DESAFIOS DA CAMINHADA NA SAÚDE INDÍGENA E O … · Hospital da Missão é um hospital de pequeno...
Transcript of DESAFIOS DA CAMINHADA NA SAÚDE INDÍGENA E O … · Hospital da Missão é um hospital de pequeno...
DESAFIOS DA CAMINHADA NA SAÚDE INDÍGENA E O ENCONTRO COM UM
PRÍNCIPE KAIOWÁ
Josiane Emilia do Nascimento Wolfart1
Cátia Paranhos Martins2
RESUMO:
Este trabalho apresenta-se como Relato de Experiência das vivências ao longo de minha
formação no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), com ênfase em
Saúde Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). No decorrer do texto
serão apresentadas vivências, discussões e problematizações enriquecidas com literatura do
campo da Saúde Coletiva, que permite ampliar o olhar sobre os sujeitos na saúde e no SUS,
Política Nacional de Humanização, Política Nacional de atenção aos povos Indígenas,
Educação Permanente em Saúde além de contribuições de leituras da Antropologia. Os relatos
foram construídos através dos registros colhidos em diário de campo. Sobre a formação na
área da Saúde Indígena trago algumas experiência vivenciadas no Hospital e Maternidade
Indígena Porta da Esperança. Dentre elas destaco o trabalho realizado com minha equipe de
residentes no Centro de Reabilitação Nutricional, conhecido também como centrinho ,
junto a um usurário indígena da etnia Kaiowá, internado para tratamento da desnutrição. Nas
considerações finais apresento reflexões acerca destas vivências que fazem questionar o papel
do trabalhador de saúde e a sua formação para o trabalho com a comunidade indígena.
Palavras-chave: Residência Multiprofissional em Saúde; Educação Permanente; Política de
Humanização; Saúde Indígena.
1 INTRODUÇÃO
Este texto é um recorte do meu Trabalho de Conclusão de Residência apresentado ao
Programa de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), com ênfase em Saúde Indígena
da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e apresenta uma parte das vivências ao
longo de minha formação como profissional de saúde para e no Sistema Único de Saúde
(SUS). Os Programas de Residência Multiprofissionais de Saúde são orientados pelos
princípios e diretrizes do SUS, ligado à Comissão Nacional de Residência Multiprofissional
em Saúde (CNRMS), coordenado pelos Ministérios da Saúde e da Educação.
1 Psicóloga Especialista em Saúde Indígena pelo Programa de Residência Multiprofissional da UFGD.
2 Docente do Curso de Psicologia e da Residência Multiprofissional em Saúde da UFGD.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
2
O campo de práticas dos residentes contempla o Hospital Universitário (HU) e a
Atenção Básica, como por exemplo, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou em UBS do
Subsistema de Saúde Indígena da Reserva Indígena Jaguapiru e Bororó e o Núcleo de Apoio a
Saúde da Família (NASF). Considerando a importância da integração entre os serviços da
rede SUS, o Programa tem convênios que possibilitam o processo de aprendizagem em outras
unidades de saúde, sendo eles a Secretaria Especial de Saúde Indígena3 (SESAI), Hospital e
Maternidade Indígena Porta da Esperança e Hospital Evangélico Dr. e Sra. Goldsby King.
Além disso, o residente é convidado a participar de Congressos, Fóruns, Seminários,
Audiências Públicas, e demais ações políticas e de Controle Social, que vêm para somar
conhecimento à formação profissional e fortalecer o compromisso com a cidadania.
A construção deste trabalho como Relato de Experiência foi escolhido pela
possibilidade reflexiva sobre a formação no e para o SUS. Além de fornecer “subsídios para
avaliação dos estudantes como recurso à reformulação da prática e, sobretudo, propicia o
desenvolvimento dos princípios éticos e da relação com os indivíduos da comunidade”.
(OLIVEIRA et al, 2012, s.p.) Os relatos foram construídos através dos registros colhidos em
meu diário de campo. Para Morschel e Barros de Barros (2014) tudo que é observado e
considerado relevante é aquilo que, de uma forma ou de outra, venha afetar a saúde das
pessoas. Por isso, é importante durante a permanência em campo de formação ser um agente
transformador capaz de pensar e problematizar as ações tendo como produto final destas
relações a produção de vida e autonomia entre os atores envolvidos neste cenário.
As discussões apresentadas neste trabalho foram enriquecidas com literatura do
campo da Saúde Coletiva, que permite ampliar o olhar sobre os sujeitos na saúde e no SUS. A
Política Nacional de Humanização (PNH) que defende o SUS e a valorização da vida e a
Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas4 (PNASPI) que garante “aos
povos indígenas o acesso integral à saúde, de acordo com os princípios e diretrizes do SUS,
contemplando a diversidade social, cultura, geográfica e política [...] reconhece a eficácia de
sua medicina e o direito desses povos à sua cultura”. (MS, 2002, p.13) Utilizou-se também
3 A Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (SESAI) surgiu através do Decreto Presidencial nº 7.336 de
outubro de 2010, que define a secretária como órgão responsável por gerir o subsistema de Saúde Indígena. O
Subsistema de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas foi criado através da Lei 9.836 de 1999. Tem por objetivo
garantir o direito a saúde e organizar os serviços de Saúde Indígena através de seus Distritos Sanitários Especiais
Indígenas. 4 A Política Nacional de Atenção aos Povos Indígenas foi criada pela Portaria nº254 de 31 de janeiro de 2002 e
regulamentada pelo Decreto nº 3.156.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
3
produções de pesquisadores da Antropologia como Pereira (1999, 2006), Vietta (2003),
Urquiza e Cols (2013), Platero (2010, 2015), Siqueira e Brand (2004), dentre outros. As
leituras auxiliaram nas reflexões das problemáticas vivenciadas principalmente no que diz
respeito ao trabalho da saúde com os povos originários do município de Dourados. Para
ilustrar um pouco como foi minha formação na área da Saúde Indígena trago algumas
vivências no Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança onde passei um período de
quatro meses.
