Débora Meira dos Santos
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Canibalismo Tupinambá: um discurso para escravização.
Débora Meira*
Resumo:
Tenho por objetivo fazer uma reflexão sobre os discursos acerca da prática da
antropofagia das tribos Tupinambás no século XVI na América Portuguesa. Para isto,
utilizo como documento principal o diário escrito e publicado em 1557 pelo alemão Hans
Staden, conhecido com Duas viagens ao Brasil. Considero que a divulgação de tais
discursos puderam ser utilizados a favor de ações ofensivas contra os indígenas, como a
Guerra Justa e a escravização.
Como propósitos da comunicação: (a) Destacar as referências ao canibalismo no
diário de Hans Staden, (b) analisar a imagem construída dos indígenas como
devoradores de carne humana e (c) avaliar como tais elementos legitimavam ou
justificavam ações contra os indígenas, especialmente sua escravização para a utilização
como mão de obra, num momento em que a empresa colonial precisava se estabelecer
no território colonial, não só para defesa, mas também para enriquecimento da
metrópole.
Palavras chave:
Hans Staden; índios Tupinambás; escravidão indígena; Guerra Justa; imaginário colonial
2
*Aluna cursando o 10º período de graduação em bacharelado e licenciatura em História na Pontifícia
Universidade Católica, bolsista CNPq no Programa de Educação Tutorial (PET) desde agosto de 2011.
Introdução
Em um domingo visitando o Museu Nacional localizado na Quinta da Boa Vista, vi e
fiquei encantada com pinturas em uma das salas. As pinturas estavam associadas ao
nome de Hans Staden e retratavam indígenas adultos e crianças, alguns pintados com
peles de animais e penas, outros nus. Alguns dançavam e outros sentados no chão
comiam partes do corpo de um homem que assava em numa espécie de grelha.
Tais pinturas foram feitas por Theodóre de Bry a partir de xilogravuras
apresentadas no diário de um viajante e arcabuzeiro alemão: Hans Staden. O intuito de
Staden em seu diário era o de ilustrar sua experiência na capitania de São Vicente em
1554, quando fora preso na sua segunda viagem ao Brasil por uma tribo de índios
chamados por Tupinambás.
A partir do diário escrito e publicado por Hans Staden em Marburg em 1557, cujo
titulo é: História verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores
de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de
Jesus Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de
Homberg, em Hessen, a conheceu por experiência própria e agora a traz a público com
essa impressão; mais conhecido pelo título de: Duas viagens ao Brasil. Considero este
relato importante em vista do momento de sua circulação, pois na metade do século XVI
há a formalização de práticas de escravização indígena propostas pelos governos
metropolitanos.
Em Duas Viagens ao Brasil, Staden apresenta uma visão religiosa da história, onde
os acontecimentos narrados se ajustam a um plano divino que se constitui a partir do
encontro com os homens bestiais, nus e cruéis comedores de seres humanos - como já
aparece no título da obra - numa dicotomia, na qual o autor contrapõe a imagem do
europeu civilizado à do indígena selvagem.
Mesmo que a narrativa de Staden tenha a marca de um olhar religioso, este
caminha em direção oposta de uma proposta política missionária, para qual estava sendo
3
feito investimento por religiosos de diferentes ordens mendicantes católicas - como
franciscanos e jesuítas - a partir de interesses da Coroa Portuguesa. Hans Staden tornou
o Novo Mundo uma zona repulsiva onde os europeus hesitariam a pôr os pés,
recomendado por ele apenas se duvidasse da veracidade da sua obra.
“Se houver agora um moço, a quem minha descrição e
estes testemunhos não bastem, que empreenda então êle
próprio, com a ajuda de Deus, a viagem, e a dúvida se lhe
dissipará. Dei-lhe, nêste livro, informações suficientes.”1
Considerando, seu Diário de viagem como primeiro livro publicado sobre o Novo
Mundo e suas múltiplas reedições, tenho por objetivo mostrar que a leitura de Hans
Staden pode ter levado a uma afirmação de uma percepção negativizada dos índios
tupinambás. Onde a ritualização realizada pelos índios de comer a carne humana de
seus inimigos fortaleceria uma construção simbólica e imagética européia dos indígenas
como selvagens - que já vinha sendo feito desde Colombo com a criação do próprio
termo canibal2 -. A caracterização do indígena como selvagem legitimaria a ocupação e
proveito das terras americanas, além de fornecer uma resposta para lidar com as
populações “selvagens” como força de trabalho ou mesmo seu extermínio. Como
sabemos a chamada Guerra Justa fora fortemente defendida e realizada na América
Portuguesa.
“Se a liberdade é sempre garantia aos aliados e aldeados, a
escravização é, por outro lado, o destino dos índios inimigos”3
A Guerra Justa foi um dos casos em que a escravização indígena se tornou legal, a
outra “justa razão de direito” para escravização foi o resgate4 -. No século XVI e XVII esta
ação foi motivo de muita discussão em diferentes segmentos da sociedade européia,
1STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 198.
