DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL A PARTIR DE PRÁTICAS...
Transcript of DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL A PARTIR DE PRÁTICAS...
1
DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL A PARTIR DE PRÁTICAS
DOCENTES/FORMATIVAS COM A LITERATURA INFANTIL
MODESTO SILVA, Kenia Adriana de Aquino (UFG – Regional Jataí)
Resumo
O uso da literatura na Educação Infantil em Rondonópolis/MT foi o tema central da
pesquisa desenvolvida por esta estudiosa. A temática surgiu do interesse pelo
aprimoramento das práticas pedagógicas apresentado pela pesquisadora, ou seja, pela
sua busca de desenvolvimento profissional durante a fase do mestrado. Sua questão
central foi: quais as possibilidades de utilização da literatura infantil com crianças não
alfabetizadas, considerando-se o planejamento, a ação, a descrição e a
reflexão/avaliação de práticas docentes/formativas? Para tanto, teve como objetivos:
planejar, agir, descrever e avaliar as concretizações da professora-pesquisadora em uma
turma com crianças de cinco anos, de uma escola do município de Rondonópolis/MT.
Os pressupostos sobre a infância, a educação infantil, a leitura e a literatura infantil
embasaram as análises que tiveram seus dados registrados em um protocolo de
pesquisa, em fotos e em gravações de áudio das ações que a professora-pesquisadora
realizou em uma turma com crianças de cinco anos de idade. A metodologia utilizada
foi a pesquisa-ação com cunho autobiográfico. Os resultados levaram: a uma
aproximação das crianças ao objeto livro, criando e ampliando o fascínio delas pelas
histórias; ao estabelecimento de vínculos afetivos entre professora-pesquisadora e as
crianças; a uma necessidade de distanciamento da professora-pesquisadora ao analisar
os dados coletados; à dificuldade da professora-pesquisadora em não reproduzir práticas
tradicionais em relação às práticas de leitura e à necessidade de viver a literatura antes
de apresentá-la às crianças. E, sobretudo, as práticas realizadas durante a pesquisa
consistiram-se em práticas formativas que contribuíram para o desenvolvimento pessoal
e, sobretudo, profissional desta pesquisadora.
Palavras-chave: Letramento Literário. Prática Docente. Desenvolvimento Profissional.
Para início de conversa...
A angústia por conhecer cada vez mais possibilidades de uso da literatura
infantil sempre acompanhou esta estudiosa tanto quanto o encantamento pelas palavras.
A primeira graduação, em Letras, fez com que se apaixonasse pelas palavras e instruiu-a
a utilizá-las em diversos discursos orais e escritos. Não a ensinou, no entanto, por conta
de sua matriz curricular, a viver a literatura infantil, em especial com as crianças que
ainda não são alfabetizadas/leitoras e não podem, sem a mediação de um adulto
alfabetizado, estar “acompanhadas” dos personagens das histórias.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202337
2
Além disso, o tema literatura na educação infantil instigou-a porque em
Rondonópolis/MT, cidade onde residia e exercia suas atividades profissionais,
registrava-se apenas um trabalho acadêmico que tratasse das práticas de leitura, escrita e
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202338
3
letramento na Educação Infantil, sendo, portanto, esta pesquisa uma precursora do tema
na cidade.
Tratando-se de uma pesquisa qualitativa e com cunho autobiográfico, foi usada a
metodologia da pesquisa-ação, com realização de pesquisa de campo em uma sala de
crianças com cinco anos de idade, ainda não alfabetizadas, no Centro de Atendimento
Integral da Criança (CAIC), localizado em Rondonópolis – MT, que é um
estabelecimento de ensino regido de acordo com o que estabelece a Lei 9.394/96 e
pertence à Secretaria Municipal de Educação deste município.
