o projeto político da “Regeneración”. Elaborado pelo ex-presidente Rafael Núñez e seu sucessor, Miguel Antonio Caro, o projeto teve como objetivo unificar a Colômbia em torno de um Estado autoritário e a Igreja Católica, e sem dúvida acirrou o conservadorismo no país.

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dicotomia – cujos ingredientes, sem dúvida, extrapolam essa definição sintética – impôs

várias consequências, como as inúmeras guerras civis e o desembarque tardio da

modernidade. Jesús Martín Barbero observa que, diferentemente dos Estados Unidos, “onde

ser moderno não apenas equivale mas se fundamenta em ter crenças religiosas, e vice-versa,

na América Latina vivemos isso como uma oposição irredutível, absolutamente maniqueísta”

(apud WALDE, p.73, tradução nossa). Desta forma, enquanto os defensores da modernidade

viam a religião como “o passado, o obscurantismo, a sobrevivência de uma sociedade rural”,

os religiosos associavam a modernidade com “o ateísmo, com uma sociedade abandonada às

forças da evolução natural, uma identificação com aqueles determinismos que destroem os

valores da tradição, do humanismo [...]” (idem).

É precisamente esta atmosfera que marca os primeiros anos de Miguel Altamirano, do

assassinato do pai aos embates quase mortíferos com o presbítero Echavarría. Seus artigos

mostram o combate encarniçado que travava com a Igreja. “Instrumentos del Obscurantismo”,

escreve, em referência às meninas que, vestidas de branco e carregando flores, saem às ruas

para se opor à expulsão dos jesuítas (VÁSQUEZ, 2007, p.20). “Medieval!”, redige mais tarde,

ao inteirar-se da decisão do padre de proibir a utilização de cadáveres na faculdade de

medicina (p.21). Alguns jornais em que trabalha – El Mártir, La Batalla – assumem já no

nome a impossibilidade de diálogo. No púlpito, Echavarría anuncia a expulsão de Miguel

Altamirano do reino de Deus e da Igreja; na imprensa, Altamirano anuncia o banimento de

Echavarría do mundo civilizado (p.29). “Quem pertence à cidade letrada não pode dissentir no

interior desta”, escreve Walde (idem, p.80, tradução nossa), recorrendo ao clássico de Ángel

Rama (La ciudad letrada, 1984) para definir o círculo de poder que, na Colômbia, formou-se

em torno da Igreja e das elites letradas (sobretudo gramáticos). “Toda rebelião implica uma

exclusão”, complementa a autora.

Foi assim que a Colômbia, entre tais hostilidades, fechou as portas à modernização

justamente no momento em que, no resto do continente, as ideias modernas irradiavam por

todas as esferas da sociedade, influenciando estados, cidades, a educação e os costumes

(WALDE, p.79). Chama atenção que a palavra “modernismo” e os livros que inauguraram o

movimento literário – como Azul (1888), de Rubén Darío, publicado pela primeira vez em

Valparaíso – tenham surgido quando a Colômbia dava marcha à ré no processo modernizador,

concentrando a educação na Igreja e voltando as costas para toda influência que não viesse da

Espanha.

A sociedade colombiana, em virtude dos efeitos do controle eclesiástico da

educação, tornou-se impermeável às ideias provenientes das influências positivistas

e socialistas e, consequentemente, ao desenvolvimento da ciência e da técnica. A

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consciência ilustrada foi submetida à marginalização cultural e à consciência

culpada (GALVIS, 1986, p.236, apud WALDE, idem, p.73, tradução nossa).

Neste cenário asfixiante, para ser moderno era preciso estar fora da cidade letrada,

como diz Walde (idem, p.79) e, embora não se refira a uma cidade específica, podemos ver na

mudança de Miguel Altamirano uma reação condizente com tal diagnóstico. Após as refregas

com o presbítero, o personagem é caçado pelos homens de Melo e, exausto com tais

perseguições, sente que Bogotá está definitivamente perdida (p.40). Distante das demais

províncias e até certo ponto resguardado dos conflitos nacionais, o Panamá representava o que

o resto do país reprimia: a aposta no progresso, na técnica, na modernização. Parecia,

inclusive, estar fora da Colômbia, tamanha a quantidade de estrangeiros a dar-lhe um ar

cosmopolita e aparentemente neutro – atributos que lhe rendem epítetos como “Babel23

” e

“Suíça Caribenha”, neste caso uma óbvia ironia do narrador (p.153). Por isso, desde que se

depara com o chinês morto – cujas tragédias soam a ele como promessas maravilhosas –,

Miguel Altamirano faz do Panamá uma utopia constantemente realimentada. Somente a

quebra da Companhia do Canal – e a citação de seu nome entre os jornalistas fraudulentos –

determina o fim da ilusão que criara para si e seus leitores. Nos últimos meses de vida, um de

seus hábitos é embaralhar os versos do hino e recitá-los entre risos amargos. Defenestrado dos

lugares que considerava seus – a ferrovia, as redações dos jornais –, termina os dias como um

proscrito, um pária no Panamá. O local que escolhe para morrer – o interior enferrujado de

uma escavadeira abandonada – não poderia ilustrar melhor sua sensação de fracasso.

O protagonista, portanto, herda do pai o dissabor com as ilusões perdidas, a ideia da

política como algo perigoso e potencialmente destrutivo – daí a imagem da Górgona, a

criatura da mitologia grega que petrifica os que ousam fitar seus olhos24

. Após a morte de

Miguel, sua reação é virar as costas aos acontecimentos públicos e aferrar-se ao pequeno

mundo de sua casa (a filha que crescia, a mulher cada vez mais bela). Esquece rapidamente o

pai, que associa ao “monstruo ubiquo y omnipotente de la política” (p.198). “Así que mi

padre empezó a fundirse en el olvido tan pronto como se llevaron a cabo sus exequias, y yo no

hice nada, absolutamente nada, para evitarlo”, comenta, entre as culpas que procura expurgar.

Suas memórias, dessa forma, são também as memórias do pai, personagem anônimo

que desapareceria entre os escombros da história. Encontrar um lugar na história é uma das

angústias de Altamirano, e não à toa se ofende por ver-se fora do romance de Conrad, para o

23

Este título aparece num dos primeiros romances sobre o Panamá: La noche de Babel (1913), de Ricardo Miró. 24

“Hesíodo fala de três Górgonas – Stenó (“a poderosa”), Euriale (“a que vai longe”) e Medusa (“rainha”) –, filhas de Forcis e Ceto (por sua vez filhas de Pontos e Gé, isto é, o Mar e a Terra), e portanto irmãs das Graias (HARVEY, 1987).

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qual contribuíra com seu depoimento. Ao contar a história de sua vida aos 69 anos – um ano a

menos do que o pai à época da morte –, Altamirano também busca ser absolvido por seus

erros. Daí se pronunciar como num julgamento, dirigindo-se aos leitores como “membros del

jurado”. Se, como diz Pozuelo Yvancos (2006, p.64), toda autobiografia tem um fundamento

de autojustificação, as memórias de Altamirano buscam explicitamente explicar três atos: o

abandono da filha, a partida da Colômbia e a cumplicidade com os Estados Unidos na

independência do Panamá,

Altamirano adverte antecipadamente o movimento que resultará na separação do

Panamá, mas guarda as percepções consigo e permite que a revolução vá em frente, reduzindo

as chances de reação colombiana. O personagem, mais do que isso, atua como anfitrião e

intermediário no encontro que selou a capitulação, mediante suborno, da resistência

comandada pelo coronel Eliseo Torres, encarregando-se ele próprio de contar os dólares

entregues ao militar colombiano. Está ciente de que a perda do Panamá representará “la

desgracia, la profunda e irreparable desgracia, de la República de Colombia” (p.255), mas diz

agir por vingança – “vengarme de mi país y de sua história entrometida, déspota, asesina”

(p.255). A ruptura com a Colômbia ocorre antes mesmo de partir, e antes, inclusive, de a

independência transformá-lo inelutavelmente em estrangeiro. “Esta Colombia suya es un país

atrasado”, lhe diz o coronel Schaler. E ele responde: “No es mi Colombia, mi coronel”

(p.257).

O abandono de Eloísa, da mesma forma, precede em muito sua partida, e começa logo

após a morte de Charlotte, como um efeito colateral da tragédia que se abate sobre a família

(p.223). Ao olhar para a filha, Altamirano sente “vergüenza” (idem), indisposição em

consolá-la. “Tenía miedo que Eloísa me pidiera explicaciones que yo no sabría darle” (p.222).

Assim, neste luto solitário, quebram-se as pontes entre pai e filha, abre-se um buraco “como

una especie de mar bíblico” (p.223). A separação se consuma quando Altamirano adverte um

dado adicional: “Eras colonense como yo no lo fui nunca, Eloísa querida: tu manera, tus

acentos, tus distintos apetitos me lo recordaban con la insistencia y el fanatismo de una

religiosa” (p.271). Dizendo sentir inveja desse “arraigo instintivo”, fruto não de uma decisão

mas de uma circunstância natural (“habías nacido com él”), Altamirano se convence a viajar

sozinho.

¿Cómo hubiera podido condenarla también a ella al exilio y al desarraigo? No: mi

país roto me había roto por dentro, pero ella, a sus diecisiete años, tenía derecho a

una vida libre del peso de esa ruptura, libre del ostracismo voluntario y de los

fantasmas del exilio (pues ella, no yo, era carne de la carne colonense) (VÁSQUEZ,

idem, p.280).

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Chama atenção que, exceto Eloísa, todos os personagens de relevo vivem em situação

de deslocamento: José Altamirano, que nasce em Honda, muda-se para Colón e finalmente se

exila em Londres; Miguel Altamirano, que sai de Bogotá para Colón; a mãe do protagonista,

Antonia de Narváez, que nasce em Bogotá e vai viver em Honda; Charlotte, que deixa a

França para morar em Colón; Santiago Pérez Triana, o diplomata colombiano que se exila em

Londres; e Joseph Conrad, o ex-marinheiro que já criança teve de abandonar sua cidade natal

na Polônia. Deste conjunto de experiências não emana, evidentemente, um sentimento

unívoco; o deslocamento traz, com intensidades variáveis, perdas e ganhos para todos. O

importante é que, ao fazer da mobilidade um elemento comum aos personagens, o romance

ressalta a noção de provisoriedade que caracteriza a experiência de Altamirano. “Panamá era

un lugar donde las cosas se sacudían”, diz mais de uma vez o protagonista (p.141), e a história

da Colômbia – bem como o percurso dos personagens – mostra que nenhum lugar é

exatamente firme, que não existe porto realmente seguro perante os vendavais da história.

Repleto de contradições, Altamirano é o cético otimista, ou o lúcido ingênuo, que, ao mudar-

se para a Inglaterra, acredita estar a salvo da história, imune aos inúmeros desastres que os

“Grandes Momentos” podem causar nas “Vidas Pequeñas” (p.15). Vinte e seis anos antes de a

cidade ser bombardeada por aviões nazistas, diz que foi para Londres “porque aquí la historia

había cesado tiempos atrás: ya nada pasaba en estas tierras, ya todo estaba inventado y hecho,

ya se habían tenido todas las ideas, ya habían surgido todos los imperios y se habían luchado

todas las guerras [...]” (idem).

Testemunha, vítima e réu, Altamirano oscila entre a defesa e o ataque, e assume ter,

em alguns momentos, incorrido nos mesmos males que abomina nos colombianos, como a

omissão frente à política. Seu caráter contraditório, assim como sua enunciação, remetem a

duas características que, no ensaio “El tiro en el concierto: política y novela en Colombia”,

Vásquez aponta como essenciais em um romance que trate de política: a ambiguidade e a

ironia.

Apresentado pela primeira vez em março de 200725

– um mês depois do lançamento

de Historia secreta de Costaguana –, o texto de Vásquez analisa a presença da política na

literatura hispano-americana, sobretudo colombiana, tomando como ponto de partida a

famosa frase de Stendhal, dita n‟A cartuxa de Parma: “A política, numa obra literária, é um

tiro de pistola no meio de um concerto, algo grosseiro, mas ao qual não é possível recusar sua

atenção” (STENDHAL, 2012, p.474). Considerando o comentário seguinte feito pelo narrador

25

O texto foi lido em um evento na Casa de América em Madri. Em 2009, integrou a antologia El arte de la distorsión.

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de Stendhal – “Vamos falar de coisas muito feias, e que, por mais de uma razão, gostaríamos

de calar” –, Vásquez diz que os romancistas colombianos têm se alternado entre esses dois

extremos: o tratamento grosseiro da política ou o total silêncio em relação a ela. No primeiro

grupo, o escritor inclui a maioria dos que escreveram sobre a Violência, a guerra civil que, em

meados do século passado, matou mais de 200 mil26

pessoas na Colômbia. Menciona também,

extrapolando o âmbito colombiano, o Cortázar do Libro de Manuel (1973), a seu ver um

“gran ejemplo de esa extraordinaria habilidad que tiene la política de hundir una novela”

(VÁSQUEZ, 2009, p.103).

Já o segundo grupo, o dos escritores que preferem não entrar no universo de temas

políticos, é segundo Vásquez mais numeroso na literatura contemporânea, em que se tende a

considerar a política uma impureza inadmissível em uma obra literária (idem, p.105). O

romance contemporâneo, acrescenta, é quase por natureza politicamente cético (p.103).

A chave de uma abordagem exitosa, em sua concepção, é uma aproximação indireta –

“un tratamiento soslayado” (idem) –, como fizeram Gabriel García Márquez e Álvaro Cepedia

Samudio em dois romances que evocam acontecimentos importantes da história colombiana:

El coronel no tiene quien le escriba (1961), que trata obliquamente da Guerra dos Mil Dias, e

La casa grande, que trabalha sobre o episódio do Massacre das Bananeiras. Citando um

exemplo mais recente, Vásquez aponta a narração paródica de Héctor Abad em Asuntos de un

hidalgo disoluto (1994), que propiciou ao escritor de Medellín “el escudo con el cual mirar la

Górgona de reojo” (VÁSQUEZ, 2009, p.107).

La mejor novela política, me parece, es la que demuestra que la novela como

instrumento sigue siendo capaz de echar luz sobre el mundo; pero sobre todo la que

resuelve sin demasiada alharaca la supuesta incompatibilidad entre política y

literatura. En otras palabras: la que llega a la política de lado, no de frente; la que

mira a la política a través de su reflejo, no directamente (VÁSQUEZ, 2009, p.105-

106).

Sem propor uma simetria entre a poética formulada no ensaio e a obra de ficção

publicada por Vásquez, podemos notar correspondências entre a ironia defendida pelo escritor

e a enunciação do personagem narrador. Iconoclasta, vaidoso, irreverente, Altamirano é não

apenas irônico como também histriônico, contando com hilaridade uma história que, em seu

conjunto, é marcada muito mais pela tragédia. Das primeiras às últimas páginas, o humor

refinado de Vásquez imprime uma marca inequivocamente literária ao romance, ou seja,

26

Mantenho a cifra usada por Malcom Deas (2006, p.61).

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permite que se trate de política sem cair na enunciação didática e simplificadora dos

políticos27

. Não há, além disso, nenhuma tentativa de tese ou esboço de panfleto.

Embora não citados no ensaio de Vásquez, vários autores escreveram anteriormente

sobre o Canal do Panamá e a independência da ex-província. Catalina Quesada Gómez (2012,

p.83) menciona, entre eles, Ricardo Miró, com o já citado La noche de Babel (1913); Joaquín

Beleño, com a trilogia formada por Luna verde (1951), Los forzados de Gamboa (1960) e

Curundú (1963); Demetrio Aguilera Malta, autor de Canal Zone (1935), e Renato Ozores,

com os romances Playa honda (1950), Puente del mundo (1951) e Calle oscura (1955). Todas

essas obras, de acordo com Quesada Gómez, têm marcado caráter de denúncia e se

enquadram essencialmente na literatura de testemunho, sem grandes exigências estéticas e

com o erro de olhar diretamente (para manter a analogia de Vásquez) nos olhos da

Górgona/política, como fez, segundo ele, a maioria dos livros sobre a Violência.

Analisando Historia secreta de Costaguana, a autora aponta semelhanças entre o

narrador do romance e os protagonistas da picaresca, e não apenas pelo que tem de risível,

mas por portar características recorrentes no gênero, como o discurso que anuncia a intenção

de denúncia mas acaba sendo, ao mesmo tempo, a tentativa de explicar fatos vergonhosos.

“Seu discurso é caracterizado pela pretensão e a utilização de um tom empolado e ribombante,

que se torna insuportável, com muitas repetições, técnicas de folhetim e o rufar de tambores

ao anunciar qualquer evento importante”, diz Quesada Gómez (2012, p.83, tradução nossa).

Apesar disso, Altamirano cumpre a promessa das primeiras páginas e rememora o

passado com postura permanente crítica, permitindo aos leitores de hoje identificar sua

extensão no presente, quando a violência, a intolerância e o casuísmo político continuam

dominantes. Ao transcender o plano coletivo e narrar o drama individual dos personagens –

equilibrando a comicidade com a expressão acurada de suas emoções –, o romance sugere

várias perguntas, mas sem chegar a respondê-las. O envolvimento político é uma obrigação

dos indivíduos? Seriam as utopias inevitáveis entre os homens?

Assim como fez em Los informantes, Vásquez retorna ao passado colombiano com

uma atitude reflexiva e desconfiada das próprias ferramentas. Agora, sem abandonar o tema

da memória, sua principal preocupação é a escrita da história e suas relações com a ficção:

narrar o passado questionando as formas de fazê-lo – e não apenas as escolhas éticas e morais,

mas as implicações das opções estéticas. Como diz Hugo Achugar (2006, p.236), a escrita da

27

Comentários interessantes sobre o discurso político e o literário são feitos pelo próprio Vásquez na entrevista que anexo ao fim da tese.

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história sempre esteve ligada ao poder. Portanto, discutir seus procedimentos significa

questionar as estrutura do poder, suas engrenagens e artifícios.

4.2 História e ficção: encontros e desencontros

Historia secreta de Costaguana, logo notamos, não é um romance histórico

tradicional, a começar pelo título, que deixa de lado qualquer esforço de verossimilização –

uma das marcas das primeiras ficções históricas (JITRIK, 1995, p.63) – e enuncia um signo

extraído da ficção. Costaguana, muitos se lembram, é a república criada por Joseph Conrad

em seu romance Nostromo (1904). Um país acossado pela instabilidade política, pela

violência, pela corrupção e que teria sido, em boa medida, inspirado na Colômbia do século

XIX (VÁSQUEZ, 2009; DEAS, 2006; GAVIRIA, 2000). Esta instigante suposição –

abordada por ensaístas, mas até então inédita em um romance – é um dos motes da obra e uma

das obsessões do personagem narrador, que acusa Conrad de ter roubado sua história para

escrever Nostromo, sem incluí-lo na trama.

História e ficção, portanto, são explicitamente confrontadas, do título ao fim do

romance, sem que se sugira uma barreira, mas sim uma relação difusa entre as duas

categorias. Esta instabilidade é consubstanciada pelo próprio narrador, que desde as primeiras

páginas dá indícios, já pelo tom histriônico, de não ser plenamente confiável28

. Ao assumir,

por exemplo, que é mentiroso como todos os colombianos e que as informações sobre sua

família baseiam-se “de vez en cuando, en documentos tangibles” (p.51, grifo nosso),

Altamirano quebra uma das condições básicas do testemunho: a necessidade de confiança

entre quem fala e quem escuta. Segundo Ricoeur (2007, p.173), “a testemunha pede que lhe

deem crédito. Ela não se limita a dizer: „Eu estava lá‟, ela acrescenta: „Acreditem em mim.‟”.

Mas Altamirano, sem renunciar de todo a esta reivindicação (ele jura, no mesmo trecho, estar

dizendo a verdade), deixa o leitor/ouvinte em alerta. Além disso, o personagem infringe outro

requisito apontado por Ricoeur (p.174) para a testemunha: a disponibilidade para reiterar seu

depoimento, ou seja, para manter sua palavra. Como lemos no romance, Altamirano expõe

duas versões diferentes de sua vida ao chegar a Londres: uma para Santiago Pérez Triana, em

que omite sua cumplicidade na independência do Panamá, e outra para Conrad, em que

assume suas culpas, confiante de que será absolvido pela literatura. Naturalmente, a versão

que conta aos leitores também difere das anteriores.

28

Para a categoria de narrador não confiável (unreliable narrator), ver: BOOTH, Wayne. The retoric of fiction. Chicago: The University of Chicago Press, 1983. Catalina Quesada Gómez (2012, p.84) também chama Altamirano de “narrateur peu fiable”.

