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DESAMPARO E COMPLEXO DA "GRANDE MAE", EM FERNANDO PESSOA Nao falaremos tanto de desamparo, mas, sim, de um desamparado: Fernando Pessoa. Falaremos, sobretudo, dos seus abandonos de infancia e dos regayos "maternos" que 0 Poeta buscou para 0 seu estranhissimo desamparo hist6rico. L6gica dificil, por tratar-se de um grande "fingidor" que, na vida e na arte, sempre se evadiu para nao revelar-se. Sera, no entanto, numa atenyaofenomenol6gica it sua expressao estetica que, sobretudo, procuraremos construir essa conexao causa-efeito entre a fragilidade do desamparo ea urgencia do acolhimento psiquico. Qualquer recorrencia hist6rica tera, foryosamente, 0 valor de confirmayao ou esclarecimento. "Em todas as epocas eem todas as culturas - escreve Gilbert Durand - os homens imaginaram uma Grande Mae, uma mulher maternal para a qual regress am os desejos da humanidade." (Les Structures anthropologiques de L'Tmaginaire, PUF, Paris, 1963, p. 50) Esse complexotraduz-senum cansa90 e numa angustiainiciais que van desaguar na aspira9ao a um regayo acolhedor onde seobtenha 0 ---------------------------- !!.!!..vista Perspectiva Filos6hca - VolumeVI - 17" 11-Jan.-fun. /1999 123

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DESAMPARO E COMPLEXO DA"GRANDE MAE", EM FERNANDOPESSOA

Nao falaremos tanto de desamparo, mas, sim, de umdesamparado: Fernando Pessoa. Falaremos, sobretudo, dos seusabandonos de infancia e dos regayos "maternos" que 0 Poetabuscou para 0 seu estranhissimo desamparo hist6rico. L6gicadificil, por tratar-se de um grande "fingidor" que, na vida e na arte,sempre se evadiu para nao revelar-se. Sera, no entanto, numaatenyao fenomenol6gica it sua expressao estetica que, sobretudo,procuraremos construir essa conexao causa-efeito entre afragilidade do desamparo e a urgencia do acolhimento psiquico.Qualquer recorrencia hist6rica tera, foryosamente, 0 valor deconfirmayao ou esclarecimento.

"Em todas as epocas e em todas asculturas - escreve Gilbert Durand - oshomens imaginaram uma Grande Mae,uma mulher maternal para a qualregress am os desejos da humanidade."

(Les Structures anthropologiques de L'Tmaginaire, PUF, Paris,1963, p. 50)

Esse complexo traduz-se num cansa90 e numa angustia iniciais quevan desaguar na aspira9ao a um regayo acolhedor onde se obtenha 0

----------------------------!!.!!..vistaPerspectiva Filos6hca - Volume VI - 17" 11-Jan.-fun. /1999 123

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repouso universal de tudo quanta (' ... r>ntn com arealidade presente acarreta. POI' ai Sl;; li; ;_, ",om fl'eqUencia, asaudade dl:! l ." "...•..it busca de qual\.(illl Ildlaiso perdido.

Em Fernando Pessoa perpassa, pOI' toda a obra, 0

sentimento dessa orfandade, e desse desamparo, apelando para umaespecie de regac;o cosmico onde 0 Poeta possa neutralizar aqueleseu " ... supremissimo cansac;o / issimo, issimo, issimo / Cansac;o..."(II, 87). Hoje julgamos poder afirmar, com seguranc;a, ser 0 tema dainfancia perdida um dos centros especialissimos da sua pulsaopoetica, e aquele a que, forc;osamente, tem que referir-se 0 seuComplexo da "Grande Mae". Infancia historica e infanciatranscendentalizada ou arquetfpica.

