Dilthey e Husserl

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Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analítica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01 Memorandum 27, out/2014 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01 12 Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analítica em Dilthey Husserl and Dilthey’s project of descriptive and analytical psychology Savio Passafaro Peres Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Resumo O artigo busca elucidar alguns elementos da relação entre Dilthey e Husserl concernentes ao tema da psicologia descritiva. Para ambos os autores, a investigação das formações culturais exige, para sua fundamentação, a abordagem da vida psíquica do sujeito. Em primeiro lugar, o artigo expõe alguns elementos históricos da relação entre Husserl e Dilthey. Em segundo lugar, apresenta o projeto de Dilthey em sua obra Ideias para uma psicologia descritiva e analítica. Ao final, é discutida a avaliação de Husserl frente às concepções de Dilthey, bem como as diferenças e as relações entre a concepção hermenêutica de Dilthey e a concepção da psicologia fenomenológica husserliana, entendida como ciência eidética. Palavras-chave: Wilhelm Dilthey; Edmund Husserl; hermenêutica; psicologia fenomenológica Abstract The article aims to clarify some elements of the relationship between Dilthey and Husserl regarding the topic of descriptive psychology. For both authors, the investigation of cultural formations requires, in its foundation, the approach of the subject’s psychic life. Firstly, the article exposes some historical elements of the relationship between Husserl and Dilthey. Secondly, it presents Dilthey’s project in his work “Ideas for a descriptive and analytical psychology”. At last, Husserl's view of Dilthey’s psychological conceptions is discussed as well as the differences and relations between Dilthey’s hermeneutic conception and Husserl's conception of phenomenological psychology, understood as an eidetic science. Keywords: Wilhelm Dilthey; Edmund Husserl; hermeneutic; phenomenolofical psychology Elementos históricos da relação entre Husserl e Dilthey A relação intelectual entre Husserl e Dilthey é complexa e não pode ser abordada sem se tomar vários cuidados quanto ao período em que se dá a relação. Por essa razão, irei apresentar brevemente alguns meandros da relação intelectual entre os autores. Em 1894, quando Dilthey (1833-1911) publica Ideias para uma psicologia descritiva e analítica (1833-1911), ele já era uma figura notória da filosofia alemã, ao passo que Husserl, nesta época, era um jovem professor obscuro da Universidade de Halle, conhecido com um simples discípulo de Brentano e Stumpf. Enquanto Dilthey está elaborando um novo projeto de psicologia destinado a fundamentar epistemologicamente as ciências humanas, Husserl emprega o método psicológico descritivo de Brentano para a compreensão dos conceitos

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  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey

    Husserl and Diltheys project of descriptive and analytical psychology

    Savio Passafaro Peres Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    Brasil

    Resumo

    O artigo busca elucidar alguns elementos da relao entre Dilthey e Husserl concernentes ao tema da psicologia descritiva. Para ambos os autores, a investigao das formaes culturais exige, para sua fundamentao, a abordagem da vida psquica do sujeito. Em primeiro lugar, o artigo expe alguns elementos histricos da relao entre Husserl e Dilthey. Em segundo lugar, apresenta o projeto de Dilthey em sua obra Ideias para uma psicologia descritiva e analtica. Ao final, discutida a avaliao de Husserl frente s concepes de Dilthey, bem como as diferenas e as relaes entre a concepo hermenutica de Dilthey e a concepo da psicologia fenomenolgica husserliana, entendida como cincia eidtica.

    Palavras-chave: Wilhelm Dilthey; Edmund Husserl; hermenutica; psicologia fenomenolgica

    Abstract

    The article aims to clarify some elements of the relationship between Dilthey and Husserl regarding the topic of descriptive psychology. For both authors, the investigation of cultural formations requires, in its foundation, the approach of the subjects psychic life. Firstly, the article exposes some historical elements of the relationship between Husserl and Dilthey. Secondly, it presents Diltheys project in his work Ideas for a descriptive and analytical psychology. At last, Husserl's view of Diltheys psychological conceptions is discussed as well as the differences and relations between Diltheys hermeneutic conception and Husserl's conception of phenomenological psychology, understood as an eidetic science.

    Keywords: Wilhelm Dilthey; Edmund Husserl; hermeneutic; phenomenolofical psychology

    Elementos histricos da relao entre Husserl e Dilthey

    A relao intelectual entre Husserl e Dilthey complexa e no pode ser abordada sem

    se tomar vrios cuidados quanto ao perodo em que se d a relao. Por essa razo, irei

    apresentar brevemente alguns meandros da relao intelectual entre os autores.

    Em 1894, quando Dilthey (1833-1911) publica Ideias para uma psicologia descritiva e

    analtica (1833-1911), ele j era uma figura notria da filosofia alem, ao passo que Husserl,

    nesta poca, era um jovem professor obscuro da Universidade de Halle, conhecido com um

    simples discpulo de Brentano e Stumpf. Enquanto Dilthey est elaborando um novo projeto

    de psicologia destinado a fundamentar epistemologicamente as cincias humanas, Husserl

    emprega o mtodo psicolgico descritivo de Brentano para a compreenso dos conceitos

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    fundamentais da aritmtica (Husserl, 1891). Alguns anos depois, Husserl opera modificaes

    ainda mais profundas no mtodo psicolgico brentaniano a fim de clarificar os conceitos

    fundamentais da lgica e da teoria do conhecimento, como podemos observar em

    Investigaes Lgicas (1900, 1901). Apesar das diferenas de tema, interesse e mtodo, havia

    entre ambos os pensadores importantes confluncias tericas, dentre as quais a mais notvel

    a abordagem descritiva da esfera das vivncias.

    Embora confessadamente Husserl no tenha lido as Ideias para uma psicologia descritiva e

    analtica de Dilthey no perodo em que estava escrevendo as Investigaes Lgicas, Husserl

    conheceu indiretamente seu contedo por meio da cida resenha publicada pelo psiclogo

    experimental Hermann Ebbinghaus (1896). Ademais, Husserl havia lido uma obra anterior

    de Dilthey (1883/2010), Introduo s cincias humanas (Einleitung des Gesteiswissenschaften),

    sem, entretanto, apreci-la, dado seu teor positivista (1925/1962, p. 34). Muitos anos depois,

    Husserl modifica sua posio com relao obra de Dilthey, considerando-a um marco na

    histria da psicologia (1925/1962).