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O que Altamirano expressa – e o faz reiteradas vezes – é que, independentemente do

narrador, só podemos conhecer versões dos acontecimentos. Este ponto, que realça o que há

de falacioso nos discursos que se prometem unívocos, é enfatizado por ele com diferentes

exemplos, tanto no relato de fatos históricos – como o golpe de Melo – quanto no de

episódios de sua vida privada, como as histórias vividas por seu pai ao chegar ao Panamá

(contadas por Antonia de Narváez). Ao esboçar um perfil de Santiago Pérez Triana, adverte:

“O importante não é quem era aquele homem, mas a versão que estou disposto a dar de sua

vida, que papel quero que desempenhe no relato da minha” (p.89). E observa:

(Sí, queridos historiadores escandalizados: las vidas ajenas, aun las de las figuras

más prominentes de la política colombiana, também están sujetas a la versión que yo

tenga de ellas. Y será mi versión la que cuente en este relato; para ustedes, lectores,

será la única. ¿Exagero, distorsiono, miento y calumnio descaradamente? No tienen

ustedes manera de saberlo) (idem).

Tudo depende de quem narra e das circunstâncias em que o faz, mostra o romance,

demolindo qualquer noção de uma história monolítica. A ideia de imparcialidade é igualmente

desbancada, pois, como o livro evidencia, os narradores são influenciados pelo contexto em

que produzem e pelos impactos pessoais dos eventos que narram. No caso de Altamirano, que

se diz arruinado pela história colombiana, a possibilidade de isenção não é nem mesmo

cogitada.

Ainda que relate fatos históricos, o protagonista faz um esforço permanente para separar

seu discurso do dos historiadores. Esta distância é estabelecida tanto pelo que faz quanto pelo

que deixa de fazer. Altamirano, em primeiro lugar, adota um procedimento atípico entre

autores de livros de história: expõe, reiteradamente, os artifícios de sua escrita. Logo no

começo, avisa: “Yo decidiré cuándo y cómo quiero contar, cuándo oculto, cuándo revelo,

cuándo me pierdo en los recovecos de mi memoria por el mero placer de hacerlo” (p.14).

Não há ilusão de transparência em seu relato. Dirigindo-se diretamente ao leitor,

compartilha suas escolhas, expõe suas dúvidas, e ocupa-se com o mesmo empenho em narrar

e comentar suas estratégias narrativas. Questiona-se, por exemplo, sobre o espaço que deve

dedicar a certos acontecimentos. Ou sobre a conveniência, para fins estilísticos, de alterar

algumas informações. Referindo-se à proximidade entre o nascimento do pai e a

independência da Colômbia, afirma:

Sí, lo confieso: he tenido la tentación de hacerlo coincidir con la Independencia,

cosa de desplazarlo apenas algunos meses en el tiempo. (Y ahora no resisto a

preguntar: ¿a quién le habría importado? Más aun: ¿quién se hubiera dado cuenta?

(p.17)

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Imprecisão e dúvida, geralmente excluídas do discurso historiográfico, são admitidas

sem embaraço por ele. Ao evocar um jornal em que o pai trabalhava, reconhece ter esquecido

o nome e considera “superfluas” precisões dessa natureza (p.28). Não hesita, da mesma

forma, em recorrer à imaginação para preencher lacunas do conhecimento, inclusive porque

constata que “las cosas que no vemos suelen ser las que más nos afectan” (p.75). A partir

disso constrói, por exemplo, a trajetória quase épica dos fuzis contrabandeados por Conrad,

num episódio que, entre outras ressonâncias literárias29

, nos remete ao conto “Vida de una

bala” (2007), do argentino Juan José Becerra. “Ah, las artimañas a que debe recurrir un pobre

narrador para contar lo que no sabe, para rellenar sus incertitumbres con algo interesante...”,

comenta (p.78).

O personagem não abandona de todo “las difíciles reglas de la exactitud y la

veracidad” (p.17), mas não cessa de expressar seu desconforto, por razões não apenas

estilísticas, mas também conceituais. Um de seus grandes entraves é a linearidade que

caracteriza o discurso historiográfico (ao menos a concepção mais tradicional, de base

hegeliana). A cada momento, Altamirano faz uma interrupção: pede licença para antecipar a

cena, permite-se um retrocesso, distrai-se com fatos laterais. Finalmente, chamando a

cronologia de “una gran bestia indómita” (p.86), conclui que a linearidade é incompatível com

a simultaneidade dos acontecimentos históricos.

Verán ustedes, con el paso de los años y la reflexión sobre los temas de este libro

que ahora escribo, he comprobado lo que sin duda no es sorpresa para nadie: que en

el mundo las historias, todas las historias que se saben y se narran y se recuerdan,

todas esas pequeñas historias que por alguna razón nos importan a los hombres y

que van componiendo sin que uno se dé cuenta el temible fresco de la Gran Historia,

se yuxtaponen, se tocan, se cruzan: ninguna existe por su cuenta. ¿Cómo lidiar con

esto en un relato lineal? Es imposible, me temo (p.86).

Veladas ou explícitas, críticas à historiografia por vezes cedem espaço a um discurso

claramente paródico, em que valores como a precisão e a objetividade são adotados de modo

burlesco. O melhor exemplo são os detalhes e cifras que marcam algumas descrições: 9.998

trabalhadores mortos, 115 caixas de munição, 977 projéteis para o canhão de proa. Em

passagens como a da trajetória do fuzil e a da disputa final pela posse do Panamá, as

minúcias, longe de dar verossimilhança, produzem um efeito ridículo:

A las 6.47, su disparo atraviesa la garganta de Wenceslao Serrano, artesano de

Ibagué. A las 8.13, dá en el cuadríceps derecho de Silvestre E. Vargas, pescador de

La Dorada, obligándolo a caer; y a las 8.15, tras una fallida maniobra de recarga, su

bayoneta se hunde en el tórax del mismo Vargas, entre la segunda y la tercera

costillas (p.82).

29

Pablo Montoya (2009) e Camilo Bogoya (2012) veem ecos de Gabriel García Márquez.

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Outro gesto de paródia é o uso indiscriminado de maiúsculas, cujo alvo é não

necessariamente a historiografia, mas todo discurso pomposo que sobrevalorize o que está

dizendo. O jornalismo, da mesma forma, é parodiado quando Altamirano, ao inquirir a mãe

sobre o pai desconhecido, repete as perguntas básicas da apuração de notícias: quem, quando,

como, onde, por quê (p.61-62)30

– uma crítica implícita à promessa de objetividade contida

neste instrumental.

A filiação de Altamirano é ostensivamente literária. “Narrador nato” (p.47), como se

declara, mostra pendor para a crítica e grande fôlego como leitor. O romance faz alusões

textuais ou bastante claras a Byron (p.17), Cervantes (p.17), Thomas Malory (p.17), Balzac

(p.43), Choderlos de Laclos (p.47), Molière (p.29, p.48), Flaubert (p.50), Sófocles (p.73),

Homero (p.73), Juan Rulfo (p.73), Charles Dickens (p.76), Dostoievski (p.114), Thomas

Mann (p.119), Racine (p.134), Baudelaire (p.139), Shakespeare (p.159), Herman Melville

(p.239), Jorge Isaacs (p.153, p.278) – além de García Márquez e obviamente Conrad, cujas

presenças serão analisadas no próximo tópico. Portanto, ao narrar fatos históricos e discorrer

reflexivamente sobre a história, Altamirano o faz a partir da literatura – é este o seu lugar de

enunciação. Replicando o deslocamento físico e cultural que se verifica na narrativa (autor e

narrador escrevem sobre a Colômbia a partir de Londres), há também um deslocamento

discursivo, no qual a história é observada pelas lentes da literatura. Daí sua percepção como

um corpo estranho, o olhar permanente crítico em relação não apenas à escrita mas a outras

premissas que fundamentam o trabalho dos historiadores. As comparações com a literatura

afloram com frequência. Altamirano observa que, curiosamente, a história não tem “la

cargante obligación de ser verosímil” (p.71), ou seja, contém uma veracidade presumida pela

autoridade de seu discurso. Por outro lado, reprocha o afã de respostas que rege o trabalho dos

historiadores (p.173), preocupação que, Vásquez afirma em vários ensaios, é exatamente

contrária à dos melhores escritores, que fazem perguntas sem pretender respondê-las.

Impelidas pela culpa e pela dor, as memórias de Altamirano evidenciam, antes de

tudo, a permanência do passado, sua presença incontornável ecoando fatos e impondo ânsias

de compreensão. Seu maior aprendizado é expresso desde o início: não existem barreiras entre

a história individual e a história coletiva – falar de uma é reportar-se necessariamente à outra.

São seus dramas pessoais que o defrontam com a história, ciente de que os acontecimentos

estão sempre imbricados. “Todos los hechos, lo he aprendido con el tiempo – la letra con

sangre entra –, están conectados: todo es consecuencia de todo lo demás” (p.263).

30

Faltaria apenas perguntar “o quê” para completar as seis questões do modelo clássico do lide, ou seja, o primeiro parágrafo de uma notícia.

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É inútil, ele reitera (p.200), tentar alijar-se da história, assim como vã é qualquer

tentativa de prevê-la (p.36). Há uma vulnerabilidade irremediável, inclusive porque o acaso

intervém com bastante frequência (p.22) e “lo que ha de suceder [...] acaba sucediendo”

(p.283). Figura onipresente no livro, pairando às vezes irônico, às vezes impertinente, o “Anjo

da História” está sempre por trás dos destinos dos personagens – sem jamais anunciar sua

chegada.

La muerte de Charlotte – mi salvavidas, mi último recurso – a manos de la Guerra

de los Mil Días fue un memorando en el cual alguien me recordaba las hierarquías

que era necesario respetar. Alguién, Ángel o Górgona, me recordaba que al lado de

la República de Colombia y sus avatares mi vida minúscula era un granito de sal, un

asunto frívolo y sin importancia, el relato de un idiota lleno de ruido, etcétera

(p.225).

Por um lado, pode-se notar na presença recorrente do anjo um diálogo direto com a

alegoria de Walter Benjamin, exposta em sua nona tese sobre a história (1942). No famoso

texto, o crítico alemão parte do quadro “Angelus Novus”, de Paul Klee, para descrever o

“anjo da história”, uma figura que, com os olhos escancarados, a boca dilatada e as asas

abertas, olha para o passado e vê, onde vemos uma cadeia de acontecimentos, “uma catástrofe

única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés”.

Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma

tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não

pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao

qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa

tempestade é o que chamamos de progresso (BENJAMIN, 1987, p.226).

Para Michel Löwy (2005), a alegoria expressa o pessimismo de Benjamin com o

progresso, a “tempestade” que expulsou o anjo do paraíso e o impele inexoravelmente ao

futuro, sem permitir que desça e cuide “das feridas das vítimas esmagadas sob os escombros

amontoados” (p.90). Diferentemente de Hegel, que via “cada infâmia histórica como etapa

necessária da marcha triunfal da Razão” (p.92), Benjamin acreditava que o acirramento da

modernidade serviria apenas para acentuar a exclusão e a violência.

A atitude de Benjamin consiste exatamente em inverter essa visão da história,

desmistificando o progresso e fixando um olhar marcado por uma dor profunda e

inconsolável, mas também por uma revolta moral – nas ruínas que ele produz

(LÖWY, 2005, p.92).

Considerando que as “maldições” do protagonista (VÁSQUEZ, 2007, p.73) se dão

precisamente no Panamá – que na época simbolizava o progresso para os colombianos –, a

alegoria de Benjamin se presta sob medida para o desiludido Altamirano, que por vezes vê na

antiga província a mesma aura infernal que, para o filósofo alemão, representava a

modernidade – ou seja, o oposto do paraíso do qual o anjo foi expulso (LÖWY, p.90). Basta

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lembrar o epíteto de “Gomorra caribeña” que o narrador dá a Colón durante a Guerra dos Mil

Dias (VÁSQUEZ, 2007, p.214).

Por outro lado, enquanto o anjo de Benjamin expressa horror com o sofrimento

humano, o de Altamirano mostra-se muito menos piedoso: aparece como um “brillante

asesino en serie” (p.201), um “excelso comediante” (p.275), um sardônico “titiritero” (p.181)

que gargalha toda vez que – “impertinente” e “fastidioso” (p.68) – imiscui-se nas vidas

privadas a fim de lhes ditar o curso. Ao rememorar sua tragédia pessoal, Altamirano não vê

possibilidade de impactos benéficos dos “Grandes Acontecimentos”. E as frases ditas uma vez

por Conrad – “o homem é um animal malvado”; “sua perversidade deve ser organizada” –

ecoam longamente em sua memória. “Querido Conrad, ¿por qué no me diste la oportunidad

de protegerme de los hombres malvados y de su organizada perversidad?” (p.201)

Em entrevistas, Vásquez classificou Historia secreta de Costaguana não como um

romance histórico, mas um romance sobre a história. Esta definição, que põe em primeiro

plano seu interesse reflexivo, nos convida a examinar outros comentários do escritor sobre as

relações entre história e literatura. Entre estes, merece destaque o ensaio “El arte de la

distorsión”, apresentado pela primeira vez em uma leitura pública em 2006, quando Vásquez

já havia concluído mas não lançado o romance. No texto, Vásquez recorre a uma citação de

Milan Kundera para enfatizar a diferença entre os romances que examinam “la dimensión

histórica de la existencia humana” e os que fazem “la ilustración de una situación histórica”,

ou seja, “la descripción de una sociedad en un momento dado, una historiografía novelada”

(VÁSQUEZ, 2009, p.37). Identificando-se naturalmente com a primeira categoria, Vásquez

diz que o segundo grupo o interessa pouco, basicamente porque “la historiografía escribe la

historia de la sociedad, no del hombre” (idem).

Para decirlo de otra forma: a estas novelas no les interesan los individuos, sino el

telón de fondo; no les interesa explorar aquello que Kundera llama de la dimensión

histórica del ser humano, sino vulgarizar los hechos que todos conocemos; son

novelas que desnaturalizan el arte de la novela, por lo menos si creemos, como cree

Kundera y creo yo, que la única razón de ser de la novela es decir lo que sólo la

novela puede decir (p.37-38).

Entre os escritores que, por sua vez, pertencem à primeira vertente apontada por

Kundera, a principal característica, segundo Vásquez, é a liberdade com que incursionam pela

história, arrogando-se o direito de mudar datas, alterar cenários e destruir causalidades. “Sin

formar escuelas, sin firmar manifiestos, varios novelistas de distintas lenguas se han dado

cuenta de la posibilidad de otra novela histórica cuya fortaleza se concentra toda en algo que

llamaré el arte de la distorsión”, comenta (p.38). Vásquez cita como exemplos os romances

Meu nome é vermelho (1998), do turco Orhan Pamuk, Illywhacker (1985), do australiano

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Peter Carey, e Cien anos de soledad (1967), do colombiano Gabriel García Márquez31

. Essas

três obras, diz, subvertem a ideia de verossimilhança ao abordarem fatos históricos –

preservando alguns, mas embaralhando e modificando outros.

Esta postura, acredita, deve-se em grande medida aos debates que dominam a

historiografia pelo menos desde os anos 1960, do qual emerge, como afirmamos no primeiro

capítulo, a noção da história como ficção, ou da impossibilidade de se conhecer a história, ou

ainda de que toda história, por ser contada, é apenas uma versão. Afirma Vásquez: “[...] si se

nos dice que toda historia es ficción, los novelistas entendemos que la única forma de revelar

el pasado es tratarlo como un producto narrativo, susceptible por lo tanto de ser recontado de

cualquier forma” (2009, p.43).

Segundo ele, transposta “a un contexto distinto del que le es propio, rodeada de ciertas

ficciones bien escogidas por el narrador, la historia nos revela sus secretos con más

generosidad que la historiografía más exhaustiva” (p.41). E acrescenta que “la manipulación

de la verdad histórica por parte del novelista lo conduce a la revelación de verdades más

densas o más ricas que las unívocas y monolíticas verdades de la historia” (idem).

4.3 Entre Conrad e García Márquez

Esta defesa da ficção é reforçada pela presença de Conrad e do romance Nostromo no

livro de Vásquez. Presença essa que, para além do título, se manifesta a toda hora, das

diversas passagens em que o narrador menciona a obra às quatro epígrafes que integram o

romance (três fragmentos de Nostromo e um trecho de carta a Robert Cunninghame-Graham,

na qual Conrad, ao anunciar a “audácia” de ambientar um livro na América Latina, parece

pedir licença ao amigo, célebre viajante, para entrar num mundo em que este era muito mais

versado).

Uma primeira e óbvia constatação é que, ao colocar a autobiografia do protagonista

forçosamente à sombra do romance de Conrad, Vásquez proclama o maior alcance da ficção

entre as formas de narrar o passado. Sabe-se que, 25 anos antes de escrever Nostromo, Conrad

viajou pela América Latina e o Caribe, então um jovem marinheiro ávido por aventuras. Sabe-

se também que, em seu processo criativo, recorreu a livros e a sólidos conhecedores da região,

como o exilado colombiano Santiago Pérez Triana, que acabara de publicar seu relato de fuga

da ditadura conservadora32

. Mas, apesar do lastro dessas referências, Nostromo é, acima de

tudo, uma “obra da imaginação”, como define Malcolm Deas (2006, p.272). Trata-se, mais do

31

Comentarei no próximo tópico essa leitura inusitada da obra de García Márquez. 32

De Bogotá al Atlántico (1902).

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que isso, do “esforço imaginativo mais profundo que existe na literatura inglesa para

compreender um ambiente latino-americano” (idem, p.271, tradução nossa).

Com seus numerosos males – a violência endêmica, os consecutivos golpes de Estado,

a corrupção enraizada, a imprevisibilidade política –, a república fictícia de Costaguana nos

fala mais sobre a Colômbia do século XIX e início do XX do que muitos livros que,

explicitamente, se propõem a esmiuçar o país daquele período. “Poucos países imaginários,

poucos países verdadeiros, têm vida tão duradoura e tão complexa na mente do leitor”,

assinala Deas, para quem a obra de Conrad “compreende uma era na história latino-

americana” (idem, p.271), com o mérito de ser um dos poucos romances capazes de abordar

com êxito a política em suas ambiguidades.

Leitor devotado de Conrad, autor de uma biografia sobre o escritor 33

, Vásquez disse

considerar Nostromo o melhor romance sobre a América Latina já escrito fora da língua

espanhola. Em um pequeno ensaio sobre o livro, Vásquez o vincula ao cânone da literatura

hispano-americana, classificando-o como um dos principais e menos citados antecedentes do

boom. Nas suas palavras, Nostromo é “mucho más precisa desde um punto de vista moral,

mucho más inteligente desde un punto de vista político y mucho más moderna desde un punto

de vista narrativo que cualquier novela latinoamericana anterior a Pedro Páramo”

(VÁSQUEZ, 2009, p.147-149).

Antes mesmo de chegar à trama, Nostromo interessa pelas histórias ao redor de sua

gênese. Apesar das diferentes conjecturas, nenhum dos mais de cem biógrafos de Conrad

conseguiu estabelecer ao certo a experiência que o escritor teve na Colômbia – e se teve de

fato alguma experiência (GAVIRIA, 2000). Em 1876, quando contava apenas 18 anos,

Conrad viajou pela terceira vez ao Caribe, partindo de Marselha, onde vivia, para Saint Pierre,

na Martinica. Embora os registros do Saint-Antoine, o veleiro que fez o trajeto, informem que

o barco jamais saiu do roteiro previsto (voltando da Martinica com escalas em Saint Thomas e

Porto Príncipe), a maioria dos biógrafos acredita em incursões adicionais feitas pelo jovem

marinheiro. A ordem, os meios e os destinos do suposto périplo são motivos de controvérsia,

mas geralmente se consideram os relatos feitos pelo próprio Conrad, que em cartas e textos

autobiográficos cita passagens pela Colômbia e pela Venezuela. O escritor refere-se às

localidades venezuelanas de Puerto Cabello e La Guaira, e numa carta a Elizabeth Dummet,

companheira de Cunninghame-Graham, evoca com nostalgia uma visita a Cartagena, cuja

menção lhe impunha agora “o sentimento de juventude perdida” (apud GAVIRIA, 2000,

33

El hombre de ninguna parte (Bogotá: Panamericana, 2004).

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tradução nossa). Para muitos de seus biógrafos, a experiência colombiana foi além e abarcou

ainda as cidades de Santa Marta, Sabanilla e Aspinwall (Colón, no atual Panamá). Mas não há

documento que comprove. Da mesma forma, permanece no plano especulativo a hipótese,

bastante difundida, de que Conrad levou um contrabando de armas para conservadores

colombianos. Até mesmo García Márquez alimentou a crença, ao mencioná-la, ligeiramente

alterada, no último capítulo de El amor em los tiempos del cólera (1985)34

.

