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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 6416 DESAFIO METODOLÓGICO: É POSSÍVEL UTILIZAR ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COMO FONTE À HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO? 1 Charliton José dos Santos Machado 2 Larissa Meira de Vasconcelos 3 Considerações Iniciais Quais são, afinal, os alcances e limites dos anúncios publicitários enquanto instrumentos de investigação do passado? Eis a pergunta que conduz esse texto. Embora sejam polifônicos, isto é, contenham múltiplos significados, o que nos interessa neste modesto texto é decifrar as possibilidades - passíveis, é claro, de serem disputadas, questionadas e problematizadas - na compreensão dos anúncios publicitários enquanto fonte à História da Educação. Posto isso, iniciaremos nosso artigo partindo de dois motes fundamentais, a saber: 1) como trabalhar com um corpus de análise tão polifônico e plural; 2) quais precauções devem ser tomadas para utilizar uma técnica, se não autônoma, ao menos específica em sua própria dinâmica. Se os anúncios são um estímulo ao pesquisador, pois abrem um amplo leque de possibilidades narrativas, apresentam, igualmente, demasiados desafios metodológicos. Desde o pioneiro trabalho de Gilberto Freyre (2012), no qual os anúncios de escravos fugidos foram utilizados para compreender as relações sociais acerca da escravidão no Brasil, uma série de estudos tem se debruçado em torno destes. Segundo o sociólogo pernambucano, “quem tiver a pachorra de folhear a coleção de um dos nossos jornais do século XIX (...) há de acabar concluindo: mais do que nos livros de história e nos romances, a história do Brasil está nos anúncios dos jornais (FREYRE, 2012, p. 58-61)”. Malgrado as abordagens acadêmicas sobre os anúncios, concentrem-se, maiormente, em áreas como psicologia, sociologia, marketing e comunicação (RIBEIRO, 1 Este artigo é fruto do processo de elaboração da tese de doutoramento intitulada “Homens em reclame! Educação e masculinidades nos anúncios publicitários durante o Estado Novo (1937-1945), ainda em construção, cuja autoria é de Larissa Meira de Vasconcelos, sob a orientação do profº Dr. Charliton José dos S. Machado. A pesquisa é realizada dentro do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (PPGE/UFPB) e recebe financiamento da Capes (Bolsa Demanda Social). 2 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), professor Associado IV no Departamento de Metodologia da Educação (DME), da Universidade Federal da Paraíba, campus João Pessoa. E-mail: <[email protected]>. 3 Mestra em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutoranda no Programa de Pós- Graduação em Educação da referida instituição. E-mail: <[email protected]>.

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ISSN 2236-1855 6416

DESAFIO METODOLÓGICO: É POSSÍVEL UTILIZAR ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COMO FONTE À HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO?1

Charliton José dos Santos Machado2

Larissa Meira de Vasconcelos3

Considerações Iniciais

Quais são, afinal, os alcances e limites dos anúncios publicitários enquanto

instrumentos de investigação do passado? Eis a pergunta que conduz esse texto. Embora

sejam polifônicos, isto é, contenham múltiplos significados, o que nos interessa neste

modesto texto é decifrar as possibilidades - passíveis, é claro, de serem disputadas,

questionadas e problematizadas - na compreensão dos anúncios publicitários enquanto fonte

à História da Educação. Posto isso, iniciaremos nosso artigo partindo de dois motes

fundamentais, a saber: 1) como trabalhar com um corpus de análise tão polifônico e plural; 2)

quais precauções devem ser tomadas para utilizar uma técnica, se não autônoma, ao menos

específica em sua própria dinâmica.

Se os anúncios são um estímulo ao pesquisador, pois abrem um amplo leque de

possibilidades narrativas, apresentam, igualmente, demasiados desafios metodológicos.

Desde o pioneiro trabalho de Gilberto Freyre (2012), no qual os anúncios de escravos fugidos

foram utilizados para compreender as relações sociais acerca da escravidão no Brasil, uma

série de estudos tem se debruçado em torno destes. Segundo o sociólogo pernambucano,

“quem tiver a pachorra de folhear a coleção de um dos nossos jornais do século XIX (...) há de

acabar concluindo: mais do que nos livros de história e nos romances, a história do Brasil

está nos anúncios dos jornais (FREYRE, 2012, p. 58-61)”.

Malgrado as abordagens acadêmicas sobre os anúncios, concentrem-se,

maiormente, em áreas como psicologia, sociologia, marketing e comunicação (RIBEIRO,

1 Este artigo é fruto do processo de elaboração da tese de doutoramento intitulada “Homens em reclame! Educação e masculinidades nos anúncios publicitários durante o Estado Novo (1937-1945)”, ainda em construção, cuja autoria é de Larissa Meira de Vasconcelos, sob a orientação do profº Dr. Charliton José dos S. Machado. A pesquisa é realizada dentro do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (PPGE/UFPB) e recebe financiamento da Capes (Bolsa Demanda Social).