Na referencia ao distanciamento e atavica nostalgiadessa infancia perdida, ganha maior recOlie a enorme constelayaode obsessoes ou subtemas da poetica pessoana. A orfandadepsiquica, a solidao, a imagetica de ocultamento, a exaltayao dosonho e fuga do real, as vivencias esotericas e alquimicas, 0 pendorplatOnico, 0 profetismo messianico, 0 nacionalismo mistico e 0

nihilismo onto-psicologico com suas agressividades absurdistaspodem, e devem, tomar como referencia esse fundissimosentimento do pat'aiso perdido 0 qual, em llltima analise,desembocara na procura de um regayo materna e universal - 0

regayo de uma Grande Mile.As invocac;oes as realidades de acentuado pendor orfico

e de protec;ao cosmica, na obra pessoana, podem ser vistas comooutros tantos caminhos de aconchegamento nesse "EternoFeminino" e, consciente ou inconscientemente, de evasao aoconfronto direto com a realidade presente a qual, desde sempre, 0

desencantou: "Minha tristeza e esta - / A das coisas reais" (T,179).

perdeu a possibilidade de tel' um regayo maternal; ficoudesamparado; existencialmente desamparado. Desamparo quetentara, em patie, compensar na poesia ("Para mim ser poeta / E aminha maneira de estar sozinho ..."), nessa poesia onde apeiara paraum regayo de Grande Mae, em sbustituic;ao aos regayos perdidosna infancia historica. Analisemos, pois, muito sumariamente, tresdessas perdas da infancia as quais poderao tel' configurado 0 seudesamparo.

Fernando Pessoa - podiamos dizer de forma mais oumenos simplista - ao sofrer, na sua infancia historica, a morte dopai, 0 abandono da "velha casa", e, especial mente, 0 segundocasamento da mae, perdeu para sempre a sua condiyao de menino;

Tinha Fernando Pessoa exatamente 5 anos e um mesquando 0 pai morreu, depois de longos afastamentos, devido atuberculose. Sabemos do verdadeiro encantamento na relac;ao pai-filho; tal encantamento e seduc;ao ecoam em muitos dos poemas eatitudes que rodeial'n a infancia do Poeta. Parece, no entanto, existirum estranho pacto de silencio sobre a figura do pai. Em toda aobra, literaria ou nao, nao se the conhece uma unica referenciaexplicita, 0 que tem suscitado intrigantes hipoteses interpretativasdo psiquismo do Poeta. Chega-se a admitir ser a figura do pai, agrande ausencia do homem-poeta Fernando Pessoa. Maisdeterminante, possivelmente, que a propria "perda" da mae.Autores ha que chegam a insinuar esta relac;ao como uma possielpista para a sua, tao decantada, sexualidade branca. Seria pudor?Polo de transferencias? Supervalorizac;ao? Sera pelo mesmo motivoque nao parece go star de tocar na sua infancia verdadeira, a nao serdepois de a desviliuar? Se 0 menino feliz que era comec;ou a serjogado para fora do "pat'aiso terreal" pela molie do pai, nao serial11ais compensador deixar intocavel esse mundo conceliado antesde nele entrar 0 "mal"?

Nao parece, pOl' exemplo, irrelevante que 0

aparecimento do seu primeiro heteronimo - 0 "Chevalier de Pas"

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(0 "Cavaleiro do Nao") - ocon'esse logo ap6s a motte do pai. E naadeixam, mesmo, de ser curiosos os term os com que, poucos mesesantes da m01te, 40 anos depois, 0 Poeta ainda se refere a essepersonagem:

longinqua, parece apontar para uma felicidade real coexistente coma vida do pai. Igualmente uma leitura intettextual do poemaAniversario, de 1929, situa-o, claramente, na festa dos 5 anos dopoeta, urn mes antes de 0 pai morrer. Nessa festa, 0 Poeta era aindafeliz e crianya pOl'que0 pai era vivo:

e cuja figura, nao inteiramente vaga,ainda conquista aquela parte da minhaafeir;ao que confina com a saudade."

(TCI,203)

"No dia em que celebravam 0 dia dosmeus anos / Eu era feU::: e ninguemestava morto."

Hoje, atraves de uma hermeneutica de texto, quase ninguem duvidaque, quando 0 menino de 6 anos sustentava uma correspondenciacom 0 seu "Cavaleiro do Nao" - 0 "Chavalier de Pas", a quemescrevia cmias, e dele as recebia -, era com a figura do jovem pai,mOlio aos 42 anos, havia poucos meses, que dialogava. E e aindasintomatico que 0 seu segundo heteronimo, tambem frances, ja daadolescencia - 0 "Jean Seul" ("Joao Sozinho") -, tenha um nomeonde ecoa a mesma solitariedade psiquica e seja ele 0 heteronimoque fala unicamente de sexo.