Seja como for, a geografia e a história da Colômbia aparecem inconfundíveis na

república de Costaguana. Há quem note uma feição híbrida no país criado por Conrad, com

traços colombianos mas também venezuelanos, paraguaios, argentinos e de outras nações

sobre as quais o escritor leu intensamente durante o processo criativo. Mas os aspectos do Rio

da Prata, segundo Malcolm Deas, servem apenas para dar “certo sensacionalismo” ao passado

do país inventado. “Costaguana, em sua geografia, seus recursos, sua raça, sua política, é um

Estado do trópico, Estado dos que foram libertados por Bolívar [...]”, diz o historiador

britânico (idem, p.281). Alejandro Gaviria (2000), por sua vez, ressalta as similaridades entre

a paisagem de Sulaco, principal espaço da narrativa, e o panorama de Cartagena e Santa

Marta. Tanto Sulaco quanto Santa Marta, afirma Gaviria, estão à beira de uma baía da qual se

vê a cordilheira coberta de neve; tanto Sulaco quanto Cartagena estão cercadas por uma

muralha e resguardadas do mar aberto por ilhotas desoladas.

É no campo da história, porém, que as coincidências são mais marcantes – sobretudo,

no relato da emancipação de Sulaco, que ocupa o centro da trama de Nostromo. Neste caso, as

diferenças com a realidade – isto é, com a independência do Panamá – vão pouco além do

nome e do elemento que confere riqueza às províncias. Enquanto o Panamá se distingue por

uma peculiaridade de seu território – o mais estreito do continente americano, ideal para um

canal interoceânico –, a prosperidade de Sulaco se assenta em imensas reservas de prata. É a

defesa deste patrimônio – explorado com êxito por um costaguanense de ascendência inglesa

– que determina, no romance, a luta pela autonomia da província, em resposta a um novo

golpe de Estado iniciado na capital. Assim como na realidade, o apoio dos Estados Unidos –

bélico, financeiro e político – é decisivo para o triunfo do movimento. A presença de um

barco norte-americano garante a vitória dos independentistas, e o governo de Washington é o

primeiro a reconhecer o país surgido do confronto.

Desta forma, sem trair o propósito de refletir “toda uma época na história da América

Latina” (apud VÁSQUEZ, 2009, p.148, tradução nossa), Conrad cria a melhor versão

34

O romance de García Márquez, aliás, é citado pelo narrador de Vásquez, como comentarei mais à frente.

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romanesca para um incidente específico que figura entre os mais emblemáticos do

intervencionismo norte-americano do início do século XX. Em sua correspondência pessoal, o

escritor se mostra bem-informado – e inequivocamente crítico – sobre a participação dos

Estados Unidos na independência do Panamá. “E a propósito, o que você acha dos

Conquistadores ianques no Panamá? Bonito, não?”, escreve ele a Cunninghame Graham

(apud VÁSQUEZ, idem, p.151). Daí se ver nas páginas de Nostromo “uno de los grandes

enjuiciamientos literarios del imperialismo”, como considera o escritor colombiano (idem,

p.152)35

.

Partilhando as riquezas de Sulaco, capitalistas ingleses e norte-americanos articulam

não apenas a independência da província, mas, antes dela, a ascensão de um ditador que,

durante cinco anos, defendeu os interesses da elite em detrimento dos mais pobres. Maior

tesouro de Sulaco – imperium in imperio, como diz um personagem –, a mina de San Tomé

tem o financiamento de um poderoso investidor norte-americano confiante no progresso e no

“Destino Manifesto”:

Estaremos pontificando em toda parte: indústria, comércio, leis, jornalismo, arte,

política e religião, do cabo Horn até o estreito de Smith, e inclusive além, se alguma

coisa de valor surgir no polo Norte. E então teremos vagares para tomar a nosso

cargo as ilhas e continentes mais afastados da Terra. Dominaremos os negócios do

mundo, quer o mundo goste, quer não. O mundo não pode evitar, e nós tampouco,

acho. (CONRAD, p.79, 2007).

Ordem e anarquia, revolução e imperialismo, capital, liberdade, democracia e

demagogia são alguns dos ingredientes de Nostromo (DEAS, 1992), romance político que

mostra a política como algo inescapável, tal como Vásquez em Historia secreta de

Costaguana e nos outros dois romances da trilogia. Charles Gould, o impassível dono da mina

que apoia a contrarrevolução, não é o primeiro da família a ter de renunciar a uma ilusória

postura de neutralidade:

Seu tio entrou para a política, foi o último presidente da província de Sulaco, e o

fuzilaram depois de uma batalha. Seu pai foi um destacado homem de negócios em

Santa Marta, tentou manter-se longe da política, e morreu arruinado depois de uma

porção de revoluções. Eis, numa palavra, o que é Costaguana (CONRAD, idem,

p.81).

Obstinado e taciturno, idealista e pragmático, Gould encarna a ambiguidade que, para

Vásquez (2009, p.107), constitui um dos requisitos para o tratamento exitoso da política em

um romance. O mesmo ocorre com Nostromo, o capataz incorruptível que no entanto se

35

Edward Said, no entanto, destaca as contradições de Conrad, que criticava o imperialismo, mas não conseguia enxergar o mundo para além da lógica ocidental. “Tudo o que Conrad consegue ver é um mundo totalmente dominado pelo Ocidente atlântico, onde toda oposição ao Ocidente apenas confirma o poder iníquo do Ocidente. O que Conrad não consegue ver é uma alternativa a essa cruel tautologia” (SAID, 1995, p.16).

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corrompe; Martin Decoud, o cínico cosmopolita que articula a independência de Sulaco; e o

doutor Monygham, médico sardônico capaz de um grande heroísmo. Personagens que, na

morte trágica ou na solidão, ilustram “a incompatibilidade de raiz entre ideal e o real”, que

José Paulo Paes (2007, p.513) considera um dos leitmotive do romance. Na história de

Nostromo, diz o crítico brasileiro, “toda ação, quando bem-sucedida, acarreta a „degradação

moral da ideia‟ que a inspirou” (idem). Com isso, o que prevalece no fim é o ceticismo com a

política, evidenciado, entre outras coisas, pelo descontentamento massivo da população nos

anos seguintes à independência.

Mas a crítica de Conrad está longe de se ater aos danos da exploração neocolonial.

Tempos antes de perder Sulaco, Costaguana já era uma “caverna de ladrões, intrigantes e

bandoleiros”, conforme definia o amargurado pai de Charles Gould (CONRAD, 2007, p.62).

Com “sua história de opressão, ineficiência, métodos estultos, traição e selvagem brutalidade”

(p.106), o país era marcado pela “atmosfera política tempestuosa” e pelas “frequentes

mudanças do governo acarretadas por revoluções de tipo militar” (p.22).

Por todos esses elementos, Nostromo talvez se imponha de forma irremediável sobre

todo romance que, como Historia secreta de Costaguana, pretenda falar sobre a Colômbia do

século XIX e a independência do Panamá. É esta presença ineludível que Vásquez explicita

em seu livro. Não por acaso, a obra começa com a morte de Conrad e termina no encontro de

José Altamirano com o escritor inglês. Ao ver-se ausente do produto fictício de seu relato,

Altamirano, a testemunha decisiva, torrencial e desesperada, ofende-se não apenas por ter

desaparecido como agente histórico, mas por ver antecipadamente frustradas suas pretensões

de autoria. Ao “roubar” a história de sua vida – e das vicissitudes colombianas que

determinaram seu curso –, Conrad escreveu o romance que o protagonista de Vásquez poderia

escrever. Daí por diante, para que seu livro se justifique, Altamirano terá forçosamente de

mencionar a obra de Conrad (“El Libro del Carajo”, p.150) e o “roubo” perpetrado por este. Já

na segunda página, o personagem anuncia que “de alguna manera todo lo que les cuente a

ustedes estará dirigido a explicar y explicarme, eslabón por eslabón, la cadena de sucesos que

provocó el encuentro al que mi vida estaba destinada (p.14). Sua autobiografia não existe

mais sem a biografia do escritor inglês. Seu esforço, ao mesmo tempo que conta sua história,

é o de expor os laços invisíveis, as “líneas paralelas” que o unem a Conrad. Ambos são, para

ele, “almas gemelas” (p.59), “dos encarnaciones de un mismo José, dos versiones del mismo

destino” (idem). O deboche de algumas cenas, as indiscrições de alguns trechos podem

sugerir certo espírito vingativo no biógrafo. Mas o que prevalece, apesar do ressentimento

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declarado, é a admiração por Conrad, descrito logo no início como “el Gran Novelista de la

lengua inglesa” (p.13).

Além do argumento central e das menções diretas ao romance de Conrad, há outros

aspectos de Nostromo em Historia secreta de Costaguana. Se o tom geral, de uma

dramaticidade mais tensa, discrepa da narração satírica de Vásquez, algumas passagens têm o

histrionismo que caracteriza a obra do escritor colombiano. A verborragia e a paixão pela

oratória são citadas constantemente: “O ar do Novo Mundo parece favorável à arte da

declamação. Você por acaso esqueceu que o nosso caro Avellanos é capaz de arengar horas a

fio...?”, comenta Charles Gould (CONRAD, 2007, p.84), referindo-se ao personagem que,

segundo o próprio Conrad, foi inspirado em seu informante colombiano, Santiago Pérez

Triana.

Chefes de Estado – sobretudo militares – são invariavelmente ridicularizados: “[...] as

narinas arfantes, o olhar imbecil e arrogante do glorioso vencedor de Río Seco tinham algo de

ominoso e inacreditável [...]”, diz o narrador sobre o general Montero (p.118). Os confrontos

entre os partidos dominantes – que Conrad transforma em blancos e negros – semelham “um

jogo pueril e sanguinário de assassínio e rapina jogado com terrível seriedade por crianças

depravadas” (p. 54). E a própria atmosfera de farsa que marca o romance de Vásquez é

sugerida por um personagem de Nostromo como típica de Costaguana:

Imaginem uma atmosfera de opéra bouffe em que todos os assuntos cômicos de

estadistas, bandoleiros e muitas outras figuras de fancaria, a roubar, intrigar e

apunhalar farsescamente são encenados com mortal seriedade. É demais; corre

sangue o tempo todo e os próprios atores acreditam estar influenciando o destino do

universo (CONRAD, idem, p.142).

Não bastassem esses aportes, a presença de Conrad se manifesta de forma mais ampla.

A começar pela figura do escritor, cuja vida é recontada por Vásquez três anos depois de

lançar a pequena biografia encomendada pela editora Panamericana, de Bogotá. Apesar das

coincidências, o romance não faz a mera transposição do texto biográfico. O que se vê agora –

ainda que possa soar óbvio – é um Conrad romanceado, personagem que não escapa nem à

irreverência nem à distorção da história que marcam o livro. Exemplo de irreverência é o

episódio do abscesso anal, cuja hilária descrição inclui o relato de um crítico fictício que teria

considerado o furúnculo “el verdadero corazón de las trevas” (p.109). Exemplo de distorção

são as cenas de Conrad na Colômbia, em que Vásquez abandona a incerteza factual – que fez

questão de preservar na biografia – e mostra o jovem Korzeniowski não apenas

desembarcando em Colón (hipótese jamais provada) como tomando um trem para traficar

armas na Cidade do Panamá (o que nem costuma ser cogitado).

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Mais importante, porém, é um dado mencionado na nota que sucede ao término do

romance. Ao citar “ciertas frases ajenas que acompañaron como guías o como tutores en la

escritura de la novela”, Vásquez inclui um trecho do conto “Guayaquil”, de Borges: “Acaso

no se puede hablar de aquella república del Caribe sin reflejar, siquiera de lejos, el estilo

monumental de su historiador más famoso, el capitán José Korzeniowski” (p.291-292).

Refletir, mesmo de longe, o estilo de Conrad parece ter sido uma das buscas de Vásquez no

romance. Isso se dá particularmente na criação do Panamá selvático explorado por Miguel

Altamirano. A floresta densa e inescrutável do Darién, acossada pelo perigo e pelo calor

asfixiante, é claramente inspirada no Congo percorrido por Conrad e pelo narrador de No

coração das trevas. Para explicitar essa influência, Vásquez chega a escrever dois trechos

praticamente idênticos:

Don Blas se había presentado en su casa la noche anterior, y le había dicho:

“Empaque para unos cuantos días. Mañana nos vamos de expedición”. Miguel

Altamirano obedeció, y cuatro días después estaba entrando en la selva del Darién,

acompañado de noventa y siete hombres, y durante una semana caminó detrás de

ellos en la noche perpetua de la selva, y vio a los hombres descamisados abrirse paso

a machetazo limpio mientras otros, los blancos de sombrero de paja y camisas de

franela azul, anotaban en sus cuadernos todo lo que veían: la profundidad del río

Chucunaque al tratar de vadearlo, pero también el cariño que los escorpiones sentían

por los zapatos de lona; la constitución geológica de un desfiladero, pero también el

sabor de los micos asados y pasados con whisky (VÁSQUEZ, 2007, p.66).

Prosper Harou, el guía de la Sociedad, se le acerca una tarde y le dice: “Empaque

para unos cuantos días, señor Conrad. Mañana nos vamos de expedición”. El capitán

Joseph K. obedece, y dos días después está entrando en la selva del Congo,

acompañado de treinta y un hombres, y durante treinta y seis días camina detrás de

ellos en la humedad inclemente del calor africano, y ve a los hombres negros y

semidesnudos abrirse paso a machetazo limpio mientras aquel blanco vestido con

camisa suelta anota en su diario de viaje – y en lengua inglesa – todo lo que ve: la

profundidad del río Congo al tratar de vadearlo, pero también el trino de los pájaros,

uno parecido a una flauta, el otro como el aullido de un sabueso; el tono general y

más bien amarillento del pasto de un barranco, pero también la altura inusitada de la

palma de aceite (VÁSQUEZ, idem, p.187).

Ressaltar a influência que um escritor inglês de origem polonesa pode ter em um

escritor colombiano. Evidenciar como suas ferramentas e concepções literárias podem servir

para narrar um contexto que, na visão apressada do senso comum, lhe seria de todo alheio.

Mostrar outros caminhos além do realismo mágico de García Márquez para abordar a

Colômbia trágica e rocambolesca do século XIX. Estes são, acredito, alguns dos objetivos de

Vásquez ao colocar Conrad no centro de seu romance. No ensaio “Malentendidos alrededor

de García Márquez”, publicado pela primeira vez em 2005, Vásquez enfatiza um ponto muitas

vezes negligenciado: a influência na literatura independe de territórios compartilhados.

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Vincular-se a escritores de outras partes – e, principalmente, de ninguna parte – tem sido uma

das tônicas de seus comentários sobre sua própria obra.

A busca de uma genealogia alternativa vem sendo formulada por Vásquez pelo menos

desde 2004, quando leu, na Feira do Livro de Bogotá, o já citado ensaio “Literatura de

inquilinos”, depois incluído em El arte de la distorsión (2009). Neste texto, ao refletir sobre a

experiência do deslocamento e indagar quais seriam as possíveis marcas da escrita produzida

fora do país de origem, Vásquez identifica nas obras de Conrad e Naipaul a consequência a

seu ver mais fecunda da extraterritorialidade: o abandono das certezas, da ideia de

compreensão, da ilusão, sobretudo, de que se conhece o lugar do qual se parte. Segundo ele,

diferentemente de Hemingway e André Malraux, que adentravam terras estrangeiras com a

firmeza de quem pisa em um território conhecido, Conrad e Naipaul transformaram a

condição de viajantes em um modo de penetrar zonas escuras. Uma evidência disso, afirma, é

a presença da palavra “escuridão” no título original de duas obras dos autores: Heart of

Darkness (No coração das trevas) e An Area of Darkness (não traduzida ao português). De

acordo com o escritor, mais do que as semelhanças de suas trajetórias – “un polaco que

aprendió su lengua literaria pasada la adolescencia, y un caribeño que inventó su propia

versión del inglés” –, Conrad e Naipaul compartilham “una cierta identidad, una cierta

poética” (VÁSQUEZ, 2009, p.185), segundo a qual “la novela es un género inquisitor, un

género que funciona mejor cuando se adentra en territorios desconocidos o inexplorados,

cuando lleva a cabo una averiguación, una iluminación […]” (idem). Declarando ter

“afinidades insospechadas con la biografía de esos novelistas” e olhar suas trajetórias como

“amuleto, quizás como fetiche” (p.184), Vásquez tomou para si esta concepção do romance e

recorre a ela com frequência ao falar de sua própria obra. Nessas ocasiões, sempre ressalta a

importância do deslocamento para sedimentar tal perspectiva36

.

Com isso, ao fazer de Conrad – “El hombre de ninguna parte” – uma figura central de

seu romance, Vásquez não apenas reforça sua filiação ao escritor como enfatiza, mais uma

vez, o potencial criativo contido na experiência extraterritorial. É preciso lembrar que

Nostromo foi escrito na Inglaterra, por um romancista inglês de origem polonesa, 25 anos

depois de sua breve passagem pelo continente que o inspirou. É, portanto, fruto do

deslocamento, de uma memória que, tão longe do ponto de partida, é quase tabula rasa para a

invenção. As cartas de Conrad mostram-no digladiando-se com as lembranças, tentando

reunir os vestígios do que ficara da remota experiência de marinheiro. “Só dei uma olhada há

36

Exemplo disso está na entrevista que anexo ao fim da tese.

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25 anos. Isso não é suficiente pour bâtir un roman dessus”, escreve a Cunninghame Graham

(apud VÁSQUEZ, 2009, p.148). Em busca de mais elementos, recorre a livros de viajantes e

faz contato com Santiago Pérez Triana, que o próprio Cunninghame Graham lhe havia

apresentado. Duplo deslocamento: o escritor inglês de origem polonesa se informa sobre a

Colômbia com um exilado colombiano. Em Historia secreta de Costaguana, como comentei

anteriormente, todos que falam são também personagens deslocados.

Ainda assim, o romance não se furta de todo à influência de García Márquez. No

emaranhado de referências que marcam a narrativa, há outro livro, além de Nostromo, que

assume posição de destaque. Trata-se de Cien años de soledad, cuja presença é bem menor

que a do romance de Conrad, mas apesar disso digna de nota. Como empreender uma

proposta tão parecida – uma ficção que atravessa um século de história colombiana – sem

absorver alguma influência do livro de García Márquez? Como falar das guerras civis, dos

fuzilamentos, das ditaduras, do calor implacável do Caribe sem incorporar nenhum elemento

da obra-prima do escritor de Arataca? Vásquez não foge dessas perguntas, e a primeira coisa

que faz é evocar o livro pela negação: “Tranquilízate, querida Eloísa: este no es uno de esos

libros donde los muertos hablan, ni las mujeres hermosas suben al cielo, ni los curas se

levantan del cielo al tomar un brebaje caliente” (VÁSQUEZ, 2007, p.24), diz o narrador. Nem

mesmo o trecho seguinte, em que Altamirano pede licença e concede a um chinês morto o

poder de contar os infortúnios do Panamá, significa mais que uma ironia. Em Historia secreta

de Costaguana, praticamente não há sombra, como não há em nenhum romance de Vásquez,

do realismo mágico associado a García Márquez – ou, para dar uma definição sucinta de um

conceito tão esquivo, da estética que magnifica episódios triviais (o contato com o gelo, por

exemplo) e narra como corriqueiros acontecimentos prodigiosos (um homem que se volatiza

ao tomar uma poção mágica, para dar outro exemplo).

Mas há ecos de Cien años de soledad. Em sua maioria, discretos, fugazes, quase

imperceptíveis: um coronel que, como Aureliano Buendía, urina sob uma castanheira

(VÁSQUEZ, 2007, p.262); um engolidor de fogos que nos remete aos artistas e

prestidigitadores de Macondo (p.219). Mais nítida, a meu ver, é a influência em uma cena

específica, a da execução do rebelde liberal Pedro Prestán (p.157), acusado de atear fogo em

Colón. Por vários aspectos – a começar pelo cenário: uma estação de trem –, a passagem

guarda semelhanças com o episódio do Massacre das Bananeiras, testemunhado por José

Arcadio Segundo em Cien años de soledad. Os dois casos partem de acontecimentos

históricos de grande comoção, porém de repercussão difusa e documentação rarefeita. Sabe-se

que, em dezembro de 1928, trabalhadores colombianos foram mortos numa estação de trem

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enquanto protestavam contra a United Fruit Company – mas até hoje não se sabe quantas

pessoas morreram. Da mesma forma, sabe-se que Pedro Prestán foi enforcado, injustamente,

por ser responsabilizado pelo incêndio que atingiu Colón na guerra civil de 1885. Os detalhes

da execução, porém, não aparecem nos livros de História.

