Dialnet-WittgensteinParaconsistencia-3646273

39
(WITTGENSTEIN &P ARACONSISTÊNCIA) JOÃO MARCOS Universidade Federal do Rio Grande do Norte Abstract. In classical logic, a contradiction allows one to derive every other sentence of the underlying language; paraconsistent logics came relatively recently to subvert this ex- plosive principle, by allowing for the subsistence of contradictory yet non-trivial theories. Therefore our surprise to find Wittgenstein, already at the 1930s, in comments and lectures delivered on the foundations of mathematics, as well as in other writings, counseling a cer- tain tolerance on what concerns the presence of contradictions in a mathematical system. ‘Contradiction. Why just this spectre? This is really very suspicious.’ (Philosophical Remarks III–56) In the last decades, several authors (e.g. Arrington, Hintikka, Van Heijenoort, Wright, Wrigley) have been digging into Wittgenstein’s rather non-standard standpoint on what con- cerns the interpretation and import of contradiction in logic and mathematics, and many other authors (e.g. da Costa, Goldstein, Granger, Marconi) have been investigating the pos- sibility of taking Wittgenstein seriously as one of the early forerunners of paraconsistency. While many advances have been made on the first front, the second set of investigations has led almost exclusively to negative results: no, no operational proposal about the con- struction of a logic in which (some) contradictions are made inoffensive can be read from Wittgenstein’s philosophical work; in fact, it appears that the most one can find there is the exhortation for mathematicians to alter their attitude with respect to contradictions and to consistency proofs. The play is done, and one looks for a resume of the opera. This paper fills that blank, as a thorough investigation of the possible relations between Wittgenstein and paraconsistency. Keywords: Wittgenstein, contradiction, philosophy of mathematics, foundations of math- ematics, paraconsistency. 0. Introdução Segundo da Costa et al. (1995), “dado o seu caráter de lógica não-clássica, nenhuma exposição geral da paraconsistência pode ser minimamente aceita sem algumas ob- servações filosóficas acerca da sua natureza.” Ora, encontramos nos escritos de Witt- genstein um curioso e insistente reclamo por tolerância com relação à presença de contradições em um sistema matemático. Seria Wittgenstein, por excelência, um fi- lósofo da paraconsistência? Esta é a questão sobre a qual nos debruçamos aqui. A própria trajetória filosófica de Wittgenstein começou pela atração que o filósofo sentira pelo paradoxo de Russell, uma contradição que ameaçava os fundamentos da matemática na virada do século XX, e continuou anos mais tarde pela crítica Principia 14(1): 135–73 (2010). Published by NEL — Epistemology and Logic Research Group, Federal University of Santa Catarina (UFSC), Brazil.

description

Wittgenstein

Transcript of Dialnet-WittgensteinParaconsistencia-3646273

  • (WITTGENSTEIN & PARACONSISTNCIA)

    JOO MARCOSUniversidade Federal do Rio Grande do Norte

    Abstract. In classical logic, a contradiction allows one to derive every other sentence ofthe underlying language; paraconsistent logics came relatively recently to subvert this ex-plosive principle, by allowing for the subsistence of contradictory yet non-trivial theories.Therefore our surprise to find Wittgenstein, already at the 1930s, in comments and lecturesdelivered on the foundations of mathematics, as well as in other writings, counseling a cer-tain tolerance on what concerns the presence of contradictions in a mathematical system.Contradiction. Why just this spectre? This is really very suspicious. (Philosophical RemarksIII56)

    In the last decades, several authors (e.g. Arrington, Hintikka, Van Heijenoort, Wright,Wrigley) have been digging into Wittgensteins rather non-standard standpoint on what con-cerns the interpretation and import of contradiction in logic and mathematics, and manyother authors (e.g. da Costa, Goldstein, Granger, Marconi) have been investigating the pos-sibility of taking Wittgenstein seriously as one of the early forerunners of paraconsistency.While many advances have been made on the first front, the second set of investigationshas led almost exclusively to negative results: no, no operational proposal about the con-struction of a logic in which (some) contradictions are made inoffensive can be read fromWittgensteins philosophical work; in fact, it appears that the most one can find there is theexhortation for mathematicians to alter their attitude with respect to contradictions and toconsistency proofs.

    The play is done, and one looks for a resume of the opera. This paper fills that blank, asa thorough investigation of the possible relations between Wittgenstein and paraconsistency.

    Keywords: Wittgenstein, contradiction, philosophy of mathematics, foundations of math-ematics, paraconsistency.

    0. Introduo

    Segundo da Costa et al. (1995), dado o seu carter de lgica no-clssica, nenhumaexposio geral da paraconsistncia pode ser minimamente aceita sem algumas ob-servaes filosficas acerca da sua natureza. Ora, encontramos nos escritos de Witt-genstein um curioso e insistente reclamo por tolerncia com relao presena decontradies em um sistema matemtico. Seria Wittgenstein, por excelncia, um fi-lsofo da paraconsistncia? Esta a questo sobre a qual nos debruamos aqui.

    A prpria trajetria filosfica de Wittgenstein comeou pela atrao que o filsofosentira pelo paradoxo de Russell, uma contradio que ameaava os fundamentosda matemtica na virada do sculo XX, e continuou anos mais tarde pela crtica

    Principia 14(1): 13573 (2010).Published by NEL Epistemology and Logic Research Group, Federal University of Santa Catarina (UFSC), Brazil.

  • 136 Joo Marcos

    ao programa formalista de Hilbert, o qual pretendia demonstrar vez por todas aconsistncia da aritmtica. Tanto o paradoxo de Russell quanto a Metamatemticade Hilbert so apresentados na seo 1.

    costume dividir a obra wittgensteiniana em duas: a primeira, do TractatusLogico-Philosophicus, e a segunda, mais ou menos a partir das Investigaes Filos-ficas. A despeito da altivez da primeira filosofia de Wittgenstein, sua segunda filo-sofia que mais nos interessar aqui. Seu programa matemtico se encontra esboadono ltimo pargrafo das Investigaes, no qual o filsofo afirma que possvel umainvestigao da matemtica inteiramente anloga nossa investigao da psicolo-gia. to pouco matemtica quanto a outra psicolgica. Nela no se calcula; no, pois, logstica, por exemplo. Poderia merecer o nome de investigao dos fun-damentos da matemtica. As obras Remarks on the Foundations of Mathematics eWittgensteins Lectures on the Foundations of Mathematics so por certo as principaisfontes nas quais podemos colher os frutos desta investigao, mas as personalssimasopinies de Wittgenstein acerca dos fundamentos da matemtica podem, com efeito,ser hauridas e esclarecidas em praticamente toda a sua obra, bem como em diversostrabalhos de seus comentadores.

    Fiis ao filsofo, e a seu peculiar mtodo filosfico, neste estudo nos guiamospor perguntas menos, porm, com o intuito de respond-las de forma definitivado que utiliz-las como roteiro de viagem. Pois em filosofia sempre bom pr umaquesto ao invs de uma resposta a uma questo. Pois uma resposta a uma ques-to pode facilmente ser injusta; livrar-se dela por meio de outra questo no o .(Foundations II5)

    Na seo 2 apresentamos o paradoxo de Curry, formulado mais ou menos mesma poca (1942) em que Wittgenstein exorava aos seus jovens discpulos emCambridge uma mudana de atitude com relao contradio e consistncia namatemtica. O paradoxo de Curry nos mostra, contudo, que h outras vias lgicasem direo trivializao da teoria de conjuntos, sem passar necessariamente pelacontradio, como ocorre no caso do paradoxo de Russell. Desconhecemos a opi-nio de Hilbert sobre a construo de Curry: o velho matemtico alemo enfrentavana poca as atribulaes de uma Guerra Mundial, e morreria apenas um ano maistarde. Wittgenstein, por seu lado, no parece ter sequer tomado conhecimento daconstruo de Curry: tanto quanto Hilbert, ele se preocupou to-somente com o pro-blema da inconsistncia dos clculos formais, sem distingui-la da trivialidade. Deuma maneira ou de outra, certamente no seramos capazes de distinguir na obra deWittgenstein qualquer proposta efetiva de um clculo paraconsistente.

    O que fazer da contradio? Na seo 3 exploramos algumas das afirmaes elas prprias contraditrias de Wittgenstein a este respeito. Na sua primeira fi-losofia, as contradies no tm vez: elas ho de ser simplesmente dissolvidas; nasua segunda filosofia, pergunta-se pelo uso possvel das contradies nos jogos de

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 137

    linguagem. Wittgenstein altercou longamente com seus alunos, entre eles Turing,e buscou dar conta sem muito xito, diga-se de passagem das contradiesocultas, as quais, acreditava-se, poderiam eventualmente explodir, donde decorre-ria desafortunadamente a trivializao do clculo subjacente.

    Na seo 4 damos a conhecer as crticas e as recomendaes de Wittgenstein comrelao atitude dos matemticos em face da contradio, e analisamos os prpriosobjetivos de sua prtica filosfica. Wittgenstein insiste que a matemtica uma esp-cie de jogo, e que os problemas surgem quando os matemticos se esquecem disso eles se levam a srio demais. Wittgenstein no julgava realmente que o problema daconsistncia fosse um problema legtimo, da o seu entendimento de que o problemada contradio estaria menos na sua ao do que na nossa reao a ela.

    Examinamos, na seo 5, os pontos de proximidade e de divergncia entre Witt-genstein e aqueles lgicos que so usualmente tomados como fundadores da lgicaparaconsistente. Arguimos a tese de que ukasiewicz e Vasiliev mereceriam o ttulode paternidade da lgica paraconsistente, e apresentamos as ideias bsicas de doisde seus verdadeiros pais, Jaskowski e da Costa. Fazemos ainda breves consideraessobre a ontologia da paraconsistncia.

    Na seo 6 mergulhamos fundo na anlise wittgensteiniana da matemtica. Bus-camos as origens e as consequncias da crtica feita por Wittgenstein prpria ideiade que a matemtica deveria ter um fundamento, e para tanto fazemos uso do voca-bulrio caracterstico do filsofo: entram em jogo as noes de gramtica, formade vida, histria natural e semelhanas de famlia. Conhecemos, em 6.1, a re-jeio por Wittgenstein de toda sorte de meta-disciplinas e, em particular, daMetamatemtica de Hilbert. Este ponto de vista culmina num grande engano na in-terpretao wittgensteiniana das demonstraes de consistncia relativa, e na com-pleta incapacidade de entender o funcionamento do Segundo Teorema de Gdel. Em6.2 propomos compreender tanto a rejeio da Metamatemtica quanto a concepobastante particular de clculo manifestas por Wittgenstein a partir de seus conceitospr-semnticos hoje to inusuais.

    Finalmente, na seo 7, perguntamo-nos quais as consequncias prticas do arra-zoado wittgensteiniano. Do sermo de Wittgenstein aos matemticos pode resultardesde o simples incmodo at o engavetamento de certos projetos, passando, porexemplo, pelo completo mal-entendido com relao ao significado do Primeiro Teo-rema de Gdel mal-entendido este que talvez deva sua origem ao uso dos mesmosconceitos pr-semnticos mencionados acima.

    1. De uma Filosofia da Paraconsistncia

    Tentar derivar toda a matemtica pura a partir de um punhado de princpios lgicos,esta era a natureza da tarefa (dita logicista) a que se propunha Bertrand Russell,

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 138 Joo Marcos

    em 1903, em seu The Principles of Mathematics (Os Fundamentos da Matemtica).Em um apndice desta obra, Russell nos conta que recm tomara conhecimento deum esforo afim, empreendido alguns anos antes em um trabalho pouco divulgadode Gottlob Frege, cujo primeiro volume viera luz em 1893, sob o ttulo de Grund-gesetze der Arithmetik (Leis Bsicas da Aritmtica). Mesmo tendo feito uma leituraapressada desta ltima obra, Russell notou uma dificuldade que de incio lhe pare-ceu secundria, mas que logo mais seria conhecida como o mais famoso paradoxoda teoria de conjuntos.