    Aps a publicao do primeiro volume de Investigaes Lgicas, em 1900, Husserl ganha

    certa celebridade no mbito alemo devido a sua crtica ao psicologismo lgico. No segundo

    volume, publicado um ano depois, Husserl emprega o mtodo fenomenolgico, definido na

    ocasio como psicologia descritiva. Por efetuar uma incisiva delimitao entre lgica e

    psicologia e pelas penetrantes anlises descritivas da intencionalidade, a obra logo se torna

    alvo de interesse de vrios psiclogos, os quais viram em Investigaes Lgicas a realizao da

    ideia brentaniana, de acordo com a qual a psicologia descritiva serviria de etapa

    metodolgica preliminar psicologia experimental. Essa uma das principais razes da

    influncia de Investigaes lgicas em vrias das mais importantes escolas de psicologia

    experimental da poca, como a escola da Denkpsychologie, de Wzburg, liderada por Oswald

    Klpe (Spiegelberg, 1965).

    Enquanto Husserl publica Prolegmenos, Dilthey publica em 1900 sua obra O surgimento

    da hermenutica, onde este ltimo busca traar o vnculo entre filosofia, psicologia e histria.

    Alguns autores consideram que essa obra marca a virada hermenutica do pensamento de

    Dilthey, inaugurando sua ltima fase de produo. Contudo, preciso observar que a

    hermenutica de Dilthey no uma disciplina autnoma, mas sim internamente vinculada

    sua ideia de psicologia como a cincia humana fundamental, como veremos.

    Ao que parece foi Stumpf, orientador de Husserl em sua tese de habilitao, quem

    recomendou a Dilthey, seu colega na universidade de filosofia de Berlin, a leitura de

    Investigaes Lgicas (Spiegelberg, 1965, p. 122). O interesse de Dilthey por esta obra foi

    tamanho, que ele lhe dedicou extensivos estudos, ministrando, em 1904, seminrios sobre

    ela. Um ano depois, em 1905, Dilthey ofereceu a primeira de uma srie de conferncias na

    academia de Berlin, A estrutura psquica, em que afirmava que Investigaes lgicas poderia

    ser entendida como o desenvolvimento e a realizao de alguns insights presentes em suas

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    Ideias para uma psicologia descritiva e analtica (Nazar, 1987, p. 111). Ainda neste mesmo ano,

    Dilthey convidou Husserl, que estava em Gttingen, para se encontrarem em Berlin. Husserl,

    algumas dcadas depois, narrou do seguinte modo seu encontro. Eu fiquei inicialmente no pouco surpreso de escutar pessoalmente de Dilthey que a fenomenologia, em particular a anlise descritiva da segunda parte, especificamente fenomenolgica, das Investigaes Lgicas, estava em harmonia essencial com a sua Ideen e poderia ser considerada como a primeira pea para uma madura execuo metodolgica da psicologia que ele tinha em mente como um ideal. Dilthey sempre depositou grande peso sobre esta coincidncia de nossas investigaes, apesar dos diferentes pontos de partida, e mesmo j em idade avanada, ele retomou com entusiasmo juvenil uma vez mais as suas investigaes acerca das cincias do esprito, as quais ele tinha deixado de lado (Husserl, 1925/1962, p. 35).

    medida que as anlises fenomenolgicas foram progredindo, Husserl, cada vez mais,

    foi tomando conscincia de que Dilthey estava certo ao alegar a coincidncia de fundo de

    ambos os projetos. Alguns anos aps a publicao das Investigaes Lgicas, Husserl se

    convence de que Dilthey estava certo em seu julgamento, () a respeito da unidade interna

    entre fenomenologia e psicologia descritiva e analtica (1925/1962, p. 35). Em uma carta

    pessoal de 1929, Husserl afirma que o encontro com Dilthey foi a fonte do impulso para a

    escrita de Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenolgica (Spiegelberg,

    1965, p. 122). Ora, a razo central desta inspirao clara. A crtica de Dilthey psicologia

    natural-explicativa contribuiu para Husserl se dar conta, por volta de 1907, de que em

    Investigaes Lgicas, apesar de ele ter combatido a naturalizao das ideias, ele no havia

    tratado do problema da naturalizao da conscincia. Ou seja, enquanto em Investigaes

    Lgicas, Husserl combate a naturalizao das ideias, apenas depois do encontro com Dilthey

    que ele ir atacar aquilo ele denominar de psicologismo transcendental, decorrente de

    do projeto de se fundar a epistemologia sobre a base da conscincia tomada como uma

    entidade natural. Em A Ideia de Fenomenologia (Die Idee der Phnomenologie) (1907/2008),

    Husserl ir defender a irredutibilidade das leis da conscincia (ou leis da vida espiritual) a

    leis da natureza e, como consequncia, a inadequao dos mtodos das cincias naturais para

    a compreenso da conscincia.

    O lugar onde pela primeira vez se observa de forma mais ntida a crtica

    naturalizao da conscincia no artigo publicado em 1911 na revista Logos, Filosofia como

    cincia de rigor (Philosophie als strenge Wissenschaft). A ele ataca, por um lado, o naturalismo,

    por outro lado, o historicismo como uma das formas de relativismo. Ao tratar do

    historicismo, Husserl faz referncia explcita Dilthey. O ponto central que entra na mira o

    conceito introduzido por Dilthey de Viso de mundo (Weltanschauung), conceito esse que

    Husserl interpreta como uma tentativa falha de derivar a natureza da filosofia do estudo

    emprico da histria (Makkreel, 1975, p. 277). Husserl aceita que a viso de mundo de um

    indivduo e de um povo condicionada pela situao histrica, mas isto no implica na

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    impossibilidade de uma filosofia como cincia rigorosa. Tentar derivar o contedo da

    filosofia da viso de mundo de um determinado grupo histrico-social implicaria em

    historicismo, cuja consequncia seria o relativismo. Afirmar que a filosofia um produto de

    fatores histricos seria to absurdo quanto afirmar que as cincias naturais so dependentes

    apenas da situao histrica (e no da prpria relao entre teoria e natureza). Ora, a

    validade de uma teoria fsica no deriva da histria, mas da relao objetiva entre a teoria e o

    domnio sobre o qual ela versa. Que determinadas teorias fsicas tenham sido sucedidas por

    outras teorias fsicas, no implica em relativismo. verdade que uma teoria fsica

    condicionada pela viso de mundo, mas ser condicionada no significa ser determinada em

    seu contedo. Para Husserl, teorias no so meras formaes culturais, mas unidades

    objetivamente vlidas. Dois peixes mais dois peixes so quatro peixes e isso vlido

    independente da cultura.

    Ainda hoje comum considerar que a crtica ao historicismo de Filosofia como cincia de

    rigor de 1911 sumariza a posio final de Husserl com relao a Dilthey, marcada pela

    completa rejeio do pensamento historicista e, como derivao, da prpria histria. Trata-

    se, contudo, de um erro. Ao observarmos a correspondncia entre os autores, logo

    percebemos o tom reconciliatrio entre eles. Dilthey afirma que, de fato, ele contra a ideia

    de uma metafsica supra-histrica, que buscasse colocar todo conhecimento humano em um

    nico sistema. Contudo, a razo pela qual ele defende essa posio no reside, como havia

    afirmado Husserl, na mera constatao emprica de que houvesse vrias vises de mundo ao

    longo da histria, mas sim na reflexo filosfica sobre as mesmas. Dilthey afirma que ele era

    contra apenas ideia de uma metafisica que tenha a pretenso de alcanar a coisa em si e

    integrar todas as cincias em um sistema absoluto.