2 HOSPITAL E MATERNIDADE INDÍGENA PORTA DA ESPERANÇA (HOSPITAL
DA MISSÃO)
O Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança (HIPE), conhecido também
como Hospital da Missão5, foi fundado no ano de 1963. Possuía 38 leitos e atendia exclusiva
a população indígena, obreiros e funcionários da Missão Evangélica. Hoje atende também a
população não indígena, funcionando como porta aberta. Possui 52 leitos subdivididos em
Maternidade, Pediatria, Centro de Reabilitação Nutricional (CRN), Clínica Médica e
Ambulatório. Trabalham na unidade aproximadamente cem profissionais, dentre eles, muitos
ou a maioria é de missionários contratados pela Missão Evangélicos Caiuá6.
A assistência à saúde é prestada através de princípios religiosos, como amor ao
próximo, além dos princípios e diretrizes do SUS. Alguns dos trabalhadores, como os
médicos, enfermeiros, funcionários da administração e os capelães residem em casas cedidas
pela Missão, localizadas próximo ao hospital, objetivando assistência imediata comunidade. O
Hospital da Missão é um hospital de pequeno porte e baixa complexidade. É contratualizado
com o Município assim como o Hospital da Vida e Hospital Universitário, para onde são
encaminhados usuários com quadro clínico mais grave.
5 Neste trecho trago apenas a descrição dos serviços ofertados pelo Hospital e Maternidade Indígena Porta da
Esperança (HIPE). Não foi intensão problematizar cada lugar aqui apresentado. Contudo, ressalto que, durante
minha passagem pela Missão percebi que a questão religiosa e histórica assola este lugar. Interfere diretamente
na oferta dos serviços prestados à comunidade indígena. Neste sentido admito que seja necessário a produção de
trabalhos que possam explorar estas questões, como é o caso de se compreender mais profundamente a
existência do Centro de Reabilitação Nutricional (CRN), a Maternidade, bem como a casa de fogo. Parece-me
que a crença indígena é subjugada a religião do branco. 6Hospital da Missão é uma unidade de saúde criada no ano de 1963 pela Missão Evangélica Caiuá, agência
missionária que trabalha com populações indígenas fundada no ano de 1928, pelo pastor presbiteriano Albert
Maxwell.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
4
Uma parcela considerável da comunidade indígena atendida no Hospital da Missão é
proveniente da Reserva Indígena Jaguapiru e Bororó, além de outras regiões do estado como
Caarapó e Amambai. São encaminhamentos referenciados pelas Unidades Básicas de Saúde
administrada pela SESAI. A visita aos usuários internados é aberta, ou seja, em qualquer
momento do dia seus familiares podem acompanhá-los. A equipe multiprofissional é
composta por dois médicos, seis Enfermeiros, um Nutricionista, um Assistente Social e um
Fisioterapeuta. Os técnicos de enfermagem em sua grande maioria falam a língua guarani ou
kaiowá, alguns são da etnia Terena.
As principais patologias atendidas são doenças respiratórias, tuberculose,
gastroenterite, pneumonia, doenças do aparelho vascular, HIV, doenças de pele e desnutrição.
Embora não seja possível problematizar, chamou a minha atenção, que existe ainda um
espaço nomeado como casa de fogo que é frequentada pelos usuários indígenas e suas
famílias que utilizam o espaço para fazer suas rezas em volta do fogo. Ali também tomam seu
chimarrão e se aquecerem durante o inverno. Em contra partida, existe o serviço de capelania,
ofertado de maneira integral. Cada capelão fica responsável por fazer orações na recepção do
hospital e nos leitos de internação. Pregando a palavra para todos os usuários e seus
acompanhantes.
2.1 O RETORNO PARA CASA: A HISTÓRIA DO PRÍNCIPE KAIOWÁ
“chuva e sol, poeira e carvão, longe de casa sigo o roteiro mais uma estação, e a
saudade no coração (...).” (Luiz Gonzaga)
Neste trecho do trabalho apresento parte da vivência no Centro de Reabilitação
Nutricional7 (conhecido também como centrinho) com minha equipe de residentes que na
ocasião era formada por duas Enfermeiras, uma Psicóloga (eu) e uma Nutricionista. A história
que conto trata do trabalho desenvolvido junto a um usurário8 indígena da etnia Kaiowá
internado para tratamento da desnutrição, processo que levou a sua permanência no hospital
7 Nesta parte do texto vou utilizar o nome centrinho que é usado com maior frequência pelos funcionários do
Hospital da Missão. 8 Escolhi substituir o termo usuário pelo apelido “príncipe”, dado por uma funcionária do local que prestava
cuidado a criança. Devido ao longo tempo de internação a mesma apegou-se profundamente a criança passando a
chamá-la de “meu príncipe”. O que explica também a referência do título deste artigo.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
5
durante o período de um ano. Uma situação que o manteve afastado de sua família que não
podia acompanhá-lo na época da internação.
Escolhi apresentar esta experiência pelo fato de ter provocado em mim sentimentos
de inquietação, indignação e angustia enquanto profissional de saúde implicada em meu
compromisso ético e cidadão com este usuário e sua família. Posso afirmar que este foi o
trabalho mais intenso que vivi em minha formação como profissional da saúde na Residência
Multiprofissional de Saúde devido sua complexidade que apresento nos parágrafos que
seguem.