Poderao ser estes, e todos os demais heteronimos, umadas "vinganyas" interiores a transcendente ausencia do pai? Queoutro, senao ele, poderia representar melhor essa "figura, naointeiramente vaga", onde se misturam "afeiyao" e "saudade"? Ese,para Pessoa, grande parte da infancia autentica, enquanto valormitico-simb6Iico, pode estar centrada na figura do pai, nao pod eraconstituir-se esta num dos maiores p610s da sua afeiyao domestica?Ate pOl'que, fisica e psiquicamente, Fernando Pessoa era muitoparecido com ele. E 0 fato de tel', tao cuidadosamente, guardado,durante a vida inteira, tudo 0 que se referia ao pai (as cmtas, ascronicas musicais e Olltros peliences), revela que, em boraremontando a um periodo longinquo e vago, essa presenya e essafascinayao foram muito fOlies. A simples exegese de poemas comoo N° IV da "Chuva Oliqua" (1, 32-34), paralelamente ao halo demusicalidade com que, pOl' toda a Obra, rodeia a infancia

Foi, simbolicamente, 0 ultimo aniversano de sua vida. Com amOlie do pai, deixou de tel' direito a festa e a infancia:

"Hoje jit nao far;o anos. / Duro. / Somam-se-me dias."

E e curioso constatar que e tambem a partir desta ausencia quesurge 0 Fernando Pessoa repentinamente dialogando com os seusfantasmas e tornado "adulto" antes do tempo.

Portal reviravolta se pode avaliar da intensidade afetivada sua ligayao com 0 Pai e, consequentemente, da carga deabandono e desamparo que tao radical perda provocou.

A Segunda afeiyao, e outras das profundas origens doseu desamparo, foi a "perda" da Mae. Perda, nao ja pela mOltefisica, - efetivamente ela morrera quando Femando Pessoa tera ja37 anos - mas pOl'Olltro tipo de mOlie que, irremediavelmente, osseparou. Nao pretendemos construir, sobre a figura da mae,nenhuma plataforma de interpretayao global da obra ecOlTIpoliamento do Poeta, assim como 0 nao fizemos sobre a figura

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do pai. E sempre perigoso e, foryosamente, parcial. Nao podemos,no entanto, minimizar a carga psiquica que terao representado aspecu1iares re1ayoes entre mae e filho.

Urn ana ap6s a mOlie do pai, a mae casa-se de novo,deixando Lisboa, rumo a Africa do SuI. E com este segundocasamento, deixou 0 menino Femando Antonio de ser 0 "filhounico" e 0 unico p610 das afeiyoes de todos. Deixou,definitivamente, de ser "0 menino da sua mae", como D. MariaMadalena Ihe chamava:

mae. Encontraram-se no seu esp61io inluneros poemas e fragmentosdedicados a mae. Datados desde os 7 anos de idade ate poucosmeses antes da 11101ie.E estes textos confidenciais sao, regra geral,apelos de regayo e de acolhimento matemais. Quando em 1913,com 25 anos, compara 0 tel' mae, a suavidade de urn cair de tarde -"Suave, como tel' mae e irmas, a tarde rica desce ..." (1, 25) - estaimplicitamente confessando a sua concepyao sobre a excelencia daposse materna. E essa posse que persiste como identificayao dainfancia real, do aconchego e dos carinhos reais. Em poemas como:o veu das lagrimas mio cega (X, 137-9), a evocayao da mae eainda mais direta e, coincidentemente, associada ao "antigo lar" e a"crianya que fui" (p. 137). E, tambem coincidentemente, e a musicaque destapa toda essa saudade da infancia hist6rica que Pessoarevive dolorosamente enquanto recorda sua mae tocando:

"Filho zfnico, a mae the dera / Um nome eo mantivera: / '0 menino da sua mae '."