    Husserl responde a carta em tom afvel, afirmando que ele reconhecia que Dilthey

    estava certo ao atacar toda metafsica que pretendesse colocar uma coisa em si por trs dos

    fenmenos. Acrescenta que suas crticas (apesar de citar literalmente Dilthey no texto de

    1911) no eram dirigidasespecificamente para ele, mas para uma sugesto perigosa contida

    em seus textos, a saber, a do relativismo. Husserl insiste para Dilthey que no h srias

    oposies entre eles e que ele est confiante de que uma longa conversa nos conduziria

    plena concordncia. Husserl finaliza observando que o ponto a ser observado que eles

    trabalhavam em problemas semelhantes, mas em nveis distintos. Enquanto ele prprio

    trabalhava no nvel da estrutura dos elementos, Dilthey focava em uma anlise

    fenomenolgica de escala mais ampla, a morfologia e a tipologia das formaes culturais

    (Makkreel, 1975, p. 277).

    Apesar do tom reconciliatrio entre os autores, seria mesmo possvel que uma longa

    conversa entre eles propiciasse plena concordncia? Ao que parece, h uma diferena bsica,

    difcil de ser contornada. Husserl entende que a fenomenologia poderia propiciar o

    fundamento tanto das cincias naturais quanto das cincias do esprito. J Dilthey via com

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    desconfiana toda tentativa de se encontrar uma unidade subjacente entre as cincias

    naturais e as cincias humanas. Assim, o projeto de Dilthey se limita ao embasamento das

    cincias humanas, no tendo nada ou pouco a dizer das cincias naturais.

    Em outubro de 1911, Dilthey morre, deixando incompleta sua obra, que ser publicada

    ao longo das dcadas subsequentes por alguns poucos discpulos. Husserl, por outro lado,

    ainda ter uma longa carreira intelectual, publicando importantes trabalhos, mas tambm

    deixando um grande nmero de manuscritos inditos. Tendo isso em vista, no h razes

    para julgar que, em 1911, Husserl esteja em posse de seu parecer final a respeito de Dilthey.

    De fato, h, aps 1911, dois escritos particularmente importantes, em que Husserl apresenta

    reflexes sobre o pensamento de Dilthey. O primeiro deles Ideias II, cujo manuscrito inicial

    data de 1912, logo aps a elaborao de Ideias I. O segundo escrito Lies sobre psicologia

    fenomenolgica (1925/1962), de 1925. Ambos os textos tm em comum o fato de conter longas

    sees dedicadas s ontologias materiais, em especial, a ontologia da alma (Seele). Neles,

    Husserl busca relacionar as anlises de vivncias com a estrutura do ser humano, em sua

    dimenso natural e cultural. Mas, dos dois textos, o de 1925 merece especial ateno, j que

    nele Husserl oferece uma discusso mais detalhada do pensamento de Dilthey. sobre os

    comentrios deste ltimo texto que irei me apoiar, para clarificar a recepo de Husserl do

    pensamento de Dilthey.

    A apreciao husserliana das Ideias para uma psicologia descritiva e analtica

    A posio de Husserl nas suas Lies sobre Psicologia fenomenolgica (1925/1962) a

    respeito de Dilthey pode ser sumarizada do seguinte modo. Dilthey foi o primeiro a ver que

    a psicologia naturalstica era incapaz de abordar a complexidade da vida humana em sua

    concretude e em sua integrao na histria e na cultura. Em vista desta limitao, Dilthey

    sentiu a exigncia de uma nova forma de psicologia, entendida no como cincia natural,

    hipottica e construtiva, mas como cincia humana, compreensiva, descritiva e analtica.

    Partindo desta exigncia, Dilthey soube, segundo Husserl, apontar corretamente a direo

    em que a nova psicologia deveria seguir: ela deveria ser fundada na descrio do dado

    intuitivo. Em outros termos, a nova psicologia deveria ser fundada na experincia. Assim

    como a experincia exterior possibilita e sustenta as cincias naturais, a descrio da

    experincia interior propicia a base emprica s cincias humanas. Se por empirismo

    entende-se a aceitao do que dado na experincia, preciso no negar que a pessoa tem

    experincia tambm de sua prpria vida interior, ou seja, de sentimentos, pensamentos,

    motivaes, lembranas, etc.

    Segundo Dilthey, a descrio das vivncias interiores no nos oferece tomos

    psquicos, pois cada uma das vivncias est integrada totalidade da vida. Em outros

    termos, cada vivncia uma parte de um todo estruturado que se chama vida. Cada vida

    no s possui uma historicidade como est imersa e se constitui em uma cultura. Como cada

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    vivncia est contida em um horizonte de sentido, necessria a tarefa de analis-la e

    articul-la conceitualmente a luz do todo.

    As Geisteswissenschaften

    Em 1883, com a publicao de Introduo s cincias do esprito (Einleitung in die

    Geisteswissenschaften), o centro das pesquisas de Dilthey se concentra nas tentativas de

    fundamentar as Geisteswissenschaften (cincias humanas ou cincias do esprito). Movendo-se

    nesta direo, Dilthey passa a entender que a psicologia deveria fundamentar as cincias do

    esprito. A novidade que se pode observar em 1894, com a publicao das Ideias para uma

    psicologia descritiva e analtica, a compreenso, por parte de Dilthey, de que a fundamentao

    das cincias do esprito no pode ser efetuada a partir de uma psicologia entendida como

    cincia natural. Antes, entretanto, de mostrar o teor da crtica de Dilthey psicologia

    naturalista e expormos as razes pelas quais Dilthey pensa que a psicologia descritiva e

    analtica deve fundamentar as cincias do esprito, necessrio compreender o que Dilthey

    entende por Geisteswissenschaften. Para isso, o primeiro passo analisar o prprio termo,

    fonte potencial de equvocos.

    O termo Geisteswissenschaften traduzido de vrias formas ao portugus. Muitas

    vezes traduzido literalmente, como cincias do esprito, mas tambm encontramos

    cincias humanas, cincias morais, cincias socioculturais, estudos humanos,

    cincias scio-histricas, cincias culturais. Cada uma dessas tradues tem seus

    mritos, ainda que no estejam livres de problemas, pois cada uma delas carrega sugestes

    perigosas, que podem impedir uma primeira aproximao ao projeto de Dilthey. Dada essa

    situao, torna-se necessrio estarmos informados da origem do termo e dos possveis

    equvocos que podem surgir a partir dele.