    Muitos trabalhos em lgica, em teoria de conjuntos e em filosofia e fundamentosda matemtica no sculo XX tero origem neste paradoxo; sobre este paradoxo sedir at mesmo que a descoberta por Russell de um conjunto que ao mesmo tempomembro de si mesmo e no-membro de si mesmo a maior descoberta matemticadesde

    p2 (cf. Priest 1979: 240). Mas em que consiste afinal o paradoxo de Russell?

    O desenvolvimento da teoria de conjuntos encontrava-se ainda incipiente noprincpio do sculo XX seu pontap inicial fra dado por Georg Cantor, em 1874,no artigo ber eine Eigenschaft des Inbegriffes aller reellen algebraischen Zah-len (Sobre uma propriedade essencial de todos os nmeros reais algbricos), pu-blicado nos Mathematische Annalen. Somente em 1895 e 1897, nos dois artigos quecompunham os Beitrge zur Begrndung der transfiniten Mengenlehre (Contribui-es aos fundamentos da teoria de conjuntos transfinitos), Cantor faria conhecer, namesma publicao acima, seus trabalhos sobre nmeros ordinais e cardinais. Con-tudo, at as primeiras tentativas de axiomatizao feitas por Zermelo, em 1908 (cf. aIntroduo a Fraenkel & Bar-Hillel 1958), a teoria cantoriana permaneceria em umestado primitivo, no qual se podem destacar dois princpios norteadores gerais:

    Extensionalidade: dois conjuntos so iguais quando tm os mesmos elementos. Abstrao (ou Compreenso): toda propriedade determina um conjunto, cons-

    titudo por aqueles, e somente aqueles, objetos que gozam desta propriedade.

    Na linguagem padro da teoria de conjuntos, poderamos formular este segundoprincpio como:

    (PA) yxx y F(x), onde F(x) uma frmula na qual a varivel xpode aparecer livre, mas no y .

    O problema surge quando substitumos F(x) pela frmula x / x . Neste caso,temos uma sentena que anuncia a existncia do conjunto de todos os conjuntos queno pertencem a si mesmos:

    yx(x y x / x).(1)

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 139

    Denominemos r o conjunto cuja existncia garantida por (1). Da:

    x(x r x / x).(2)Em particular, para x = r, temos:

    r r r / r.(3)Como resultado, obtivemos um paradoxo: um conjunto r que pertence e no

    pertence a si mesmo. De (3) conclumos:

    r r & r / r.(4)Sim, encontramos uma contradio na nossa prototeoria de conjuntos, mas por

    que isto deveria nos preocupar? simples. Acontece que h um outro princpio an-tigo (cf. Bobenrieth Miserda 1996, passim, em especial cap. V-2) que afirma:

    Pseudo-Escoto: de duas proposies contraditrias deduz-se qualquer outraproposio.

    Poderamos formular este princpio aqui por meio do seguinte esquema:

    (PE) ( & ) .Este esquema facilmente demonstrvel em uma ampla classe de lgicas, classe

    esta que inclui a lgica clssica axiomatizada por Russell e Whitehead nos PrincipiaMathematica, em 1910. Recorde-se que frequente a presena, em lgicas minima-mente expressivas, da regra de Modus Ponens, (MP), segundo a qual a partir dademonstrao de esquemas e podemos inferir . Neste caso, de (4), (PE)e (MP) poderamos inferir imediatamente a validade de um esquema arbitrrio.Portanto, numa teoria clssica que contenha uma contradio, qualquer frmula dalinguagem subjacente a esta teoria fatalmente demonstrvel.

    Ao tomar conhecimento da construo russelliana, Frege viu ruir sua tentativade fundamentar a matemtica. Dedekind, que trabalhava igualmente sobre os fun-damentos da aritmtica, interrompeu temporariamente seu trabalho. A fim de evitaruma formulao especfica do paradoxo, Russell (1996, Ap. B) propusera sua com-plexa Teoria dos Tipos, mas acabou confessando seu temor de que ela fosse incapazde resolver outras verses do mesmo paradoxo. A sentena que fecha os Principles a seguinte:

    Qual seria a soluo completa desta dificuldade eu no logrei descobrir; en-tretanto, como ela afeta os prprios fundamentos do raciocnio, eu diligen-temente recomendo o seu estudo a todos os que se interessam pela lgica.(Russell 1996: 528)

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 140 Joo Marcos

    De fato, vrios outros paradoxos semelhantes ao de Russell foram sendo formu-lados a seguir, o que levou Poincar a instar a comunidade matemtica, em 1908,no IV Congresso Internacional de Matemtica, em Roma, a encontrar uma solu-o para esta crise que parecia abalar seriamente os fundamentos da matemtica.Naquele mesmo ano, Wittgenstein tomaria conhecimento dos trabalhos de Russell,e em breve ele decidiria abandonar de uma vez por todas sua inteno de seguircarreira como engenheiro aeronutico para estudar matemtica e lgica (cf. Monk1995). Ao fim e ao cabo, a matemtica redundaria em alimento essencial para suaprimeira filosofia.

    Anos mais tarde, de 1929 a 1944, quase metade da obra produzida por Wittgen-stein trataria da filosofia da matemtica, e mais de uma vez ele se referiria a estetrabalho como a sua contribuio principal (cf. o verbete Matemtica, em Glock1998). Contudo, uma boa parte das observaes e comentrios produzidos por Witt-genstein nesta poca so por demais heterodoxos, e podem facilmente nos conduzir impresso de que tivemos o nosso bom senso ultrajado (cf. Wright 1980: 295, etambm Wrigley 1980).

    Nesta nova fase de sua filosofia, Wittgenstein afirma que sua tarefa no ata-car a lgica de Russell de dentro, mas de fora (Foundations V16), isto , ele pre-tende falar sobre matemtica sem propriamente fazer matemtica, at porque emmatemtica s podem haver problemas matemticos, e no filosficos (Grammar:369), e so estes ltimos que lhe interessam. Um bom modelo daquilo a que Witt-genstein se prope combater dado pela motivao filosfica que dera origem aoprograma de investigaes metamatemticas concebido pelo matemtico alemo Da-vid Hilbert. Tecnicamente, este programa poderia ser resumido pela tentativa de (cf.Hilbert 1926):

    (a) axiomatizao (de uma boa parte) da matemtica;

    (b) demonstrao da consistncia por meios finitrios.

    A demonstrao da consistncia da aritmtica era tida, para Hilbert, como in-dispensvel, a fim de que nos assegurssemos de que ningum ir nos expulsar doparaso criado por Cantor (cf. Reid 1996, cap. XX). Do ponto de vista clssico, dize-mos de uma certa teoria que ela inconsistente quando a partir dela podemos inferiruma contradio, e dizemos que ela trivial quando a partir dela podemos inferirqualquer frmula na linguagem a ela subjacente. claro que toda teoria trivial inconsistente, e no esquema dedutivo da lgica clssica, graas ao Pseudo-Escoto ea Modus Ponens, j sabemos que vale a recproca: toda teoria inconsistente trivial.Da o motivo pelo qual seria importante para Hilbert demonstrar a inexistncia decontradies na teoria de conjuntos: usando a teoria de conjuntos para fundamentartoda a matemtica, garantiramos a inexistncia de contradies na aritmtica, queseria por sua vez consistente, e definitivamente no-trivial.

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 141

    Tudo isto parece bastante razovel, e at mesmo um caminho natural para a ma-temtica, atravs do qual ela se mostraria mais segura. O que ento no programade Hilbert tanto incomodava Wittgenstein? No era, por certo, a tarefa de se evitara contradio, pois este um problema matemtico, enquanto a posio cotidianada contradio, ou sua posio no mundo cotidiano: este o problema filosfico(Investigaes 125). O que o perturbava era justamente o fato de que a ausnciade contradies, uma caracterstica interna ao clculo, pudesse nos conferir umasegurana externa ao clculo, isto , uma confiana maior no clculo. Isto decertoultrapassava as fronteiras do prprio clculo o programa de Hilbert no seriaportanto um programa estritamente matemtico. Mais profundamente, a crtica deWittgenstein ia contra a prpria ideia de que fosse possvel, ou mesmo necessria, afundamentao da matemtica.

    2. Teria Wittgenstein formulado a ideia de uma lgica paraconsis-tente?

    Wittgenstein teve seus dias de profeta:

    De fato, mesmo neste estgio, prevejo um tempo em que haver investiga-es matemticas de clculos contendo contradies, e as pessoas realmentese orgulharo de ter se emancipado at mesmo da consistncia. (Vienna:139, transcrito em Remarks: 332)

    Com efeito, vimos assistindo recentemente construo de clculos inconsisten-tes porm no-triviais, ditos paraconsistentes. Independente de sua motivao ou jus-tificao, os sistemas lgicos paraconsistentes tiveram sucesso em ilustrar a ideia declculos que permitem a ocorrncia de proposies contraditrias, porm ao mesmotempo evitam a construo de paradoxos como o de Russell. Eles so capazes, por-tanto, de isolar as contradies, impedindo-as de contaminar todo o resto evitamassim a trivializao que advm da inconsistncia. Mas a trivializao poderia muitobem ocorrer por outra via . . .

    Em 1939, em suas palestras em Cambridge, Wittgenstein discutira intensamenteos problemas filosficos encontrados na fundamentao da matemtica. No muitolonge dali, trs anos mais tarde, Haskell Curry (1942) apontaria uma outra via lgicaem direo trivializao. Tomemos mais uma vez o Princpio da Abstrao, (PA),da prototeoria de conjuntos, e desta vez substituamos F(x) por (x x) , onde representa uma frmula arbitrria. Temos ento:

    yxx y (x x ).(5)Denominemos c o conjunto de cuja existncia trata (5). Da:

    xx c (x x ).(6)Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 142 Joo Marcos

    Em particular, para x = c, temos:

    c c (c c ).(7)Da bi-implicao em (7) conclumos:

    c c (c c );(8)(c c ) c c.(9)

    Aqui entra em cena um outro princpio, o qual formularamos por meio do se-guinte esquema:

    Princpio da Contrao (Cont): ( ) ( ).

    Ora, de (Cont) e de (8), por Modus Ponens (MP), segue:

    c c ,(10)e de (9) e (10), por (MP), temos:

    c c.(11)Mas de (10) e (11), aplicando novamente (MP), temos:

    .(12)

    Mostramos assim que a nossa prototeoria de conjuntos trivial, mesmo sempassar pela contradio. Observe que o Princpio da Contrao e a regra de ModusPonens so vlidas em sistemas to fracos quanto a parte positiva do Clculo Intuici-onista de Heyting o paradoxo de Curry parece ser irrecorrvel.1 A forma irrestritado Princpio da Abstrao e a lgica clssica so portanto incompatveis, isto , no possvel manter ambas e ao mesmo tempo escapar trivializao. Mantendo a l-gica clssica subjacente, a nica sada portanto restringir aquele princpio, que o que faz, por exemplo, a teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel, ZF. Nesta teoriapodemos ainda formar conjuntos que sejam a extenso de certas propriedades, massomente a partir de outros conjuntos j dados:

    Princpio Restrito da Abstrao (PRA): zyxx y F(x) & (x z).Uma consequncia incmoda que agora j no mais possvel demonstrar a

    existncia do conjunto binrio {x , y} formado por x e y , do conjunto unio, doconjunto das partes de um conjunto dado, do conjunto vazio, de conjuntos infini-tos. Para assegurar seu poder expressivo, ZF deve contar com outros axiomas alm

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 143

    daqueles que garantem a extensionalidade e a forma restrita da Abstrao, (PRA).Outros sistemas de teoria de conjuntos existem, tais como o de Kelley-Morse, o devon Neumann-Bernays-Gdel, e o de Quine. Todos tm cores diferentes, mas es-sencialmente o mesmo sabor: eles resolvem os problemas dos paradoxos tambmimpondo restries sobre a frmula F(x), seu domnio ou sua forma. Assim comoa Teoria dos Tipos de Russell, estes sistemas so construdos de modo a evitar osparadoxos que surgem da auto-referncia. Da retira Wittgenstein a seguinte lio:Devemos s vezes pr restries expresso da generalidade de modo a evitar quesejamos obrigados a extrair consequncias indesejveis disto. (Zettel 692)

    Por outro lado, temos ainda a alternativa de manter a forma irrestrita do Prin-cpio da Abstrao, modificando agora a lgica subjacente ao nosso sistema, subs-tituindo-a por uma lgica paraconsistente que evite tambm a trivializao no de-corrente da contradio (cf. por exemplo Carnielli 1998). H diversas maneiras dese fazer isso, e a fora da nossa prototeoria de conjuntos pode ser assim plenamenterestabelecida. Em tais teorias paraconsistentes de conjuntos as contradies seriamno apenas permitidas e controladas, como poderiam ser diretamente estudadas conjuntos como o de Russell ou o de Curry poderiam existir sem gerar paradoxos epoderamos at mesmo investigar suas propriedades.