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), professor Associado IV no Departamento de Metodologia da Educação (DME), da Universidade Federal da Paraíba, campus João Pessoa. E-mail: <[email protected]>.

3 Mestra em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da referida instituição. E-mail: <[email protected]>.

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2010), propomos, neste artigo, que se faça uma leitura diferente. Ao cultivar o olhar histórico,

compreendemos a publicidade como singular dispositivo que propaga valores e influencia a

(re)construção das subjetividades em determinado contexto histórico. Outrossim, o anúncio

não deve ser compreendido apenas em sua dimensão técnica - muito embora este seja um

elemento fundamental para aprofundar o conhecimento sobre a dinâmica da fonte -, mas,

sobretudo, em sua dimensão cultural e processual. Em outras palavras, queremos dizer que a

publicidade está inserida em um sistema sócio-histórico do qual sofre interferências e sobre a

qual interfere. Martins (2003), inclusive, sugere que os anúncios exibem o “ethos cultural” de

uma época. À primeira vista, pode-se considerar exagerada a afirmação. É interessante, no

entanto, observar que um dos grandes obstáculos das agências publicitárias que atuam

internacionalmente é, justamente, desenvolver campanhas que possam ser veiculadas em

vários países. Ora, a diversidade de valores e comportamentos de uma sociedade – o ethos

cultural - obriga que as mensagens sejam acomodadas em cada contexto.

Em minucioso trabalho sobre o assunto, Santos (2005) destaca como nos Estados

Unidos são muito comuns as mensagens publicitárias comparativas, no qual o produto

divulgado é confrontado com os principais concorrentes. O estadunidense enfatiza o culto ao

vencedor (winner), àquele que define objetivos claros e os ultrapassa, em contraposição ao

perdedor (loser), comumente depreciado e menosprezado. Por outro lado, no Brasil há uma

afinidade – ou certa simpatia – pelo anti-herói (DaMatta, 1997). Isto é, enquanto os

estadunidenses veneram o Capitão América – um super-herói de moral ilibada e poderes

extraordinários – os brasileiros nutrem profunda admiração pelo Jeca Tatu, de Lobato

(1976), o João Grilo, de Suassuna (1993), ou, ainda, o Macunaíma – o “herói sem nenhum

caráter” - de Andrade (2007). Personagens pusilânimes, repletos de defeitos, vícios e

fraquezas, mas dotados de inegável esperteza, a qual usam para suplantar as dificuldades e

vencer os poderosos. Em resumo,

como todo fenômeno social, a publicidade não é uma ferramenta absoluta, que se aplica da mesma forma em todos os contextos, obtendo sempre os mesmos resultados. Aspectos socioeconômicos, culturais, históricos e políticos são determinantes para que os efeitos da publicidade se deem de forma diferenciada em época. Uma técnica que funciona em determinado contexto pode não funcionar em outro (SANTOS, 2005, p. 25)

Outro cuidado importante ao utilizar essa fonte de pesquisa refere-se à sedução

própria ao gênero. Deve-se estar preparado para lidar com o “encanto” da linguagem

publicitária. Mais importante do que isso: deve-se estar preparado para não incorrer no

pressuposto ingênuo de que as propagandas sejam espelhos de “vivências efetivas” ou,

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tampouco, que os produtos anunciados sejam acessíveis e/ou desejados por todos. É certo

que nem sempre as pessoas se espelham em imagens construídas pela narrativa publicitária.

E é evidente, também, que as representações utilizadas pelos anúncios não descrevem a

realidade (e qual fonte descreve?). De forma apropriada, Kossoy (2014, p. 143) lembra que a

história é um rio de corrente única e “ninguém pode pretender um conhecimento histórico

verdadeiro se somente colocou diante dos olhos uma parte do curso desse rio ou algum de

seus afluentes”. A colocação não poderia ser mais oportuna, tendo em vista que o

conhecimento histórico resulta parcial, seja qual for a fonte adotada. Afinal, a objetividade

científica está muito mais próxima da formulação do problema e do cuidado com o manejo

das ferramentas empregadas para respondê-lo, do que no tipo de fonte adotada.

Cautela, potencialidades e limites

Reconhecemos que cada fonte exige precauções específicas. No entanto, antes de

sugerirmos alguns cuidados que julgamos serem úteis ao pesquisador que opta por

transcorrer as vias da publicidade, é preciso esclarecer os termos que serão adotados neste

texto. Na língua portuguesa, as palavras “publicidade” e “propaganda” são usadas ora como

sinônimos, ora com significados diferentes. Segundo Rabaça e Barbosa (2002), todas as

tentativas de padronizar usos distintos para os dois termos fracassaram, malgrado ainda

existam tentativas em definir “publicidade” como o ato de tornar público algum

acontecimento, dar visibilidade a algum fato ou produto; já “propaganda” seria a difusão de

crenças e ideologias (SANTOS, 2005).

