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1 Desenhando o “Ambiente-Mundo” com a Ayahuasca 1 Maria Lúcia da Silva Coelho-UFPA 2 Resumo Inspirada na ideia de Antropologia gráfica de Tim Ingold (2015), o presente artigo tem como objetivo fazer uma descrição através de desenhos produzidos a partir de minhas experiências com a ayahuasca, assim como a percepção do ambiente vivido no Centro de Unificação Rosa Azul (CURA), no uso ritual da ayahuasca, tendo como pano de fundo as noções de arte visionária e a concepção de cultura como habilidade. Estas questões fazem parte de uma trajetória de pesquisa e trabalho de campo que iniciei na graduação, e atualmente venho desenvolvendo no mestrado. Palavras-chave: Desenho, Percepção, Ayahuasca, Antropologia gráfica, Arte Visionária. Abstract Inspired by the idea of graphic anthropology by Tim Ingold (2015), this article aims to make a description through drawings produced from my experiences with ayahuasca, as well as the perception of the environment lived in the Center of Unification Rosa Azul (CURA ), in the ritual use of ayahuasca. Against the backdrop of notions of visionary art and the conception of culture as skill. These issues are part of a research and fieldwork trajectory that I started at undergraduate level, and I am currently developing in the master's degree. Keywords: Drawing, Perception, Ayahuasca, Graphic anthropology, Visionary art. Introdução A arte, então, não imita a natureza, pois na raiz arte e natureza brotam da mesma fonte. (INGOLD, 2015, 261) As relações entre homem e a natureza, são tão antigas quanto a presença de ambos nesse planeta, essa analogia não existe apenas em relação a constante busca do homem por modos de sobrevivência, como também possui uma forte ligação com 1 Trabalho apresentado no III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 19 e 21 de setembro de 2018, Belém/PA. 2 Graduada em Ciências Sociais (UFPA), com ênfase em Antropologia. Mestranda do Programa de Pós- Graduação em Estudos Antrópicos na Amazônia (PPGEAA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), aonde realizo a pesquisa “Desenhando Juntos: Percepção, Ambiente e Saúde nas Práticas Artísticas e Culturais entre os Ayahuasqueiros do CURA, orientada pela professora Drª Gisela Macambira Villacorta.

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Desenhando o “Ambiente-Mundo” com a Ayahuasca1

Maria Lúcia da Silva Coelho-UFPA2

Resumo

Inspirada na ideia de Antropologia gráfica de Tim Ingold (2015), o presente artigo

tem como objetivo fazer uma descrição através de desenhos produzidos a partir de

minhas experiências com a ayahuasca, assim como a percepção do ambiente vivido

no Centro de Unificação Rosa Azul (CURA), no uso ritual da ayahuasca, tendo

como pano de fundo as noções de arte visionária e a concepção de cultura como

habilidade. Estas questões fazem parte de uma trajetória de pesquisa e trabalho de

campo que iniciei na graduação, e atualmente venho desenvolvendo no mestrado.

Palavras-chave: Desenho, Percepção, Ayahuasca, Antropologia gráfica, Arte

Visionária.

Abstract

Inspired by the idea of graphic anthropology by Tim Ingold (2015), this article aims

to make a description through drawings produced from my experiences with

ayahuasca, as well as the perception of the environment lived in the Center of

Unification Rosa Azul (CURA ), in the ritual use of ayahuasca. Against the

backdrop of notions of visionary art and the conception of culture as skill. These

issues are part of a research and fieldwork trajectory that I started at undergraduate

level, and I am currently developing in the master's degree.

Keywords: Drawing, Perception, Ayahuasca, Graphic anthropology, Visionary art.

Introdução

A arte, então, não imita a natureza, pois na raiz arte e natureza brotam da

mesma fonte. (INGOLD, 2015, 261)

As relações entre homem e a natureza, são tão antigas quanto a presença de

ambos nesse planeta, essa analogia não existe apenas em relação a constante busca

do homem por modos de sobrevivência, como também possui uma forte ligação com

1 Trabalho apresentado no III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os

dias 19 e 21 de setembro de 2018, Belém/PA. 2 Graduada em Ciências Sociais (UFPA), com ênfase em Antropologia. Mestranda do Programa de Pós-

Graduação em Estudos Antrópicos na Amazônia (PPGEAA), da Universidade Federal do Pará (UFPA),

aonde realizo a pesquisa “Desenhando Juntos: Percepção, Ambiente e Saúde nas Práticas Artísticas e

Culturais entre os Ayahuasqueiros do CURA, orientada pela professora Drª Gisela Macambira Villacorta.

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a busca de mais conhecimento. No entanto, grande parte das disciplinas são

construídas a partir de uma visão dualista entre natureza e cultura, individuo e

sociedade, corpo e mente, sujeito e objeto.