POI' boca de Bemardo Soares, escreveu um dia no seu grandediario, 0 Livro do Desassossego: "Estou vendo minha mae tocar. / E essas

maos bran cas e pequenas, / Cz!ia caricianunca mais me afagara -, / Tocam aopiano, cuidadosas e serenas, / Un soir aLima."

"Minha mae morreu f11l1itocedo, e eu naoa cheguei a conhecer ...'·

Ora, sabemos bem que foi 0 pai que Fernando perdeu, nao aonascer, mas aos 5 anos. Esta verdadeira execuyao simb61ica da mae- que em verdade mOITeu 30 anos depois, e que ele, mesmo delonge, adorou ate ao fim - significa efetivamente que 0 Poeta teveconsciencia de tel' sido a ela que, naquele momenl0, perdeu parasempre. No mencionado poem a de 1926, 0 Menino da sua Mae, atransposiyao e ainda mais impressionante: desta vez e a mae queperde 0 filho. Simbolizado no corpo de urn jovem soldado, "debalas trespassado", ele "jaz mOlio, e arrefece", "0 menino da suaMae" (1, 219-220).

Ao contrario do intrigante pacto de silencio quegum'dou em relayao ao pai, perpassa pOI'toda a obra pessoana umapersistente nostalgia e explicito queixume da ausencia, Oll perda, da

Estes gestos maternos de acariciar parecem ecoar, repetidas vezes,nas inllmeras evocayoes pessoanas disfaryadas, por vezes, emoutras formas de presenya. Temos, pOI'exemp10, aque1a 1embranya-desejo de 1929 (6 anos antes do presente poema):

"Qual e a mao cariciosa / Que hit-de serenfermeira minha -. "

ou, ainda mais claramente, em Alvaro de Campos, os repetidosgestos hipnotizadores da noite, como figura maternal, chegando-seit orfandade do Poeta ou as suas formas de doenya de alma:

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"Vem, maternal / Pe antepe enfermeiraantiquissima (...)"

em guardar intacto aquele seu estatuto de "filho unico" que osoutros Ihe roubaram. Filho unico, e sempre crianya. Nunca sequeixou diretamente. Fe-Io sempre em forma de pulsao poetica ounas confidencias de escritos intimos. Em 30 de maryo de 1935,poucos meses antes de morrer, ja com 47 anos, aindaconfidenciava, em frances, para a mae que, na sua percepyao, haviaquebrado 0 pacto de exc1usividade com ele:

"Vem envolver na noite manto branco / 0meu coraC;ao... / Tranqiiilamente comoum gesto materna afagando."

(Ibid, 157);

"Vem, e embala-nos, / Vem e afaga-nos ...'·(Ibid, 154)

"Mama, mama / 0 teu menino / tornadogrande / Continua igual; somente estamais triste / Em qualquer lugar onde meescutes / Vi?: eu sou sempre 0 teumenino, /0 teu menino pequeno / que setornou grande / Cheio de lagrimas e deduvidas. "

(Cit. pOI'R. Brechon, Fernando Pessoa - estranho Estrangeiro,Record, Rio de Janeiro, 1998, p. 516)

A conc1usao e sempre a me sma. Consciente do "horror do tempo,porque flui," (X, 135), Pessoa associ a aos gestos maternos 0 sabol'do irremediavel hist6rico:

"Oh, essa mao e morta e osso ..•·(VII, 109),

"Cuja caricia nunca mais me afagara."(X, 137) Com a morte do pai e 0 segundo casamento da mae,

outra grande perda marcara a vida inteira do poeta FernandoPessoa: a perda da "velha casa" - 0 4° andar do Largo de SaoCarlos, onde vivera, "filho unico", com 0 pai e a mae vivos, ate aos5 anos e meio. A pattiI' dai, Fernando Pessoa habitant outras 23casas e endereyos diferentes, lunas vezes com familiares, outrasvezes sozinho; mas a nenhum deles fara qualquer referencia, nosquase 30 mil textos da sua obra. Apenas a "velha casa" einsistentemente invocada como testemunha inutil de uma felicidadeperdida. Somente nela fora amado, somente nela tivera um lar,Somente nela tivera sossego, acolhimento e amparo. FernandoPessoa, desde que 0 "expulsaram" da "velha casa", ficou 0 resto davida ao relento, do "Iado de fora", desalojado e obsessivamentenostalgico duma felicidade domestica:

Pode parecer estranho que 0 nosso Poeta, tendoconvivido com a mae ate aos 37 anos de idade, s6 pareya tel'guardado dela os carinhos da primeira infancia, recordados nasaudade:

"So a lembranc;a me acarinha / 0 corac;aocom que nao posso"

Integrado no novo casamento da mae, entre os cinco novos irmaos,Fernando Antonio conservou-se, no entanto, profundamenteestranho, arredio e misantropo, como se, teimosamente, insistisse

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"Pobre velho coso do minho infiincioperdida; / Quem diria que eu medesacolhesse tanto; / Que edoeumenino?"

(II, 55)

seroes de mllsica e de festas e, sobretudo, a sua infanciaarquetipicamente intocada. Ninguem ali morreu porque todos seimortalizaram nos seus sonhos de adulto, como se pudessecontinual' a dizer, como outrora:

"Que e de quem dormia sossegado sob 0

teu teto provinciano?"

"Na casa antiga (..) / Eu era feli= eninguem estava morto."

E se restassem duvidas de que 0 seu ser adulto se identifica com adol' da pel'da da "velha casa", 0 proprio Poeta desabafa:

E na l'esposta, 0 Poeta ultrapassa ja a esfera da saudade e cai 110

desespero nihilista: "0 que eu sou hoje e terem vendido acasa."

"Esta maluco. / Quem de quem fui? Estamaluco. Hoje e quem eu sou"

Este "quem eu sou" e 0 Poeta que, du h 10 de D)ra em que seencontra, e jogado eternamente na rua, nao pode vel' mais do que"uma casa com a janela fechada" (II, 56). E uma forma de admitirexplicitamente que anda a monte, desalojado e sem lugar celio pararesguardal' 0 menino que foi:

"Outros terCio/ Um lar, quem sabe, amor,pa=, um amigo, / A inteira, negra solidCio/ Esta comigo."

"A crianr;a que fui chora na estrada. /Deixei-a ali quando vim ser quem sou; /Mas hoje, vendo que 0 que sou e nada, /Quero ir buscar quem fui onde ficou."

(X, 90)

E a associa<;ao explicita da "velha casa" com 0 sentido de infancia,- infancia e "velha casa", duas realidades redutiveis - aindapersiste a poucos meses da morte:

"Vejo, a chorm' / (..) 0 antigo lar, / Acrianr;a que fui. "

Este 4° andar do Largo de Sao Carlos ha de permanecer,pois, da mesma forma que foi 0 cais do porto, "uma saudade depedra" (II, 161). Nele, como dissemos, continuam vivos, pOl' umaespecie de prescisao temporal, 0 pai, a mae, as tias, as criadas, os

E como que um eco longinquo daquele outro poema de 6 anosantes:

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e a casa dos que me amaram tremeatraves das minhas litgrimas."

tent constituido uma das marcas mais fundas do radical desamparoque acompanhou existencialmente 0 poeta Fernando Pessoa.Desamparo universal que 0 levani a procurar nos grandeselementos c6smicos uma especie de regayo substituto, uma"Grande Mae" substituta para a orfandade de alguem que foraexpulso do pat'aiso da infancia, mas que a ele, teimosamente,desejou sempre regressar:

Estas chamadas a "velha casa" da infancia, como outrastantas compensayoes para as dores da vida adulta, passam a ser umaespecie de marca poetica pessoana. Um dos exemplos maisemblemMicos e 0 "cOlte", ou mergulho, que 0 Poeta realiza POl'dentro da gigantesca histeria da Ode Maritima, fazendosubitamente abrir 0 clado da infancia:

"Era na velha casa sossegada ao pe dorio ..,";

,,6 meu pass ado de infancia, boneco queme partiram! / Nao poder viajar para 0

pass ado, para aque/a casa e aque/aafeiC;ao, / E ficar lit sempre, semprecrianc;a e sempre contente!"