As técnicas utilizadas para coletar informações sobre as ações foram: observação
participante, diário de campo, entrevistas, fotografias, vídeos e aspectos das histórias de
vida. Foram sujeitos da pesquisa vinte e oito crianças e a própria pesquisadora-
professora. A pesquisadora foi, portanto, sujeito e objeto de análise e investigação,
assim, o estudo objetivou ainda promover o desenvolvimento profissional da
professora-pesquisadora a partir de práticas pedagógicas que foram também formativas.
A partir do registro autobiográfico que esta pesquisa apresenta, foi possível a
professora-pesquisadora olhar-se, buscar-se, encontrar-se, conhecer-se e gostar ou não
do que descobriu. Com esta abordagem, foi possível, além do auto(re)conhecer-se, olhar
também para o outro, sempre analisando e interpretando as ações e representações,
inclusive na própria prática docente que se constituiu (e se constitui) em prática
formativa.
Como descreve Conceição (2006), tal registro não se constitui de uma simples
descrição ou arrumação de fatos, mas de um esforço para se reconstruir os itinerários
passados, é como se fosse uma história contada a nós mesmos e aos outros. Isto porque
toda esta narrativa com os resultados finais apresentados, constituem uma síntese das
experiências profissionais, acadêmicas e até afetivas.
Rosa, Silveira e Toledo (2006) dizem que o educador não nasce educador, ele se
forma no contexto histórico de suas experiências, por meio de conflitos e, sobretudo,
consciência crítica, o que não consiste numa tarefa fácil. Neste processo de análise e
reflexão de própria prática com a literatura infantil, esta (re)construção do passado é
feita de forma seletiva a partir do presente que aponta o que se deve ou não descrever e
interpretar. Afinal,
É através da narrativa (auto)biográfica da vivência escolar, que torna-se
possível desvendar modelos e princípios que estruturam discursos
pedagógicos que compõem o agir e o pensar do(a) professor/professora em
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202339
4
formação. Isto porque o ato de lembrar/narrar possibilita ao ator reconstruir
experiências, refletir sobre dispositivos formativos e criar espaço para uma
concentração da sua própria prática. (CONCEIÇÃO, 2006, s/p.)
E independentemente do caráter autobiográfico, todo relato de pesquisa pode ser
visto como uma espécie de autobiografia do pesquisador porque sempre há influência de
suas experiências e leituras. Nesta pesquisa, há ainda um forte traço de autobiografia
devido ao fato de ela ser pesquisa-ação, pois quando a professora-pesquisadora se
coloca como sujeito e objeto de estudos, foi preciso ver a si mesma como importante
para a pesquisa e, inevitavelmente, necessitou-se de uma reflexão autobiográfica.
Resumidamente, na Educação Infantil, cada momento deve ser uma vivência;
cada objetivo, um desafio; cada situação, uma oportunidade de buscar, experimentar,
descobrir, interagir com seus pares, garantindo às crianças gradativa construção de sua
identidade e autonomia, oferecendo-lhe espaço livre para agir, acertando ou errando,
sem ensinamentos prontos e estereotipados.
As ações formativas que colaboraram para o desenvolvimento profissional desta
pesquisadora e que buscaram garantir às crianças oferta de um espaço de autonomia e
aprendizado foram divididas em blocos temáticos para facilitar as análises: (1)
Chapeuzinho Vermelho, (2) Bicho Papão e outras histórias folclóricas e
“horripilantes”, (3) Chapeuzinho Amarelo, (4) Bolsa Mágica (englobando Joelho
Juvenal; Pinote, o fracote, Janjão, o fortão; João Feijão; A forminguinha e a neve; Ai,
que medo!; Era uma vez um lobo mau), (5) Cantinho da Leitura (com as histórias Que
barulho é este?; Gato de Papel; Não confunda!; João e Maria; Chapeuzinho Vermelho;
Uma história atrapalhada; Festa no céu) e (6) Dona Baratinha.
