Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

download Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

of 28

Transcript of Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    1/28

    Dinossauro Excelentíssimo José Cardoso Pires

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    2/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    3/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    4/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    5/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    6/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    7/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    8/28

    E UM BELO DIA…Os dois camponeses, apanhando a aldeia a

    dormir a sesta, piraram-se com o filho na camio-

    nete da carreira.

    Conta-se, não há provas, conta-se apenas que

    o rapazito que amanhã viria a ser imperador não

    se mostrou satisfeito com a viagem, embora a ti-

    vesse traçada no signo. Na sua infância sabedora

    conhecia todos os passos que lhe estavam reser-

    vados mas havia qualquer coisa que não o con-

    trariava. O que era, o que não queria ter vindo de

    burros, queixou-se ele – só uma vez.

    «DE BURRO? QUE IDEIA!»Seria por causa dos solavancos que camioneta,

    tão ruidosa e tão coçada? Possível, é uma hipó-

    tese. Seria por se ver misturado com passageiros

    folgazões que a cada paragem corriam para as ta-

    bernas e desatavam aos abraços uns aos outros?

    Ou seriam as saudades do jumento que tinha tro-cado pelo curso de imperador? Enigmas, coisas

    da História, que tem destes passos sem rastro

    para despistar os curiosos. O pequeno queria ir

    de burro porque sim. E mais não disse.

    A mãe, como é natural, enterneceu-se muito

    com um desejo tão humilde. Segundo a lenda, te-

    ria sorrido tristemente, aconchegando a criança

    contra o peito e pensando se calhar em como era

    frágil, o seu filho.

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    9/28

    «SOSSEGA, MENINO.ESTAMOS A CHEGAR.»

    De apeadeiro em apeadeiro apareciam rapa-

    zotes descalços e de arco na mão a festejar a

    camioneta. Alguns penduravam-se na escada da

    retaguarda que dava para o tejadilho; outros ris-

    cavam bonecos no pó que cobria os guarda-la-

    mas; outros, ainda, espreitavam lá para dentro,

    para os passageiros, e fugiam a rir, envergonha-

    dos; e havia sempre um que punha a mão no ra-

    diador para o sentir a trepidar de calor e can-

    saço. Era isso a velha carripana: uma aventura

    tentadora. Um mundo em viagem, com o motor

    a ofegar, o cheiro embriagador da gasolina e a

    novidade dos rostos que se alinhavam às janelas.

    Por essa razão, quando ela arrancava estrada

    fora,

    PUF… PUF…os rapazitos, aqueles diabos, corriam a acom-

    panhá-la, rido e acenando com os braços como

    se a camioneta, lá no intimo, tivesse passado ali

    só para os desafiar para uma reinação qualquer

    através dos montes e dos povoados e por esses

    mundos além. Acabavam, bem entendido, por fi-

    car para trás, suspensos numa nuvem de poeira,

    enquanto o calhambeque ia galgando covas e pe-

    nedos, a assoprar, a assoprar.

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    10/28

    Pai, mãe e filho acharam-se no meio de muitas

    ruas apertadas e antigas. Havia arcos de pedra e

    brasões a certas portas. Oratórios também: mui-

    tos. E padres. Padres, padres e mais padres, o

    que ali ia de padres, só visto. Levantava-se uma

    pedra e saltava um, acendia-se a luz e voava ou-

    tro. Pareciam gatos a espirrar da sombra.

    Mulheres é que poucas, muito raras. à falta

    delas a cidade procurava animar-se com rapazes

    aos bandos que brincavam à coragem do vinho

    tinto e contavam anedotas em voz alta. Vestiam

    capas de luto e batinas iguais às dos padres, em-

    bora fossem estudantes. O mais curioso é que,

    talvez por não terem mulheres ou por andarem

    cheios de medo dos professores, se vingavam

    constantemente uns nos outros, rasgando capas

    à tesourada, rapando o cabelo aos mais fracos,

    fazendo trinta por uma linha. Nessas ocasiões

    soltavam gritos de guerra:

    Cada terra dá o que tem, a mais não

    é obrigada. Desfralda-se o Alentejo em

    cortiça da melhor, o Algarve em sol e

    praias. Diamante vem de Angola, pare-

    ce; da América ouro e guerras. Terras há

    que dão o vinho, outras pedras e emi-

    grantes. A cidade para onde se dirigiam

    os três camponeses produzia doutores

    – e isto não consta da Geografia. Toma

    nota, Ritinha.

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    11/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    12/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    13/28

    PARTE SEGUNDAO Reino.

