Diego Schaeffer de Oliveira

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1 Cultura, identidade e sociedade brasileira em foco: colonização, construção, modernismos e ideias em Sérgio Buarque de Holanda, Richard Morse e Oswald de Andrade 1 Diego Schaeffer e Raíssa Varandas Galvão 2 “Como você avalia, no conjunto da historiografia americana, o trabalho dos brasilianistas? E por que você reage tão incisivamente a ser considerado como um deles? - Uma pessoa muito mais importante do que eu, Octavio Paz, ao ser convidado a colaborar em uma revista que preparava um número especial sobre o México, disse o seguinte: ‘Não vou colaborar porque não sou um escritor mexicano. Sou um escritor’. Em escala muito modesta, essa é um pouco a minha posição.” 3 Introdução: Richard, Sérgio e Oswald, pensadores “brasileiros” Apesar de não se considerar um brasilianista, é interessante considerar Richard M. Morse (1922-2001) com esta alcunha. Pois é curioso estudarmos um historiador norte- americano tão erudito que se interessou pela cultura brasileira e da América Latina como um todo. Mas talvez não seja assim tão estranho, sendo o próprio Morse um espelho daquilo que era uma ideia primordial em sua obra: a cultura periférica latinoamericana tinha e tem muito a ensinar a cultura de centro norte-americana e europeia. Muito antes dos especialistas, como acontece hoje em dia, considerarem o Brasil e o restante da América Latina com o potencial de se tornarem grandes potências, ou seja, na época que esta era vista apenas como uma terra exótica e subdesenvolvida, Morse, na 1 O presente trabalho é fruto de duas linhas de pesquisa: “Richard Morse e os modernismos ibero-americanos: Um estudo sobre a obra do brazilianista Richard M. Morse” e “História e Literatura na abordagem da América Latina no século XX por Richard Morse” (submetido para Chamada CNPq /CAPES N º 07/2011), ambos coordenados pela Profª. Drª. Beatriz Helena Domingues, do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 2 Graduandos do curso de História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 3 Contido em Uma Entrevista com Richard Morse. Realizada por Helena Maria Bousquet Bomeny e editada por Dora Rocha Flaksman. Publicada na revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 77- 93.

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1 Cultura, identidade e sociedade brasileira em foco: colonização, construção,

modernismos e ideias em Sérgio Buarque de Holanda, Richard Morse e Oswald de

Andrade1

Diego Schaeffer e Raíssa Varandas Galvão2

“Como você avalia, no conjunto da historiografia americana, o trabalho dos

brasilianistas? E por que você reage tão incisivamente a ser considerado como um deles?

- Uma pessoa muito mais importante do que eu, Octavio Paz, ao ser convidado a

colaborar em uma revista que preparava um número especial sobre o México, disse o

seguinte: ‘Não vou colaborar porque não sou um escritor mexicano. Sou um escritor’. Em

escala muito modesta, essa é um pouco a minha posição.” 3

Introdução: Richard, Sérgio e Oswald, pensadores “brasileiros”

Apesar de não se considerar um brasilianista, é interessante considerar Richard M.

Morse (1922-2001) com esta alcunha. Pois é curioso estudarmos um historiador norte-

americano tão erudito que se interessou pela cultura brasileira e da América Latina como

um todo. Mas talvez não seja assim tão estranho, sendo o próprio Morse um espelho

daquilo que era uma ideia primordial em sua obra: a cultura periférica latinoamericana

tinha e tem muito a ensinar a cultura de centro norte-americana e europeia.

Muito antes dos especialistas, como acontece hoje em dia, considerarem o Brasil e o

restante da América Latina com o potencial de se tornarem grandes potências, ou seja, na

época que esta era vista apenas como uma terra exótica e subdesenvolvida, Morse, na

1 O presente trabalho é fruto de duas linhas de pesquisa: “Richard Morse e os modernismos ibero-americanos: Um estudo sobre a obra do brazilianista Richard M. Morse” e “História e Literatura na abordagem da América Latina no século XX por Richard Morse” (submetido para Chamada CNPq /CAPES N º 07/2011), ambos coordenados pela Profª. Drª. Beatriz Helena Domingues, do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 2 Graduandos do curso de História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 3 Contido em Uma Entrevista com Richard Morse. Realizada por Helena Maria Bousquet Bomeny e editada por Dora Rocha Flaksman. Publicada na revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 77-93.

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2 metade do século XX em diante, já acreditava que havia um continente sul-americano que,

sem deixar de se desenvolver, optou por se civilizar de um jeito diferente. Morse jamais

deixou de perceber algumas das deformidades no desenvolvimento de seu país e de admitir

que a América Latina não era tão selvagem e grotesca. Essa abordagem faz parte do seu

livro mais conhecido, O espelho de Próspero, que foi considerado indecoroso pelos

conterrâneos do autor4. Ainda, havia grande parte da literatura brasileira e hispano-

americana sobre a formação do povo latino que defendia pontos de vista coincidentes,

como o de que o subdesenvolvimento dos sul-americanos se devia à colonização feita pelos

países ibéricos. Dessa forma, foi espantoso ver um norte-americano como Morse criticando

profundamente o American way of life e mostrando que as sociedades ibéricas eram

civilizações sofisticadas e muito mais abertas e preparadas para encontros entre culturas do

que a inglesa.

Morse, a partir de 1940, começou a estabelecer uma relação mais afetuosa com o

Brasil e com o resto da América Latina, quando passou a visitá-lo com mais frequência ao

longo desta década. Se estabelecendo em São Paulo, a vida na capital paulista lhe forneceu

a base necessária para que escrevesse seu primeiro livro sobre o Brasil, História da

formação de São Paulo, publicado em inglês em 1958 e em português em 1970. Morse não

sentia apenas a necessidade de conhecer sua história e sua configuração urbana, precisava

sentir a cidade, conhecê-la com a razão e o coração. Com isso, as amizades que fez na

Universidade de São Paulo (USP) foram fundamentais nesse processo, embora elas não se

restringissem ao meio acadêmico. Foi fundamental o convívio que ele teve com intelectuais

como Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Florestan Fernandes

(1920-1995), considerados pelo próprio Morse como seus mentores.

Richard Morse era um intelectual que trabalhava com a tenacidade típica dos norte-

americanos, e estava profundamente empenhado em compreender, e não apenas em

conhecer, a história, a cultura, as linguagens, os valores e as ideias da América Latina.

Portanto, parte do mérito do trabalho de Morse sobre os brasileiros e os hispano-americanos

se deve ao fato de ele ter mergulhado na cultura latina sem perder o “olhar estrangeiro”, tão

4Tanto que o estudo nunca foi lançado em inglês, contudo tivesse sido publicado em espanhol, em 1982, e em português, no ano de 1988.

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3 enriquecedor nesse tipo de análise. O historiador se olhou no espelho da América Ibérica,

digeriu essa cultura, se abrindo para as mais diversas influências e fazendo sua própria

leitura delas. Dessa forma, como sugeria a antropofagia modernista, como um canibal,

Morse se alimentou dessa experiência. E já que citamos a antropofagia modernista, logo

chegamos a Oswald de Andrade, talvez a mais notável influência brasileira de Richard

Morse. Uma comparação entre ambos não é nova, visto que a confluência de ideias entre

Morse e Oswald torna a tentativa de compreender o Brasil instigante e múltipla, mesmo

que por muitas vezes Morse nem o tenha citado, como nos mostra Beatriz Helena

Domingues, no artigo Próspero devorando Caliban: Richard Morse e o Modernismo

brasileiro5.

Dessa forma, o objetivo do trabalho aqui apresentado é a tentiva de compreender e

debater em conjunto as interpretações do brasilianista Richard Morse, do “modernista”

Oswald de Andrade e do historiador Sérgio Buarque de Holanda sobre aspectos da cultura

brasileira e latino-americana, tomando como ponto de partida os seguintes aspectos:

colonização, identidades, construção da sociedade brasileira e modernismo (s). Partindo das

ideias e de algumas obras específicas dos três autores estudados (além de artigos e livros

sobre eles), abordamos a problemática da colonização portuguesa, passando pela

construção da sociedade e identidade no Brasil, e culminando no movimento modernista.

O espelho antropofágico da colonização

Consideramos importante começar essa comparação discutindo as características

primordiais da nossa colonização, passando pelas suas diferenças em relação aos outros

“modelos colonizadores”, e sobretudo, pelos seus reflexos na construção da sociedade

brasileira. Há muitas semelhanças e algumas diferenças no modo como nossos três autores

analisam a colonização portuguesa realizada no Brasil.

5 Publicado in: BLASENHEIM, Peter e DOMINGUES, Beatriz H. Org. O Código Morse: Ensaios sobre Richard Morse. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2010.