Autores como Carvalho e Steil (2013) vêm discutindo o que eles

denominaram como epistemologias ecológicas, expressão criada com a ideia de

demarcar um espaço para autores de várias áreas disciplinares e teóricas que

oferecem conceitos e pistas consistentes para a quebra de algumas dualidades

contemporâneas.

Essa desconstrução de dualidades entre “natureza e cultura, indivíduo e

sociedade, corpo e mente, sujeito objeto”, vem traçando uma base conceitual para a

compreensão, de que as relações com o ambiente não estão separadas, e sim

envolvidas em uma relação de “estar vivo para o que nele acontece” (INGOLD,

2015)

De acordo com Soares (1994) a natureza abarca várias dimensões humanas e

constitui uma relação cosmológica, onde todas as criaturas vivas passaram a serem

vistas como seres sensíveis, dotadas de inteligência. Desse modo se faz necessário a

discursão sobre a inteligência das plantas, bem como sobre as formas como esses

conhecimentos são expressos.

Neste artigo, procuro inicialmente, evidenciar questões relacionadas à

antropologia gráfica, para então, refletir os desenhos como ferramentas

metodológicas da etnografia. Os desenhos têm como objetivo descrever minhas

experiências com o uso da ayahuasca, assim como a percepção do ambiente vivido

no Centro de Unificação Rosa Azul (CURA). O presente estudo também apresenta o

conceito de arte visionaria, evidenciando as “visões” que geram, de forma aleatória,

imagens e sons que acompanham os movimentos. Para podermos compreender

como se dá esse processo de ampliação de sentidos, proporcionados pela ayahuasca,

que modifica o “estar” no mundo, por meio da continuidade homem e natureza.

A ayahuasca é uma bebida de origem indígena, feita a partir da junção de

duas plantas nativas da floresta Amazônica, o cipó jagube (Banisteriopsis caapi) e

pela folha chacrona (Psychotria viridis), também conhecida como daime, vegetal,

yagé, nepe, kahi, caapi, cipó, entre outras denominações (LABATE, 2004). A

etimologia da palavra ayahuasca segundo Luna (1986) pertence ao dialeto andino

aquéchua. Onde “Aya” significa “pessoa morta, alma, espirito” (“dead person, soul,

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spirit”) e “Waska” quer dizer “corda, liana, cipó” (cord, liana, vine”). Na tradução

para o português significa corda(liana, cipó) dos mortos (das almas, dos espíritos).

A bebida possui propriedade enteógena3, que parecem operar como intermediário capaz

de proporcionar vários efeitos físicos e psicológicos, diversas sensações e aumento de

percepção. O efeito mais conhecido são as visões, também chamadas de miração, que

deriva do verbo “mirar” que remete a olhar, contemplar, A etimologia da palavra

miração origina-se do substantivo “mirante” é a junção das palavras contemplar mais

ação. (GREGANICH, 2010).

A partir do século XX, o uso disseminado da ayahuasca para além das

fronteiras indígenas, através da introdução de seringueiros nesse contato com a

ayahuasca resultou na composição de “novos movimentos religiosos” (SOARES,

1994), que surgem no coração da floresta Amazônica. Esse fenômeno vem ganhando

força na formação de diversos grupos religiosos que se desenvolvem pelo Brasil a

fora, fornecendo um extenso material para reflexão em diversas áreas de

conhecimento.

As religiões que fazem uso da ayahuasca em seus rituais são Denominadas

por Labate (2004) como religiões ayahuasqueiras. Dentre essas podemos destacar o

Santo Daime, a União do Vegetal, a Barquinha, Neo-Xamanismo e o Centro de

Cultura Cósmica Suprema Luz de Paz e Amor. Cada um desses grupos possuem

seus mitos e histórias em relação a ayahuasca, tendo uma simbologia particular

dentro da cultura de cada grupo, tanto nos aspectos rituais, visões espirituais,

cosmologia, quanto pelo poder de cura da bebida, que é considerada sagrada por

todos esses grupos (MIKOZS, 2009, 54).

Desde 2010 venho realizando pesquisas relacionadas ao uso ritual da

ayahuasca no contexto urbano. A primeira vez que entrei em contato com esse

universo místico religioso da ayahuasca, foi através da disciplina Tópicos Temáticos

em Antropologia4, no ainda campus da UFPA na cidade de Marabá, onde me

graduei em Ciências Sociais (2007) com ênfase em Antropologia.

3 De acordo com MacRae (1992, p.16), o termo enteogeno deriva do grego antigo entheos que significa

“Deus dentro”; a derivação enteógeno significaria então “o que leva o divino para dentro de si”. Esse

termo foi proposto por Wasson et. Al. (1969), com o intuito de livrar a bebida de certos rótulos como

substância alucinógena ou droga, que acabam gerando preconceitos e conflitos em relação aos conceitos

nativos sobre a bebida. 4A disciplina com o tema “Nova Consciência Religiosa”, foi ministrada pela professora Gisela

Macambira Villacorta.