    O termo Geisteswissenschaften foi empregado pela primeira vez por Dilthey em sua

    acepo prpria na obra Introduo s cincias do esprito (Einleitung in die

    Geisteswissenschaften), de 1883. Entretanto, o termo foi introduzido na lngua alem algumas

    dcadas antes. Segundo Makkreel (1975, p. 36), ele foi empregado pela primeira vez em 1849,

    em uma traduo para o alemo do Sistema de Lgica (1843) (System oflogic) de Mill. O

    tradutor optou pela expresso Geisteswissenschaften para traduzir a expresso inglesa

    Moral sciences. Contudo, existem diferenas entre as cincias morais e as cincias do

    esprito de Dilthey, pois estas ltimas enquadravam um nmero maior de disciplinas.

    Inclua-se nas Geisteswissenschaften no s a psicologia, a antropologia, a economia poltica,

    o direito e a histria, como nas cincias morais de Mill, mas tambm a filologia e esttica

    (Makkreel, 1975, p. 37).

    No raro o termo Geisteswissenschaften induz confuses com a doutrina de Hegel. A

    principal confuso se produz ao passar por alto que a expresso Geisteswissenschaften se

    encontra, em Dilthey, no plural, no se confundindo, portanto, com a expresso singular

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    hegeliana Geisteswissenschaft. O uso plural do termo indica que Dilthey se afasta da

    concepo hegeliana de uma metafsica entendida como cincia filosfica totalizante e

    unificante. Dilthey rejeita veementemente a ideia de se construir um sistema metafsico

    totalizante que, numa vasta sntese, abarcasse todos os campos do saber, como a histria,

    teologia, cincias naturais, o direito etc. O projeto de fundamentao das

    Geisteswissenschaften, ao entender de Dilthey, no possui um sentido metafsico e

    especulativo, tal como h em Hegel.

    Pesando o que foi dito anteriormente, agora necessrio observar que o termo

    Geisteswissenschaften no tem correspondente plenamente adequado ao ingls, ao

    portugus e s demais lnguas latinas. A traduo literal apresenta o problema de sua

    conotao espiritualista e religiosa, que o termo alemo Geist no necessariamente carrega.

    A traduo por cincias culturais revela-se como fonte de novos equvocos, dos quais o

    mais grave o da confuso com as Kulturwissenschaften introduzida por Rickert (1863-1936),

    filsofo neokantiano da escola de Baden, com o qual Dilthey alimentou forte polmica. No

    centro da polmica entre os autores est a disputa sobre a adequada caracterizao da

    psicologia. Rickert, contra Dilthey, defende a posio de que a psicologia deve ser

    considerada apenas como uma cincia natural, devendo, portanto, ser terminantemente

    excluda das Kulturwissenschaften (Hodges, 1952, p. 238).

    Dada essa situao, a traduo por cincias humanas conta com algumas vantagens.

    O termo humanas - ao invs de do esprito, mentais, culturais - d a entender que

    a vida concreta o centro unificador destas cincias. Isso se coloca de acordo com o modo

    como Dilthey compreende sua psicologia descritiva e analtica, a saber, como uma

    Realpsychologie, ou seja, uma Psicologia real, em que a vida psquica no mutilada em

    tomos psquicos. Isso coincide tambm com o fato de que Dilthey caracteriza, por vezes, sua

    psicologia como Antropologia. esta forma de psicologia que deve permanecer na base

    das Geisteswissenschaften.

    Como em lngua portuguesa o termo cincia um pouco mais amplo que o termo

    ingls science, possvel optar, apesar dos riscos, pela expresso cincias humanas.

    Feitos esses esclarecimentos, irei usar por vezes cincias humanas e por vezes cincias do

    esprito.

    A proposta de Dilthey em Ideias para uma psicologia analtica e descritiva

    Em seu ensaio, publicado em 1894, com o ttulo Ideias para uma psicologia analtica e

    descritiva (Ideen ber eine beschreibende und zergliedernde Psychologie), Dilthey buscou

    argumentar a necessidade de se distinguir duas ideias programticas de psicologia. De um

    lado, a de uma psicologia descritiva e analtica, caracterizada pela anlise descritiva do

    que dado; de outro lado, a de uma psicologia explicativa, de vis naturalista,

    fundamentada na construo de hipteses para explicar causalmente o que dado.

  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    Entender-se- por cincia explicativa toda a subordinao de um campo de fenmenos a um nexo causal por meio de um nmero limitado de elementos (isto , partes integrantes do nexo) univocamente determinados. Este conceito indica o ideal de semelhante cincia, tal como ele se formou sobretudo graas ao desenvolvimento da fsica atmica (Dilthey, 1894/2008, p.10).

    Segundo o parecer de Dilthey, a psicologia explicativa nasce da falsa ideia de que, pelo

    fato de o mtodo hipottico ser o mais adequado s cincias naturais, ele deve tambm ser o

    mais adequado psicologia. O problema que o mtodo natural, embora seja apropriado s

    cincias naturais, , em grande medida, inapropriado psicologia. O mtodo da psicologia

    explicativa nasceu de uma extenso ilegtimados conceitos cientfico-naturais ao campo da

    vida psquica e da histria (1894/2008, p.76).

    Com isso, Dilthey prope um dualismo metodolgico, apartando as cincias da

    natureza (Naturwissenschaften) das cincias do esprito (Geisteswissenschaften). H, para

    Dilthey, uma diferena irredutvel das explicaes oferecidas pelas cincias naturais com

    relao compreenso alcanada pelas cincias do esprito.

    Um dos traos que marcam o mtodo das cincias naturais ele ser construtivo,

    opondo-se, portanto, ao mtodo analtico. Em psicologia, o mtodo analtico parte do

    princpio de que o que dado na experincia interna deve ser analisado, de modo a

    explicitar suas articulaes intrnsecas e extrnsecas. O mtodo analtico no implica em

    mutilao, mas, pelo contrrio, enfatiza a integrao das partes em todos complexos. Essa

    articulao das partes em todos altamente complexos um dos traos da vida humana. Cada

    ao, pensamento, sentimento, imaginao, est vinculado totalidade da vida (Leben), a

    qual no exprime, diga-se de passagem, um conceito biolgico, no sentido da cincia natural.

    Assim, uma das tarefas metodolgicas desta psicologia a identificao e explicitao do

    todo no qual a vivncia est inserida. J o mtodo natural-construtivo busca construir

    conceitos hipotticos para explicar a correlao entre fenmenos. Dilthey afirma que o

    mtodo natural-construtivo encontra seus principais modelos na mecnica clssica e na

    qumica de Lavoisier. Uma mecnica das representaes e uma qumica dos contedos

    mentais nada mais so do que concepes hipotticas inadequadas natureza do psquico.

