Democratização no Oriente Médio: Egito e Kuwait

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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS José Antonio LIMA O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO ORIENTE MÉDIO: OS CASOS DO EGITO E DO KUWAIT  São Paulo 2010

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Este estudo discute a democratização nos países árabes e muçulmanos do Oriente Médio, que tem ocorrido de maneira meramente cosmética naqueles países que se dispõe a realizar reformas. Este trabalho traz uma comparação entre os casos do Egito, exemplo claro de governo autoritário, e do Kuwait, onde é possível constatar formas embrionárias de divisão de poder.

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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA

PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS

José Antonio LIMA

O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO ORIENTE MÉDIO:

OS CASOS DO EGITO E DO KUWAIT 

São Paulo

2010

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José Antonio LIMA

O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO ORIENTE MÉDIO:

OS CASOS DO EGITO E DO KUWAIT 

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de

Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e

Política, como requisito para obtenção do título de especialista

em Relações Internacionais

Orientador: Prof: Flávio Rocha de Oliveira

São Paulo

2010

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor: 

Título:

Conceito:

Parecerista

Prof (a):________________________________________________________

Assinatura: _____________________________________________________

Data de aprovação:

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RESUMO 

Este estudo discute a democratização nos países árabes e muçulmanos do Oriente

Médio, que tem ocorrido de maneira meramente cosmética naqueles países que sedispõe a realizar reformas. Este trabalho traz uma comparação entre os casos do Egito,

exemplo claro de governo autoritário, e do Kuwait, onde é possível constatar formas

embrionárias de divisão de poder.

Palavras-chave: democracia, Oriente Médio, árabe, muçulmano, Egito, Kuwait

ABSTRACT

This study discusses the democratization in the Arab and Muslim countries of the

Middle East, which has been merely cosmetic in those countries that are willing to

undertake reforms. This paper provides a comparison between the cases of Egypt, a

clear example of authoritarian rule, and Kuwait, where it is possible to see embryonic

forms of power sharing.

Keywords: democracy, Middle East, Arab, Muslim, Egypt, Kuwait

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INTRODUÇÃO 

O tema desta monografia é a discussão a respeito do processo de democratização

de países árabes muçulmanos e a da possibilidade de estes conseguirem implantar

regimes democráticos duradouros, que permitam a seus cidadãos ampliar as liberdades

individuais e o acesso a direitos civis básicos, hoje inexistentes ou funcionando de

forma precária quase que na totalidade do Oriente Médio.

Nas Relações Internacionais, este tema ganhou força depois dos atentados

terroristas de 11 de Setembro de 2001, promovidos pela rede Al Qaeda, do saudita

Osama Bin Laden, contra alvos em Nova York e Washington, nos Estados Unidos. No

campo político, uma das reações do governo americano, então chefiado por George W.

Bush, foi promover um discurso segundo o qual a democratização do Oriente Médio

colocaria fim à ameaça terrorista.

Graças a essa retórica difundida pelo governo dos Estados Unidos e também por

outras grandes potências ocidentais, é possível observar atualmente no Oriente Médio

um processo de “democratização cosmética”, na qual as reformas são realizadas de cima

para baixo, enfrentam grandes resistências dentro dos partidos ou grupos hegemônicos

e, no fim das contas, não há divisão de poder. Os resultados mais nefastos desta

democratização de fachada são a ampliação da rejeição ao Ocidente desenvolvido – e da

democracia, intrinsecamente ligada a ele – e um fortalecimento do radicalismo islâmico,

que continua ocupando os espaços deixados por Estados fracos e inoperantes em áreas

estratégicas como saúde, educação, emprego e, em casos mais agudos, até a defesa. Essa

sequência de eventos tem feito com que cresça a percepção, no Ocidente, de que a

cultura árabe e a religião muçulmana são empecilhos intransponíveis para a democracia.

Ao mesmo tempo em que avança a democracia de fachada, há na região alguns

exemplos ainda embrionários de processos legitimamente democráticos. São exemplosque, se não podem ser encarados com a ingenuidade de quem prevê uma “primavera

árabe” para o curto prazo, mostram que a discussão sobre democracia no Oriente Médio

pode perpassar as questões étnicas e religiosas, mas deve ser aprofundada por meio de

uma análise histórica e geopolítica.

Para debater esta questão, a monografia traz uma comparação entre o que vem

ocorrendo no Egito – exemplo mais notório de uma democratização meramente estética

 –  e no Kuwait, onde movimentos tímidos, mas legitimamente plurais, têm sidoregistrados.

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1. CONCEITOS DE DEMOCRACIA

No estudo atual das Relações Internacionais, o debate a respeito da democracia é

recorrente. Com o fim da Guerra Fria, a década de 1990 foi marcada pelo aparecimento

de diversos regimes classificados como democráticos, a maioria seguindo os ditames

dos Estados Unidos, o grande vencedor daquele conflito. O receituário difundido a

partir de Washington se tornou uma panacéia para todos os problemas vividos em países

onde regimes autoritários ou totalitários prevaleciam. Depois dos atos terroristas de 11

de Setembro de 2001, a implantação da democracia a qualquer custo em países onde ela

previamente não existia se tornou também uma fórmula para resolver os problemas de

Estados não-democráticos. Desde então, a simples classificação de um regime como

democrático virou um salvo-conduto para muitos países participarem da chamada

comunidade internacional. Hoje em dia, alguns Estados despendem montantes vultosos

promovendo liberdades democráticas fora de suas fronteiras, analistas se digladiam

debatendo o nível de democracia no mundo, e a simples discussão, interna ou externa,

sobre a existência ou não de democracia em um determinado Estado pode causar

enorme instabilidade política. Antes de nos aprofundarmos neste, no entanto, é preciso

responder uma pergunta fundamental. O que é democracia?

Uma das primeiras respostas de relevo a esta questão foi dada pelo economista

Joseph Schumpeter em sua obra Capitalismo, Socialismo e Democracia. Schumpeter

faz uma dura crítica à filosofia da democracia do século XVIII que, segundo ele,

estipula que “o método democrático é o arranjo institucional para se chegar a certas

decisões políticas que realizam o bem comum, cabendo ao próprio povo decidir, através

da eleição de indivíduos que se reúnem para cumprir-lhe a vontade” (SCHUMPETER,

1961, p. 300). O autor rejeita esta premissa baseado, em primeiro lugar, no fato de que é

impossível conceber um “bem comum” que seja válido e aprovado por toda umapopulação. Isso não se deve, prossegue Schumpeter, ao desejo de algo ruim, mas sim

 porque “para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum provavelmente significará

coisas muito diversas” (SCHUMPETER, 1961, p. 301). Soma-se a isso a percepção de

que, ainda que em um determinado assunto haja concordância quanto ao que é um bem

comum, diferentes grupos e indivíduos vão defender soluções diferentes para o

problema.

Em sua obra, Schumpeter também ataca a noção clássica de que a democracia éo governo “pelo povo”. A tese clássica prevê que cada eleitor tenha vontade própria,

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mas Schumpeter alega que muitos indivíduos possuem apenas “um conjunto

indeterminado de impulsos vagos, circulando frouxamente em torno de slogans e

impressões errôneas” (SCHUMPETER, 1961, p. 303). Para ele, a vontade deveria ser

“complementada pela capacidade de observar e interpretar corretamente os fatos que

estão ao alcance de todos, e selecionar criticamente as informações sobre os que não

estão”, sem influência de “grupos e de propaganda” (SCHUMPETER, 1961, p. 304),

algo que, na realidade, não ocorre. Ainda que toda a população de um Estado fosse

capaz de tomar decisões independentes, com a “racionalidade e rapidez ideais”, é muito

provável, afirma Schumpeter, que o ato político produzido a partir deste processo não

representasse o que o povo deseja realmente. O autor cita a concordata assinada em

1801 por Napoleão Bonaparte com o papa Pio VII, que restabelecia a Igreja Católica na

França, ainda que sob controle do Estado. Na época, tantos eram os interesses

divergentes que a solução imposta pelo ditador foi um caminho mais produtivo que uma

solução “democrática”, que teria resultado em “impasse ou numa luta interminável”. 

Schumpeter não cita exemplos de decisões tomadas por governo sem consultas à

população em regimes classificados como democráticos, mas é preciso reconhecer que

também há exemplos deste tipo. Um desses exemplos poderia ser o New Deal, uma

série de programas econômicos implementados nos Estados Unidos pelo presidente

Franklin Delano Roosevelt entre 1933 e 1937. O objetivo do plano era recuperar a

economia americana, duramente abalada pela crise econômica de 1929. E é aqui que

podemos falar sobre a definição de democracia elaborada por Schumpeter. Para ele, “o

método democrático é um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no

qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos

do eleitor” (SCHUMPETER, 1961, p. 321).

Ao propor esta definição, Schumpeter contesta também a noção clássica de que a

democracia é o “governo pelo povo”. Para ele, “o papel do povo é formar um governo,

ou corpo intermediário, que, por seu turno, formará o executivo nacional, ou governo”.

O autor defende que a escolha feita nas urnas não é natural, mas sim “criada

artificialmente”, porque os eleitores não escolhem com independência, entre a

população elegível, os membros do parlamento. “Em todos os casos, a iniciativa

depende do candidato que se apresenta à eleição e do apoio que possa despertar. Os

eleitores se limitam a aceitar essa candidatura de preferência a outras, ou a recusar-se a

sufragá-la” (SCHUMPETER, 1961, p. 323). Schumpeter conclui o raciocínio acerca doque é a democracia criticando também a noção clássica sobre qual o papel de um

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 partido nesse sistema. “O partido não é, como nos queria convencer a doutrina clássica,

um grupo de homens que tenciona promover o bem-estar público baseado em algum

princípio comum”, mas sim “um grupo cujos membros resolvem agir de maneira

concertada na luta competitiva pelo poder político”.  “Se não fosse assim, seria

impossível aos diversos partidos adotar exatamente, ou quase exatamente, os mesmos

 programas” (SCHUMPETER, 1961, p. 337).

Aqui, cabe uma crítica à teoria de Schumpeter. Em sua obra, o autor tende a

simplificar o debate acerca da democracia, reduzindo o processo democrático

unicamente ao mecanismo de eleger ou rejeitar governos. Se por um lado essa

perspectiva critica acertadamente alguns idealismos que nublam o debate – como a ideia

de que o governante sempre atua em busca do bem comum  – por outro lado ela cria pelo

menos uma generalização que não condiz com a realidade. Para Schumpeter, o cidadão

típico, ainda que tome boas decisões quando chamado a avaliar situações que ocorrem

próximas a ele, “desce para um nível inferior de rendimento mental logo que entra no

campo político (...) torna-se primitivo novamente. O seu pensamento assume o caráter

  puramente associativo e afetivo” (SCHUMPETER, 1961, p. 313). Tal avaliação de

Schumpeter, além de generalizante, ignora completamente a possibilidade de a

sociedade civil se organizar para conseguir determinados objetivos. Um exemplo que

parece claro é o movimento de repúdio da população dos Estados Unidos à Guerra do

Vietnã nas décadas de 1960 e 70.

A teoria realista de Schumpeter a respeito da democracia serviu como uma das

bases para a teoria de Samuel Huntington, para quem “o procedimento central da

democracia é a seleção de líderes por meio de eleições competitivas pelas pessoas que

eles governam” (HUNTINGTON, 1991, p. 6). Huntington acrescenta ainda em sua

teoria a necessidade de que as eleições “justas, honestas e periódicas” contem com a

  participação “de toda a população adulta  em condições de votar” (HUNTINGTON,1991, p. 7). Ao fazer essa inclusão, Huntington acrescenta a variável “participação” ao

sistema de contestação definido por Schumpeter e contempla as duas dimensões da

teoria da democracia de Robert Dahl, que será vista de forma aprofundada mais à frente.

Em sua obra, Huntington define a democracia a partir de cinco pontos. O

 primeiro é o mais básico, que retoma a tese schumpeteriana, segundo o qual a “eleição

livre é a definição mínima de democracia, é sua essência, é a condição sine qua non 

 para que a democracia exista” (HUNTINGTON, 1991, p. 9). Em sua visão, os governoseleitos “podem ser ineficientes, corruptos, sem visão, irresponsáveis, dominados por 

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interesses especiais e incapazes de tomar decisões em favor do bem público, mas isso

não os faz não-democráticos” (HUNTINGTON, 1991, p. 10). Em segundo lugar, apesar

de admitir que governos podem ter determinados interesses obscuros, Huntington

afirma que, uma vez que o “tomador de decisão eleito” se torne uma simples “fachada

ao exercício do poder por parte de um grupo não eleito democraticamente, o regime não

é democrático” (HUNTINGTON, 1991, p. 10).

O autor prossegue fazendo uma diferenciação entre a natureza do regime

democrático e sua respectiva estabilidade. Segundo Huntington, dois regimes podem ser

classificados igualmente como democráticos, mas um pode ser superado, por um golpe

militar, por exemplo, enquanto o outro vai persistir. Assim, em sua visão um regime

pode ser considerado democrático ainda que dure muito pouco tempo. O quarto ponto

levantado é a discussão a respeito da democracia enquanto processo. Huntington afirma

que, ainda que muitos analistas avaliem a democracia como uma continuação, ou

mesmo uma evolução, da não-democracia, a visão dicotômica de que um regime

político é ou não democrático é mais útil, especialmente por estar baseada em um

critério único, relativamente claro e amplamente aceito. É importante dizer que o autor

abre a possibilidade de considerar a existência de semidemocracias, sendo que um dos

exemplos seria o período de 1915-1936 na Grécia, momento instável no qual a figura do

revolucionário Eleftherios Venizelos teve destaque. Por fim, Huntington levanta um

quinto ponto que é o inverso do inicial, mas que serve para classificar os regimes não-

democráticos. Para ele, “r egimes não-democráticos não têm competição eleitoral e

participação generalizada de eleitores” (HUNTINGTON, 1991, p. 13), e essa categoria

engloba desde monarquias absolutas até ditaduras militares, passando por aristocracias,

oligarquias e regimes fascistas ou comunistas.