2 LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
Pp. 285.
3PERRONE-MOISÉS. Beatriz. “Índios livres e índios escravos”. In: História dos índios nos Brasil. Org. Manuela
Carneiro da Cunha. 2ª edição. São Paulo: FAPESP/Companhia das letras, 1992. Pp. 123. 4Ibdem.
4
como também na sociedade portuguesa. Todavia, me interessa salientar que as causas
em que a Guerra Justa foi legitimada como ação na América Portuguesa seria quando da
recusa à conversão ao catolicismo levando ao impedimento da propagação da Fé cristã;
a quebra de pactos celebrados e a prática de hostilidade contra vassalos e aliados dos
portugueses.
Pensando meu objetivo na leitura do Diário de Hans Staden, ressalto o último
motivo destacado: o que legitimaria a ação da Guerra era a existência de hostilidades
prévias por parte dos indígenas.5 Já em 1548, Tomé de Souza, primeiro governador geral
da América Portuguesa, recomendava que os Tupinambás teriam de ser castigados com
muito rigor, já que estes haviam atacado os portugueses. Como Hans Staden o faria, a
descrição dos povos indígenas como bárbaros, cruéis e inimigos, configuraria a imagem
desse outro e legitimaria ações justas contra tais hostilidades. Dentre estas hostilidades,
a antropofagia dos indígenas também seria compreendida como uma ameaça aos
colonizadores.
A busca pelo canibal: a escrita de Hans Staden.
O primeiro livro sobre o que hoje chamamos de Brasil foi publicado em 1557 em
Marburg, em Hesse. A primeira edição deste foi impressa na “Folha de Trevo”, por André
Kolbe, e rapidamente alcançou sucesso editorial tendo sido publicada mais uma edição
no mesmo ano na mesma cidade e mais duas em Frankfurt. O livro que ficaria conhecido
por Duas viagem ao Brasil, teve como título original alemão Wahrhaftige Historia, e fora
escrito por Hans Staden logo após sua volta da experiência no país dos trópicos à pátria
alemã, como ele mesmo define, em 1557.
O primeiro livro sobre a terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres
humanos obteve 39 edições entre 1557 e 1715. Essas edições vão, desde a circulação
na esfera intelectual européia, com sua tradução em 1592 para o Latim– em 1567 a obra
havia sido inserida na segunda coleção de relatos de Sebastian Frank, intitulada
5 Principal justificativa segundo Beatriz Perrone-Moisés no subcapítulo: “Índios livres e índios escravos”.
5
Weltbuch, sendo concedido o status de pertinência ao contexto científico da geografia6 - à
esfera da literatura infanto-juvenil européia através de Johann Ludwig Gottefried, escritor,
compilador e tradutor, que fora responsável por três edições da obra no século XVII.
Houve, ainda, produções de obras satíricas baseadas no livro de Staden, como:
“Encontro curioso e peculiar no reino dos mortos entre Cristóvão Colombo, o famoso
descobridor do novo mundo, e João Staden, marinheiro alemão igualmente famoso,
contendo descrições dignas de espanto e admiração” de 1729, ou “De como Hans
Stieglitz fez fortuna numa terra alheia” de Ewald G. Seeliger publicada em 1920.
As primeiras edições no Brasil só ocorreriam no final do século XIX, e mostraria
segundo Zinka Ziebell um caráter de polarização. Pois, na primeira edição, lançada em
1892 na Revista Trimensal do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro sob o título:
“Relação verídica e sucinta dos uzos e costumes dos Tupinambás por Hans Staden”,
teria sido conferido um valor científico que procurava ressaltar a descrição etnográfica.
Enquanto a segunda, de 1900 sob o título “Hans Staden: Suas viagens e captiveiro entre
os selvagens do Brazil”, evidenciaria o protagonista e sua história e teria, para Ziebell, um
caráter mais popular.7Mais tarde seria adaptado e publicado para o público infanto-juvenil
por Monteiro Lobato.
Assim, ao longo dos séculos vemos um sucesso editorial conquistado pela obra de
Hans Staden, seja do lado de um campo erudito ou na literatura européia “popular”.
Segundo Francisco de Assis Carvalho e Franco a obra de Hans Staden o tornou
secularmente célebre e se fixou como uma das mais autorizadas fontes da etnografia sul-
americana.
Zinka Ziebell afirma que este sucesso editorial estaria vinculado por um lado pelas
inúmeras xilogravuras feitas sob supervisão de Staden, que dariam maior legitimidade a
sua obra e por outro pela sua atuação como testemunha ocular do canibalismo e sua
consequente salvação concedida por Deus. As xilogravuras de Staden seriam
posteriormente reproduzidas por Theodore de Bry a partir de uma técnica mais
sofisticada e dispendiosa que a anterior. Identificamos semelhanças entre as xilogravuras
de Staden e imagens produzidas posteriormente para os diários de viagem de
aventureiros como, André Thevet, Jean de Lery e Pero Gândavo. Destaco a seguir, duas
6ZIEBELL. Zinka. Terra de canibais. Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS, 2002. Pp. 244.