Bicho Papão e outras histórias folclóricas e “horripilantes”
Nesta comunicação será apresentado o bloco intitulado Bicho Papão e outras
histórias folclóricas e “horripilantes”. No início da execução do planejamento da
pesquisa-ação, o aluno Guilherme levou para a sala de aula um livro didático com
algumas histórias, mas ele queria contar apenas a história do Bicho Papão, como não
encontrou no livro a imagem do personagem, resolveu deixar para outra oportunidade,
quando, então, estaria com o livro aberto na página certa. Este é um dado curioso, pois
ele não era alfabetizado ainda e, mesmo se tivesse encontrado a página, contaria em vez
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202340
5
de ler. Sendo assim, poderia muito bem ter contado sem encontrar a imagem, não? Pois
bem, ele não contou e ficou frustrado em não encontrar porque não havia como “ler” a
história. É provável que sua frustração se deva ao fato de que, nesta faixa de idade, a
criança se interessa espontaneamente pelas letras, uma vez que, no livro, não havia
figuras na sequência da história, apenas uma ilustração representando cada personagem.
Fato que evidencia a necessidade de se estimular a leitura na vida das crianças,
inclusive com a presença física do livro, pois isto proporcionará a elas a autonomia para
“ler” mesmo antes de alfabetizada. Além disso, o livro “e sua utilidade e seu uso” nas
mãos de uma criança garante uma relação entre esta e o livro. A terapeuta Stela
Battaglia, no jornal “Diário na escola – Santo André” (2003), diz que a leitura precisa
ser vista. E diz ainda que não vale a pena o professor ou alguém da família
simplesmente colocar inúmeros livros na frente das crianças e dizer que são
maravilhosos. Porque o livro só tem valor se for “desenvolvido”, isto é, vivido antes de
lido. Neste sentido, a relação com o livro precisa ser estreitada, assim, o significado do
objeto livro se fortalece cada vez mais. E o professor precisa contribuir neste
estreitamento de laços, seja oportunizando momentos para essas vivências ou
aproveitando as necessidades apresentadas pelos alunos como é o caso da situação
mencionada.
Como é sabido, é necessário atender aos interesses e necessidades dos alunos
leitores, convergindo a esta ideia, Bordini e Aguiar (1993) discorrem que:
Quando o ato de ler se configura, preferencialmente, como atendimento aos
interesses do leitor, desencadeia o processo de identificação do sujeito com os
elementos da realidade representada, motivando o prazer da leitura. [...] O ato de
ler é, portanto, duplamente gratificante. No contato com o conhecido, fornece a
facilidade da acomodação, a possibilidade de o sujeito encontrar-se no texto. Na
experiência com o desconhecido, surge a descoberta de modos alternativos de ser e
de viver. (p. 26)
E esta posição ativa do leitor pode ser exemplificada pelo próprio Guilherme
novamente, pois em outra data, logo que a professora-pesquisadora entrou na sala, ele
mostrou-lhe seu livro didático com a história do Bicho Papão que ele tanto queria “ler”,
já que, na aula anterior, por ele não encontrar foi impossível a “leitura”.
E nesta aula, satisfeitíssimo por encontrar a página, contou/leu e não apenas a do
Bicho Papão, mas quatro histórias, a saber: do Bicho Papão, do Lobisomem, do
Curupira e do Saci-Pererê; interessante que somente as contou/leu quando encontrava a
página certa de cada uma delas. O que intrigou a professora-pesquisadora é que não
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202341
6
havia tantas ilustrações para que se apoiasse nelas ao “ler”, existia apenas um desenho
indicativo de cada personagem. E ele agia, portanto, como se de fato, precisasse das
letras para contar suas histórias preferidas. De acordo com Stela Battaglia, um dos
primeiros passos para se formar leitores é atribuir significados a textos escritos ou
visuais, mesmo que aparentemente não digam muito.