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4 Comecemos por Morse e Oswald, no modo como encaram a colonização brasileira e

seus antecedentes europeus. Morse, diferente de grande parte dos estudiosos ao tratarem da

colonização da América, procura entender a pré-história europeia que antecede esse

processo. Para ele, quando referem-se às origens da Ibero e Anglo-américa, esses

estudiosos levam em conta apenas a situação das “civilizações paternas” na véspera da

colonização, o que faz dessas análises uma prospectiva e não retrospectiva. Morse defende

que para entendermos as diferenças entre América ibérica e anglo-américa, devemos recuar

mais no tempo até uma pré-história europeia das Américas, que em seus estudos inicia-se

muitos anos antes, ainda em finais da Idade Média. Ao realizar esse estudo, Morse conclui

que as diferenças existentes entre a Anglo-américa e a Ibero-américa não significam uma

superioridade de uma em relação à outra, mas sim que elas são resultados de diferentes

opções culturais e políticas feitas por parte de suas civilizações paternas em determinado

momento. Ressalta ainda que essas opções distintas feitas pela Inglaterra e pela península

Ibérica resultam de uma matriz comum:

“(...) compreender que as respectivas tradições surgem de uma matriz moral,

intelectual e espiritual comum. Dentro dessa matriz, entre os séculos XII e XVII, foram

feitas opções e construídos modelos conceituais que viriam a produzir os diferentes padrões

do que chamamos ‘civilização ocidental’.” (MORSE, 1988: 22).

Ao defender a ideia de “opções diferentes”, Morse abre caminho não só para

entendermos melhor nossa própria história, como possibilita que enxerguemos a América

Latina não como inferior, mas apenas como diferente da América do Norte, que por tanto

tempo nos foi imposta como modelo. E é esse modelo que Morse quer questionar.

No decorrer do Espelho, Morse deixa claro sua preferência cultural pela Ibero-

américa e tece duras críticas aos Estados Unidos, apontando para a trajetória pesada do

liberalismo no país, condenando a sua cultura de massas que, segundo o autor, produziu

com êxito a “individualização”, mas fracassou em produzir a individualidade, o que seria

apenas mais um resultado da trajetória do liberalismo, resultando naquilo que ele denomina

como “sadismo anglo-americano”:

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“O sadismo, em outras palavras, não é mera crueldade, mas o prazer intelectual de

atacar a civilização com suas próprias armas, amor intellectualis diaboli. A piedade e a

compaixão se tornam desonrosas. Daí a descoberta que os mendigos são respeitados no

México e não nos Estados Unidos, onde o respeito social está vinculado com a

demonstração de capacidade e eficiência ‘sádicas’.” (MORSE, 1988: 121).

Já ao falar da Ibero-américa, o autor frisa a necessidade de uma visão positiva da

região que, segundo ele, pode dar muitos exemplos para o mundo e não apenas segui-los.

Para o historiador, a América Ibérica deve ser encarada não como uma região atrasada, mas

sim como dona de uma identidade histórica e cultural única e fascinante e, assim sendo,

como um exemplo de opção cultural enriquecedor para a Anglo-América.

Oswald também trata da questão da colonização em seus textos. E se inicialmente,

em seus tempos do Manifesto Antropofágico6, o escritor enxerga a colonização portuguesa

no Brasil como repressora e causadora de todos os traumas de nossa sociedade, anos

depois, mais amadurecido em seus textos dos anos de 1950, Oswald passa a ver na

colonização portuguesa aspectos positivos que, ainda que repressora, ao menos não

partilhava da mesma concepção calvinista dura e fria que havia colonizado a América do

Norte. Essa mudança de posicionamento pode ser vista em seu livro A Utopia

Antropofágica, onde o autor de certa forma reabilita a cultura da Contra-Reforma e a

Companhia de Jesus. A partir desse livro, podemos perceber que para Oswald de Andrade o

fato de termos sido colonizados pela cultura da Contra-Reforma e não pela cultura da

Reforma deve ser comemorado e não lamentado, uma vez que ao invés de nos

transformarmos em expressão da fria e mecânica concepção calvinista, além de sua

apologia ao trabalho e ao negócio, nos tornamos fruto de uma concepção mais humana e

igualitária da vida, de uma cultura de predominância do ócio sobre o negócio, trazida pela

Contra-Reforma através dos jesuítas. Assim, para ele, apesar do calvinismo ser

6 Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928. O Manifesto Antropofágico foi um Manifesto Literário escrito pelo então principal agitador cultural do início do Modernismo no Brasil. Foi lido em 1928 para seus amigos na casa de Mário de Andrade e publicado na Revista de Antropofagia, que ajudou a fundar com os amigos Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado.

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6 incontestavelmente superior no que se refere ao incentivo para o progresso técnico, atingido

o clímax da técnica, este deveria ceder espaço à concepção mais humana da Contra-

Reforma.

“Ainda creio que nossa cultura religiosa venha a vencer no mundo moderno a

gélida concepção calvinista, que faz da América do Norte uma terra inumana, que expulsa

Carlitos e cultiva McCarthy.” (ANDRADE, 1995: 163)

Assim, sendo inevitável a colonização do Brasil, o que Oswald parece dizer é que é

preferível termos sido colonizados pela Contra-Reforma, que por sua maior plasticidade se

apresentava como mais tolerante às comunidades indígenas matriarcais, do que pela

Reforma, que embora talvez nos possibilitasse maior progresso técnico, por sua

intolerância, seria ainda mais devastadora para a sociedade matriarcal de Pindorama. De

certo modo, a Contra-Reforma, ainda que patriarcal, seria um empecilho menor para a

concretização do novo Matriarcado anunciado por Oswald em seu livro, sobretudo no

artigo para a cadeira de filosofia da USP, A crise da filosofia Messiânica, onde o homem

civilizado seria substituído pelo terceiro termo de sua equação, o homem natural civilizado.

Ao tratar da oposição entre Reforma e Contra-Reforma, Oswald recorre de maneira

brilhante a uma oposição ainda mais antiga, a existente entre judeus e árabes, ambos povos

semitas, que acabaram por dividir o monoteísmo em dois grandes ramos. Enquanto os

judeus sustentariam a ideia da eleição, julgando-se o povo escolhido por Deus, criando

assim um racismo esterilizador e uma cultura fechada e endógena, os árabes, um povo

exogâmico e aberto para contatos com o exterior, criaram a miscigenação e uma cultura

baseada na flexibilidade, na absorção e na rica mistura. De acordo com Oswald, essas duas

culturas teriam produzido as duas concepções de vida opostas tão conhecidas nossas, a

Reforma e a Contra-Reforma. Do sistema exclusivista e fechado dos judeus, da noção de

povo eleito que estes carregavam, surge o Protestantismo com a sua crença na eleição,

dessa vez não de um povo, mas do indivíduo. Da plasticidade política, da flexibilidade, da

cultura exógena aberta à miscigenação, que caracterizavam os árabes, abriu-se caminho

para a Contra-Reforma e para os seus maiores representantes aqui no Brasil, os jesuítas.

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7 A essas ideias até aqui apresentadas podemos ligar as de Sérgio Buarque de

Holanda, em seu famoso ensaio Raízes do Brasil. De acordo com ele, o domínio europeu

entre nós foi mais brando, menos obediente, “a vida parece ter sido aqui

incomparavelmente mais suave, mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais, e

morais” (HOLANDA, 1994: 22). Para Sérgio Buarque, essa plasticidade social associava-

se diretamente a inexistência de orgulho racial entre os portugueses, o que os diferenciava

do povo do Norte:

“Essa modalidade de seu caráter, que os aproxima das outras nações de estirpe

latina e, mais do que delas, dos muçulmanos da África, explica-se muito pelo fato de serem

os portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de mestiços.”

(IDEM, 1994: 22).

Desse modo, percebemos que nossos três pensadores analisados enxergam nas

raízes árabes boa parte dos aspectos que caracterizariam a concepção mais flexível e

exógena que seria trazida para a colônia brasileira. Contudo, é fundamental esclarecermos

que, apesar de reabilitar os jesuítas e demonstrar uma postura mais favorável à cultura da

Contra-Reforma, Oswald não procura assumir um compromisso religioso ou ideológico:

“Quando exalto os jesuítas, de modo algum assumo para com eles um compromisso

religioso ou ideológico. Entendendo como entendo o sentimento religioso universal, a que

chamo sentimento órfico, o qual atinge e marca todos os povos civilizados como todos os

agrupamentos primitivos, isso de nenhuma forma toca minha equidistância.” (ANDRADE,

1995: 166).

Seu elogio à Contra-Reforma está ligado a essa ser oposta à visão de mundo árida e

mecânica que caracteriza a Reforma, por não ter rompido a cultura do ócio de forma tão

ferrenha quanto a religião de Calvino, e ter possibilitado que o Brasil se tornasse “a utopia

realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e marcante do Norte”. E como

maior expressão dessa concepção de mundo contra-reformista, Oswald enxerga a cultura

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8 jesuítica, que passa a ser exaltada por esse não em termos de uma devoção religiosa, mas

sim por ser ela responsável por trazer até nós a larga visão de mundo e a plasticidade que

têm como origem raízes sarracenas.

Dessa forma, percebemos aspectos comuns nas ideias de Morse e Oswald, pois

ambos admitem a existência de um maior desenvolvimento econômico e tecnológico por

parte do modelo anglo-saxão, mas demonstram clara preferência pela cultura ibérica da

Contra-Reforma, enxergando na cultura que se instalou nos EUA os defeitos da frieza,

mecanicismo e recalques frutos de uma cultura repressora dos instintos primitivos,

enquanto a cultura Ibérica da Contra-Reforma se apresenta mais flexível e mais humana. Os

dois autores defendem uma postura diferente perante a América Ibérica, uma visão positiva

no lugar do olhar crítico e pessimista. Ambos acreditam ainda que a Ibero-América e, no

caso de Oswald, o Brasil mais especificamente, devem servir de modelos ao restante do

mundo ocidental apresentando novas respostas e opções. Podemos sintetizar a opinião dos

dois autores a respeito do assunto citando a seguinte frase de Beatriz Domingues:

“Ainda bem que o Brasil e a Ibero-américa foram colonizados pela Contra-Reforma!”