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Durante a disciplina discutimos a nova consciência religiosa no Brasil, e

entre as várias religiões que tratamos, estava o Santo Daime, que me despertou

interesse, principalmente com o artigo de Luís Eduardo Soares (1994), intitulado “O

Santo Daime no contexto da Nova Consciência Religiosa”. No qual o autor narra

sua experiência ao tomar o chá da ayahuasca em um ritual do Santo Daime,

discutindo e problematizando questões teóricas e metodológicas na interpretação

antropológica. Após as leituras e discussões dos textos, partimos para o trabalho de

campo, ou seja, fazer uma “observação participante” Malinowiski(1976), no ritual

do Santo Daime.

Após o trabalho de campo, produzi um ensaio etnográfico descrevendo

minha experiência com o uso ritual da ayahuasca, nos primeiros momentos do

trabalho de campo, já tendo certa inserção entre o grupo estudado, me deparei com

várias situações que mostravam a importância das mirações, visões proporcionadas

pela bebida. As mirações começaram a despertar através de imagens, alguns

insights, para a produção de desenhos.

Neste sentido, no meu trabalho de Conclusão de Curso (TCC), produzi uma

etnografia sobre as experiências e percepções das mirações dos daimistas que se

tornaram meus interlocutores na igreja do Santo Daime Luz de Maria – Marabá.

Fazendo assim uma descrição não somente no texto etnográfico, como também

graficamente essas mirações. Com a produção de pinturas de natureza visionária,

produzi em torno de sete telas, buscando interpretar minhas mirações e dos meus

interlocutores.

Atualmente, a pesquisa no mestrado vem sendo realizada no Centro de

Unificação Rosa Azul (CURA)5, que está inserido na religião ayahuasqueira

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brasileira conhecida como Centro de Cultura Cósmica Suprema Luz de Paz e Amor.

Segundo Labate (2007) esta escola espiritual é denominada por seus discípulos

como “trabalho de Unificação” decorrente da junção da linha do Santo Daime com a

União do Vegetal, que se baseiam no uso do chá enteógeno da ayahuasca.

Partindo de uma perspectiva mais ampla, que se encontra além das margens

da religiosidade do uso ritual da ayahuasca, esse artigo procura analisar de que

5 Gostaria de enfatizar que essa pesquisa foi autorizada pelos Mestres dirigentes do Centro de Unificação

Rosa Azul. Dessa forma, agradeço aos Mestres Dirigentes e a comunidade do CURA por me acolher. 6 Esta categoria é utilizada por Biatriz Caiuby Labate para denominar o conjunto de religiões que fazem

uso da ayahuasca em seus rituais.

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forma as habilidades artísticas vem sendo desenvolvida no CURA, através de uma

reflexão a cerca das relações artísticas e religiosas durante e após os rituais.

Metodologicamente, o artigo resulta de uma reflexão de natureza

teórico/bibliográfica apoiada em estudos antropológicos sobre o uso ritual da

ayahuasca. O procedimento metodológico empregado também consiste em uma

descritiva, no sentindo proposto por Tim Ingold (2015) onde a etnografia é uma

forma de descrição, na abordagem antropológica. Nesse sentido o método utilizado

para a realização desse estudo foi o trabalho de campo com abordagem qualitativa,

de acordo com as diretrizes ressaltadas por Malinowiski(1976), isto é, através da

observação participante nos rituais do CURA.

Para além dos elementos citados acima, utilizo também recursos

metodológicos da Antropologia Visual para apresentar uma narrativa visual, um

diário de campo gráfico Azevedo (2016), com o objetivo de descrever percepções e

“visões” através da produção de desenhos a partir de experiencias visionárias, que

contribuem para a compreensão dos elementos simbólicos e culturais do grupo

estudado. Nesta direção dialogo com a proposta de antropologia gráfica, onde o

pesquisador tem como objetivo não apenas observar e representar o observado, e sim

“participar com ele do mesmo movimento generativo” (INGOLD, 2015, p.319).

Descrevendo o cenário: por uma percepção sagrada do ambiente mundo.

O Centro de Unificação Rosa Azul (CURA) esta localizado na região

nordeste do estado do Pará, mas especificamente em um sitio localizado no

município de Marituba, região metropolitana de Belém, na Rua 1° de maio,

passagem Beira Rio, 2-156, no bairro Uriboca. O CURA foi fundado em 2009 e está

inserido na religião ayahuasqueira conhecida como Centro de Cultura Cósmica

Suprema Luz de Paz e Amor, conhecida como linha da Unificação, decorrente da

junção das práticas ritualísticas da União do Vegetal com as práticas do Santo

Daime, a comunidade conta atualmente com 50 membros fardados. O uso ritual da

ayahuasca no CURA, tem por base elementos de diversas tradições religiosas,

indígenas, africanas e hinduístas ligadas a Nova Era. (LABATE, 2007).