"E a minha infancia feli:: acorda, comouma 16grima, em mim / 0 meu passadoressurge, como se esse grito maritimo /fosse um aroma, uma vo::, ou eco dumacanc;ao / Que fosse chamar 0 meupassado / POl' aquela felicidade quenunca mais tornarei a ver.·' Varios podem ser os apelos a "Grande Mae", os apelos

a esse regayo universal como expressao de um "Eterno Feminino"que acolhe a orfandade dos homens. Robelt Brechon lembra, pOl'exemplo, que

"Mas todo este tempo nao tirei os olhos domeu sonho longinquo, / Da minha casaao pe do rio, / Da minha infancia ao pedo rio, das janelas do meu quarto dandopara 0 rio, de noite, / E a pa:: do lua"esparso nas 6guas! ..."

"alguns psicanalistas consideram 0 alcoolcomo um substituto da mae, e que 0

bebado encontra, na garrafa, 0

equivalente ao seio materno."(Fernando Pessoa - estranho Estrangeiro, Record, Rio de Janeiro,

1998, p. 114)

Poderiamos analisar, tambem, esta dimenS30 em Fernando Pessoa,jet que a sua· relay30 com a bebida foi muito forte e, pOI' vezes,dramMica. Assim como poderiamos, talvez, considerar a sua cidade

E facil concluir, pelo que foi dito, que a perda da "velhacasa", associada a mOlte do pai e ao afastamento afetivo da mae,

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de Lisboa ("Oh, Lisboa, meu Lar!" - Livro I, p. 65) como un,grande rega<;o onde 0 desamparo do Poeta se refugiava ao fundir-sena multidao solitaria.

"Tornei-me um homem da multidCio -escreve mll11 jragmento, em ingles -Nunca tive confiam;a em mim enquantoso::,inho. De manhCi a noite e de noite atede manhCi, eu desli::,o velo::,menle pOl'entre a multidCio (...). Aperlo a me/(corpo contra as outros corpos como limacriam;a se agarra a mCie mllnatempestade. Tento fechar as olhos comoa criam;a lenla jifgir do clarCio dorelompago; tento tapar as ouvidos comoa criam;a tenta enterral' a cabec;a nocola da mCiepal'a nCioescutar 0 trovCio.'·

identificayao teilirica "sentiI' tudo de todas as maneiras" (II, 226);ser "toda a gente e toda a parte" (II, 152); "como po de todos osventos" (II, 29), quer seja nas formas mitigadas de placidezhipn6tica as quais, de uma maneira ou de outra, vao tecendo asoculta<;oes e adormecimentos de uma orfandade suposta. Asimagens de "mllsica", "Ionges", "Iuar", "silencios", "penumbra","frio", "nevoa", "sombra", "vento" ... constituem, entre muitosoutros, bord5es poeticos nos quais repousa essa constru<;ao da fugahipn6tica rumo ao outro lado de si mesmo e da vida; rumo a uminonimado rega<;omaterno.

A par da terra fisica, vem a Noite. A noite, que a1em deser figura de mOlie e de sono, e, sobretudo, figura de mae. MOIie,sono e mae: tres realidade associadas no mesmo rito simb6lico.

Esta imagem da Lisboa como figura materna e acolhedora, voltara,mais elaborada no Livro do Desassossego. Mais do que 0 grande"Lar" que contem, dentro de si, aquele outro pequeno "Lar"arquetipico - "a velha casa"-, a Lisboa-cidade pode ser tambemuma substituta da mae ausente ou perdida.

Mas nao queremos , aqui, alongar-nos com toda a gamade possiveis simbologias maternas. Vamos cingir-nos, apenas, atres, as quais, pela sua intrigante recorrencia, podem ser vistas, naobra pessoana, como outras tantas obsessoes do "eterno feminino".Sao elas: a Mile-Terra, a Mile-Noire e a Mile-Agua.