Meu primeiro contato direto com o príncipe aconteceu quando eu estava no segundo
mês de prática no Hospital da Missão. Recebi a solicitação da chefia de enfermagem para
acompanhá-lo em uma consulta a Fonoaudióloga, contudo compareci a consulta sem
informações sobre o quadro clínico da criança o que me deixou constrangida diante da
profissional que fez-me algumas perguntas a respeito das condições atuais de saúde. Em vista
disso a profissional ficou impossibilitada de fazer orientações sendo obrigada a manter as
últimas realizadas em último atendimento. Ela sugeriu que o serviço de Psicologia
acompanhasse o caso tendo em vista que a criança estava sem o acompanhamento da família e
que se tratava de longa internação. Quando retornei ao hospital conversei com a pessoa que
havia solicitado o acompanhamento e expliquei que a falta de informação sobre o caso
impossibilitou-me no diálogo com a profissional de saúde.
Aproveitei o momento e falei sobre importância do trabalho em rede e do diálogo em
equipe. Nós, residentes, aprendemos que o trabalho com a rede fortalece e garante a
continuidade do cuidado. Por isso, é importante aproximar nosso diálogo enquanto equipe
multiprofissional com os demais pontos da rede SUS, além de colocar em evidência o
compromisso ético com nossos usuários. Se eu tivesse recebido as informações necessárias
naquele momento, o diálogo entre eu e a Fonoaudióloga teria mais efetivo. Quando se fala em
continuidade do cuidado, a comunicação é essencial. A partir daquele dia eu e minha equipe
de residentes passamos a acompanhar o caso.
Com a chegada dos residentes no Hospital da Missão a equipe multiprofissional
passou da unidade passou a realizar reuniões quinzenais para discussão de caso clínico com
objetivo de realizar encaminhamentos para àqueles casos de internações de longa data e
internações sociais. Durante uma dessas reuniões coloquei em pauta a situação do príncipe.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
6
Falamos sobre o tempo de internação, que já alcança oito meses e da ausência dos pais. Em
resposta a equipe do hospital explicou que o usuário apresentava dificuldades em ganhar o
peso ideal, por isso precisava continuar internado. Os dados da Nutricionista sugeriam a
necessidade de ganhar dois quilos para atingir o peso ideal.
Pensando nisso propusemos à equipe do hospital trabalhar a programação de alta9,
pois o peso que faltava não colocaria em risco sua vida, tendo em vista que seu estado de
saúde era bom. Nossa preocupação era o afastamento da criança de sua família e a quebra de
vínculo que isso poderia provocar, principalmente no que diz respeito ao seu modo de ser
kaiowá. Entendemos naquele momento que o retorno para casa era o objetivo vital a ser
alcançado. O tratamento poderia ser feito em sua cidade junto de sua família em parceria com
a SESAI. E foi nesta missão que nós residentes trabalhamos.
A equipe do hospital acreditava que era arriscado investir em tal decisão. Explicamos
a eles que talvez o príncipe nunca atingisse o tal peso ideal. Nossa Nutricionista apresentou
uma nova avaliação da criança, onde comprovava que o peso que ele tinha era compatível
com a estimativa para crianças prematuras (idade e altura). Enquanto Psicóloga, expliquei
sobre a importância do resgate do vínculo com família em seu território indígena (seu tekoha,
o qual expressa um modo de vida) um espaço vital onde este sujeito iria se constituir enquanto
ser Kaiowá.
Os autores Siqueira (2007), Jesus & Wenceslau (s.d.), Pereira (2014) apontam que o
tekoha, para os Guarani e Kaiowá significa muito mais que um pedaço de terra, é o lugar onde
se vive segundo seus costumes. Representa o passado e o futuro e seu modo de viver.
Abrange aspectos políticos, econômico, religiosos, culturais, cosmológicos onde tudo
acontece: reza, cantos, casamentos, morte, tudo está interligado. Segundo Siqueira, o conceito
de território para esta comunidade é:
[...] percebido de forma diferente dos não índios. Enquanto que para os não-índios a
terra representa um valor de produção capitalista, um espaço onde se pode produzir
e gerar renda, a terra para as populações indígenas é o meio fundamental e essencial
para sua vida cultural. Ela representa sua identidade, pois é ali que estão enterrados
seus antepassados, e o lugar onde são realizados os rituais, os casamentos, ocorre
9 Consiste em ações que visam uma alta segura objetivando o retorno do usuário para casa. Fortalecimento de
vínculo com a família e treinamento desta para enfrentamento da nova realidade diante das necessidades do
usuário. Além disso, é necessário o trabalho com a rede SUS através da continuidade do tratamento por outros
profissionais da Atenção Básica no território da família.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
7
nascimentos e a educação dos filhos, ou seja, a terra carrega em si todas a história de
sua vida. (SIQUEIRA, 2007, p.23)
Por isso a preocupação em devolver aquela criança para seu território. Ela
necessitava ser criada e educada ao modo Kaiowá, junto aos seus pais, para que assim pudesse
conquistar a autonomia e a independência dignas de um Kaiowá. Egon Schaden (1974) ao
referir-se sobre a criança Guarani, afirma: “A criança Guarani se caracteriza por notável
espirito de independência. Na medida em que lho permitem o desenvolvimento físico e a
experiência mental, participa da vida, das atividades e dos problemas dos adultos”. (p. 59) E
ainda complementa explicando que para os Kaiowá o pai é a figura de referência da própria
criança, ou seja, quando se pergunta ao infante quem ele é, fará referência ao pai.