(DOMINGUES, 2010: 15).

Raízes e o Manifesto: colonização e construção da sociedade

Se nos anos 1950 Oswald altera seu foco de visão da colonização, em contrapartida

no Manifesto Antropofágico sua crítica aos portugueses é dura, assim como em Raízes do

Brasil, onde Sérgio destaca “qualidades”, mas também aponta inúmeros “defeitos”.

Destarte, destacamos o primeiro parágrafo do consagrado Raízes, publicado pela primeira

vez em 1936:

“A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de

condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas

origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo

de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e

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9 timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos

ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer

nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização

que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece

participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.”

(HOLANDA, 1995: 31).

Neste trecho, o autor já mostra logo no início sua tentativa marcante de tentar

entender o Brasil contemporâneo através do seu passado colonial, buscando a essência do

nosso país, e esta essência para ele estava em suas origens, em sua raiz, como percebemos

pelo título da obra. Raízes do Brasil é construído sobre uma admirável metodologia dos

contrários, que alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexão latino-americana”. Assim

afirma Antonio Candido no prefácio do livro, sem dúvida guiado pelas articulações de

Sérgio Buarque de opostos, como ladrilhador-semeador, público-privado, etc. Dessa forma,

o “esclarecimento não decorre da opção prática ou teórica por um deles, como em

Sarmiento ou Euclides da Cunha; mas pelo jogo dialético entre ambos”. E por

consequência, a “visão de um determinado aspecto histórico é obtida, no sentido forte do

termo, pelo enfoque simultâneo dos dois; um suscita o outro, ambos se interpenetram e o

resultado possui uma grande força de esclarecimento” (CANDIDO, in HOLANDA, 1995:

12-13).

E quando Oswald de Andrade vem pregar a cultura antropofágica, por obséquio, é

no nosso passado de colonizado que ele investiga as razões que nos levam à pergunta: “o

que é o Brasil e afinal, quem são os brasileiros?”, ou melhor, “quem somos?”. No

Manifesto Antropofágico, Oswald afirma: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente.

Economicamente. Filosoficamente”. Evoca então o passado “canibal” de muitos dos nossos

nativos, proclamando um “canibalismo cultural”, já que não tínhamos a resposta para o que

éramos, a saída era experimentar de tudo, devorar e deglutir, jogar fora o que não prestava e

absorver o que era essencial. A dialética de Oswald desfaz as oposições dicotômicas entre

colonizador/colonizado; civilizado/bárbaro e natureza/tecnologia. Ao considerar o canibal

como um sujeito transformador, social e coletivo faz a revisão da tradição ocidental,

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10 mudando a direção da seta no sentido evolutivo primitivo. No lugar do hibridismo, sempre

tivemos em todos os processos étnicos e culturais, a mestiçagem, genuína criação brasileira.

O manifesto anuncia aquilo que iria ocorrer posteriormente na linguagem: um modelo de

pensamento cultural e de uma língua brasileira calcada na síntese das expressões regionais

da prática oral de todo o Brasil. E a multiplicidade de interpretações proporcionada pela

justaposição de imagens e conceitos no Manifesto é coerente com a aversão de Oswald de

Andrade ao discurso lógico-linear herdado da colonização europeia.

Assim, a sociedade brasileira surge através das oposições que a dividiram,

polarizando a sua religião, sua moral e o seu direito a partir de uma primeira censura: a da

catequese, que trouxe o cristianismo e a do Governo Geral, que trouxe as ordenações.

Resulta no código de ética do senhor do Engenho, patriarca dono de escravos, reinando

sobre a senzala e a Casa Grande. Segundo Oswald, nunca fomos catequizados e o

paganismo tupi e africano subsiste como religião natural na alma dos convertidos, de cujo

substrato inconsciente faz parte o antigo direito de vingança na sociedade tribal tupi. As

oposições podem ser resumidas a uma única entre o antropófago nu e o índio de roupa

inteira, índio vestido de senador do império, figurando nas óperas de Alencar cheio de bons

sentimentos portugueses. Dessa maneira, o primitivismo aparece como signo de deglutição

crítica do outro, o moderno e civilizado: "Tupy, or not tupy that is the question. (...) Só me

interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago". Nesse sentido, o mito, que

é irracional, serve tanto para criticar a história do Brasil e as conseqüências de seu passado

colonial, quanto para estabelecer um horizonte utópico, em que o matriarcado da

comunidade primitiva substitui o sistema burguês patriarcal: "Contra a realidade social,

vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem

prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”. Ou como afirma Regina

Mota no seu artigo Manifesto Antropofágico – 80 anos indo ao infinito:

“[...] é preciso entender o manifesto como um ato antropofágico complexo porque o

texto não pretende resolver as questões, mas colocá-las a nu sob uma nova perspectiva, ou

chave interpretativa. Podemos afirmar sem temor que a antropofagia é uma teoria do

conflito, composta como um ideograma no qual é possível identificar de um lado a

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11 imposição e o trauma da herança patriarcal e do messianismo e de outro, a terapêutica

simbolizada pela herança matriarcal ancestral. No ritual antropofágico, o ato de devoração

representava a aproximação dos homens de seus deuses, trazidos à terra à força para uma

convivência familiar. O manifesto propõe a digestão dos nossos conflitos interiores e as

resistências do mundo exterior sem culpa, sem complexos ou ressentimentos, assumindo a

mesma atitude anti hierárquica dos Tupinambá com respeito aos seus deuses e inimigos.”

(MOTA, 2008: 2).

Essa alteridade7 fundante da antropofagia, que une pela destruição crítica os

contrários, é expressa no Manifesto, sobretudo na ideia de “Só me interessa o que não é

meu”, que coloca o desejo do outro na ordem de todo dia, fazendo a apologia a qualquer

diferença. Para os Tupinambá, os outros eram seu destino e sua solução. O homem natural,

ao contrário do que preconiza a razão moderna, não evolui para o civilizado. Dotado outra

vez do seu instinto primevo, o mau selvagem que come o civilizado cria um novo termo, o

bárbaro tecnizado, que retorna ao primitivo, gerando novos ciclos de mudança no lugar de

evolução. Oswald de Andrade se coloca contra o discurso lógico-linear herdeiro da

colonização europeia propondo uma reflexão original que se expressa por uma intuição

poética densa da conceituação filosófica esquematizada para uso, abuso e transgressão de

totens e mitos.

Reflexos na sociedade brasileira: O “Homem cordial”

Após suas concepções serem colocadas sob o lume da Antropofagia, Oswald

retornaria ao tema mais de 20 anos depois, na sua tese para cadeira na USP, em 1950, com

a tese “A Crise da Filosofia Messiânica”, Oswald utiliza a referência de Totem e Tabu de

Freud, além de perceber os conflitos interiores e as resistências do mundo exterior

7 Alteridade é a concepção de que todo o homem social interage e interdepende do outro. Assim, a existência do "eu-individual" só é permitida mediante um contato com o outro. Dessa forma o “eu” apenas existe a partir do outro, da visão do outro, o que permite também compreender o mundo a partir de um olhar diferenciado, partindo tanto do diferente quanto do próprio ser, sensibilizado pela experiência do contato. Adaptado de: Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998.

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12 conforme Nietzsche: pilhagem teórica é a própria atitude antropofágica, justificada pela

digamos, traição da memória, ratificando uma metafísica bárbara que assume o terror

primitivo. Dessa forma, o que o autor propõe é a “totemização” do Tabu, ou seja, tornar

sagrado aquilo que é intocável ao homem, contrapondo Matriarcado e Patriarcado, onde

nossos nativos viveriam na primeira, e depois o “homem civilizado” viveriam na segunda,

opondo assim uma cultura antropofágica dos nativos e uma cultura messiânica dos

civilizados. Com isso, o alcance religioso da antropofagia, graças ao ritual canibalístico,

incorporava, num ato de extrema vingança, a alteridade inacessível dos seus deuses,

fincando-os na terra, e com eles estabelecendo a convivência familiar, ou na frase do

Manifesto Antropofágico: “É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia

de Deus”.

Pensando na colonização como conflito indelével, podemos citar Benedito Nunes no

A antropofagia ao alcance de todos, onde observamos:

“A concepção messiânica une duas instâncias de dominação – o estado e a

espiritual do sacerdócio, ligando a autoridade do pai a de Deus, reproduz o modelo colonial

de governo. É a conquista espiritual dos jesuítas que se transfere à ação do pensamento

messiânico, suporte ideológico e expressão filosófica de uma superestrutura de que são

aspectos integrantes o regime da propriedade privada no direito, da família monogâmica

quanto aos mores e do monoteísmo quanto à religião. São messiânicas as religiões de

salvação e as filosofias da transcendência, que traduzem as doutrinas paternalistas do

Estado Forte, inclusive a ditadura do proletariado – os derivativos soteriológico (a figura do

mediador, sobrenatural ou carismático) e escatológico.” (NUNES, 1995: 32).