A celeuma aumenta nas traduções de textos do inglês para o português. No idioma

anglo-saxão há, conforme esclarece Sandmann (2001), diferenças fundamentais entre os

termos: “Adversiting”, correspondente à veiculação paga de mensagens comerciais;

“Publicity”, usado para referir-se às ações institucionais, visando a geração de matérias não

pagas nos meios de comunicação, para melhorar a imagem de uma organização (no Brasil,

aproxima-se das atribuições do profissional de Relações Públicas); por fim, “Propaganda”,

usado exclusivamente para a propagação de ideias, notadamente, políticas.

Girardi Júnior (2007) afirma que no entreguerras foram desenvolvidos, nos Estados

Unidos, estudos denominados “Propaganda Analysis”. O objetivo era compreender os

mecanismos pelos quais determinados tipos de mensagens, veiculadas nos mass media,

atingiam e influenciavam a audiência, a fim de disseminar propagandas capazes de mobilizar

a sociedade estadunidense em empenhos coletivos de guerra. A difundida imagem do Tio

Sam, com o dedo em riste, acompanhado de uma convocação textual (I WANT YOU FOR U.S.

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ARMY4) foi construída neste período. Assim, o uso moderno do termo propaganda, ao

menos, nos Estados Unidos, tem forte apelo político e ideológico e, frequentemente, uma

conotação depreciativa, identificado com o uso de proselitismo capaz de transformar opiniões

e disseminá-las. No entanto, esclarecemos que neste artigo os termos “publicidade”,

“propaganda”, “reclame” e “anúncios publicitários” serão utilizados como sinônimos para

oferecer maior fluidez ao texto.

Também é importante advertir que o anúncio publicitário não é um todo

homogêneo. Sob um mesmo rótulo são agrupadas diferentes subcategorias (LIMEIRA, 2010).

A saber: 1) venda ou aluguel (de casas, prédios, objetos); 2) classificados (prestação de

serviço, oferta de emprego); 3) comunicado (de um evento, de casas lotéricas, de saída de

barco); 4) “achados e perdidos” (perda de objeto, desaparecimento de pessoas); 5) Anúncio

de produtos específicos ou de lojas. Embora reconheçamos que cada item mereça uma

atenção especial, pelos propósitos e espaço limitado desse texto, sugerimos apenas

precauções comuns que atendam o universo mais geral dos anúncios.

Dito isso, o primeiro cuidado metodológico sugerido é contextualizar a manifestação

publicitária no interior do tecido histórico da época. Tal qual a revista ilustrada, de caráter

lúdico e leitura amena (MARTINS, 2008 p. 21), os anúncios podem induzir o pesquisador a

configurações caricatas do passado, adotando como verdadeiro um reflexo disforme. Assim,

para ir além das imagens de superfície é necessária uma investigação que mergulhe em seu

tempo, considerando as condições de produção, as técnicas e o suporte sobre o qual a

publicidade é veiculada. Conformando-se como uma vitrine aliciante, exibindo as últimas

novidades do mercado, a publicidade constitui-se como um tecido que reveste a mercadoria

de forma a construir uma imagem positiva para o público. Para isso, a “roupa em questão não

pode ser produzida com um pano grosseiro, mas com uma matéria-prima especial, um tecido

fino – que, ademais, ganha o ‘bordado’ das fotografias e/ou ‘ilustrações’” (CARRASCOZA,

2004, p. 16).

Não é por coincidência, afirma Carrascoza (2004), que a raiz latina da palavra

“persuadir” é “suad”, a mesma da palavra suave. A publicidade com o objetivo de ser bem

recebida pelo público modula seu aparato argumentativo de acordo com a cultura específica.

É fundamental assumir esse caráter idiossincrático dos anúncios, mas é bom ressaltar,

porém, que esse texto vai de encontro aos trabalhos que entendem a publicidade como mera

“manipuladora implacável” (AVELAR, 1976). Como bem observa Lipovetsky (2000), a

4 Tradução livre: Eu quero você para o exército dos Estados Unidos

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publicidade é o “cosmético da comunicação”, mas o indivíduo que acolhe uma proposição

estetizada não acolhe contra a sua vontade. Isso quer dizer que as técnicas publicitárias

permitem, sim, certa eficácia; contudo, não o são totalitárias. Logo, “o consumidor seduzido

pela publicidade não é propriamente um enganado, mas um encantado” (LIPOVETSKY,

2000, p. 09), pois apenas se pode seduzir alguém que já esteja predisposto a ser seduzido.