Para dar expressividade a essas cenas – que poderiam ter a magnitude embotada pelos

critérios da historiografia –, García Márquez e Vásquez se valem de uma mesma operação

narrativa, que mistura dados históricos com elementos puramente ficcionais. No caso de

García Márquez, o Massacre das Bananeiras ganha intensidade com a descrição detalhada das

reações de José Arcadio Segundo. A mulher que pede para ele segurar seu filho, o grito que

lança aos militares (“!Cabrones! Les regalamos el minuto que falta.”), o desespero com os

disparos, o rosto coberto de sangue, o trem repleto de mortos e o aturdimento, finalmente,

com que escuta as pessoas em Macondo. “Debían ser como trés mil”, ele diz a todos. “Aquí

no ha habido muertos”, respondem (GARCÍA MÁRQUEZ, 2007, p.346-350).

De forma análoga, Vásquez recorre à caracterização dos personagens para imprimir

impacto à execução de Prestán. Note-se como a descrição das figuras presentes – dos

pedreiros mulatos ao verdugo sem capuz – confere complexidade à cena. A fragilidade do

condenado é acentuada por suas roupas largas e o desamparo infantil com que sobe ao

patíbulo improvisado.

Desde el segundo piso de un edificio dañado por un incendio vi a cuatro obreros,

mulatos como el condenado, armar en cosa de horas un pórtico de madera; entonces

apareció, rodando sin ruido por los rieles, una plataforma de carga. Pedro Prestán

subió a la plataforma, o más bien fue puesto en ella de un empujón, y tras él subió

un hombre que no tenía capucha, pero que sin duda oficiaría como verdugo. Allí,

debajo del pórtico de madera barata, Prestán parecía un niño perdido: las ropas le

quedaban repentinamente grandes; el sombrero de bombín parecía a punto de caerse

de su cabeza. El verdugo dejó sobre la plataforma una bolsa de lona que había

estado cargando, y de la bolsa sacó una cuerda tan bien engrasada que vista desde

lejos parecía una víbora (absurdamente pensé que a Prestán lo matarían con su

mordida venenosa.) El verdugo lanzó la soga por encima del travesaño y con el otro

extremo rodeó la cabeza del condenado, con delicadeza, como si temiera rasgarle la

piel. Apretó el nudo corredizo; bajó de la plataforma. Y entonces, sobre los rieles del

ferrocarril de Panamá, la plataforma se deslizó con un silbido, y el cuerpo de Prestán

quedó colgando en el vacío. El ruido de su cuello al romperse se confundió con el

sacudón de la madera. Era madera barata, y Panamá, de todas formas, era un lugar

donde las cosas sacudían (VÁSQUEZ, 2009, p.157).

Este desprendimento com a história é, para Vásquez, o grande aporte de García

Márquez em Cien años de soledad. Trata-se, em suas palavras, da “arte de distorsionar la

historia”, da qual a cena do massacre seria, em sua análise, o exemplo mais emblemático na

obra-prima do antecessor: “[...] puedo decir que no hay otras páginas de la ficción colombiana

que haya leído más veces, siempre sintiendo ese hormigueo en la nuca que es para Nabokov la

señal de que estamos leyendo algo grande”, afirma Vásquez em “El arte de la distorsión”

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(2009, p.41). Ao ler Cien años de soledad como romance histórico – “una arbitrariedad casi

insostenible, un capricho un poco vergonzante” (idem, p.36) –, Vásquez ilustra a concepção

de influência que expõe em um ensaio anterior, o já citado “Malentendidos alrededor de

García Márquez”, de 2005. Neste texto, Vásquez afirma que as influências em um bom

escritor jamais são involuntárias, e sim escolhas conscientes feitas em meio à busca de

ferramentas capazes de transformar a experiência em literatura37

. “La toma por asalto de un

novelista cuyo método es útil para contar la propia realidad: eso es la influencia”, define

(idem, p.68). Recorrendo ao clássico A angústia da influência (1973), do crítico norte-

americano Harold Bloom, Vásquez aponta para a tensão que se estabelece entre o escritor

antecessor e o sucessor. Este, ao assumir a influência de um livro importante, sempre faz,

segundo Bloom, uma “má-interpretação”, uma “má leitura” do romance precedente (o que

Bloom denomina misreading em inglês). Em outras palavras: uma leitura revisionista da obra

que o influencia, partindo da ideia (talvez “uma mentira necessária”) de que “o livro do pai” é

insuficiente, defeituoso, incompleto. Neste sentido, de acordo com o crítico norte-americano

(apud VÁSQUEZ, idem, p.69), o que diferencia os escritores medíocres dos genuínos é que

os primeiros idealizam e apenas imitam, ao passo que os últimos se apropriam dos livros

alheios. É na primeira categoria, segundo Vásquez, que se encontra a maioria dos autores

colombianos que se dizem influenciados por García Márquez.

Los imitadores más baratos de García Márquez son incapaces de esta mala

interpretación; leen de manera tan aséptica y tan respetuosa que sus productos son

meros pastiches, pues no tienen el menor problema en repetir en sus libros los

procedimientos leídos – repetirlos, insisto, no corregirlos. Se vuelven, así, mera

imitación, cuando deberían ser crítica (VÁSQUEZ, idem, p.69, grifo do autor).

Neste ensaio, Vásquez não faz nenhuma consideração sobre os acertos de Cien años

de soledad como romance histórico, o que nos leva a crer que ainda não tivesse empreendido

a leitura enviesada que lhe permitiu encontrar ferramentas úteis para Historia secreta de

Costaguana. No texto em questão, referindo-se sobretudo ao realismo mágico, Vásquez nega

qualquer influência de Cien años. Argumenta que a atmosfera caribenha de Macondo é

suficientemente distante de sua realidade – urbana e contemporânea – para despertar-lhe o

desejo de ler mal ou interpretar mal a obra de García Márquez.

En mi búsqueda personal de modelos – de métodos, como dice García Márquez –,

Cien años de soledad nunca fue una opción, porque no hay nada más alejado de la

Bogotá del cambio de siglo, o de la experiencia europea de un joven aprendiz

emigrado, que el método macondiano [...] (VÁSQUEZ, idem, p.70).

37

Algo parecido diz T.S. Eliot (1987) em seu famoso ensaio “Tradição e talento individual”. Segundo ele, o

poeta é um talento individual, mas trabalha dentro de uma tradição que não pode ser simplesmente herdada, tendo de ser obtida com grande esforço.

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É notável, no entanto, como os três romances que analisamos na tese mencionam, nem

que seja por um momento, algum livro de García Márquez. Em Los informantes, o

protagonista Gabriel Santoro conta que lia La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile

quando se graduou (VÁSQUEZ, 2004, p. 119). Em Historia secreta de Costaguana, além das

marcas indicadas e da alusão explícita a Cien años de soledad, há referência a El amor en los

tiempos del cólera, precisamente ao episódio em que Conrad trafica armas para um

personagem do romance:

No sabe que un diario amarillista, La Justicia, inventará muchos años después una

versión absurda de su paso por la costa colombiana: en ella, Korzeniowski toma toda

la negociación en sus manos y vende las armas a un tal Lorenzo Daza, delegado del

Gobierno liberal que después las „dará por perdidas‟ y las venderá de nuevo, „por el

doble de su precio‟ a los conservadores revolucionarios (VÁSQUEZ, 2007, p.85).

Finalmente, em El ruido de las cosas al caer, que analisaremos no próximo capítulo, a

irreverência com García Márquez se materializa na reação de Elaine Frits, ao receber de sua

família colombiana

[…] el libro de un periodista, que había salido hace un par de años pero seguía

vendiéndose, […] el tipo era un guache pero el libro, por lo que decían, no estaba

mal. Elaine rasgó el papel de regalo, vio un diseño de nueves marcos azules de

esquinas cortadas, y en los marcos vio campanas, soles, gorros frigios, esbozos

florales, lunas con cara de mujer y calaveras cruzadas con tibias y diablillos

bailantes, y todo le pareció absurdo y gratuito, y el título, Cien años de soledad,

exagerado y melodramático. […] Y días después, en carta a sus abuelos, escribió:

“Mándenme lectura, por favor, que por las noches me aburro. Lo único que tengo

aquí es un libro que me regaló mi señor, y he tratado de leerlo, juro que he tratado,

pero el español es muy difícil y todo el mundo se llama igual. Es lo más tedioso que

he leído en mucho tiempo, llevan catorce ediciones y no la han corregido. Cuando

pienso que ustedes estarán leyendo el último Graham Greene. Es que no hay derecho

(VÁSQUEZ, 2011, p.161).

Ao ler estes fragmentos, podemos nos lembrar de um comentário feito certa vez por

Carlos Fuentes (2011, p.359): “Juan Gabriel Vásquez não pode escrever como García

Márquez mas tampouco sem García Márquez” (grifo do autor, tradução nossa).

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V EL RUIDO DE LAS COSAS AL CAER

5.1 O resgate de uma experiência

A violência é um tema tão antigo quanto a literatura e, particularmente na Colômbia,

sua longa e acentuada presença chega a sugerir uma ideia de perenidade, como se as

narrativas ambientadas no país tivessem sempre abordado, em maior ou menor medida, os

conflitos que atravessam sua história. Embora não seja exatamente correta – já que em alguns

momentos a violência sequer esteve entre os principais assuntos dos escritores (GUTIÉRREZ

MAVESOY, 2014, p.29) –, esta impressão de permanência, ou seja, de que se trata de um

tópico irremovível da literatura colombiana, tornou-se inevitável nas últimas décadas, quando

um aluvião de obras sobre o tema deu a ele centralidade inconteste. Neste período, mais do

que um fenômeno local, o interesse pela violência espraiou-se por toda a literatura latino-

americana, assim como ocorreu com o cinema, a televisão e outros meios de comunicação de

massa.

Não por acaso, esta inflexão começou nos anos 1980 – conhecidos como “a década

perdida” para a América Latina – e se consolidou no decênio seguinte, quando se

multiplicaram na região os projetos neoliberais, apregoando um Estado mínimo e o poder

ilimitado ao mercado. Em um artigo sobre a explosão do narcotráfico no México, Carlos

Monsiváis (2004) inseriu o problema em um mal maior, denominado por ele “a criminalidade

neoliberal”, isto é, a exclusão deliberada de milhões de pessoas por políticas que, sob a

fachada da meritocracia e do aumento da competitividade, convertem seres humanos em

objetos descartáveis, ignorando direitos sociais e desconsiderando os passivos históricos do

subcontinente. Se a combinação de crescimento pífio com inflação exorbitante – a chamada

“estagflação”, no jargão econômico – já havia resultado no aumento alarmante dos níveis de

pobreza na década de 1980, o cenário nos anos 1990 não melhorou, pois, apesar do controle

de preços obtido em alguns países, os programas de privatização e ajuste fiscal elevaram o

desemprego e provocaram uma queda drástica dos investimentos públicos.

Esta conjuntura adversa, longe de explicar de todo, certamente contribuiu para a

escalada da violência na América Latina, que assistiu no mesmo período ao crescimento

exponencial do tráfico de drogas, indissociável do quadro econômico e da ideologia de prazer,

hiperatividade e consumo alimentada pelo neoliberalismo. Até então fenômeno modesto,

praticado sem alarde nos grandes centros, o narcotráfico se agigantou nos anos 1980,

alterando a paisagem urbana, introduzindo novos valores e constituindo-se como força

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desestabilizadora, capaz de desafiar o Estado sempre que necessário. Embates armados entre

facções rivais, ou entre traficantes e forças policiais, passaram a ser comuns nas grandes

cidades, modificando a rotina da população e levando ao paroxismo sentimentos como o

medo, a imprevisibilidade e a sensação de descontrole. Diana Klinger (2013, p.134-135) nota,

com acerto, que o recrudescimento da violência, somado a outros inumeráveis problemas,

evidencia o fracasso do “sonho de ordem” simbolizado outrora pelas cidades, conforme

analisou Ángel Rama (1984). Se antes se propunham a ser o bastião da civilização –

contrapondo-se à suposta barbárie que imperava no campo –, as cidades se tornaram palco por

excelência de manifestações bárbaras, distanciando-se cada vez mais dos espaços vibrantes,

embora já conturbados, celebrados pelos modernistas. Como comparou Monsiváis, “na

megalópole do fim do século XX, um dos substitutos do flanneur é a Vítima Potencial, que

faz da desconfiança seu instrumento de conhecimento e do receio sua bússola”

(MONSIVÁIS, 1999, p.40, tradução nossa).

Essas questões permearam de maneira notável a literatura e outras expressões culturais

a partir da década de 1980. Em alguns países, as ficções sobre a violência chegaram a

engendrar subgêneros narrativos, como a chamada novela del narco, no México, e a

Literatura de sicarios, na Colômbia, também conhecida como novela del sicariato ou

sicaresca. Sem propor uma taxonomia rígida para esses rótulos – utilizados, aliás, com

critérios maleáveis por críticos e pesquisadores –, podemos apontar alguns traços recorrentes.

Enquanto a denominação mexicana costuma abranger narrativas que giram em torno da figura

do chefão do tráfico – suas excentricidades, sua frieza, sua intimidade com o poder público –,

a modalidade colombiana enfoca um personagem anteriormente desconhecido que se

incorporou tragicamente à vida urbana. Trata-se do matador a soldo, o atirador de boa mira

que, na garupa de uma moto, circula pelas ruas abatendo políticos, juízes, jornalistas e outros

alvos – célebres e anônimos –geralmente designados pelo tráfico. Tamanho o trauma deixado

pelos sicários – quase sempre jovens pobres com brutal consciência de sua brevidade – que

várias cidades colombianas chegaram a proibir o tráfego de motocicletas com passageiros no

banco traseiro.

Embora haja registros anteriores – Gutiérrez Mavesoy (2014, p.32), por exemplo, cita

El sicario (1988), de Mario Bahamón Dussán, entre as obras precursoras –, a sicaresca

ganhou projeção com os romances Virgen de los sicarios (1994), de Fernando Vallejo, e

Rosario Tijeras (1999), de Jorge Franco, identificados muitas vezes como emblemas do

subgênero, apesar dos críticos que refutam um pertencimento estrito. Ambientados na

Medellín tempestuosa dos anos 1990 – que se consagrou como a “capital mundial do

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narcotráfico”, graças ao cartel chefiado por Pablo Escobar –, os dois romances mostram uma

situação desgovernada de violência, narrada por personagens que se apaixonam por matadores

e, engolfados em um mundo que desconhecem, revelam-se incapazes (ou francamente

desinteressados, como o narrador de Vallejo) de decifrar a origem do caos. Com um tom

sarcástico e uma temporalidade difusa que conferem aos assassinatos da trama um caráter

vertiginoso e desprovido de sentido, o romance de Vallejo expõe na própria enunciação um

dos desafios de abordar a violência na Colômbia: elaborar de forma inteligível uma

experiência marcada pela incompreensão, pela inapreensibilidade de um cenário em que as

tragédias ocorrem diariamente sem que se vislumbrem soluções ou se conheçam ao certo as

forças que as movem (WALDE, 2000; 2001). Esta quase incomunicabilidade é acrescida de

outro obstáculo: a profusão de discursos que, emanados de todas as partes, são produzidos

sobre a violência. Como diz Erna von der Walde:

Os jornais, a televisão, a rádio, as revistas, os estudos acadêmicos, os testemunhos,

os relatórios das ONGs invadem diariamente a vida dos colombianos com dados,

versões, estatísticas, interpretações sobre uma realidade que não se deixa narrar e na

qual impera, sobretudo, o medo (WALDE, 2001, p.31, tradução nossa).

Diante disso, a pesquisadora se pergunta:

Qual é o lugar da literatura neste espaço de superabundância de mensagens,

justamente quando a letra está sendo descentrada de seu lugar ordenador da cultura e

passou a ser uma manifestação cultural marginal em um país que não conseguiu

saldar sua dívida educacional? (WALDE, 2001, p.34)

Embora não seja explicitamente formulada, esta é uma das questões fundamentais de

El ruido de las cosas al caer. Ao evocar o sentimento de medo da geração que cresceu em

Bogotá entre os anos 1980 e 1990 – da qual ele mesmo faz parte –, Vásquez busca restituir

uma experiência que corre o risco de ser esvaziada pela proliferação de discursos

sensacionalistas e sem compromissos com a memória. Não é fortuito que o relato do

personagem narrador, Antonio Yammara, nasça em meio ao circo montado pela imprensa em

torno da fuga dos hipopótamos de Pablo Escobar. Tampouco é casual que Maya Laverde

comece sua investigação depois de saber da morte do pai em uma matéria mórbida no jornal

que mais deplorava. Nas explicações que perseguem e nas motivações que os movem, os dois

personagens vão na direção contrária da crônica frívola e espetacular dos meios de

comunicação de massa.

A passividade que, segundo Ricardo Piglia (2012), caracteriza os consumidores de

notícia aparece em diferentes momentos do romance de Vásquez. Os bogotanos, diz

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Yammara, haviam se acostumado à violência “en parte porque sus imágenes llegaban con

portentosa regularidad de los noticieros y los periódicos” (VÁSQUEZ, 2011, p.18). Em frente

à televisão da sinuca, os jogadores se inteiram do assassinato de um político, mas ninguém

pergunta por que ou quem teria cometido o crime, pois “esas preguntas habían dejado de tener

sentido en mi ciudad” (idem). A resignação “era una suerte de idiosincrasia nacional, el

legado que nos dejaba nuestro tiempo” (p. 19), conta o personagem narrador. “El crimen de

Laverde”, diz, “era uno más, y resultaba casi arrogante o pretencioso creer que a nosotros nos

correspondería el lujo de una respuesta” (p.54).

Numa sociedade como essa, tudo, mais do que nunca, parece fadado ao esquecimento.

Na noite em que Ricardo Laverde morre, outros 16 homicídios ocorrem em Bogotá, mas

apenas dois ficam na memória do protagonista – talvez os mais violentos e, por causa disso,

os únicos nomeados, pois somente a morbidez permite o ingresso de anônimos no obituário

dos jornais. Assassinatos corriqueiros como o de Laverde, executado com o convencional

método da bala, precisam de imagens fortes para virar notícia. A matéria sobre sua morte,

longe de investigar quem foi e por que havia sido morto, busca apenas oferecer aos leitores a

dose diária de morbidez pela qual anseiam. As fotos que acompanham o texto – uma grande

poça de sangue e o quarto simples, de uma solidão pungente – confirmam o tom

melodramático que, segundo Monsiváis (2000), caracteriza a abordagem midiática da

violência. O melodrama, diz o crítico, “se por um lado permite a assimilação de uma

paisagem trágica, [...] por outro impede os cidadãos – convencidos dos poderes da fatalidade

– de tomarem alguma atitude”, já que o gênero “determinista por excelência, [...] põe-se a

serviço da negação de saídas” (MONSIVÁIS, 2000, p.231-233, tradução nossa).

Efeito parecido tem a morbidez, que “não apenas exorciza o crime situando-o como

um evento remoto”, como, “ao incorporá-lo ao espetáculo, banaliza o episódio sangrento”

(MONSIVÁIS, 1999, p.37, tradução nossa). Este elemento, antes mesmo da matéria sobre

Laverde, aparece já na primeira página do romance – com o esquartejamento do hipopótamo –

e retorna, cinco páginas depois, no boletim sobre Álvaro Gómez, quando uma câmera

minuciosa enfoca o Mercedes-Benz metralhado, a janela destroçada, os restos de vidros

espalhados por entre manchas de sangue seco (VÁSQUEZ, 2011, p.18).

Evocadas em diferentes momentos, as recordações traumáticas do narcoterrorismo se

confundem com lembranças de transmissões televisivas – como a execução de Luís Carlos

Galán, alvejado em frente às câmeras quando fazia um comício no interior do país. Da

caudalosa cobertura jornalística, porém, não emerge um conhecimento maior sobre as causas

da violência e tampouco algum tipo de mobilização, mas sim o medo, a apatia, o desalento.

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Chama atenção que, após o atentado, uma das primeiras providências de Yammara

seja deixar de assistir aos telejornais. Mais tarde, quando o alheamento a que se entrega –

“una vieja sitcom gringa, algo ligero y alegre y balsámico” (p.92) – se mostra insuficiente

para as sequelas que se multiplicam, também não é no noticiário que ele buscará uma saída.

Ao receber um caderno do terapeuta com a recomendação de fazer um diário – ou formular as

perguntas que o afligem –, é a escrita que desponta para ele como horizonte de entendimento

e superação do trauma. Dez anos serão necessários para que seu relato se consubstancie em

texto, mas o ponto de partida se dá na mesma noite, quando rabisca na folha em branco o

signo que o norteará nos meses seguintes: um ponto de interrogação.