No sítio do CURA, podemos observar diversas árvores frutíferas como: açaí,

mangueira, limoeiro, cacaueiro, jambeiro entre outras, além de uma plantação muito

bem zelada de jagube e chacrona, plantas utilizadas para o preparo da ayahuasca,

chamada nesses contexto de vegetal. No entorno do “salão do vegetal”, espaço onde

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são realizadas as sessões de concentração e de bailado, podemos notar a presença de

muitas flores e plantas que ornamentam um pergolado, e uma linda fonte, além de

dois banquinhos de concreto. O local é usado para a prática de meditação, assim

como área de socialização das crianças e dos adultos.

Em frente ao salão está localizada a casa de feitio lugar onde são realizados

os trabalhos de preparo do vegetal, que será consagrado durante os rituais. O espaço

aparenta ser muito bem zelado, decorado com bandeirinhas coloridas, além de peças

místicas, como: mandalas, filtros dos sonhos e mensageiros dos ventos. O sitio conta

ainda com duas casas de apoio, além de um pequeno igarapé. Todos esses locais

compõem o ambiente sagrado desta comunidade.

As experiências religiosas vivenciadas a partir do uso ritual da ayahuasca

proporcionam momentos de interação entre homem e a natureza, que se configura

em uma totalidade mística, panteísta que parece está atrelada as formas de saber que

envolve o culto ecológico presente no mundo alternativo (SOARES, 1994, p.198).

Entretanto, esse processo é geralmente visto através de uma verdade científica não

provida de mistérios, encarada como a verdade absoluta, inserida em uma visão

sistemática de conhecimento, onde os conceitos não abarcados por ela são

considerados como o bárbaro, o ilusório, o irrelevante, o mitológico, etc., que

deveriam ser controladas, dominadas, iluminadas. “tudo o que o cânone não legitima

ou reconhece é declarado inexistente. A não existência assume aqui a forma

ignorância ou de incultura” Santos, (2006, p.787). Contudo essa configuração abre

margem para o surgimento de novas formas de conhecimento, porém os que não se

encaixam na lógica da soberania epistêmica ocidental, são vistos como ignorância,

mitos, crenças ou formas de superstição.

Carvalho e Steil (2013, p.64) reconhecem que o modelo de epistemologia

convencional vai de encontro com as expectativas semióticas, que restringe o mundo

ao que pode ser interpretado e conceituado pela linguagem, onde o ser humano cria

um conjunto de alegorias e se atrela a ela. Dando origem a um mundo visto

figurativamente como o substantivo onde tanto os objetos, quanto os seres não

humanos possuem agências. As agencias são preenchidas por substâncias adequadas

que envolvem atribuições para além das necessidades humanas.

Neste sentido, a percepção do ambiente, pensado pelos ayahuasqueiros como

“natureza”, está em dialogo com a discussão apontada por Carvalho e Steil (2014)

sobre as epistemologias ecológicas e o paradigma ecológico proposto por Tim

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Ingold. As visões ecológicas de mundo são capazes de quebrar barreiras entre

conhecimentos, refletindo na liberdade e na criatividade praticada por aqueles que se

encontram nas bordas do conhecimento, que estão envolvidos pelas misturas e que

de algum modo escapam dos padrões fragmentados e rígidos de ciência, religião,

arte e filosofia (CHIESA, 2017, p. 429). No contexto das religiões ayahuasqueiras, a

concepção do ecológico se traduz em grande parte no “xamanismo urbano”

praticado por eles.

No CURA a natureza é percebida como um ambiente sagrado, o mundo e os

elementos que o compõem são visualizados de maneira unificada ou holística, essa

sacralidade se dá a partir de um conjunto doutrinário de símbolos vivenciados na

experiência religiosa, mas também numa experiência concreta. Ingold coloca que a

vida social dos seres humanos está intimamente envolvida com o restante da

natureza, como parte do que está acontecendo nela, em um movimento de troca entre

o humano e o não humano (INGOLD, 2015, p.32).

Desta forma, Chiesa (2017, p. 428), dialogando com o pensamento de Tim

Ingold e Gregory Bateson, compreende que para haver uma percepção sagrada do

universo, dos seres, das coisas e de si mesmo, é necessário atenção às continuidades,

às conexões e aos fluxos que se deslocam, integram e cruzam todo o ambiente. Isso

implica constituir “conexões ou (re) ligações entre diferentes planos ou dimensões e

entre os próprios seres humanos (e não-humanos)”.