"Toma-me 6 noite eterna nos teus brac;os /E chama-me teufilho",

suplicara 0 Poeta, no seu tristissimo poema Abdicac;ilo (I, 217). Enele que, ap6s um simb61ico desnudamento, de cunhomarcadamente psicanalitico, nao encontrara outra solu<;ao deregresso senao abandonar-se a calma duma noite original:

"E regressei (Inoite antiga e calma / comoa paisagem ao morrer do dia."

(Ibid, 217)

A terra fisica - concretamente nos seus espayosc6ncavos e convexos - aparece, insistentemente, como se fosse umleit motiv obsessivo numa imagetica de dormencia fisica. E a"Mae-Natureza", quer seja no seu apelo de universalidade e

Nas grandes Sllplicas a noite em Dois Excertos de Odese Passagem das Horas, de Alvaro de Campos, alem dos poemas ANoite e do, ja citado, Abdicac;ilo, do Pessoa OIi6nimo, esta noite echamada cinco vezes de "Mae", quer no substantivo, quer na formaadjetivada, referindo-se a ela, invariavelmente, como supremo

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refugio. Depois de pOI' a nu a pobreza da sua humanidade; depoisde confessar que nao sabe "sentir", "ser humano", "conviver comos homens", "ser util", "ser prMico", "tel' um Jugal' na vida", "umdestino entre os homens", "uma obra", "uma forya", "umavontade", "uma razao para descansar" (cf. II, 219), vem a sllpl icado Poeta, como a dum filho que busca, na mae, alivio, acoJhimentoe descanso:

"Vem, maternal, / Pe antepe, enfermeiraantiquissima, que te sentaste / Acabeceira dos deuses das fes jit perdidas,/ ... / vem, Noite silenciosa, / Vemenvolver na noite manto bran co / 0 meucorar;ao..."

"POI' isso se para mim materna, 6 noitetranqiiila ... / Tu, que tiras 0 mundo, aomundo, tu que es a pa~, / ... / Vem paramim, 6 noite, estende para mim as maos,/ E se pescor e alivio, 6 noite, sobre a

. h fi "nlln a ronte ...

Sem tel' sido um poeta aparentemente amorosopodemos, pois, afirmar que foi na "Grande-Mae" - a noite - que asua ternura e orfandade buscaram mais visiveJ acoJhimento. Comessa noite se realizou 0 pacto submerso que, quaisquer que sejam ascategorias imagimirias, ten! que ser visto como de significadomaterno: a repetiyao, em varios tons, de uma unica sllpJica:

"Torna-me, 6 noite eterna, nos teus brar;os/ E chama-me teu filho."

A imagem de frescor sobre a fronte ~ como a sugeriruma situayao de febre - aparece, iguaJmente, em dois Excertos deOdes, e em identico contexto. Aqui, esta ainda mais explicita atransferencia da orfandade do Poeta para os brayos da Mae-Noite,bem como a sofreguidao pOl' cuidados maternais, bastante comunsem crianyas doentes:

2.3 - A "Mae-Agua"

Finalmente e a Agua, com tudo 0 que implica e sugere,um terceiro grande veiculo de regresso ao seio materno, na obrapessoana. Mar, pOlios, ilhas, praias, naus, cais, navegayoes,horizontes, areias, chuva e nevoeiros ..., constituem urn dos maisobsessivos tecidos imageticos do poeta da Ode Maritima.SimboJogia aquMica, onde vai um profundo significado de entregae acolhimento. Como se a orfandade psiquica - e hist6rica - tivesseencontrado nos brayos da "Mae-Agua" 0 acolhimento que negaramao seu desamparo. Alguns dos mais altos momentos da criayaopessoana (Ode Maritima, Mensagem, 0 Marinheiro e, mesmo,Passagem das Homs) sac de ambiencia aquMica. as horizontes

"Vem, dolorosa, / ... / Mao .fi'esca sobre atesta em febre dos humildes, / Sabol' deitgua sobre os litbios secos dosCansados."