Isso quer dizer que há um limite para persuasão e, em cada situação, o indivíduo negocia com

a mensagem recebida. O indivíduo pode receber a mensagem e negar-se a agir ou, ainda,

ignorar o sentido proposto. Mesmo que interprete a contento, pode satisfazer apenas

parcialmente as expectativas de comportamento desejadas. Também se faz premente

ressaltar que nem todos que recebem a mensagem constituem o “público-alvo”, já que as

plataformas de divulgação dos anúncios (jornais, revistas, cinema, rádio, televisão) abrangem

uma fatia heterogênea de indivíduos.

Neste ínterim, faz-se importante destacar as críticas de Bourdieu (1996) aos

intelectuais que não acreditam na capacidade de defesa dos indivíduos. Em busca de uma

alternativa que supere, ao mesmo tempo, o discurso revolucionário que acredita na

emancipação total e, por outro lado, aqueles que compreendem “as massas” como títeres da

manipulação midiática – sem antídotos possíveis para reverter tal situação – Bourdieu

incentiva uma reflexão independente, ao assumir que embora influencie, o mass media não

possui, a priori, o privilégio de enganar total e absolutamente.

Interessante destacar esse ponto de vista de Bourdieu, sobretudo, porque embora a

extensão de seu campo de interesses – como denota a vasta bibliografia – e a recorrente

tentativa de fugir das “etiquetas teóricas”, o sociólogo francês ficou conhecido – e, por vezes,

continua a sê-lo – como o “teórico da reprodução” (MIRANDA, 2005). A resistência que

tantos opõem a análise sociológica de Bourdieu está enraizada em uma perspectiva enviesada

que os impede de aceitar, de um lado, a crítica a um indivíduo plenamente autônomo e

consciente de suas motivações e, por outro lado, a recusa em reduzir os agentes – que o

sociólogo considera eminentemente ativos e atuantes – em simples epifenômenos da

estrutura. Bourdieu entende a vida como campo de forças, cujos envolvidos se enfrentam

com meios e fins diferenciados, contribuindo para a conservação ou transformação da

estrutura.

Hall (2003), por sua vez, denomina de “leituras negociadas” a maneira como os

indivíduos interpretam e se apropriam das representações sociais presentes nos meios de

comunicação, tendo em vista que a maioria nunca está completamente dentro de uma leitura

preferencial, mas também não está totalmente a contrapelo. A assimetria na interpretação é,

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pois, uma característica sine qua non da dinâmica publicitária. Diante das múltiplas

possibilidades que os anúncios permitem, ao escolher essa fonte, o pesquisador deve assumir

o caráter de aproximação ou de projeção. É preciso estar atento a isto: a publicidade não

desvela a realidade, mas desnuda um prospecto do real. Ou seja, não revela “o que foi”, mas

“o que se desejava” que fosse. E aqui é preciso abrir um parêntesis importante. Desejo, como

pondera Miskolci (2013), não significa aquilo que se quer naturalmente, ou melhor, não se

refere às necessidades que irrompem, inadvertidamente, fora do controle pessoal. Pelo

contrário, o desejo é fruto de meios e dispositivos pelos quais se ensina o que cada um deve

gostar, valorizar, desejar, amar, pensar. Pensando a partir de Bourdieu, o desejo pode ser

entendido como um longo processo de socialização que inculca, explícita e/ou

implicitamente, disposições (BOURDIEU, 1998). Assim, os anúncios contribuem para tornar

visíveis os desejos de determinado tempo/espaço, já que uma das características da

publicidade é incorporar símbolos remetidos a um contexto e uma época para que a

inteligibilidade do anúncio se dê mediante a aquiescência do público, condição necessária

para que o emprego do símbolo aconteça sem que se tenha que aplicar longos comentários

que o esclareçam.

Portanto, arriscamos dizer que a partir dos anúncios, podemos acessar algumas

representações que prevaleceram em determinada época. Muitas dessas imagens ecoaram, ao

longo do tempo, pelo caráter intencional da educação e pelos caminhos da socialização que se

realizaram em diferentes plataformas. Assim, o anúncio publicitário é, também, locus de

tensão na construção de representações e significados sociais, consentindo que percebamos a

sedimentação ou a cristalização de determinadas formas de ser. O que não impede, é claro,

que a recepção do símbolo – o que extrapola os objetivos deste trabalho – seja negociada.

Os anúncios também têm história

É salutar reconhecer que os anúncios não foram feitos da mesma forma e/ou pelas

mesmas pessoas desde sempre; eles também têm história. Segundo Santos (2005), há

algumas hipóteses sobre a existência de táticas promocionais desde a pré-história. Diz-se que

“ao colocar peles de animais nas entradas das cavernas, os trogloditas comunicavam aos que

por ali passavam que eles dispunham daquele tipo de material e estavam dispostos a trocá-

los por outros objetos” (SANTOS, 2005, p. 31). Porém, a mais remota documentação

histórica material é um papiro egípcio do ano 1000 a. C., comunicando a fuga de um escravo

(SANTOS, 2005). No Brasil, a oralidade está intrinsecamente associada ao surgimento da

publicidade, com destaque para os pregões dos mascates ambulantes. Pinho (1998) assegura