Dessa maneira, assim como Sérgio Buarque, Oswald percebe a sociedade colonial

brasileira organizada de dois modos: dominação do Estado e da religião, onde o Sérgio

denomina o Patrimonialismo e os mitos e Oswald aponta os símbolos e a “revolução

caraíba”, que seria o retorno à sociedade Matriarcal, por conta desta crise messiânica do

Patriarcalismo. E em meio à essa sociedade, nasce o que ambos vão denominar “O homem

cordial”.

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13 Para definir o impacto da cultura resultante da colonização portuguesa (cultura

ibérica), Sérgio Buarque parte de um traço para ele fundamental, que define como “cultura

de personalidade”, que seria a valorização da autonomia, bem como a “aversão ao

convencionalismo” do brasileiro, que busca sempre em suas relações sociais a

“particularização”, a criação de regras próprias. E são esses os valores que orientaram a

organização da sociedade em relação ao Estado desde a colonização do país, e chegando à

contemporaneidade, este era o maior obstáculo para a República.8 Além disso, para

apreender melhor as características fundamentais da sociedade brasileira, Sérgio retira de

Ribeiro Couto, segundo Antonio Candido no prefácio do Raízes, a expressão “homem

cordial”, sobre a qual o mesmo Antonio Candido salienta:

O “homem cordial” não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos

comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não

necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez. O

“homem cordial” é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da

posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades

nascidas na intimidade dos grupos primários. (CANDIDO, 1995: 17).

Ou seja, o “homem cordial” quer dizer exatamente o contrário, pois essa

cordialidade é “epidérmica”, não é essencial. O que vem a ser essencial é aquilo que é

“autoritário”, entretanto, há uma ausência das hierarquias internas , no sentido da sociedade

não respeitar as instituições e as diferenças, “odiando” as palavras “associação”,

“igualdade”, “liberdade”, entre outras. Dessa forma, o que Sérgio Buarque argumenta é que

o que nos essencializa é a “cordialidade”, como se o autor quisesse dizer: “Somos cordiais

porque somos resistentes à vida em sociedade”, usando essa “cordialidade” como uma

defesa, uma proteção contra conflitos pessoais: não é que “civilidade” não exista no Brasil,

mas Sérgio a vê afastada em relação à “cordialidade”, de forma que o brasileiro prefira

“tirar” a hierarquização, dando um toque pessoal, de proximidade. Pessoalidade essa que é

8 Quando Sérgio destaca essa cultura, ele é fortemente influenciado por Max Weber, partindo da ideia de uma cultura ideal (“tipos ideais”). Dessa questão, resulta uma sociedade politicamente pouco participante, que ele atribui também à colonização portuguesa.

Page 14: Diego Schaeffer de Oliveira

14 própria do catolicismo, como por exemplo, a atitude de tratar muitas vezes o santo católico

como um amigo, alguém próximo. Sérgio destaca fatores positivos desse aspecto cultural,

porém alega que possui igualmente um lado muito ruim, pois a principal razão do não

funcionamento da democracia residia nessa desarticulação das hierarquias e essa

“pessoalização” das relações sociais.

Em 1950, Oswald de Andrade profere uma palestra intitulada "Um aspecto

antropofágico da cultura brasileira: o Homem cordial, contido no A Utopia Antropofágica.

Ao analisar o capítulo V de Raízes do Brasil, dedicado à cordialidade, o escritor modernista

enuncia uma interpretação heterodoxa sobre o texto de Sérgio Buarque. Tratava-se, para

Oswald de Andrade, de repensar a cordialidade, herança de um mundo ibérico e rural, signo

de uma vida privada cujos valores invadiriam todos os espaços da vida pública, como um

aspecto da cultura brasileira compatível com formas de vida mais justas e solidárias. Em

outros termos, o ensaio oswaldiano indica uma releitura da história do Brasil em outra

chave que a do ressentimento perante as origens ibéricas e coloniais do país. Para Oswald,

essa alteridade do povo brasileiro é um dos sinais remanescentes da cultura matriarcal,

porém esse “Homem cordial” tem uma dicotomia interna, pois “o ‘Homem cordial’ tem no

entanto dentro de si a sua própria oposição. “Ele sabe ser cordial como sabe ser feroz”, pois

para ele essa identidade cordial é produto da cultura primitiva “caraíba”, que prega o amor

e ajuda ao próximo, mas a aversão e assassínio ao resto do mundo. Ainda, conclui o autor,

retornando com sua tese do retorno ao matriarcalismo:

“Hoje, pela ondulação geral do pensamento humano, assiste-se a uma volta às

concepções do matriarcado”. (ANDRADE, 1995: 159).

As cidades e as relações sociais: o semeador, o ladrilhador e o puritano

Comparando sistematicamente a colonização espanhola e portuguesa no capítulo “O

Semeador e o Ladrilhador”, de Raízes do Brasil, Sérgio define Portugal como “semeador”,

pois na sua visão, tinham um “modelo” de colonização que ele define como “desleixado”:

Page 15: Diego Schaeffer de Oliveira

15 deixavam as feitorias ao “deus-dará”, se preocupando muito com a exploração das riquezas

do território e pouco com a organização das cidades, como visto na afirmação:

“[...] A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental,

não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem.

Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono

que exprime a palavra “desleixo” [...]” (HOLANDA, 1995: 110).

Além desse “desleixo”, Sérgio observa uma certa “liberdade” (precocidade do

Estado Nacional português e uniformidade étnica), além de um sentimento de segurança.

Ocupando sobretudo o litoral, as cidades mediterrâneas só foram erguidas no século XVIII,

e mesmo assim com forte legislação repressiva na exploração (como por exemplo, a cidade

de Diamantina). A organização das cidades coloniais portuguesas, de acordo com Sérgio, se

enlaçam com as linhas da paisagem, são rebeldes às formas abstratas, inspiradas na

colonização de fenícios e gregos da Antiguidade (a exceção a esses modelos eram os

Jesuítas e Bandeirantes). A crítica de Sérgio sobre o Brasil não “entrar” na modernidade se

justificava entre muitos motivos, na ausência de universidades (só no século XX), pois

nesse período a elite colonial era enviada para Portugal afim de estudar (sobretudo a cidade

de Coimbra). Ainda, para o autor, em relação aos mitos (assunto aprofundado em Visão do

Paraíso), os portugueses eram mais “realistas” e “naturalistas” do que os espanhóis:

renunciavam a transfigurar a realidade por meio de imaginações delirantes ou regras

formais. Eram donos de uma “coragem obstinada, mas não descomedida”. Por fim, o que

Sérgio explica é que havia certa “homogeneidade” dos indígenas do litoral, tornando-se

também “agentes da colonização” (questão das “trocas culturais”), também devido ao

“relaxamento” do catolicismo português nos trópicos.

Já do lado espanhol, denominado como “Ladrilhador”, Sérgio percebe um processo

colonizador mais “preocupado”, “ativo”. Na formação de suas cidades, os espanhóis

atuaram como uma “empresa da razão alterando a natureza”, tendo uma ideia desde o

começo de povoar e levar suas instituições, como a Igreja e o Estado (até mesmo por isso o

próprio nome dado à primeira colônia: “Nova Espanha”). Sua “ordem” de colonização

Page 16: Diego Schaeffer de Oliveira

16 partia de uma enorme força centralizadora, uniformizadora e “formalizadora” (desunião

interna e multiplicidade racial) e, ao contrário dos portugueses, detinham um sentimento de

insegurança. E se os portugueses só desbravaram o interior do Brasil no século XVIII em

diante, os espanhóis desde o início de sua colonização se preocupavam em desbravar o

interior do território conquistado, fundando cidades mediterrâneas, inclusive no território

que muitos anos depois seria reconquistado pelos Estados Unidos.

Nessa mesma questão, de maneira geral, concebo que Morse no Espelho de

Próspero quer mostrar que a América do Sul não é uma vítima ou “problema”, mas sim

onde a anglo-américa pode reconhecer suas enfermidades, por isso, inclusive, o autor usa

para definir “anglo-américa” no lugar de Estados Unidos, e “ibero-américa” no lugar de

América Latina, pois receberam esses nomes das nações que lhe deram origem, e não de si

mesmas. Por conseguinte, Richard Morse então vira o espelho: para ele a ibero-américa não

deve ser estudada como um caso de “desenvolvimento frustrado”, mas sim como vivência

de uma “opção cultural”, o que é muito inovador, complexo e instigante. Para Morse e

concordando com ele, as claras diferenças entre a América colonizada por espanhóis e a

colonizada por ingleses são frutos de “escolhas políticas”. Para explicar esse processo

histórico, Morse nos remete desde ao “projeto colonial” nas áreas portuguesa e espanhola,

seguindo a linha do “ladrilhador” e “semeador”, de Sérgio Buarque, e definindo a

colonização da América do Norte pela Inglaterra como “assistemática”.

Continuando, Morse chega ao século XVII, onde ressalta a peculiaridade da

América espanhola, que nesse período já possuía universidades, bispados, produções

artísticas, etc; enquanto a América inglesa era um “amontoado de pequenas aldeias”.

Assim, afirma que a falta de um projeto colonial aproximou os EUA de sua independência.