Em duas obras anteriores  –    A Ordem Política nas Sociedades em Mudança 

(1968) e   No Easy Choice: Political Participation in Developing Countries   – ,Huntington debate a entrada das massas na arena política e o impacto que esse processo

gera em regimes democráticos. Segundo Limongi, diante do surgimento de regimes

autoritários em países cujo estágio de modernização estava atrasado (Terceiro Mundo),

Huntington defende que a democracia estaria ameaçada assim que as massas entrassem

na política, pois essas “seriam incapazes de apresentar comportamento moderado”. “Sob

a democracia, líderes atenderiam a essas demandas [das massas], comprometendo a

continuidade do processo de modernização, uma vez que a distribuição de renda se fariaà custa do investimento”. Huntington vai além e afirma que a própria modernização é

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um fator desestabilizador dos regimes democráticos, pois ela intensifica o conflito

social. Assim, na visão de Huntington, para o “Terceiro Mundo, o destino estaria

selado. Tanto a manutenção da ordem tradicional quanto a sua dissolução resultariam

em soluções necessariamente autoritárias”. 

A teoria que parece avaliar da melhor e mais completa forma as nuances do

fenômeno da democracia nos dias atuais parece ser a de Robert Dahl. Em Poliarquia,

Dahl nem adota o idealismo da teoria clássica da democracia e muito menos adere ao

pensamento minimalista de Schumpeter. Dahl estabelece como característica-chave da

democracia a “contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos,

considerados como politicamente iguais” (DAHL ,2005, p. 25). Dahl reserva o termo

democracia para um sistema hipotético no qual esta premissa seja “inteira ou quase

inteiramente” cumprida pelo governo, o que permite uma análise do processo de

democratização, cujo objetivo é tornar determinado Estado-nação uma poliarquia.

Em primeiro lugar, é preciso definir o conceito de poliarquia. Ao contrário de

Schumpeter, que centra sua teoria na figura do chefe de Estado e no poder das elites

políticas, Dahl estabelece o pluralismo da sociedade como uma característica básica do

sistema em que o governo responde às preferências de seus cidadãos. No sistema

poliárquico de Dahl, não há espaço para o domínio de um grupo sobre os demais, mas

sim uma disputa pelo poder entre diversos grupos cujo resultado é a manutenção da

liberdade política em uma determinada sociedade. Em poucas palavras, a poliarquia é

um sistema no qual muitos grupos governam.

Dahl distingue as sociedades conforme o grau de pluralismo presente em cada

uma delas. Quanto mais pluralista, mais poliárquica e próxima do ideal democrático

essa sociedade estará. Nesta concepção, para que a responsividade do governo aos

desejos da população (a característica-chave da democracia) seja mantida, é preciso que

oito garantias sejam consideradas: a liberdade de formar e aderir a organizações;liberdade de expressão, direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de

líderes políticos disputarem apoios (e votos); fontes alternativas de informação; eleições

livres e idôneas e instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam

de eleições e de outras manifestações de preferência.

Na base da teoria de Dahl está a análise do movimento que as sociedades fazem

ao longo de dois eixos  – o da contestação pública e o do direito de participação nas

eleições e na disputa por cargos públicos. Dentro deste sistema, há inúmeros caminhosteóricos a serem percorridos pelos Estados, sendo que o estudo de três deles simplifica a

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análise do processo de democratização. No primeiro caminho, os Estados se movem

apenas no eixo da contestação. Se um país controlado por uma hegemonia fechada sair

da base deste eixo e passar por um processo de liberalização política, aumentando as

oportunidades de contestação pública, ele se tornará uma oligarquia competitiva. A

ampliação da disputa provocaria, então, um aumento da inclusividade no processo

eleitoral e o regime, então, se tornaria uma poliarquia. Nas palavras de Dahl, este foi o

caminho usado pela Inglaterra e pela Suécia nos séculos XVII e XVIII. No segundo

percurso teórico, a hegemonia fechada se desloca ao longo do eixo inclusão, e o

primeiro passo é a transformação deste em uma hegemonia inclusiva, como ocorreu

“com a Alemanha do Império até Weimar”. 

O terceiro caminho prevê uma passagem direta de um sistema hegemônico para

um sistema poliárquico. É a forma mais rápida, mas também a mais perigosa, pois

“encurta drasticamente o tempo para o aprendizado de habilidades e entendimentos

complexos e para se chegar ao que pode ser um sistema extremamente sutil de

segurança mútua” (DAHL, 2005, p. 54). Na revolução, são tantos os grupos sociais que

ganham força com a liberalização repentina que a instabilidade só é controlada por um

novo governo hegemônico. Esse foi o rumo, segundo exemplo do próprio Dahl,

percorrido pela França entre 1789 e 1792. Outro exemplo mais bem acabado poderia ser

o da Rússia, que em fevereiro de 1917 substituiu a autocracia czarista por um governo

republicano e democrático, cujo chefe era Alexander Kerensky, e que, em outubro do

mesmo ano, caiu sob controle dos bolcheviques.

Antes de analisar os dois primeiros caminhos rumo à poliarquia, é preciso

avaliar o que os governantes levam em conta na hora de percorrer qualquer um deles.

Segundo Dahl, é preciso criar um sistema de segurança mútua, pois quando regimes

hegemônicos e oligarquias competitivas se deslocam na direção de uma poliarquia, eles

“aumentam as oportunidades de efetiva participação e contestação e, portanto, o númerode indivíduos, grupos e interesses cujas preferências devem ser levadas em consideração

nas decisões políticas” (DAHL, 2005, p. 36). Quando esse processo ocorre, quem está

no governo passa a temer novas possibilidades de conflito com os grupos recém-

incorporados à disputa política e o mesmo se dá na direção oposta. Quanto mais

acirrado for o ambiente, mais difícil se faz a tolerância de cada um para com o outro e

maior é a probabilidade de o governo tentar suprimir as oposições. Neste momento,

prossegue Dahl, são levados em conta tanto os custos da tolerância quanto os custos da

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repressão à oposição, e quanto mais os custos da supressão excederem os custos da

tolerância, tanto maior a possibilidade de um regime competitivo surgir.

“Quanto mais baixos os custos da tolerância, maior a segurança do governo.

Quanto maiores os custos da supressão, maior a segurança da oposição.

Conclui-se daí que as condições proporcionam um alto grau de segurança

mútua para o governo e as oposições tenderiam a gerar e preservar

oportunidades mais amplas para as oposições contestarem a conduta do

governo” (DAHL, 2005, p. 37)

Tendo em vista o conceito da segurança mútua, é mais fácil compreender o

primeiro e o segundo percursos que as hegemonias fizeram, fazem ou farão rumo à

poliarquia.

O primeiro caminho (o regime se torna uma oligarquia competitiva e, depois,

uma poliarquia) é aquele percorrido por países que hoje se encontram em um alto grau

de desenvolvimento democrático, como Reino Unido e Suécia, já citados, e Dinamarca,

Holanda, Noruega e Suíça, por exemplo. Nesses Estados, “as práticas e a cultura da

política competitiva desenvolveram-se primeiramente entre uma pequena elite, e a

transição crítica da política não partidária para a competição partidária ocorreu

inicialmente dentro do grupo restrito” (DAHL, 2005, p. 54). Dahl lembra que essa

transição não foi rápida e nem tranquila, mas que as diferenças entre os vários grupos

eram “restringidas por laços de amizade, família, interesse, classe e ideologia” do

pequeno grupo restrito. Quando essas práticas competitivas se expandiram, afirma o

autor, as outras camadas sociais “foram mais facilmente socializadas”. 

O primeiro caminho, nos dias atuais, parece superado. Não porque é demorado,

mas porque pouquíssimos países ainda não concederam o direito ao voto a grandes

contingentes de sua população. Mesmo no Oriente Médio, objeto de estudo destamonografia, boa parte dos países ampliou ou tende a ampliar o sufrágio, ainda que

democracias não estejam estabelecidas. Assim, a maior parte das hegemonias existentes

hoje em dia já é inclusiva. Esse fato deixa aberta a possibilidade de que a busca pela

poliarquia se dê por meio do segundo caminho, aquele pelo qual a hegemonia se torna

antes inclusiva e, depois, uma poliarquia. Se este percurso é mais seguro que a

revolução, ele, no entanto, é muito mais arriscado que o processo pelo qual passaram as

os regimes mais poliárquicos dos dias atuais.

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“Quando o sufrágio é ampliado antes das artes da política competitiva terem

sido assimiladas e aceitas como legítimas entre as elites, a busca de um

sistema de garantias mútuas provavelmente será complexa e consumirá

tempo. Durante a transição, quando surge um conflito, nenhum dos lados

pode estar inteiramente confiante de que é seguro tolerar o outro. Como asregras do jogo político são ambíguas e a legitimidade da política competitiva

é fraca, os custos da supressão podem não ser exageradamente altos”

(DAHL, 2005, p. 55)

Desta forma, o destino de um país que percorre o segundo caminho pode ser o

mesmo de um que trilha o percurso revolucionário  –  a suplantação hegemônica, por

parte de um grupo, do restante das forças que dividiam, ou que tentavam dividir, o

poder, o que encerraria o regime competitivo.Outra contribuição importante para o debate acerca do que é democracia foi

dada por Arend Lijphart, que detalha, em sua obra, dois tipos de democracia

encontrados no mundo atual  –  a majoritária e a consensual. Para diferenciar os dois

modelos, Lijphart traça dez características de cada forma de governo, divididas em duas

dimensões, a executivo-partidos e a federal-unitária. Na primeira dimensão, as cinco

principais características do modelo majoritário são a concentração do Executivo em

gabinetes monopartidários de maioria; uma relação entre o Executivo e o Legislativo naqual o primeiro é dominante; a existência de um sistema bipartidário; de um sistema

eleitoral majoritário e desproporcional; e de um sistema em que os grupos de interesse

sejam pluralistas, com livre concorrência entre eles. Na dimensão federal-unitária as

características do modelo majoritário são: governo unitário e centralizado; concentração

da legislatura em uma única câmara; Constituição flexível, que pode receber emendas

por simples maiorias; sistema em que o Legislativo dá a palavra final sobre a

constitucionalidade das leis; bancos centrais dependentes do Executivo. O sistemabritânico é o que mais se aproxima do sistema puro teorizado por Lijphart, segundo o

próprio autor (LIJPHART, 2003, p. 22).

A democracia consensual é definida por dez características que se contrapõe ao

modelo majoritário. Na dimensão executivo-partidos são elas: a distribuição do Poder

Executivo em amplas coalizões partidárias; equilíbrio nas relações entre o Executivo e o

Legislativo; a existência de um sistema bipartidário; representação proporcional; e a

adoção de um sistema corporativista que visa a concertação. Na dimensão, federal-

unitária as características são: governo federal e descentralizado; divisão bicameral do

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Legislativo; Constituição rígida, que só podem ser modificadas por maiorias

extraordinárias; revisão judicial das leis por uma corte; e bancos centrais independentes.

Aqui, o melhor exemplo é o da Suíça (LIJPHART, 2003, p. 53).

Cabe notar que os modelos detalhados por Lijphart são teóricos e mesmo nos

exemplos mais bem acabados das democracias majoritária e consensual  –  o Reino

Unido e a Suíça, respectivamente  – há características desses sistemas que diferem do

modelo, bem como desvios ocasionais em determinados aspectos, que precisam ser

detalhados para que uma determinada característica seja apontada como pertencente ao

modelo majoritário ou consensual. Isto não é uma crítica, mas sim uma constatação,

notada até mesmo pelo próprio autor, que precisa ser feita para evitar que um país que

foge do modelo em um aspecto seja considerado não-democrático.

A teoria de Lijphart também serve como contraponto à noção de que uma forte

oposição é condição necessária para que um país seja considerado democrático. De

acordo com Lijphart, “existe na ciência política uma tendência surpreendentemente

forte e persistente de se associar democracia somente ao modelo majoritário, e de não

reconhecer a democracia de consenso como uma alternativa igualmente legítima”

(LIJPHART, 2003, p. 21). Segundo o autor, essa visão não leva em consideração que o

governo, em sistemas pluripartidários consensuais, “tende a ser de coalizão, e que uma

mudança de governo nesses sistemas normalmente significa apenas uma mudança

  parcial na composição partidária no governo, em vez de a oposição ‘tornar -se’

governo”. Um dos que defende esta visão é Huntington. Segundo ele (2003, apud

LIJPHART, p. 22), a alternância de poder – e a entrega pacífica deste – são critério para

determinar se um regime é ou não democrático. Essa ponderação de Lijphart é trazida à

tona aqui não para diminuir a importância da oposição para uma democracia, mas para

evitar que critérios muito rígidos, como o proposto por Huntington, tornem ainda mais

crítica a definição do que é um país democrático.Outro ponto levantado por Lijphart e que também serve para rebater uma parte

da argumentação de Huntington, é que para um país ser considerado democrático, é

preciso que a análise seja feita com base em um período longo de tempo. Não basta que

um regime democrático seja criado ou imposto  –  por forças nacionais ou mesmo

internacionais  – sem que ele consiga manter balanceado o sistema de segurança mútua

do qual fala Dahl. Nas palavras de Lijphart, “a razão mais substancial é que isso nos dá

a segurança de que as democracias analisadas não são entidades efêmeras, mas, sim,sistemas consolidados e razoavelmente estáveis de democracia” (LIJPHART, 2003, p.