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que o primeiro registro oficial de anúncios no país data de meados do século XVI, quando a

então vila de São Vicente decretou uma Postura Municipal5 proibindo os comerciantes de

falarem mal dos produtos de concorrentes. Os anúncios também eram “lidos pelos padres nas

missas, pregados nas portas das igrejas ou recitados nas ruas” (SANTOS, 2005, p. 35). Foi, no

entanto, em 1808, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil e, por conseguinte, a

fundação da Impressão Régia que emergiram os primeiros anúncios impressos. A princípio,

não eram cobrados. Anunciavam-se imóveis, leilões de tecidos e solicitação de serviços

(Pinho, 1998). O grande filão daquele século, porém, como assegura Freyre (2012) eram os

anúncios de escravos (venda e proclamação de fuga).

Até meados do século XIX, os jornais e revistas eram, geralmente, empresas

familiares. As mensagens, tanto noticiosas quanto comerciais, eram produzidas pelas

mesmas pessoas e os anúncios, ainda embrionários, possuíam módicos níveis de sofisticação

gráfica. De maneira geral, as mensagens comerciais apareciam de forma tímida. Santos

(2005) diz que alguns editores tinham, inclusive, receio de aceitá-los, pois isso poderia

“baixar o nível” do veículo. Para evitar que isso acontecesse, alguns periódicos limitavam-se a

publicá-los apenas nas últimas páginas, separando-os do conteúdo editorial. Contudo, o que

entrou nas publicações de forma tímida e sorrateira - mais tolerado do que, de fato, desejado

- ganhou espaço e tornou-se um importante elemento das publicações no final do século XIX.

Afinal, “os editores descobriram que esse hóspede, além de estar pagando as próprias contas,

pagava todas as despesas do estabelecimento inteiro” (SANTOS, 2005, p. 33). Luca (2012)

aponta os anos compreendidos entre o último quartel do século XIX e o início do século XX

como um período de inflexão na trajetória da imprensa brasileira com repercussões,

inclusive, na criação e composição dos anúncios publicitários. Na esteira dos avanços

técnicos de caráter industrial, a produção artesanal dos periódicos cedeu espaço para a

profissionalização e especialização da publicidade.

Desse modo, os anúncios, enfim, articularam-se às demandas da vida moderna e, no

que diz respeito à imprensa periódica, “transformaram-se numa fonte essencial de recursos”.

(LUCA, 2012, p. 151). Denominados, genericamente, de “classificados”, cujo texto lacônico,

direto e puramente informativo – semelhante a um aviso ou simples notícia – os anúncios

5 O Código de Posturas Municipal tem sua origem na época do Brasil colonial, quando os pequenos povoados e vilas, apesar de todo o poder centralizador das Capitanias Hereditárias, assumia por iniciativa própria, funções importantes de governo, entre elas o estabelecimento de regras e normas, seguindo padrões éticos, morais e culturais da época, que facilitassem a convivência dos habitantes de um mesmo local. Para saber mais sobre o assunto, consultar Pinho (1998).

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passaram a utilizar outros tipos de estratagemas, valendo-se, sobretudo de ilustrações, para

anunciar uma miríade de artigos.

Foi, no entanto, no início do século XX, com a contribuição de poetas e escritores,

“os primeiros free-lancers da redação publicitária nacional”, segundo Carrascoza (2004), que

a publicidade brasileira ganhou novo impulso. Ao encontrar nessa atividade uma fonte de

renda extra, intelectuais da envergadura de Olavo Bilac, Emílio de Menezes, Hermes Fontes e

Basílio Viana, dedicaram-se a fazer anúncios em versos - ou na forma de historietas - para

várias empresas. As ilustrações dos anúncios também ficavam por conta de renomados

artistas da época, tais como J. Carlos, K. Lixto e Julião Machado. Vale ressaltar a importância

de Olavo Bilac nesse processo evolutivo do texto publicitário, sobretudo, com viés emocional.

Responsável pela mensagem verbal de anúncios em forma de poemas, Bilac causava grande

sensação e, conforme aponta pesquisa de Carrascoza (2004), era um dos free-lancers mais

procurados pelas empresas.

Há uma historieta bastante difundida na literatura publicitária que indica o prestígio

de Olavo Bilac, bem como a sua contribuição para a expansão do texto publicitário focado na

sedução emocional, em detrimento dos argumentos racionais. Conta-se que o dono de um

pequeno comércio, amigo de Bilac, abordou-o na rua e disse que precisava vender o sítio,

propriedade que Bilac conhecia muito bem. Solícito, o poeta rapidamente redigiu um

anúncio: “Vende-se encantadora propriedade onde cantam os pássaros ao amanhecer no

extenso arvoredo / Cortada por cristalinas e marejantes águas de um ribeirão / A casa,

banhada pelo sol nascente, oferece sombra tranquila nas tardes de verão” (Carrascoza, 2004,

p. 87). Meses depois, Bilac encontra o homem e pergunta se o sítio havia sido vendido.