Seu primeiro gesto é voltar ao local do crime, onde se depara com a indiferença das

coisas e a voracidade do esquecimento. Tudo segue como antes – os engraxates, os

vendedores de esmeralda –, sem vestígios do episódio que dilacerou sua vida. Sentado no café

em frente à esquina do atentado, pergunta à garçonete se por acaso se lembra de Laverde ou

do assassinato que ocorrera ali. A negativa o deixa perplexo. Teme que a morte do amigo,

assim como a agonia, a febre e as alucinações que ele próprio sofreu, tenham ocorrido sem

deixar um único rastro no mundo, no passado e na memória da cidade. “Esto, por alguna

razón, me perturbó. Creo que en ese momento decidí algo, o me sentí capaz de algo, aunque

no recuerde las palabras que usé para formular la decisión” (p.70).

A recusa ao esquecimento e a necessidade de compreensão, portanto, estão na base do

seu relato. São elas que o impulsionam à casa de Laverde, no antigo bairro que,

simbolicamente, aparece como o repositório do passado na cidade. “La Candelaria profunda

es un lugar fuera del tiempo: en toda Bogotá, sólo en ciertas calles de esa zona es posible

imaginar cómo era la vida hace un siglo” (p.30). É também o desejo de esclarecimento que o

faz aceitar o convite de Maya, viajando para La Dorada e mergulhando em cartas que em

nenhum momento o mencionam, mas falam dele a cada linha (p.138). As folhas de seu

caderno continuam em branco, mas se insinuam como destino final de seus passos. “De

repente estaba pensando en mi cuaderno virgen, en aquel signo de interrogación solitario y

perdido, y unas palabras se esbozaron en mi mente: Quiero saber.” (p. 125).

Dez anos depois, quando finalmente escrever suas memórias, Yammara não falará

apenas das provações que enfrentou, mas também dos outros envolvidos, a começar por

Laverde, que morreu a seu lado impedido de contar sua história. Em uma cena do primeiro

capítulo, encorajado pelo álcool, o ex-detento expressa – como “una tarea urgente [...], un

deber inaplazable” (p.30) – o desejo de revelar seu passado, mas Yammara, incomodado com

a intimidade que se forjava e com os riscos de permanecer em La Candelaria, prefere

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interromper a conversa. Mais tarde, seu relato restituirá a voz que negara ao amigo, fazendo

dele, assim como outros personagens de Vásquez, a expressão de uma memória silenciada.

Yammara percebe que não há como contar seu trauma sem evocar a biografia de Laverde, em

cujas vicissitudes vê relações inextricáveis com sua própria vida. Também precisa incluir a

história de Maya, o infortúnio de Elaine, a queda do avião e as palavras dos pilotos antes de

morrer. Tudo isso, conclui (p.84-85), faz parte de sua experiência. “La experiencia, eso que

llamamos experiencia, no es el inventario de nuestros dolores, sino la simpatía aprendida

hacia los dolores ajenos” (p. 85).

Não por acaso, o plural aparece no título do romance, que alude não a uma, mas a

diversas coisas que caem: aviões, corpos, projetos familiares, além da própria cidade, que

desmorona sob os ecos do poema de Aurelio Arturo (“y ardían desplomándose los muros de

mi sueño.../ ¡Tal como se desploma gritando una ciudad!”). Conhecendo o passado de

Laverde, Elaine e Maya, Yammara inscreve seu trauma em um contexto maior, interpretando-

o não mais simplesmente como uma tragédia pessoal, mas como um dos incontáveis

estilhaços de um desastre coletivo. Nesta paisagem de ruínas, fala em nome de sua geração,

nascida quando o tráfico internacional de drogas dava os primeiros passos na Colômbia, no

início dos anos 1970, e que cresceu encurralada pelo agigantamento dos cartéis, os sequestros

em série, os assassinatos, os atentados a bomba e todos os outros crimes cometidos, em sua

maioria, por Pablo Escobar, o mesmo que, em seus tempos de glória, despertou a fantasia das

crianças com o prodigioso zoológico montado em sua fazenda perto de Medellín.

O propósito de fazer do livro um testemunho geracional é evidenciado no encontro

entre Yammara e Maya, que começa no terceiro capítulo e se estende até o fim do romance.

Impregnada de revelações, a conversa entre os dois transcorre na intimidade, “llenando con

palabras el silencio de la noche cálida [...], como un cura y un pecador en el sacramento de la

confesión” (p.125). Esta atmosfera confessional, no recolhimento doméstico de uma cozinha,

também caracteriza o encontro com Consu e se opõe à invasão estrepitosa dos jornalistas que

publicam a matéria sobre Laverde. “Esa gente no respeta nada”, diz a personagem (p.75), para

quem Yammara precisa provar que não é mais um repórter.

Fundamentais para as revelações da trama, tais encontros aparecem como contraponto

ao mundo ruidoso dos meios de comunicação de massa; no lugar da apatia e da esterilidade,

possibilitam o envolvimento e a compreensão. A memória, dizem os livros de Vásquez, é

fundamental, mas não se pode buscar exclusivamente nas próprias lembranças. Lembra-se

sempre junto – as recordações de uns complementam-se com as dos outros. Yammara precisa

de Maya para conhecer o passado de Laverde e, com isso, dar sentido à sua experiência.

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Maya, por sua vez, recorre a Yammara como uma peça única no quebra-cabeça que está

montando (p.124). Essa dependência impõe por vezes a ameaça de utilitarismo:

[...] Maya volvió a recordar, volvió a dedicarse al fatigoso oficio de la memoria.

¿Fue para beneficio mío, Maya Fritts, o tal vez habías descubierto que podías

usarme, que nadie más te permitía ese regreso al pasado, que nadie como yo iba a

invitar esos recuerdos, a escucharlos con la disciplina y la dedicación con que los

escuchaba yo (p.244).

Da mesma forma, a busca por informações pode motivar expedientes ardilosos – como

as mentiras de Yammara a Consu (p.76) – que suscitam, mais uma vez, questionamentos

éticos. “No, ésos no eran mi muertos, yo no tenía derecho a escuchar esas palabras (así como

no tengo derecho, probablemente, a reproducirlas en este relato, sin duda con algunas

imprecisiones” (p.84).

Unidos pelo medo e pela perda, Yammara e Maya enveredam pelo passado em busca

das explicações que a dor reclama e que o presente se nega a oferecer. Sua principal

descoberta – assim como a dos protagonistas dos romances anteriores – é a dimensão histórica

da violência, a inter-relação de suas vicissitudes com as grandes decisões políticas. Por isso a

influência dos „grandes fatos‟ é explicitada tão amiúde. Como neste trecho: “Maya Laverde

nació en la clínica Palermo de Bogotá en julio de 1971, más o menos al mismo tiempo que el

presidente Nixon utilizaba por primera vez las palabras guerra contra las drogas en un

discurso público” (p.191, grifo do autor). Ou: “En 1973, poco antes de la creación de la Drug

Enforcement Agency, Ricardo mandó a pirograbar, en un tablón, el nombre de la propiedad:

Villa Elena” (p.198).

Vásquez não faz “um estudo sociológico do narcotráfico”, como bem disse Jorge

Volpi (2011), mas oferece outra narrativa – certamente mais complexa – a um fenômeno

geralmente simplificado pelos meios de comunicação e interpretado, no mais das vezes, pela

ótica hegemônica dos Estados Unidos. A presença dos Corpos de Paz no nascimento do

narcotráfico na Colômbia é, para além de irônica, exemplo das violências que se escondem

por trás de outras mais aparentes. Apesar da cartilha de boas intenções, a instituição criada em

1961 pelo presidente Kennedy representou apenas um modo mais simpático e capcioso de

intervir na América Latina, em meio a ações que vinham recrudescendo desde o início da

Guerra Fria e envolveram, entre outras, a tentativa de invadir Cuba, os atentados a Fidel

Castro e o apoio a ditaduras sanguinárias (RINKE, 2015).

Alguns desses paradoxos são flagrantes no romance: enquanto cidadãos norte-

americanos continuam a chegar para os Corpos de Paz, os Estados Unidos cometem

atrocidades diárias no Vietnã, intervêm na República Dominicana e se dilaceram em

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confrontos raciais (p.141). Sob a fachada do assistencialismo, o astuto Mark Barbieri, em

parceria com outros voluntários, instrui os camponeses no plantio de maconha e se torna, nas

palavras de Laverde, muito mais do que um sócio, “un verdadero pionero” na produção da

droga (p.185). Mais tarde, o mesmo Barbieri ingressa no tráfico de cocaína e seduz Laverde

com a promessa de lucros astronômicos. É ele, em suma, que alicia Laverde para o crime – o

que, se não torna o colombiano uma vítima, ao menos distribui responsabilidades num tema

que, ao concentrar-se nos países produtores (a “Guerra contra as drogas”, o “Plano

Colômbia”), costuma repartir desigualmente as parcelas de culpa.

Foi certamente por realçar essa complexidade – iluminando implicações geralmente

desprezadas – que, pouco depois de o livro ser lançado, o escritor argentino Rodrigo Fresán

(2011) apontou Vásquez como um dos maiores romancistas políticos da literatura latino-

americana contemporânea. Mesmo sem ser novidade, a participação de norte-americanos na

gênese do tráfico na Colômbia corre o risco de cair no esquecimento, de tão pouco

mencionada entre as informações sobre a violência. Fora da Colômbia, onde o romance foi

amplamente lido e divulgado, o desconhecimento é sem dúvida maior. O escritor peruano

Santiago Roncagliolo (2011), por exemplo, qualificou o episódio como uma “das revelações

mais inesperadas” feitas pela obra.

Quando Vásquez escrevia o romance, aliás, o passado polêmico dos Corpos de Paz

voltou a ficar em evidência na Colômbia, com o anúncio de que, após 29 anos de ausência, a

instituição voltaria a atuar no país. Jornalistas como Poncho Rentería e o sociólogo Alfredo

Molano criticaram o retorno, mencionando, entre outros fatores, a presença de voluntários do

organismo no nascimento do tráfico de drogas. Em sua coluna no El espectador, Molano

vinculou a volta dos Corpos de Paz ao acordo militar firmado meses antes por Estados Unidos

e Colômbia, pelo qual os norte-americanos, com a justificativa de intensificar o combate à

guerrilha e ao narcotráfico, passariam a utilizar sete bases estratégicas em território

colombiano. “A associação é clara. Resta saber se essas duas políticas se complementam e se

os gringuinhos acabarão fazendo a inteligência civil que os comandantes das bases requerem

para suas operações”, escreveu o sociólogo (MOLANO, 2009, tradução nossa).

Ainda em 2010, o acordo acabou sendo invalidado, e os voluntários dos Corpos de Paz

retornaram à Colômbia independentemente disso, com a missão declarada de dar aula de

inglês e colaborar em trabalhos comunitários. De todo modo, os comentários de Molano –

semelhantes aos de muitos outros analistas – ilustram a atualidade e a voltagem política dos

temas abordados por Vásquez. A guerra contra as drogas, fundamental para o destino dos

personagens, há muito vem sendo condenada nos meios intelectuais mais progressistas da

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Colômbia e da América Latina. “Os Estados Unidos disponibilizaram o mercado, os insumos

e as duas condições para fazer do cultivo de duas plantas inofensivas um negócio tão próspero

como o de armas: a proibição e a demanda”, disse Molano em outro artigo (2014, tradução

nossa).

Ao lançar este olhar crítico, investigando os antecedentes do narcotráfico, Vásquez

buscou um caminho diferente em um tema não apenas saturado nos meios de comunicação,

mas também abordado sobejamente pela própria literatura colombiana. De García Márquez a

Tomás González, Laura Restrepo a Héctor Abad, Fernando Vallejo a Evelio Rosero,

praticamente todos os grandes escritores do país tematizaram a violência em narrativas

publicadas nas últimas três décadas. Parte importante delas remete ao ambiente de terror

imposto por Pablo Escobar entre a primeira metade da década de 1980 e sua morte, em 1993,

período em que a ameaça de extradição aos Estados Unidos levou o traficante e seus

comparsas (“Los extraditables”, como se intitularam) a pressionar o Estado com um conjunto

de práticas brutais que incluiu o assassinato de figuras públicas (os chamados “magnicídios”),

sequestros simultâneos (como os narrados por García Márquez em Noticia de un secuestro) e

bombas em lugares de grande circulação, como supermercados, edifícios do governo,

shopping centers e aviões. Em um artigo de 2001, María Elena Rueda apontava Rosario

Tijeras como a última das obras pertencentes ao que denominou “Ciclo Pablo Escobar”. Mas

os anos seguintes mostraram que, tanto na literatura quanto, principalmente, na televisão e no

cinema, o mundo do narcotráfico e, em particular, a figura ambígua de Escobar continuariam

cada vez mais presentes.

Um dos exemplos é a série “Escobar, El patrón del mal”, produzida pela rede

colombiana Caracol TV, que apenas no primeiro capítulo, em 2012, registrou audiência de 11

milhões de pessoas, batendo consecutivos recordes de público nos mais de 30 países em que

foi exibida. Criada pelos filhos de duas vítimas famosas de Escobar, a série começa todos os

capítulos com uma frase que sintetiza os princípios do “dever de memória”: “Quien no conoce

su historia está condenado a repetirla” – ou seja, é preciso lembrar para que não aconteça

novamente. Porém, três anos depois, é inevitável se perguntar se as novas adaptações da vida

do traficante – representado agora por galãs como Benicio del Toro, Wagner Moura e Javier

Bardem – não constituiriam um caso de “mercadorização” ou “saturação” da memória, para

citar os fenômenos analisados, respectivamente, por Andrés Huyssen (2000) e Régine Robin

(2003). Segundo levantamento da Caracol TV, mais de 30 livros já foram escritos sobre Pablo

Escobar, assim como foram realizadas 14 produções audiovisuais, entre filmes de ficção,

séries e documentários. A conta não inclui os recentes projetos hollywoodianos “Escobar:

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paraíso perdido” (2014) e “Narcos” (2015) – dirigidos pelo italiano Andrea di Stefano e pelo

brasileiro José Padilha, ambos radicados nos Estados Unidos. Também não considera a

produção europeia “Escobar”, em que o casal Javier Bardem e Penélope Cruz revive o

romance de Escobar com a jornalista Virginia Vallejo. É de se esperar, com esse boom, que as

agências de turismo de Medellín lucrem ainda mais com os pacotes que visitam lugares-chave

da vida e da morte do traficante – o chamado “Pablo Escobar Tour” pode custar até 900

dólares.

Por esse motivo – o imenso acervo de informações sobre o tema –, soa artificial o

retrospecto que Maya e Yammara fazem dos anos do narcoterrorismo quase no fim do

romance. Enfiadas em diálogos, são didáticas, e por isso ruins, as evocações dos grandes

lances da guerra dos “Extraditables” com o governo: o assassinato do ministro da Justiça

Rodrigo Lara Bonilla; o assassinato do candidato à presidência Luis Carlos Galán; a bomba

que derrubou um avião da Avianca – como se Vásquez assumisse aí um excessivo zelo por

seu público não colombiano, preocupação também revelada no fato de o narrador referir-se à

Colômbia como “mi país”, como se o país do leitor fosse necessariamente outro. Além do

didatismo (que aparece em outros diálogos dos dois personagens), o balanço histórico que

fazem se apropria, praticamente sem retoque, de uma idéia já utilizada em Los informantes, a

de “una vida regida por el lugar donde uno está cuando asesinam a otro” (VÁSQUEZ, 2004,

p.278). Naquele romance, o narrador comenta: “Mucho tiempo después, alguien me haría esa

pregunta: ¿Dónde estaba cuando mataron a Escobar? Antes me habían preguntado: ¿Dónde

estaba cuando mataron a Galán, a Pizarro?” (idem). Em El ruido de las cosas al caer, as

mesmas perguntas são feitas por Yammara e Maya. “¿Dónde estaba usted cuando mataron a

Lara Bonilla?”, começa ela (VÁSQUEZ, 2011, p.227).

O trecho ganha força na sequência, quando os dois voltam à Fazenda Nápoles 17 anos

depois de a visitarem pela primeira vez (na época crianças inocentes excitadas por conhecer o

zoológico, e ainda por cima às escondidas). Ao chegarem à propriedade – antes suntuosa,

agora derruída –, a decepção é inevitável. Não tanto pela decadência do lugar, pelo abismo

que o separa do esplendor de antes, mas pela sensação de vácuo frente ao que a fazenda

simbolizara para ambos (p.234), o passado de perdas sintetizadas naquele antigo paraíso

infantil (p.236). No silêncio que guardam nesse instante, nas lembranças que surgem, e nos

medos que voltam e abafam as sensações anteriores, parece se condensar o propósito do

romance. E, como contraponto, expressamente relegadas, as histórias sobre Pablo Escobar,

sobre a ascensão e a queda do império mafioso, narradas como “una especie de película en

cámara muy lenta” pelos meios de comunicação colombianos (p.234).

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En cuanto al pasado de la propiedad, no nos interesó demasiado: las cosas que allí

habían ocurrido, los negocios que se hicieron y las vidas que se extinguieron y las

fiestas que se montaron y las violencias que desde allí se plantearon, todo eso

formaba un segundo plano, un decorado (p.236).

5.2 O adulto-criança sob o signo do desamparo

Considerando a trajetória do protagonista, podemos identificar na obra alguns aspectos

de romance de formação, já que Yammara, situado a certa distância temporal dos fatos que

evoca, dá conta de um aprendizado, refere-se aos acontecimentos como se, por causa deles e

também do tempo decorrido, tivesse adquirido uma maturidade que então não possuía. Ao

remeter-se a 1995, ano em que conheceu Laverde, diz que na época “sabía muy poco del

mundo real” (p.16), assim como afirma que “ahora, con el tiempo, puedo entenderlo” (p.28),

comentário que reincide ao longo do texto. Sua filiação, contudo, seria a um tipo peculiar de

Bildungsroman, já que, para Yammara, a perda de ingenuidade não significa, como na

maioria das obras do gênero, a ascensão à vida adulta; pelo contrário, é conhecendo a verdade

do mundo que Yammara, cada vez mais frágil e temeroso, compreende a impossibilidade de

assumir-se plenamente como tal.

La edad adulta trae consigo la ilusión perniciosa del control, y acaso dependa de

ella. Quiero decir que es ese espejismo de dominio sobre nuestra vida lo que nos

permite sentirnos adultos, pues asociamos la adultez con la autonomía, el soberano

derecho a determinar lo que va a sucedernos en seguida. El desengaño viene más

pronto o más tarde, pero viene siempre, no falta a la cita, nunca lo ha hecho. Cuando

llega lo recibimos sin demasiada sorpresa, pues nadie que viva lo suficiente puede

sorprenderse de que su biografía haya sido moldeada por eventos lejanos, por

voluntades ajenas, con poca o ninguna participación de sus propias decisiones

(VÁSQUEZ, 2011, p.213).

A consciência dessa vulnerabilidade – a certeza de que os mais distantes e ignorados

eventos podem alterar drasticamente nossa vida, sem que possamos fazer nada para prevenir-

nos – provoca em Yammara uma espécie de regressão à condição infantil, levando-o a olhar o

mundo com a fragilidade de uma criança, ver os outros como crianças, recordar-se

recorrentemente da infância e experimentar sensações típicas dos primeiros anos de vida.

Seria exaustivo assinalar todas as remissões ao universo infantil, mas basta dizer, em um

pequeno retrospecto, que começam já numa das epígrafes, um trecho de O pequeno príncipe

em que o principezinho se dirige ao narrador protagonista: “Então, tu também vens do céu!

De que planeta és tu?” (1999, p.14). A referência ao clássico de Saint-Exupéry reaparece mais

à frente quando Elaine lê esta mesma cena para Maya no momento em que Barbieri chega a

Las Acacias para comunicar a captura de Laverde (sem de fato fazê-lo). Outro livro citado

mais de uma vez é o emblemático Peter Pan (a criança que nunca cresce), cujo começo é

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reproduzido logo no início: “esta historia, como se advierte en los cuentos infantiles, ya ha

sucedido antes y voltará a suceder38

” (p.15).

A princípio um professor confiante e até um pouco presunçoso, que circula pelo centro

da cidade com desenvoltura e a cada hora leva uma nova amante a seu apartamento, Yammara

„se metamorfoseia em criança‟ após o atentado, que o deixa impotente, limitado e cheio de

fobias. Com medo do escuro, dorme com a luz acesa, “igual que cuando era niño” (p.56); tem

crises de choro e é consolado como “se consuela a un niño” (p.59); retorna ao centro e olha o

lugar do atentado como “un niño que se asoma con tanta fascinación como prudencia al prado

nocturno donde pasta un toro” (p. 69).