Como ele leu quatro histórias apenas depois de tê-las na página adequada, a
pesquisadora solicitou seu livro para ler como, de fato, estavam narradas as histórias, e
ele percebendo seu interesse, ficou ao lado dela até o final das leituras e teceu
comentários: na do Lobisomem, por exemplo, disse que por conta do Bicho Papão, ele
avisava, todos os dias, sua mãe que estava indo dormir cedo; na do Curupira, ele sabia
inclusive quais as palavras se juntam para formar o nome desta lenda folclórica.
Acredita-se que seja pertinente, então, retomar os escritos de Charmeux (2000),
quando ela discute que ler exige a utilização de suportes que sejam verdadeiros, pois o
manejo de livros, dicionários, História em Quadrinhos, entre outros acrescenta uma
dimensão afetiva, por meio dos primeiros contatos com o escrito e sua forma de
apresentação (objeto), gerando segurança ao leitor. Foi justamente esta segurança do
portador livro que o Guilherme sentiu necessidade e buscou (até encontrá-la).
Em outro dia, mesmo antes de entrarem na sala, três crianças perguntaram
confirmando com a professora-pesquisadora se neste dia ela contaria a história do Bicho
Papão mais uma vez. Será que gostariam de ouvir? Certamente, interessam-se por ouvir.
Afinal, as histórias folclóricas como as do Bicho Papão, Curupira, Saci, entre outras
carregam as tradições, os costumes e as superstições de um povo, de uma família, além
de possuírem mistério, suspense, que chamam a atenção das crianças.
Estavam um pouco agitados quando a professora-pesquisadora começou a ler a
história. E logo, uma criança solicitou silêncio. E, no decorrer da narração, como já
conheciam a história, alguns contribuíram. Após a leitura, o Guilherme, mais uma vez
quis contar suas histórias sobre Bicho Papão e “companhia limitada”.
Como desde a primeira vez que contou as narrativas, ele cobrava que a
professora-pesquisadora ou a professora regente passassem “uma atividade” sobre sua
narração, após as “leituras”, a primeira propôs às crianças que desenhassem a história
que mais gostaram da tarde. Amaram esta oportunidade e se empenharam nos desenhos.
O Guilherme, então, “didatizado e pedagogizado”, como mostra sua postura ao exigir a
atividade, ficou contentíssimo.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202342
7
Após estas referências e breve análise, estão expostas a transcrição das duas
“leituras” realizadas pelo Guilherme em dias distintos, em paralelo ao que, de fato,
estava impresso no livro que ele levou para a escola.
Importante observar que se comparadas as primeiras e as segundas leituras do
Guilherme, a última está muito mais rica em detalhes e mais próxima do que está escrito
no livro. O que indica que, provavelmente, entre os dois dias, pelo menos uma leitura
alguém alfabetizado realizou para que ele ouvisse. Provavelmente, alguém de sua
família, tendo em vista que não foi a professora-pesquisadora, nem a professora regente.
Fato que evidencia a importante função da família, quando atua de maneira conjunta à
escola.
Considerações
Recordando o que Battaglia (2003) disse, percebe-se que talvez a professora-
pesquisadora não tenha tido a sensibilidade ou mesmo consciência da importante e real
relação da criança com o livro ao sugerir ao Guilherme que contasse, mesmo não
havendo encontrado o “texto” no livro.
Em relação à “necessidade” que o ele sentiu em “fazer uma atividade” sobre o
tema das histórias que ele contou/leu, ficou a indagação se esse desejo é resquício de
“pedagogização” da literatura ou se por puro prazer de produzir arte. E a este respeito, é
possível a apropriação de questionamentos feitos por Soares (2006, in: EVANGELISTA
et al.): como estabelecer uma relação entre a literatura infantil e a escola? Como realizar
de forma adequada a inevitável escolarização da literatura?
Afinal, como a própria Soares (2006, in: EVANGELISTA et al.) aponta:
Não há como ter escola sem ter escolarização de conhecimentos, saberes,
artes: o surgimento da escola está indissociavelmente ligado à constituição
de „saberes escolares‟, que se corporificam e se formalizam em currículos,
matérias e disciplinas, programas, metodologias, tudo isso exigido pela
invenção, responsável pela criação da escola, de um espaço de ensino e de
um tempo de aprendizagem. (p. 20).