Comovido, o interlocutor disse que não mais havia pensado nisso. Afinal, após ler o anúncio

percebeu a maravilha que tinha em suas mãos. Chamamos a atenção para a composição do

anúncio, iniciando com o clássico “vende-se”, mas apontando as especificidades da forma não

convencional (racional) do reclame, e sim poética (emotiva), num encadeamento de figuras

que visa produzir na sensibilidade do leitor o interesse por encontrar esse lugar.

Verídica ou não, a narrativa atribuída a Olavo Bilac indica os dois principais

artifícios presentes até hoje na publicidade: o modelo apolíneo, no qual se destacam

elementos racionais, e o modelo dionisíaco, dominado pelos procedimentos que visam

despertar emoções. Longe de serem excludentes, ambos são complementares e, por vezes, se

mesclam nos anúncios, ora ganhando mais relevo esse, ora aquele. Cada qual, ao longo da

história da publicidade no Brasil, passou a agregar recursos específicos, resultando em dois

padrões com nítidas particularidades que regem a tessitura da linguagem publicitária.

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Na variante apolínea, há predominância da valorização prática do produto/serviço,

ressaltando-se características como conforto, sabor etc., bem como a crítica racional

relacionada ao custo/benefício, menor preço, inovações. Logo, o modelo apolíneo utiliza-se

de textos dissertativos com algum espaço para descrição, já que aponta propriedades e

aspectos objetivos do produto. A variante dionisíaca, por sua vez, foca na emoção, humor,

mistério, assumindo narrativas verbais em formato de poemas, fábulas, crônicas, contos,

fotonovelas. Os anúncios dessa variante pretendem a atenção do público contando boas

histórias.

Os testemunhais e depoimentos (de especialistas, celebridades ou mesmo anônimos

no formato do “antes e depois”), comumente utilizados para aconselhar o leitor a

experimentar determinado produto ou serviço, são parte da estratégia de persuasão

dionisíaca. Assim, o anunciante “finge” não proclamar com a própria voz as qualidades do

produto. É outro alguém - não a empresa - que conta a história, que envolve o público, com

intuito de garantir a adesão. Enquanto a variante apolínea apresenta objetivamente o

produto; na narrativa dionisíaca é possível observar a intenção de divulgar noções práticas da

vida, condutas adequadas, enfim, revelar formas ajustadas de se agir.

O anúncio publicitário de variante dionisíaca mais extenso na história da

propaganda brasileira é o livreto Jeca Tatuzinho6. O conto escrito por Monteiro Lobato (em

formato de folheto que depois evoluiu para almanaque) divulgava as virtudes da

Ankilostomina e do Biotônico Fontoura no combate ao amarelão. Distribuído gratuitamente

ao público desde sua primeira tiragem, em 1924, Jeca Tatuzinho chegou a atingir números

extraordinários nas décadas seguintes7. A ideia do livreto publicitário teria nascido no jornal

O Estado de São Paulo, em que trabalhavam Lobato, escrevendo artigos, e Cândido Fontoura,

empresário e médico, que colaborava em assuntos ligados à saúde (CARRASCOZA, 2004).

Provando o Biotônico por indicação do próprio Fontoura, que o fabricava, o escritor - sem

nada cobrar pela criação e ilustrações - elaborou o conto adaptado de uma de suas próprias

histórias publicadas, originalmente, no livro Urupês, em 1914, a do Jeca Tatu, típico

camponês brasileiro, fraco e doente. No esquema clássico do “antes e depois”, Jeca Tatuzinho

(no livreto publicitário o personagem ganha um nome mais afetivo, no diminutivo, assim

6 A peça publicitária inspirou, em 1982, a criação do Prêmio Jeca Tatu, instituído pela Agência de Publicidade Castelo Branco, Borges e Associados (CBBA). O prêmio, voltado aos profissionais de criação é, segundo os seus idealizadores, “uma homenagem à obra-prima da comunicação persuasiva de caráter educativo que premia os profissionais que utilizam a linguagem brasileira na propaganda, conservando as raízes e os valores da cultura do país” (MARCONDES, 2001, p. 34).

7 Em 1941, Jeca tatuzinho chegou a 10 milhões de exemplares; em 1950, a 18 milhões e meio de exemplares; e em 1973, atingiu 84 milhões de exemplares em todo o Brasil, marca espantosa para um país com problemas crônicos de analfabetismo. Ver mais em: RAMOS, 1985.

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buscando uma empatia maior com o público) indolente e desanimado, transforma-se em

fazendeiro pujante e próspero. A mudança ocorre quando um médico diagnostica que o

caboclo sofre de amarelão e o cura graças aos dois remédios do Laboratório Fontoura, o

Ankilostomina e o Biotônico8.