Sobre a importância do caminhar na infância juntos aos pais, Platero (2010, p. 219)
afirma que “durante os primeiros anos de vida da criança, a estabilidade corporal do ayvu10
(sua alma espiritual) depende dos níveis de cuidado e manifestações afetivas de seus
familiares”. E reafirma:
[...] a estabilidade espiritual no seio da família extensa é a garantia da estabilidade de
todos os membros dessa unidade sociológica. A permanência da alma espiritual no
corpo depende da forma como as crianças são tratadas, dependendo dos cuidados e
carinhos dentro da família extensa e do tratamento na escola. (PLATERO, 2010, p.
220)
Neste sentido, o retorno para casa representa acima de tudo o resgate de sua
identidade Kaiowá e de sua história. Mostra a necessidade de nós profissionais da saúde
compreender e respeitar a subjetividade deste povo. São estas particularidades da cultura que
devem ser consideradas em nossas ações. A criança necessitava ser nutrida pelo afeto da
família tradicional.
Apresentadas os argumentos para a programação de alta, conseguimos aprovação da
equipe do hospital. Assim, cada trabalhador ficou responsável por uma tarefa: eu e a
Nutricionista residente ficamos responsáveis por colher dados do prontuário do usuário, tais
como, história de vida, histórico do tratamento, onde nasceu, origem da família e etc. O
Assistente Social ficou responsável pelo contato com a equipe da SESAI do município da
10
De acordo com Schaden (1974) a alma Ayvu ou ñee (fala, linguagem) tem como função principal dar a pessoa
o dom da linguagem, “comunicação inter-humana, um animal social, como fragmento do grupo, ganha valor
quando é parte da sociedade e se comunica com os companheiros.” (p.112) É conferida no nascimento da
criança, dada pelo ñanderu (representante religioso).
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
8
família, solicitando aos pais uma visita ao filho. Destaco que os dados colhidos do prontuário
eram vagos, o que deixava a história de internação com lacunas as quais procurei preencher
realizando perguntas aos trabalhadores da instituição que acompanharam a internação do
usuário.
De acordo com os dados coletados, a criança foi internada no mês de Junho de 2015
com queixa de desnutrição. Tinha três anos e pesava 8.500 gramas. A mãe teve complicações
no parto necessitando ser encaminhada para o Hospital Universitário (HU) de Dourados. O
parto foi prematuro e a criança nasceu com baixo peso11
. Durante o tempo em que ficou
internado no centrinho, alimentava-se apenas por mamadeira, com dieta líquida enriquecida
com amido de milho, suplemento hipercalórico de vitaminas e minerais, seis vezes ao dia.
Segundo a equipe o príncipe se recusava a outras preparações sólidas e salgadas, dificultando
o processo de ganho de peso. A criança passou por avaliação fonoaudiológica onde foi
constatado atraso neurológico, dificuldade de deglutição, tonicidade adequada de orofaringe,
com indicativa para continuidade de acompanhamento com profissional Fonoaudióloga e
Fisioterapeuta.
As orientações feitas pela profissional consistiam na inserção progressiva de dietas
sólidas para ajudar no desenvolvimento de seu aparelho fonador, auxiliando principalmente
no desenvolvimento dos dentes, na deglutição e na fala. Mesmo com estas indicações, a
equipe referia resistência da criança em aceitar outras dietas, prejudicando o ganho de peso.
Houve também acompanhamento odontológico com seis restaurações e dois canais. Procurei
o dentista da unidade para compreender o porquê destes procedimentos. Minha curiosidade
era saber se estavam correlacionados ao quadro clínico do usuário ou se ele havia
desenvolvido problemas de saúde bucal durante o período da internação. O profissional não
soube dar esta informação. Fato que incomodou-me muito, pois, apesar do cuidado
dispensado pela equipe a criança, que demostrava um carinho especial com ela, não conseguia
obter informações precisas. E ficou em mim a pergunta: como é possível uma criança de três
anos passar por dois canais nestes oito meses de internação?
Eu e minha equipe encontramos algumas prescrições da Fisioterapeuta do hospital
onde constatavam a realização de sessões de estimulação motora, no entanto, os dados eram
11
Considerado muito baixo para idade, segundo classificação da OMS (2006). No prontuário não consta dados do
desenvolvimento da criança e também não apresenta informações da família, algo que poderiam ajudar a
entender o quadro de desnutrição bem como a condição social da família.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
9
antigos, não havia prescrições recentes indicando a continuidade do tratamento. Fato que
constamos, pois durante nosso acompanhamento a criança, percebemos que ela não recebia as
sessões de fisioterapia. No prontuário não havia informações sobre a família, algo que
tivemos que buscar junto à equipe no hospital.
Diante de todas estas informações, ou mesmo, a falta delas, aumentava minha
angustia em devolver o príncipe para sua família. A impressão que ficava era que aquela
internação não estava sendo efetiva para sua melhora. Dessa forma procure agilizar o contato
a equipe da SESAI do município da família. Contei com a ajuda de uma ex-residente do
Programa de Residência Multiprofissional da UFGD, também da Saúde Indígena. Expliquei a
ela sobre a situação do príncipe. Ela já conhecia a história, pois quando passou pelo Hospital
da Missão (na época em que fora residente) ele já estava internado no centrinho.