    Consideremos agora o seguinte princpio:

    Princpio da No-Contradio: proposies contraditrias no podem sersimultaneamente verdadeiras.

    Este era para Aristteles o mais seguro de todos os princpios lgicos (vide se-o 5). Segundo da Costa, uma formulao esquemtica para este princpio poderiaser a seguinte:

    (PNC): ( & ).Na lgica clssica os princpios da No-Contradio, (PNC), e do Pseudo-Escoto,

    (PE), so equivalentes. No entanto, importante ressaltar que a construo de umalgica paraconsistente funda-se mais na rejeio da validade de (PE) do que na de(PNC).2 Com efeito, fcil encontrar exemplos de lgicas trivalentes tais que (cf.Marcos 1999):

    a) vale (PE) mas no vale (PNC): 3;b) vale (PNC) mas no vale (PE): J3;c) no vale (PE) nem (PNC): P1 e P2.

    Destas lgicas, a nica que no diramos paraconsistente 3. Mas o que h de es-pecial em lgicas paraconsistentes e que as fazem rejeitar, pelo menos parcialmente,(PE) e, em alguns casos, tambm (PNC)? No mnimo, o que entendemos pelo sm-bolo de negao aqui deve diferir do que entendemos por negao no caso clssico.Um artifcio comum semntica de diversas lgicas paraconsistentes de tomar o

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 144 Joo Marcos

    operador de negao mais ou menos como um operador modal: sua sada no funo da entrada, de modo tal que possamos interpretar como verdadeiras tantouma frmula quanto sua negao, (cf. por exemplo Marcos 1999, sees 2.2 e2.3.1).3 Vemos assim que as lgicas paraconsistentes no tm uso apenas na ilustra-o da possibilidade de existncia de teorias no-triviais mesmo que inconsistentes,e no estudo direto das propriedades destas teorias; com efeito, temos aqui esboadauma outra caracterstica notvel destas lgicas: a possibilidade que nos do de explo-rar o significado e o funcionamento da negao. Ora, se em uma tal lgica pudermosasseverar uma frmula do tipo & , ento o que devemos entender da negaoj no pode ser mais o que costumava ser, e o seu funcionamento no clculo defi-nitivamente no ser mais o mesmo.4 Mas em geral no pretendemos interpretar anegao paraconsistente como apenas mais um operador modal, ou um conectivounrio qualquer exigimos normalmente que ela, alm disso, apresente algumaspropriedades interessantes, que a caracterizem. Em suma, se por um lado devemosespecificar critrios negativos para a negao, de modo a obter uma negao para-consistente, por outro lado devemos especificar critrios positivos, de modo a obteruma negao paraconsistente (cf. Bziau 2000).

    A respeito do comportamento da negao, tambm Wittgenstein tinha suas intui-es pessoais. O modelo que ele veio esmerando desde a poca do Tractatus parececonsistir no que poderamos denominar uma viso explosiva da negao aliada auma viso cancelativa da contradio (cf. Goldstein 1989: 5412). Assim, Wittgen-stein entendia que uma proposio atmica p se referia a um objeto, que p sereferia a todos os objetos que no fossem p, mas p & p no se referia a objeto al-gum. Mas s mesmo nas Investigaes (54757) que Wittgenstein se manifestouclaramente contra a ideia de que devesse haver algo em comum a toda negao, isto, de que no fundo toda negao devesse ter uma essncia, e compartir um mesmosignificado.

    pela negao que se chega contradio. Mas e a consistncia? Talvez aqui alinguagem tenha exercido seu feitio. Em alemo, o termo para contradio Wi-derspruch, e o termo para consistncia Widerspruchfreiheit, literalmente, que estlivre de contradio. Isso pode ter inspirado Hilbert, identificando inconsistncia etrivialidade, a preocupar-se to-somente com a possvel presena de contradies noclculo, sem imaginar que a trivialidade pudesse ser alcanada por um outro cami-nho, como mostrou o paradoxo de Curry. Enquanto isso, desconhecendo igualmenteo resultado de Curry, Wittgenstein criticava a importncia exagerada que os mate-mticos formalistas depositavam na demonstrao da consistncia, e a hostilidadeque apresentavam com relao contradio. Ele caracterizava o seu prprio ob-jetivo como o de alterar a atitude em face da contradio e das demonstraes deconsistncia. (No mostrar que esta demonstrao mostra algo desimportante. Como que poderia ser assim?) (Foundations II82)

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 145

    Entre as principais convices s quais Wittgenstein acreditava estarmos inclina-dos, e que ele desejava alterar, esto (cf. Wright 1980: 2967):

    (a) Um clculo com uma contradio de algum modo essencialmente defeituoso.

    (b) Quando uma contradio vem tona, algum tipo de ao remediadora nos racionalmente exigida no podemos apenas deixar estar.

    (c) H uma tal coisa como a lgica ou a teoria de conjuntos correta, e os paradoxosmostram que no a encontramos.

    (d) Para qualquer ramo particular da matemtica, desejvel que ele seja arru-mado de tal forma que as contradies possam ser evitadas mecanicamente.

    (e) As demonstraes de consistncia so necessrias ou ao menos desejveis.Um sistema para o qual tal demonstrao no foi apresentada, ou no obte-nvel, algo inseguro.

    (f) Uma contradio oculta to ruim quanto uma contradio revelada. Umsistema contendo uma tal contradio totalmente estragado por ela.

    Segundo Wittgenstein,

    veremos a contradio sob uma luz bastante diferente ao olharmos parasua ocorrncia e suas consequncias como que antropologicamente e aoolharmos para ela com a exasperao do matemtico. Quer dizer, a veremosde maneira bastante distinta se meramente tentarmos descrever como a con-tradio influencia os jogos de linguagem, e se a virmos do ponto de vistado legislador matemtico. (Foundations II87)

    O que o filsofo realmente almeja mudar o nosso olhar. Agora, se tomarmos letra a sua predio de que apenas uma mudana de olhar j seria suficiente parapromover a emancipao da consistncia, ento parece que Wittgenstein um dosproponentes do paradigma da paraconsistncia (cf. Goldstein 1989: 541).

    Se ele nos tivesse dito ao menos como proceder! No entanto, como fica patente,Wittgenstein no teve sucesso em colocar o problema de se isolar uma contradioem termos logicamente viveis, isto , ele no formulou realmente a ideia de umalgica paraconsistente (e talvez ele nem a tivesse aceito se a houvera conhecido)(cf. da Costa & Marconi 1989: 24, nfase nossa).

    3. Seria possvel formul-la a partir de sua obra?

    Uma contribuio fundamental da paraconsistncia ter sido a distino entre in-consistncia e trivialidade: enquanto a primeira uma caracterstica no mximoindesejvel do clculo, a segunda representa a sua runa, pois o clculo deixa de

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 146 Joo Marcos

    fazer a diferena (cf.Marconi 1984: 336). Seu mote dado por da Costa, um deseus fundadores, que afirma que do prisma sinttico-semntico, toda teoria mate-mtica admissvel, desde que no seja trivial (da Costa 1959: 18).5 Gilles-GastonGranger descreve a lgica paraconsistente como um recurso provisrio ao irracio-nal, por manter um indcio do racional [sic], que a condio de no-trivialidade,e outro indcio do irracional, que a presena possvel de contradies, presenaesta a ser justificada filosoficamente (cf. Granger 1998: 175). A diferena capitalno caso de Wittgenstein que o filsofo no aborda a questo da trivialidade, epode-se duvidar mesmo se Wittgenstein, tendo bem ponderado a constituio deuma nova matemtica, de um novo clculo contraditrio, teria considerado comopossvel e apresentando algum interesse a formulao de uma lgica da contradio,a formulao de suas regras (Granger 1998: 1789).

    Mas afinal, o que Wittgenstein realmente prope que faamos com as contradi-es? A contradio deve ser vista no como uma catstrofe mas como um muroindicando que no podemos entrar aqui (Zettel 687). Para a tarefa de construirum sistema dedutivo inconsistente porm no-trivial, Wittgenstein oferece a intri-gante sugesto de que deveramos prescrever que nenhuma concluso se extraia dacontradio. No sistema que ele tem em mente h dois tipos de regra, permisses eproibies (Goldstein 1977: 371). Se verdade que tudo segue de uma contradio,ento tomemos como regra que no hemos de tirar concluses quaisquer a partir decontradies (Lectures XXI: 209). Permitiremos contradies em nossas teorias, masmesmo assim no admitiremos que tudo o mais siga da.

    Podemos talvez considerar que tais comentrios de Wittgenstein so e no soparaconsistentes (Granger 1998: 176). O trabalho de montar sistemas lgicos ca-pazes de evitar a ocorrncia das condies contraditrias que geram paradoxos taiscomo o de Russell na verdade um empreendimento completamente distinto da-quele a que se prope Wittgenstein. Assim que, em um primeiro momento, paraWittgenstein, a soluo para o paradoxo consiste em detectar a condio contra-ditria, e livrar-se das analogias imprecisas (Goldstein 1983: 153). As antinomiasho de desaparecer por meio de uma anlise, no por meio de uma demonstrao(Vienna: 1212). Assim como os problemas filosficos, elas devem ser dissolvidas.Isto pode ser feito, por exemplo, ao demonstrarmos que as sentenas que geram osparadoxos no tm uso no jogo da assero, sendo portanto sentenas sem sentido, efalhando consequentemente em constituir proposies. Como somente proposiespodem ser verdadeiras ou falsas, estas sentenas no so nem verdadeiras nem fal-sas, e sua conjuno no forma uma contradio (Vienna: 124). Com efeito, a ideiade que as contradies no seriam proposies pode ser encontrada em toda a obrade Wittgenstein, desde o Tractatus (compare, por exemplo, 4.064 com 4.461, ou4.01 com 4.462, ou finalmente 3.13 e 3.31 com 6.11), at sua filosofia posterior:a contradio de Russell poderia ser entendida como supra-proposicional, algo que

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 147

    se eleva como uma torre sobre todas as proposies e olha para ambas as direes,como uma cabea de Jano (Foundations III60).