Pensar com sagrado ou sagradamente significa (re)ver ou (re)ler o ambiente

de uma forma mais atenta, traçando continuidades simétricas entre todas as

coisas encontradas no mundo vivido e, ao mesmo tempo, percebendo suas

diferenças e variações. Dito de outra maneira, perceber o ambiente, as

coisas ou as situações da vida cotidiana de uma forma sagrada, implica um

modo específico de ver e agir sobre o mundo. Nesse sentido, o sagrado

refere-se mais a um modo singular de ver (ou ler) as coisas que

propriamente às coisas em si; refere-se, enfim, a um modo de ver que

procura ir além do que comumente se vê. (CHIESA, 2017, p. 428)

Desse modo a construção de uma percepção sagrada do ambiente nas

manifestações religiosas desenvolvidas no CURA, abrange questões relacionadas ao

“comprometimento ontológico”, que se configura em uma forma diferente de

perceber, sentir e se relacionar com todos os elementos ao redor. A partir do uso

ritual da ayahuasca, ocorre vivencias de natureza curativa em um contexto de

purificação espiritual, esse aspecto de cura envolve um retorno a sua verdadeira

essência.

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O sagrado pensado como unificação e não como separação, busca quebrar

barreiras epistemológicas construídas por um modelo hegemônico de fazer ciência,

que segundo Ingold se propõe somente em observar e descrever a vida de forma

fragmentada e desconectada de uma totalidade, porém em não mudá-la. Dessa

maneira “em vez de superfícies territoriais segmentadas em domínios, ou campos de

estudos, temos algo mais semelhante a cordas, trançadas com os correspondentes

fios ou linhas de interesse”. (INGOLD, 2013, p.12)

Arte visionária

A ayahuasca conhecida em vários lugares do mundo proporciona a partir de

seu uso o desenvolvimento cognitivo de diversas habilidades, o presente estudo, tem

como delimitação compreender as habilidades artísticas medidas por ela. Neste

sentido, é essencial a compreensão dos aspectos teóricos e metodológicos que

envolvem essas práticas artísticas e culturais.

A criatividade é um termo usado para descrever o comportamento do sujeito

ou de grupos sociais. Através da arte ocorre um processo de unificação entre

intenção e descoberta dessa realidade que possui uma multiplicidade e

complexidade, a expressão artística desenvolve a capacidade humana de se libertar

das amarras dos esquemas limitantes do cotidiano. Para Barbosa (2003), ao abordar

o fenômeno da criatividade, considera que a investigação do comportamento criativo

requer a análise da interação entre o indivíduo e seu ambiente.

Desse modo Shanon descreve: “Aparentemente, a ayahuasca pode levar a

mente humana a alturas de criatividade que excedem em muito as normalmente

encontradas”. Tendo em vista que muitas vezes as visões expõem elementos

incomuns, permitindo ao artista a partir dessas visões para a produção de obras

criativas e de grande originalidade, que são confeccionadas durante ou após o efeito

do chá, geralmente as imagens ficam gravadas na lembrança. (SHANON, 2000,

P.18)

Esse estilo peculiar de arte recebeu o nome de Arte visionária, onde o artista

se dispõe a produzir obras relacionadas às suas visões, provenientes de certos

estados de consciência, podendo ser facilitadas por alguns tipos específicos de

psicoativos, como a ayahuasca. Além de serem associados a visões provenientes de

sonhos, induzidas por meditações, por diversos transes ou por outras substancias

psicoativas (MIKOSZ, 2009).

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Para Mikosz (2009) Arte Visionária pode ser entendida como um fazer

artístico onde a produção está condicionada às experiências provenientes de Estados

Não Ordinário de Consciência (ENOC)7 como os produzidos pela ayahuasca e

podem ser divididos em dois momentos, no primeiro sobressaem os padrões

geométricos, luminosos e espirais, no segundo momento esses padrões vão se

modificando adquirindo formas cada vez mais complexas, formando um

emaranhado de animais, plantas, edificações, etc.

Esse movimento artístico procura transcender o mundo físico, a divisão entre

matéria e energia, tempo e espaço, através da produção de obras que retratam visões

de experiências místicas e espirituais. No ENOC o artista faz ligação com vários

fluxos de consciência, ao mesmo tempo que gera a aceleração de pensamentos em

múltiplos pensamentos, que podem ser controlados ou não (MIKOSZ, 2009).

Durante essa experiência a pessoa pode pensar refletir e analisar, simultaneamente

vários temas e conceitos diferentes. O que gera uma incrível fonte de criatividade,

Pois a percepção das visões interiores e as alterações visuais em relação ao mundo e

aos objetos possibilitam uma ampliação conceitual da realidade, resultando em

diversas possibilidades de experiências complexas e únicas.

A Arte visionária possui profunda relação com a arte rupestre e a arte

xamânica, podemos encontrar traços desse estilo em diversos movimentos artísticos

através da historia. Segundo Caruana (2013, p.13) “A arte visionária é tão antiga

quanto ás primeiras gravuras do Xamã nas paredes das cavernas. Essas expressões

artísticas se manifestavam entre os egípcios, entre os astecas, os maias e toltecas”.