Por conta disso, ela afirma, ainda, que não há como evitar que a literatura,
incluindo-se a infantil, se escolarize ao se transformar em “saber escolar”. E não se deve
também julgar ruim esta escolarização, porque, na verdade, ela é inevitável e necessária
para a escola e, consequentemente, para os alunos.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202343
8
A questão é: quem disse que o que é escolarizado precisa ser algo ruim? Isto
vale também à literatura infantil, pois o fato de ela estar na escola e ser utilizada neste
espaço não faz de sua prática ruim. Inadequado é limitar os objetivos das práticas
literárias, e porque não dizer das práticas formativas, excluindo-se as possibilidades de
distração, prazer, entretenimento e deleite que a literatura proporciona, como se nada
disso pudesse acontecer no ambiente escolar. E são diversas as possibilidades de se
escolarizar a literatura: aquela solicitada pelo professor (que não é feita simplesmente
porque o aluno deseja) ou mesmo aquela avaliada, seja por meio de preenchimento de
fichas, exposições orais ou o que for, pois há a necessidade de se comprovar que se leu
(o que se leu e como se leu).
Entretanto, o que, verdadeiramente, importa é apresentar a literatura como objeto
cultural mais acessível às crianças, fazendo dela parte do cotidiano escolar e mostrando-
a como fonte de prazer, pois por meio dela se compartilha seus encantos e sua magia.
Não se trata, portanto, de escolarizar ou não a literatura. Porque, afinal, a leitura da
literatura infantil ocorre na escola.
Desse modo, por que não aproveitar as aberturas que a literatura permite e
estimular a presença da fantasia no imaginário infantil? O que se deve pensar, então, é
em como escolarizar a literatura.
Desse modo, a pesquisadora se viu com esta questão nas mãos: o que fazer com
a solicitação do Guilherme? Passar uma atividade após suas “leituras”? Ou não, para
não “escolarizar” a literatura? Na dúvida, passou.
E recorrendo à Soares (2006, in: EVANGELISTA et al.), acredita-se que tenha
feito a coisa certa. Primeiro porque partiu do interesse de uma das crianças envolvidas.
Segundo porque conforme também aponta Soares (2006, in: EVANGELISTA et al.), é
necessário que o professor considere alguns aspectos em relação aos textos literários na
escola como: a seleção dos textos (gênero, autor, obra); a questão de ser ou não apenas
fragmento da obra; ou o objetivo da leitura do texto.
Acredita-se que a pesquisadora fez a coisa certa porque os textos selecionados
partiram do interesse da turma e não foram escolhidos por ela. Portanto, não correu o
risco de selecionar obras muito repetitivas e recorrentes, oferecendo um número restrito
de títulos. E, embora o Guilherme tenha “lido” de um livro didático e não um literário,
percebe-se que não houve prejuízo para a estrutura narrativa das crianças. Além disso,
as leituras não se deram para que se avaliasse ou estudasse os textos, apesar de tentar
apresentar-lhes o gênero da narrativa folclórica.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202344
9
Por tudo isso, acredita-se que, apesar de insegurança da professora-pesquisadora
em relação à escolarização ou não da atividade (proposta por um aluno, como resultado
de experiências anteriores dele), não errou. Muito pelo contrário, considera-se que ela
proporcionou às crianças uma oportunidade de se expressarem da maneira que
quisessem, não gerando, em nenhum momento, aversão à literatura.