    Na segunda filosofia de Wittgenstein, o significado, ou o sentido, no so pro-priedades das sentenas abstradas de um jogo de linguagem, jogo este que servede articulao entre linguagem e realidade. Da a afirmao de que voc no com-preende a proposio at que tenha encontrado a aplicao (Foundations IV25).Wittgenstein insiste: a nica razo que poderia nos levar a evitar as contradiesseria sua falta de utilidade nos nossos jogos de linguagem cotidianos. Pois o jogo dacontradio s pode ser, no mximo, um jogo de linguagem que nos intil (Lectu-res XXI: 2079). Em certos momentos Wittgenstein assume uma posio extremadae afirma que nos jogos teis no h contradio, at porque no a permitiramos(Foundations II80). No mais das vezes, porm, ele tenta imaginar situaes em queas contradies fossem admissveis, ou at mesmo desejveis. Nos nossos jogos delinguagem mais simples, por exemplo, poderamos ordenar a algum: Feche a portae no feche a porta. Ora, se nosso propsito fra o de produzir espanto e indeciso,que sucesso! (Foundations III57) At mesmo para o Paradoxo do Mentiroso euestou mentindo deveramos ser capazes de imaginar vrios usos na nossa vida(Foundations V30). Com efeito, podemos atribuir diversos usos diferentes con-tradio nos nossos jogos de linguagem. Em teoria, podemos at mesmo acrescer-lhe novos significados e transferir alguns de seus usos para a matemtica (LecturesXVIII: 1746). O importante deixar claro que no temos razes a priori para sim-plesmente proibir as contradies, pois elas poderiam eventualmente ser teis emalgum jogo. Wittgenstein aqui no nos brinda exatamente com uma rica dieta deexemplos indicando quais prticas que incluem a contradio estariam entre os jo-gos que as pessoas realmente jogam. Ele sugere, porm, alguns usos possveis, porexemplo, caso desejssemos descrever a mudana por meio da contradio, e dis-sssemos de um objeto em movimento que ele est e no est em um determinadolugar (Foundations V8), ou caso desejssemos demonstrar que tudo neste mundo incerto (Foundations II81).

    Poderamos imaginar situaes em que algum se orgulhasse de ter conseguidoproduzir uma contradio onde outros falharam. Ou que as pessoas jamais utilizas-sem os paradoxos para nada, mas estivessem felizes de viver suas vidas na vizinhanade uma contradio (Foundations II81). J no caso em que desejssemos produziruma contradio com propsitos estticos, por exemplo, aceitaramos com hesitaouma demonstrao de consistncia, pois ela evidenciaria para ns a esterilidade denossos esforos (Foundations II82).

    Em suas palestras em 1939, Wittgenstein tinha como aluno o matemtico inglsAlan Turing, e este quem o chama de volta matemtica. O que acontece, perguntaTuring, se temos um sistema de clculo que inconsistente, mas no qual a contradi-o est oculta? Alguma coisa ruim pode ocorrer, como por exemplo ao aplicarmos

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 148 Joo Marcos

    este sistema ao clculo de uma ponte que, aps construda, cai (Lectures XXII: 211).Poderamos abonar a empresa construtora apontando um defeito intrnseco do cl-culo utilizado? Poderia ter ocorrido um erro da engenharia e no do engenheiro? Oclculo trivial ainda um clculo? Wittgenstein se irrita profundamente com a ideiade que possa haver uma contradio oculta no clculo. Diz ele: Se a contradio estto bem escondida que ningum a nota, porque no deveramos denominar o que fa-zemos agora um autntico clculo? (Foundations V12) Se temos um mtodo paraencontrar tal contradio oculta, ento basta aplic-lo. Ao encontr-la, remendamosa teoria, se for o caso, de modo a evit-la (Vienna: 120, 1246, 1945 e 199200).Mas se no dispomos de um critrio de busca, Wittgenstein sustenta que no fazqualquer sentido dizer que a contradio est oculta (Vienna: 201, 174 e 1956).Por outro lado, talvez ns simplesmente no estejamos conseguindo enxerg-la equem sabe no fim das contas ela nem seja to perigosa assim! (Foundations II88)

    Em um sistema gramaticalmente elucidado, no h contradies ocultas,pois uma regra deve ser e dada para se encontrar contradies. Uma con-tradio s pode estar oculta aos sentidos ou ento oculta por assim dizerna barafunda das regras, na parte desordenada da gramtica. (Grammar:305)

    As respostas de Wittgenstein a Turing so realmente bem pouco satisfatrias.Turing duvidava, por exemplo, de que fosse possvel, como queria Wittgenstein, es-tabelecer uma regra que nos impedisse de tirar concluses da contradio, ou quepudssemos evitar a trivializao do clculo simplesmente evitando usar uma contra-dio conhecida: haveria outros caminhos, sem passar diretamente pela contradio(Lectures XXII: 220), e caminhos pelos quais talvez nem percebssemos estar pas-sando. Certamente no faria sentido, como propunha Wittgenstein, tomar a partesaudvel do clculo, de que dispnhamos antes da inconsistncia aparecer (Vienna:1967). Ora, de fato h uma boa parte do clculo de Frege, por exemplo, que in-depende das premissas contraditrias, mas fato tambm que a contradio podeainda nele ser gerada sem grande esforo. Ficava difcil assim defender a proposta deque no deveramos tirar concluses quaisquer de uma contradio (Lectures XXII:220), ou de que deveramos encontrar um modo de no prosseguir a partir de umacontradio (Lectures XXIII: 223), ficava difcil defender que uma teoria inconsis-tente pudesse ser no-trivial. Como deveramos proceder, professor? Voc pareceestar dizendo que se usarmos um pouco de bom senso ningum se sair mal, in-sinuou Turing. No, redarguiu Wittgenstein, absolutamente NO isso o que euquero dizer (Lectures XXII: 219). Mais adiante ele dir que no o senso comum,mas quem sabe algo parecido: a nossa educao, ou treinamento, talvez (LecturesXXIII: 223). Contudo, numa carta a Moore, em 1944, Wittgenstein afirma claramenteque as contradies deve ser resolvidas pelo senso comum (apud Hallett 1977:

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 149

    656). Isto certamente condiz ao esprito do filsofo cujo slogan era: No trate o seusenso comum como um guarda-chuva. Ao entrar em uma sala para filosofar, no odeixe do lado de fora, mas o traga consigo. (Lectures VI: 68)

    Uma analogia que seduz longamente Wittgenstein a do clculo que contmuma contradio visto como um corpo que contm o germe de uma enfermidade.Acredita-se que uma contradio oculta, tal qual uma doena oculta, cause danos,embora (e talvez justamente porque) ela no se mostre claramente (Grammar:303). Ento, argumentaramos, encontrar uma contradio em um sistema, assimcomo um germe em um corpo que em caso contrrio estaria saudvel, mostraria queo sistema ou corpo como um todo est doente? De modo algum, diria Wittgen-stein (Lectures XIV: 138). A contradio nem mesmo falsifica coisa alguma. Deixe-aficar. No entre l. O que significaria dizer que o corpo poderia estar doente, po-rm no dispomos de nenhum exame possvel para verific-lo? (Remarks: 338) Aideia de que mesmo assim pudssemos estar fatalmente enfermos seria uma espciede hipocondria. Wittgenstein simpatiza mais com a comparao da contradio comum sintoma, do que com um germe. A contradio seria assim apenas um sintoma(local) da doena de todo o corpo do clculo (Foundations II80). Mas ela tambmno precisa ser sintoma de doena alguma . . .

    Um interessante exemplo de Wittgenstein ajuda a esclarecer uma conduta poss-vel para o caso em que encontrssemos uma contradio no nosso jogo:

    Suponha que haja uma contradio nos estatutos de um determinado pas.Poderia haver uma lei segundo a qual em dias de comemorao o vice-pre-sidente devesse se sentar prximo ao presidente, e uma outra lei segundoa qual ele devesse se sentar entre duas damas. Esta contradio pode pas-sar desapercebida por algum tempo, se o vice-presidente estiver constante-mente doente nos dias de comemorao. Mas eis que um dia ocorre umacomemorao e ele no est doente. Ento o que fazemos? Eu diria: Preci-samos nos livrar desta contradio. Tudo bem, porm isto corrompe o quefazamos antes. De maneira alguma. (Lectures XXI: 210)

    Neste caso, at que tivssemos encontrado a contradio, at o dia da comemora-o qual o vice-presidente finalmente compareceu, no precisamos nos preocupar.Ao encontr-la, fazemos finalmente algo a respeito, e mexemos nos estatutos. Maseles j no eram estatutos, mesmo com a contradio embutida? E no funcionavamperfeitamente? O leitor talvez se divirta em observar que o exemplo acima igual-mente interessante por no figurar uma contradio inevitvel, tal como ocorre como conhecido Paradoxo do Barbeiro. Com efeito, o presidente (ou o barbeiro) poderiaser uma mulher, e neste caso no haveria, em princpio, qualquer dilema!

    Ao viajar em uma estrada encontro um precipcio e decido voltar. Mas isto no viajar? No caso do sistema matemtico no qual encontramos uma contradio, serque no estvamos fazendo matemtica antes? (Foundations II81) Bem, decerto

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 150 Joo Marcos

    estvamos fazendo matemtica, mas matemtica inconsistente. Sobre isto opinouCurry (1983): A apresentao dos paradoxos [. . . ], a qual foi feita na linguagemuniversal, levou muitas pessoas a afirmar que a linguagem universal inconsistente.De fato ela , se usada sem cuidado, e de se presumir que a falta de cuidado causedanos a qualquer tipo de atividade.

    O que nos teria impedido at agora de caminhar no sentido da trivializao? Umanjo bom, talvez. Pode-se afirmar, creio eu: um anjo bom sempre ser necessrio, oque quer que voc faa. (Foundations V13)

    A Metamatemtica de Hilbert pretendia, por meio das demonstraes de con-sistncia, demonstrar que no haveria contradies ocultas no sistema. Ora, umacontradio oculta que no tivesse simplesmente passado desapercebida nem fosseencontrvel por meio de um critrio preciso deveria se tratar, segundo Wittgenstein,de uma contradio acrescida ao sistema por um tipo novo de construo, no pre-visto como no caso da construo dos enunciados auto-referentes que geram osparadoxos. O filsofo prope que no atentemos a construes como a de Russell;deveramos antes rejeit-las (Lectures XXIII: 222-5). Da mesma forma, Wittgensteinacreditava que nenhuma descoberta metamatemtica poderia produzir um sistemaimune possibilidade destas construes s mesmo um anjo bom poderia faz-lo.

    4. Uma mudana de olhar?

    Wittgenstein realmente acredita que o matemtico cria os problemas nos quais ele seperde. O matemtico um inventor, no um descobridor, afirma o filsofo (Foun-dations I167). A respeito do mtodo da diagonal de Cantor, por exemplo, ele dizque tal procedimento no tem qualquer emprego prtico; mais ainda, seu empregono est para ser descoberto, mas inventado (Foundations I9). Do matemtico queencontrou uma contradio no clculo, Wittgenstein diz que adicionou algo ao cl-culo, que criou um novo clculo (Lectures XXIII: 225).

    O matemtico cria essncia (Foundations I32). Mas na segunda filosofia deWittgenstein a essncia aquilo que nos dado pelos critrios, normas e convenesgramaticais, ou seja, a essncia est expressa na gramtica (Investigaes 371).A essncia de um termo da linguagem no uma espcie de entidade, mas algo quenos dado pelo esclarecimento gramatical deste termo, cuja significao se definepela multiplicidade de seus usos na linguagem. Por isso, o que realmente preocupao filsofo o momento em que o matemtico comum se permite ultrapassar as fron-teiras do discurso matemtico formal, e passa a interpretar seus objetos de estudo efalar a respeito de sua objetividade e realidade.