Esse estilo artístico pode ser encontrado em varias obras de artistas clássicos

como William, Max Ernst, Gustav Moreau e Salvador Dalí. Atualmente existem

vários artistas que se dizem representantes da Arte Visionária, inspirados por suas

visões, que possuem grandes significados, podendo ser pessoal ou espiritual

(MIKOSZ, 2009).

A Arte Visionária na atualidade não defende um novo estilo específico, é

possível encontrar artistas visionários sem treinamento acadêmico, como os

naïfs, ou muito técnicos e de grande destreza e virtuosismo similar aos hiper-

realistas. Ela pode usar materiais convencionais de pintura e desenho, ou

7 ENOC são estados de consciência diferentes do estado normal de vigília. O termo foi cunhado por

Arnold M. Ludwig em 1966 e popularizado por Charles Tart em 1969, para descrever mudanças quase

sempre temporárias no estados de consciência dos indivíduos. Não deve ser confundido com níveis

alterados de consciência.

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então todos os tipos de inovações tecnológicas da fotografia, cinema e

computação. Embora predominantemente figurativa, há artistas que

trabalham com formas abstratas ou uma mescla de ambas. (MIKOSZ,2009:

103).

Para Caruana (2013) a Arte Visionária é caracterizada pela tentativa de

encontrar uma nova linguagem visual, uma nova forma de traduzir e superar

contradições inerentes em relação ao ver o que não pode ser visto através de

expressões artísticas. As imagens produzidas a partir dessas expressões conseguem

fazer um mesclado entre arte, mitos e sonhos, criando assim uma mistura de

diferentes símbolos culturais, dando origem a novas formas de expressar o

“invisível”. O “invisível é o fundo do visível, ou seja, o que excede a percepção é

testemunho da inesgotabilidade do real” (Carvalho e Steil, 2013, p.63).

Experiências desenhadas: observação e descrição.

Figura 1 - “beija-flor desvenda”, técnica mista, 2017.

Fonte: Diário gráfico

Um desenho pode explicar mais que muitas palavras, para Ingold o ato de

desenhar é tão importante quanto andar e falar. Pois a cada passo que damos, nossos

corpos se movimentam, gerando pistas e vestígios, que marcam a terra ou qualquer

outra superfície com pegadas, linhas e desenhos. No entanto o desenho é pouco

valorizado pela sociedade contemporânea, deixado de lado ao contrario da escrita,

que é a metodologia mais utiliza para descrever e explicar a vida. (Ingold, 2015, p.

259)

Sempre gostei de desenhar, mas confesso que meus primeiros desenhos não

me pareciam tão bons, mas os percebia como uma forma de conhecer o mundo, na

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medida em que fui fazendo uma maior imersão no uso ritual da Ayahuasca, minha

habilidade foi se expandindo. Atualmente venho utilizando o desenho como

ferramenta metodológica importante para a pesquisa etnográfica, no sentido de

buscar novas formas de narrativas para alinhar graficamente, saberes, observação de

rituais, percepção de ambiente e práticas culturais, para compreender o grupo

pesquisado, o qual estou inserida, e os múltiplos pontos de vista que se tem do

ambiente-mundo.

Neste artigo, parto também da minha própria experiência na pesquisa da

graduação, para pensar a prática do desenho na antropologia, período em que

realizei pesquisa de campo junto ao grupo do Santo Daime – Luz de Maria, na

cidade de Marabá-PA. Nesta fase produzi vários desenhos de natureza visionária, em

meu diário de campo, entre os anos de 2011 a 2013, embora ainda não tivesse

contato com a literatura referente a proposta de uma antropologia gráfica, ou sobre

“diários gráficos” cadernos portáteis, cuja principal forma de registro é através de

desenhos. (SALAVISA, 2008, p. 196)

De acordo com Azevedo (2016) o principal objetivo do diário gráfico é

expandir as formas de “notação, registro e produção do conhecimento

antropológico ao deslocarmos o texto escrito”, ou seja, pensar o desenho como

modo de observação e descrição. Nesse sentido, Ingold propõem “uma antropologia

gráfica – ou “antropografia”- centrada na linha desenhada. Acoplando os

movimentos de fazer, observar e descrever, essa antropologia nos chama a fazer três

coisas: seguir os materiais, copiar os gestos e desenhar as linhas”(INGOLD, 2015,

261).