Através de sua ajuda, conseguimos firmar com a equipe de saúde os contatos
necessários (Psicóloga, Nutricionista, Enfermeira e Dentista) para continuidade do tratamento
da criança em seu território junto a sua família. Após este primeiro contato com a equipe da
SESAI, recebemos no centrinho a visita dos pais. Eu e a Nutricionista residente fomos
conversar com eles. Foi um diálogo delicado. Os pais falavam em kaiowá, tinham dificuldade
de se expressar em português. Apesar da nossa dificuldade em compreender outra língua,
acolhemos os pais em suas angústias relacionadas à internação do filho. Ao mesmo tempo nos
sentimos acolhidas, pois sua presença imprescindível. Tê-los ali, junto a nós, era uma
esperança de resolução do caso. Procuramos usar uma linguagem simples (sem uso de termos
técnicos), para que pudéssemos nos comunicar e nos aproximar. Mesmo com pouco tempo de
conversa conseguimos bons resultados.
Enquanto explicávamos sobre as condições de saúde da criança, o pai nos
interrompeu perguntando quanto peso faltava para seu filho ir para casa. Naquele momento
percebi o quanto este assunto pesava sobre todos nós. Explicamos que faltavam
aproximadamente dois quilos e que por isso a equipe do hospital não poderia dar alta. O pai
disse que não aguentava mais de saudade do filho. Neste momento a mãe começou a chorar.
Eles disseram que não tinham condições financeiras para fazer visitas frequentes e que muitas
vezes dependiam do transporte da SESAI. Além disso, eles tinham outros filhos e não podiam
deixá-los sozinhos.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
10
Percebi, durante nossa conversa, que eles não eram distantes (como a equipe havia
nos informado), mas que por dificuldades financeiras não conseguiam realizar visitas com
frequência. Conversamos sobre a possibilidade de a mãe ficar e nos ajudar nos cuidados do
filho, com o compromisso de informá-lo, sempre que possível, sobre o andamento da
situação. O casal decidiu pela permanência da mãe. Assim, eu e as residentes iniciamos nossa
jornada junto a ela. Nos primeiros dias a equipe do hospital reagiu de forma hostil a presença
da mãe. O fato de a criança passar mais tempo com ela do que com eles causou uma reação
negativa representada na seguinte fala: “o que que essa mulher veio fazer aqui? Nunca deu
atenção pro filho, agora tá ai, ela nem liga pra ele. Não sei não, tem que ficar de olho, ela
não vai aguentar, vai abandonar ele de novo, ela nem sabe cuidar dele, eu que tive que dar
banho e mamadeira pra ele” (informação verbal12
).
Para mim estas falas representavam a natureza do vínculo patológico que estes
haviam desenvolvido com a criança, proporcionado pelo longo tempo de internação. A
respeito deste posicionamento expliquei à equipe que a mãe tinha o direito de estar ali
cuidando do seu filho. E se ele correspondia ao seu cuidado era porque ainda se lembrava
dela. Lembrava-se do colo de mãe. Disse também que em nenhum momento ela havia
abandonado o filho, mas que passara por dificuldades financeiras e por isso visita-lo com
frequência era quase impossível. Nosso papel enquanto trabalhador de saúde era acolhê-la e
ajuda-la a recuperar o vínculo com o filho.
Diante da minha fala vieram outras negativas: “É, mais a gente não sabe como que é
essa mulher, deve ser uma cachaceira e só veio aqui pra comer, quero ver quanto tempo ela
vai aguentar” (informação verbal). Em resposta eu disse que compreendia as experiências
negativas que a equipe vivenciou no passado, com outras histórias. Pedi para confiassem nela
e a apoiassem neste processo de reaproximação com o filho.
Um dia, durante conversa sobre a história do centrinho, um dos trabalhadores vira
para mim e diz o seguinte: “as crianças do centrinho são a moeda de ouro do hospital da
Missão” (informação verbal). Ainda penso sobre este comentário. O que significa? Será que
isto esta correlacionado ao tempo de internação em que as crianças são submetidas naquele
lugar? Este é um assunto que necessitária ser aprofundado em outro espaço que possa
explorar com mais clareza o que venha a ser ou o que se tornou o Centro de Reabilitação
12
Fala de um trabalhador da unidade que anotei em meu diário de campo. Esta e as demais estão entre aspas e
em itálico.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
11
Nutricional nos dias de hoje. Para mim é um campo nebuloso e complexo pelo qual se faz
necessário, um dia, caminhar. Por, hora, continuo com a história do príncipe.
As primeiras reações negativas da equipe com a mãe fizeram-me perceber que o
príncipe havia se tornado parte daquela instituição, sobretudo uma figura de afeto dos
trabalhadores, que dispensavam um cuidado excepcional a ele. Tanto tempo juntos serviu para
estreitar de maneira significativa seus vínculos. Algo que prejudicou, de certa forma, meu
trabalho com essa tríade usuário-família-equipe de saúde. Em meio a este cenário precisei
resistir e suportar a fase de adaptação. Neste período eu e minha equipe passamos a
acompanhar as refeições junto à mãe e a criança, objetivando fortalecer nosso vínculo a eles.
Dentre os vários desafios que vivenciamos nesta história um deles foi conseguir fazer
com que o príncipe aceitasse outros alimentos como: arroz, feijão, carne e frutas,
abandonando a dieta líquida, que estava em uso a mais de oito meses. Junto à Nutricionista
residente, acompanhamos a mãe nas refeições à criança, no entanto erámos interrompidas pela
equipe do centrinho que oferecia a mamadeira sempre que a criança não aceitava.
Conversamos com a equipe para que aquele tipo de atitude não voltasse a se repetir, pois,
estava prejudicando nossas tentativas. Se fosse preciso oferecer a mamadeira a própria mãe
poderia fazê-lo.