No contato com outras pessoas, Yammara também vê gestos e traços infantis. Em uma

cena na sinuca, depois de tratá-lo com rispidez, Laverde faz de tudo para se reconciliar, como

“un niño llamando la atención de maneras desesperadas” (p.29). Consu, na recusa inicial em

abrir a porta, de repente se transforma “en una niña inmensa a la que alguien ha negado un

dulce” (p.72); e, em seguida, ao voltar para a cozinha com o gravador, reaparece como “la

niña que yo había visto en la puerta de la casa” (p.77). Maya, por sua vez, é identificada a

elementos infantis desde o recado que deixa na secretária eletrônica: “una voz juvenil pero

melancólica, una voz cansada y sensual al mismo tiempo, la de una de esas mujeres que han

tenido que crecer de manera prematura” (p.87). As associações se repetem quando os dois se

encontram. “Tenía los ojos verdes más claros que he visto nunca, y en su cara se daban cita la

piel de una niña y la expresión de una mujer madura y trasegada” (p.100). Mais tarde, ao

observá-la pouco antes de irem à Fazenda Nápoles, Yammara pensa: “Éste es un gesto de

niña. Así eras de niña” (p.225, grifo do autor), impressão que volta a ter depois, espiando-a na

cama: “la vi como fue de niña, no me cupo la menor duda de que en ese ademán estaba la niña

que había sido, y la quise de alguna manera imprecisa y absurda” (p.242).

As imagens infantis se intensificam com o correr do livro. No caminho para La

Dorada, enquanto se recorda da noite de brigas com Aura – a “vergüenza infantil y absurda”

que sentira ao ganhar um vibrador (p.95) –, Yammara se pergunta quantas vezes teria feito

trajetos similares “de niño” (p.91). Na manhã seguinte, ao despertar em Las Acacias, crê ouvir

o Magdalena, e evoca lembranças de infância nas proximidades do rio (p.130). Ao ligar para

casa, sente-se maravilhado com o velho telefone de disco, experimentando “la impaciencia de

mi niñez” (p.131) enquanto espera que o disco pare de girar para poder marcar outro número.

Na sequência, ao telefone com a filha, brinca: “Soy el Peter Pan”. E, em seguida, ao começar

38

Devo esta identificação – assim como a de El pozo, de Juan Carlos Onetti, à resenha de Wilson Alves-Bezerra (2013).

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a ler as cartas separadas por Maya, sente uma anulação total do mundo real e conclui que

“nada similar me había pasado desde la niñez” (p.138). Finalmente, terminada a leitura, é

tomado por “una soledad tremenda, una soledad sin causa visible y por lo tanto sin remedio.

La soledad de un niño” (p.138).

Este processo atinge o clímax quando volta para Bogotá e encontra o apartamento

vazio, sem rastros de Leticia e apenas uma mensagem de Aura, comunicando, na secretária

eletrônica, que havia decidido partir. Ofegante, Yammara caminha pelo apartamento, vai ao

quarto da filha, abre a porta do armário (onde já não há nenhuma roupa) e, finalmente,

completando a metamorfose simbólica, deita-se na pequena cama de Leticia. Aí, adulto feito

criança, o pai protetor é tomado definitivamente pelo menino desamparado. Olhando os

enfeites que Leticia vê quando acorda (um ovo de cor água-marinha, uma coruja de olhos

grandes, uma abelha sorridente), Yammara imagina o que diria se Aura ligasse. Perguntaria

onde estava? Ficaria em silêncio para que compreendesse seu erro?

¿O trataría de convencerla, de sostener que juntos nos defenderíamos mejor del mal

del mundo, o que el mundo es un lugar demasiado riesgoso para andar por ahí, solos,

sin alguien que nos espere en casa, que se preocupe cuando no llegamos y pueda

salir a buscarnos? (p.259)

Note-se, para além do medo e da solidão, a incerteza condensada neste trecho, com o

qual o romance se encerra. Yammara termina o relato com o mesmo ponto de interrogação

com que o havia iniciado, cerca de 13 anos antes, ao ganhar o caderno do terapeuta. Este

estado inquisitivo é mais um aspecto que o aproxima do universo das crianças. A infância,

como sabemos, é o lugar por excelência das perguntas. Enquanto os adultos, por não

encontrarem ou não suportarem as respostas, tendem a dar as coisas como certas, numa

postura de constante naturalização, as crianças vão no sentido contrário e expressam uma

permanente necessidade de compreensão.

As perguntas acompanham o protagonista desde o momento em que decide buscar

explicações para a violência de que foi vítima. As descobertas que faz, no entanto, por mais

que ampliem sua compreensão da Colômbia, não são suficientes para calar suas interrogações.

Até mesmo o propósito de sua empreitada é objeto de questionamento. “Nadie sabe por qué es

necesario recordar nada, qué beneficios nos trae o qué posibles castigos [...]” (p.15), diz logo

no começo do relato.

Neste aspecto, mais que uma contingência da trama, o olhar infantil funciona como o

dos personagens deslocados: um instrumento para a concreção de uma poética segundo a qual

a literatura serve para fazer perguntas, e não expressar certezas. O olhar da criança – tal como,

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em outra medida, o do estrangeiro, como comentarei à frente – expressa não apenas dúvidas,

como também o estranhamento constante que alimenta a criação literária. Em entrevista à

rádio pública italiana, o escritor israelense David Grossman – que se alterna entre livros

infantis e adultos – fez essa associação ao dizer que, quando escreve, busca sempre o “lugar

de instabilidade” experimentado pelas crianças. “Estou o tempo todo imerso em uma sensação

de insegurança, dúvida, curiosidade”, afirmou (GROSSMAN, 2015, tradução nossa),

acrescentando que – como filósofos e crianças – os escritores se interrogam sobre o que

ninguém questiona e aproximam-se da realidade com o afã de reformulá-la e descrevê-la com

palavras próprias. Já dizia Tchekhov que a função do artista não é dar respostas, mas sim

fazer perguntas melhores.

A identificação com as sensações infantis também se deve, no romance de Vásquez, à

inevitável distância que separa crianças de adultos, distância que inclui a linguagem e as

formas de apreender o mundo. As crianças veem coisas invisíveis para os adultos e, por isso –

e por não disporem dos mesmos recursos linguísticos – sofrem por não poder comunicá-las.

Não por acaso o Pequeno Príncipe recebe destaque entre as citações do livro. No romance de

Saint-Exupéry, tanto o piloto quanto o principezinho levam uma vida solitária precisamente

por não se entenderem com as demais pessoas. Logo no começo do relato, o piloto põe o

problema em evidência, ao evocar suas seguidas frustrações na tentativa de se comunicar com

adultos. “As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças,

estar toda hora explicando”, afirma o narrador, deixando claro em seguida que a dificuldade

persistiu ao chegar à vida adulta (SAINT-EXUPÉRY, 1999, p.8-9).

Esta mesma incomunicabilidade exacerba a angústia de Yammara depois do atentado

e só se dissolve na presença de Maya, quando os dois se entendem inclusive antes de trocar

palavras. Testemunhas dos mesmos anos em Bogotá, ambos carregam um trauma

inexprimível para os demais. Exemplo são as dissonâncias entre Yammara e Maya, que não

consegue compreender o aprofundamento da crise pela qual passa o marido: “Antonio,

Bogotá no es una ciudad en guerra. No es que haya balas flotando por ahí, no es que lo mismo

nos vaya a pasar a todos” (p.61). Na diferença de percepção, há uma razão fundamental: Aura

não vivia em Bogotá na “década difícil” do narcoterrorismo. Como reforça Yammara:

Tú no sabes nada, quise decirle, tú creciste en otra parte. No hay terreno común

entre los dos, eso quise decirle también, no hay forma de que entiendas, nadie te lo

puede explicar, yo no te lo puedo explicar. Pero esas palabras no se formaron en mi

boca (p.61).

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O encontro de Yammara e Maya, portanto, é o encontro de dois solitários, como o do

Pequeno Príncipe e o piloto, e isso explica a escolha da frase da epígrafe, que marca

justamente o momento em que o principezinho reconhece no outro um semelhante (tal como,

em alguma medida, Elaine em Barbieri). Logo depois de vê-la, Yammara se pergunta que

secreta comunicação havia entre os dois, e Maya, ao expressar seu horror por Bogotá (a ponto

de não dormir uma única noite na cidade), lhe fornece a resposta: “Tenemos una relación

especial con Bogotá, yo no creo que sea normal eso” (p.102). É o medo – “la principal

enfermedad de los bogotanos de mi generación” (p.58) – que os vincula de imediato. Em

Maya, assim como Yammara, o sentimento produzia manifestações físicas: tonturas, dores no

estômago, além da permanente irritação.

Una época especial, ¿no? No saber cuándo le va a tocar a uno. Preocuparse si

alguien que tenía que llegar no llega. Saber dónde está el teléfono público más

cercano para avisar que uno está bien. Si no hay teléfonos públicos, saber que en

cualquier casa le prestan a uno el teléfono, que uno no tiene sino que llamar a la

puerta. Vivir así, pendiente de la posibilidad de que se nos hayan muerto los otros,

pendiente de tranquilizar a los otros para que no crean que uno está entre los

muertos (p.230).

Maya diz que, como ela, centenas de outras crianças tornaram-se “órfãs fictícias”

nesses anos (p.222), quando os pais foram presos por traficar drogas, e as mães, em vez de

contar a verdade, preferiram inventar que tinham morrido. Com isso, Vásquez estende a uma

geração inteira de colombianos a orfandade que caracteriza os protagonistas dos romances

anteriores, o Gabriel Santoro de Los informantes e o José Altamirano de Historia secreta de

Costaguana. É como se, num mundo de escombros e ilusões perdidas, essa fosse a condição

definidora dos indivíduos. Condição que, no desamparo, na solidão e na falta de referências,

confere ao romance de Vásquez uma atmosfera existencialista – a ideia do homem “lançado

no mundo” (SARTRE, 1970). Não por acaso, algumas passagens recordam autores também

influenciados pelo pensamento de Sartre, como Ernesto Sabato e, principalmente, Juan Carlos

Onetti, cujo primeiro romance, El pozo (1939), chega a ser citado pelo narrador: “He leído en

alguna parte que un hombre debe contar la historia de su vida a los cuarenta años”

(VÁSQUEZ, 2011, p.15)39

.

Enquanto Maya é primeiro „órfã fictícia‟ e, depois, órfã efetiva e plena, Yammara e

Aura experimentam sensação análoga, devido ao desamparo, à insegurança e também à

relação complicada que mantêm com os pais. Yammara faz referências vagas aos seus e, na

única situação em que se encontram – o período em que fica internado –, termina por expulsá-

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Em entrevistas (CRUZ HOYOS, 2015), Vásquez disse que, ao escrever o romance, lia diariamente algumas páginas de La vida breve (1950), também de Onetti.

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los do hospital, incomodado com as perguntas vãs e os comentários estéreis que emitem. Da

mesma forma, por mais que tenha os pais vivos, Aura não se sente acolhida e chega a ter

medo da forma em que os dois a excluem de sua comunicação secreta.

¿Tú hás sentido eso? Que estás con tus papás y de repente sobras, de repente estás

de más? A mí me pasa mucho, o me pasó mucho hasta que pude vivir sola, y es raro,

estar con tus papás y que ellos comiencen a mirarse con esa mirada que tú ya has

identificado y que se mueran de la risa entre los dos y tú no sepas de qué se ríen, y

peor, que no te sientas con derecho a preguntar (p.37).

A orfandade também acomete Elaine e é, em alguma medida, a sina de Leticia, que

nasce precisamente quando Yammara se encontra no nível máximo de fragilidade. É

sintomático que o personagem minta quando Maya lhe pergunta se tem filhos. „“No‟, dije, „no

tengo. Debe ser muy raro, eso de los hijos. Tampoco me alcanzo a imaginar‟” (p.215), como

se reconhecesse a incapacidade para assumir o papel protetor. Em diversos momentos do livro

– Yammara com Leticia, Elayne com Maya –, os pais demonstram mais medo que os próprios

filhos. Quanto mais querem protegê-los, mais se sentem ameaçados.

Diante disso, a infância não emerge apenas pelas limitações, mas também pelas

potencialidades, os horizontes que encerra em sua ótica inocente. Há, em Maya e Yammara, a

nostalgia por esse paraíso perdido, o desejo de recuperar a inocência em um mundo sem

espaço para ela. É neste espírito que, subitamente, depois de fazer “un gesto de niña” (p.225),

Maya propõe o retorno à Fazenda Nápoles, onde os dois estiveram quando crianças,

fascinados com o que viram e alheios ao que havia por trás da casa. Basta cruzar o portão,

contudo, para que sejam tomados pelo desapontamento. Se a infância, como a Terra do Nunca

de Peter Pan, é um mundo sem tempo e memória, o tempo ali havia feito estragos. No

desmazelo do lugar – o pasto crescido, os animais relegados, o óxido e a incúria se

apoderando da casa –, resta o exato oposto do esplendor que recordavam. Um abismo maior

se mostra entre o que sentiram na primeira visita e o travo amargo que experimentam agora,

relembrando os horrores que os lançaram, precipitadamente, à vida adulta.

A infância, portanto, é um território para sempre perdido, a inocência é irrecuperável,

assim como irrecuperáveis são as horas que perdemos da vida. Desde o Gabriel pai de Los

informantes, Vásquez conta a história de homens que tentam um recomeço, uma segunda vida

na qual superem as infelicidades, libertem-se dos erros, e possam encontrar algum tipo de

felicidade. O fim trágico de Laverde, e sua aparente reincidência no crime, mostram a

dificuldade de que isso ocorra. Porém, as constantes mudanças dos personagens – guiadas, ao

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fim e ao cabo, pela busca de um lugar melhor – preservam alguma esperança em uma visão

predominantemente pessimista do mundo.

5.3 A voz e o olhar dos deslocados

Em diversas entrevistas, Vásquez apontou El ruido de las cosas al caer como o livro

mais autobiográfico dos três que analisamos aqui. Segundo ele, a sensação de medo dos

personagens principais foi inspirada nos mesmos temores que acompanharam sua juventude

em Bogotá. Vásquez disse ainda algo que nos interessa em especial: que não teria escrito o

romance se não houvesse vivido tanto tempo na Europa, já que, antes de sair da Colômbia, o

tema da violência o asfixiava de tal forma que lhe parecia inconcebível para uma obra

literária.

Sem fazer de suas declarações nosso paradigma de análise – o que tampouco significa

ignorá-las –, é inegável que o deslocamento, assim como nos romances prévios, desempenha

papel relevante na obra, seja como elemento temático, seja influenciando a estrutura e a

abordagem da Colômbia. Em termos temáticos, basta lembrar que parte expressiva do enredo

é protagonizada por uma personagem deslocada, a norte-americana Elaine Fritts, mulher de

Laverde e mãe de Maya, que vai à Colômbia, como tantos jovens de seu país, “dispuesta a

varios clichés: tener una experiencia enriquecedora, dejar su huella, poner su granito de

arena” (p.138). É principalmente pelas cartas que ela envia aos avós que Maya e Yammara

reconstroem, 30 anos depois, a história do casal e conseguem, se não compreender, ao menos

conhecer o contexto em que Laverde ingressa no narcotráfico, semeando sem saber a desgraça

das duas famílias. É pela voz de Elaine, seu olhar de estrangeira e, em última análise, sua

escrita, que se narra a transformação brutal que, no curso de 20 anos, a violência opera na

Colômbia.

Da chegada ingênua e esperançosa em 1969 à fuga quase desesperada duas décadas

depois, a trajetória de Elaine mostra uma frustração que, bem longe de individual, acomete

todos os personagens e sintetiza o naufrágio da Colômbia nesse período. Ex-estudante de

jornalismo, Elaine alterna nas primeiras cartas as descrições pitorescas de cronista

improvisada com a expressão do entusiasmo que a experiência lhe gerava. “En más de un

sentido, pensó, este país estaba todavia comenzando, apenas descubriendo su lugar en el

mundo, y ella quería ser parte de ese descubrimiento” (p.157). Julgando-se protegida por

Ricardo, vendo à sua frente um único horizonte coeso e promissor, Elaine pensa que “este

lugar ya no podría sorprenderla demasiado” e sente-se “dueña de la situación (p.166).

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A credulidade do diagnóstico realça um olhar ingênuo que, embora vá pouco a pouco

esmorecendo, serve para intensificar a altura do tombo. Instalada em La Dorada, Elaine

começa a se frustrar com as tentativas de mudar o mundo (p.181). Nem mesmo as novidades

com o casamento obliteram as queixas que despontam em suas cartas. Na Colômbia, diz,

todos os cidadãos são políticos, mas nenhum político quer fazer nada pelos cidadãos. As

coisas no país não resultam de trabalho, mas de “amistad real o fingida” (p.177). A venalidade

das autoridades, o conformismo da população, o machismo – tudo é apontado por ela, sem

saber que o pior ainda estava por vir.

A condição de estrangeira, se por um lado aumenta sua ingenuidade, por outro dota

seu olhar de um poder de estranhamento já perdido pelos locais. Em proporções diferentes,

são atributos análogos aos de uma criança, que, curiosa e inocente, reage ao mundo com

estupor e desejo de compreensão. Note-se o contraste entre a perplexidade de Elaine e a apatia

dos demais colombianos. Ou a falsa sagacidade dos que julgam conhecer tudo, como Laverde,

que se apresenta como um escolado guia e é o primeiro a cair nas armadilhas de seu país –

antes mesmo do sócio norte-americano, Mark Barbieri. Mais uma vez, o deslocamento

aparece como perspectiva privilegiada para abordar os problemas nacionais.

Preso Laverde, morto Barbieri, Elaine sai às pressas de La Dorada e instala-se com

Maya em Bogotá, num pequeno apartamento onde vive confinada, fingindo a morte do

marido e recebendo apenas estrangeiros. A violência lá fora se alastra e atinge níveis

intoleráveis. “Somos todos escapados”, ela havia concluído quando acabara de chegar à

Colômbia (p.142), tendo em mente as atrocidades cometidas pelos Estados Unidos. “Da

miedo este mundo que nos tocó”, escreve ao avô (p.143). E é assim, em nova fuga temerosa,

que Elaine comunica a Maya, 20 anos mais tarde, a decisão de partir, após uma noite de choro

e embriaguez. A filha traduz o sentimento da mãe:

“Le cambiaron el país”, dijo Maya. “Ella llegó a un sitio y veinte años después ya no lo

reconocía. Hay una carta que siempre me ha fascinado, es de finales del 69, una de las

primeras. Dice mi madre que Bogotá es una ciudad aburrida. Que no sabe si pueda vivir mucho

tiempo en un sitio donde nunca pasa nada” (p.232).

A partida e a permanência atravessam o drama de todos os personagens, em

movimentos determinados quase sempre pelo medo e a esperança de encontrar um lugar mais

calmo. Aura, cuja infância e adolescência transcorreram fora de Bogotá, deseja agora

estabelecer-se na cidade, ansiosa por fincar raízes em um mesmo lugar (p.35). Maya, por sua

vez, tão logo atinge a maioridade começa a planejar a fuga da capital. Não havia completado

21 anos quando sai definitivamente, renunciando aos estudos e opondo-se por isso à mãe. „“Y

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nunca me arrepentiré de haberme ido de Bogotá‟, me dijo. No podía más, detesto esa ciudad.

No he vuelto, no sabría decir qué pasa ahora, tal vez usted me pueda contar‟” (p.101).

Mais uma vez, a cidade aparece como um lugar brutal que expulsa seus habitantes.

Neste fragmento, quase no fim do romance, é impossível não pensar na própria trajetória de

Vásquez, que saiu da Colômbia em 1996 e só voltou em 2012.

Yo, desde luego, no puedo culpar a Maya Fritts por haberse ido de Bogotá cuando

tuvo la oportunidad, y más de una vez me he preguntado cuánta gente de mi

generación habrá hecho lo mismo, escapar, ya no a un pueblito de tierra caliente

como Maya, sino a Lima o Buenos Aires, a Nueva York o México, a Miami o

Madrid. Colombia produce escapados, es verdad, pero un día me gustaría saber

cuántos de ellos nacieron como yo y como Maya a principios de los años setenta,

cuántos como Maya o como yo tuvieron una niñez pacífica o protegida o por lo

menos imperturbada, cuántos atravesaron la adolescencia y se hicieron

temerosamente adultos mientras a su alrededor la ciudad se hundía en el miedo y el

ruido de los tiros y las bombas sin que nadie hubiera declarado ninguna guerra, o por

lo menos no una guerra convencional, si es que semejante cosa existe. Eso me

gustaría saber, cuántos salieron de mi ciudad sintiendo que de una u otra manera se

salvaban, y cuántos sintieron al salvarse que traicionaban algo, que se convertían en

las ratas del proverbial barco por el hecho de huir de una ciudad incendiada (2011,

p.254-255).

