Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires
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E UM BELO DIA…Os dois camponeses, apanhando a aldeia a
dormir a sesta, piraram-se com o filho na camio-
nete da carreira.
Conta-se, não há provas, conta-se apenas que
o rapazito que amanhã viria a ser imperador não
se mostrou satisfeito com a viagem, embora a ti-
vesse traçada no signo. Na sua infância sabedora
conhecia todos os passos que lhe estavam reser-
vados mas havia qualquer coisa que não o con-
trariava. O que era, o que não queria ter vindo de
burros, queixou-se ele – só uma vez.
«DE BURRO? QUE IDEIA!»Seria por causa dos solavancos que camioneta,
tão ruidosa e tão coçada? Possível, é uma hipó-
tese. Seria por se ver misturado com passageiros
folgazões que a cada paragem corriam para as ta-
bernas e desatavam aos abraços uns aos outros?
Ou seriam as saudades do jumento que tinha tro-cado pelo curso de imperador? Enigmas, coisas
da História, que tem destes passos sem rastro
para despistar os curiosos. O pequeno queria ir
de burro porque sim. E mais não disse.
A mãe, como é natural, enterneceu-se muito
com um desejo tão humilde. Segundo a lenda, te-
ria sorrido tristemente, aconchegando a criança
contra o peito e pensando se calhar em como era
frágil, o seu filho.
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«SOSSEGA, MENINO.ESTAMOS A CHEGAR.»
De apeadeiro em apeadeiro apareciam rapa-
zotes descalços e de arco na mão a festejar a
camioneta. Alguns penduravam-se na escada da
retaguarda que dava para o tejadilho; outros ris-
cavam bonecos no pó que cobria os guarda-la-
mas; outros, ainda, espreitavam lá para dentro,
para os passageiros, e fugiam a rir, envergonha-
dos; e havia sempre um que punha a mão no ra-
diador para o sentir a trepidar de calor e can-
saço. Era isso a velha carripana: uma aventura
tentadora. Um mundo em viagem, com o motor
a ofegar, o cheiro embriagador da gasolina e a
novidade dos rostos que se alinhavam às janelas.
Por essa razão, quando ela arrancava estrada
fora,
PUF… PUF…os rapazitos, aqueles diabos, corriam a acom-
panhá-la, rido e acenando com os braços como
se a camioneta, lá no intimo, tivesse passado ali
só para os desafiar para uma reinação qualquer
através dos montes e dos povoados e por esses
mundos além. Acabavam, bem entendido, por fi-
car para trás, suspensos numa nuvem de poeira,
enquanto o calhambeque ia galgando covas e pe-
nedos, a assoprar, a assoprar.
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Pai, mãe e filho acharam-se no meio de muitas
ruas apertadas e antigas. Havia arcos de pedra e
brasões a certas portas. Oratórios também: mui-
tos. E padres. Padres, padres e mais padres, o
que ali ia de padres, só visto. Levantava-se uma
pedra e saltava um, acendia-se a luz e voava ou-
tro. Pareciam gatos a espirrar da sombra.
Mulheres é que poucas, muito raras. à falta
delas a cidade procurava animar-se com rapazes
aos bandos que brincavam à coragem do vinho
tinto e contavam anedotas em voz alta. Vestiam
capas de luto e batinas iguais às dos padres, em-
bora fossem estudantes. O mais curioso é que,
talvez por não terem mulheres ou por andarem
cheios de medo dos professores, se vingavam
constantemente uns nos outros, rasgando capas
à tesourada, rapando o cabelo aos mais fracos,
fazendo trinta por uma linha. Nessas ocasiões
soltavam gritos de guerra:
Cada terra dá o que tem, a mais não
é obrigada. Desfralda-se o Alentejo em
cortiça da melhor, o Algarve em sol e
praias. Diamante vem de Angola, pare-
ce; da América ouro e guerras. Terras há
que dão o vinho, outras pedras e emi-
grantes. A cidade para onde se dirigiam
os três camponeses produzia doutores
– e isto não consta da Geografia. Toma
nota, Ritinha.
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PARTE SEGUNDAO Reino.