Nossa preocupação estava muito acima do ganho de peso. Queríamos oferecer um
espaço onde à relação entre mãe e filho pudesse ser fortalecida. Naquele momento
percebemos o quanto o vínculo patológico que a equipe do centrinho tinha desenvolvido com
o príncipe era um obstáculo em nosso trabalho com a mãe. Este processo exigiu paciência e
resistência. Durante algumas semanas nos frustramos ao ver que a “mamadeira” estava
ganhando a batalha. Mas erámos fortalecidos pelo posicionamento da mãe, com seu jeito
kaiowá de ser, mantinha-se calma e serena frente a todas as dificuldades.
Um dia conversando com uma médica do ambulatório ela contou-me sobre sua
experiência como missionária. Entramos no assunto da desnutrição que atingia as crianças da
Reserva Indígena. Ela falou sobre sua preocupação com o tempo de internação dos usuários
do certinho e como muitos ficavam afastados de sua família, quando estas não podiam
acompanhá-los. Quando retornam para suas casas deparavam-se novamente com a situação de
fome e pobreza, caindo novamente no adoecimento e retornando ao centrinho. Segundo ela a
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
12
situação se repetia não só pela escassez de alimento13
na reserva, mas também pelo fato de
algumas mulheres não terem conhecimento do preparo de alguns alimentos ofertados na cesta
básica.
Na tentativa de sanar este problema contou que algum tempo atrás desenvolveu um
trabalho junto a mulheres da comunidade indígena oferecendo de oficinas de culinária onde
ensinava fazer pães, bolos e comidas salgadas. Recordando esta história ela sugeriu ao nosso
grupo de residentes promover uma ação parecida, trabalhando com as mães do centrinho
14. Ensinando-as como produzir alimentos a partir de sua realidade (reaproveitando os
alimentos da terra), utilizando também o que era ofertado na cesta básica. Conversei com
minha equipe de residentes sobre a proposta e foi assim que surgiu a ideia de montar uma
“Oficina de Bolos”. Ensinaríamos o preparo dos alimentos e ao mesmo tempo fortaleceríamos
nosso vínculo a elas.
Apresentamos a proposta à equipe multiprofissional do hospital e eles nos apoiaram.
Na mesma semana a cozinha do Centrinho foi reativada. Ganhamos um forno elétrico para
fazer as receitas e assim iniciamos nosso trabalho com as mães. O primeiro dia não foi fácil,
escutamos falas depreciativas dizendo que as mães eram preguiçosas e que não daria certo
nossa oficina. Novamente resistimos e seguimos em frente em nossa caminhada com as mães.
Começamos com uma receita de bolo de fubá e depois fizemos outros preparos a
pedido das mães, como pão caseiro, bolo de chocolate e bolacha. As oficinas aconteciam uma
vez na semana. O grupo de residentes ficava responsável por trazer os ingredientes das
receitas. Para nossa alegria as oficinas foram um sucesso. Todas as mães participaram
ativamente da tarefa. O cheiro que vinha da cozinha contagiou aquele lugar. Aos poucos a
equipe do centrinho foi se aproximando do nosso grupo. Vinham até a cozinha para ver o que
estava acontecendo. Sempre tinha alguém querendo copiar a receita do dia. Receita de vida
que fortaleceu essa caminhada.
13
A fome e a pobreza na Reserva de Dourados envolvem um processo histórico de exploração fundiária e
agrária, que teve início após a Guerra da Tríplice Aliança (ou, Guerra do Paraguai) e a Marcha para o Oeste. O
resultado foi desastroso para a comunidade indígena (principalmente os Guarani e Kaiowá) que foi obrigada a
deslocar-se de seu território (tekoha, espaço vital onde é possível manter as relações sociais e simbólicas) para
espaços reservados pelo Estado. Este confinamento trouxe não só a pobreza, como também conflitos entre
famílias, uma vez que não houve preocupação do Estado em respeitar relações sociais das comunidades. Para
compreender melhor este processo de colonização e exploração, consultar os trabalhos de Vietta (2003), Pereira
(1999), Pereira (2006), Pereira (2013), Siqueira e Brand (2004), Siqueira (2007), Jesus e Wenceslau (s.d.),
Urquiza (2013). 14
Na época em que estive com minha equipe de residentes no Hospital da Missão, o centrinho abrigava três
mães que acompanhavam seus filhos durante a internação.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
13
Ao final dos preparos fazíamos uma roda com as mães e suas crianças para apreciar o
resultado do trabalho coletivo. Todos interagiam. Para nossa surpresa e para a surpresa da
equipe do Centrinho o príncipe começou a comer. Observando as outras crianças, ele se
aproximava de sua mãe e pedia o alimento. Sentado em seu colo, comia tudo que era
oferecido. Admiramos a cena, pois era uma conquista para nós.
A partir deste dia, foram inúmeros os avanços. Recordo de outra situação marcante.
Um dia, durante o almoço, o príncipe, depois de terminada sua refeição sentou-se no colo de
sua mãe, ajudou-a abrir sua marmita e começou a comer junto com ela. Uma cena que afirma
o afeto e vínculo reconstruído entre os dois. Meu sentimento era de missão cumprida.
Fortalecidos os laços entre mãe e filho e com a rede SUS, os dois voltaram para seu território.
Eu e meu grupo de residentes enviamos um relatório para equipe da SESAI da cidade
da família do príncipe. No documento constava o histórico de internação da criança, o
trabalho desenvolvido pela equipe de residentes junto à mãe e filho e as orientações quanto à
continuidade do tratamento pelo qual ele ainda iria passar, como, por exemplo, o
acompanhamento coma Nutricionista e Psicóloga e retorno ao Dentista. Com muito diálogo e
resistência foi assim que esta história terminou.