Outro aspecto que permitiu concluir que a decisão foi acertada ao se trabalhar a
partir do interesse de uma criança, ao oportunizar a leitura e vivência de histórias
folclóricas com cunho “horripilante” é que, conforme aponta Bettelhein (2002), os
pensamentos mágicos das crianças são representados em uma boa história, porque a
criança tem a possibilidade de organizar suas tendências contraditórias, ficando menos
concentrada no caos supostamente não dominável. Provavelmente, por isso mesmo, a
preferência do Guilherme por histórias, segundo ele, “de terror”. E também é provável
que na tentativa de ordenar seu próprio caos, ele tenha me dito que gosta mesmo é de
história de terror, “de filme de terror e não de filme assim feliz. Eu gosto é dos
aterrorizantes”.
Enfim, apesar das incertezas e impasses, e mais do que acertar na prática e
adquirir desenvolvimento profissional, conclui-se que a professora-pesquisadora
aprendeu, a partir de práticas pedagógicas, e aqui seria melhor chamá-las de práticas
formativas, quão sutil é a adequada (e inevitável e necessária) escolarização da literatura
infantil.
REFERÊNCIAS
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 16. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2002.
BORDINI, Maria da Glória. AGUIAR, Vera Teixeira. Literatura – a formação do
leitor: alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
CHARMEUX, Eveline. Aprender a ler: vencendo o fracasso. Trad. de Maria José do
Amaral Ferreira. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2000.
CONCEIÇÃO, Ana Paula Silva da (2006). Autobiografia, itinerância, formação e
conhecimento implicado em educação infantil: o caso de uma etnopesquisa. Anais II
Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto)biográfica. Tempos, narrativas e ficções:
a invenção de si. Salvador.
EVANGELISTA, Aracy Alves Martins. BRANDÃO, Heliana Maria Brina &
MACHADO, Maria Zélia Versiani (orgs.). A escolarização da leitura literária: O
jogo do livro infantil e juvenil. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202345
10
ROSA, Ana Cristina. SILVEIRA, Sérgio Roberto. TOLEDO, Maria de Lourdes
Camargo (2006). Anais II Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto)biográfica.
Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Salvador.
TABELA COMPARATIVA DAS HISTÓRIAS LIDAS PELO ALUNO E A
IMPRESSA NO LIVRO LEVADO POR ELE
Histórias lidas pelo
Guilherme no primeiro dia
Histórias lidas pelo
Guilherme no segundo dia
Histórias impressas no livro
Bicho Papão
É, Bicho Papão. É o bicho papão
pega criancinha e, é, que fala
palavããããão. Quem fala palavão,
não quer dormir cedo, ele é o
pior pesadelo! Pode deixar
rastos, ou cada coisa. É como
Tutumanjá, é, é, é Tutumaranjá,
de todo lado. É o pior pesadelo.
É feio como Tutumaranjá, toda
aaa.. tutu ééé, Tutu-barão, mas é
o pior pesadelo. É o mais feio.
Ele pode deixar rastos ou
inferno. Ele é o pior pesadelo,
nunca vi! É muito feio, tia!
(Antes de contar a outra
história, sugere que as crianças
vão mexer no curupira, saci
pererê, etc.)
A agora eu vou contar dooo,
dooo Lobiii (espera as crianças
completarem) somem!
(se organiza com o livro)
Bicho Papão
O bicho papão é um cara muito
mal. É como tutu-maranjá, tutu
do mato, é tutu, ah não, esqueci
disso. Ele é um ser humano. As
quiancinhas que falam palavão
ele pega, quem, quem, quem
não, o bicho papão, as
quiancinhas que falam palavão,
não querem dormir cedo, ele vai
e ele pega as quiancinhas.
(crianças comentam!!! ele pára
para ouvir). Não, ele só existe
na fazenda gente, ele vai no
escuro vai, vai assim e vai
andando vê que a quiança não ta
dormindo, ta bincando, a noite,
não ta dormindo cedo, ele vai lá,
vai lá, pega a quiancinha leva
dento desse saco e leva embora.
Ai, depois, ele come. Oh, ele
corta assim, oh e fica doidinho
para comer uma quiança.