    Uma breve anlise da mecnica clssica revela a distino entre hiptese e fenmeno.

    As trs leis da mecnica, tanto quanto as noes de tomo, massa e fora, consistem em

    hipteses explicativas, as quais no so diretamente observveis e, portanto, so construes

    tericas, que se confirmam em experimentos. Esses conceitos so construdos sobre a

    hiptese da causalidade, entendida como regularidade e uniformidade bsica da natureza.

    Estes elementos construdos hipoteticamente servem para explicar e prever uma ampla gama

    de fenmenos observveis, como a correlao entre as mars e os ciclos lunares. A

    concepo, portanto, de que as cincias naturais so cincias estritamente apoiadas na

  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    experincia no verdadeira, pois a explicao da experincia exige a construo de

    hipteses e de conceitos que no so tirados da experincia direta.

    Um segundo modelo de cincia natural, em que a psicologia explicativa do sculo XIX

    procurou se espelhar, encontra-se na teoria qumica. Segundo esta teoria, a enorme

    diversidade de fenmenos com os quais convivemos diariamente rvores, flores, gatos,

    minhocas, livros, plantas, nuvens, terra, galxias, museus, plsticos etc. pode ser reduzida a

    diferentes combinaes de uns poucos elementos qumicos (Dilthey, 1894/2008, p. 35). Em

    outras palavras, a enorme multiplicidade de seres produto de poucas leis que regulam a

    combinao de poucos elementos. A psicologia, quando inspirada por semelhante modelo de

    cincia, chega a seguinte concluso: assim como os elementos da tabela peridica compe a

    totalidade de objetos que h no universo, a enorme variedade fenmenos psquicos se

    constitui da combinao de alguns poucos contedos. Como exemplo, temos psicologia

    associacionista ao estilo dos dois Mill, a qual, segundo Dilthey (1894/2008) supe uma

    qumica psquica; quando se conjugam ideias ou sentimentos simples, podem gerar um

    estado que, para a percepo interna, simples e, ao mesmo tempo, qualitativamente

    diferente dos factores que o geraram (p. 34).

    Dilthey faz notar que, nas cincias naturais, o nmero dos elementos explicativos no

    pode ser infinito ou demasiadamente extenso. Se partssemos do princpio de que um

    fenmeno possui no poucas causas, mas tem um nmero quase infinito delas, resultaria

    difcil, seno impossvel, qualquer progresso em cincia.

    As formas da psicologia naturalista

    Se levarmos em considerao o que foi dito anteriormente, tornam-se claras as razes

    que levam Dilthey a afirmar que a psicologia explicativa implcita ou explicitamente havia

    seguido dois modelos metodolgicos: o associacionismo e o materialismo. De um lado ou de

    outro, a psicologia explicativa busca se modelar pelas cincias naturais. A teoria psquica do

    associacionismo tem, ao ver de Dilthey, clara inspirao, como j discutimos, na mecnica

    clssica e na qumica. J a psicologia de cunho materialista afunda sua principal raiz nos

    mtodos empregados na fisiologia. Embora materialismo e associacionismo constituam

    psicologias explicativas, modeladas nas cincias naturais, necessrio observar as suas

    diferenas.

    O materialismo radical parte do princpio de que os fenmenos psquicos so

    plenamente determinados pelo mundo fsico. Toda a teoria que estabelece como base a

    contextura dos processos fsicos e a estes subordina os factos psquicos uma teoria

    materialista (Dilthey, 1894/2008, p. 37). Uma das consequncias do ponto de vista

    materialista que a psicologia, entendida como cincias dos fenmenos psquicos, no pode

    ser uma cincia autnoma, j que, segundo essa doutrina, fenmenos psquicos s podem ser

    explicados pelo comportamento da matria, em especial, pelos sistemas fisiolgicos. Em

  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    suma, toda psicologia que busque oferecer explicaes sobre o comportamento da psique s

    pode ser psicofsica. Para os defensores desta posio, no possvel investigar as leis

    causais da vida psquica apenas observando a prpria psique, pois o estabelecimento de leis

    psquicas exige que o cientista observe as leis fsicas, j que a vida psquica um produto do

    corpo fsico e este, pelo seu turno, faz parte do nexo causal da natureza fsica.

    Um erro que muitas vezes se faz o de confundir a tese do associacionismo com a do

    materialismo. Embora eventualmente vinculadas, preciso distinguir as duas

    cuidadosamente. O associacionismo no parte da premissa de que toda psicologia

    psicofsica. O psiclogo associacionista pode partir do princpio de que a vida mental

    passvel de ser compreendida, em determinada medida, por si mesma, sem levar em

    considerao fatores extramentais. O surgimento de uma representao determinada pode

    ser explicado como resultado da fora associativa. Neste caso, temos como objeto da

    psicologia uma espcie de sujeito desencarnado, entendido, por analogia, como uma caixa

    fechada em cujo interior ocorrem fatos ou eventos psquicos, governados por leis psquicas.

    Neste caso, explica-se um evento psquico recorrendo estritamente a entidades e leis

    puramente psquicas. Por exemplo, a experincia de se lembrar de uma determinada pessoa

    pode ter sido causada pela experincia olfativa do odor do perfume que aquela pessoa

    costumava usar. Neste caso, supe-se que a representao psquica da fragrncia do perfume

    encontra-se associada, em virtude da conjuno constante, com a representao da pessoa

    evocada. As duas representaes se associam devido a uma lei especificamente psquica, a

    saber, a lei de associao. Trata-se de uma lei em que no h meno a neurnios ou

    processos fisiolgicos e, portanto, uma lei puramente psquica.

    Ao lado do materialismo e do associacionismo, h uma terceira forma de psicologia

    naturalista apontada por Dilthey: as psicologias do inconsciente (1894/2008, pp. 48-49).

    preciso, aqui, usar o plural, afinal possvel construir uma grande variedade de modelos

    psicolgicos, dependendo dos elementos hipotticos e das leis de funcionamento atribudos

    ao inconsciente. Geralmente parte-se da hiptese de que certas representaes e instintos

    inconscientes influenciam, sem que o indivduo se d conta, a sua vida psquica consciente.

    Contudo, internamente a esse modelo possvel elaborar um grande nmero de variaes

    tericas que visam determinar como se comportam essas representaes inconscientes e como

    afetam a vida consciente. As psicologias do inconsciente so claramente teorias explicativas

    de carter hipottico, j que, por definio, o inconsciente no se manifesta diretamente ao

    sujeito e, portanto, no pode ser descrito. Apenas o dado pode ser descrito.