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    14/28

    Aquilo que até ali não passava de um modesto

    gabinete sem nada de especial iria ser conheci-

    do por

     A CÂMARA DE TORTURAR PALAVRASOnde verbos e substantivos, cedilhas e restan-

    te população dos dicionários sofreriam trata-

    mentos em último grau.

    Seguindo o esquema (que deve andar algures

    pelos arquivos ou nalgum microfilme em códi-

    go-espia) a máquina infernal devia resumir-se a

    a) Um grupo de registos de leitura –

    computação inicial – que seguramente

    figurava nas «Instruções Gerais» como

    Conjunto de Admissão por ser através

    dele que as palavras entravam no circui-

    to para imediatamente se dirigirem ao

    b) Sistema de Selecções Progressivas,

    também designado no esquema pelas

    iniciais SP, onde eram combinadas com

    outros vocábulos que actuavam como

    catalisadores ou «reagentes significan-

    tes». Por esta operação obtinham-se os

    sinónimos e as intenções mais ocultas

    de cada palavra.

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    15/28

    c) Grupo Complementar que, comple-

    mentarmente, informava sobre as raízes

    árabes, gregas latinas ou de antepassa-

    dos mais que duvidosos.

    d) Câmaras Alfa, Beta e Beta Um.

    Devidamente desdobradas nas suas

    origens e significados, as palavras eram

    transportadas por uma rede de canais

    progressivamente selectivos até um con-

     junto de três câmaras onde se subme-

    tiam a movimentos de compressão e sín-

    tese. O produto obtido, a reminiscência,

    a sílaba, ia sendo anotada numa

    e) Fita de registo contínuo e simulta-

    neamente enviada para o

    f) Complexo de Recuperação (lavagem

    e filtros) que, depois de purificar a pala-

    vra, e recompunha e transmitia aos

    g) Ficheiros automáticos.

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    16/28

    «QUE TODOS TOMEM NOTA»,Acrescentou. Deu meia volta e foi para o forte,

    para as palavras.

    Todos tomaram nota, e a ilha passou a ser na

    cidade e não onde queria a geografia. Limites: a

    norte o largo do chafariz, a sul e a nascente o

     jardim zoológico com a variedade da sua fauna

    característica, a ocidente um campo de futebol,

    e mais para diante, mar. o extenso, o pródigo, o

    venerável mar.

    Agora, atenção escolas, atenção compêndios,

    havia que corrigir

    a população, que era de oitenta e três nativos,

    o clima, menos húmido que antigamente,

    (...)

    Por aqui já podemos avaliar o exemplo de ci-

    vilização que era a Ilha das Duas Casas, rodea-

    da de cidade por todos os lados. Pérola serena,bandeirinha na imensidão, eis o que ela lembra-

    va. Mas para que tudo ficasse como dantes, ou

    seja, como quando a Ilha era rodeada de mar, o

    Imperador ordenou que as salas fossem forradas

    com enormes fotografias da paisagem de cada

    distrito, de modo a que os indígenas não estra-

    nhassem a mudança. Pôs também palhotas: duas

    em cada quarto; nos corredores plantou capim e

    palmeiras de plástico, transformando-os em ca-

    minhos de sertão. Que mais faltava?

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    17/28

    Talvez os pássaros, esses mensageiros fran-

    ciscanos que alegram a natureza e despertam

    a inocência. Onde estavam eles, os pássaros?

    Resposta: no lugar que lhes competia - entre a

    folhagem. Havia-os de porcelana, de museu e

    de plumagem de nylon e, já agora, puseram-se

    também macacos embalsamados para animar a

    ramaria. Nas paredes insectos fluorescentes de

    luzir à noitinha; pelos cantos serpentes enrola-

    das. Em matéria de som, a fidelidade era de dei-

    tar por terra um explorador de cem carabinas

     – vinha todo do natural, gravado em fita magné-

    tica: choro de hienas, roncos de leão altaneiro,macacadas barulhentas; o tritrinar das aves e o

    cascalhar dos riachos; tambores ao longe. O es-

    sencial.

    Cada habitante tinha por dever andar de tanga

    dentro dos prédios e falar o dialeto da respec-

    tiva região. Assim ajustava-se melhor à paisa-

    gem e aos climas que continuavam a respeitar

    os horários do outro hemisfério, com monções

    e tudo. Verdade, as monções e tudo. Verdade,

    mas monções eram essenciais. Para esse efeitoutilizavam-se uns engenheiros desvairados que,

    na altura própria inundavam os prédios a jacto

    de mangueira, derrubando algumas palhtas para

    exemplificar.