De acordo com Ingold Seguir os materiais nada mais é do que modificar o

foco de objetos acabados para os procedimentos de origem e separação dos

elementos que compõem o objeto. Copiar gestos consistir em alinhar a observação

do comportamento do instrutor ao produzir ações em um mundo no qual ele próprio

está suspenso no movimento. Ou seja, observar de forma criativa, mesmo na

manutenção de uma tradição estabelecida. Desenhar linhas no sentido Ingoldiano

seria uma reconexão entre descrição e observação, no sentido de unificação e não de

projeção, onde o processo se dá a partir de delineamento ao invés de composição

verbal. (INGOLD, 2015, p. 262)

Em julho de 2011, depois de quase um ano de trabalho de campo junto ao

grupo do Santo Daime – Luz de Maria, decidi meio que intuitivamente fazer um

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desenho para descrever minhas experiências visuais e de meus interlocutores. Após

tomar a ayahuasca (ainda sob o efeito do chá) comecei a desenhar as imagens que

surgiam em uma sequência estonteante, mergulhei profundamente nas visões e

enxerguei nitidamente cada detalhe. Conectada com o universo interior que se abria,

surgiam mandalas e imagens relacionadas a natureza como florestas, animais,

cachoeiras e montanhas.

A produção do desenho que surgiu como ferramenta para descrever a minha

experiência com a ayahuasca, não aconteceu de forma tão simples, pois as visões

que a bebida proporciona, se alteram a todo momento, o que acabou gerando outros

contornos quando desenhada no papel. Buscando dar conta da tarefa de desenhar as

múltiplas imagens, formas e símbolos que surgiam, percebi que as visões

apresentadas através do desenho contemplavam a estética muito particular do

misterioso universo da cultura ayahuasqueira. A plástica de um mundo que só pode

ser acessado a partir da percepção especifica desse chá.

Figura 2 – “O preparo” (feitio), técnica desenho, 2011

Fonte: diário gráfico

Esses desenhos apresentam aspectos simbólicos e alegóricos das religiões

ayahuasqueiras, a partir da sua produção pude registrar graficamente detalhes dessas

informações. Elementos reais e conteúdos das visões, deram forma a cenas que

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ocorreram durante o feitio, momento em que a bebida é produzida em um ritual que

geralmente acontece durante uma semana.

As habilidades foram fluindo, e com o tempo fui aprendendo através da

ayahuasca a traçar linhas cada vez mais bem feitas, os desenhos eram produzidos

durante ou após os rituais, e na maioria das vezes sob os efeitos do chá, que não me

atrapalhavam e sim me guiavam para uma abertura de percepção. Algumas vezes

pude ver o desenho se formar no papel e eu apenas o cobria.

Ao desenhar essas visões sentia como se uma janela se abrisse para um

universo interior, vivências que muitas vezes traziam elementos da natureza. Os

desenhos brotavam e ganhavam novas formas, e cores. A imagem abaixo mostra a

evolução do desenho, onde usei lápis de cor em cores néon.

Figura 3 – “visões do astral”, técnica mista, 2011.

Fonte: Diário gráfico.

Através da apresentação desses desenhos, pretendo expor as relações que são

estabelecidas entre o que eu desenho e as minhas visões, para compreende de que

forma a ayahuasca vem auxiliando na expansão da criatividade. Quando vejo algo e

quero trazer para a forma visível, ou seja, para o papel, tenho o intuito de trazer vida

para aquela visão, pois elas já existem em algum lugar.

Ao desenhar as visões, estou em dialogo com a discussão de Merleau-Ponty

(2007) de que o papel do artista em relação a sua arte é ser um veiculo capaz de dar

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visibilidade a alguma coisa invisível. A imagem a seguir são desenhos criados a

partir das minhas experiências visionarias sem o uso da ayahuasca, porém são

elementos que gravei na memoria e trouxe para o papel esse ano.

Figura 4 – “percepção”, técnica mista, 2018.

Fonte: diário gráfico.

Quando estou desenhando sinto uma onda de sentimentos que invade meu

corpo e me conduz para dentro da própria ayahuasca ,os desenhos formam uma

vibração que modela, conserta, cura e cria. Não são apenas representações do mundo

externo e natural, e sim do vasto mundo interior, evidenciando as visões que geram

de forma aleatória, imagens e sons que acompanham os movimentos. Dessa forma,

podemos compreender a plasticidade dos corpos, pois a ayahuasca amplia os

sentidos, modificando o “estar” no mundo, por meio da continuidade entre o homem

e natureza.

Atualmente o trabalho de campo vem sendo realizado no CURA, aonde

venho vivenciando experiências de natureza visionária e convivendo efetivamente

com a comunidade, participando de sessões de hinário e concentração, mutirões,

Feitio, rituais do sagrado feminino, terço e ensaio dos hinários,

A pesquisa está baseada nas propostas de uma antropologia gráfica, não

visando apenas fazer uma descrição completa, do passado ou do presente, mas sim

engajada a pessoas e coisas em um movimento de unificação e observação. Essa

observação tem como objetivo para além de representar o observado, participar com

ele das atividades e “do mesmo movimento generativo” e não apenas “à

contemplação distanciada e desinteressada de um mundo de objetos”, pois estou em

desenvolvimento quando me envolvo com o ambiente. (INGOLD, 2015, p.319)

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O desenho que apresento a seguir foi produzido durante o primeiro feitio que

participei no CURA, que aconteceu em julho de 2018. Depois de comungar a

ayahuasca, chamada neste contexto de vegetal, sentei em uma cadeira na casa de

feitio, e comecei a desenhar, enquanto os homens cuidavam da panela no preparo do

chá, o desenho foi acontecendo no fluir das emoções, inspirado pelo vegetal e pelos

mistérios da rosa azul.