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73). A existência de um sistema democrático que sucumbe ao primeiro percalço é sinal

de instabilidade política, o que pode significar até mais dificuldades para a população

submetida a esse cenário do que a vida em um sistema menos democrático, porém mais

estável.

Em sua obra, Lijphart faz uma extensa comparação entre os dois modelos e

conclui que a democracia consensual é um sistema superior à democracia majoritária

por ter um desempenho ligeiramente melhor no que diz respeito à administração

macroeconômica e ao controle da violência e claramente melhor “quanto à qualidade e

representatividade democráticas, como também quanto [ao que o autor chama de]

generosidade e benevolência na orientação das políticas públicas (LIJPHART, 2003, p.

339). A partir desta conclusão, Lijphart afirma que “a opção consensual é a mais

atraente para os países que estão elaborando as suas primeiras constituições

democráticas ou que aspiram a uma ref orma democrática” e salienta que essa

recomendação é “pertinente, e até urgente, para as sociedades que apresentam profundas

divisões étnicas e culturais, mas é também relevante para os países mais homogêneos”  

(LIJPHART, 2003, p. 339).

Em conjunto com essa conclusão, Lijphart nota que “a democracia de consenso

pode ser incapaz de criar raízes e brotar, a menos que apoiada por uma cultura política

consensual (...) que muitas vezes fornece a base e as conexões entre as instituições da

democracia de consenso” (LIJPHART, 2003, p. 343). Tal preocupação, prossegue o

autor, não significa que o modelo consensual não tem chances de vingar em países de

democracia recente ou em vias de democratização. E para isso Lijphart cita dois

importantes contra-argumentos. No primeiro, o autor retoma as ideias de Gabriel A.

Almond e Sidney Verba em The Civic Culture  e diz que “embora uma cultura

consensual possa levar à adoção de instituições consensuais, essas instituições também

têm o potencial de tornar uma cultura inicialmente antagonista menos antagonista emais consensual” (LIJPHART, 2003, p. 344). 

Democracias consensuais, como a da Suíça e a da Áustria, podem ter

culturas consensuais hoje, porém nem sempre foram tão consensuais assim:

o povo suíço passou por cinco guerras civis, desde o século XVI até meados

do XIX, e os austríacos tiveram uma breve  – porém sangrenta – guerra civil,

ainda em 1934. No final dos anos 90 [momento em que o autor escreve],

Bélgica, Índia e Israel possuem instituições consensuais  –  e claramente

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necessitam delas – porém as suas culturas não são consensuais (LIJPHART,

2003, p. 345).

No segundo contra-argumento, Lijphart contesta a ideia de Huntington exposta

acima de que o destino autoritário dos países não-ocidentais e pertencentes ao que se

convencionou chamar de Terceiro Mundo estaria selado, pois neles a democracia não

seria mais viável a partir da entrada das massas no processo político. Lijphart cita os

trabalhos de autores como Rupert Emerson, Arthur Lewis e Raul S. Manglapaus e

destaca que todos citam o forte componente consensual existente em países não-

ocidentais e que, muitas vezes, passa despercebido no ocidente. Nesta argumentação,

Lijphart retoma a importância excessiva dada à existência de uma forte oposição para a

classificação de um país como democrático e cita as palavras de Adebayo Adedeji, quefoi secretário-executivo da Comissão das Nações Unidas para a África e sub-secretário-

geral da ONU, segundo quem os africanos são “antigos mestres em consulta, consenso e

acordo. Em consequência disso, não existe a oposição sancionada e institucionalizada

em nosso sistema tradicional de governo. Tradicionalmente, política para nós jamais

constituiu um jogo de soma zero” (ADEDEJI, 1994 apud LIJPHART, 2003, p. 346).

Lijphart conclui afirmando que:

“Muitas vezes essas declarações costumam ser suspeitas, porque foram

exploradas por alguns líderes políticos não-ocidentais para justificarem

certos desvios da democracia. Mas o fato de já terem sido usadas com

propósitos ilegítimos não as torna menos válidas. Todos os autores que citei

são tanto democratas sinceros quanto sensíveis observadores, sem quaisquer

outras motivações ocultas. Assim, as culturas políticas de orientação

consensual do mundo não-ocidental podem ser consideradas como uma

sólida força opondo-se ao ser conservadorismo institucional majoritário, e

podem ser bem capazes de fornecer o terreno fértil para a democracia

consensual” (LIJPHART, 2003, p. 346).

Diante de todo o exposto acima, cabe definir aqui a noção de democracia que

será levada em conta neste texto. Em primeiro lugar, é preciso ter como ponto de partida

a definição de Schumpeter de que a democracia é o sistema no qual um indivíduo

adquire o poder por meio de uma luta competitiva pelos votos do eleitor, a eleição. Tal

definição é verdadeira, e servirá aqui como embrião de uma visão mais ampla. Na buscapor uma definição mais abrangente, é imprescindível trazer à discussão uma segunda

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característica, o sufrágio universal, definido cruamente por Huntington como a

participação nas eleições de “toda a população adulta em condições de votar”. Como foi

visto, tal condição hoje já é um fato na maioria dos países  – incluindo a muitos dos não-

democráticos  – mas nem por isso a participação generalizada em eleições deixa de ser

importante. Em terceiro lugar, é preciso tratar como democrático um sistema que, como

definiu Lijphart, seja duradouro e capaz de oferecer à população estabilidade para que

os benefícios deste tipo de governo sejam aplicados. Com os conceitos de Schumpeter

(governo eleito), Huntington (por sufrágio universal) e Lijphart (em um sistema

duradouro) como base, chegamos à definição de democracia que será mais útil para este

trabalho, a de Dahl. Para ele, a democracia é um modelo ideal e, para analisar os

regimes em vias de democratização é necessário levar em conta o grau de pluralismo

que eles permitem, levando em conta que, quanto mais plural o regime, mais

poliárquico ele será e mais perto do ideal democrático estará.

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2. O EGITO E A QUESTÃO DA POLIARQUIA

Uma das regiões do mundo onde a democracia enfrenta mais barreiras para ser

implantada é o grande Oriente Médio. Valores liberais ocidentais  –  nos quais estão

embutidas as noções de democracia e também de constitucionalismo e individualismo –  

se espalharam por partes da África e da Ásia, pela América do Sul e a Oceania, mas a

imensa maioria dos países que estão localizados entre o noroeste da África e o ocidente

asiático é considerada não democrática ou não-livre1. Para tentar entender esta situação,

é preciso começar analisando o relacionamento entre o Ocidente e o Oriente Médio

Há no Oriente Médio uma rejeição ao Ocidente que pode ser traçada de volta à

transição do século XVIII para o século XIX, um período em que as invasões ocidentais

na região se acentuaram, aproveitando o atraso acumulado pelas sociedades

muçulmanas ao longo dos séculos anteriores (DEMANT, 2008, p. 80). Quando o século

XX teve início, a balança pendeu de forma ainda mais decisiva para o lado ocidental,

como conta Peter Demant:

“Na virada do século XX, a maior parte do mundo muçulmano estaria sob

controle europeu, direto ou indireto. O Império Otomano sofrera derrotas

dos russos e povos cristãos nos Bálcãs que, um a um, chegaram àindependência. Mercadores franceses, italianos e belgas controlavam o

comércio do Egito e do Império Otomano, enquanto os ingleses exerciam o

poder político e guardavam o Canal de Suez, de importância vital por

assegurar o caminho para a Índia. Os otomanos, persas, egípcios, tunisianos

e marroquinos se endividaram com financiadores ocidentais: suas alfândegas

foram sequestradas como garantia. Em vários casos, isso foi apenas uma

etapa frente à imposição de um protetorado europeu. Missionários católicos

e protestantes propagavam sua fé com o uso de escolas, hospitais e

universidades. Soldados britânicos e franceses reprimiam revoltas e

mantinham a ordem e a segurança pública; funcionários públicos europeus

supervisionavam a construção de ferrovias, instalações portuárias, canais e

obras de irrigação. Financiados por investimentos vindos de Londres, Paris e

Berlim e de outras metrópoles do Ocidente, os colonos europeus se

assentavam na Argélia, na Palestina, nas Índias Orientais Holandesas e

outros lugares” (DEMANT, 2008, p. 80)

1 Definição do relatório de 2010 do think tank  americano Freedom House, disponível em:

http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=363&year=2010

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Essa “ocupação” não teve efeitos apenas negativos. Uma melhora na

infraestrutura dessas regiões, e nos níveis de educação e padrão de vida das populações

foram benefícios importantes e duradouros, mas maiores foram os efeitos negativos.

Tanto franceses quanto britânicos, as principais potências colonizadoras da época

naquela região, usaram a chamada política de “dividir para governar” para manter a

ordem e “desarmaram a maioria (sunita), e a discriminaram em favor das minorias.

Assim, armênios, judeus, xiitas, druzos e outros se associaram, na percepção da maioria,

aos colonizadores, e se tornaram objeto do ódio da maioria” (DEMANT, 2008, P. 92).

O resultado de todo esse processo foi uma reação, que se delineou sob “três ideologias

dominantes desde o entre-guerras” (DEMANT, 2008, P. 98), sendo duas delas seculares

 – o pan-arabismo e o patriotismo territorial – e uma terceira religiosa, que dá ao Islã um

papel central.

As duas primeiras ideologias foram dominantes no período que vai de 1945 a

1967, quando a maior parte dos países árabes chegou à independência política. Nesta

época, foram forjados dois dos tipos de regimes de governo que marcam o Oriente

Médio até hoje  –  as monarquias conservadoras e as ditaduras monopartidárias

populistas. Diversas delas, inclusive, tiveram e têm apoio das grandes potências

europeias e dos Estados Unidos. A terceira ideologia, a religiosa, que se fortaleceu mais

tarde, deu origem aos regimes islamistas. Ainda que no campo político os três tipos de

governo sigam existindo, no campo ideológico as duas primeiras vertentes parecem

derrotadas, enquanto a ideologia religiosa só faz crescer.

Essa preponderância do terceiro caminho se deu ao longo dos últimos sessenta

anos, período que representa para o Oriente Médio muçulmano “a história do fracasso

do desenvolvimento”, pois “a descolonização, meramente formal, nunca se desdobrou

em emancipação política, social, econômica e cultural das populações” (DEMANT,2008, p. 98). Este período de sessenta anos foi marcado por dois fenômenos. Em

primeiro lugar, teve “grandes rupturas”, mas “pontuadas por derrotas” (DEMANT,

2008, p. 100) importantes dos países árabes e muçulmanos. Seja no campo militar ou no

simbólico, episódios como a Guerra dos Seis Dias (1967), a Guerra do Yom Kipur

(1973), a Guerra Civil Libanesa (1975  –  1991), a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), a

Guerra do Golfo (1991) e a Guerra do Iraque (2003 - ) deixaram clara a impotência

dessas nações diante de forças ocidentais. O segundo fenômeno é a influência da

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política externa agressiva dos Estados Unidos, país que substituiu as nações europeias

como grande potência mundial depois da Segunda Guerra Mundial.

As monarquias conservadoras e as ditaduras monopartidárias árabes não são e

não estão perto de ser democracias. São, sim, governos autoritários, que ao mesmo

tempo em que impedem manifestações contestatórias legítimas por parte de seus

cidadãos, mantêm sistemas de bem-estar social precários, incapazes de suprir as

necessidades mais básicas das populações, uma combinação que torna o clima no

Oriente Médio altamente volátil. Como afirma Demant, nos últimos 25 anos a região

mergulhou num “redemoinho de empobrecimento, crises políticas e sociais, influências

externas, violência entre Estados e guerras civis que constituem o contexto de uma

‘guerra de culturas’, entre o modelo liberal-pluralista-ocidental e um modelo alternativo

islamista” (DEMANT, 2008, P. 158). Em uma tentativa de evitar que um estado de

convulsão social colocasse em risco suas próprias existências, muitos governos

procuraram estabelecer uma rede de serviços básicos em áreas como saúde, educação,

segurança e previdência social, mas os resultados foram apenas paliativos.