Além disso, Morse nos mostra que a solidez das cidades coloniais espanholas não

harmonizam com um projeto de exploração imediata de quem quer enriquecer e voltar pra

Europa, pois algumas posturas são independentes da religião ou “raça”, como por exemplo,

a perseguição constante do ouro. Concluindo esse primeiro ponto, é necessário ter a

concepção de Morse de que para compreender as diferenças entre ambas as colonizações é

necessário compreender as características da Inglaterra Moderna, pois essa saiu para a

Page 17: Diego Schaeffer de Oliveira

17 colonização praticamente 100 anos depois da Espanha, e dessa forma, “comprou o pacote

moderno”.

No âmbito político, Morse afirma algo que interessantemente já havia pensado,

onde a ibero-américa apropria-se de uma visão anglo-saxônica que se enxerga como

“superior”. Assim, temos uma América Ibérica desfocada porque ela se contempla no

“espelho da próspera” América inglesa e, na busca da imitação do outro, perde sua própria

essência. Em outras palavras, a ibero-américa não percebeu ou não percebe que o

“liberalismo, a democracia representativa, o racionalismo, o empirismo científico, o

pragmatismo”, todos estes ideais enaltecidos pela anglo-américa não só são incompatíveis

com a realidade da América Ibérica, como também marcam a decadência e a falta de

sentido da própria sociedade capitalista que os criou (claro que esta é uma visão

generalizante que coloca todos os países da América do Sul no mesmo “balaio”, mas os

estudos das especificidades que posteriormente esses países iriam adquirir não é o objetivo

de Morse nesse momento, mas sim o de contrapor um bloco a outro).

No primeiro tópico do Espelho, “Novo Mundo: Dois Mundos”, Morse narra como a

Pré-história europeia se tornou pano de fundo para o importante século de colonização do

Novo Mundo: Espanha e Portugal estando no “outono” e a Inglaterra na “primavera”.

Interessante aqui é a negativa de Morse para entender a história num sentido

“evolucionista”, mas sim no sentido de Huizinga. É a nosso ver é exatamente isso que o

autor quer mostrar: não há uma anglo-américa superior e uma ibero-américa inferior, e

ressaltando as novas possibilidades que essas novas sociedades permitiam, enquanto as

bases sólidas e antigas europeias impediam.

Na segunda parte do Espelho, intitulada “História”, temos como tópico inicial “O

mundo ibérico como contexto da ‘ilustração’”, onde Morse trabalha três ideias importantes

para reconstituir a mentalidade da sociedade norte-americana a partir de suas raízes, já que

segundo ele as colônias puritanas não tiveram uma missão civilizadora ou “incorporadora”

(o conhecido mecanismo do “índio bom é índio morto”): a ideia de vocação, a ideia de

pacto e a ideia da Igreja e do Estado como esferas separadas. Dizendo então que as colônias

logicamente compartilharam as culturas de suas respectivas pátrias de origem, e com isso,

os reinos ibero-americanos, a medida que avançavam no século XVIII para a independência

Page 18: Diego Schaeffer de Oliveira

18 política mesmo sem saber, enfrentavam dois desafios: o caráter aparentemente inadequado

e a natureza incoerente de sua organização social.

Dessa forma, por sequência, Morse trabalha exatamente essas diferentes culturas

políticas ibero e anglo americanas, já mencionadas anteriormente, no tópico “Culturas

políticas do Norte e do Sul”. Aqui, o autor cita Leopoldo Zea, lembrando que este

sustentava que a emancipação política ocasionou uma “emancipação mental”, que levou os

ibero-americanos a “renunciar a dialética em curso com o passado”, o que impediu, pelo

menos durante o século XIX, afirma Morse, a superação desse passado e a conversão do

futuro em presente, ou seja, acredito que o que diferenciou culturalmente o Norte e o Sul,

além do que cita Morse, é esse “aprisionamento colonial”, essas raízes e esses fantasmas do

passado ibero-americano que perseguiu os países da América do Sul. Como exemplo,

Octavio Paz, em seu “O Reino da Nova Espanha”, acredita que esses fantasmas ainda hoje

resistem, e para o México superar seus problemas, é preciso enfrentá-los, encarar esse

passado, sem tentar esquecê-lo na História.

Concluindo este debate, introduzimos uma citação de Paz em El ogro filantrópico,

que considero se encaixar muito bem ao Espelho de Morse, resumindo talvez o sentimento

do autor e o nosso, ao perpassar a obra:

“As sociedades latino-americanas são a própria imagem da estranheza: nelas se

justapõem a contra-reforma e o liberalismo, a fazenda e a indústria, o analfabeto e o literato

cosmopolita, o cacique e o banqueiro. Porém a estranheza das nossas sociedades não deve

ser um obstáculo para estudar o Estado Latino-Americano que é uma das nossas maiores

peculiaridades. Por um lado é o herdeiro do regime patrimonial espanhol; por outro, é a

alavanca da modernização. A sua realidade é ambígua, contraditória e de certa forma,

fascinante.” (PAZ, 1983: 64).

Voltando a Sérgio e Oswald, quando o primeiro explora em Visão do Paraíso9 as

relações entre os colonizadores e os colonizados (portugueses versus índios), Sérgio tenta

9 Sua obra mais acadêmica, escrita como tese para ingressar como professor da USP: Visão do Paraíso, cuja primeira edição data de 1959, ou seja, mais de vinte anos depois do Raízes. Partindo de um mito antiquíssimo, o da visão europeia, sobretudo dos navegadores ibéricos, da América do Sul como “Paraíso Terrestre”, Sérgio examina os mitos edênicos que acompanharam as narrativas dos descobrimentos e colonização da América, explorando o imaginário do colonizador e comparando os “modelos” de colonização espanhola e portuguesa.

Page 19: Diego Schaeffer de Oliveira

19 compreender a mentalidade portuguesa10, definindo o português como alguém com uma

visão de mundo muito marcada pelo pensamento tradicional, rústico, catolicismo

tradicionalista e muito pouco institucionalizado, com crenças em coisas mágicas e se

esforçando em pensar a cultura material, os valores que esses portugueses trazem e como

eles se relacionam com os índios, seus próprios valores e a natureza. Nessa relação, o autor

utiliza a expressão “interação assídua” entre índios e portugueses, espécie de trocas

culturais. Expressão pioneira essa, que pode ser comparada com a famosa “circularidade

cultural” de Mikhail Bakhtin, e posteriormente utilizada pelo historiador italiano Carlo

Ginzburg.

Oswald também interpela esse relacionamento colonizador-colonizado, como o

seguinte poema:

Quando o português chegou

Debaixo duma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português11

Percebemos nele novamente a tese de Oswald que Para ela, a tese de Oswald é que a

instituição do Patriarcado na sociedade brasileira, que começou com a chegada dos

primeiros evangelizadores e Governadores europeus, foi devastadora para as comunidades

indígenas, já que para ele estas eram de cultura predominantemente Matriarcal. Um

10 Sérgio, com Visão do Paraíso foi muitas vezes considerado como um percursor da posterior “história das mentalidades” praticada pela Terceira Geração dos Annales francesa. Porém sobre esse assunto, em outro posfácio do livro, Ronaldo Vainfas define: “Visão do Paraíso, por mais vanguardista que tenha sido – e foi -, nada tem haver com a história francesa das mentalidades. Nem com a praticada pelos fundadores dos Annales

[...] nem, muito menos, como a da terceira geração, como Laura de Mello e Souza apontou no posfácio da presente edição [...] (VAINFAS, in HOLANDA, 2010, p. 555). Consequentemente, Vainfas considera Visão

do Paraíso um livro de história das ideias, ou segundo Vainfas como afirmou o próprio Sérgio, trata-se de uma “biografia de uma ideia”. (idem, 2010, p. 554). 11 ANDRADE, Oswald de. “O achado de Vespúcio”, p.224. adendo de “A marcha das Utopias”, in ANDRADE, Oswald de. A Utopia antropofágica. São Paulo: Editora Globo, 1995.

Page 20: Diego Schaeffer de Oliveira

20 exemplo histórico explorado por Oswald refere-se à Guerra para a expulsão dos holandeses

em Pernambuco. Ele “festeja” a derrota holandesa não com o espírito nacionalista (ou

mesmo regionalista que veio assumir em nossa historiografia), mas como uma vitória do

ócio sobre o negócio. Nos anos 1930, um questionamento nesta direção apareceu em Raízes

do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, e não pleiteando seu pioneirismo neste tipo de

abordagem, Oswald reconhece sua dívida para com Sérgio Buarque, que em Raízes do

Brasil havia associado o ócio com o mundo católico e o negócio com o protestante. E o cita

literalmente:

“[...] Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a

um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que

ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor. E assim, enquanto povos

protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda

mais largamente no ponto de vista da antiguidade clássica. O que entre elas mais predomina

é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade

produtora é, em si, menos valiosa do que a contemplação e o amor [...]” ( ANDRADE,

1995: 190).12

Temos aí além da comparação do colonizador espanhol com o português, a do

colonizador inglês que prevaleceu na América do Norte, ou melhor, uma comparação de

“modelos” colonizadores: católico versus protestante, mostrando assim como Morse iria

inserir, sua preferência pela colonização ibérica em relação a anglo-saxã.