7Idem. Pp. 246.
6
xilogravuras publicadas no original de Staden e suas reutilizações. Mas nas obras de
Frank Lestringant e Zinka Ziebell podemos identificar outros.8
8 LESTRINGANT, Frank. O canibal. Grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
ZIEBELL, Zinka. Terra de canibais. Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS, 2002.
Cena de sacrifício do prisioneiro no ritual Tupinambá - Xilografia de
Hans Staden (1557).
Cena de sacrifício do prisioneiro no ritual Tupinambá – Ilustração de
André Thevet (1575).
Cena de sacrifício do prisioneiro no ritual Tupinambá – Ilustração de Pero Magalhães Gândavo (1576).
7
Podemos sugerir outra leitura dos elementos que compõe o discurso de Staden,
além das xilogravuras e das inúmeras edições do Diário e que levariam a uma
reconstrução9 da imagem dos indígenas do litoral brasileiro, em especial dos
Tupinambás, inimigos dos portugueses e aliados dos franceses. Inimigo de uns e aliados
de outros, o que importaria para Staden era afirmar sua visão cristã de mundo em
contraposição a Terra habitada por seres bárbaros e, assim sem fé, sem religião.
Ao contrário de como seria posteriormente exposto por André Thevet, a vingança
se constituiria um dos elementos principais na construção da imagem do canibal que
praticaria tal ato não por “fome de carne” e/ou como ato sem razão, mas como parte da
honra e do cosmo Tupinambá. Na metade do século XVI Hans Staden constrói seu
discurso negativando os índios Tupinambás, contribuindo à um imaginário europeu sobre
os indígenas e a Terra Brasil como espaço perigoso, onde habitam seres que estão longe
da salvação cristã.
Assim, identificamos o lugar de fala religioso na obra de Staden como base na
legitimação do seu discurso, sendo Deus seu protetor e salvador, e graças unicamente a
Ele o alemão havia retornado à sua pátria. A escrita de Staden difere de uma política
9 Pensando reconstrução no sentido explorado por Serge Gruzinski em: GRUZINSKI, Serge. A colonização do
imaginário. 2003.
Cena do ritual Tupinambá– Xilogravura de Hans Staden (1557) Cena do ritual Tupinambá– Ilustração de Theodóre de Bry (1592)
8
católica missionária num momento em que protestante e católicos discutiam sobre a
religião cristão. O calvinista Staden encarnava os sofrimentos de Jesus Cristo diante da
ameaça do canibalismo, pondo em si a imagem de sofredor diante dos cruéis indígenas.
“Tiravam-me umas pelos braços, outras pelas cordas atadas ao pescoço,
tão fortemente que eu quase não podia respirar. (...). pensei então nos sofrimentos
do nosso salvador Jesus Cristo, como foi inocentemente torturado pelos vis judeus.
Consolei-me neste pensamento e, mais resignado tudo aceitei.”10
O sucesso editorial de Duas Viagens, como vimos, pode estar vinculado ao
imaginário colonial – tendo elementos como a demonologia e a antropofagia -, ao uso das
xilogravuras, da religiosidade do autor, e estes elementos forneceram substrato à
construção de discurso de Hans Staden, constituindo sua escrita através de figuras de
linguagem como o uso da retórica na argumentação.
As bases das políticas indigenistas no século XVI podem ser visualizados para
além dos decretos, regimentos e as leis, outras mobilizações faziam parte das “disputas
retóricas implicadas nas mais acaloradas querelas públicas do período”11, envolvendo
também conceitos filosóficos, teológicos e jurídicos para formulação de ações políticas.
Como afirma Guilherme Luz, um diálogo como o de Juan Giné Sepúlveda sobre a
servidão natural dos índios, uma história como a de Bartolomeu de Las Casas, uma
relectio como a de Francisco de Vitória – que irá defender a ação de uma Guerra Justa
caso os indígenas repudiem ações missionárias -, tem por objetivo convencer o ouvinte
e/ou leitor de uma teoria de ação política que seja eficaz do ponto de vista estratégico e
prudente do ponto de vista teológico. Pensando a escravização de indígenas e a Guerra
Justa, destaco um fragmento do livro de Guilherme Luz:
“(...), qualificar a ação política como justa torna-se
um elemento importantíssimo para a prudência do
feito, envolvendo a mobilização dos termos
10
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 89.
11LUZ, Guilherme Amaral. Carne Humana. Canibalismo e retórica jesuítica na América Portuguesa (1549-
1587).Uberlândia: EDUFU, 2006. Pp. 95.