Estar no Hospital da Missão foi um desafio. Para mim ficaram muitas perguntas
sobre aquele lugar. Muita coisa ainda é obscura e sem resposta. Acompanhar a história do
príncipe trouxe-me vários questionamentos: Onde fica o compromisso ético/político e social
dos profissionais da saúde com os usuários indígenas, família e território? Em que momentos
estas ações são pensadas a partir da diversidade cultural presente no território da saúde? Por
que manter uma internação de tão longa data? Por que as crianças ali confinadas são a moeda
de ouro? O que significa este comentário?
Esta experiência em campo de formação revelou que as ações ofertadas por algumas
unidades de saúde (como esta), aos usuários indígenas são contrárias à proposta da Politica
Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI):
O princípio que permeia todas as diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde
dos Povos Indígenas é o respeito às concepções, valores e práticas relativos ao
processo saúde-doença próprios a cada sociedade indígena e a seus diversos
especialistas. A articulação com esses saberes e práticas deve ser estimulada para
obtenção da melhoria do estado de saúde dos povos indígenas. (BRASIL, 2002,
p.18)
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
14
Pensando nisso, manter aquele sujeito longe de seu território provocou uma
interferência, não só no vínculo com a família tradicional, mas um rompimento temporário
com seus saberes tradicionais (crenças, linguagem, rezas e costumes). O mesmo assimilou um
modelo de vida que se distancia do modo de ser kaiowá. Outra problemática que fez-me
refletir sobre as ações de saúde ofertadas à comunidade indígena diz respeito ao atendimento
convencional conduzido no modelo ocidental de saúde que não considera a organização
social, a cultura e cosmologia dos povos originários. Uma realidade esbarra nos objetivos
propostos pela PNASPI sobre a preparação dos recursos humanos na saúde indígena:
A capacitação dos recursos humanos para a saúde indígena deverá ser priorizada
como instrumento fundamental de adequação das ações dos profissionais e serviços
de saúde do SUS às especificidades da atenção à saúde dos povos indígenas e às
novas realidades técnicas, legais, políticas e de organização dos serviços. Deverão
ser promovidos cursos de atualização/aperfeiçoamento/especialização para os
gestores, profissionais de saúde e assessores técnicos (indígenas e não indígenas) das
várias instituições que atuem no sistema. (BRASIL, 2002, p.16)
Onde fica tudo isso na prática? Esta situação fez-me pensar em minha formação para
a Saúde Indígena e como construir ações capazes de atender as necessidades da comunidade
que dialoguem com seu modo tradicional de ser? Foram estas respostas que busquei em
minha prática no campo da Saúde Indígena quando me coloquei a estudar sua história,
compreender seu modo de vida e organização social. Abandonei alguns conhecimentos
acadêmicos e adquiri outros quanto decidi caminhar com a comunidade. Respeitando seus
valores e costumes.
Ainda fica a inquietação de compreender qual é a verdadeira função deste hospital
junto à comunidade indígena. É preciso refletir que ações de saúde pautadas em um modelo
exclusivamente hegemônico ocidental podem gerar iatrogênia e dependência, sobretudo
interferem diretamente em seu modo tradicional de viver. Penso que estas são questões
profundas e complexas que estão diretamente vinculadas ao processo histórico de colonização
dos povos originários, do qual as missões religiosas15
tiveram significativa participação.
Sobre este ponto necessitaria de um espaço maior para aprofundar estas questões. Uma
proposta que pretendo desenvolver em outro trabalho. Por hora fico apenas com as
inquietações.
15
Informações sobre os impactos do processo de evangelização e escolarização das comunidades Guarani e
Kaiowá pelas missões religiosas consultar os trabalhos de Platero (2010 e 2015) e Vietta (2003).
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
15
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O modelo de ensino que vivenciei na RMS ainda é fortemente influenciado pelas
questões biomédicas. O hospital é umas das principais unidades que reproduz uma forma de
cuidado que não prioriza o coletivo (trabalhadores, gestores e usuários). Em minha formação
vivi momentos de crise e angústias, pois, de um lado eu via o compromisso social com o
usuário e trabalhadores, e de outro a realidade vivida na prática se resumia a uma visita de
leito, sem a participação do usuário. Este fato revela uma problemática no processo de ensino
da residência, que ainda se estrutura no modelo biomédico. Para transformar esta realidade é
necessário ter sensibilidade com o trabalho em rede. Pensar outros modelos de produção de
saúde capazes de romper com o modelo vigente. Por isso a importância de incluir em nossa
prática políticas como a de humanização, que nos permite ampliar nosso olhar sobre os
sujeitos da saúde, promovendo o dialogo entre usuários, trabalhadores e gestores neste
processo de pensar e fazer saúde. Reinventando nossas ações, proporcionando o ganho da
autonomia e corresponsabilidade entre todos.
Escolher a especialização em Saúde Indígena laçou-me a pensar a saúde a partir da
realidade dos povos originários. Convidou-me ao desafio de conhecê-los, construindo novos
conceitos sobre a compreensão de saúde para estas comunidades. O diálogo, a persistência, a
vontade de fazer Saúde Indígena foram instrumentos que fortaleceram minha caminhada e
que ajudou meu grupo a vencer esta batalha. O trabalho com a rede SUS, o contato com a ex-
residente da Saúde Indígena também facilitou o caminhar. Uma característica importante em
meu trabalho foi o compromisso ético, social e político com o usuário, família e equipe de
saúde. Encontrei também na Política Nacional de Humanização os princípios e as diretrizes
que foram os pilares para construir minhas ações, através do diálogo, da escuta qualificada, do
trabalho em rede, do compromisso social e do respeito às diferenças. Encontrei também nos
textos de antropologia sobre os povos originários, subsídios suficientes para explicar a
necessidade de retorno desta criança para seu território, como também, a compreensão sobre
sua organização social e cosmologia, necessárias para fortalecer e legitimar meu trabalho com
a comunidade indígena.