“O desenvolvimento, mesmo quando ocorria na realidade e não somente nos

discursos oficiais e nas propagandas, ficou atrás do crescimento

populacional, estimulado pelos avanços na saúde pública. Com a exceção  –  parcial e temporária  – dos Estados exportadores de petróleo, a renda estatal

tem diminuído e, com isso, reduz a possibilidade de providenciar benefícios

para uma população cada vez mais numerosa. A liberalização abriu cada vez

mais Estados a importações de produtos industriais baratos, ameaçando

produtores locais. A privatização tirou mais empregos do que gerou. A

burocracia, a instabilidade política, as guerras e a insegurança impediram

investimentos estrangeiros. No entanto continua, cada ano mais intensa, a

crise socioeconômica. Com a incapacidade do Estado de enfrentá-la, o

Oriente Médio vive o fracasso da modernização neoliberal” (DEMANT,

2008, P. 260)

No vácuo deixado pelo Estado, atuam os movimentos islamistas. O caso mais

emblemático é o do Hizbullah, o grupo xiita que atua no sul do Líbano como “grande

provedor de serviços sociais, operando escolas, hospitais e serviços agropecuários para

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milhares de xiitas li baneses”2. Um exemplo muito claro desta relação entre o Hizbullah

e a população do sul do Líbano foi explicitada em uma emblemática reportagem da rede

de TV americana CNN  feita em 2006, logo após um conflito entre o grupo armado e

Israel. “Enquanto as bombas israelenses destruíram muito da zona sul de Beirute, que é

a capital do Estado de facto do Hizbullah dentro de um Estado [o Líbano], a habilidade

do Hizbullah de proporcionar [serviços] a seus constituintes permaneceu intacta” 

(SCHUSTER, 2006). A reportagem mostra como integrantes do Hizbullah foram os

primeiros a acudir a população civil, fornecendo desde recursos básicos, como água e o

pagamento da mensalidade escolar, até reformas das casas e comércios dos libaneses,

por meio de grupos que usavam camisas com a inscrição “Companhia de Construção 

Jihad”. A estrutura do Hizbullah, paralela à oficial, não para por aí e chega até a

formação de grupos de mídia ligados ao movimento, como é o caso da emissora  Al-

 Manar . A influência do grupo é tanta que, na política, as duas estruturas  – a oficial e a

paralela, passaram a se confundir, e hoje o partido político Hizbullah tem legisladores

eleitos e integra o governo libanês. Grupos como o Hizbullah  – e outros muito menos

organizados que o libanês  – são uma verdadeira ameaça aos regimes atuais no Oriente

Médio que, “amedrontados com a perspectiva de uma revolução, que nas condições

atuais só poderia ser uma revolução islamista, não ousam abrir espaço para uma

autêntica democratização” (DEMANT, 2008, P. 120).

O que se tem visto é um processo de acomodação de determinadas exigências

das populações e dos islamistas por meio de uma democratização limitada, que provoca

um paradoxo. “Onde houve democratização, houve crescimento e legitimação da

tendência fundamentalista. Oposições liberais, progressistas e secularistas continuam

existindo, mas a principal contestação hoje vem da direita religiosa” (DEMANT, 2008,

P. 253). Assim, conclui Demant:

“Aberturas democráticas, portanto, não levam necessariamente a uma

democratização pluralista da sociedade  –  a panaceia ocidentalizadora

proposta desde os anos 50 pelos teóricos da escola da modernização – , mas a

uma islamização rastejante, cuja tendência política é antidemocrática ou pelo

menos antiliberal. Quanto mais uma sociedade se islamiza, mais seu

governo não-islâmico fica esvaziado da justificativa ideológica, e seu único

2 Definição do Council of Foreign Relations em  Hezbollah (a.k.a. Hizbollah, Hizbu'llah), disponível em:

http://www.cfr.org/publication/9155/hezbollah_aka_hizbollah_hizbullah.html 

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recurso é a violência: assim acaba por perder legitimidade, tornando-se

vulnerável a golpes futuros. Por outro lado, nos países onde a elite política

não ousa apostar na tática da democratização controlada, predomina a

repressão militar-policial, e as tensões reprimidas aumentam sob a

superfície: aqui também o islamismo é a principal oposição” (DEMANT,2008, P. 254).

O melhor exemplo de um Estado árabe no qual esse processo de democratização

tem dado errado é justamente o mais importante deles, o Egito, objeto de estudo deste

capítulo.

Formalmente independente do Reino Unido em 1922, o Egito seguiu sob

controle britânico por pelo menos mais três décadas, quando o então rei Farouk, um

fantoche nas mãos de Londres, foi forçado a abdicar diante de uma revolta popular que

incluía os Oficiais Livres, militares liderados por Gamal Abdel Nasser, e a Irmandade

Muçulmana, grupo radical que pretendia islamizar a sociedade egípcia e cujo ideólogo

era, neste momento, Sayyid Qutb, aquele que talvez seja o mais importante nome por

trás da formação do pensamento do radicalismo islâmico.

Aqui, cabe um breve histórico sobre as origens da Irmandade Muçulmana. O

grupo foi criado em 1928 por Hassan Al-Banna, com o nome de Sociedade dos Irmãos

Muçulmanos, e tinha como objetivo inicial educar os fiéis muçulmanos. A partir de

1945, a Irmandade se transformou e passou a desenvolver programas sociais, nos

moldes do que o libanês Hizbullah faz hoje em dia. Esses programas incluíam escolas

regulares e para trabalhadores, movimentos de escoteiros, mesquitas, hospitais, clínicas,

sindicatos e até empresas próprias em áreas como as indústrias gráfica, têxtil e de

engenharia (METZGER, 2008, p. 78). Paralelamente às atividades sociais exercidas

  pela Irmandade Muçulmana, um “aparato secreto” ligado ao grupo surgiu e passou a

adotar a violência como método, o que era uma tendência no turbulento Egito do finaldos anos 1940 e início da década de 1950 mesmo entre grupos não religiosos, como os

Camisas Verdes, ligados ao palácio real, e os Camisas Azuis, ligados ao Wafd

(ARMSTRONG, 2001, 255), o partido liberal nacionalista que tinha papel de destaque

na política egípcia daquele período. A participação de Banna e seu conhecimento sobre

as atividades do aparato secreto da Irmandade Muçulmana não são objeto de consenso.

Lawrence Wright (2007, p. 38) afirma que o fundador do grupo aprovou o surgimento

da facção violenta. Já Karen Armstrong (2001, 255) diz que “não se sabe ao certo” qual

a real participação de Banna no aparato secreto, mas nota que ele criticava, com a

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mesma veemência, tanto as atividades do grupo quanto as ações do governo. Foi em um

desses episódios que Banna acabou morto, baleado nas ruas do Cairo. Depois que um

membro da Irmandade Muçulmana matou o primeiro-ministro Mahmoud an-Nukrashi

Pasha, que havia colocado o grupo oficialmente na ilegalidade, Banna criticou o

atentado terrorista. Dois meses depois de Pasha, o próprio Banna foi assassinado,

provavelmente pela polícia secreta de Nasser. Seja como for, fosse o fundador da

Irmandade ligado ou não às atividades terroristas do grupo, o fato concreto e aqui

relevante é que sua morte abriu espaço para seu rival intelectual Sayyid Qutb se tornar

um Irmão Muçulmano.

Durante a luta dos egípcios para se livrar da monarquia e da influência britânica,

a Irmandade encontrou nos Oficiais livres um grupo simpático à mesma causa. A união

entre militares e islâmicos não iria longe uma vez que o rei estivesse deposto. Nasser

  pretendia impor ao Egito um “socialismo pan-árabe, moderno, igualitário, secular e

industrializado, com as vidas individuais dominadas pela presença esmagadora do

Estado de bem-estar social” (WRIGHT, 2007, p. 40). Em contrapartida, a Irmandade

Muçulmana previa um sistema de governo regido pela sharia  –   a lei islâmica. “Os

islâmicos queriam reformular por completo a sociedade, de cima para baixo, impondo

valores islâmicos a todos os aspectos da vida, de modo que todo muçulmano pudesse

atingir sua expressão espiritual mais pura” (WRIGHT, 2007, p. 40). À semelhança de

outras revoluções, a Revolução Egípcia teve, em seguida à queda do regime, um período

de disputa de poder entre os grupos envolvidos nos protestos. Neste caso, quem

sobressaiu foram os Oficiais Livres, os donos das armas. Uma vez empossado como

novo chefe da nação egípcia, Nasser ofereceu cargos de pouca importância para Qutb,

que foram prontamente rejeitados. Aos poucos, a Irmandade Muçulmana passou a se

tornar oposição ao novo governo  – como já fazia durante o domínio britânico  – e foi

novamente trilhando o caminho da ilegalidade. Irmãos Muçulmanos chegaram a ensaiarum novo golpe ao lado dos comunistas egípcios e, em 1954, realizaram um atentado

mal-sucedido contra Nasser.

“A guerra ideológica em torno do futuro do Egito atingiu o clímax na noite

de 26 de outubro de 1954. Nasser discursava para uma multidão enorme em

uma praça de Alexandria. O país inteiro ouvia o discurso pelo rádio, quando

um membro da Sociedade dos Irmãos Muçulmanos avançou e disparou oito

tiros contra o presidente egípcio, ferindo um guarda, mas não conseguindo

atingir Nasser. Foi o momento crucial do seu governo. Ignorando o caos da

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multidão em pânico, Nasser continuou falando, em pleno tiroteio. ‘Podem

matar Nasser! Nasser é apenas um dentre muitos!, ele bradou. ‘Estou vivo e,

mesmo que eu morra, todos vocês são Gamal Abdel Nasser’. Se o atirador 

acertasse, poderia ser aclamado como um herói, mas o erro dotou Nasser de

uma popularidade que até então ele nunca desfrutara. Ele imediatamente seaproveitou dela para mandar enforcar seis conspiradores e enviar milhares

de outros aos campos de concentração. Qutb foi acusado de ser membro do

aparato secreto da Sociedade dos Irmãos Muçulmanos, responsável pela

tentativa de assassinato. Nasser achou que tinha esmagado a irmandade de

uma vez por todas”. (WRIGHT, 2007, p. 41)

Este episódio serviu como catalisador na perseguição aos Irmãos Muçulmanos.

A multidão que ouvia o discurso de Nasser teve que ser contida pela polícia para não

matar Mahmoud Abdul Latif, de 32 anos, o homem enviado para o atentado. Nos dias

que se seguiram, diversas manifestações populares contra a Irmandade foram realizadas,

o partido foi dissolvido e sua sede foi destruída (WITTE, 2004, p. 40). Qutb foi enviado

para a prisão, onde acabou torturado, como muitos de seus colegas. Neste processo de

repressão, não foram perseguidos apenas os radicais da Irmandade Muçulmana, mas sim

o próprio Islamismo, que passou a ser visto como culpado pelos males das nações

árabes.  Nas palavras de Armstrong, “a religião era responsável pela ‘falsa consciência’

que retardava os árabes [em comparação com o ocidente], portanto, tinha de ser

eliminada, assim como todos os outros empecilhos ao progresso racional e científico”

(ARMSTRONG, 2001, p. 268). O aparato secreto da Irmandade seguiu funcionando

neste ambiente  – financiado pela Arábia Saudita, que temia o perfil revolucionário do

nasserismo  – , mas de forma precária. Qutb, o ideólogo, foi solto em 1964 após uma

intervenção do então presidente do Iraque, Abdul Salam Aref, mas em 1966 foi julgado

por uma nova acusação de conspiração e condenado à forca.

A Irmandade Muçulmana e outros movimentos religiosos radicais só

conseguiram se reorganizar no Egito com a morte de Nasser e a subsequente posse de

Anwar al-Sadat, em 1971. Ao fim da Guerra do Yom Kippur (1973), Sadat iniciou uma

política de abertura da economia egípcia para investidores estrangeiros que ficou

conhecida como infitah. Esse processo foi acompanhado de uma redefinição dos

espaços políticos, por meio do qual Sadat deu mais força aos movimentos religiosos

para contrabalançar o poder de nasseristas e esquerdistas (METZGER, 2008, P. 85). Em

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sua percepção, os religiosos seriam menos ameaçadores que os outros grupos

(GOLDSCHMIDT, 2008, p. 208).

Ao anunciar a infitah, Sadat tentou manter o socialismo e o pan-arabismo do

período em que Nasser governou, mas afirmou que o regime precisava de mudanças

para se adaptar aos novos tempos (GOLDSCHMIDT, 2008, p. 197). Assim, Sadat

procurou, ao mesmo tempo em que preservava o socialismo, desconstruir parte da

herança de Nasser, particularmente a aliança com a União Soviética e a quase que

completa eliminação do papel da religião na sociedade. No campo econômico, Sadat

tinha como objetivo atrair investimentos americanos, europeus, japoneses (o que não se

concretizou), do Irã e de países árabes ricos em petróleo (o que foi realizado). Em um

primeiro momento, Sadat desfrutou de grande popularidade. Os Estados árabes

passaram a emprestar dinheiro ao Egito, bancos internacionais voltaram a operar no

país, as classes favorecidas conseguiram realizar os sonhos de ter um carro importado e

um apartamento de luxo, Cairo e Alexandria se tornaram canteiros de obras a céu aberto

e cidades destruídas nas guerras anteriores, como Port Said, Ismailia e Suez  – todas na

região do canal – foram inteiramente reconstruídas (GOLDSCHMIDT, 2008, p. 197). O

que seria um problema para Sadat era o perfil das mudanças conseguidas com a

implantação da infitah. Basicamente, os únicos beneficiados foram os membros da elite

egípcia.

“A governadoria do Cairo gastou muito para construir pontes e avenidas

para beneficiar a minoria de sua população que podia ter carro ou pagar por

um táxi, enquanto negligenciou a necessidade da maioria, um transporte

público melhor, especialmente nos bairros mais pobres. Para os camponeses,

a infitah significou o fim da reforma agrária, a deterioração dos serviços das

cooperativas agrícolas e dos centros de saúde e o declínio dos termos de

pagamento pela colheita. Apesar de o Egito ter exportado grãos e cereaisdurante quase toda a sua história, sob Nasser e Sadat ele se tornou um

importador. Na verdade, a nova política de Sadat transformou o Egito em

exportador de sua própria população: camponeses, engenheiros, médicos,

professores, encanadores e eletricistas foram para outras terras árabes para

ganhar salários maiores. (...) No longo prazo, isso separou famílias,

provocou novas desigualdades salariais e falta de trabalhadores

especializados nas zonas urbana e rural. Os empregados de firmas privadas

ganharam mais com a infitah do que os das companhias estatais, que

estavam perdendo dinheiro. Enquanto o governo prometia contratar todos os

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recém-formados das universidades, a inflação superou os salários de

funcionários de escritório, professores nas escolas e universidades,

bibliotecários, e médicos e enfermeiros em clínicas e hospitais públicos

(GOLDSCHMIDT, 2008, p. 198 e 199).