É na virada da década de 1930 para 1940, todavia, que se consolida o mercado

publicitário brasileiro. Aos poucos, os anúncios deixam de lado a adjetivação exagerada (à

moda de Olavo Bilac) e, com a vinda das empresas americanas e suas estratégias de

propaganda, ganham novo impulso. De fato, já havia agências de publicidade no Brasil9,

entretanto, as empresas estadunidenses imprimem uma nova estética para a publicidade,

exigindo, inclusive, a profissionalização das áreas envolvidas com a propaganda (desenhistas,

fotógrafos, áreas de criação e gráficas)10. Do anúncio puro e simples, as empresas passaram a

desenvolver estratégias, nas quais publicidade e ações do mercado articulavam-se para

assegurar aumento nas vendas. No Brasil, a criação do Instituto Brasileiro de Opinião e

Estatística (Ibope), em 1942, contribuiu para “alavancar a publicidade mediante pesquisas de

mercado” (BUENO; TAITELBAUM, 2008, p. 14).

De certa forma, este novo desenho publicitário sinalizava uma configuração cultural

mais ampla, na qual os dois sentidos que se encontravam entrelaçados à época – o “ser

moderno” e o “consumo do novo” – associavam-se ao elogio de vida norte-americano

(american way of life):

A crescente influência norte-americana no Brasil traz consigo um conjunto de novos sinalizadores de modernidade: o imponente gramofone cede lugar à versátil vitrola da Victor Machine Co. , o cinema hollywoodiano disputa as preferências de entretenimento entre as camadas mais jovens da cidade, os automóveis, cosméticos, discos, máquinas de escrever e aparelhos de barbear passam a competir com aquela estética vinda da literatura, das artes e da arquitetura europeias. Os porta-vozes dessa modernidade já não são as vanguardas artísticas e intelectuais europeias, mas homens de negócios e publicitários norte-americanos (...) A ausência de um mercado consumidor amplo, no Brasil, atribuía um duplo sentido à apropriação social das novidades: por um lado, o consumo restrito acentuava-se como prática de ostentação e distinção social; por outro lado, ele era também consumo de signos de uma modernidade incipiente (SANTOS, 1997, p. 48).

8 Além do Ankilostomina e do Biotônico Fontoura, a história também promove, secundariamente, o uso de outros produtos do mesmo laboratório: Gripargil, Fontal e Detefon.

9 A Eclética, a primeira firma a merecer a classificação de agência de publicidade, instalou-se em São Paulo, por volta de 1913 e 1914, com os proprietários Castaldi & Bennaton. Finda a primeira guerra mundial, funcionavam na capital (RJ) 5 agências: a Eclética, Pettinali, Edanèe, a de Valentim Haris e a de Pedro Didier e Antonio Vaudagnoti. A Eclética era a mais procurada (MARTINS, 2008, p. 268).

10 Conforme Santos (1997), vários publicitários brasileiros referem-se às primeiras agências norte-americanas do país como “navios-escola”: “a política de contratação de profissionais nativos, além de solucionar os impasses da busca de adaptação das mensagens, tomou um núcleo de redatores e diretores de arte familiarizados” (SANTOS, 1997, p. 54).

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No transcorrer das três primeiras décadas do século XX, as agências estadunidenses

especializaram-se na produção, tradução, distribuição e posicionamento de anúncios de

produtos americanos nos mercados estrangeiros, associando-se, via de regra, aos

agenciadores locais. Contudo, essa estratégia inicial enfrentava problemas no que dizia

respeito à adaptação dos anúncios às realidades nativas. Dizia-se que um “redator residente

nos EUA, não importa quão fluente na língua, teria dificuldade para construir o melhor apelo

publicitário porque não dominaria os códigos simbólicos de outro país” (SANTOS, 1997, p.

54). Dessa forma, a publicidade estadunidense começou a abandonar, paulatinamente, a

estratégia de associação com agenciadores estrangeiros partindo para abertura de filiais11.

Sem dúvida, optar por trabalhar com anúncios publicitários como fonte ou mesmo

como objeto de pesquisa requer do pesquisador conhecer a história da publicidade. Mais do

que isso: reconhecemos que a opção pelos anúncios publicitários sob a ótica da História da