9
jurídicos mais adequados.”12
Entendendo a escrita de Hans Staden a partir dos elementos que constituem seu
discurso e seu sucesso editorial, e atentando à afirmação destacada do historiador
Guilherme Luz dos outros diálogos além dos judiciais - como as leis e os decretos – e
que foram de suma importância na proposição de políticas indigenistas, sendo a Guerra
Justa uma delas. Podemos compreender a importância do relato de Staden para os
europeus, ressaltando que a partir do século XVI intensificou-se a colonização européia
no continente Americano, onde a Coroa – seja de Portugal ou da Espanha –,
colonizadores e a Igreja, queriam legitimar suas ações, para eficácia e desenvolvimento
do empreendimento colonial.
Assim, seja através do seu lugar de fala religioso ou da sua posição de testemunha
ocular, que confere veracidade ao seu relato, Hans Staden denomina seu discurso de
História verídica. Onde o relato estava sendo narrado não apenas pelo observador, mas
pelo participante sofredor, que através de milagre e ameaças, perigo e salvação,
conseguira sair do mundo da selvageria e barbárie para reencontrar o seu mundo
civilizado, com fé, lei e Rei.
“Aproximaram-se de mim então e apalparam-me a carne.
Um dizia que o couro da cabeça lhe pertencia, outro que a coxa lhe cabia.
Tive que cantar-lhes alguma cousa, e entoei cantos religiosos,
que precisei explicar-lhes em sua língua. Disse: ‘cantei sobre o meu Deus’.
Responderam que o meu Deus era imundíce, em sua língua: teóuira.”13
Sua fala circulará já no século XVI entre os meios intelectuais, que estavam
refletindo formas de agir politicamente e economicamente sobre este Novo Mundo. E
pensando um agir sobre as terras e habitantes americanos, distinto de uma ação
missionária como será defendido por jesuítas, franciscanos e carmelitas, mas uma “ação
justa” para o empreendimento colonial. Ação que defendia a apropriação das terras
ocupadas por “índios hostis”, e sua utilização como mão de obra escrava.
12
Idem. Pp. 95/96.
13STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 100.
10
Convivendo com os canibais: o discurso sobre o selvagem.
A obra de Staden no Brasil teve, no século XX, grande importância para os
imigrantes alemães. Para a Zinka Ziebell podemos observar, em relação à recepção de
Staden no Brasil, a existência de “certo orgulho nacional e a busca da preservação de
valores do que poderíamos designar como Deutschtum, ou sentimento de ‘germanidade’
nos círculos de descendência alemã no Brasil”14
Em 1941, em plena segunda Guerra Mundial, Karl Fouquet edita a obra de Staden,
afirmando no posfácio a sua intenção de reforçar, através da obra, a identidade teuto-
alemã através da publicação do documento mais antigo da relação Brasil – Alemanha. A
instituição responsável pela edição de Karl Fouquet, e que tem expresso as mesmas
intenções de Fouquet, é o Instituto Hans Staden fundado em 1935, tendo por nome
original Clube Hans Staden até 1938, ano que se torna proibido por lei o uso da língua
alemã .
A presente edição que utilizo também é de tradução responsável do Instituto Hans
Staden, publicado pela editora Itatiaia em 2008 como parte da coleção: Coleção
reconquista do Brasil. Da estrutura do documento original15, para a organização feita pela
editora, diferencia-se pela alocação das xilogravuras, que no original localiza-se reunidos
ao fim do documento e a editora organizou-as conforme a narrativa do diário. Na edição
que utilizo há uma introdução escrita por Francisco de Assis Carvalho Franco em outubro
de 1941, ou seja, a mesma introdução já presente na edição de Karl Fouquet.
Como no original, a edição da Itatiaia traz a dedicatória de Hans Staden ao príncipe
Felipe I, escrita em junho de 1556, e o prefácio do professor de matemática e anatomia
da universidade de Marburg Dr. Johann Eichmann – mais conhecido como Dryander -,
escrito, como ele faz referência, no dia de São Tomás de 1556.16 Na dedicatória de
Staden ao príncipe, ele afirma a salvação de Deus que retirou do abismo, longa miséria e
supremos perigos, e o trouxe de volta ao principado de Vossa Serena Alteza, minha
14 ZIEBELL. Zinka. Terra de canibais. Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS, 2002. Pp. 247.
15Disponível online pela Biblioteca Nacional.
16Corresponde ao dia 21 de dezembro.
11
muito querida terra natal. Felipe I fundou a primeira universidade protestante da Europa
em Marburg no ano de 1527, o que explicaria a criação da primeira gráfica da cidade
onde seria publicado o livro de Staden.
Como no caso da utilização das xilogravuras, prefácio do Dr. Dryander evidencia
outra forma pelo qual Staden busca legitimar sua História verídica. E o intelectual, que foi
amigo de infância do pai de Staden como ele mesmo afirma no documento, acaba dar um
atestado de boa conduta à Staden. E certamente Dryander teve papel importante na
produção do livro.