A busca das raízes e das identidades

E na busca das raízes brasileiras e norte-americanas que talvez esteja a grande

coincidência entre os dois estudiosos e amigos: Sérgio e Morse. E isso que o artigo Raízes

do Brasil em o Espelho de Próspero, de Pedro Meira Monteiro ilustra13. O autor inicia sua

comparação, definindo o que para ele é o aspecto principal de Raízes do Brasil:

12 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. APUD ANDRADE, Oswald de. A Marcha das Utopias. 13 Contido no Código Morse.

Page 21: Diego Schaeffer de Oliveira

21

“Sabemos que a “cultura da personalidade” é o traço fundamental com que Sérgio

Buarque de Holanda desenha um de seus personagens centrais: o homem ibérico.

Poderíamos dizer que a atrofia da esfera pública é o resultado lógico de uma personalidade

inflada: em terra de infindáveis barões, o pacto político se consome em relações de lealdade

ou ódio.” (MONTEIRO, 2010: 180).

Destarte, Pedro Meira retoma a questão das relações sociais marcadas pela

“pessoalidade”, já discutidas neste artigo. Porém é a partir de sua visão dos Estados Unidos,

que segundo ele seguem a fornecer o espelho incômodo de uma experiência supostamente

bem-sucedida, relegando os brasileiros (aqui próximos aos hispano-americanos) a um plano

em que se descobrem o reflexo ou o desdobramento de outra realidade e de outra Europa:

“Outra Europa, outra América”. E é aqui então que o autor faz a ligação de Sérgio com

Morse:

“[...] Richard Morse, que, poderíamos já imaginar, terá sido quem mais longe levou

a reescrita de Raízes do Brasil, ainda que em O Espelho de Próspero não se encontre uma

única alusão a Sérgio Buarque de Holanda.” (idem, 2010: 189).

Logo, o que o autor vem elucidar que a principal “zona de coincidência” entre as

duas obras e os dois autores reside no reconhecimento de uma história das Américas deve

necessariamente dialogar com a história europeia mais remota, claro que “evidentemente, a

fé depositada nos ibéricos e em seu universalismo supostamente mais poroso, aberto à

diversidade e à variedade do gênero humano, é algo que encontra os seus extremos em

Richard Morse, enquanto Sérgio Buarque de Holanda parece mais reservado”; mas em

contrapartida, para Pedro Meira, o que gera os estudos de ambos os autores é a

“desconfiança em relação à matriz liberal”, ou em outras palavras, a “desconfiança em face

daquele apagamento do indivíduo, da abstração de sua singularidade”.

E como derradeiro problema em comum nessa relação entre Sérgio e Morse,

segundo Pedro Meira, está na relação entre o indivíduo e o Estado. Ambos os autores estão

Page 22: Diego Schaeffer de Oliveira

22 preocupados em perceber o Estado não como criatura neutra, mas sim como uma entidade

dotada de uma missão, a qual Morse chama de “responsabilidade da eleição de objetivos

comuns”. Já Sérgio tinha esse Estado como uma “criatura espiritual”, que se “opõe à ordem

natural e transcende” (HOLANDA, 1995: 188). Ou para encerrar a comparação, a tentativa

de resposta à pergunta de Pedro Meira formulada já ao fim do debate: “Que significa, ao

fim, a convicta recusa da visão agonística de um mundo em que o indivíduo perde sua fibra,

para tornar-se uma peça a mais na maquinaria vigente?” (MONTEIRO, 2010: 193).

Para o autor, é necessário além de tentar entender as consequencias dessa recusa,

dar sentido à questão. A meu ver, Morse e Sérgio (e claro, podendo incluir Oswald também

aqui) nos deram o caminho: só analisando a história cultural e das mentalidades em que

estão inseridos esses indivíduos, é que podemos chegar a algum resultado. O problema é

que estes resultados podem, muitas vezes, tornarem-se enganosos, e eles vão exigir grande

habilidade do historiador. Habilidades essas que não faltaram a nenhum dos três, porém

ainda assim alguns enigmas continuam e, passar a persegui-los, torna-se então uma

complicada e honrosa missão, que é um pouco o objetivo deste trabalho aqui apresentado.

Modernismo: Oswald, Sérgio e Morse

América Latina, como sabemos, não ficaria imune ao debate instaurado pelas

vanguardas europeias, compartilhando de seu desprezo pelo antigo e de sua intenção de

criar uma arte em sintonia com o próprio tempo. Jorge Schwartz, em estudo dedicado a

Oliverio Girondo e Oswald de Andrade14, ressalta que analogamente ao que sucedeu na

Europa na década de 10, a década de 20 dará lugar na América Latina a uma epidemia de

manifestos, revistas e polêmicas locais produzidos pela importação direta ou indireta de

modelos gerados pelos sucessivos movimentos de vanguarda europeus. Podemos citar

como exemplos, a publicação, na Argentina e no Brasil, nos anos 1920, das

revistas Proa, Martín Fierro, Klaxon e Revista de Antropofagia, e dos manifestos Ultraísta,

Manifesto de Martín Fierro, Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropofágico.

14 Schwartz, Jorge. Vanguarda e cosmopolitismo. São Paulo: Perspectiva, 1983.

Page 23: Diego Schaeffer de Oliveira

23 Na opinião de Schwartz, é possível estabelecer pontos comuns entre os movimentos

de vanguarda, que se sucederam nesse período nos dois países citados, no que se refere à

tentativa de instauração de uma retórica antipassadista, que busca demolir as convenções

em voga. A seu ver, produz-se na linguagem dessas novas poéticas um verdadeiro processo

de carnavalização, com a subversão dos gêneros, com formas coloquiais da linguagem em

convivência com o poético-tradicional, ao mesmo tempo em que se introduz a manifestação

do cotidiano na arte. Todavia, ressalta o historiador, o caso brasileiro é particular, pois

houve, aqui, uma marcada preocupação em "alcançar uma expressão nacional".

Nesse contexto preciso, a figura de Oswald de Andrade merece ser realçada, pois

desde muito cedo ele soube fazer "de seu conceito de antropofagia uma reflexão sobre o

caráter original da cultura brasileira”. Jorge Schwartz é enfático ao afirmar:

"A fórmula oswaldiana da antropofagia, que visa à assimilação do estrangeiro para

a exportação do nacional, se configura como a ideia mais original da década nas vanguardas

da América Latina.” (SCHWARTZ, 1983: 45).

Em sua opinião, ao valorizar a dimensão primitiva de nossa cultura, Oswald soube,

como ninguém, fazê-la "coincidir com a entonação moderna e contemporânea

dos ismos europeus". Porém, ao cunhar o conceito de antropofagia, o escritor tencionava

posicionar-se de outra maneira em relação à herança cultural europeia, não mais servindo-

se dela como modelo, rejeitando fórmulas preestabelecidas de composição poética e

proclamando a abolição de todo eruditismo. Para Oswald e o nosso movimento

modernista, o Brasil poderia oferecer algo de valor à civilização ocidental desde que seus

artistas começassem "a ver com olhos de renovado interesse um passado até então

esquecido”. E com o Manifesto Antropofágico, o poeta e filósofo reafirma o desejo de

ultrapassar a especulação estética e lançar-se, ainda que de forma idealizada, em um projeto

mais amplo, o qual visaria, em última instância, a transformação social.

Nessa ótica, o homem brasileiro tornar-se-ia o portador de uma nova concepção de

mundo, era necessário revalorizar os elementos nacionais, como nas afirmações do

Manifesto: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a

Page 24: Diego Schaeffer de Oliveira

24 felicidade. [...] A nossa independência ainda não foi proclamada. [...] Queremos a

revolução Caraíba. Maior do que a Revolução Francesa”. Oswald rompe, assim, com a

visão romântica e idealizada do bom selvagem, celebrando o canibal tupi por seu poder

transformador, por sua capacidade de criar a instabilidade, o conflito, em vez de um

resultado, uma conclusão ou síntese.

Benedito Nunes, em seu célebre ensaio Oswald Canibal, assinala que, para o

escritor modernista:

“Era o primitivismo que nos capacitaria a encontrar nas descobertas e formulações

artísticas do estrangeiro aquele misto de ingenuidade e pureza, de rebeldia instintiva e de

elaboração mítica que formavam o depósito psicológico e ético da cultura brasileira.”

(NUNES, 1979: 25-26).

Se a antropofagia de Oswald não se tornou vitoriosa sobre as outras propostas

modernistas de interpretação da especificidade cultural brasileira no momento de sua

elaboração ou nos anos imediatamente seguintes, marcados por intenso engajamento

político, religioso e social no campo das artes, inclusive da parte de seu autor, ela foi talvez

a que mais impactou afirmativamente as gerações futuras e o debate artístico nacional, em

especial a partir dos anos 1960. Nesta década, período de forte recuperação das ideias do

escritor paulista, ela serviu de base para que os tropicalistas questionassem o paradigma

nacionalista, então em voga, e demonstrassem que a noção de uma produção

"genuinamente nacional" era desprovida de sentido.

Já Sérgio Buarque de Holanda, antes de sua consagração com Raízes do Brasil,

participou nos anos 1920 no interior do movimento modernista, sendo um dos participantes

e editores do principal veículo do movimento: a revista Klaxon15.

Em meio a nomes afamados como de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do

Amaral, encontramos Sérgio Buarque de Holanda, só posteriormente consagrado como

15 Klaxon foi uma revista mensal de arte moderna que circulou em São Paulo de 15 de maio de 1922 a janeiro de 1923. Seu nome é derivado do termo usado para designar a buzina externa dos automóveis.O principal propósito da revista foi servir de divulgação para o movimento modernista, e nela colaboraram nomes como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Sérgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral e Graça Aranha, entre outros artistas e escritores.