Educação exige empenho para estabelecer vias abertas de diálogo entre várias áreas,

notadamente, a sociologia, a comunicação, a educação e a história, de modo a incentivar às

conexões existentes entre estas. Deve-se, de fato, assumir a condição de bricoler com o fim de

explorar e ampliar as referências para além de rótulos ou etiquetas acadêmicas. Não

ensejamos, todavia, a proposta simplista de uma leitura eclética de tradições diferentes, mas

a tentativa de buscar o entendimento sob a tênue fronteira que separa as áreas do

conhecimento. Com efeito, esse intercâmbio, sempre claudicante, esbarra em limitações de

linguagem, de técnica e de teorias que são singulares a cada uma delas, assinalando um

processo que exige criatividade para cruzar barreiras. Mas embora a adoção dessa

perspectiva implique em um aparente entrecruzamento caótico das áreas, por outro lado,

permite-nos encontrar facetas distintas de um mesmo objeto. Nesse sentido, ratificamos em

absoluto as afirmações de Chartier (2002, p. 18), para o qual todo o trabalho do historiador

está dividido em duas exigências básicas: a primeira, em propor a inteligibilidade mais

adequada possível de um objeto, de um problema; e a segunda, aquela que obriga a

historiador a travar um diálogo com outras disciplinas, na medida em que “somente através

desses encontros, o conhecimento científico pode ventilar questões novas e forjar

instrumentos de compreensão mais rigorosos”.

11 A pioneira foi a J. Walter Thompson Co., que entre 1927/28 já contava com escritórios na Europa e Norte da África, chegando a Buenos Aires, em 1928, e em São Paulo, em 1929. Nos anos 1930 chegam ao Brasil a N. W. Ayer and Son (1931), McCann- Eruckson (1935) e Grand Adversiting (1939). Ver mais em Santos, 1997.

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Considerações Finais

Por fim, concluímos que as propagandas, para além de divulgar produtos, também

projetam comportamentos ideais pelos quais os indivíduos acomodam-se no decorrer de suas

experiências sociais. Ou seja, atua, também, como uma poderosa ferramenta educadora,

sugerindo condutas e agindo sobre a memória12. Ressalta-se que ao não operar sobre a

decisão propriamente dita, mas sobre as intenções, a publicidade não age de forma

impositiva, mas sugestiva e, evidentemente, será tanto mais eficaz quanto melhor

corresponder aos costumes do público-alvo ao qual se dirige.

Trabalhar com os anúncios significa, afinal, ampliar a percepção do passado,

multiplicando a maneira de acessá-lo. Logo, utilizá-los enquanto fonte pressupõe dois

caminhos teórico-metodológicos possíveis – mas não únicos – que dialogam na interface

entre educação, história e publicidade. Em primeiro lugar, compreendemos o anúncio

publicitário como Pedagogia Cultural (SILVA, 2000; SABAT, 2001; STEINBERG,

KINCHELOE, 2004) e, nesta perspectiva, malgrado a produção publicitária almeje

influenciar e aumentar o consumo, também reforça hábitos, condutas e educa13, já que

tomados em seu conjunto, os anúncios inscrevem-se como guias à população, insinuando

representações que orientam seu público-alvo sobre como se deve agir. Em segundo lugar,

entendemos os anúncios como “lugares de memória”, expressão cunhada pelo historiador

Pierre Nora (1993) que é bastante instrumental ao propósito deste trabalho, na medida em

que significa uma rede simbólica que envolve, entrelaça e emaranha discursos de

determinada época e cultura, o que, contribui, sobremaneira, na compreensão das

representações sociais em determinado contexto histórico. Ressaltamos, finalmente, que este

12 Recomendamos a leitura da instigante tese de Miguel (2009), a qual se debruça sobre as revistas Capricho, publicadas entre as décadas de 1950 e 1960, concebendo-as como “lugares de memória”. A publicidade, segundo Miguel (2009), foi a maior desencadeadora de memórias entre as suas entrevistadas (à época, leitoras da revista). No capítulo dedicado aos anúncios, ela sugere possibilidades para analisar a publicidade como promotora de papéis sociais às mulheres, além de desenvolver uma interessante discussão sobre a relação entre os anúncios os cuidados de si.

13 A este respeito, Silva (2000, p. 89) define Pedagogia Cultural como “qualquer instituição ou dispositivo cultural que, tal como a escola, esteja envolvido — em conexão com relações de poder — no processo de transmissão de atitudes e valores”. Na mesma linha, os norte-americanos Steinberg e Kincheloe (2004, p. 14) afirmam que a Pedagogia Cultural enquadra a educação numa variedade de áreas sociais, incluindo, mas não se limitando, à escolar: “áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes etc”. Logo, é possível perceber o potencial pedagógico do jornal quando este ensina qual o comportamento é adequado ou não, o que é sagrado e o que é profano, o que constitui um delito grave ou uma ação heroica, como comportar-se, qual o modelo de feminilidade e masculinidade mais apropriado. Ao destituir a instituição escolar como lugar exclusivo de operacionalização da pedagogia e do currículo, uma série de trabalhos no campo da História da Educação tem voltado às atenções para outros espaços que funcionam como produtores de conhecimentos e saberes. Ver mais em: Campos (2012), Sá (2009), Zica (2011), Louro (2000) e Vasconcelos (2015).

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é um trabalho em aberto, passível de ser revisitado, incluído, disputado ou questionado, a

partir da análise de outras documentações/problematizações, que podem tanto

complementar quanto se contrapor às discussões aqui evocadas.

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