Este retrato do Egito escancara a destruição do serviço público e a deterioração

do Estado de bem-estar social, que já era precário mesmo antes da infitah. Em paralelo a

este processo econômico, Sadat colocou em prática um expediente comum das elites

egípcias  –  a estratégia de capitalizar os movimentos ideológicos da sociedade a seu

favor (METZGER, 2008, p. 63). O novo líder do Egito era mesmo um homem religioso,

e fez questão de tentar explorar este traço de sua personalidade, por exemplo, ao

alardear sua presença nas orações da sexta-feira (o dia sagrado no Islã). Sadat,entretanto, não conseguiu convencer a população. Os religiosos muçulmanos, ao mesmo

tempo em que expandiam sua rede de caridade  – aproveitando o vácuo deixado pelo

Estado – expandiam a rede de mesquitas privadas  – que foram de 20 mil para 40 mil na

década de 1970  –  o que ampliou o espaço para a pregação de islamistas contra o

governo (METZGER, 2008, 87). Assim, todas as condições para a radicalização da

sociedade estavam postas.

A deterioração do aparato estatal e a ampliação da rede de caridade muçulmana

deixaram as camadas mais pobres egípcias à mercê da guinada religiosa. Entre os jovens

profissionais e militares de classes mais altas, a impossibilidade de obter bons

empregos, os salários baixos e a inflação se provaram pré-condições essenciais para a

radicalização. Seguindo o exemplo dos líderes religiosos mais velhos  – agora libertados

por Sadat – eles encontraram nos grupos islâmicos a única forma de protestar contra o

governo, já que todas as facções marxistas e nasseristas haviam sido colocadas na

ilegalidade. Este processo foi favorecido pela proximidade que as ideias religiosas

tinham dos egípcios. Nas palavras de Goldschmidt (2008, p. 208), para uma maioria

criada como muçulmana, “era mais fácil aceitar um movimento que defende suas

  próprias normas culturais, do que introduzir ideias alienígenas”. Somam-se a esses

aspectos, dois outros fatores  – o ódio à elite e a política externa de Sadat. Os egípcios

não beneficiados pela infitah de Sadat rejeitavam as classes favorecidas pela abertura,

que vinham adotando hábitos “ocidentais”, a maior parte deles inspirada na sociedade

americana, sem dúvida a maior influência cultural e política da época (e dos dias atuais).

Além disso, ao perseguir uma aproximação com os Estados Unidos  – que “exportava”

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os hábitos para as elites muçulmanas  – e buscar a paz com Israel, que causava dor a

outros povos árabes, Sadat aprofundou as diferenças entre suas visões e a da maioria da

população. O apoio ao opressor xá Mohammad Reza Pahlavi durante a Revolução

Iraniana (1979) não ajudou a imagem de Sadat, mas serviu para radicalizar ainda mais

os movimentos islamistas, que se inspiraram nos colegas persas. Sadat havia isolado o

Egito dos outros Estados árabes e a si próprio dentro do Egito. Em 5 de setembro de

1981, em uma tentativa de se manter no controle do país, anunciou a prisão de 1,5 mil

opositores, entre intelectuais, políticos e religiosos. De nada adiantou trazer de volta o

clima de repressão que marcara a monarquia e o governo de Nasser. Em 6 de novembro

do mesmo ano, Sadat foi assassinado durante uma parada militar em Nasr City, em uma

conspiração realizada em parceria pela Al-Gama'a al-Islamiyya (Grupo Islâmico) e pela

Jihad Islâmica (SMITH, 2010, 96).

O substituto de Sadat na presidência do Egito foi outro militar, Hosni Mubarak,

que quando chegou ao poder era um desconhecido da imensa maioria da população

local. No momento em que este texto foi escrito, Mubarak havia acabado de completar

29 anos no poder – mais tempo que Nasser e Sadat juntos – um período no qual o Egito

se transformou no principal exemplo do processo que Demant chama de “acomodação

de determinadas exigências das populações e dos islamistas por meio de uma

democratização limitada”, que provoca o crescimento e legitimação da tendência

fundamentalista e uma “islamização rastejante da sociedade, cuja tendência política é

antidemocrática ou pelo menos antiliberal”. 

Mubarak fez isso ao implantar uma política diferente daquela de Sadat na

medida que, em vez de usar os islamistas para contrabalançar a força política de outros

grupos, ele permitiu que os grupos religiosos mantivessem seu discurso, seja na

imprensa, em instituições de ensino, ou outros lugares, mas sempre em formas e

conteúdo delimitados por seu governo (METZGER, 2008, p. 101). Ganharam obenefício da palavra os islamistas cujos atos são considerados moderados, ainda que o

discurso seja inflamado. Dos outros – aqueles que ameaçavam diretamente o Estado e o

próprio presidente – Mubarak cuida com a Lei de Emergência, que vem sendo aprovada

sistematicamente pelo parlamento egípcio e que dá ao governo poderes extraordinários

para prender cidadãos, impedir reuniões e governar por decreto. A presença dos

islamistas na vida política do Egito  –  principalmente os da Irmandade Muçulmana  –  

obrigou Mubarak a fazer concessões a esses grupos, como a aprovação de leisreligiosas, a proibição do homossexualismo, as restrições aos direitos da mulher e a

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permissão da veiculação de propaganda anti-semita (METZGER, 2008, p. 102). Todas

essas transformações reduziram muito o caráter secular do Estado e fazem com que seja

impossível considerar o Egito um país democrático, ou mesmo em um processo

incipiente de democratização, sob qualquer prisma que se analise, como por exemplo o

das oito garantias estabelecidas por Dahl como condições básicas para a existência de

uma democracia. Aqui, vamos a uma breve análise da situação de cada uma delas no

Egito.

Fontes alternativas de informação e Liberdade de Expressão  –   As liberdades da

imprensa e de expressão no Egito podem ser consideradas precárias. No ranking anual

da organização de origem francesa Repórteres sem Fronteiras, que mede a liberdade de

imprensa no mundo de acordo com as informações coletadas pela própria ONG, o Egito

ficou, em 2009, na 143ª posição entre os 175 países estudados. Um dos grandes

problemas da mídia no Egito é o tamanho do aparato estatal que atua no setor. São

diversos meios de comunicação controlados pelo governo, como os jornais  Al-

 Jumhuriyah e  Al-Ahram, este o mais antigo do mundo árabe, e o sistema de rádio e

televisão Egypt Radio Television Union (ERTU). Os jornalistas que atuam nos meios do

governo têm seu trabalho observado de perto pelo Ministério das Comunicações e

Informação. Um caso banal ocorreu com Alaa Sadeq, um ex-jogador de futebol que atua

como comentarista do canal esportivo   Nile Sport . Após episódios violentos em uma

partida entre o Al Ahly, do Egito, e o Espérance Tunis, da Tunísia, pela Liga dos

Campeões da Ásia, Sadeq criticou a “incapacidade” do ministro do Interior3 “de manter

a ordem e a segurança durante um jogo de futebol” e foi suspenso do canal.

Deter veículos de mídia não é a única forma de o Estado egípcio controlar a

circulação de informação no país. Segundo o relatório de 2009 da ONG Repórteres sem

Fronteiras, há 32 artigos em diversas leis egípcias que punem a imprensa por suaatuação e que proíbem o acesso a informações oficiais. Em abril de 2009, a revista

 Ibdaa (Criatividade) perdeu sua licença para circular por publicar um poema

“blasfemo”, que tinha expressões que “insultavam a Deus”4. Em outubro de 2010, 12

emissoras de televisão via satélite foram tiradas do ar por promover “violência, ódio,

3 Authorities tighten control over news media six weeks ahead of elections. Reporters Without Borders,21 out. 2010. Disponível em: http://en.rsf.org/egypt-authorities-tighten-control-over-21-10-

2010,38638.html4 Egypt bans 'blasphemous' magazine. BBC, 8 abr. 2009. Disponível em:http://news.bbc.co.uk/2/hi/7989016.stm

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charlatanismo e superstições”, e outros 20 canais receberam alertas pelas mesmas

práticas5. Outro expediente usado pelo Egito para controlar a imprensa é a criação de

barreiras técnicas para a atuação dos jornalistas. Também em outubro de 2010, nove

canais via satélite recém-inaugurados foram informados de que teriam de obter uma

licença junto à ERTU para começar a transmitir. Ao procurar a rede estatal, ficaram

sabendo que precisariam manter seus links via satélite em lugares fixos e os escritórios

permanentemente instalados em um complexo jornalístico nas cercanias do Cairo 6,

requisitos que reduzem a independência dos canais de televisão.

Toda a estratégia governamental é ajudada pelo medo que muitos jornalistas

egípcios sentem. Khaled Diab, colunista egípcio baseado na Bélgica, escreveu em 2009

que “ainda que os egípcios estejam lentamente superando seu arraigado medo da

autoridade, hábitos antigos demoram a desaparecer e ainda há um número mais que

suficiente de jornalistas assustados demais para exigir as mudanças que a população

quer” (DIAB, 2009). No mesmo artigo, Diab fala do surgimento de veículos

independentes, que escancaram casos de corrupção no governo, mas durante todo o ano

de 2010, com a aproximação das eleições legislativas (marcadas para novembro) e da

eleição presidencial (marcadas para setembro de 2011), diversos episódios mostraram o

porquê de o Egito ser considerado um país tão ruim para a imprensa trabalhar. Em 5 de

outubro de 2010, Ibrahim Eissa, que durante os cinco anos em que editou o jornal

independente Al-Dostour transformou a publicação em uma das poucas vozes contrárias

ao governo, foi demitido. Ironicamente, a demissão não contou com a participação

direta do Estado. Em entrevista à revista Foreign Policy, Eissa afirmou que sua

demissão estava programada desde que Sayyid Badawi, um homem de negócios e chefe

do partido Wafd, iniciou as negociações para comprar o  Al Dostour por US$ 4 milhões.

Segundo a reportagem, aparentemente Badawi buscou silenciar o jornal em uma

tentativa de agradar ao governo Mubarak e, assim, conseguir um número maior decadeiras na eleição legislativa do Egito (KENNER, 2010).

Eleições livres e idôneas, Direito de voto, Direito de líderes políticos disputarem

apoios (e votos), Elegibilidade para cargos públicos, Instituições para garantir as

eleições e Liberdade de formar e aderir a organizações  –  A primeira vez em toda a

5 Authorities tighten control over news media six weeks ahead of elections. Reporters Without Borders,

21 out. 2010. Disponível em: http://en.rsf.org/egypt-authorities-tighten-control-over-21-10-2010,38638.html6 Ibid.

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sua história em que o Egito realizou eleições multipartidárias se deu em 2005. Naquele

período, o governo dos Estados Unidos, então chefiado por George W. Bush, vinha

exercendo pressão sob os Estados árabes para que buscassem a democratização  –  a

panacéia ocidental para conter o extremismo religioso. Maior aliado dos EUA na região,

o Egito de Mubarak entrou na onda da democratização, permitiu que diversos partidos

registrassem candidatos e realizou a eleição. Nas palavras de Lee Smith, o que o

governo de Mubarak fez “foi uma campanha de mídia de estilo americano para

consumo americano, porque Washington estava observando de perto” (SMITH, 2010, p.

107). Na realidade, a eleição de 2005 não passou de uma demonstração de autoritarismo

de Mubarak, na qual a busca pela democracia era um engodo divulgado pelo governo

com um alto grau de desfaçatez.

Nas eleições de 2005, os problemas começaram na busca pela permissão para se

candidatar. O próprio governo  –  por meio da comissão eleitoral, formada por juízes

escolhidos por Mubarak – selecionou os participantes da disputa. Além de Mubarak, do

Partido Nacional Democrático (PND), mais 28 candidatos se apresentaram. A comissão

eleitoral autorizou nove deles a concorrer, mas excluiu outros 19 sem dar justificativas

(SLACKMAN, 2005). Entre os concorrentes estava Ayman Nour, um parlamentar que

começou a despertar preocupação no governo tendo em vista as importantes

manifestações de apoio de recebeu. Não demorou, e Nour se tornou alvo de Mubarak. O

parlamentar foi preso pela primeira vez em janeiro de 2005, acusado de fraudar cerca de

mil assinaturas no documento que pedia o registro de seu partido, o Al-Ghad (Amanhã).

Libertado sob fiança em março, Nour prestou depoimento em uma tensa sessão judicial

realizada em 28 de junho de 2005 e alegou inocência (MACFARQUHAR, 2005). Para

seus simpatizantes, todo o processo era uma tentativa do governo de manchar a imagem

de Nour. Curiosamente, entre as assinaturas supostamente falsificadas por Nour

estavam a de sua mulher e de seu pai, as quais ele não teria nenhum motivo aparentepara forjar. As acusações contra o parlamentar eram tão frágeis que a então secretária de

Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, adiou uma visita que faria ao Egito em

 janeiro, quando Nour foi preso pela primeira vez.

Diante dessa polêmica, o governo Mubarak e o PND se cercaram de cuidados

para evitar uma derrota nas urnas. Assim, a votação foi vergonhosa. As denúncias de

fraudes e irregularidades se acumularam, e o jornal inglês The Independent  trouxe o

relato mais completo. Em reportagem publicada no dia seguinte à eleição, o jornal contaque muitas seções eleitorais estavam “evidentemente orientadas a garantir que os votos

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fossem para Mubarak e não para Nour” (PHILLIPS, 2005). Algumas seções estavam

decoradas com fotografias gigantes de Mubarak, outras tinham mulheres do PND

cantando músicas exortando o presidente e, em alguns casos, membros do PND

circulavam entre os eleitores, “pegando suas cédulas das mãos dos mesários e

entregando aos eleitores, pedindo que cumprissem sua obrigação” com Mubarak. A

comissão eleitoral só autorizou o monitoramento das eleições por integrantes da

sociedade civil horas antes de a votação começar, graças à pressão internacional. A

permissão, entretanto, não foi o suficiente para garantir o trabalho dos observadores.