Page 25: Diego Schaeffer de Oliveira

25 historiador, em seus primeiros passos no processo de contestação das realidades nacionais.

Seu envolvimento com o movimento modernista se deu em primeiro momento motivado,

não apenas por sua amizade com Mário de Andrade e sua primária admiração por Graça

Aranha, mas também por suas leituras. Nos primeiros anos do movimento compartilhou as

idéias de busca por uma identidade nacional original para o Brasil. Apesar de sua posterior

decepção com os rumos do modernismo brasileiro, esse ideal o acompanhou, tanto que ele

aparece intrínseco no Raízes16.

Com o intuito de responder esses questionamentos, no artigo de Júlia Silveira

Matos, Cartas Trocadas: Sérgio Buarque de Holanda e os bastidores da revista Klaxon,

temos a análise da correspondência de Sérgio Buarque nos anos de 1920, como articulador

da revista. A autora seleciona sete cartas, sendo duas enviadas a ele por Mário de Andrade,

uma por Tácito de Almeida, uma por Ribeiro Couto, uma por Couto de Barros, duas

respostas a Mário, uma no mesmo ano de 1922 e outra do ano de 1925, qu não seria desta

época, mas “conserva a temática que é a validação e crítica do discurso moderno de Sérgio

Buarque de Holanda”. Segundo Júlia Matos, ao ler as cartas o que percebemos é que todas

possuíam como elo o mesmo assunto: a publicação e organização da revista Klaxon, assim

como a avaliação do conto Antinous de Sérgio Buarque. Sendo assim, o objetivo do

trabalho da autora é analisar como os princípios ideológicos do movimento modernista

impressos em Klaxon aparecem nessa correspondência, e da mesma forma, como as

relações entre os sujeitos componentes desse movimento, suas avaliações e administração

da revista, pois:

“Essas cartas, entendidas aqui, como parte da obra de Sérgio Buarque, nos

permitem compreender o funcionamento de seu pequeno microcosmos intelectual entre os

anos de 1920, assim como, sua própria constituição enquanto estudioso do Brasil.”

(MATOS, 2010: 3-4).

16 Segundo reza a lenda, por conta de uma prova no curso de Direito, Sérgio não teve a oportunidade de participar do marco da Semana de 22.

Page 26: Diego Schaeffer de Oliveira

26 Destarte, o que queremos aqui não é fazer o mesmo que Júlia Matos, debatendo

essas cartas, mas sim ilustrar como apesar de poucos comentarem, o intelecto de Sérgio

fomentou esse movimento junto com o de Oswald, por exemplo, apesar que o primeiro

desacreditaria dos ideias do movimento e não participaria, após a década de 20, ativamente.

Enquanto o segundo estaria sempre ligado a este viés modernista, antropofágico. E aí está

uma essencial diferença entre eles, diferença que culminaria em carreiras e ideias

diferentes, apesar de algumas semelhanças e confluências, como já vimos neste presente

artigo.

Por último, chegamos a Richard Morse. Este admitia com entusiasmo sua admiração

pelos escritores modernistas brasileiros, confessando-se fascinado principalmente por

Oswald e Mário de Andrade. Ao escrever o texto Brazilian Modernism, Morse deixava

clara a sua preferência por Mário de Andrade, a quem considerava a própria encarnação e

sintetização do modernismo. No entanto, mais tarde, Morse mudaria o seu julgamento em

relação a Oswald de Andrade, passando a admirar e a admitir a contribuição artística e

intelectual desse para o país, interessando-se igualmente por ambos.

Em sua obra, mais do que estudar a América Latina, Morse buscava lançar um novo

olhar para a cultura ibérica, um olhar positivo no lugar do olhar recriminatório que até

então era lançado à ibero-américa. Morse defende a Ibero-américa como resultado de uma

opção cultural que também possui exemplos a dar, propondo inverter o espelho que até

então os EUA agressivamente mostram para a América do Sul.

“Talvez seja hora de virar esse espelho. Num momento em que a Anglo-América

experimenta uma crise de autoconfiança, parece oportuno confrontar-lhe a experiência

histórica da Ibero-América, não mais como estudo de um caso de desenvolvimento

frustrado, mas como a vivência de uma opção cultural.” (MORSE, 1988: 14).

Assim, como afirma Beatriz Domingues, embora não faça referência direta a isso

em seu livro, Morse compartilhava da perspectiva antropofágica , uma vez que, a partir de

seu olhar estrangeiro, o historiador devorou nossa cultura ibero-americana, saindo dessa

Page 27: Diego Schaeffer de Oliveira

27 experiência transformado e enriquecendo-nos com a deglutição de suas interpretações de

nossa própria história e cultura.

De acordo com Beatriz Domingues, Morse orgulhava-se do fato de ter nascido em

1922, mesmo ano da famosa Semana de Arte Moderna ocorrida em São Paulo, cujos

participantes tanto o fascinavam. Seu interesse pelos modernismos latino-americanos é

claramente expresso em suas obras, sendo assunto em textos como Brazilian Modernism, A

Volta de McLuhanaíma e The Multiverse of Latin American Identity17. É importante

mencionar também, que além da forte presença do Modernismo, as obras de Morse se

caracterizam por um grande diálogo entre a história e a literatura, de forma que o autor

relaciona suas análises históricas com obras de grandes nomes da literatura como T.S.

Elliot, Mário de Andrade e, como comparado neste artigo, Oswald de Andrade.

A busca da identidade e o Modernismo por Richard Morse: o que é humano e

transcende o curto prazo

The Multiverse, obra esta pouco conhecida no Brasil, enfoca a problemática da

identidade brasileira e latino-americana de forma panorâmica e comparativa, detendo-se

nas formulações de pensadores brasileiros e latino-americanos considerados como os mais

expressivos, desde o Modernismo dos anos 1920 até a década de 1970. Algumas

interpretações são desdobramentos de teses formuladas pelo autor em estudos anteriores,

desde os anos 1940 até os 1990. Embora Morse tenha percorrido meio século de produção

literária e histórica sobre o tema da identidade, é importante nos centrar na contribuição que

este estudo pode oferecer à historiografia sobre a problemática da identidade nacional na

América Latina na década de 1920, com destaque para o período modernista. Além de

ocupar um papel privilegiado na análise de Morse, o Modernismo abre grandes

possibilidades de diálogo entre os estudos históricos e os literários. O Modernismo é

importante porque, no entender de Morse, é com ele que começa a se gestar a busca da

identidade brasileira e latino-americana, que continua até os dias atuais. Segundo ele, a

eleição do Modernismo enquanto marco de um tipo de busca por nossa identidade realça a

17 A partir daqui, chamaremos somente de “The Multiverse”.

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28 singular e original interação que então foi estabelecida entre a literatura, a cultura e a

história da região, distinta da que ocorria na Europa e nos Estados Unidos.

A questão da identidade é tratada por Morse como uma construção humana e

universal, ao mesmo tempo emocional e racional, que assumiu características especiais com

a constituição dos Estados modernos. Na Europa, a busca por identidade começou no

século XVI, mas, até o fim do XIX, países como a Alemanha, Rússia e Itália ainda estavam

se debatendo para construir as suas próprias. Fora da Europa, um caso interessante naquele

momento foi o Japão. Levando-se em conta que o principal significado de identidade

relaciona-se com sociedades nacionais, na América Latina é possível encontrar referências

também a agregados de sociedades nacionais (América Latina), bem como a sociedades ou

grupos subnacionais. É importante também distinguir identidade de “caráter nacional”:

“(...) identidade é muito mais ‘uma consciência coletiva de vocação histórica’.

Realidade relaciona-se com o ambiente ao redor, identidade com reconhecimento tácito.”

(MORSE 1995: 3).

Em outras palavras, identidade diz respeito a um tipo de conhecimento que

necessariamente envolve emoções e consciência. Por isso, em outra obra que trata da

questão da identidade e dos modernismos, a irreverência de Morse transparece no próprio

título da obra: A volta de McLuhanaíma: cinco estudos solenes e uma brincadeira séria.

Trata-se de uma coletânea de artigos do próprio autor sobre assuntos diversos: uma

comparação entre modernistas brasileiros e norte-americanos, um estudo sobre as

linguagens do Novo Mundo, considerações sobre a delicada profissão dos brasilianistas

(como ele mesmo) e, como capítulo final, uma versão brasilianista de Macunaíma,

McLuhanaíma: Macunaíma na era da comunicação global! Apesar de o título remeter ao

conhecidíssimo Macunaíma e de Morse aprofundar alguns temas polêmicos já contidos em

O espelho, a obra não desencadeou maiores reações. Como afirma Beatriz Domingues no

seu artigo História e Literatura na busca pela identidade na América Latina no século XX:

a visão de Richard Morse:

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29 “Talvez o impacto da obra antecessora tenha sido grande o suficiente para que

aqueles que se identificaram ou acharam interessantes suas teses continuassem a lê-lo e para

que seus oponentes não lessem ou simplesmente não se manifestassem a respeito.”

(DOMINGUES, 2011: 50).