Já presente no romance anterior, a ideia de traição, a culpa por ter deixado o país, volta

a ser evocada, colocando o escritor na berlinda e incluindo-o, de maneira mais explícita, nos

questionamentos éticos e políticos que permeiam os três romances. Como “las ratas de

proverbial barco”, colombianos como ele fogem, espavoridos, da cidade em chamas,

abandonam-na à própria sorte, à irremediável destruição. E à distância, finalmente a salvo,

refletem sobre sua parcela de culpa, perguntam-se se partir não pode ter sido uma entrega,

uma negligência, uma omissão tão condenável quanto a dos demais colombianos omissos e

negligentes que permitiram e provocaram a ruína do país.

Estes questionamentos ganham força com a citação de “Casa tomada” (1946), o

célebre conto de Cortázar em que dois irmãos da aristocracia portenha abandonam o imóvel

em que vivem após serem convencidos, por sucessivos barulhos, de que a casa está sendo

“tomada”.

Así perdi una parte de la ciudad; o, por mejor decirlo, una parte de mi ciudad me fue

robada. Imaginé una ciudad en que las calles, las aceras, se van cerrando poco a

poco para nosotros, como las habitaciones de la casa en el cuento de Cortázar, hasta

que acaba por expulsarnos. „Estábamos bien, y poco a poco empezábamos a vivir sin

pensar‟, dice el hermano del cuento aquel después de que la presencia misteriosa se

ha tomado otra parte de la casa. Y añade: „Es posible vivir sin pensar‟. Es cierto: se

puede (p.66).

A menção ao conto, mais que uma comparação engenhosa, é importante, em primeiro

lugar, para frisar as atitudes extremas que o medo pode provocar. Segundo, e mais importante,

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para evidenciar a renúncia à compreensão que os habitantes de uma cidade são capazes de

assumir. Um dos aspectos mais chocantes de Casa tomada – e sem dúvida uma das chaves de

sua potência – é justamente a facilidade com que os irmãos deixam de frequentar partes da

casa, até finalmente abandoná-la, jogando a chave no bueiro. Em nenhum momento se

propõem a investigar a origem dos barulhos ou defender os cômodos supostamente

subtraídos. A apatia, a resignação, a capacidade de normalizar situações absurdas – contra as

quais Yammara se insurge – estão presentes no conto de Cortázar.

Yammara – “ese apellido que tan inusual es en Colombia” (p.86) – jamais saiu de

Bogotá, mas, depois do atentado, deixa de frequentá-la, perde partes da cidade que o

afugentam pelo medo. Não há uma aversão permanente, uma postura inalterada como a do

Gabriel Santoro de Los informantes, mas sim uma ruptura, um „antes‟ e um „depois‟

determinados pelo acidente. As descrições das primeiras páginas – quando Yammara circula

por seus lugares habituais: La Candelaria, a Avenida Séptima, a Praça de Bolívar, entre outros

– mostram uma relação de afeto que, dissolvida, recrudescerá a solidão do personagem. Após

dois anos sem frequentar o centro, o retorno ao lugar do atentado – ponto de partida de sua

investigação – é uma tentativa de compreender a perda e, quem sabe, retomar a „casa tomada‟.

Seja nas decepções da estrangeira, seja no assombro infantil do protagonista, Vásquez

dota os personagens de atributos geralmente associados à experiência do deslocamento, como

o olhar mais crítico e passível de estranhamento. Outra alusão, que entendemos deliberada,

está na lucidez que o narrador relaciona à distância temporal dos fatos. Yammara escreve 13

anos depois de ter conhecido Laverde, e com frequência, como vimos anteriormente,

manifesta a crença de que esse período ajudou-o a compreender os episódios que rememora

(p.16-18). Convém lembrar que Vásquez, depois de se mudar para a Europa, levou oito anos

para escrever seu primeiro livro sobre a Colômbia.

Note-se também a estrutura do romance, que, como os dois anteriores, se organiza em

torno de uma investigação, inicialmente centrada em um personagem e depois expandida para

o país e o fenômeno do narcotráfico. Esta estrutura já começa a ser edificada no princípio,

antes do atentado, quando Yammara perscruta os modos de Laverde, vislumbrando um

segredo a ser desvendado. “Este hombre no ha sido siempre este hombre. Este hombre era

otro hombre antes”, diz (p.29).

A memória, mais uma vez, é instrumento e objeto, caminho e destino ao mesmo

tempo. O protagonista se lembra e se questiona sobre o ato. “Todo es recuerdo”, ele diz, “esta

frase que acabo de escribir ya es recuerdo, es recuerdo esa palabra que usted, lector, acaba de

leer” (p.23). O passado se transforma em obsessão. Frequentemente imagina o que teria

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acontecido se as coisas tivessem sido diferentes. “Muchas veces me he preguntado después

qué habría pasado si Ricardo Laverde no se hubiera dirigido a mí, sino a otro de los

billaristas” (p.16). Mas logo conclui que de nada vale formular esas hipóteses: “es una

pregunta sin sentido […]. Laverde tenía buenas razones para preferirme a mí. Nadie puede

cambiar ese hecho, así como nada cambia lo que sucedió después” (p.16).

A mobilidade do passado, a impossibilidade de conhecê-lo inteiro e o uso da

imaginação para reconstituir episódios não documentados – como os sentimentos de Elaine na

queda do avião – também suscitam reflexões, realçando a singularidade do romance entre as

obras que abordam o narcotráfico na Colômbia. Diferentemente dos livros-símbolos da

sicaresca – La virgen de los sicarios e Rosario Tijeras –, o romance de Vásquez não espreita

propriamente o mundo do crime (nos dois casos, como dissemos, os personagens narradores

se apaixonam por matadores). Seu interesse maior é resgatar a experiência de uma geração e

procurar entender as causas dos acontecimentos pelos quais padecem. É notável em Rosario

Tijeras, por exemplo, a incapacidade do protagonista, Antonio, de entender a origem da

violência desenfreada que envolve Rosario e milhares de jovens de Medellín. “No sabemos lo

larga que es nuestra historia pero sentimos su peso” (FRANCO, 1999, p.23).

Yammara, por sua vez, embora continue sozinho e sofrendo 13 anos depois do

atentado, compreende ao menos a extensão corrosiva do passado e sabe que são

irrecuperáveis as perdas impostas pela violência. A começar pela inocência.

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CONCLUSÕES

Marcados por uma abordagem crítica em relação à Colômbia e pela contestação dos

discursos hegemônicos sobre o país, os romances de Vásquez respaldam a hipótese de que os

deslocamentos, ao acarretarem um esquecimento criativo que envolve o distanciamento do

imaginário social e da memória histórica, favorecem uma propensão questionadora na

memória, capaz de romper com os paradigmas anteriores e propor novas formas – mais

críticas e inclusivas – de pensar a comunidade nacional.

Alternando-se entre o passado recente e períodos mais remotos da história colombiana

– os anos 1940, o século XIX e a década de 1970 –, as três obras estudadas mostram um país

intolerante em que harmonia e coesão existem apenas nas encenações do governo. Longe de

pautar a vida pública, a pluralidade é uma condição combatida: divergências são asfixiadas,

dissidentes exilados. Tomada pela violência, a Colômbia é um país convulso que afugenta

seus habitantes.

Chama atenção que, nos três romances, os pais investigados (Gabriel Santoro, Miguel

Altamirano e Antonio Yammara) trilhem uma trajetória de decadência, saindo de uma posição

confortável, ou no mínimo promissora, e transformando-se em párias. Ao centrar neles suas

averiguações, os personagens narradores analisam os mecanismos de exclusão da sociedade

colombiana, na qual o pertencimento é sempre provisório e mantido a um alto preço.

Os romances derrubam concepções essencialistas de identidade, reduzindo-as a

discursos vazios e incompatíveis com a realidade. Pilares do imaginário nacional, como a

tradição da oratória e a religiosidade, são duramente atacados. Símbolos pátrios, como o hino

e os próceres, são tratados com escárnio, e os narradores chegam a usar linguagem baixa para

se referir ao país e à capital. Nestes momentos, Vásquez adota uma atitude profanatória, mas

seu gesto está longe de ser gratuito. Incorporando vozes silenciadas e escolhendo

protagonistas que, apesar das críticas, demonstram apego à Colômbia, o autor propõe uma

comunidade plural e uma nova noção de pertencimento. A profanação, que se verifica

sobretudo no primeiro e no segundo romance, tem, portanto, o intuito de tirar a sacralidade de

algo (neste caso a nação) e restituir ao uso comum.

Este posicionamento crítico confirma a ideia do deslocamento como um lócus de

enunciação – ou seja, um ponto a partir do qual olhar a Colômbia, escrever sobre o país e ser

visto pelos leitores. Trata-se de um distanciamento geográfico e também discursivo, já

assumido nas primeiras obras de Vásquez. Na trilogia, o deslocamento se mostra como uma

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perspectiva favorável para identificar os problemas do país. Esta defesa é evidenciada pela

centralidade dos personagens deslocados. São eles que, olhando de fora (ou parcialmente

inseridos), apontam o que ninguém mais vê: um país se consumindo, destruindo-se a si

próprio com a complacência da população. São eles também que, com suas múltiplas perdas,

expõem a vulnerabilidade e a ausência dos vínculos solidários que se esperam em uma

comunidade efetiva.

O deslocamento também é tomado como instrumento de concreção de uma poética,

segundo a qual a literatura é um meio de fazer perguntas e não apresentar certezas. Em vez de

partir do conhecido, o romance deve se lançar por zonas escuras, guiado pelo desejo de

compreensão. Esta concepção da literatura é consubstanciada na estrutura investigativa das

obras, nas quais os protagonistas empreendem buscas que jamais se esgotam, como

matrioskas se renovando em dúvidas e interrogações. Estende-se também à postura crítica e

inquisitiva não apenas dos personagens deslocados, mas também de narradores, que

questionam o que os demais naturalizaram, sugerindo formas de integração opostas à adesão

automática do patriotismo.

Os três romances conciliam a reconstrução memorialística com a reflexão sobre a

memória. Os protagonistas combatem males que consideram tipicamente colombianos: a

apatia, o esquecimento e a resignação. Emerge a ideia de que não lembrar é conformar-se com

a continuidade, aceitar a ordem das coisas sem pensar que tiveram uma origem e que, por

isso, podem ser modificadas. Em outras palavras: não enfrentar o passado é esquivar-se de

olhar o presente, pois os dois se mostram inextricáveis.

Nas descobertas feitas pelos protagonistas, as três obras ecoam uma mesma ideia: o

passado continua vivo e em constante transformação. Mas os personagens se dão conta disso

somente quando são atingidos, abruptamente, pelos vendavais da história; quando um

acontecimento inesperado quebra a ilusão de invulnerabilidade. Não há vida privada, por mais

reclusa e prudente, capaz de se manter incólume à ação dos „grandes acontecimentos‟.

Por esta imbricação, a reconstituição de uma experiência é sempre feita de maneira

coletiva na trilogia. Não se pode buscar exclusivamente nos arquivos das próprias lembranças.

As recordações de uns se complementam com as dos outros. Por isso, nas três obras, as

grandes revelações da trama nascem de conversas entre os personagens.

Expondo percursos, escolhas, perdas e arbitrariedades, a trilogia faz, por assim dizer, a

historicização da memória, mostrando-a sempre como parcial, inserida em um contexto, e

portanto longe de uma verdade unívoca. Esta condição acompanha todos os relatos sobre o

passado – escritos ou orais –, que se revelam falíveis e insuficientes. Confrontada com a

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literatura, a historiografia mostra-se limitada, presa a regras incompatíveis com a dinâmica

dos acontecimentos. Já a literatura, com a liberdade de distorcer a história, pode ter um

alcance maior, mas é cerceada pela insuficiência da linguagem. Escrever, em qualquer um dos

casos, carrega complexidades éticas, políticas e epistemológicas.

Presente nos três romances, a desconfiança quanto às possibilidades da narração

contribui para o final infeliz dos romances. Submetidos às mais duras provas, os personagens

não encontram na escrita respostas para suas aflições nem alimentam esperanças quanto à

receptividade e o poder transformador dos relatos.

Toda a trilogia pode ser considerada política, pela forma em que contesta os discursos

hegemônicos, discute a memória e provoca o dissenso evocando episódios destoantes de uma

suposta harmonia nacional. Porém, a política é tratada de maneira indireta, preservando a

ambiguidade da literatura – que abrange tema, procedimentos, personagens e até mesmo o

autor implícito – e rechaçando, com isso, a enunciação didática e simplificadora dos políticos.

A mutabilidade e a permanência do passado ressaltam a substância política da

memória: lembrar, esquecer, discutir o que está escrito têm impacto direto sobre o presente.

Evocar, como fazem os romances, episódios esquecidos ou transfigurados pelos discursos

dominantes são atos de inequívoca índole política, pois, ao modificar a leitura do passado,

podem provocar uma reviravolta nos projetos futuros.

Os deslocamentos ressaltam – desde os contos de Los amantes de todos los santos – a

sensação de provisoriedade que toma conta dos personagens. Afetados por perdas, mudanças

bruscas e o constante medo em um universo sitiado pela violência, todos se sentem

desprotegidos, vulneráveis, sozinhos e desamparados. Como vimos, a orfandade aparece

como condição definidora, marcando protagonistas e outros personagens centrais. Não há

vislumbre de referências sólidas em um país que desmorona. Não há possibilidade de amparo

em um mundo de escombros e ilusões perdidas.

A perda da inocência é um dos temas centrais dos romances. Propiciada quase sempre

pelas felicidades domésticas, a sensação de proteção se desfaz de maneira áspera e

irreversível. Este é o aprendizado obtido pelos personagens. Não há casulos invulneráveis,

como por vezes pode sugerir o aconchego da vida doméstica. O resultado é que, no final dos

livros, o desalento e a solidão são sempre maiores do que antes da experiência narrada.

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APÊNDICE

ENTREVISTA: JUAN GABRIEL VÁSQUEZ

“O passado nos acompanha e nos modifica”40

Considerado um dos melhores narradores latino-americanos da atualidade – elogiado

com a mesma ênfase por representantes da geração anterior, como Mario Vargas Llosa, e

escritores surgidos nas últimas décadas, como o argentino Rodrigo Fresán –, o colombiano

Juan Gabriel Vásquez acaba de chegar aos 40 anos com uma obra já extensa, que abrange

cinco romances, um livro de contos, um volume de ensaios e uma pequena biografia sobre

Joseph Conrad. Depois de iniciar sua trajetória com três livros ambientados

predominantemente na Europa, onde viveu de 1996 a 2012, Vásquez obteve grande

reconhecimento crítico ao inaugurar uma nova etapa de sua obra, marcada pela abordagem

consecutiva de temas relacionados a seu país de origem. Esta fase é representada até o

momento por três romances: Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007)

e El ruído de las cosas al caer (2011), vencedor do Prêmio Alfaguara de Romance. Embora

tenham tramas independentes, os três podem ser lidos como uma trilogia, por compartilharem

não apenas uma mesma proposta temática – de retorno ao passado colombiano – como

diversos procedimentos narrativos, como o texto em primeira pessoa, o discurso metaficcional

e a presença da figura paterna como mediadora das investigações históricas. Na entrevista a

seguir, concedida durante a décima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP),

em julho de 2012 (quando ainda morava em Barcelona), Vásquez fala sobre a influência que

os 16 anos fora de seu país – 13 deles na capital catalã – tiveram em sua obra, reformulando

lembranças, contaminando seu castelhano e permitindo que se defrontasse com questões que

antes lhe pareciam impensáveis como material literário. Dizendo ter com a Colômbia uma

relação de romancista estrangeiro, o escritor comenta alguns aspectos principais de seus três

“romances colombianos”, como o uso da primeira pessoa, a presença de personagens

deslocados e a obsessão pelo passado. “O passado”, diz, “longe de ser algo fixo e quieto, nos

acompanha, nos incomoda, nos modifica”.

Em seus três romances colombianos, os personagens deslocados, além de ter um

papel muito importante na trama, são muitas vezes os narradores – se não de todo o

livro, como em Historia secreta de Costaguana(2007), de muitos trechos importantes,

como em Los informantes (2004), em que todas as testemunhas que tornam a história

40

Publicado em ALEA, Rio de Janeiro, vol.15/1 , jan./jun. 2013, p.235-246. A tradução é de minha autoria.

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possível são ou imigrantes estrangeiros ou migrantes domésticos. A impressão que se

tem é que o passado da Colômbia, com suas fraturas, sua violência, suas imposturas

políticas, emerge em sua obra pela voz e pelo olhar dos deslocados. Por que essa

escolha?

Juan Gabriel Vásquez: Essa é uma revelação bastante recente: nos últimos anos, eu

me dei conta de que minha relação com a Colômbia é uma relação de pesquisador, no sentido

de ser alguém que não está lá41

e que se vê obcecado em entender esse lugar que lhe parece

estranho. Tive com a Colômbia uma relação de romancista estrangeiro, ou seja, sempre disse

que nos meus primeiros tempos como escritor tinha muita dificuldade de escrever sobre o

país, porque sentia que não entendia esse lugar, sua história, sua política. E descobri que isso

não era um impedimento, mas justamente a razão para escrever: o fato de não entender. Foi

justamente aí que comecei a escrever meus romances colombianos.

Você já tinha esse sentimento de incompreensão na Colômbia ou passou a ter fora

do país?

Vásquez: Quando vivia, sentia que não entendia, mas meus últimos anos na Colômbia

foram de muita tensão, uma década de muita violência, em que eu vivia a realidade

colombiana como algo abertamente hostil e estéril, ou seja, não me interessava como material

literário. E saí da Colômbia em 1996 com uma ideia da literatura que reivindicava muito o

cosmopolitismo de Borges, de Cortázar, [uma atitude] de dizer: eu tenho o direito de não

escrever sobre o meu país, sou um escritor colombiano, mas não escrevo sobre a Colômbia. E

meu primeiro livro de contos [Los amantes de todos los santos, 2001] responde a isso, a esse

direito que eu me dava e que é exatamente o que Borges defende em “El escritor argentino en

la tradición”, um ensaio magnífico que para mim foi muito importante. Depois, com o tempo,

essa relação de estranheza com a Colômbia foi se transformando; deixou de ser um

impedimento e um problema para se tornar, precisamente, a justificativa para eu escrever

sobre o país. Percebi que tratar a história colombiana como um território obscuro,

incompreensível, problemático, era a maneira de me aproximar dele com os romances, porque

notei que os romances que começaram a me interessar eram mecanismos de averiguação,

obras de escritores que se comportavam como investigadores. É o que fazem Joseph Conrad e

Philip Roth, autores cujos romances indagam, averiguam. Romances que partem da dúvida,

da incerteza, da ignorância e tentam iluminar. Tudo isso para dizer que minha relação com a

Colômbia, como material, sempre esteve filtrada por esse estranhamento, e por isso eu creio

41

Pouco tempo depois, Vásquez retornou provisoriamente a Bogotá – com a intenção, segundo me disse, de permanecer cerca de três anos.

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que sempre me interessaram os personagens que não são do país, o olhar do estrangeiro. Até

porque, é claro, eles imitam minha biografia. Os personagens que não são colombianos, na

Colômbia, reproduzem de alguma forma a situação de deslocamento em que vivi desde os 23

anos nos três países em que morei: França, Bélgica e Espanha. É uma situação em que me

sinto muito à vontade. Gosto desse deslocamento.

Alguns escritores dizem que o deslocamento lhes deu uma visão mais lúcida do país

que deixaram. Mario Vargas Llosa, por exemplo, disse que só entendeu a América

Latina quando começou a viver em Paris. Outros afirmam que se tornaram mais

críticos. Você também teve essa sensação?

Vásquez: Sim, acho que as duas coisas aconteceram. No meu caso tenho muito claro

que somente essa distância – não apenas geográfica, mas também cronológica – me permitiu

ver meu país como matéria literária.

Suas lembranças da Colômbia mudaram com o passar do tempo?

Vásquez: Sim. Primeiro, minhas lembranças se transformaram em material literário

possível, coisa que não ocorria antes. A princípio, minha experiência na Colômbia era

simplesmente um incômodo, um fardo. Era a lembrança da violência, dos atentados, dos

assassinatos, a lembrança das pessoas que eu tinha visto morrer. A geração à qual pertenço em

Bogotá tem esse traço curioso, de ter visto pessoas matando pessoas. Todos nós vimos um

assassinato, vimos mortos nas ruas por alguma bomba, o que é muito marcante. Mas isso que

no começo era simplesmente uma fonte de rejeição da minha própria geografia, com a

distância e o tempo que passei no exterior se transformou em algo a ser explorado. E tenho

certeza de que se tivesse ficado na Colômbia provavelmente nunca teria escrito sobre o país.