(crianças comentam mais ele
responde “Não”). Ele vai no
escuro, gente, ele vai no escuro
pega a quiancinha, leva dento
desse saco. E tira a quiancinha,
aí a quiancinha acorda dento do
saco, “aaai, meu Deus, onde é
que eu fui parar?” [...] Aí ele tira
a quiancinha, aí ela fala “não,
bicho papão, não!”. Aí o bicho
papão vai lá e corta com o dente
ele todinho, aí vai lá e corta o
pulmão, o pé, o olho, e come, e
não deixa nem o osso. (crianças
comentam de novo). Ele é o pior
pesadelo. Mas ele (crianças
comentam todas juntas e ele se
exalta e diz: “fala de um cada
vez que é falta de inducação”).
Gustavo para que quando um ta
falando, você não pode falar.
Gustavo. (Juliana fala –
crianças se agitam – a
pesquisadora teve que interferir
Bicho Papão
Existem muitos tipos de Bicho
Papão que assustam as
criancinhas. O Tutumarambá,
por exemplo, também conhecido
como Tutu Zambê, Tutu do
Mato, Tutu Garanga, ou Bicho
do Mato ninguém viu até hoje,
mas parece que deixa rastros e é
medonho feito o pior pesadelo.
A Cuca é um ser encantado,
velho e feioso que prometeu
colocar num saco e levar
embora, crianças que não
querem dormir cedo, as muito
bagunceiras e as que têm mania
de dizer palavrão.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202346
11
e pedir para deixarem o
Guilherme terminar de contar a
história). Oh gente, ele é o pior
pesadelo, mas pode deixar
rastros.
Lobisomem
É, tinha um cara, é, tinha o
lobisomem. É sexta que ele
numa rua incuzilhada, é com
“inseto” em cima, rabo de
cavalo, começa a solta a espuma
e vira o homem cachorro!
E, agora, o Coropira.
Lobisomem
Tem um homem que aparece
numa rua cuzilhada. Calado,
abatido. Ele hum, ele hum, com
as botas, vai numa rua
cuzilhada, pega é, in, in, in em
cima de estrume de cavalo ou de
vaca, e, e, e, e começa virar o
homem cachoooro! Aí, numa
certamente, que fica irritado, e
fica muito assustado e começa a
virar o hooomem cachooooro!!!
Ele é muito perigoso. É melhor
ficar esperto. Esse tal cara é o
tal lobisomem. É bom ficar
espero. Acabou. Agora eu vou
do Curu... pira!
Lobisomem
Quando num lugar aparece um
homem magro e abatido,
paradinho, sempre olhando torto,
com sobrancelhas grossas e
orelhas compridas, é melhor
ficar esperto. O tal sujeito pode
ser o lobisomem. Toda meia
noite de quinta para sexta-feira,
o homem que vira lobisomem
desaparece. Vai procurar uma
encruzilhada deserta, tira a roupa
que normalmente deixa virada
do avesso. E fica se esfregando
no chão em cima de estrume de
vaca ou cavalo para se
transformar no homem-cachorro.
Curupira
O Curupira, ele mora em
qualquer lugar. Ele protege os
filhos da mãe natureza, ele
protege cada coisa. Ele, ele
espanta os caçadores pa não
matar a natureza. Ele pega e
potege a natureza. Ele pega e
espanta os caçadores da
natureza.
E, agora, deixa eu ver o outro.
Qual que é o oto mesmo?
Ooh, é o Saci Pererê. (se perde
nas páginas do livro,
procurando, mas não começa
enquanto não encontra).
- Tia, tenta achar o saci pererê
aqui pra mim?! Ooh,achei, ta
aqui.
Curupira
O curupira é um ser encantado.