Figura 5 - “Mistérios da ayahuasca”, técnica mista, 2018.

Fonte: Diário gráfico.

Na noite do dia 19/07/2018, todos foram para a casa do feitio, onde cantamos

o hinário “O Amor Divino” recebido por Antônio Gomes. Todos comungaram o

vegetal, algumas pessoas bailaram, e outras continuaram limpando as folhas da

chacrona, enquanto os homens continuavam suas atividades de feitio, finalizei o

desenho no final do hinário.

Decidi começar outro desenho, para presentear o Mestre Franco, um senhor

de 74 anos de idade, que ficou muito encantado com minha arte, ele possui grande

conhecimento sobre os mistérios da ayahuasca, e participou do processo de criação

do CURA.

Estava inspirada por todo aquele universo místico que me rodeava e comecei

a traçar os primeiros contornos, o desenho foi surgindo como intuição, nesse

momento comecei a agradecer pela experiência de poder descrever através do

desenho, esse universo invisível que a ayahuasca me proporciona. As linhas que

compõem esse desenho me levam a um estado de contemplação do invisível, uma

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transferência do plano espiritual invisível para o papel. A seguir imagem do

desenho que fiz para presentear o Mestre Franco.

Figura 6 – “Rainha da floresta”, técnica mista, 2018.

Fonte: Diário gráfico.

Meus desenhos formam uma costura de imagens mentais que se multiplicam

e se ligam, através do movimento do lápis que desliza sobre o papel, momento de

ligação entre percepção e emoções, onde a ayahuasca produz um mesclado de

sentimentos que envolvem emoções e práticas criativas. Para Ingold, o desenho é

compreendido como uma forma de conectar as experiências de observação e

descrição, a partir de uma relação do observador com aquilo que se desenha

(INGOLD 2013, p.126-129).

Inspirações Finais

Para encerrar este artigo, resgato aspectos que norteiam as discussões de

Ingold que podem se constituir em um elemento interessante para a construção de

uma antropologia gráfica, tal como apontada anteriormente. Não se trata de uma

antropologia preocupada somente em observar e descrever sobre a vida, e sim

observar e descrever com a vida, e todos os seres que nela habitam. Ingold propõem

que durante a observação o pesquisador esteja atento a tudo que está acontecendo ao

seu redor, e a todos os movimentos da vida (INGOLD, 2012, p.28).

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O exercício de desenhar visões em um diário gráfico está envolvido em um

movimento de caminhar em direção ao universo místico e religioso da cultura

ayahuasqueira, a qual está intimamente ligada a natureza, para então compreender

aquilo que se busca. Embora o a ciência moderna venha ao longo dos anos

silenciando a natureza, através da classificação fragmentada das disciplinas, para

dessa forma controlar e não dialogar com ela, que resulta no afastamento da vida,

deixando de perceber e sentir tudo aquilo que envolve a natureza.

Ao ir mais além, nesse decifrar de percepções, buscando compreender

minhas experiências visionárias, em meio a teorias e conceitos científicos, encontrei

fissuras epistemológicas e outras possibilidades de conhecimento, que me fizeram

refletir a respeito da necessidade de se fazer um estudo sobre esses saberes

silenciados pelo conhecimento cientifico. A fim de estimular o dialogo entre

diferentes conhecimentos e sistemas de pensamentos.

As reflexões apresentadas são fruto de uma construção que envolve desenhos

como metodologia, para demostrar a existência de outras formas de se fazer

antropologia, outros modos de se fazer arte. Pois os saberes da ayahuasca constituem

um profundo mar de epistêmes, ou seja, não possuem um conhecimento definitivo

sobre a realidade, assim como as visões que ela proporciona estão abertas a diversas

interpretações, que de algum modo convidam o pesquisador a descrever e observar

um universo de possibilidades que se apresentam.

Dessa forma, constatei através do trabalho de campo e com a construção de

um diário gráfico, que é possível a interação entre o pesquisador e o ambiente-

mundo, uma vez que essa relação de trocas vem me trazendo maiores imersões no

desenvolvimento da pesquisa, assim como na composição de habilidades artísticas.

Neste sentido, posso concluir que os saberes da ayahuasca constituem algo muito

real para os indivíduos que dela se utilizam e que antes de serem desprezados,

precisam ser mais bem interpretados e compreendidos pela ciência.

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