    Um problema de princpio

    Segundo Dilthey, as psicologias explicativas sofrem de um problema de princpio. Elas

    no percebem a diferena entre dois tipos de dados. Para Dilthey, h uma diferena radical

    entre o modo como a natureza se manifesta com relao ao modo como a vida psquica

  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    manifesta-se a si mesma. No caso das cincias da natureza, o nexo entre dois fenmenos no

    dado na experincia. Resulta da a necessidade de se construir hipteses explicativas a

    respeito do vnculo invisvel que h entre dois ou mais fenmenos da natureza. Em

    contraste, os nexos entre os fenmenos pertencentes ao mundo do esprito so dados na

    experincia. As cincias do esprito partem da conexo psquica, dada na experincia

    interna. No facto de a conexo existir primariamente na vida anmica que consiste a

    diferena fundamental entre o conhecimento psicolgico e o conhecimento da natureza.

    (1894/2008, p. 128). Diferentes fenmenos psquicos (embora possam estar separados no

    tempo) so partes de um mesmo sujeito, constituem aspectos de uma mesma vida. As

    vivncias no so exteriores ao sujeito e se h um nexo entre elas, este nexo encontra-se no

    prprio sujeito. No faz sentido, portanto, dedicar-se a tarefa de construir hipteses para

    explicar a vida psquica.

    Como o nexo psquico dado, o mtodo naturalista revela-se inadequado. A razo

    clara: j que o nexo psquico dado, no preciso reconstru-lo, mas apenas descrev-lo e

    analis-lo. Tendo isto em mente, Dilthey prope psicologia o mtodo descritivo-analtico.

    Em outras palavras, a psicologia goza de certa vantagem perante as cincias da natureza,

    pois no precisa construir teorias para explicar o nexo entre os dados psquicos.

    Compreender uma vivncia, neste sentido, compreend-la como parte de um todo mais

    amplo. preciso voltar-se para os dados obtidos em intuio imediata e analis-los em suas

    articulaes contextuais sem recorrer a hipteses e inferncias. Assim, temos duas situaes:

    1) As cincias naturais, na medida em que se pretendem explicativas, so

    necessariamente hipotticas, pois o nexo entre dois fenmenos naturais encontra-se fora do

    sujeito. Portanto, necessrio ao cientista natural construir uma teoria, ou seja, um sistema

    de hipteses. Por exemplo, o nexo existente entre a dilatao de um metal e o aumento de

    sua temperatura no um nexo psquico, mas transcendente, pertencente natureza. Como

    se sabe, a explicao da dilatao do metal se encontra no incremento da energia cintica das

    molculas do metal. Esta claramente uma explicao de tipo natural.

    2) A psicologia, ao contrrio, pode e deve se constituir como cincia descritiva e

    analtica, pois os nexos entre as vivncias so imanentes. Ao contrrio dos nexos naturais, os

    nexos psquicos se oferecem na experincia interna. Portanto, no se necessita da construo

    de hipteses. Para sua realizao, basta analisar o que dado, como Dilthey faz notar na

    seguinte passagem: Ora na psicologia esta conexo de funes na vivncia dada a partir

    de dentro. Todo o conhecimento psicolgico particular apenas anlise desta conexo.

    (1894/2008, p. 50).

    Psicologia descritiva como fundamento das cincias do esprito

    Por uma questo de princpios, as cincias naturais devem se constituir como

    hipotticas, ao passo que a psicologia, ao menos inicialmente, deve se constituir como cincia

  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    descritiva. Essa distino est vinculada distino entre objetos. O objeto das cincias da

    natureza so factos que se apresentam na conscincia dispersos, vindos de fora, como

    fenmenos (1894/2008, p. 15). O objeto das cincias humanas se apresentam a partir de

    dentro, como realidade e, originaliter, como uma conexo viva (1894/2008, p. 15). Da a

    famosa afirmao de Dilthey, segundo a qual "explicamos" (Erklren) a natureza,

    "compreendemos" (Verstehen) a vida anmica (1894/2008, p. 15).

    preciso agora observar que os nexos vitais no dizem respeito apenas conexo entre

    vivncias, mas tambm entre estas e as expresses do esprito, como a linguagem, as aes

    humanas, instrumentos e outros objetos culturais. Todo produto cultural possui um nexo

    com a vida psquica do indivduo e, de modo mais amplo, com a vida psquica da

    comunidade. Uma lei jurdica, uma sinfonia, o costume de um povo, as religies, os mitos, as

    instituies sociais, as aes humanas constituem expresses objetivas do esprito

    (1894/2008, p. 20), as quais no so passveis de uma explicao puramente causal ou

    natural.

    A cincia natural, em virtude do procedimento metodolgico que lhe inerente, no

    pode propiciar uma compreenso satisfatria da religio de um povo, da histria da arte, dos

    movimentos estticos e de outras expresses do esprito. No faz sentido explicar as leis

    naturais que geraram a produo de uma obra literria, por exemplo. Segundo Dilthey, a

    abordagem s diversas expresses do esprito exige a compreenso das vidas que as

    produziram e as sustentam nos nexos vitais. necessrio, para a investigao das cincias

    humanas, no s a intuio de nossas prprias vivncias e dos nexos entre elas, mas das

    vivncias de outras pessoas, apreendendo como cada uma delas se deixou motivar pelo seu

    ambiente. E, por ambiente, deve-se entender no apenas o entorno fsico, mas algo mais

    amplo, de modo a incluir os aspectos culturais. E para a apreenso intuitiva da vivncia do

    outro fundamental a nossa capacidade de nos colocar em seu lugar, a fim de

    compreendermos suas motivaes. assim que compreendemos fatos e situaes histricas.

    A esse respeito, Husserl tece os seguintes comentrios sobre o pensamento de Dilthey: Pode ocorrer que ns erremos na reconstruo histrica, por exemplo, da personalidade de Bismarck e dos motivos que o guiaram em certa deciso. Mas, se a reconstruo historicamente correta e alcanou uma efetiva e completa intuio, ento se torna evidente para ns porque Bismarck, sendo o que foi e sendo motivado de tal e tal maneira, necessariamente decidiu de tal e tal determinada maneira. O entendimento se estende exatamente na medida em que a anlise e a reconstruo da motivao se estendem (1925/1962, p. 19).

    A interpretao de Husserl fiel ao intuito de Dilthey nas Ideias para uma psicologia

    descritiva e analtica. Dilthey, como vimos, no s distingue as cincias da natureza das

    cincias do esprito, mas tambm considera que estas ltimas se fundamentam na psicologia

    descritiva e analtica. A relao entre psicologia e cincias humanas deve ser enfatizada neste

  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

    Memorandum 27, out/2014 Belo Horizonte: UFMG; Ribeiro Preto: USP

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    contexto, dado o vnculo entre elas. Para Dilthey, no h como estudar a religio sem levar

    em conta as vivncias religiosas dos homens e, por conseguinte, conceitos como motivo,

    liberdade, sentimento. Analogamente, a histria da arte e da literatura no pode ser estudada

    sem se atentar s vivncias psquicas tais como o sentimento do belo, do sublime, do

    ridculo, do humorstico (1894/2008, p. 20). Tanto os sistemas culturais (ex. economia,

    direito, religio, arte, cincia), quanto as organizaes externas (ex. famlia, Igreja, Estado)

    dimanaram da textura viva da alma humana, assim tambm s a partir dela se podem

    explicar (1894/2008, p. 20).