    Um tal matemtico por certo pensa que a utilidade essencial dos sistemas ma-temticos puros descrever determinadas estruturas conceituais e que a noo de

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 151

    verdade para estes teoremas corresponde a este ensejo. Alfred Tarski, em seu traba-lho fundamental sobre o conceito semntico de verdade, afirma:

    Eu no penso que a nossa atitude frente a uma teoria inconsistente mudariamesmo que decidssemos por alguma razo enfraquecer o nosso sistemalgico de modo a privar-nos da possibilidade de derivar toda sentena dequaisquer duas sentenas contraditrias. (Tarski 1944)

    Sob este ponto de vista, a inconsistncia seria portanto um desastre, simples-mente por no estarmos dispostos a pensar nas estruturas como inconsistentes.O matemtico comum no pensa que a matemtica um jogo, e que como um jogoela no precisa a priori corresponder a qualquer padro especfico, a menos que lheincumbamos da tarefa de descrever a situao presente (Foundations II82), o quena matemtica aplicada a qual j era conhecida de Wittgenstein consistia emevitar contradies e no us-las. Por que razo, ao descobrirmos que este jogo inconsistente, ele deixaria de ser jogvel? Ou diramos ento que nos enganramos,e que ele de fato nunca fra jogvel? (Foundations V28) Tal o matemtico que,como Tarski, no considera aceitveis as teorias inconsistentes, mesmo que no-triviais, por crer que tais teorias devam conter sentenas falsas. Mas Wittgensteinest aqui para fazer a crtica da tendncia de se enxergar a verdade do Princpioda No-Contradio como algo que deva seguir obrigatoriamente do significado danegao e da conjuno (produto lgico) e assim por diante (Lectures XIX 184).Wittgenstein rejeita qualquer distino entre o significado e o uso real dos smbo-los, e acrescenta: O sistema de regras determinando um clculo determina assimtambm o significado de seus termos. (Remarks: 178)

    Wittgenstein se refere com mofa ao temor e venerao supersticiosa dos mate-mticos em face da contradio (Foundations Ap. I17). Na realidade, o nico inte-resse que ele encontra na contradio inventada [sic] por Russell est no tormentoque ela tem proporcionado s pessoas (Foundations Ap. I13). Contudo, as ilaesque elas retiram dali, digamos, sobre o carter transcendente da contradio, o graude certeza ou de verdade dos sistemas de clculo, e outros quetais, isto sim preo-cupa o filsofo. Pois o matemtico comum parece crer que entre dois sistemas, umque reconhecidamente consistente, e outro cuja consistncia no foi confirmada, oprimeiro tem fundamento mais slido, ou metafisicamente mais verdadeiro do queo segundo. Wittgenstein observa que uma coisa usar uma tcnica matemtica queconsista em evitar contradies, outra bem diferente filosofar contra a contradiona matemtica (Foundations III55). preciso extrair o espinho metafsico aquiencravado (Foundations V9).

    Por que as pessoas tm medo das contradies? Acima de tudo, o que deve im-pressionar o observador incauto que os matemticos estejam continuamente ater-rorizados por uma coisa, que um tipo de pesadelo para eles, que a contradio

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 152 Joo Marcos

    (Vienna: 131). Wittgenstein at se dispe a compreender que temamos a contra-dio fora da matemtica, porm no dentro dela. Pois se uma ponte cair, nossoerro ter sido simplesmente o de ter feito uso de uma lei natural errada. Todavia,Turing afirma que no podemos ter confiana no nosso clculo at que tenhamoscerteza de que nele no h contradies ocultas. Wittgenstein insiste que ns nuncarealmente usamos as contradies: se algum usasse o paradoxo de Russell paramultiplicar, dificilmente diramos que ele est multiplicando. Turing reformula suaobjeo: no sabemos se a ponte no cair se usarmos um clculo sem contradies,mas se usarmos o clculo com contradies, algo certamente dar errado! (LecturesXXII: 2179)

    Seriam realmente necessrias as demonstraes de consistncia? A demonstra-o de consistncia no pode ser uma questo de vida ou morte para a matemtica.(Vienna: 141) Acredita-se que a demonstrao de consistncia seja necessria, poisem caso contrrio corremos o risco de cair no atoleiro a cada passo (Foundati-ons II78). Mas as pessoas no parecem sentir cotidianamente tamanha necessidadede demonstraes de consistncia, e depositam sua inteira confiana em sistemasmatemticos mesmo que lhes falte esta demonstrao. Se uma contradio fosse re-almente encontrada na aritmtica, isso nos mostraria apenas que uma aritmticacom uma tal contradio pode nos servir muito bem (Foundations V28), como temde fato servido. Caso tal contradio aparecesse decerto no estaramos dispostosa abandonar todos os clculos feitos pelos matemticos ao longo dos sculos, nemmuito menos diramos que eles no teriam sido clculos legtimos (Remarks: 346).O que Wittgenstein pretende combater so as convices de que a presena de umademonstrao de consistncia deveria nos dar necessariamente mais certeza do quea sua ausncia, de que poderamos dispor de um mecanismo que nos protegesse con-tra a contradio, de que no deveramos confiar em um clculo que no tenha sidodemonstrado consistente, de que h tal coisa como um clculo lgico correto, livrede contradies, de que a demonstrao de consistncia tem como propsito prticonos dar motivo para a predio: Nenhuma desordem surgir (Foundations II82 a86).

    Em conversa com Waismann, em dezembro de 1931, Wittgenstein lhe ouve for-mular o problema da consistncia:

    Como saberei que uma proposio que demonstrei por mtodos transfini-tos no pode ser refutada por um clculo numrico finito? Se, por exemplo,um matemtico encontrar uma demonstrao do ltimo Teorema de Fermatque faa uso essencialmente de mtodos transfinitos digamos o Axiomada Escolha, ou o Princpio do Terceiro Excludo na forma: ou a conjetura deGoldbach vlida para todos os nmeros [pares maiores que 2] ou h umnmero para o qual ela no vale como sei que tal teorema no pode serrefutado por um contra-exemplo? Isto no nem um pouco auto-evidente. E

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 153

    no entanto impressionante a confiana que os matemticos depositam nosmodos transfinitos de inferncia, a tal ponto que, assim que uma tal demons-trao for conhecida, ningum mais tentar descobrir um contra-exemplo.Surge agora a questo: seria esta confiana justificvel? Ou seja, estaramosseguros em supor que uma proposio que tenha sido demonstrada por m-todos transfinitos no poder jamais ser refutada por um clculo numricoconcreto? (Remarks: 3423)

    Embora Wittgenstein pense que este um problema mal posto, ele tece algumasconsideraes sobre vrios outros problemas que medram ao seu redor. Para Witt-genstein, o que temos um jogo, e uma aplicao do clculo consiste em tomaras proposies verdadeiras e falsas como correspondentes a posies no jogo, e asregras de sintaxe como as regras do jogo: fornecemos desta maneira a gramtica deuma linguagem. Para o filsofo parecia claro que uma contradio s poderia ocorrerentre as regras do jogo, mas no em suas configuraes. A sintaxe no pode serjustificada, no h tal coisa como a justificao para um jogo (Remarks: 3212; 3445). As regras podem nos deixar em uma situao tal que no saibamos o que fazer.Imagine duas pessoas que jogam h muitos anos uma mesma partida de xadrez.Em certo momento, um deles faz um movimento e ambos exclamam: Ganhei!Ter necessariamente um deles se enganado? Suponha que D, um famoso jogadorde futebol, dispute com G, um famoso jogador de tnis, uma espcie de partidahbrida de tnis-futebol. Em um certo momento, a bola bate na rede, e G grita:Ponto!, ao passo que D grita: Gol! Encontraremos a contradio responsvel poreste desatino? E o que faremos com ela? Enfim, devemos reconhecer que um clculo aplicvel a tudo aquilo a que ele aplicvel (Remarks: 323); mas claro que comum pouco de imaginao e boa vontade sempre podemos conceber uma aplicao.

    O que perturbava Wittgenstein no era que a contradio de Russell fosse umacontradio, mas que crescesse no corpo saudvel da matemtica como uma espciede cncer ignoto, sem objetivo ou dor. Seu principal problema era a falta de aplica-o e, portanto, de significado. Se o seu surgimento no nosso clculo to furtivo,por que deveria ela estragar tudo? E por que deveramos nos livrar dela? (Founda-tions V8) No h nada que nos force a dizer que p e no-p seja falso, isto umamera conveno. As contradies no tm que ser falsas, elas simplesmente so to-madas como falsas nos nossos jogos cotidianos. Wittgenstein no questiona o direitodos matemticos e lgicos de impor restries matemtica de modo a evitar con-tradies; o que ele quer questionar a concepo vulgar de que tal restrio nos imposta de fora.

    Durante uma certa poca, Wittgenstein pretendeu explicar porque as contradi-es no funcionam, porm pouco mais tarde rejeitou tais tentativas, por esprias.A ideia de que uma contradio no apenas no funciona, mas no pode funcionar,este era um preconceito que Wittgenstein haveria de censurar (Lectures XIX: 185).

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 154 Joo Marcos

    Ao atribuirmos um novo significado a ela ns a eliminamos, pois a contradio noest seno na sentena que a expressa. Ou talvez sejamos ns, afinal, que no deseja-mos que ela funcione (Lectures XIX: 187). Em outros momentos, Wittgenstein tinhasurtos tractatianos, e observava que, tanto quanto as tautologias da lgica, as con-tradies no so proposies significativas; elas so, ao invs, frmulas vazias, quenada dizem. No deveramos constru-las. Nas palavras do filsofo, no deveramossubstituir por h em h (Foundations V21).

    Por vezes recorremos a uma analogia mecnica para entender a contradio, ea comparamos por exemplo a uma engrenagem que emperra, e no pode se mover.Ora, Wittgenstein adverte, esta imobilidade , no mais das vezes, psicolgica. No que no possamos prosseguir, mas que no sabemos como faz-lo. Este era o perigoda analogia: pensvamos estar explicando, quando na verdade estvamos apenassubstituindo um simbolismo por outro (Lectures XVIII: 1789). Construir ou detectaruma contradio no deve invalidar o que vnhamos fazendo antes, esta contradios realmente nociva quando nos faz paralisar o clculo.

    5. O que h de comum entre as ideias de Wittgenstein e aquelasexpressas no projeto da lgica paraconsistente?

    Ao longo do livro da Metafsica, Aristteles argumenta que o Princpio da No-Contradio o mais seguro de todos os princpios lgicos, uma vez que imposs-vel que simultaneamente, e segundo a mesma relao, o mesmo atributo pertena eno pertena a um mesmo sujeito(cf. Aristteles 1986, 1005b 1825). De maneirasemelhante, no paradoxo de Russell, seria impossvel que um objeto pertencesse eno pertencesse a outro objeto, mesmo que este objeto fosse ele prprio. Insurgindo-se contra a tradio aristotlica, o matemtico polons Jan ukasiewicz publicou em1910 no Bulletin Internationale de lAcadmie des Sciences de Cracovie o artigo berden Satz des Widerspruchs bei Aristoteles (Sobre o Princpio da [No-]Contradioem Aristteles), um escrito no qual ele prope uma reviso fundamental das leisbsicas da lgica de Aristteles, reviso esta que conduziria a sistemas de lgicano-aristotlicos, do mesmo modo que a reviso das leis bsicas da geometria deEuclides, promovida por vrios matemticos do sculo XIX, conduzira a sistemas degeometria no-euclidianos.

    Para proceder sua crtica, ukasiewicz toma o texto de Aristteles no origi-nal grego, e considera trs formulaes do Princpio da No-Contradio (cf. uka-siewicz 1971):

    (a) Ontolgica: nenhum objeto pode ao mesmo tempo ser e no ser tal e tal.(b) Lgica: nenhuma proposio no-ambgua pode ser ao mesmo tempo verda-

    deira e falsa.

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 155

    (c) Psicolgica: ningum pode acreditar que um mesmo objeto possa ao mesmotempo ser e no ser.