“Primeiro por que conheci seu pai, que nasceu e foi educado na mesma cidade que eu, em
Wetter, há cerca de cinquenta anos, (...), em Héssia, onde ainda mora, de ser um cidadão reto, pio
e valoroso, e que dispõe de boa cultura. Se a maçã, como se diz no provérbio, sabe ao tronco,
pode-se esperar que o filho dêste honrado homem se assemelhe ao pai em seu valor e piedade.”17
O livro de Hans Staden está dividido em duas partes e em duas formas de escrita,
já que, na primeira parte ou livro primeiro, Staden conta em forma de uma narrativa sua
experiência no Novo Mundo, estando neste primeiro livro suas duas viagens. No livro
segundo Staden expõe de forma expositiva a terra e seus habitantes, contendo também
um pequeno relato verídico sobre a vida e costumes dos Tupinambás. Nesta segunda
parte, é importante ressaltar, que identificamos o conhecimento que o alemão tinha de
astronomia, que era considerado importante neste período - a construção de novos
estudos como da latitude, longitude, dos ventos e estrelas que garantissem segurança
aos viajantes- e que conferia um lugar social dentro da Europa, como afirma Patrícia
Seed.18As citações que expus no primeiro subcapítulo estão situadas no livro primeiro,
assim, fazem parte da narrativa da viagem do autor.
O autor inicia a primeira parte do livro contando que se propôs a conhecer as Índias
em 1547, partindo da Holanda para Portugal. E a partir desta primeira exposição o autor
vai pontuando os locais pelos quais passaria, afirmando que o colocaram como artilheiro
do navio cujo capitão chamava-se Penteado. Nesta primeira viagem o autor já expõe
elementos do imaginário colonial, afirmando que havia cardumes voadores perto da
17
Fala de Dryander em: STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 29.
18SEED, Patrícia. “Novo céu e novas estrelas”. In: Cerimónias de posse na conquista Européia do Novo
Mundo (1492-1640). São Paulo: UNESP/Cambridge, 1999.
12
região do Marrocos. Percebe-se que apesar do conhecimento de cosmografia já existente
antes do século XVI, permanecia no pensamento europeu símbolos de um imaginário
medieval, neste caso na narrativa de Staden havia seres monstruosos nos mares. Está
presente na escrita de Staden a ideia de que além do continente europeu existem seres
monstruosos, selvagens, e comedores de carne humana.
Podemos identificar dois elementos distintos na fala do viajante, já nesta primeira
parte da obra, haveria um jogo entre verdade e ficção na escrita de Staden. O autor
afirma a veracidade da sua descrição dos acontecimentos a partir de alguns elementos já
destacados, como a religião, as xilogravuras, o prefácio de Dryander, e com o próprio
título que dá a obra. Mas joga também com as expectativas dos futuros leitores da obra
e/ou, como Zinka Ziebell chama atenção, com “noções pertinentes à cultura do autor do
mesmo”19, escrevendo de forma ficcional afim de criar uma narrativa compreensível ao
pensamento europeu.
Este primeiro momento da narrativa é muito breve já que, o autor não chega as
Índias como desejado, mas no porto de Pernambuco, em Olinda. Logo após, se dirigiria
para a Paraíba, a terra dos Potiguaras, encontrariam embarcações francesas que
recolhiam Pau-Brasil e após ataque sem sucesso, seu navio retornaria a Portugal.
De Portugal Hans Staden retornaria ao Novo Mundo, desta vez com o objetivo de
explorar o Peru, terra que era muito rica em ouro que foi descoberta há poucos anos, e
afirma que o Peru e o Brasil constituem um só continente.20Partindo de São Lucas no
quarto dia depois da páscoa de 154921, alcançaria a terra da América, a 28 graus de
latitude – mostrando seu conhecimento de cosmografia – em 18 de novembro do mesmo
ano. E a partir de sua chegada o autor narra os problemas encontrados pela tripulação –
como tempestades, fome, sede, encontro com naus inimigas, por haver muitos recifes no
litoral americano, as embarcações várias vezes chocaram-se com os recifes e
naufragaram -. Porém, não caberia aqui toda esta descrição, nem é este o objetivo -, até
sua estabilização no forte na Ilha de Santo Amaro onde foi-lhe pedido que servisse na
segurança no forte como arcabuzeiro, que aceitou porque o Rei de Portugal iria
agradecer-lhe. Staden ainda afirma que Tomé de Souza, primeiro governador geral do
19
ZIEBELL. Zinka. Terra de canibais. Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS, 2002. Pp. 63.
20STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 52.
21 O “quarto dia depois da páscoa” corresponderia ao dia 10 de abril.
13
Brasil, desejava narrar tais fatos ao Rei e que seria recompensado quando retornasse a
Portugal.Após quatro meses na Ilha, fez um novo contrato com a Câmara de ficar
encarregado por mais dois anos da segurança do forte.