Quatro monitores do centro Ibn Khaldoun foram espancados em Assut, no norte do

Egito, e oito foram presos em Alexandria, Sohag e Kar Kalf El Sheikh. Houve ainda

relatos de eleitores de Mubarak serem levados de ônibus para votar, de eleitores que, ao

chegar nas seções, descobriram que alguém já havia votado em seus lugares e de falta

da tinta fosforescente que marcaria os dedos dos eleitores após a votação para prevenir

fraudes. O resultado oficial apontou vitória de Mubarak com 88,6% dos votos.

Dois meses depois da eleição presidencial, foram realizadas as eleições

legislativas. Os integrantes da Irmandade Muçulmana  – que continua ilegal desde 1954

 –  concorreram como independentes na eleição, disputada em três fases devido ao

monitoramento por parte do Judiciário, aplicado pela primeira vez na história do país. A

Irmandade recebeu uma votação muito grande na primeira fase, colocando o governo

em alerta. Na segunda e na terceira fases, a polícia prendeu mais de 800 integrantes da

Irmandade Muçulmana e fechou diversas seções eleitorais, impedindo a votação (The

Economist, 2010). Isso não impediu que a Irmandade Muçulmana deixasse as eleições

com 88 das 454 cadeiras da câmara baixa do Egito.

Depois da eleição presidencial e da votação legislativa, o governo fez questão de

mostrar que os opositores não teriam vida fácil. A primeira vítima foi Ayman Nour,

preso pela segunda vez em novembro de 2005. Em 24 de dezembro do mesmo ano,Nour foi levado a julgamento. Em uma corte que tinha a presença de diplomatas dos

Estados Unidos, da França, da Noruega e da União Europeia, e que estava repleta de

policiais, que impediam a entrada dos simpatizantes de Nour, o ex-candidato ouviu a

sentença dentro de uma jaula  – o texto lido pelo juiz Adel Abdel Salam Gomaa previa

uma prisão de cinco anos com trabalhos forçados (SLACKMAN, 2005). Em fevereiro

de 2009, Nour foi solto, segundo o judiciário egípcio, por “motivos de saúde”. 

Depois de ver sua posição ameaçada por um candidato secular  –  Nour  –  e aIrmandade Muçulmana crescer de forma exponencial no parlamento, Mubarak tomou

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medidas para evitar que a situação se repetisse. Emendas constitucionais aprovadas em

2007 proibiram a formação de partidos baseados em religião e criaram obstáculos

praticamente intransponíveis para que os Irmãos Muçulmanos continuem disputando as

eleições como independentes. Para conseguir isso, um candidato precisará ter seu nome

referendado por 200 políticos eleitos7, sendo 65 da Assembleia do Povo (a câmara

baixa), 25 do Conselho Shura (a câmara alta), e dez de conselhos populares locais de

pelo menos 14 governadorias (como é chamada a jurisdição estadual ou provincial no

Egito). Ao impor essas barreiras, o governo impede, na prática, o crescimento contínuo

da presença de Irmãos Muçulmanos no parlamento e fere diretamente o direito de

elegibilidade de uma parcela da população, pois todos os órgãos legislativos são

dominados por integrantes do PND, que não endossarão, sob nenhuma hipótese,

integrantes da Irmandade Muçulmana.

Outra mudança realizada por Mubarak foi acabar com a supervisão judicial da

eleição, como ocorreu na votação legislativa em que a Irmandade colheu grande apoio.

Agora, as regras determinam que comitês independentes nomeados pelos chefes dos

partidos façam a supervisão (The Economist, 2010). Vale notar que muitos integrantes

do Judiciário são vistos com preocupação pelo governo Mubarak por sua clara tendência

crítica às ações do governo. Por isso, muitos dos magistrados mais independentes

acabaram perdendo seus cargos. Outro setor controlado pelo governo é o dos sindicatos.

Para ascender na hierarquia sindical, o trabalhador egípcio precisa do beneplácito da

Itihad, o secretariado da Federação Geral dos Sindicatos Egípcios. Reportagem do

 jornal Daily News Egypt , ligado à International Herald Tribune (a edição global do The

  New York Times), mostrou em novembro de 2006 que esse braço da burocracia

trabalhista é controlado pelo PND e só dá o consentimento às candidaturas de pessoas

leais ao partido nas eleições internas dos trabalhadores (STACK, 2006). Nas palavras de

um integrante do think tank egípcio Al-Ahram entrevistado pela reportagem: “o sistema

sindical é dominado pelo Estado autoritário estabelecido em 1952”. 

Práticas democráticas também não se solidificaram na disputa presidencial. Aos

82 anos, Mubarak é visto cada vez mais como um presidente em seus últimos momentos

no cargo. Uma cirurgia realizada na Alemanha em março de 2010 ampliou as

7 Relatório da Freedom House – Countries at the Crossroads 2007 - Country Report – Egypt -Accountability and Public Voice. Disponível em:

http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=140&edition=8&ccrcountry=154&section=83&ccrpage=37

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especulações sobre seu estado de saúde e as apostas sobre quem vai sucedê-lo. Apesar

das negativas do presidente sobre uma “presidência hereditária”, o mais bem cotado é

Gamal Mubarak, seu filho e alto dirigente do PND. Analistas e políticos dentro e fora

do Egito apostam em uma sucessão conturbada e um dos nomes que surgiu como um

possível sucessor é Mohamed El Baradei, ex-diretor geral da Agência Internacional e

Energia Atômica (Aiea), que venceu o prêmio Nobel da Paz de 2005 por seu trabalho à

frente da entidade, ligada à Organização das Nações Unidas. Em novembro de 2009,

Baradei expressou a vontade de concorrer à presidência do Egito apenas em caso de

uma completa mudança constitucional que garantisse supervisão independente das

eleições e um pleito aberto, livre e justo. Apesar de esta perspectiva não existir a curto

prazo, Baradei recebeu apoio, principalmente da juventude egípcia. Em fevereiro,

quando chegou ao aeroporto do Cairo, foi recebido por uma multidão (The Economist,

2010) que exigia uma reforma política. Baradei se reuniu com dirigentes de diversos

partidos e grupos – incluindo a Irmandade Muçulmana – e ajudou a criar a Associação

Nacional para Mudança, uma instituição sem caráter partidário, mas que pretende tirar o

PND de Mubarak do poder. Bastaram essas demonstrações de poder para colocar o

aparato estatal de prontidão. Em entrevista à revista inglesa The Economist em julho de

2010, Baradei disse “estar sufocado”. Afirmou que as ações do governo impedem que

seu grupo tenha uma sede, angarie doações e organize eventos públicos. “Tudo o que

podemos fazer é visitar alguns lugares, e depois que vamos embora eles prendem

algumas pessoas”, disse (The Economist, 2010). Ao mesmo tempo, articulistas da

imprensa estatal acusaram Baradei de ser um homem sem ligações com o Egito, tendo

em vista o tempo que atuou em organizações internacionais. E figuras importantes da

sociedade egípcia que inicialmente apoiaram o ex-diretor da Aiea perderam o

entusiasmo nos últimos meses, tendo em vista a pressão governamental e as poucas

chances de Baradei obter sucesso. Soma-se a isso a impossibilidade prática de Baradeifundar um novo partido e se candidatar a presidente. A Constituição do Egito determina

que, para lançar um nome ao pleito nacional, o partido precisa estar ativo há pelo menos

cinco anos e precisa ter ao menos 3% dos assentos nas câmaras baixa e alta do

parlamento8. Nas eleições de 2005, graças à pressão internacional sobre o Egito,

exceções foram abertas. Para as eleições de 2011, as regras são impedimentos claros

para o surgimento de novos concorrentes a Mubarak.

8 Ibid.

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3. OUTRO EXEMPLO DE DEMOCRATIZAÇÃO NA REGIÃO: O KUWAIT

Ainda que o Egito seja o responsável pelo exemplo mais claro de

democratização de fachada, tornando o país o caso mais notório das reformas

contraproducentes que vêm ocorrendo no Oriente Médio, quase todas as nações da

região embarcaram em processos semelhantes nos últimos anos. Em um artigo

publicado em 2007 pelo Carnegie Endowment for International Peace, uma instituição

baseada nos Estados Unidos, Marina Ottaway e Michele Dunne dividem em três linhas

gerais o processo de democratização cosmética do Oriente Médio (2007, P. 5).

O primeiro é o conhecido como “modelo do Bahrein”, que consiste em reformar 

as instituições políticas fazendo com que o país projete uma imagem de mudança, mas

não realize uma significativa redistribuição de poder. Este modelo se aplica ao Egito,

como mostrou a descrição do cenário atual do país feita no capítulo dois. O segundo

modelo envolve reformas relacionadas a temas sociais, como direitos individuais e de

status pessoal das populações. O Marrocos seria o exemplo mais bem acabado, mas as

autoras citam Emirados Árabes Unidos e Tunísia, países cujas variáveis de

democratização envolvem uma agressiva política de reforma econômica e alguma

reforma administrativa. No terceiro e último modelo, os exemplos seriam o Iêmen e a

Argélia, países onde os governos passaram a aceitar e até a legitimar as oposições, ainda

que ao mesmo tempo tenham tentado reduzir o papel dos rivais políticos.

Como se vê, o cenário da democratização no Oriente Médio, não permite

otimismo. No entanto, a definição de democracia adotada neste trabalho toma por base

o trabalho de Robert Dahl e procura fazer uma análise do aumento do grau de

pluralismo dentro das sociedades. Afinal, este foi o caminho feito pelas sociedades mais

poliárquicas da atualidade e, se os países do Oriente Médio também tomarão esse rumo,

será por meio do aumento da pluralidade que se tornarão mais democráticos. A seguir,vamos então analisar algumas situações que mostram a ampliação da participação de

diferentes setores no Kuwait, que se encaixa no terceiro modelo de Ottaway e Dunne.

O Kuwait é um pequeno país localizado no noroeste do Golfo Pérsico, com

fronteiras com a Arábia Saudita e o Iraque e população de 2,7 milhões de habitantes

(85% deles muçulmanos), sendo 1,3 milhão estrangeiros. Dono da quinta maior reserva

de petróleo do mundo9, o Kuwait fez parte do Império Otomano, mas como estava

9 Informação do CIA Factbook - Oil / Proved reserves. Disponível em:https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2178rank.html

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muito distante dos centros de controle deste, tinha uma autonomia relativa. Desta forma,

Sabah bin Jaber se tornou, em 1752, o primeiro xeique (hoje chefe do Executivo) do

Kuwait, estabelecendo uma dinastia que controla os rumos do país até hoje. Em 1899,

temendo o avanço do Império Otomano, a família real entrou em um acordo com o

Reino Unido, tornando o Kuwait, na prática, um protetorado de Londres, que temia a

expansão da influência alemã, e sua aliança com os otomanos, na região. Era um

sistema semelhante ao que o Reino Unido havia desenvolvido no que são hoje os

Emirados Árabes Unidos e o Bahrein. A independência completa só foi conseguida em

1961. Hoje em dia, o Kuwait não pode ser considerado uma democracia. O país tem um

parlamento previsto em sua Constituição – o primeiro dos países árabes do Golfo – mas

o poder emana, de forma praticamente exclusiva, da casa de Sabah. Só podem chegar ao

cargo de xeique, ou emir, aqueles que têm sangue real. O nome do príncipe-herdeiro

deve ser aprovado pela Assembleia Nacional, mas ele é indicado pelo emir. Em caso de

rejeição, outros nomes da família real devem ser apresentados. Os ministros,

principalmente aqueles de pastas estratégicas, como Exterior, Finanças, Petróleo e

Defesa, também são da família real.

Ainda que seja impossível classificar o Kuwait como uma democracia,

analisando eventos recentes ocorridos no país, é possível concluir que, em alguns

aspectos, o Kuwait tem se tornado mais poliárquico. A dificuldade é classificar o

caminho que esta nação vem tomando de acordo com os padrões estabelecidos por

Robert Dahl. O que parece estamos vendo é um modelo híbrido, com características do

primeiro caminho rumo à poliarquia  – ampliação das oportunidades de contestação do

regime dentro de um pequeno grupo, antes da inclusão de diferentes atores políticos no

processo decisório  –  e do segundo caminho, aquele no qual a hegemonia se torna

inclusiva antes de se transformar em uma poliarquia.

Um bom exemplo de contestação ampliada no Kuwait é seu parlamento. Comoescrito acima, o poder emana quase que de forma exclusiva da família real, mas esta

“aponta com inveja para Dubai, cujo crescimento econômico, eles alegam, não é

atrapalhado pelos atrasos e pela ineficiência causada pelos debates parlamentares e

compromissos assumidos entre as facções políticas” (OTTAWAY e DUNNE, 2007, p.