    Postas desta forma, claro que nenhuma das formulaes acima idntica emsignificado a alguma das outras. No obstante, para Aristteles, a formulao lgicae a formulao ontolgica seriam logicamente equivalentes, dada a correlao um-a-um entre as proposies e os fatos objetivos (cf. ukasiewicz 1971: 489). Almdisso, segundo ukasiewicz, Aristteles se prope a demonstrar o princpio na suaformulao psicolgica a partir da formulao lgica, e aqui a argumentao deAristteles sofre as primeiras crticas incisivas de ukasiewicz. Mas as crticas real-mente decisivas so feitas aos argumentos por elenchus e por raciocnio ad impossibileque Aristteles, mesmo propugnando a no-demonstrabilidade do Princpio da No-Contradio, oferece para a demonstrao, ou nosso convencimento, da validadedeste princpio. Em seguida, ukasiewicz rejeita a ideia de que este princpio pudesseser mais fundamental do que os outros (cf. Aristteles 1986, 1005b 3234), j queh vrios outros princpios que dele independem, tais como aqueles que subjazem Teoria do Silogismo, alm de toda a parte positiva do clculo proposicional clssico(cf. ukasiewicz 1971: 5023). ukasiewicz conclui que uma nica formulao doPrincpio da No-Contradio poderia ser defendida, a saber:

    (d) Prtico-tica: ningum, em s conscincia, pediria (ou faria) ao mesmo tem-po p e no-p.

    ukasiewicz se justifica dizendo que, neste caso, o Princpio da No-Contradio nossa nica arma contra o erro e a falsidade, e uma marca da incompletude in-telectual e tica do homem (cf. ukasiewicz 1971: 508, nfases no original). uka-siewicz diz ainda suspeitar que talvez fosse por desejar se defender a qualquer custode seus oponentes e por tambm reconhecer este valor prtico-tico que Aristtelesteria estabelecido este princpio como um axioma final, e um dogma inatacvel (cf.ukasiewicz 1971: 509).

    interessante observar que, naquele mesmo ano de 1910, sem ter conhecimentodos trabalhos de ukasiewicz, o mdico russo Vasiliev, trabalhando na Universidadede Kazan, na Rssia o mesmo local onde anos antes seu compatriota Lobatchevskipropusera a sua geometria imaginria, no-euclidiana publicaria na prpria uni-versidade o trabalho O castnyh sudnih, o trugolnik protivopolnostj, o za-kon isklucnnogo ctvrtogo (Sobre os Juzos Particulares, o Tringulo das Opo-sies e o Princpio do Quarto Excludo), no qual ele vislumbrava a criao de umalgica imaginria no-aristotlica.6 Seguindo uma senda similar quela trilhada porukasiewicz, Vasiliev props que o Princpio do Terceiro Excludo aparecia na mentede Aristteles com o objetivo de refutar seus adversrios, e no por razes lgicas(apud DOttaviano 1992: 81).

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 156 Joo Marcos

    Por terem proposto a derrogao das leis bsicas da lgica aristotlica, uka-siewicz e Vasiliev podem sem dvida ser vistos como pais daquelas que hoje soconhecidas como lgicas no-clssicas. Mas parece que j seria demais querer v-los como precursores da lgica paraconsistente. ukasiewicz, por exemplo, ence-tou igualmente em seu trabalho uma crtica lgica filosfica tradicional que vinhasendo feita at ento, dizendo que ela simplesmente no se preocupara com as dis-tines conceituais mais finas por no operar com conceitos agudamente delineadose smbolos determinados sem ambiguidade; ao contrrio, ela afundou no charco dodiscurso fluido e vago usado na vida cotidiana (cf. ukasiewicz 1971: 94). Mas nempor isso diremos que ukasiewicz um precursor da filosofia analtica!

    Alguns anos mais tarde, o matemtico polons Stanisaw Jaskowski, discpulode ukasiewicz, tomou para si o que entendeu ser um desafio deixado pelo mestre:encontrar uma lgica interessante e suficientemente rica que acomodasse inconsis-tncias, permitindo a sua investigao consistente. Em 1948, Jaskowski publicou naStudia Societatis Scientiarum Torunensis o trabalho intitulado Rachunek zdan dlasystemw dedukcyjnych sprzecznych (Clculo proposicional para sistemas deduti-vos inconsistentes), cujo resumo inicial rezava:

    O autor discute as razes que o levam a buscar um clculo proposicionalajustado s necessidades das teorias inconsistentes. Ele analisa a soluopara este problema encontrada em vrios sistemas de lgica j existentes eoferece uma nova soluo. Ele constri um novo clculo proposicional, cha-mado discursivo (discussivo), definindo a implicao discursiva como: Se possvel que p, ento q, onde a funo possvel que p entendida deacordo com o significado dado por Lewis a ela no sistema S5. Uma srie deteoremas deste clculo apresentada, juntamente com uma lista de certasproposies que so nele refutadas. (Jaskowski 1948: 143)

    Jaskowski tomou como paradigmas o discurso e a situao de uma discusso, ese fez a seguinte questo: o caso que p? O Princpio do Terceiro Excludo, dalgica clssica, nos ensina que a resposta aqui s pode ser sim ou no, enquanto queo Princpio da No-Contradio elimina a possibilidade de que optemos por ambas asrespostas, por sim e no. Mas, raciocinou Jaskowski, quando fazemos um discurso frequente que desejemos considerar ambas as possibilidades de uma s vez. Domesmo modo, durante uma discusso, ao defendermos p devemos respeitar, poruma questo de honestidade, um oponente que afirma no-p. A lgica subjacentea esta situao no pode portanto ser a clssica, a menos que faamos algumasrestries, como abandonar o Princpio do Pseudo-Escoto (vide seo 1.). Afinal, emdiscusses reais entre oponentes srios e honestos as inconsistncias que porventuraaparecerem nem explodem nem lotam o discurso.7

    No final da dcada de 50 e incio da de 60, o lgico brasileiro Newton da Costapublicou de forma independente seus primeiros trabalhos no estudo de teorias que

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 157

    dessem suporte a contradies.8 Segundo da Costa, os principais objetivos da lgicaparaconsistente, inicialmente chamada por ele de teoria dos sistemas formais incon-sistentes, seriam (cf. da Costa 1994: 174):

    (a) Estabelecer tcnicas lgico-formais capazes de nos permitir a melhor compre-enso das estruturas lgicas subjacentes s concepes dos partidrios da dia-ltica.

    (b) Contribuir para o prprio entendimento das leis da lgica clssica.(c) Estudar o esquema da separao da teoria de conjuntos [ou, dito de outra

    forma, o Princpio Restrito da Abstrao, (PRA), vide seo 2], quando se en-fraquecem as restries a ele impostas.

    (d) Contribuir para a sistematizao e o balano de teorias novas que encerremcontradies e de antigas que, por esse motivo, foram abandonadas ou prati-camente relegadas a segundo plano.

    (e) Colaborar para a apreciao correta dos conceitos de negao e de contradio.

    Da Costa introduziu uma hierarquia de clculos proposicionais paraconsistentes(cf. da Costa 1974), estendendo-a em seguida a clculos de predicados de primeiraordem, clculos de predicados de primeira ordem com igualdade, clculos de des-cries e teorias de conjuntos inconsistentes porm no-triviais.9

    A primeira importante lio que podemos depreender do trabalho destes lgi-cos de que os princpios lgicos so to evidentes quanto as leis da geometria isto , eles no tm evidncia alguma. Wittgenstein faria observao semelhante,em suas palestras sobre a matemtica, e acrescentaria: Afirmar que a lgica auto-evidente, querendo dizer que ela produz uma impresso particular, no nos ajudaem nada (Lectures XVIII: 174). O filsofo assume que podemos negar os princpiosda No-Contradio e do Terceiro Excludo (Foundations, Ap. I18), e tambm tentaconceber situaes em que o princpio da Identidade no valeria (Foundations I132,V31, V33). Frege decerto no teria concordado com estas manobras: segundo ele,aquele que no reconhece um princpio lgico, como o da No-Contradio, padecede um tipo no diagnosticado de loucura (cf. Frege 1967: 14). Wittgenstein co-nhecia este parecer de Frege (Lectures XXI: 202), porm reiterou: As leis da lgica,por exemplo, Terceiro Excludo e [No-]Contradio, so arbitrrias. Esta afirmaorepugna um pouco, no obstante verdadeira. (1932-1935: 71)

    Com relao filosofia da paraconsistncia, possvel fazer uma separao entreduas posturas distintas: a primeira delas, que denominaramos posio fracamenteparaconsistente, admite inconsistncia em algumas teorias no-triviais, ou seus an-logos, tais como a linguagem ou o pensamento, a outra, a posio fortemente pa-raconsistente, tambm denominada dialeteica, admite contradies no mundo real(cf. Priest & Routley 1989: 4). No difcil filiar Wittgenstein na primeira escola, mas

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 158 Joo Marcos

    h quem afirme que possvel mesmo apontar tendncias dialetestas na segunda fi-losofia de Wittgenstein, tendncias que se mostravam to maiores quanto maioresse tornavam as indisposies do filsofo com relao s correntes fundacionalistasem matemtica (cf. Goldstein 1989: 5517).

    Ambas as posies fraca e fortemente paraconsistentes tm sido extensamentecriticadas por filsofos, por variadas razes. Como da Costa apontara j em 1958:

    Em virtude do clssico Princpio da [No-]Contradio, uma proposio esua negao no podem ser verdadeiras ao mesmo tempo; da no ser pos-svel uma teoria vlida do ponto de vista filosfico (ou lgico) encerrar con-tradies internas. Supor o contrrio constituiria, aparentemente, um errofilosfico. (da Costa 1958: 67)

    Filsofos como Wright (1980: 298, 303 e 310) sustentam que os sistemas in-consistentes so duplamente problemticos: (1) com relao sua aplicabilidade, e(2) com relao sua noo de verdade. No que concerne (1), Wright argumentaque sistemas inconsistentes devem eventualmente acabar por permitir a infernciade concluses falsas a partir de premissas verdadeiras. Verificamos contudo (cf. porexemplo Marcos 1999, em especial sees 2.2.1 e 2.3.3.1) que nas semnticas quetemos usualmente associadas s lgicas paraconsistentes isto simplesmente no ocaso possvel de fato oferecer-lhes semnticas adequadas (isto , corretas e com-pletas), nas quais este fenmeno no ocorre.10 Com relao a (2), Wright acreditaque sistemas inconsistentes sejam simplesmente incapazes de descrever quaisquertipos de estruturas, reais ou hipotticas. Neste sentido, est claro que ele no consi-dera a possibilidade de que as estruturas sejam elas prprias inconsistentes, pormno-triviais.

    J no incio do sculo XX, Meinong propusera uma teoria de objetos que incluaobjetos inconsistentes, isto , objetos com propriedades contraditrias, tais como oquadrado redondo, o maior nmero primo, ou o conjunto construdo por Russell emseu paradoxo. Russell criticou apropriadamente a teoria de Meinong por violar umacerta forma do Princpio da No-Contradio (cf. Priest & Routley 1989: 245), masest claro que tal crtica perderia todo o vigor caso fra utilizada na construo dateoria meinongiana uma lgica paraconsistente na qual aquele princpio no fosse,em geral, vlido. No por acaso, observamos que j ukasiewicz se inspirara na teoriameinongiana em sua reviso ao Princpio da No-Contradio (cf. ukasiewicz 1971:5067).