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    18/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    19/28

    PARTE TERCEIRAAs Palavras.

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    20/28

    Manter a figura imperial segundo a vontade da

    nação parecia-lhes um dever que nem se discu-

    tia, um dever, diziam, sacrossanto. Mais: inex-pugnável aos olhos das gerações que haviam de

    vir e dos sublimes destintos do Reino. Um de-

    ver-etecétera, uma missão igualmente etecete-

    ra. Maior clareza não seria possível.

    Os conselheiros, desfolhadas as flores do

    etecetera, entraram nas razões de urgência, as

    menos valiosas mas também com o seu peso.

    Primeira, a desolação de Sua Alteza: que choque

    não seria o dele se se visse dinossauro-dinosau-

    rus nas fotografias dos jornais, na televisão e,para maior escândalo, na imprensa dos estran-

    geiros? Segunda, a economia da Coroa: fabricar

    novas estátuas, novos selos, nova moeda, subs-

    tituir retratos e medalhões, representaria uma

    despesa de alto lá, um desperdício e um desafio

    à misericórdia de Deus

    «QUE NOS FEZ A GRAÇA DE

    NOS QUERER POBRES»Recitavam em coro os conselheiros, alinhados

    na defesa do orçamento.

    Diziam que o assunto merecia ser pensado de-

    vidamente, e eles eram pensadores de primeira

    água. Por exemplo, uma parte do comércio do

    Reino vivia dos retratos do Imperador quando

     jovem sábio. Perguntavam: tinham-se esgotado?

    Nem pensar. Havia os pratos de feira onde SuaAlteza aparecia desenhado com muito boa von-

    tade, as almofadas bordadas a luneta cansada

    pelas velinhas de pele macia, os medalhões de

    cortiça nas tabernas de jogo escondido, coisas

    em suma do artesanato em pureza que davam o

    perfil imperial no desenho de sempre: sereno e

    perfeito, saber e autoridade. Modificá-lo seria:

    «A REVOLUÇÃO»

    «CONTRARIAR AS TRADIÇOES»

    «DESILUDIR O TURISMO»Faltava a terceira razão, esta não confessada,

    e que era: a superstição dos conselheiros. A sé-

    rio, isso contava muito. Os conselheiros eramsupersticiosos como burro. Vestiam de igual, à

    gato pingado, usavam óculos com as lentes para

    lerem da mesma maneira (jugavam eles) os de-

    cretos; chegavam a recuar à porta das reuniões

    só para entrarem com o pé direito. Mal alguém

    pronunciava a palavra. Azar faziam figas por

    baio da mesa; à menos desconfiança benziam-

    -se, o que não lhes ficava mal, mas enfim. Parar

    eles, substituir o retrato, cruzes!, seria provocar

    os maus desígnios, a ordem, a paisagem ou o que

    se queria chamar o Reino. Era substituir um pou-co deles, conselheiros, que de qualquer maneira

    faziam parte da imagem de Sua Alteza com muita

    honra e brio.

    «APOIADO! VIVA OIMPERADOR DE SEMPRE!»

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    21/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    22/28

    ORMED…OREDM…DEROM…MORED…

    Mored? O Douktor Dinosaurus intrigou-

    se: seria algum código inimigo?

    MORED…MORED…

    Insistia o registo, crescendo pelo sobrado

    fora. E depois:

    MORED…ORMED…ORMED…DEMO…RRRRR…DEMO…RRRRRRRRRRRRRRRRR 

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    23/28

    sinal, ponto, seta

    ----

    MORDEMorde? Perguntou o Imperador em voz alta,

    deitando as unhas à tira de papel. Morde o quê?

    Palavas não eram ditas, rompia o sinal de alar-

    me, aos uivos ameaçador. A fita escorreu mais

    depressa dos computadores. Serpenteava pelo

    chão, enroscava-se nas pernas do Douktor, en-

    chia-lhe as mãos:

    MORDE…OREDM…

    MERDO…MEDRO…RRRRRRRRRRRRRRRR 

    sinal, ponto, seta ----- MEDO

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    24/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    25/28

    Dinossauro Excelentíssimo, José Cardoso Pires

    Ilustrações e composição por Mariana Abreu

    FBAUL

    2014, Lisboa

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    26/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    27/28

  • 8/17/2019 Dinossauro Excelentíssimo - José Cardoso Pires

    28/28

    Lisboa, 2014