    Psicologia descritiva e analtica constitui a base no s para as cincias do esprito, mas

    tambm da epistemologia. Na conscincia viva e na descrio universalmente vlida desta

    conexo psquica est contido o fundamento da teoria do conhecimento (1894/2008, p. 24).

    preciso observar que, se Dilthey considera a psicologia analtica e descritiva adequada para

    a fundamentao da teoria do conhecimento, o mesmo no se pode dizer da psicologia

    explicativa ou da psicologia tomada como cincia natural.

    A recepo de Husserl do projeto psicolgico de Dilthey

    Ao avaliar a obra de Dilthey, Husserl, nas Lies sobre psicologia fenomenolgica

    (1925/1962, p. 6) afirma que as duas grandes correntes na Alemanha que reagiram de

    maneira mais acentuada contra a tendncia de naturalizao da conscincia foram a

    fenomenologia, por um lado, e a psicologia descritiva e analtica de Dilthey, por outro.

    Segundo Husserl, o que motivou Dilthey a contrapor-se psicologia naturalstica foi seu

    interesse em buscar uma psicologia que se prestasse fundamentao das cincias do

    esprito. Dilthey foi o primeiro a perceber que todos os movimentos de reforma da lgica e

    da teoria do conhecimento eram unilateralmente determinados pelas cincias naturais

    tendncia essa j presente tanto em Kant como nos empiristas ingleses. Ao contrrio, Dilthey

    estava interessado em uma crtica da razo dirigida no s cincias naturais, mas s cincias

    do esprito. Assim como Kant em sua crtica razo pura busca construir uma epistemologia

    que d conta de fundamentar a mecnica como cincia universal e necessria, Dilthey busca

    constituir uma epistemologia capaz de abordar a histria no como um mero registro de

    fatos, mas como uma cincia. E mais, Dilthey percebe com clareza que o estudo da vida

    psquica no consiste simplesmente em se buscar uma natureza psquica, universalmente

    vlida. A prpria ideia de uma natureza psquica pressupe um sujeito a-histrico. Ora, a

    subjetividade condicionada pela histria. por essa razo que Dilthey, ao invs de efetuar

    uma psicologia das faculdades da alma, vlidas para todo e qualquer ser humano e em

    qualquer poca, busca antes uma psicologia voltada ao homem concreto, o qual sempre um

    homem cuja alma carrega em si a marcas de sua circunstncia histrica.

    As Ideias para uma psicologia descritiva e analtica de Dilthey, segundo Husserl, consistiu

    em um divisor de guas na psicologia na Alemanha. Por um lado, uma psicologia

  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    caracterizada por originar-se do mtodo experimental da fisiologia e por constituir-se como

    uma cincia natural ao lado das demais, por outro lado, uma psicologia dotada de outros

    mtodos e concebida para fins radicalmente distintos: o de embasar as cincias do esprito

    (ou cincias socioculturais) e a teoria do conhecimento.

    A crtica de Husserl s Ideias para uma psicologia descritiva e analtica

    Em 1925, Husserl alega que a importncia das Ideias para uma psicologia descritiva e

    analtica de Dilthey encontra-se no problema que ali era instaurado (Husserl, 1925/1962, p.

    20). A abordagem aos fenmenos socioculturais est essencialmente vinculada vida

    anmica de indivduos. Como consequncia, a compreenso de toda obra humana e de toda

    manifestao social e histrica exige a compreenso do prprio homem, o que remete, em

    ltima instncia, psicologia. Embora Dilthey tenha percebido que a psicologia destinada a

    este propsito no poderia ser derivada dos mtodos naturalsticos, ele teve que enfrentar o

    problema de oferecer uma nova proposta. Dilthey, segundo Husserl, no obteve pleno

    sucesso. Apenas apresentou um esboo imperfeito. Ainda assim, Ideias para uma psicologia

    descritiva e analtica deveria ser entendida como um marco na histria da psicologia. De todo modo, a ingenuidade das interpretaes naturalsticas das cincias do esprito, prevalente at ento, foi quebrada. Pode-se dizer que toda grande literatura das ltimas dcadas concernente ao mtodo e natureza da histria, e s cincias socioculturais, originou-se com Dilthey (Husserl, 1925/1962, p. 7).

    De acordo com Husserl, a maior falha concernente proposta de Dilthey que esta se

    torna mais uma arte descritiva e interpretativa de situaes individuais do que propriamente

    uma cincia: A origem criativa de uma obra de arte se torna individualmente inteligvel, encontra uma explicao puramente individual, se ns formos bem sucedidos em projetar a ns mesmos no artista, em sua vida espiritual, no meio circundante que o motiva espiritualmente e claro, sobre o fundamento de uma interpretao dos dados histricos (Husserl, 1925/1962, p. 12).

    Para compreender a obra de Byron, devemos nos colocar em seu lugar, entender seu

    contexto e suas motivaes. Este mesmo modo de proceder vlido para eventos

    socioculturais: cada qual deve ser entendido em sua facticidade e individualidade, com base

    nos nexos motivacionais implicados em tais eventos. Mas este modo de proceder, apesar de

    seus mritos, vai, segundo Husserl, contra a prpria ideia de psicologia como cincia. A

    psicologia no quer ser cincia que tem como seu objeto as facticidades e individualidades

    histricas na individualidade de seus nexos (Zusammenhang) motivacionais (1925/1962, p.

    12), buscando torn-los individualmente inteligveis. A psicologia busca antes as leis da

    vida da alma e as leis de acordo com as quais a comunidade espiritual e a cultura, em sua

    generalidade, se desenvolvem (1925/1962, p. 13). Husserl, em outras palavras, se esfora em

  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    traar a linha demarcatria entre uma psicologia descritiva hermenutica, psicologia

    geral de fatos e psicologia eidtica, esta ltima entendida como uma cincia de essncias,

    comprometida com a ideia de alcanar leis universais e necessrias. Da que a psicologia

    eidtica ou psicologia fenomenolgica no tem como funo descrever e explicar este ou

    aquele evento ou personagem histricos, mas estabelecer as leis essenciais do psiquismo

    humano, constituindo deste modo a base das Geisteswissenschaften (1925/1962, pp. 12-13).