Hans Staden que afirma na narrativa possuir um índio da Tribo Carijó que
apanhava caça para ele, porém ele não expõe como “adquiriu” o indígena, deixando sem
explicações uma indicação que pode ser de escravização desses indígenas carijós, ou
um estabelecimento de relações entres os índios e os portugueses em que haveria uma
relação de troca entre essas populações; por exemplo, os indígenas poderiam realizar o
serviço de caça e pesca em troca de armamento. Penso nessa possibilidade pela
referência que Staden apresenta no momento do aprisionamento de Staden, em que os
índios Tupiniquins da Ilha Santo Amaro tentam atacar os Tupinambás, após o índio carijó
de Staden avisar aos Tupiniquins do aprisionamento de Staden.
“Êles, os tupinambás, então retrocederam.Da terra atiravam com espingarda
e flechas sobre nós, e os índios nas canoas respondiam com tiros.”22
Contudo, no capítulo 25 da sua obra – neste momento já estava vivendo entre os
Tupinambás como prisioneiro -, Hans Staden narra uma história contada pelos
Tupinambás em que um dos seus membros havia sido capturado pelos Tupiniquins e
vendido a um português:
“Havia lá, nessa ocasião, um moço da sua tribu que tinha vivido como
escravo junto aos portugueses. Numa expedição contra os tupinambás, subjugaram
os tupiniquins uma aldeia inteira. Aos velhos devoraram, comerciando com os
portugueses alguns dos jovens, entre os quais se contava o mencionado moço, que
fora adquirido da região de Bertioga, um galego por nome Antonio Agudin.”23
Embora este não seja meu objetivo principal, identificar dados de escravização no
período colonial na obra de Staden, mas sim através do imaginário do canibalismo, torna-
22
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 83. Grifo meu. Há aqui
também um dado de que os Tupinambás tinham armamento, e na narrativa Staden afirma que os franceses
havia lhes dado o armamento e a pólvora.
23 Idem. Pp. 94.
14
se relevante para vermos através da sua escrita uma dinâmica social, as relações sociais
entre os índios e não índios num momento de estabelecimento dos portugueses, e
também de franceses, na colônia. Mostrando um jogo de interesses desses agentes, já
que, no fragmento anterior além da informação de escravização dos índios inimigos, são
os próprios índios, neste caso os Tupiniquins, que fazem comercialização dos índios
capturados.
A partir do episódio de captura, Hans Staden viveria durante nove meses entre os
Tupinambás, e numa via de mão dupla compartilharia de seus costumes e conheceria os
dos indígenas, entre eles as festas antropofágicas. Um dos costumes que o alemão
vivenciou foi a participação nas festas em que bebera o cauim, uma bebida alucinógena
feita a partir da fermentação muitas vezes de frutas como caju, como ressaltado por João
Fernandes, e era produzida pelas mulheres da tribo para grandes rituais. 24
“Conduziu-me então ao sítio do chefe, que aí se achava sentado com
outros a beber. Haviam-se embriagado com cauim, olharam-me irados, e
disseram: ‘Vieste como inimigo nosso?’ Respondi: ‘Vim, não porém como
vosso inimigo’. Com isto, deram me tambem de beber.”25
Não comer o inimigo, capturado em conflitos entre tribos, alterava a ordem do
cosmo na visão Tupinambá, com isso podemos identificar uma forma de acesso ao divino
no cosmo indígena. Para o cativo ser sacrificado e comido pelos seus inimigos também
seria importante, demonstraria sua honra e não medo diante do inimigo. Dentro de uma
lógica própria, cativo e guerreiro26se enfrentavam e garantiam desta forma o dinamismo e
as relações sociais das tribos envolvidas. As tribos aliadas participavam das festas
24
FERNANDES, João A. Sobriedade e embriaguez: a luta dos soldados de Cristo contra as festas dos
tupinambás. Revista Tempo,Rio de Janeiro. Nº 22, Pp. 98-121. 25
Idem. Pp. 98.
26Entendendo guerreiro aqui como o sujeito que iria quebrar o crânio do cativo e com isto ganhar um novo
lugar social dentro da tribo, ganhando um novo nome e uma nova marca na pele que segundo Hans Staden
era uma “arranhadura” com dente de algum animal selvagem, e a cicatriz criada pelo corte na pele
conferia-lhe como um guerreiro honroso. Quanto mais nomes e marcas na pele o índio obtivesse mais
importante seria seu lugar social na tribo. Ver: CUNHA, Manuela Carneiro. CASTRO, Eduardo Viveiros.
Vingança e temporalidade: os Tupinambás. 1985.
15
antropofágicas, por isso o ritual demorava vários dias para se realizar, já que o inimigo só
era sacrificado quando chegassem os convidados. Assim, os rituais eram também uma
forma de renovação das alianças estabelecidas entre as tribos. Destaco agora
fragmentos da obra em que mostra a relação entre cativos e guerreiros, e/ou os que
estão vingando sua tribo conferindo-lhes honra e trazendo de volta ordem ao cosmo.