4). Essa inveja do autoritarismo dos Emirados Árabes Unidos se dá porque o

parlamento kuwaitiano possui uma grande importância no que diz respeito à formação

da legislação do país e pode influenciar o Executivo, principalmente por dois meios. Oprimeiro é a possibilidade de convocar o voto de confiança, por meio do qual os

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ministros podem ser chamados a responder diante dos deputados. Uma outra forma de

enfrentar o governo é a Assembleia Nacional se declarar incompetente para trabalhar ao

lado do gabinete, forçando o emir a dissolver o parlamento e convocar novas eleições

ou demitindo o próprio gabinete (BROWN, 2007, p.5). A Constituição do Kuwait

determina que o emir tem 60 dias para convocar novas eleições para a Assembleia

Nacional, mas em duas oportunidades  – em 1976 e 1986  – a opção tomada pelo chefe

foi extraconstitucional, e por períodos de cinco e seis anos, respectivamente, o Kuwait

foi um país completamente autoritário. Desde o fim da ocupação iraquiana, encerrada

pela Operação Tempestade no Deserto  –  a Primeira Guerra do Golfo (1991)  –  esse

expediente não voltou a ser usado, apesar dos momentos políticos bastante turbulentos

pelo qual o Kuwait passou.

Em 2006, época na qual o governo americano pressionava os países do Oriente

Médio a realizar reformas democráticas, o processo de democratização no Kuwait viveu

um episódio simbólico. Até então, a eleição dos parlamentares se dava dentro dos 25

distritos no qual o Kuwait fora dividido. Esse sistema, no qual eram eleitos apenas dois

deputados por distrito, favorecia os aliados do governo. Repassando favores estatais aos

moradores de seus distritos, os candidatos simpáticos à casa de Sabah tinham mais

facilidade para conseguir uma cadeira no parlamento. Os deputados oposicionistas

conseguiram um raro tema para uní-los e, apoiados por um surpreendente movimento

popular estudantil, conseguiram levar a reforma a cabo, reduzindo o número de distritos

de 25 para cinco. Dessa forma, dez deputados seriam eleitos por distrito, o que abriria as

portas para uma campanha mais programática e ideológica.

“A coalizão de islamistas, outros reformados e estudantes pegou o governo

desprevenido, fazendo os líderes da família real calcularem muito mal a

situação. O próprio gabinete pareceu dividido a respeito do tema e usou

alguns métodos desajeitados (como tentar remendar a reforma e encaminhar

o projeto para a corte constitucional), que acabaram levando o bloco

parlamentar reformador à confrontação total com o governo. Quando alguns

deputados ameaçaram interpelar o primeiro-ministro  –  um passo sem

precedentes na política kuwaitiana (e virtualmente impensável em tempos

anteriores, quando os primeiros-ministros também eram os príncipes-

herdeiros)  –  o emir dissolveu o parlamento. Como a coalizão pró-reforma

reuniu uma maioria em apoio à sua posição, o emir pode ter pensado que

tinha derrotado a oposição ao forçar uma nova eleição de acordo com asregras antigas. Mas o emir calculou mal. As forças apoiando a reforma

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eleitoral ganharam a maioria no novo parlamento (...), que imediatamente

aprovou a lei criando os cinco distritos eleitorais” (BROWN, 2007, p.9) 

Ainda em 2006, depois de impor esta derrota ao governo, a Assembleia Nacional

voltou a mostrar força. Em 17 de dezembro, um dia antes de ser entrevistadoformalmente pelo parlamento, o então ministro da Informação, Mohammed Al-

San’ousi, acusado de perseguir os veículos de imprensa que davam espaço aos

oposicionistas, renunciou. Em março de 2007, o governo inteiro deixou o cargo para

evitar que Shaykh Ahmad Abdullah Al-Ahmad, então ministro da Saúde, fosse

reprovado em um voto de não-confiança. Em junho, o ministro do Petróleo caiu e, em

março de 2008, o emir voltou a dissolver o parlamento, o que repetiria exatamente um

ano depois, sempre por conta do domínio que os oposicionistas tinham no parlamento.Essa instabilidade deriva de um fenômeno que Nathan J. Brown classifica como “antiga

divisão na política kuwaitiana sobre a natureza da ordem constitucional”.

“A família real considera a Constituição e o parlamento como seus presentes

para o povo do Kuwait; os governantes concordaram em consultar a

população sobre os principais questões, mas mantêm a autoridade final em

suas mãos. Em duas ocasiões, eles pegaram de volta o presente por vários

anos. Para grande parte da oposição do Kuwait, a Constituição é vista comoum contrato entre a família governante e a população  –  a população

concorda em dar à família real um papel de liderança, contanto que ela opere

dentro dos limites da ordem constitucional. Em sua visão, tal contrato não

pode ser rescindido unilateralmente por qualquer das partes” (BROWN,

2007, p.18)

Tal divisão provoca um longo atraso nas decisões que darão rumo ao país, mas

este “problema” é típico da democracia, e não de governos autoritários, o que deixaclaro um grau considerável de divisão de poder dentro do regime político kuwaitiano.

Um exemplo de ampliação da inclusão de novos atores no processo de tomada

de decisões vem se dando nas eleições. O governo hegemônico está abrindo as portas

para novos eleitores  – em busca de um formato de sufrágio mais aceitável e palatável

para as potências ocidentais  – sem abrir mão de seu poder inconteste. Neste processo,

um dos grupos que está sendo beneficiado é o das mulheres, tradicionalmente subjugado

no mundo árabe. A Arábia Saudita é o grande exemplo deste sexismo. No país da

dinastia Saud há um firme controle sobre as ações da mulher, que não pode realizar

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sozinha nem tarefas corriqueiras como dirigir, alugar um apartamento ou mesmo

reservar um quarto de hotel. Enquanto isso, pequenos emirados do Golfo Pérsico têm

concedido direito a voto às mulheres. Permitiram a adesão das mulheres ao processo

eleitoral o Catar (1999), Bahrein (2002) e Omã (2003). O caso do Kuwait é

emblemático, pois mostra como se dá a democratização no Oriente Médio  – de cima

para baixo, e com a resistência de setores conservadores.

Em 1999, Jaber Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah, então xeique do Kuwait, emitiu

um decreto dando direitos políticos às mulheres. A lei ficou aguardando regulamentação

e aprovação pelo parlamento por longos seis anos. Neste período, congressistas

islamitas ou ligados a tribos tradicionais do Kuwait barraram a mudança na legislação

até que, em 2005, o xeique fez uma enorme pressão para que a lei entrasse em vigor.

Uma vez aprovada em uma apertada votação, a lei permitiu que as mulheres votassem e

se candidatassem pela primeira vez nas eleições para o conselho municipal do distrito

de Salmiya, ao sul da Cidade do Kuwait, a capital do país. Duas semanas depois, o

parlamento aprovou uma emenda dando às mulheres direitos políticos também nas

eleições legislativas nacionais. De imediato, o efeito foi sentido, e, como afirmou uma

eleitora entrevistada em junho de 2006 pelo jornal The New York Times, os políticos que

antes “votavam contra as mulheres” foram obrigados a “cortejar” os votos delas para

serem eleitos (FATTAH, 2006). Isso se deu porque o número de eleitoras é cerca de

30% maior que o de eleitores, por razões como o impedimento dos militares de votar e o

fato de as mulheres terem sido registradas para votar de forma automática, enquanto os

homens são obrigados a fazê-lo de forma individual. Em 2009, na terceira eleição

realizada no país na qual as mulheres puderam concorrer, dos 210 candidatos ao

parlamento, 16 eram mulheres, e quatro  –  Aseel al-Awadhi, Rula Dashti, Salwa al-

Jassar, Massouma al-Mubarak (TRAN, 2009)  –  foram eleitas. Elas eram as primeiras

mulheres da história do país a conquistar um assento no parlamento.Após o estudo destes dois exemplos, cabe uma breve análise sobre as condições

atuais, no Kuwait, das oito garantias estabelecidas por Dahl como condições básicas

para a existência de uma democracia.

Eleições livres e idôneas, Direito de voto, Direito de líderes políticos disputarem

apoios (e votos), Elegibilidade para cargos públicos, Instituições para garantir as

eleições e Liberdade de formar e aderir a organizações  –   Nas três primeirascondições a serem analisadas aqui, pode-se dizer que elas devem ser vistas sob um

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prisma positivo no Kuwait atual. As eleições são consideras livres e justas, o direito ao

voto vem se expandindo e os líderes políticos podem disputar apoios e votos. O grande

impedimento para que o Kuwait seja considerado uma democracia é o fato de o emir,

bem como o príncipe-herdeiro, o primeiro-ministro e a maioria dos ministros terem

todos o mesmo sangue  – o sangue da família Sabah, que comanda o país há mais de

dois séculos. Essa situação faz com que o sistema político do Kuwait tenham distorções

como a ocorrida em 2006, na eleição que antecedeu o redimensionamento dos distritos

eleitorais do Kuwait. Naquela ocasião, o bloco oposicionista tinha a maioria do

parlamento, uma condição que, em qualquer outra democracia parlamentar genuína

daria a esse bloco a prerrogativa de tentar formar o governo.

Outro entrave para o processo de democratização no Kuwait é a falta de

independência do Poder Judiciário. Ainda que as eleições venham sendo realizadas há

tempos com certa calma e frequência, as instituições que as garantem são totalmente

atreladas à família real. É o emir que nomeia todos os juízes, e fica sob cargo do

Executivo a aprovação das promoções10. Também depõe contra o Kuwait

impossibilidade de que partidos políticos sejam formados no país. Na legislação do

Kuwait simplesmente não há um mecanismo que preveja a criação de uma organização

política que dispute os votos dos eleitores. Tal impedimento enfraquece a oposição, mas

não impede que seja possível observar de forma clara quais deputados representam

quais setores, incluídos aí os islâmicos sunitas (70% dos muçulmanos do Kuwait), xiitas

(30% da população), esquerdistas, liberais e chefes tribais.

Fontes alternativas de informação e Liberdade de Expressão  –   A imprensa no

Kuwait é considerada uma das mais livres entre os países do Oriente Médio. Segundo a

organização internacional Repórteres Sem Fronteiras11, os país tem diversos canais de

televisão e jornais privados em árabe. A imprensa escrita é tradicionalmente umaplataforma de debate político aberto, refletindo a diversidade de opiniões dentro da

sociedade kuwaitiana. Os confrontos entre os deputados e os ministros ocorridos no

último ano foram vastamente divulgados, inclusive pela imprensa estrangeira, que

também desfruta de condições de trabalho melhores do que em outros países da região.

10 Informação do relatório de 2010 do think tank americano Freedom House, disponível em:

http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=22&year=2010&country=785511 Relatório de 2009. Disponível em http://en.rsf.org/report-kuwait,156.html 

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Em 2006, reformas em série liberalizaram o setor de telecomunicações, aumentando o

número de canais de televisão, e tornaram obrigatória a existência de uma ordem

 judicial para que um jornal seja fechado.

Os jornalistas do Kuwait, no entanto, sofrem com as legislações criminais do

 país, que autorizam prisões e multas pesadas por “difamação” e “ataques à religião”, o

que faz com que as críticas a membros da família real sejam encaradas como um tabu.

Em 2009 e 2010, o jornalista e escritor Mohammed Abdel Qader Al-Jassem quebrou

esta barreira e vem sofrendo as duras consequências. Ele foi preso pela primeira vez no

fim de 2009, para ser interrogado a respeito de um artigo publicado em agosto de 2009

no jornal Alam Al-Youm, no qual acusava o primeiro-ministro do Kuwait de fomentar

tensões religiosas para se manter no cargo. Em maio de 2010, Al-Jassem ficou preso por

quase 50 dias por publicar artigos críticos ao governo em seu blog (www.aljasem.org) 

que configuraram, segundo a Justiça do país, “ataques à segurança nacional”. Ao todo,

Al-Jassem respondeu e responde a 15 processos na Justiça do Kuwait, sendo o mais

grave deles a acusação de que o serviço de inteligência do Irã usa um empresário

próximo ao primeiro-ministro, Nasser Mohammad Al-Ahmed Al-Sabah, para tentar

influenciar as decisões do governo do Kuwait. Por conta dessa acusação, Al-Jassem foi

condenado, em 23 de novembro, a um ano de prisão12.

12 Repórteres Sem Fronteiras - “Well-known blogger arrested after getting one-year sentence fordefamation”. Disponível em: http://en.rsf.org/kuwait-well-known-blogger-arrested-after-23-11-2010,38874.html 

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aparentemente, as teses de que o arabismo ou o Islã são os culpados pela

ausência de democracia no Oriente Médio se manifestam a partir da decepção com a

lentidão de alguns países da região na busca pela democracia e com a total incapacidade

de outras nações de agirem de forma minimamente democrática. Na base desse

pensamento está a constatação de que, com o fim da Guerra Fria, países da América do

Sul, do Leste Europeu, da África e da Ásia tomaram o rumo da democracia  –  em

diferentes intensidades e velocidades – mas o Oriente Médio ficou paralisado com suas

monarquias e autocracias hereditárias e praticamente absolutas. Essa paralisia seria

inconcebível, pois, de acordo com essa análise, estabelecer uma democracia seria algo

simples, fácil e rápido. É fato que a democracia no Oriente Médio não tem boas

perspectivas, mas atribuir à etnia ou à religião tal problema é relegar ao segundo plano a

própria história da democracia ocidental, e também a história do Oriente Médio, que

ajuda a explicar o flagrante atraso institucional da região.