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Aquilo que até ali não passava de um modesto
gabinete sem nada de especial iria ser conheci-
do por
A CÂMARA DE TORTURAR PALAVRASOnde verbos e substantivos, cedilhas e restan-
te população dos dicionários sofreriam trata-
mentos em último grau.
Seguindo o esquema (que deve andar algures
pelos arquivos ou nalgum microfilme em códi-
go-espia) a máquina infernal devia resumir-se a
a) Um grupo de registos de leitura –
computação inicial – que seguramente
figurava nas «Instruções Gerais» como
Conjunto de Admissão por ser através
dele que as palavras entravam no circui-
to para imediatamente se dirigirem ao
b) Sistema de Selecções Progressivas,
também designado no esquema pelas
iniciais SP, onde eram combinadas com
outros vocábulos que actuavam como
catalisadores ou «reagentes significan-
tes». Por esta operação obtinham-se os
sinónimos e as intenções mais ocultas
de cada palavra.
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c) Grupo Complementar que, comple-
mentarmente, informava sobre as raízes
árabes, gregas latinas ou de antepassa-
dos mais que duvidosos.
d) Câmaras Alfa, Beta e Beta Um.
Devidamente desdobradas nas suas
origens e significados, as palavras eram
transportadas por uma rede de canais
progressivamente selectivos até um con-
junto de três câmaras onde se subme-
tiam a movimentos de compressão e sín-
tese. O produto obtido, a reminiscência,
a sílaba, ia sendo anotada numa
e) Fita de registo contínuo e simulta-
neamente enviada para o
f) Complexo de Recuperação (lavagem
e filtros) que, depois de purificar a pala-
vra, e recompunha e transmitia aos
g) Ficheiros automáticos.
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«QUE TODOS TOMEM NOTA»,Acrescentou. Deu meia volta e foi para o forte,
para as palavras.
Todos tomaram nota, e a ilha passou a ser na
cidade e não onde queria a geografia. Limites: a
norte o largo do chafariz, a sul e a nascente o
jardim zoológico com a variedade da sua fauna
característica, a ocidente um campo de futebol,
e mais para diante, mar. o extenso, o pródigo, o
venerável mar.
Agora, atenção escolas, atenção compêndios,
havia que corrigir
a população, que era de oitenta e três nativos,
o clima, menos húmido que antigamente,
(...)
Por aqui já podemos avaliar o exemplo de ci-
vilização que era a Ilha das Duas Casas, rodea-
da de cidade por todos os lados. Pérola serena,bandeirinha na imensidão, eis o que ela lembra-
va. Mas para que tudo ficasse como dantes, ou
seja, como quando a Ilha era rodeada de mar, o
Imperador ordenou que as salas fossem forradas
com enormes fotografias da paisagem de cada
distrito, de modo a que os indígenas não estra-
nhassem a mudança. Pôs também palhotas: duas
em cada quarto; nos corredores plantou capim e
palmeiras de plástico, transformando-os em ca-
minhos de sertão. Que mais faltava?
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Talvez os pássaros, esses mensageiros fran-
ciscanos que alegram a natureza e despertam
a inocência. Onde estavam eles, os pássaros?
Resposta: no lugar que lhes competia - entre a
folhagem. Havia-os de porcelana, de museu e
de plumagem de nylon e, já agora, puseram-se
também macacos embalsamados para animar a
ramaria. Nas paredes insectos fluorescentes de
luzir à noitinha; pelos cantos serpentes enrola-
das. Em matéria de som, a fidelidade era de dei-
tar por terra um explorador de cem carabinas
– vinha todo do natural, gravado em fita magné-
tica: choro de hienas, roncos de leão altaneiro,macacadas barulhentas; o tritrinar das aves e o
cascalhar dos riachos; tambores ao longe. O es-
sencial.
Cada habitante tinha por dever andar de tanga
dentro dos prédios e falar o dialeto da respec-
tiva região. Assim ajustava-se melhor à paisa-
gem e aos climas que continuavam a respeitar
os horários do outro hemisfério, com monções
e tudo. Verdade, as monções e tudo. Verdade,
mas monções eram essenciais. Para esse efeitoutilizavam-se uns engenheiros desvairados que,
na altura própria inundavam os prédios a jacto
de mangueira, derrubando algumas palhtas para
exemplificar.