Teria sido um escritor como esse Borges de quem estava falando, de espaços abstratos, ou que

escreve sobre Paris ou, sei lá, sobre a Inglaterra do Renascimento. Então, foi graças ao fato de

ter ido que pude começar a entender minha própria biografia, minhas próprias lembranças,

como um lugar que poderia ser iluminado por meio da ficção. E a prova mais clara disso é El

ruído de las cosas al caer, que é um romance que me surpreendeu muito, porque até o

momento em que comecei a escrevê-lo, em 2008, nunca tinha pensado que minha experiência

da violência terrorista em Bogotá ou o narcotráfico pudessem ser tema da minha literatura.

Nunca me interessou a literatura de ficção sobre o narcotráfico colombiano, com a provável

exceção de La virgen de los sicarios [de Fernando Vallejo; 1994], que é um romance um

pouco particular. Mas, até 2008, o medo que senti em Bogotá, a experiência direta da morte

nos anos de terrorismo, não faziam parte da minha ficção. Ou seja, precisei de 12 anos de vida

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no exterior para entender que poderia me defrontar com isso utilizando as ferramentas da

ficção. De modo que sair da Colômbia foi absolutamente imprescindível.

E você acha que a decisão de se estabelecer na Espanha – ou seja, em um país que

de alguma forma guarda uma relação de ancestralidade com a Colômbia, o influenciou a

se voltar para o passado colombiano?

Vásquez: É uma boa pergunta. Não sei. É possível que, depois dos três anos que passei

na França e na Bélgica, ao voltar para minha língua eu tenha adquirido um grau de

aproximação especial em relação ao passado do meu país e ao meu passado dentro do meu

país. Mas acho que isso se deveu, acima de tudo, ao fato de voltar à minha língua, a uma

compreensão do meu mundo narrativo através da minha língua, em vez desse grau adicional

de separação que implica viver em francês, viver em um nível que está um grau mais separado

do seu. Mas não creio que tenha se devido à relação, digamos, colonial.

Seu espanhol mudou desde que você chegou à Espanha? Isso o preocupa? É uma

questão que o interessa?

Vásquez: Sim, me interessa muito. Creio que mudou, que mudou sempre, entre outros

motivos porque eu busco conscientemente a contaminação do meu castelhano. Não me

interessam em nada as noções de pureza de um castelhano digamos arquetípico.

Dizem que o da Colômbia é o mais puro...

Vásquez: Dizem. Eu não acredito muito, mas dizem. Porém, o que sempre me

interessou são as mil formas de contaminação que o castelhano pode adquirir por minha

trajetória biográfica. Eu cresci com o inglês, uma língua que me acompanhou sempre...

Desde que idade você lê em inglês?

Vásquez: Desde que leio. Então o inglês é uma segunda pele muito natural para mim.

Penso em inglês com muita frequência, é algo muito natural; e, como você sabe, os escritores

de língua inglesa me marcaram tanto ou mais que os da minha própria língua. Depois, já

adulto, veio uma terceira língua, o francês, que conheço suficientemente bem para traduzir –

ou, podemos dizer, para levar uma vida em francês. E se, além disso, você considera que eu

vivo um espanhol que não é o meu, o espanhol da península, de Barcelona, que é obviamente

distinto do espanhol colombiano, isso cria muitas tensões, muitas contaminações que me

interessam...

E por que o interessam?

Vásquez: Eu acho que elas enriquecem a língua de um escritor. A língua, para o

escritor, é uma caixa de ferramentas. E quanto mais instrumentos essa caixa tenha, melhor ela

vai ser. Creio que o contato com outras línguas, com outras tradições, quando é profundo,

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enriquece essa caixa, enche-a de ferramentas que ela não tinha antes, ensinam algo a você. O

contato com a língua inglesa ensina uma certa forma de precisão, uma forma do detalhe. O

contato com certa língua francesa ensina a ampliar a frase. É inevitável ler Proust e aprender

como uma frase pode ser alongada, ampliada. Mas, além disso, eu sempre acreditei no que

Fernando Vallejo diz em algum lugar: que a língua literária é uma criação completamente

oposta à língua falada; é uma criação artificial, e essa criação vai sendo confeccionada pelo

romancista com todos os instrumentos que ele possa encontrar na realidade, com seu ouvido,

sua experiência da língua falada. Porém, não é uma reprodução da língua falada, é uma

criação artificial baseada no que ele escuta. Portanto a língua para mim, a língua em que

escrevo meus romances, é uma criação artificial feita da língua inglesa, da língua francesa, da

língua espanhola da minha infância, da língua espanhola dos meus últimos dez anos. É como

uma pasta de trabalho em que vou recolhendo coisas pelo caminho e depois tento armar com

elas meus próprios romances.

Passando agora ao universo temático da sua obra, por que essa insistência na

memória e no passado? Por que, como romancista, você se debruça sobre o passado

colombiano?

Vásquez: Creio que, com o tempo, me enchi de justificativas racionais para isso e posso

dizer que, para mim, uma das obrigações do romancista é manter viva a lembrança de certas

coisas. Cito uma frase de Sebald que diz que a memória é a coluna moral da literatura.

Recordar é um ato moral, é um ato com conteúdo moral, e o romancista no século XX se

transformou naquele que lembra o que os demais querem que se esqueça. O romancista se

confronta com o impulso natural dos seres humanos de esquecer o que é incômodo, difícil.

Também se confronta com essa espécie de procedimento natural dos governos, do poder, que

é a reescrita do nosso passado, de nossa história – e o romancista resiste, o romance resiste a

esses procedimentos. Então, há uma série de razões quase éticas que fazem com que eu, como

leitor e romancista, me interesse por essa espécie de papel que a literatura tem de guardiã da

memória. Mas, no fundo, acho que é uma razão mais pessoal e instintiva: sempre me

interessei mais pelos mortos do que pelos vivos. Sempre fui obcecado, de uma maneira muito

pessoal, por essa ideia que Faulkner expressou em um romance, que diz: “O passado não está

morto, nem sequer passou” (“The past is not dead, it‟s not even past”). Eu sinto isso de uma

maneira muito viva, e escrevo sobre as coisas que sinto não de uma maneira racional, teórica,

como expressava antes, mas de uma maneira visceral. Sempre senti que o passado do meu

país, que o passado da minha família, estão comigo, me acompanham constantemente. Sinto

esses fantasmas, por isso escrevo sobre eles, porque me interessam, porque nós, seres

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humanos, crescemos com muitas incertezas e muitas dúvidas sobre tudo, mas uma das poucas

certezas que temos, que nos vendem,é: “o que passou, passou”. Aquilo que faz parte do

passado é definitivo, não se pode fazer mais nada, já ficou para trás... “O que passou, passou”

é uma parte importante da filosofia do ser humano, e é falsa. O passado não está fixo, o

passado, o nosso passado, está em constante movimento. É como diz um personagem de Los

Informantes: temos uma certa ideia sobre nossa família, nosso parceiro, até que aparece uma

foto, aparece uma carta, e o que imaginávamos de nosso passado, de nossa família, de nosso

país, começa a mudar. O passado está em perpétuo movimento: sou obcecado por isso, e é por

essa razão que escrevo. Creio que é essa preocupação, muito pessoal, muito visceral, que nada

tem de teórica: o passado, longe de ser algo fixo e quieto, nos acompanha, nos incomoda, nos

modifica.

No entanto, em Los informantes sobretudo, mas também em El ruido de las cosas al

caer, você aponta as complexidades de evocar certos fatos históricos, porque evocá-los

também traz dor para pessoas que estiveram envolvidas neles. Você acha que alguns

fatos históricos merecem o esquecimento, a distância dos romancistas?

Vásquez: Esta é uma pergunta que me faço frequentemente nos últimos anos, porque

recordar tem sido para mim uma obsessão desde que escrevi Los informantes. Em meu livro

de contos, inclusive, já existe uma preocupação com o passado e por recordar as vidas íntimas

dos personagens, e eu acredito que isso se deva também ao meu amadurecimento pessoal, à

proximidade dos quarenta anos. Com tudo isso, veio certa preocupação pelo oposto, e me

pergunto se, em muitos casos, não teremos um certo direito ao esquecimento, se não há coisas

que é melhor não lembrar, se os indivíduos e as sociedades não têm o direito de esquecer, de

deixar para trás certos fatos. Me pergunto, por exemplo, como as novas tecnologias se

relacionam com isso. A internet é um lugar onde não existe o direito de esquecer: se você

comete um erro, seja em um dos seus atos ou em um dos seus escritos, e ele sai na internet,

aquilo fica lá e você nunca mais terá o controle, aquilo nunca poderá ser apagado de sua

biografia, de sua vida. A internet é extremamente preocupante porque elimina nosso direito de

deixar o passado para trás. O que fizemos fica ali e nunca não vai se apagar; isso me preocupa

cada vez mais. Se, durante um tempo, me preocupava com o direito que temos de não

esquecer, de lembrar, de que os poderes que escrevem a história não tenham sempre a razão,

agora comecei a pensar que talvez, em muitas coisas, devemos também exigir nosso direito ao

esquecimento, nosso direito a não lembrar, a virar a página.

Inclusive na esfera social e não só individual?

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Vásquez: Me pergunto também, mas não estou certo, se parte do êxito alemão após a

Segunda Guerra Mundial, tal como comenta Sebald, por exemplo, em um livro chamado

História natural da destruição, consistiu em conseguir alguns anos de amnésia, alguns anos

em que não se recordava do conflito. Graças a isso, o país teria conseguido avançar,

sobreviver, e hoje em dia é um país que tem, digamos, a honrosa condição de ser o guardião

da memória da Europa. Os alemães são aqueles que recordam com mais insistência a sua

própria culpa, seu próprio passado difícil, mas conseguem fazer isso porque houve um

momento de esquecimento. Durante alguns anos conseguiram virar a página, esquecer isso e

ressurgir como país após o Holocausto. Então creio que o esquecimento de nossa história

coletiva nunca é recomendável, mas é possível pensar em um direito individual a esquecer e

deixar para trás. Mas é como disse: são perguntas que me faço, não tenho uma resposta clara.

O escritor argentino Rodrigo Fresán escreveu que você está se tornando o melhor

escritor político latino-americano. O que você pensa desta classificação? O que seria,

hoje em dia, um escritor político?

Vásquez: Há uma frase de Stendhal, em A cartuxa de Parma, que diz que a política em

uma obra literária é como um tiro no meio de um concerto: algo muito grosseiro, mas

impossível de ignorar. Eu creio que os registros, os discursos, a maneira de falar da política e

da literatura de ficção se encontram em pontos opostos do espectro. A política funciona com a

simplificação, com a ausência de matizes; o papel do político (e isso qualquer assessor de

campanha, qualquer escritor de discurso pode dizer) é afirmar: as coisas não são tão

complexas como você acha, são muito mais simples, preto no branco, explico em sete

palavras e resolvo em sete pontos... O romancista faz exatamente o contrário; é alguém que se

depara com uma situação muito clara e diz: não, as coisas não são assim tão claras, são mais

complicadas, isso tem zonas cinzentas, tem um lado oculto. Eu e Javier Cercas [escritor

espanhol, com quem participou de debate na Flip] comentamos no outro dia que o político é

alguém que encontra um problema e entrega uma solução, mesmo que seja falsa. O

romancista é alguém que encontra uma solução e a transforma num problema. Então, são

modos completamente diferentes de se aproximar do mundo. Isso quer dizer que, quando a

política entra num romance, ocorre uma tensão imediata. Se o romancista consegue incorporar

perguntas políticas sem adotar a linguagem da política, aí eu posso falar de um romance

político com o qual me sinto confortável – e são romances políticos Pastoral americana e A

marca humana, de Philip Roth, e é, nesse nível, um romance político O coração das trevas,

embora não seja, sob nenhum ponto de vista, apenas isso. Portanto, essa questão não me

assusta muito, embora haja uma série de riscos que o romance corre quando se aproxima da

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política como tema, e o romancista precisa estar muito consciente deles. Como disse em

algum ensaio, a chave é tentar escrever romances que sejam políticos sem fazer política e

manter essa maneira particular de ver o mundo que têm os romances, que nunca dão resposta,

mas se contentam em fazer as perguntas mais interessantes que podem encontrar, que é

justamente o contrário da dicção política. A dicção política consiste em tentar resolver tudo e

esclarecer tudo, em tranquilizar as pessoas. De modo que existe uma tensão que parece

insolúvel, mas há grandes ficções do século XX que nos provaram que a política pode ser

tema da grande literatura, sempre e quando a literatura não se entregar à visão do mundo da

política e sim tomá-la e dominá-la.

E você considera seus três romances colombianos políticos?

Vásquez: Creio que Los informantes e Historia secreta de Costaguana são romances

políticos nesse sentido. Creio que El ruido de las cosas al caer é ligeiramente distinto, porque

existe ali uma investigação muito mais pessoal na minha memória privada, e isso muda as

coisas de uma maneira um pouco difícil de explicar. Mas a escrita desse romance me exigiu

uma investigação muito pessoal, muito íntima das minhas próprias lembranças, para recordar

coisas incômodas. A história do tiro dado no protagonista aconteceu com um amigo meu, e os

episódios do hospital estão baseados na minha lembrança do que foi visitar meu amigo

quando ele parecia estar a ponto de morrer por causa daquele tiro. Então, nunca vivi a escrita

desse romance com a consciência de estar me metendo em um terreno difícil do ponto de vista

político. Escrevi o livro com a ideia de estar explorando uma parte da minha biografia, da

minha memória e das minhas emoções, de uma maneira muito mais pessoal... Disse que esse

romance é muito autobiográfico, mas não porque tenha sido construído com minhas

experiências diretas e sim porque foi construído com meus medos. E, nesse sentido, é um

romance muito mais pessoal do que essas investigações mais coletivas que são os outros dois

livros. Provavelmente essa é a diferença.

Apesar disso, na minha visão, há uma parte política importante em El ruido de las

cosas al caer queé apontar a presença dos Estados Unidos no nascimento do narcotráfico

na Colômbia. E, nos seus dois romances anteriores, os Estados Unidos também estão por

trás dos problemas que você narra: a construção do Canal do Panamá e as listas negras

para imigrantes dos países do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial... Você

considera que se aprofundar no passado latino-americano implica denunciar os crimes

cometidos pelos governos norte-americanos?

Vásquez: Não, nunca me interessei por isso. Aliás, o verbo denunciar me incomoda

muito como romancista. Não creio que a denúncia seja parte do meu trabalho como

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romancista nem que seja um requisito dos romances que me interessam. Embora seja difícil

de entender, e também difícil de acreditar, digo que é absolutamente casual essa maneira

estranha em que, nos três romances, a presença dos Estados Unidos, da política externa norte-

americana, marca o destino dos personagens. Acho que simplesmente é um testemunho do

tanto que a política externa dos Estados Unidos esteve presente na vida dos países latino-

americanos. Nunca me interessei em denunciar, em reivindicar nada. Não sou, nem nunca fui,

antiamericanista. Pelo contrario: sou um amante da literatura dos Estados Unidos, da sua

cultura, da sua música, e inclusive da sua tradição democrática. Tudo o que vem desde

Jefferson, e Adams, e Thomas Paine é a cultura democrática que eu gostaria de ver nos países

latino-americanos. O que ocorre é que, no século XX, os governos norte-americanos

perverteram seus ideais de democracia: desde Theodore Roosevelt – que foi o poder que

esteve presente durante a Revolução do Panamá – até os fatídicos anos de George Bush, os

governos dos Estados Unidos não estiveram à altura de sua tradição filosófica, que vem de

1776 e da Revolução Norte-Americana.

Um traço muito forte do “boom da literatura latino-americana”, nos anos 1960 e

1970, foi a existência de um ideal político, a crença na emancipação da América Latina.

Hoje, pelo contrário, o que parece mais notável é uma desilusão, um ceticismo. Você

compartilha dessa visão? Inclui-se no ceticismo?

Vásquez: Não sei. Acho que o “boom latino-americano” surgiu num momento de

transformação muito intensa da sociedade latino-americana, que estava ligado, em grande

medida, à Revolução Cubana. Esse foi o grande aglutinador que une os escritores latino-

americanos do “boom”: seu apoio à Revolução Cubana. Minha geração não tem um

aglutinador similar, um polo que nos una, mas eu não acho que sejamos uma geração

desencantada. Creio que há uma geração que tem um olhar muito comprometido sobre a

política de seus países. Talvez muitos de nós nos interessemos mais pela política passada,

pelo mundo que as gerações anteriores nos legaram, e talvez seja isso o que venhamos

fazendo: não tanto explorar obsessivamente o momento político presente, como fez o “boom

latino-americano”, mas tentar averiguar o que recebemos das gerações anteriores.

Por isso a presença recorrente da figura paterna em seus romances? Não só neles,

aliás, mas em vários outros escritores, a figura paterna hoje é muito dominante. Você

acha que isso reflete a preocupação com o que se herdou?

Vásquez: Eu penso que sim, e penso que o conflito entre um pai e um filho é a

quintessência do conflito histórico. O conflito histórico é basicamente uma tensão entre duas

maneiras diferentes de ver o mundo, e isso de fato muitas vezes se reflete dessa forma: na

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crítica que os pais fazem dos filhos, pelo que eles fizeram do mundo que demos a eles; ou na

crítica que os filhos fazem dos pais, por terem deixado o mundo desse jeito. Portanto é

evidente que, em certo nível, todo conflito entre pai e filho é um conflito histórico e Los

informantes, por exemplo, explora isso de maneira muito clara.

Por que em todos os seus romances você adotou a primeira pessoa, a

metalinguagem e às vezes alguns traços de autoficção, como no nome do personagem de

Los informantes (Gabriel)? Tem a ver com a resistência do leitor atual com a ficção,

conforme apontam muitos escritores?

Vásquez: Não, acho que tem a ver com minha relação com meu material: uma relação,

como disse, de investigador. Quis que meus personagens, meus narradores nos romances, se

comportassem mais ou menos como eu me comportei durante a escrita: um processo de

averiguação, de descoberta. Meus narradores nunca sabem dos fatos; nunca sabem tudo desde

o começo; averiguam enquanto vão contando.

Sempre há um segredo...

Vásquez: Sim, há um segredo e uma certa instabilidade. Em Los informantes, como

você se lembra, as descobertas que o narrador vai fazendo o obrigam a reavaliar tudo o que

sabe, então o romance vai mudando...

O passado vai mudando…

Vásquez: O passado vai mudando... Quis que meus narradores se comportassem frente

a seu material da mesma maneira que eu me comportei como romancista, isto é, com as

incertezas e as dúvidas de quem investiga, de quem vai averiguando pouco a pouco, de quem

pouco a pouco vai iluminando seu próprio material, de quem nunca entende perfeitamente

tudo o que está contando. Isso é importante, é a isso que eu respondo.

Alguns escritores reclamam que, quando querem vender seus livros para outros

países, os editores estrangeiros exigem que suas obras tenham traços nacionais, que o

país de origem do autor esteja sempre presente em suas obras. Você acha que, sendo

colombiano, teria o mesmo sucesso, não digo de crítica, mas comercial, e a mesma

acolhida editorial, se escrevesse por exemplo sobre a Bélgica ou outro país que não a

Colômbia?

Vásquez: Não sei. Concordo com o que você diz: existe essa espécie de exigência, essa

exigência estúpida de que nós, escritores, sejamos intérpretes de nossos países. Meu primeiro

livro maduro, Los amantes de todos los santos, é um livro de contos sobre a França e a

Bélgica. E, realmente, se eu tivesse que responder à sua pergunta com base no que ocorreu

com esse livro e com Os informantes, me parece evidente que não é um bom negócio para um

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escritor latino-americano não ser latino-americano: o mundo comercial da edição exige

referências de identidade claras, e isso é uma grande bobagem. O escritor latino-americano

tem de se rebelar contra isso, inclusive lembrando o ensaio de Borges “El escritor argentino y

la tradición”. Mas, ao mesmo tempo, existem casos em que os escritores latino-americanos já

começaram a romper com essas lealdades. Jardines de Kensington, de Rodrigo Fresán, foi um

romance muito bem-sucedido, recebeu críticas muito boas, avaliações extraordinárias na

Inglaterra, e é um romance sobre os ingleses e os anos 1960 na Inglaterra. Portanto, para mim,

é muito difícil saber o que aconteceria, que exigências o mundo editorial faz do editor, mas

também não me parece muito saudável gastar muita energia pensando nisso.

Isso nunca influenciou seu trabalho como escritor?

Vásquez: Não, minimamente. Nunca tomei uma decisão de escrita me baseando em

coisas que estejam fora do livro; meus livros respondem, em cada palavra, a obsessões

pessoais, e nunca me separei delas. E creio que essa posição ética, digamos, me deu muitos

resultados.