Ser e estar residente, circulando por diversos territórios me faz lembrar o mesmo
movimento que estas comunidades fizeram na tentativa de resistência/existência de seu povo.
Talvez ser residente em formação para o SUS, seja permitir que mudanças aconteçam a partir
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
16
do encontro com o outro. Respeitando seu modo de ser, sua história, suas crenças e costumes.
Fazer saúde implica, neste sentindo, abrir-se para o mundo do diálogo, do diferente unindo os
campos de saberes para promover uma saúde para todos.
4 REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 9.836, de 23 de setembro de 1999. Acrescenta dispositivos à Lei nº 8.080, de
19 de setembro de 1990, que “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes”,
instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Diário Oficial da União, 24 set, 1999.
BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas. – 2ª edição – Brasília: Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde, 40 p,
2002.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de
Humanização. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo
norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS / Ministério da
Saúde, Secretaria- Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. –
Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política
Nacional de Humanização. Humaniza SUS: Documento base para gestores e trabalhadores
dos SUS / -4. ed. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008.
BRASIL. Ministério da Saúde. 2016. Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença
CreativeCommons – Atribuição – Não Comercial – Compartilhamento pela mesma licença
4.0 Internacional. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a
fonte. A coleção institucional do Ministério da Saúde pode ser acessada, na íntegra, na
Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde: <www.saude.gov.br/bvs>.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de
Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica Ampliada e Compartilhada. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2009.
JESUS, D. L., WENCESLAU, M. E. Os saberes tradicionais dos Kaiowá de Dourados/MS.
http://revistareflexosdaciencia.com.br/intranet/artigo/arquivo_pdf/OS%20SABERES%20TR
ADICIONAIS%20DOS%20KAIOWA%20DE%20DOURURADOS-MS.pdf, acesso em
14/01/213: 18:45.
MENDES, L.C. e cols. Relato de experiência do primeiro ano de residência multiprofissional
hospitalar em saúde, pela ótica da Psicologia. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia
Hospitalar, vol. 14, n.1, Rio de Janeiro – Jan/Jun. – 2011.
MORSCHEL, A. BARROS de BARROS, M. E. Processo de trabalho na saúde pública:
humanização e efetivação do Sistema Único de Saúde. Saúde Sociedade. São Paulo, v. 23 n.
3, p.928-941, 2014.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/
17
OLIVEIRA, F. G. V. C. CARVALHO, M. A. P. OLIVEIRA, S. S. A experiências dos diários
reflexivos no processo formativo da uma Residência Multiprofissional em Saúde da Família.
Interface Comunicação Saúde e Educação. 2012.
OMS - Organização Mundial da Saúde. Curvas de Crescimento da Organização Mundial da
Saúde para crianças e adolescentes. 2006. Disponível em:
<http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_vigilancia_alimentar.php?conteudo=curvas_de_cresci
mento>.
PLATERO. L. M. Chefia indígea, política indigenista e missões religiosas: a perda do carisma
de xamãs Kaiowá e Guarani na reserva multiétinica de Dourados, MS (1917-1980). Tellus,
Campo Grande/MS, ano 15, n. 28, p. 43-63, jan./jun. 2015.
PLATERO, L. M. Escolas e missões religiosas na reserva indígena de Dourados/MS (1940-
1970): reflexões sobre a noção de pessoa dos Kaiowá Guarani e Guarani Nandeva. Physis
Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [4]: 1265, 2010.
PEREIRA, L. M. Assentamento e formas organizacionais dos Kaiowá atuais: o caso dos
“índios de corredor”. Tellus, Campo Grande/MS, ano 6, n. 10, p. 69-81, abr. 2006.
PEREIRA, L. M. Expropriação dos territórios kaiowá e guarani: Implicações nos processos
de reprodução social e sentidos atribuídos às ações para reaver território-tekohrã. Revista de
Antropologia da UFSCar, v.4, n.2, jul.-dez., p.124-133, 2012
PEREIRA, L. M. Parentesco e organização social Kaiowá. Campinas. Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, 1999.
SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo, EPU, Ed. da
Universidade de São Paulo, 1974.
SIQUEIRA, E. M. O serviço de proteção aos índios e as políticas de desenvolvimento na
reserva Kaiowá e Guarani no posto indígena Benjamin Constant, 1940-1960. Dissertação
apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Local – Mestrado Acadêmico, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em
Desenvolvimento Local, sob a orientação do Prof. DR. Antônio Jacó Brand. Universidade
Católica Dom Bosco, 2007.
SIQUEIRA, E. M. BRAND, A. J. Os Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul: os conflitos
de terra e as marcas do SPI. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de
História p O lugar da História. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de Setembro, 2004.
VIETTA, K. “Pastor dá conselho bom”: missões evangélicas e igrejas neopentecostais entre
os Kaiowá e os Guarani em Mato Grosso do Sul. Tellus, Campo Grande/MS, ano 3, n. 4, p.
109-135, abr. 2003.
URQUIZA, A. H. A. Culturas e História dos povos indígenas em Mato Grosso do Sul/
Antônio H. Aguilera Urquiza, organizador. – Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2013.
Anais do X
IV C
ongresso Internacional de Direitos H
umanos.
Disponível em
http://cidh.sites.ufms.br/m
ais-sobre-nos/anais/