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PARTE TERCEIRAAs Palavras.
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Manter a figura imperial segundo a vontade da
nação parecia-lhes um dever que nem se discu-
tia, um dever, diziam, sacrossanto. Mais: inex-pugnável aos olhos das gerações que haviam de
vir e dos sublimes destintos do Reino. Um de-
ver-etecétera, uma missão igualmente etecete-
ra. Maior clareza não seria possível.
Os conselheiros, desfolhadas as flores do
etecetera, entraram nas razões de urgência, as
menos valiosas mas também com o seu peso.
Primeira, a desolação de Sua Alteza: que choque
não seria o dele se se visse dinossauro-dinosau-
rus nas fotografias dos jornais, na televisão e,para maior escândalo, na imprensa dos estran-
geiros? Segunda, a economia da Coroa: fabricar
novas estátuas, novos selos, nova moeda, subs-
tituir retratos e medalhões, representaria uma
despesa de alto lá, um desperdício e um desafio
à misericórdia de Deus
«QUE NOS FEZ A GRAÇA DE
NOS QUERER POBRES»Recitavam em coro os conselheiros, alinhados
na defesa do orçamento.
Diziam que o assunto merecia ser pensado de-
vidamente, e eles eram pensadores de primeira
água. Por exemplo, uma parte do comércio do
Reino vivia dos retratos do Imperador quando
jovem sábio. Perguntavam: tinham-se esgotado?
Nem pensar. Havia os pratos de feira onde SuaAlteza aparecia desenhado com muito boa von-
tade, as almofadas bordadas a luneta cansada
pelas velinhas de pele macia, os medalhões de
cortiça nas tabernas de jogo escondido, coisas
em suma do artesanato em pureza que davam o
perfil imperial no desenho de sempre: sereno e
perfeito, saber e autoridade. Modificá-lo seria:
«A REVOLUÇÃO»
«CONTRARIAR AS TRADIÇOES»
«DESILUDIR O TURISMO»Faltava a terceira razão, esta não confessada,
e que era: a superstição dos conselheiros. A sé-
rio, isso contava muito. Os conselheiros eramsupersticiosos como burro. Vestiam de igual, à
gato pingado, usavam óculos com as lentes para
lerem da mesma maneira (jugavam eles) os de-
cretos; chegavam a recuar à porta das reuniões
só para entrarem com o pé direito. Mal alguém
pronunciava a palavra. Azar faziam figas por
baio da mesa; à menos desconfiança benziam-
-se, o que não lhes ficava mal, mas enfim. Parar
eles, substituir o retrato, cruzes!, seria provocar
os maus desígnios, a ordem, a paisagem ou o que
se queria chamar o Reino. Era substituir um pou-co deles, conselheiros, que de qualquer maneira
faziam parte da imagem de Sua Alteza com muita
honra e brio.
«APOIADO! VIVA OIMPERADOR DE SEMPRE!»
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ORMED…OREDM…DEROM…MORED…
Mored? O Douktor Dinosaurus intrigou-
se: seria algum código inimigo?
MORED…MORED…
Insistia o registo, crescendo pelo sobrado
fora. E depois:
MORED…ORMED…ORMED…DEMO…RRRRR…DEMO…RRRRRRRRRRRRRRRRR
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sinal, ponto, seta
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MORDEMorde? Perguntou o Imperador em voz alta,
deitando as unhas à tira de papel. Morde o quê?
Palavas não eram ditas, rompia o sinal de alar-
me, aos uivos ameaçador. A fita escorreu mais
depressa dos computadores. Serpenteava pelo
chão, enroscava-se nas pernas do Douktor, en-
chia-lhe as mãos:
MORDE…OREDM…
MERDO…MEDRO…RRRRRRRRRRRRRRRR
sinal, ponto, seta ----- MEDO
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Ilustrações e composição por Mariana Abreu
FBAUL
2014, Lisboa
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Lisboa, 2014