Cabe lembrar, em primeiro lugar, que a democratização é um processo tortuoso,

marcado por avanços e retrocessos, e muito longo, necessitando, em alguns casos, de

séculos para que um regime verdadeiramente poliárquico se estabeleça. A Espanha,

neste início de século XXI uma democracia inquestionável, passou quase a metade do

século XX sob uma ditadura (1936-1977). Antes disso, o país viveu 130 anos altamente

conturbados, nos quais esteve envolvido em uma guerra continental (Guerras

Napoleônicas) e no qual foi vítima de invasões estrangeiras e guerras civis. Uma

história problemática como essa não é exclusividade da Espanha, mas sim lugar comum

quando se olha para o passado das nações atualmente desenvolvidas, justamente aquelas

onde a democracia é unanimemente classificada como a de melhor qualidade. Na obra

Chutando a Escada (2003), Ha-Joon Chang faz uma análise histórica de um dosaspectos fundamentais da democracia, o sufrágio universal, e mostra como sua adoção

foi tardia nos países atualmente desenvolvidos. O direito ao voto para todas as pessoas,

incluindo as mulheres e as minorias étnicas e políticas, só foi adotado pela maioria dos

19 países analisados13 no livro em 1946. Alguns, só o fizeram mais tarde, como

Austrália (1962), Estados Unidos (1965), Canadá (1970) e Suíça (1971). Esses dados

permitem uma conclusão simples, mas fundamental neste trabalho. Os regimes mais

13 Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia,França, Holanda, Itália, Japão, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça.

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poliárquicos da atualidade só deram direito ao voto a seus cidadãos há algumas décadas,

depois de séculos desenvolvendo a democracia. É certo que os países árabes e

muçulmanos não precisariam do mesmo tempo para chegar ao mesmo ponto, afinal,

 poderiam “aprender” com as lições dos países ocidentais desenvolvidos. Mas é aqui que

entram os fatores históricos específicos do Oriente Médio.

É necessário ter em conta que o atraso institucional do Oriente Médio hoje em

dia se deve, em grande parte, ao papel que exerceram na região as grandes potências do

século XX. Em sua perspectiva histórica, Chang mostra que no período inicial do pós-

guerra, o grupo que ele chama de EIPD (Establishment Internacional da Política de

Desenvolvimento), que inclui algumas instituições multilaterais e as democracias mais

desenvolvidas, avaliava que “os países em desenvolvimento não podiam se dar ao luxo

de sustentar as caríssimas instituições democráticas” (CHANG, 2003, p. 127). No

Oriente Médio, também, mas não exclusivamente, o efeito desta percepção foi o

incentivo a regimes nada democráticos. Desde o início do século XX, as potências

ocidentais apoiaram o estabelecimento de muitos dos regimes que existem até hoje no

Oriente Médio. Em um caso emblemático, o governo dos Estados Unidos, por meio de

sua principal agência de Inteligência, a CIA, interferiu diretamente na derrubada de

Mohammed Mossadegh, primeiro-ministro eleito democraticamente no Irã, que foi

vítima de um golpe em 1953, quando tentou nacionalizar a produção de petróleo do

país.

Nos dias de hoje, a ortodoxia corrente no EIPD é aquela que determina que a

democracia é uma condição prévia do desenvolvimento (CHANG, 2003, p. 128).

Assim, a implementação da democracia passou a ser uma das bandeiras das potências

ocidentais quando essas falavam sobre o que os países em desenvolvimento deveriam

fazer para ir ao encontro do desenvolvimento econômico. O discurso pela

democratização passou a ser adotado também do ponto de vista político graças àchamada “Guerra ao Terror”. Depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, nos

Estados Unidos, uma das reações do governo americano, então chefiado por George W.

Bush, foi promover o discurso segundo o qual a democratização do Oriente Médio

colocaria fim ao terrorismo e, mais especificamente, à exportação do terror para o

Ocidente. Em 2005, em um famoso discurso realizado no Cairo, a então secretária de

Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, fez um mea-culpa em nome de seu país.

Disse que, nos últimos 60 anos, os Estados Unidos privilegiaram a estabilidade emdetrimento da democracia no Oriente Médio e que, neste período, não conseguiram nem

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uma coisa, nem outra. Assim, a partir daquele momento, os Estados Unidos iriam

“tomar um rumo diferente, apoiando as aspirações democráticas de todas as pessoas”

(BBC News, 2005).

Não é o intuito deste trabalho discutir se a democracia leva ou não ao

desenvolvimento econômico e se sua aplicação reduz ou não a ameaça terrorista. Mas é

preciso analisar que consequências teve para o Oriente Médio a pregação do ideal

democrático. A impressão que se tem é que uma vez que o Ocidente desenvolvido

decidiu que é bom o país em desenvolvimento adotar a democracia, um relógio

imaginário começou a funcionar, cronometrando quanto tempo os países do Oriente

Médio vão demorar para se tornar democráticos. Analistas, pesquisadores, acadêmicos e

  jornalistas adeptos da ortodoxia segundo a qual a implantação democracia vai resolver

todos os problemas  – a panacéia ocidentalizadora da qual fala Peter Demant  – passam

então a avaliar de forma crítica o Oriente Médio sem se dar conta que os formadores de

políticas das potências ocidentais, aqueles que criaram essa mesma ortodoxia, pouco

fazem para que reformas genuinamente democráticas ocorram no Oriente Médio.

O fato é que, apesar deste discurso pró-democracia que direcionam ao Oriente

Médio, os países desenvolvidos e democráticos dos dias atuais, em especial os Estados

Unidos, exercem uma pressão inconsistente sob os regimes do Oriente Médio e falham

em dar suporte aos setores reformadores dessas sociedades. O resultado do discurso

pró-democracia do Ocidente desenvolvido, e sua falta de ressonância nas ações

concretas desses mesmos países, é a democratização cosmética que tem ocorrido no

Oriente Médio, e da qual o Egito é o exemplo mais notório. Nas palavras de Ottaway e

Dunne, esse é um comportamento que manda sinais contraditórios aos países árabes:

Os Estados Unidos e os países europeus também colocam pressão nos regimes

árabes para introduzir reformas. Exercida inconsistentemente e de uma formaum tanto fragmentada, essa pressão foi tanto uma benção quanto uma maldição

aos reformistas dos partidos que estão no poder. Os jovens monarcas de

Bahrein, Jordânia, Marrocos e Catar, por exemplo, se tornaram queridos da

administração americana depois de 2001 em parte porque tinham credenciais

reformistas, e se beneficiaram de acordos de livre-comércio, pacotes de

assistência e cooperação militar reforçada. (...) Os elogios às vezes exagerados

com as quais as reformas foram recebidas, no entanto, mandaram um sinal aos

reformadores dentro do regime que as expectativas externas não eram muito

altas. Elogiar uma reforma constitucional no Bahrein que criou um parlamento

construído de tal forma que o regime sempre vai dominá-lo, ou elogiar a

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reforma marroquina no código de status pessoal enquanto ignora a implicação

não-democrática da nova lei de eleição, manda um sinal de que atores externos

seriam facilmente apaziguados (OTTAWAY e DUNNE, 2007, P. 19). 

Como já visto, um dos resultados desta democratização cosmética é aislamização rastejante das sociedades árabes e muçulmanas, o que acaba fortalecendo o

fundamentalismo religioso e alimentando a percepção, no ocidente, de que a democracia

e o Oriente Médio não combinam. Por trás desta percepção de incompatibilidade

também está a ideia de que espalhar a democracia em nações de maioria árabe e

muçulmana poderia gerar resultados nefastos, pois quem venceria as eleições seriam os

partidos fundamentalistas. Essa percepção foi reforçada por vitórias de partidos

religiosos nas urnas nos últimos anos, como na Turquia, no Egito (caso da IrmandadeMuçulmana, analisado no capítulo dois) e, principalmente, do Hamas na Palestina. Uma

análise profunda das eleições em países muçulmanos, entretanto, mostra que esse

pânico do islã radical nas sociedades ocidentais é baseado na parte e não no todo, pois

os triunfos dos partidos religiosos são exceções, e não a regra. Um levantamento feito

por pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (KURZMAN e

NAQVI, 2010) com dados da União Interparlamentar – uma instituição criada em 1889

e cujo objetivo é fomentar o diálogo entre os parlamentos do mundo – mostrou que nosúltimos 40 anos, 86 eleições parlamentares em 20 países muçulmanos incluíram um ou

mais partidos islâmicos. Desses partidos, 80% tiveram menos de 20% dos votos e a

maioria teve menos de 10%. Em uma análise qualitativa das eleições, ficou claro que

quanto mais democrático o país, pior é a votação desses partidos. Segundo os

pesquisadores, em eleições “relativamente livres” a porcentagem de cadeiras no

parlamento dos partidos islâmicos é dez pontos porcentuais mais baixa do que em

eleições sem liberdade. Nas eleições mais livres, os partidos islâmicos também falam

menos na sharia (a lei islâmica) ou na jihad armada e costumam defender a democracia

e os direitos das mulheres. Outros números servem para contrapor a percepção de

incompatibilidade entre o Islã e a democracia. Em outubro de 2009, o Pew Forum on

Religion & Public Life, outra organização americana, publicou aquele que é

considerado o maior e mais confiável levantamento sobre a população muçulmana

mundial e mostrou que há 1,57 bilhão de muçulmanos no mundo, sendo que apenas

20% deles estão no Oriente Médio. Entre os 80% restantes, milhões vivem em países

seculares e considerados democráticos, como a Indonésia (203 milhões de

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muçulmanos), Índia (161 milhões), Máli (12 milhões), Alemanha, França e Gana (4

milhões), entre muitos outros.

Todos esses fatores históricos e geopolíticos são importantes, mas são apenas

uma parte da resposta para a pergunta: a democracia é viável no Oriente Médio? A

segunda parte da resposta ainda está sendo escrita pelas sociedades árabes e

muçulmanas, e é seu andamento que vai revelar qual é a viabilidade deste regime ser

adotado. É fato notório que a maior parte dos países do Oriente Médio possui governos

autoritários e, como definiu Maquiavel, o objetivo deste tipo de governo é

primordialmente se perpetuar no poder. Tal comportamento é comum tanto ao Egito,

tratado neste estudo como exemplo de uma democratização meramente cosmética,

quanto ao Kuwait, onde a família real usa diversos mecanismos para manter seu poder

intocado, ainda que as aberturas conseguidas pelas forças de oposição ao longo dos anos

tenham deixado o regime muito mais suscetível às vontades de seus rivais políticos.

Diante deste quadro de autoritarismo generalizado e hereditário, as sociedades árabes e

muçulmanas do Oriente Médio foram incapazes de criar uma via legítima e eficaz para

manifestar seu descontentamento, tornando a violência um recurso muito utilizado.

Ainda que seja possível atribuir parte da culpa pela falta de democracia na região à

influência estrangeira, é de dentro das sociedades árabes e muçulmanas que a pressão

por reformas democráticas deve surgir, como ocorreu no Ocidente.

Neste processo, essas sociedades precisarão travar um debate basilar a respeito

do papel que o Islã terá, de preferência um debate no qual os religiosos sejam recrutados

para o diálogo, e não banidos. Com a Cristandade, à medida que a importância da

História e da Ciência cresceu, a religião perdeu espaço, ou melhor, procurou espaços

diferentes para manter sua importância. Uma vez que seja travado um debate crítico

dentro do Islã, a tendência é que o mesmo ocorra, e o fundamentalismo perca espaço.

Como escreveu Peter Demant, “uma leitura histórica crítica [dos textos sagrados do

 Islã] permitiria contextualizar e relativizar os princípios mais ferrenhos que parecem

gravados em perpetuidade nos textos” (DEMANT, 2008, p. 357), como o status

subalterno das mulheres e o antagonismo diante de sociedades não-muçulmanas. Antes

que a democracia se estabeleça, o debate interno do Islã também precisará abordar as

questões das divisões étnicas, um fator explosivo nos conflitos da região. Esta questão

envolve principalmente os sunitas e os xiitas que, na análise de Lee Smith  – um cético

quanto à possibilidade de uma democracia triunfar no Oriente Médio  –  travam uma batalha entre um grupo que “governou pela violência, repressão e coerção por 1,4 mil

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anos” e um “bloco de força que nunca conheceu a transigência, mas que tenta forçar

todos os outros a se submeterem a sua visão de mundo” (SMITH, 2010, p. 8). 

Como fica claro, a democratização no Oriente Médio é um processo tão recente

quanto conturbado, capaz de gerar resultados bastante diferentes. Deve-se registrar com

ênfase que o que podemos observar no Kuwait são apenas formas embrionárias,

manifestações incipientes de um caminho rumo à poliarquia, que precisa de muitos

aperfeiçoamentos. Ainda assim, não se deve olhar com preconceito ou desdém para

esses acontecimentos. Os dois fatos analisados  – a ampliação do sufrágio e a voz ativa

do parlamento – mostram que é desprovida de base concreta a ideia de que a etnia ou a

cultura árabes são impedimentos para a democracia. Teses parecidas foram observadas

no passado, com alemães, japoneses, eslavos e outros povos como alvos, e nunca se

provaram verdadeiras, mas apenas preconceituosas. Quanto à religião, devemos ter

claro que, sem reformas e uma contextualização histórica, a versão fundamentalista do

Islã  –  aquela que sobrou vitoriosa com a derrocada do nacionalismo árabe e do pan-

arabismo – continuará sendo um obstáculo para a democracia. É importante notar que a

democratização de fachada, como a que se dá no Egito e que, direta ou indiretamente é

incentivada pelo Ocidente, acaba contribuindo para a ampliação dos discursos religiosos

radicais. A democracia é, sim, viável no Oriente Médio, como foi na Europa ocidental,

no Japão, nos Estados Unidos, no Brasil, na África do Sul, mas a região tem

especificidades que não podem ser deixadas de lado. Só um processo de democratização

legítimo, que atinja o coração do poder, inclua um debate interno profundo acerca do

Islã e das divisões étnicas da região e uma pressão genuína por parte do Ocidente, será

capaz de promover o surgimento de uma democracia no Oriente Médio.

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