    No que diz respeito ontologia das lgicas paraconsistentes uma interessantetese foi defendida por da Costa (1982, cf. ainda o verbete Paraconsistency, em Burk-hardt e Smith 1991). Resgatando a mxima de Quine (1953, cap. I): Existir sero valor de uma varivel donde o comprometimento ontolgico de nossas teoriasseria medido pelos domnios de suas variveis, isto , existiria tudo aquilo que pode

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 159

    ser tomado como o valor de uma varivel , da Costa props a seguinte ampliao:Existir ser o valor de uma varivel em uma dada linguagem com uma determinadalgica. Assim, da Costa abre espao para o aparecimento de diferentes ontologiasbaseadas em diferentes tipos de lgica, analogamente ao que acontecera no sculoXIX com o aparecimento das diferentes geometrias baseadas em diferentes conjuntosde axiomas. Deve-se notar que isto nos afasta radicalmente da viso wittgensteinianaacerca da matemtica: ao que tudo indica, o filsofo dificilmente aceitaria a ideiade que os jogos que definem a matemtica, mesmo que pudessem ser mltiplos,requeressem qualquer espcie de comprometimento ontolgico.

    6. Quais as origens da postura de Wittgenstein frente contra-dio e consistncia?

    No precisamos sequer destacar as crticas que Wittgenstein faz ao intuicionismo, aoformalismo e ao logicismo, as trs escolas hegemnicas da filosofia da matemtica dosculo XX, para j compreendermos a desconfiana com que o filsofo v a prpriaideia de que deveria haver um fundamento para a matemtica.

    Para que a matemtica precisa de um fundamento? Ela no precisa de um,creio, mais do que as proposies sobre objetos fsicos ou sobre impres-ses dos sentidos, precisam de uma anlise. O que as proposies matemti-cas realmente precisam de uma clarificao de sua gramtica, assim comoo precisam aquelas outras proposies. (Foundations V13)

    Assim que Wittgenstein critica Frege por praticar o que Wittgenstein denomi-nou fsica do reino intelectual, j que Frege insiste que podemos verificar as propo-sies por inspeo direta atravs de uma espcie de sentido do intelecto (LecturesXVIII: 172). Pois no verdade que sejamos obrigados a entender a demonstraomatemtica como um meio de descobrir verdades acerca de um mundo matem-tico de existncia independente isto consistiria numa espcie de histria natu-ral (Naturgeschichte) dos objetos matemticos, donde a aritmtica, por exemplo, seconstituiria na histria natural (mineralogia) dos nmeros (Foundations III11) que Wittgenstein rejeita inteiramente. Nada nos obriga a crer que as proposiesmatemticas descreveriam entidades abstratas, ou a realidade emprica, ou o funci-onamento transcendental da mente. Similarmente aos conceitos de sensaes e decores, os conceitos matemticos no se referem a objetos especficos cuja existnciaest garantida pelo simples uso de tais conceitos. Assim que Wittgenstein desacon-selha, por exemplo, o uso da palavra infinito no clculo onde quer que ela confirasignificado ao clculo, ao invs de extrair significado dele (Foundations Ap. II17).

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 160 Joo Marcos

    Segundo Moreno (1993: 52), as provas [isto , as demonstraes matemticas]so imagens que exprimem aquilo que ser considerado como a essncia, elas nosencantam, funcionam como um referencial normativo, e logo em seguida afirma-mos que no possvel pensar de outra forma. Em jogos complexos como os jogosmatemticos muito fcil que nos deixemos conduzir pelas imagens introduzidaspelas prprias demonstraes, imagens que acabam exercendo fora sobre o nossopensamento, e nos obrigando a pensar em uma direo determinada, fixando nossasreferncias. So as imagens que levam o matemtico a fazer afirmaes de cartermetafsico acerca dos fatos matemticos, ou da objetividade e a realidade dos fa-tos da matemtica. Moreno afirma que a prpria atividade filosfica de Wittgensteinse converte, em sua segunda filosofia, em uma luta contra a fora das imagens, a qualMoreno denomina terapia gramatical. Assim, ainda que possamos decerto afirmarque o domnio da matemtica de certa forma privilegiado, uma vez que nele se tra-balha com definies rigorosas e exatas visando a aplicaes precisas (Moreno 1993:51), a descrio gramatical dos conceitos exatos da matemtica ainda dependeria deque aceitssemos inserir tais conceitos na multiplicidade dos usos, olhar para suasdiferentes aplicaes, efetivas, possveis, e mesmo inusitadas (Moreno 1993: 32).

    Mas o que devemos entender por gramtica? Este um termo usado por Witt-genstein para designar tanto as regras constitutivas da linguagem quanto a investi-gao ou a organizao filosfica destas regras (cf. o verbete Gramtica, em Glock1998). Podemos contribuir gramtica de um enunciado (matemtico) fornecendoproposies nas quais ele est sendo usado, esclarecendo o que temos em mente, res-pondendo sobre a espcie e a possibilidade de sua verificao. A gramtica tambmnos diz que certas combinaes de palavras no tm sentido, e isto implica na suaretirada de circulao, na sua excluso da linguagem (Investigaes 499500). Emum certo momento Wittgenstein chega a afirmar que est com efeito na gramticada palavra regra que p & p no seja uma regra (se p uma regra) (Gram-mar: 304). Da, no teria sentido assim falar em regra contraditria, simplesmenteporque, caso ela se contradiga, ela no seria uma regra! Isto parece mesmo muitoestranho. . . Lembremo-nos contudo de que tambm o Princpio da No-Contradiofaz parte da nossa gramtica, e Wittgenstein no pensa que devamos abrir mo deles porque encontramos situaes na fsica quntica, por exemplo em que eleaparentemente no funciona, uma vez que ir contra este princpio s faz produzirproposies sem sentido no nosso jogo de linguagem. claro que este jogo de lin-guagem poderia ser completamente distinto do que , consistindo, por exemplo, emficar continuamente passando de uma deciso para a deciso contrria e nestecaso uma contradio poderia ter um papel importante (Zettel 6856). Aqui te-mos o mtodo de Wittgenstein em funcionamento: procuremos pelos usos de umaexpresso; no assumamos que uma expresso tem um uso nico ou que no temuso algum. Ento, tomando a contradio, ao invs de asseverarmos a priori que p e

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 161

    no-p sempre sem sentido, consideremos a multiplicidade de usos que lhe damos.E se no conseguirmos encontrar um uso, recordemos que sempre podemos criarum. (cf. Arrington 1969: 40)

    Um ponto deve ficar aqui bem claro: para Wittgenstein, a verdade de uma pro-posio matemtica fruto de nossas convenes, porm estas no so estipuladasarbitrariamente. Ao contrrio, elas se baseiam no consenso, no um consenso nosentido de que todos concordamos em atingir certos resultados, mas no sentido deque todos concordamos em atingir tais resultados. No se trata de um consenso deopinio, mas de um consenso de ao (Investigaes 241, Lectures XIX: 1834).Concebemos a regra [. . .] devido concordncia na ao ou seja, de que sepercorrssemos estes passos, quase todos obteramos os mesmos resultados. E estaregra se torna ento um padro de medida. A regra no exprime uma conexo em-prica mas a concebemos porque h uma conexo emprica. (Lectures XXX: 2912) esta a natureza do convencionalismo de Wittgenstein. As regras no so comple-tamente arbitrrias, pois decorrem da racionalidade da nossa mitologia, expressamnecessidades naturais. A essncia vista como uma conveno que organiza nos-sas impresses sensveis. Wittgenstein explica que o uso que damos linguagem seajusta nossa forma de vida (Lebensform), este curioso entrelaamento entre cul-tura, viso de mundo e linguagem. O problema que as pessoas nem percebem, porexemplo, que este ajuste que as faz atribuir inexorabilidade s demonstraes ma-temticas: elas no notam que um certo paradigma paira ante o olho de sua mente,e elas desejam alinhar o clculo com este paradigma. (Remarks: 346)

    Devemos ter sempre em mente o fato de que Wittgenstein trabalha com umaperspectiva antropolgica da matemtica, como parte da histria natural da huma-nidade. Para o filsofo, a matemtica constitui-se de uma famlia de atividades des-tinadas a uma famlia de projetos (cf. o verbete Matemtica, em Glock 1998). Se naprimeira filosofia de Wittgenstein a desconfiana com relao gramtica estava naordem do dia, pois a forma gramtico-normativa das proposies poderia disfararsua forma lgica, em sua segunda filosofia a gramtica substitui a prpria sintaxelgica. Mas se a sintaxe lgica era universal, a gramtica no o diferentes ln-guas possuem diferentes gramticas (cf. o verbete Gramtica, em Glock 1998). Paramostrar que a prpria matemtica poderia ser bastante diferente da matemtica queconhecemos, Wittgenstein abre as portas da filosofia para uma multitude de alienge-nas, animais selvagens, tribos primitivas e indivduos de pases exticos e distantes,os quais, graas s suas diferentes histrias naturais e formas de vida, ilustram mo-delos alternativos de matemtica, nos quais a contagem ou a medio funcionam demaneira diferente das nossas, a multiplicao d resultados que so diferentes dosque obteramos, ou so simplesmente arbitrrios, a contradio um instrumentono apenas permitido, mas bastante til. Em Foundations V, Wittgenstein parececrer que estes jogos de linguagem imaginrios nos ajudam a compreender que, se a

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 162 Joo Marcos

    nossa histria natural tivesse sido outra, a nossa matemtica poderia muito bem tersido a mesma que a dos aliengenas. Mas em Lectures XXIII ele j mais precavido,e se afasta desta sorte de exemplos, reconhecendo o perigo que h em aplicar ummesmo conceito em contextos lingusticos muito diferentes ou muito mais gerais doque de costume, pois difcil decidir o ponto em que teremos esticado nossos con-ceitos para alm do limite das semelhanas de famlia (Familienhnlichkeit), comoquando aplicamos o conceito de clculo em situaes nas quais j difcil reconhecerqualquer tipo de clculo.

    6.1. Contra a Metamatemtica, I

    A gramtica no diz como a linguagem deve ser construda a fim de realizar seuobjetivo, a fim de ter tal ou qual efeito sobre os homens. Ela apenas descreve, e demodo algum explica o uso dos signos. (Investigaes 496) Com efeito, a gramticano nos diz como construir o nosso clculo, ou nenhum outro clculo. Suponhamostodavia que realmente desejssemos construir um clculo, e desejssemos ainda queele fosse tal que coibisse as contradies lgicas. Ora, para Wittgenstein esta prescri-o j deveria constituir ela prpria uma lei lgica (Lectures XXII: 214). Ao fazermosconsideraes metatericas acerca do uso da palavra fsica, sobre a admissibilidadee a adequao das leis da fsica, sobre a sua aplicao ou seus construtos tericos,ento o que fazemos uma espcie de metafsica. Mas se fazemos consideraesacerca da filosofia, da linguagem ou da matemtica, estas consideraes j so, porsua vez, respectivamente filosficas, lingusticas ou matemticas. Wittgenstein in-siste que no h tal coisa como uma filosofia de segunda ordem, ou metafilosofia,quando a filosofia fala do uso da palavra filosofia, assim como a ortografia tambmdiz respeito ao uso da palavra ortografia, mas nem por isso ortografia seria umapalavra de segunda ordem (Investigaes 121). Tais observaes se inserem em umcontexto mais amplo, no qual a rejeio de tais metadisciplinas para Wittgensteinprincpio bsico de sua filosofia (cf. o verbete Metalgica/-matemtica /-filosofia, emGlock 1998). aqui que se reintroduz a proposta wittgensteiniana de rejeio dascorrentes fundacionalistas da filosofia e da matemtica, pois o filsofo entende quea metamatemtica consiste apenas na mesma e velha matemtica disfarada, e astentativas de fundamentar esta matemtica, como a de Hilbert com a sua Metama-temtica, estariam portanto equivocadas em princpio, por se limitarem meramente produo de novos clculos matemticos. O que Hilbert est fazendo matem-tica e no metamatemtica. mais um clculo, exatamente igual a qualquer outro(Vienna: 121). Mas no, sustenta Wittgenstein, nenhuma parte da matemtica podegarantir absolutamente uma outra parte da matemtica. Para Curry (1958: 276), defato, uma tal convico formalista pode ter sido inspirada nos elementos de filosofiaidealista alem que se escondem por trs da concepo do programa de Hilbert. A

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 163

    partir da perspectiva wittgensteiniana, de toda forma, o metaclculo no seria umateoria do clculo, mas apenas mais um novo clculo. A expresso da consistncia doclculo no se daria atravs de uma proposio do prprio clculo, uma vez que ademonstrao de consistncia repousa em uma induo sobre todo o corpo do cl-culo. Contudo, em tal metaclculo a questo da consistncia reapareceria, e depoisno metametaclculo, e assim por diante. Da conclui Wittgenstein que a prpria con-cepo de uma metamatemtica se assenta sobre um regresso infinita (Remarks:32930). Os problemas matemticos daquilo que chamamos fundamentos no soum fundamento para a matemtica mais do que a rocha pintada o fundamento datorre pintada (Foundations V13). Wittgenstein compara a demonstrao buscadapor Hilbert da consistncia da aritmtica ao caso do matemtico que afirma ter des-coberto que entre os pontos racionais da reta h mais pontos: Wittgenstein entendeque ele no descobriu, mas inventou tais pontos, e o que tem diante de si agora um novo clculo (Remarks: 3389).