Potege os filhos, potege os
filhos, potege o ser encanta...,
potege o ser encantado da mãe
natureza e potege todas as
famílias. Esse curupira mora em
qualquer lugar. Oh, curupira é
um ser menino. Ele é menino,
mas ele cuida das planta. Ele,
esse é o tal curupira. Ele não
gosta que mija das planta, não
gosta que mata as planta. Ele
potege a natureza (Juliana
interfere, ele espera e completa:
“isso mesmo”). O curupira, ele
gosta de poteger os seres
encantados da natureza. Por que
o curupira gosta de poteger a
natureza? (Juliana e outra
criança respondem e ele
complementa: “isso”). Ele não
gosta que polui o rio, não gosta
que corta as árvores, não gosta
que ninguém faz xixi na panta,
não gosta que ninguém mata a
panta, não gosta que ninguém
corta a panta, oh só pode, o
curupira só gosta que corta a
panta quando ela ta velha, pode
cortar. Ele, ele joga água na raiz
dela. Ela quer, e fica mais
bonita. Oh, ele é um ser
encantado e potege todos os
felizes. Agora do Biiichoo
Paapão!
Curupira
Quem vive longe no/do mato
acredita que existe um ser
encantado protegendo os filhos,
os tesouros e os segredos da mãe
da natureza. Este ser é o
Curupira. Dizem que o Curupira
vive em todo lugar onde existe
mato e floresta. O nome
Curupira, ao que parece, é uma
mistura de palavras: Curumim,
que quer dizer menino; e Pira
que significa corpo. Curupira,
corpo de menino.
Saci Pererê
O Saci Pererê consegue, é, Saci Pererê
O saci pererê é um ser dos Saci
O Saci é um ser misterioso,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202347
12
quando dá assim um assunto
misterioso, ele fica invisível. Ele
consegue manter o mosquito da
dengue. É o mosquito da, é o
joelho machucado. É que ele vê
o menino. É, é, é com pé no
chão, não tem onde fazer xixi,
cocô, nem nada. (Juliana
comenta: Ele vive na rua o Saci
Pererê) É, é, é, é (alguém dá uma
dica e ele responde) – Não, mas
ele tenta achar o menino, um
menino com joelho machucado,
é com uma perna só, fumando
cachimbo, só isso. Mais nada.
(todos batem palmas)
animado, ele, ele, ele quando ele
consegue assoviar um assovio,
ele fica invisível. Quando ele
quer assoviar um assovio
misterioso ele fica invisível ele
consegue manter mosquito da
dengue, quer dizer, o mosquito,
e de joelho machucado, ele vai a
noite, e ele, ele, ele é um
menino nego, que tava com uma
perna só, quando ele vê um
menino, com dedo furado, aqui
no meio e fumando, e com um,
só um menino só com uma
perna assim (se coloca numa
perna só e completa: mas eu
tenho duas pernas, ele é assim
igual aqui do livro), um guri só
de uma perninha como esse
aqui, o joelho machucado ele
tem, mantém o mosquito, oh
gente, oh, esse daqui oh, pega e
ele pegava, ele pegava, gente, e,
enquanto ele, gentee, veio uma
quiança com dedo furado, de
uma perna só, fumando
cachimbo e com capuz
vermelho, ele pega, pega as
quiancinhas e agarra elas, e
depois ela começa a virar ele,
ingualzinho ele assim. Ponto.
Saiu falando que ele é do bem.
Ele e o Curupira são do bem. Só
o lobisomem e o bicho papão
são do mal.
habitante do mato. Sua aparência
é de um menino negro, pequeno
e risonho, de uma perna só, com
um capuz vermelho enterrado na
cabeça, sem pêlo no corpo, nem
órgãos para fazer xixi e cocô.
Costuma ter três dedos nas mãos
que são furadas. E quando quer,
solta um assobio misterioso e
fica invisível. Além disso, vive
com o joelho machucado. E sabe
comandar as pulgas,
pernilongos, mosquitos e pulgas
que vivem atazanando a vida da
gente. E tem outra coisa, o
malandrinho aprecia fumar
cachimbo e consegue soltar
fumaça pelos olhos.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 202348