“Consideram isto uma honra. A seguir retoma o tacape aquele que vai matar o prisioneiro e
diz: ‘Sim, aqui estou eu, quero matar-te, pois tua gente tambem matou
e comeu muitos dos meus amigos’. Responde-lhe o prisioneiro: ‘Quando estiver
morto, terei ainda muitos amigos que saberão vingar-me.”27
“Guerreiros valorosos morrem na terra de seus inimigos. E a nossa terra é grande.
Os nossos logo nos vingarão em vós”28
Neste fragmento identificamos uma relação sociocultural estabelecida pela
antropofagia que ultrapassaria a visão defendida por Hans Staden do ritual como ato de
imensa hostilidade entre os indígenas. O ritual, que expressava a visão de mundo dos
Tupinambás – o sentido de ser e estar no mundo, pois o sacrifício conferia ao cosmo
Tupinambá29 uma lógica que é contrária à visão dada pelo europeu, que lê o canibalismo
como exemplo da barbárie e selvageria dos indígenas.
“(...) Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de
uma perna, seguroum’a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: ‘Um
animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?’
Mordeu-a então e disse: ‘Jauáraichê’. ‘Sou um jaguar. Está gostoso.’ Retirei-me dêle, à vista
disto.”30
27
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 182.
28Idem. Pp. 132.
29LESTRINGANT, Frank. O canibal. Grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
Pp. 98-99.
30STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 132.
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Neste fragmento o indígena figura um ser selvagem e irracional, onde ato de comer
a carne humana o tornaria um ser diferente do europeu. Esta parte do documento
mostra-nos a forma de escrita do autor, além da dicotomia criada por Staden entre
europeus e americanos, cristãos e não-cristãos, apresentando-os como seres sem fé, lei
e Rei e lhes atribuindo a condição de irracionais, bárbaros e cruéis. Tornando sua fala
contrária a dos religiosos que propunham a cristianização desses povos. Para Staden, a
alteridade Tupinambá pode e deve ser eliminada pelos povos ditos civilizados.
Destaco outra parte do diário em que vemos a afirmação religiosa do autor por
oposição aos indígenas pagãos, sem fé, e também a tentativa de criação de uma imagem
do indígena como o cruel, demoníaco31, e que deve estar longe de todo europeu
civilizado e cristão.
“(...) porque queria contar apenas o início,, como caí em poder da cruel gente selvagem.
Quis mostrar com isso, como o Salvador de todos os males, nosso Senhor e Deus, de modo
patente e sem que eu o pudesse esperar, me livrou do poder dos gentios. Cada qual deve ouvir
que o Deus todo-poderoso preserva e conduz, ainda agora, tão maravilhosamente, seus cristãos
fiéis, entre o povo ímpio dos pagãos, como sempre o fez, desde o começo.”32
O canibalismo era um ponto fundamental que distanciava os europeus dos
indígenas do Novo Mundo, destaco uma xilogravura onde Hans Staden, com as mãos em
atitude prece assiste ao festim antropofágico, distanciando-se do ato canibal como o
europeu, civilizado e cristão. Criando uma hierarquia entre os que são cristão, civilizados
e não comedores de carne humana e os índios selvagens, cruéis e comedores de carne
humana.
31
Pensando aqui na criação de uma dicotomia no imaginário europeu que opõem o sagrado ao demoníaco.
32STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008. Pp. 197. Grifo meu.
17
O discurso construído por Hans Staden, como vemos, tem elementos como a
retórica e um imaginário europeu que fazia parte da escrita do Diário. Nesta xilogravura
destacada acima notamos outro elemento: no centro da xilogravura há um tipo de
caldeirão, onde boia a cabeça do inimigo dos Tupinambás. O caldeirão como posto pelo
autor traria ao leitor europeu uma referência que lhe é familiar: o caldeirão das bruxas,
que para o cristianismo são seres demoníacos.
Assim, o diário de viagem de Hans Staden traz elementos do imaginário europeu
para narrar sua experiência na América Portuguesa terra dos canibais. O imaginário e
simbolismo, criados a partir deste contato entre índios canibais e não índios cristãos,
envolveria a escrita da obra – a própria escrita já teria a priori um imaginário sobre
canibalismo na Europa - e faria parte das propostas de ações da Europa no Novo Mundo.
Frank Lestringant ressalta esta relação entre o imaginário sobre os canibais do Novo
Mundo e ações consideradas “justas” no lugar de fala do colonizador.
““Se essa condensação imaginária pode tão prontamente formar-se, é porque ela correspondia,
por outro lado, a considerações políticas e econômicas bem precisas. Como resposta, [as
incursões européias fracassadas no Caribe] massacres e deportações maciças foram legitimados.