    Essa psicologia eidtica, preciso notar, no exige a realizao da epoch e da reduo

    transcendental, mas to somente da reduo eidtica (ou reduo essncia). Ou seja, a

    psicologia eidtica se instala no quadro de uma ontologia regional e por isso, ao contrrio da

    fenomenologia tomada como filosofia transcendental, tem escopo limitado, pois estuda

    apenas uma regio especfica do ser, ou seja, a alma (Seele). Mas isso no significa estudar a

    alma isolada do mundo, pois Husserl diferencia, na alma, o estrato espiritual, o qual possui

    duas partes correlatas, o esprito objetivo (formaes culturais) e esprito subjetivo, composto

    por determinadas classes de vivncias intencionais de uma pessoa humana. A ideia de se

    realizar uma psicologia eidtica, que seria uma espcie de psicologia filosfica conceitual que

    fundamentaria a psicologia de fatos, aparece como diretriz programtica no 17 de Ideias I

    (1950, p. 57) e plenamente desenvolvida em Ideias II (1912/1952) e nas Lies sobre Psicologia

    Fenomenolgica (1925/1962). Husserl concebe a psicologia eidtica como uma cincia

    mundana (e, portanto, no transcendental), realizada na atitude natural. Vamos resumir as caractersticas bsicas da nova psicologia, sobre os ttulos: a priori, eidtica, intuitiva ou puramente descritiva, intencional; trata-se de uma psicologia que permanece na atitude dogmtica natural ao invs da atitude especificamente filosfica, isto , transcendental (Husserl, 1925/1962, p. 33).

    A filosofia transcendental, pelo seu turno, consiste em um projeto muito mais

    abrangente, operando no sobre uma apercepo mundana do eu, mas sobre a reflexo

    transcendental, o que exige a efetuao da epoch. A fenomenologia, tomada como filosofia

    transcendental, no tem como escopo buscar as estruturas essenciais do psiquismo

    humano, mas sim as correlaes essenciais entre a objetividade e a subjetividade, tratando

    daquilo que Husserl denominou de problemas da constituio. A psicologia

    fenomenolgica, ao operar sobre a base da reduo eidtica, no busca abordar nem os

    problemas transcendentais da constituio, nem os problemas empricos referentes s leis de

    coexistncia e sucesso dos fatos psquicos, mas sim busca estabelecer leis essenciais

    concernentes aos diferentes estratos da alma. Quais as estruturas essenciais da percepo, da

    memria, do corpo prprio, dos atos de valorao, etc.?

    Dilthey, em Ideias para uma psicologia descritiva e analtica, no prope, de modo

    sistemtico, o estabelecimento de leis gerais da psicologia. Para Husserl, sua afirmao de

    que vivncias so dadas em experincia interna com evidncia no constitui, por si s, a base

  • Peres, S. P. (2014). Husserl e o projeto de psicologia descritiva e analtica em Dilthey. Memorandum, 27, 12-28. Recuperado em ___ de ___________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

    Memorandum 27, out/2014 Belo Horizonte: UFMG; Ribeiro Preto: USP

    ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a27/peres01

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    para uma cincia. Cada vivncia, tomada como fato, consiste em algo individual e

    irrepetvel. Que a vivncia seja abordada no como tomo isolado, mas como vinculada

    totalidade do nexo psquico, pode ser uma pea chave para a fundamentao hermenutica,

    mas de pouca valia quando o que est em jogo o estabelecimento de leis gerais. Como

    possvel a descrio de uma vivncia interior ou a descrio da intuio da vida espiritual do

    outro produzam mais do que compreenso de algo individual? Como tal processo pode

    levar a leis psicolgicas gerais?

    preciso observar que, para Husserl, a psicologia hermenutica no deve ser

    descartada, pois ela tem seu mbito de aplicao legitimado. A psicologia de Dilthey,

    entendida como arte interpretativa, pode ser valiosa na compreenso de casos concretos e

    singulares. Compreender as motivaes de Bismarck ajuda sem dvida a conhecer um

    episdio nico da histria, mas no se tira da nenhuma lei psicolgica. Segundo Husserl, a

    psicologia deve persistir em sua tarefa de buscar leis gerais e no pode se limitar a efetuar

    uma classificao dos tipos humanos. Mas se a hermenutica pouco auxilia a psicologia, esta,

    pelo seu turno, essencial para a fundamentao daquela. Segundo Husserl, este ltimo

    projeto encontra sua base em uma psicologia eidtica, a qual no se confunde com nenhum

    tipo de tcnica psicolgica interpretativa, ainda que lhe possa dar subsdios. A psicologia

    fenomenolgica, enquanto cincia eidtica, ao apresentar leis de essncia, fornece as bases

    para qualquer psicologia de fatos, inclusive para o tipo de psicologia descritiva e analtica

    que Dilthey pretendia realizar.

    Referncias

    Amaral, M. N. C. P. (1987). Dilthey: um conceito de vida e uma pedagogia. So Paulo: Perspectiva.

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    mundo; tipos de concepo do mundo e a sua formao metafsica (A. Moro, Trad.). Lisboa: Edies 70. (Original publicado em 1911).

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    Buch 1, Allgemeine Einfhrung in die reine Phnomenologie. Den Haag, Alemanha: Nijhoff. (Original publicado em 1913).

    Husserl, E. (1952). Ideen zu einer reinen Phnomenologie und phnomenologischen Philosophie;

    Buch 2, Phnomenologische Untersuchungen zur Konstitution. DenHaag, Alemanha: Nijhoff. (Manuscrito inicial de 1912, publicao pstuma em 1952).

    Husserl, E. (1962). Phnomenologische Psychologie: Vorlesungen Sommersemester 1925. Haag,

    Alemanha: Martinus Nijhoff. (Original de 1925. Publicao pstuma de 1962). Husserl, E. (1965). Philosophie als strenge Wissenschaft. Frankfurt a.M., Alemanha:

    Klostermann. (Original publicado em 1911). Husserl, E. (2008). A ideia da fenomenologia (A. Mouro, Trad.). Lisboa: Edies 70. (Original

    de 1907. Publicao pstuma em 1950). Makkreel, R. A. (1975). Dilthey, philosopher of the human studies. Princeton, N.J.: Princeton

    University Press. Spiegelberg, H. (1965). The phenomenological movement; a historical introduction (2a ed.). The

    Hague, Holanda: M. Nijhoff.

    Nota sobre o autor Savio Passafaro Peres ps-doutorando (Fapesp), na Faculdade de filosofia da

    universidade catlica de So Paulo. Especialista na rea de epistemologia da psicologia e

    histria da psicologia. Contato: Rua Cayowaa, 1924, ap. 71, CEP 01258-001. E-mail:

    [email protected]

    Data de recebimento: 27/01/2014

    Data de aceite: 09/10/2014