Por conseguinte, vejamos os dois capítulos do livro que tratam diretamente do

Modernismo brasileiro: Quatro poetas americanos: uma cama-de-gato e Apontamentos

para uma ideologia. No primeiro, Morse apresenta o Modernismo, “incompreendido e até

mesmo chocante em sua própria época”, como referência básica para a tomada de

consciência latino-americana em nosso século e, talvez de modo menos decisivo, também

para uma tomada de consciência norte-americana. O Modernismo, segundo o brazilianista,

suspende as tendências e visões comuns, privilegiando o olhar individual. No referido

artigo, Morse contrasta quatro escritores do período modernista: dois sulamericanos

(Oswald e Mário de Andrade) com dois norteamericanos (respectivamente William Carlos

Williams e T. S. Eliott). No texto de 1950 ele havia comentado, de passagem, que somente

nos anos 1940 os brasileiros haviam tomado consciência do trabalho de T. S. Elliot, e o

fizeram de uma forma completamente diferente dos norte-americanos. E, então, tiveram sua

própria deglutição do poeta, como na Antropofagia de Oswald. Neste artigo, Morse inverte

o espelho para analisar a assimilação da cultura da “periferia” pelo “centro”, no que se

refere especificamente à contribuição do Modernismo brasileiro para a problemática da

redescoberta do povo, e com ele de uma nova forma de abordar a “realidade” latino-

americana. Destarte, Morse admirava nos modernistas brasileiros e ibero-americanos o fato

de partirem da “realidade” de seus países, ao invés de tentarem chegar até ela: daí localizar

nos anos 20, nos anos do Modernismo, um momento de maior êxito, se comparado ao

século XIX, no que diz respeito à busca pelas chamadas “realidade” nacional e “identidade

cultural”.

Este papel privilegiado que o Modernismo latino-americano e brasileiro ocupam na

análise de Morse deve-se ao fato dele acreditar que é com os Modernismos que se inicia a

busca pela identidade latino-americana e, mais especificamente, pela identidade brasileira,

procura esta que persiste até os dias atuais. Além disso, Morse acredita que o fato de o

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30 Modernismo ser eleito como marco para a busca de nossa identidade, realça também a

interação singular e original entre literatura, cultura e história que se deu na latino-américa,

distinguindo da interação que ocorria na Europa e nos Estados Unidos e demonstrando

assim, a riqueza cultural ibero-americana. O Modernismo é, portanto, compreendido pelo

historiador como uma referência para a tomada de consciência latino-americana no século

XX.

Voltando ao ensaio The Multiverse, Morse faz uso das ideias defendidas pelo

pedagogo Alfred Whitehead para entender a questão da identidade através da produção

intelectual latino-americana dos anos de 1920 a 1970. Whitehead elaborou uma genealogia

do conhecimento humano que, segundo ele, é gradual, de modo que seus estágios não estão

restritos e nem confinados a idades especificas e Morse fará uso dos três diferentes estágios

do crescimento mental definidos por Whitehead relacionando-os respectivamente com o

Modernismo, as novelas e a filosofia. Dentre os estágios elaborados pelo pedagogo, o

primeiro estágio é caracterizado como o do romance, onde se tem uma primeira apreensão

do tema ainda com o viço da novidade, onde as possibilidades ainda estão apenas

parcialmente reveladas, as ideias ainda vagas e a assimilação de fatos opera-se por meio das

emoções. Esse estágio inicial, para Morse, associa-se ao Modernismo. Já o segundo estágio

seria o da precisão, onde o pensamento substitui a multidão de ideias desconexas por

formulações caracterizadas pela exatidão. Esse estágio, para Morse, equipara-se as novelas

e ensaios latino-americanos. O terceiro estágio é definido pela generalização e é

identificado, por Morse, como os trabalhos filosóficos latino-americanos dos anos de 1940

e 1950. A tese defendida pelo historiador é a de que os modernistas modelaram a

sensibilidade dos anos 20, que viria depois a tomar contornos mais definidos com os

ensaístas e novelistas em 1930. Assim, para ele, as ideias sobre as identidades brasileira e

latino-americana foram gestadas durante o modernismo em 1920, adquiriram uma maior

precisão com os ensaístas e novelistas em 1930 e uma maior generalização com os filósofos

dos anos de 1940 e 1950.

O historiador, em seus textos, afirma a importância da Semana de Arte Moderna de

São Paulo de 1922, defendendo, assim como os próprios modernistas diziam, que o

objetivo da Semana não era mistificar a burguesia com as últimas novidades europeias, e

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31 sim utilizá-las como explosivos para desmistificar os pilares de um sistema de classes.

Além disso, defende que o Modernismo brasileiro teria sido ao mesmo tempo um projeto

estético e ideológico, com a predominância do primeiro nos anos iniciais e do segundo nos

anos de 1930 e 1940. Assim, o Modernismo seria um projeto estético porque buscava

romper com a linguagem tradicional e ideológica na medida em que procurava uma forma

de expressão autenticamente brasileira. Ainda, Morse acreditava que a estética modernista

era capaz de reconhecer aquilo que havia de nutritivo tanto na cultura europeia quanto nas

sociedades periféricas. Consequentemente, os modernistas brasileiros absorviam e

conciliavam de modo complexo os elementos europeus com aqueles próprios da tradição do

país, de forma que promoviam uma fusão entre o primitivo e o moderno. E era essa mistura

de elementos, segundo o autor, que fez das soluções brasileiras únicas e singulares.

Por último, podemos ainda ressaltar que para Morse, o fato de a Anglo-América

estar experimentando um período de desmoronamento e crise, poderia ser uma situação

propícia para um projeto ideológico ambicioso para o mundo Ibero-americano (além da

tentativa de uma outra forma de abordagem para a região). Segundo ele, as teorias de

Locke, adotadas na anglo-américa não se encaixavam à nossa realidade latino-americana,

uma vez que essa não sintonizava-se com as teorias políticas do individualismo e do

contratualismo. Assim, enquanto o modelo de Locke e demais teóricos do liberalismo

encaixaram-se na América do Norte, na Ibero-américa tais modelos não encontraram real

compatibilidade por não condizerem com nossa cultura sul-americana caracterizada pela

diversidade e pela heterogeneidade. Dessa forma, a antropofagia parecia-lhe uma resposta

mais apropriada uma vez que mais flexível e eclética, sendo assim mais preparada para

lidar com a realidade latino-americana e, claro, brasileira.

Concluindo, uma última comparação: Morse se aproxima a Oswald também em

relação à forma como enxergavam o tempo histórico. A antropofagia defendida por Oswald

opunha-se a uma noção de progresso e evolução a favor da intensidade do devir, opunha-se

também a ideia hegeliana de que “tudo que é racional é real” e à promessa de um mundo

hierarquizado e autoritário. No lugar disso, o escritor propunha uma revalorização do

homem natural contra o homem histórico, civilizado e cartesiano. A antropofagia propunha

uma nova forma de interpretar o movimento da História, não como algo progressivo, mas

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32 como algo que atravessa o fluxo evolutivo e retorna ao princípio (“matriarcado de

Pindorama”, na tese do autor), o que possibilitaria a tomada de inúmeras direções e não

apenas um caminho único rumo ao objetivo da evolução. Morse também era um crítico

ferrenho das noções de progresso e evolução na história e procurava interpretar o passado

enxergando aquilo que havia de afirmativo e não o que lhe falta para evoluir. O historiador

defendia uma visão da história como fora proposta por Huizinga, sugerindo entender os

momentos históricos como possuídores de inúmeros desdobramentos. Com isso, Morse

defendia a visão da história não como evolução e sim como “aventura”, na qual se supõe

inúmeras opções.

“Parece-me que um aspecto que atrai Morse em todos os modernistas (...) foi o

interesse, em algum momento de suas vidas, senão durante todas elas, pelo que é humano e

transcende o curto prazo.” (DOMINGUES, 2011: 67).

Conclusão: Compreender para aprimorar

No presente artigo, defendemos que, mais do que apenas admiração por Oswald e

Sérgio, Morse apresentava ideias e perspectivas muito semelhantes àquelas defendidas

pelos brasileiros, de modo que é possível traçarmos uma comparação entre esses três

importantes intelectuais e suas obras. Assim como defende Beatriz Domingues em seu já

citado artigo Próspero devorando Caliban: Richard Morse e o Modernismo brasileiro,

acreditamos que mesmo sem ter citado Oswald e Sérgio em seu livro O Espelho de

Próspero, assim como em outras obras, Morse compartilha de muitas ideais e teses

defendidas por estes pensadores da cultura brasileira.

Desse modo, podemos terminar este artigo com a certeza da existência de muitas

afinidades na forma como os três encaravam seus objetos de estudo, em especial a Ibero-

américa e a sociedade brasileira. Morse identificava-se com a ironia, os trocadilhos e o

“jeito brincalhão” do escritor modernista, além de frequentar a casa e ser amigo de Sérgio,

mas os pontos em comum deles não concentram-se apenas nisso, os três partilhavam de

uma visão, apesar dos pesares, positiva a respeito de nossa cultura ibero-americana, e por

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33 meio de seus legados nos levam a compartilhar uma mesma perspectiva otimista,

mostrando-nos os pontos fortes e únicos de nossa cultura da qual tanto devemos nos

orgulhar. E não se limitando a isso, visto que tentar compreender nosso país é o primeiro e

mais importante passo para aprimorá-lo.

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