E tao a serio leva esta imagem da mae velando 0 filho enfermo quechega a apelidar a Noite de "enfermeira antiquissima", com asfunyoes especfficas de sentar-se a cabeceira da sua cama e cobri-Jo:

Page 10: DESAMPARO ECOMPLEXO DA GRANDE MAE, EM FERNANDO PESSOA · Fernando Pessoa - podiamos dizer de forma mais ou menos simplista - ao sofrer, na sua infancia historica, a morte do pai,

geograficos do proprio Pessoa real, centraram-se em duas cidadesportuarias (Lisboa e Durban), ou em grandes cruzeiros maritimos.E se Ricardo Reis e Alberto Caeiro significaram, respectivamente,as fugas do agir e do pensar, Alvaro de Campos - supostamenteengenheiro naval, nascido em cidade de mar (Tavira) e formado emregiao de lagos (Escocia) - parece ter vazado, nas grandestrepidayoes transaWinticas, as longas macerayoes reprimidas:"Meus proprios tedios tornados dinamicos", como dinl um dia (fl,171). E, po is, sobretudo 0 mar - irmao gemeo da noite - que Iheevoca dimensoes de infinito, que fecunda a terra, que despel1a asaudade como "cobiya do longe" e que parece guardar, inacessivel,mas definitivo, 0 lugar do supremo acolhimento.

Este lugar pode ter 0 nome de llha ou llhas - "ilhasaf0l1unadas" (v, 86); "ansiada ilha" (0. P., 53); "ilhas dos mares dosuI" (1, 160); "ilha velada" (V, 102); "ilha do suI impossivel" (U,248); "ilha extrema do suI" (I, 160); "ilha proxima e remota" (V,101) -lugares que, postos como fascinio de indefiniyao e possivelconcretizayao desse terminus, vao obsessivamente nutrindo sonhos,estimulando a busca e compensando a ausencia de um regayoperdido.

Sera, enfim, 0 mar - "mar que nao tem tempo ou'spayo" (V, 72); "mar salgado" (V, 70); "mar universal" (V, 73);"mar sem fim" (V, 60); "mar anterior a nos" (V, 58); mar que e"materno vulto" (V, 67) em que Deus "espelhou 0 ceu" (V, 58) -sera 0 mar, repetimos, um dos mais profundos catalisadores daCriay30 pessoana e, sobretudo, da sua viagem ao outro "Mar": aseia materna. E uma viagem lustral, purificada pela agua, em que,no seu caso concreto, todos os cansayos e angllstias da existenciaadulta serao afogados ate voltar a sentir-se, de novo, crianya. Sel11ser um lugar real, e uma condiyao de ordem metafisica. Condiyaoque pode, simultaneamente, ser sin6nimo daquela sua "velha cas a"do Largo de sao Carlos, ou do carinho do "Pai" e da "Mae",perdidos para sempre na sua primeira infancia de Lisboa.

ConcIuo com um devaneio do Poeta. Devaneio, queparece subentender, tambem, um apelo:

"Pensa Os ve.:es, com um deleite triste, quese um dia, num futuro a que eu ja naopertem;a, estas ji'ases, que escrevo,durarem com louvor, eu terei enjim genteque me 'compreenda: as meus, a fconuiaverdadeirapco'anelanas cer eseramado. "

(Livro, 1, p. 213)

Essa familia, "os seus", somos nos todos. Respeitemoseste devm'1eio de Fernando Pessoa. Quem sabe se 0 "nascer e seramado" em n6s, nao se constituira na ultima compensayao para 0seu desamparo e no ultimo caminho para, finalmente, encontraruma "Grande Mae".

OPP, I, II e III: Obra Poetica e em Prosa: organizay30, introduyoes enotas de Antonio Quadros, Lello & Jrm30 Editores, Porto, 1986.

TCI: Textos de Critica e de Intervenr.;ao, Ediyoes Atica, Lisboa., 1980.

I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, Xl: Obras completas de FernandoPessoa. Coley30 Poesia, Ediyoes Atica, Lisboa.

LIVRO, I e 1I: Livro do Desassossego: organizay30 e transcriy30 dostetos por Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cwll~a, prefacio eorganizay30 de Jacinto do Prado Coelho, 2 vols., Atica, Lisboa,1982.

O.P.: Obra Poetica. Organizay30, Introduy30 e Notas de Maria AlieteGalhoz. Rio de Janeiro, RJ, Editora Nova Aguiar S.A., 1976.