    Todavia, a nsia em demonstrar a inutilidade de toda a empresa metamatem-tica e a vacuidade de significado de suas proposies levam Wittgenstein a posiesmuito difceis de sustentar, como por exemplo sua viso de que as demonstraes deconsistncia relativa, ou equiconsistncia, so uma tolice (Remarks: 335). Analisemoso caso da demonstrao de consistncia relativa do clculo de predicados clssico deprimeira ordem, PO, com relao ao clculo proposicional clssico, CP. A consistn-cia de CP pode ser facilmente demonstrada da seguinte forma. Mostramos primeira-mente a correo deste sistema, isto , verificamos que seus axiomas so tautologias,e em seguida que suas regras de inferncia preservam tautologias; da, por indu-o completa sobre o comprimento das derivaes, conclumos que todos os seusteoremas, os quais so demonstrados a partir do uso combinado de seus axiomas eregras, so tautologias. Como corolrio, dado que pelo significado da negao nesteclculo duas proposies contraditrias no podem ser simultaneamente tautologias,conclumos que duas proposies contraditrias no podem ser simultaneamente te-oremas. Sabemos por outro lado que PO uma extenso prpria de CP, contendoaquele clculo portanto todos os esquemas tautolgicos de CP, e ainda outros, nasquais aparecem quantificadores. A demonstrao tradicional de consistncia relativaconsiste na construo de uma funo conveniente que leve cada frmula de POa uma frmula estruturalmente similar de CP, funo esta que se pode obter, porexemplo, se simplesmente apagamos os quantificadores das frmulas de PO. Da,se houvesse dois teoremas contraditrios em PO eles seriam levados a dois teoremascontraditrios de CP, mas acabamos de ver que CP no tem teoremas contraditrios,logo o mesmo deve se passar com PO. De maneira semelhante podemos demons-trar a equiconsistncia entre diferentes sistemas de geometria, como a geometriaeuclidiana e a riemanniana, e entre diferentes sistemas lgicos, como clculos pro-posicionais modais normais e CP. Mas sobre este tema Wittgenstein nos oferece o

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 164 Joo Marcos

    intrigante juzo de que o que temos aqui to-somente um mapeamento, uma fun-o que leva as regras de um jogo a regras de um outro jogo: As relaes internasnas quais as regras (configuraes) de um grupo esto com relao umas s outras sosimilares quelas nas quais as do outro grupo esto. Isto tudo o que a demonstraomostra e no mais. (Remarks: 335, nfase no original) Parece haver aqui, contudo,um mal-entendido com relao ao que se pretende com a Metamatemtica de Hil-bert, isto , demonstrar a consistncia de sistemas aritmticos. Ora, esta empreitadas veio abaixo como consequncia do Segundo Teorema de Incompletude de Gdel,de 1931, que mostrou que qualquer sistema matemtico com poder suficiente parafazer o que conhecemos como aritmtica elementar ser capaz de definir as funesrecursivas parciais, ou algo do gnero h de sofrer da surpreendente limitao deser incapaz de demonstrar sua prpria consistncia. Observe que nem CP nem POconstituem o sistema matemtico que usamos para demonstrar sua equiconsistncia a regra de induo completa, por exemplo, no faz parte de nenhum dos doissistemas. Por outro lado, na demonstrao de consistncia da aritmtica elementaro sistema matemtico utilizado no mais poderoso do que a prpria aritmticaelementar. A est a grande diferena!

    6.2. Contra a Metamatemtica, II

    H uma explicao concorrente e bastante interessante para a origem no pensa-mento de Wittgenstein da ideia de que preciso rejeitar a metamatemtica. Ela sebaseia em uma frutfera distino, proposta por van Heijenoort (1967) e reelaboradapor Hintikka & Hintikka (1986, cap. I), entre a linguagem como meio universal ea linguagem como clculo: de acordo com a primeira viso, no podemos observarnossa prpria linguagem de fora e descrev-la, como fazemos com outros objetos quepodem ser especificados, referidos, descritos, discutidos e sobre os quais podemos te-orizar na nossa linguagem; na segunda viso, em contraste, podemos fazer tudo isto,levantando questes metatericas acerca da nossa lgica e at mesmo imaginandouma alterao em sua interpretao, por exemplo, a respeito do domnio sobre o qualse aplicam os quantificadores. Segundo van Heijenoort, a adeso de Frege e Russell primeira viso acima explica a ausncia de noes semnticas em seus trabalhos, eem especial a desateno distino entre a noo de demonstrabilidade e a noode validade baseada na (proto)teoria de conjuntos, distino esta que s seria levadaa efeito aps os trabalhos de Lwenheim em 1915 e de Skolem em 1920. Segundoos Hintikkas, a adeso de Wittgenstein tambm primeira viso acima explicaria arazo pela qual em todo o seu trabalho filosfico, assim como no trabalho anteriorde Frege e no trabalho posterior de Quine, a semntica seria considerada inefvel,mesmo que no fosse impossvel. Na primeira filosofia de Wittgenstein, uma con-sequncia desta postura seria a distino tractatiana entre dizer e mostrar; em sua

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • (Wittgenstein & Paraconsistncia) 165

    filosofia posterior, uma consequncia importante seria a rejeio de quaisquer consi-deraes metatericas acerca da linguagem e, por extenso, a rejeio do platonismomatemtico e o abandono das tentativas de produzir demonstraes de consistncia.

    A distino acima explicitada pode nos ajudar igualmente a compreender a pe-culiar concepo de clculo adotada por Wittgenstein. Ao longo de toda a sua filo-sofia, Wittgenstein insistiu que as contradies lgicas, assim como as tautologias,seriam desprovidas de sentido e, por conseguinte, de contedo informativo (Tracta-tus 4.461, Foundations Ap. I20). Parece correto afirmar que, juntas, as contradiese as tautologias formam uma espcie de ilha lgica, separadas das proposies co-muns (cf. Goldstein 1986: 44). Mas se tal concepo cai bem ao filsofo do Tractatus,cuja preocupao analisar minimamente as proposies da lgica, da epistemolo-gia, da fsica, da tica e da mstica, ela j no se encaixa to suavemente nos escritosdo filsofo dos Foundations, cuja preocupao a investigao gramatical de todasestas proposies. este ltimo porm quem nos afirma que poderamos tranquila-mente substituir as tautologias pelas contradies na lgica, fazendo dos PrincipiaMathematica de Russell uma coleo de contradies ao invs de uma coleo detautologias (Lectures XIX: 189). Ao que ele emenda em seguida que no importacomo lemos as proposies da matemtica, mas apenas o que faremos depois como que lemos (Lectures XIX: 190). E ele fala ainda na invaso desastrosa da mate-mtica pela lgica (Foundations IV24), e no modo pelo qual a lgica matemticateria apenas perpetuado a tradio aristotlica, ao se infiltrar no pensamento dosmatemticos e dos filsofos impondo uma interpretao no mais que superficial danossa linguagem cotidiana como uma anlise da estrutura dos fatos (FoundationsIV48).

    Sim, verdade que o interesse de Wittgenstein, em sua segunda filosofia, noest nas linguagens artificiais e sua semntica formal, mas nas linguagens comuns(Investigaes 81). Ele est preocupado com as contradies que surgem no dis-curso ordinrio. (Goldstein 1986: 54) Mas ns temos que tentar compreender a di-ficuldade que tem um semanticista sem semntica (cf. Hintikka & Hintikka 1986:23) como ele em nos chamar a ateno para o fato de que talvez no estejamosvendo os axiomas da matemtica como aquilo que eles realmente so: proposiesda sintaxe (Remarks: 189), ou em afirmar que o problema de encontrar uma decisomatemtica para um teorema pode com alguma justia ser visto como o problemade se dar um sentido matemtico a uma frmula (Foundations IV42), ou mesmoem insistir que s podemos dizer que a formao de certas configuraes do clculo proibida, mas no contraditria (Remarks: 339), pois para tanto elas deveriamconstituir-se, antes de mais nada, em asseres. Sem dispor de uma semntica, suanica alternativa fazer-se valer de termos oblquos, falar indiretamente, torcer paraque seu interlocutor concorde em encontr-lo a meio caminho: faltam-lhe palavras!

    Ao fim de tudo isto, podemos sem dvida compreender o objetivo da prtica filo-

    Principia 14(1): 13573 (2010).

  • 166 Joo Marcos

    sfica de Wittgenstein como o da luta pela derrocada final da metafsica, o combatea toda e qualquer espcie de dogmatismo, ou, como queria Moreno (1993), como aterapia das imagens. Devemos relativizar as necessidades: diferentes jogos e dife-rentes matemticas so de fato possveis. Devemos reconhecer que no h critriosnicos e definitivos. Isto quer dizer que no podemos ter certezas? No, o que pre-ciso mostrar que uma dvida no necessria mesmo quando possvel. Que apossibilidade do jogo de linguagem no depende de se duvidar de tudo que se podeduvidar. (Isto est ligado ao papel da contradio na matemtica.) (Certainty 392)No podemos negar s contradies o direito de fazer parte de um jogo matemtico elas decerto no representam qualquer ameaa ctica , mas tambm evidenteque no somos de maneira alguma obrigados a acolh-las nos nossos jogos. S por-que conhecemos outros jogos, isto no significa que devamos abandonar o nosso,ou deixar de defend-lo. Wittgenstein quer acabar com as iluses do cientista: o pa-raso de Cantor, as demonstraes de consistncia, seus puntos fijos, o que quer quelhe empreste uma segurana ilegtima. Isto implica em destruir as perspectivas docientista? S se for do ponto de vista psicolgico. Se do ponto de vista do cientista atarefa de Wittgenstein pode parecer uma tarefa epistemolgica, aos olhos do prpriofilsofo ela antes de tudo uma tarefa tica.

    7. Haver implicaes desta postura para a prtica matemtica?

    Considere-se celebrado o casamento, com separao de bens, da filosofia com a ma-temtica. A matemtica vai trabalhar fora, onde se envolve com certos tipos, e acabapor levantar novos problemas filosficos. Ela no pode resolv-los, pois incapaz defornecer esclarecimento conceitual. A filosofia, paciente e prendada, envolve em suaprosa a atividade matemtica, e tece uma rede donde a matemtica retirar tudoaquilo que precisa para ser mais do que uma simples manipulao simblica. A talrede colhe ainda muitas confuses metafsicas; estas porm ho de ser resolvidas gra-maticalmente. A matemtica se envolveu com uma contradio, mas esta a filosofiano pretende resolver, pelo menos no atravs de uma descoberta lgica ou mate-mtica. A filosofia no pode tocar no uso efetivo da linguagem, nem fundament-lo ela s col