(...)Por um decreto real de 1501, Isabel, a Católica, declarava que guerra contra os caribes era
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justa e que os prisioneiros podiam ser vendidos como escravos. Sem dúvida, o decreto de 1501 e
todos aqueles que sublinharam esse princípio até o início do século XVII designavam para essa
guerra justa uma área geográfica restrita – Santa Lúcia, Dominica, São Vicente -, e uma região de
terra firme ao redor de Cartagena. Na prática, contudo, e a despeito do controle severo da justiça
real, a avidez de traficantes e encomienderos não conheceu limites a tais exações. (...). Graças
ao amálgama entre Colombo e Vespúcio, uma perfeita confusão estabelecera-se entre os caribes
antilhanos, os da Guiana, os da parte oriental da Venezuela e os tupinambás do litoral brasileiro,
considerados também antropófagos.”33
Conclusão
Quando pensamos as relações estabelecidas entre índios e não índios na América
Portuguesa ao longo dos séculos XVI e XVII pode-se identificar fracassos de políticas
que tentam ser aplicadas pelos portugueses colonizadores. A missão jesuítica foi um dos
projetos de colonização que acabou por não alcançar os objetivos desejáveis pela Coroa
portuguesa, onde a proposta do Marquês de Pombal acabaria por substituir a anterior.
Embora a missão jesuítica tenha se expandido por territórios da América
Portuguesa além do litoral e adentrando o sertão - criando colégios, fazendas e
aldeamentos com o propósito de cristianizar os povos que desconheciam a verdadeira fé
-, o empreendimento religioso deixaria de ser eficaz aos propósitos da Coroa e dos
colonizadores. O objetivo da Companhia de Jesus no controle dos indígenas através dos
aldeamentos, da catequese e do batismo não conseguiu, na maioria dos casos, produzir
o efeito desejado. Ocorriam fugas dos índios nos aldeamentos, a recusa à missão
catequética e a Companhia foi criticada por colonizadores ao utilizar os índios aldeados
no trabalho nas fazendas. A política do Marquês de Pombal retiraria o poder concedido à
33LESTRINGANT, Frank. O canibal. Grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
Pp. 51-52.
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Companhia nas terras portuguesas frente aos povos indígenas e legitimou ações que
tentavam controlar e eliminar as populações nativas.
Como afirma Luciano Campos Brunet, a mão de obra nativa foi muito importante no
desenvolvimento do empreendimento colonial. Embora na historiografia tenhamos muitos
trabalhos sobre a escravização negra no Brasil não podemos esquecer que
primeiramente a mão de obra indígena seria utilizada pelos europeus colonizadores.
Posteriormente sua mão de obra seria desvalorizada e suas terras passariam a ter maior
importância; consequentemente criaram-se políticas para que indígenas fossem retirados
de suas terras, e caso houvesse relutância era justa uma Guerra contra estes povos – já
que, na fala do colonizador as terras seriam utilizadas por estes de forma a garantir o
progresso e desenvolvimento da civilização -.34
“A ação sucessiva de guerras justas na segunda metade do século XVII tinha como objetivo
central destruir ou dominar as aldeias indígenas do sertão, abrindo caminho para uma nova forma
de colonização no território conquistado.”35
Como obra de referência, tendo várias edições ao longo dos séculos XVI e XVII,
lida por um público formal e informal, ou seja, dos círculos intelectuais ao infanto-juvenil e
da sátira; o Diário de Hans Staden fora legitimado como verídico e de importância para a
civilização europeia. O diário fora importante para os leitores europeus, mais as
xilogravuras davam aos iletrados uma forma de conhecer sobre o Novo Mundo e seus
costumes canibais. Vemos a importância conferida por Theodore de Bry, que publicara as
imagens sob uma nova técnica. E que também foram utilizadas por outros viajantes,
como Jean d’ Lery e André Thevet.
Destaquei vários elementos que constitui o diário de Staden e que legitimam seu
discurso sobre os povos indígenas Tupinambás, como o uso de figuras de linguagem, da
retórica, o conhecimento de astronomia, as várias xilogravuras, o prefácio e dedicatória
do autor, que buscavam conferir à obra um caráter científico e/ou uma história verídica do
Novo Mundo.
34BRUNET, Luciano Campos. De aldeados a súditos: viver, trabalhar e resistir em Nova Abrantes do Espírito
Santo Bahia 1758-1760. Bahia: Departamento de História da UFBA, 2008. 147 p.
35 NEVES, Juliana B. B. Colonização e Resistência no Paraguaçu – Bahia, 1530 – 1678. Bahia: Departamento
de História da UFBA, 2008. 142 p.
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A obra de Hans Staden foi editada na Europa e fora dela, por vários anos, e
circulou entre diferentes segmentos sociais, e inicialmente num período de
estabelecimento e ampliação do empreendimento colonial. Num momento que a proposta
de evangelização das populações indígenas era vistas como ineficazes, e ampliava-se o
espaço para políticas mais opressoras como a Guerra Justa.
A visão do mundo indígena, das suas práticas e costumes, contidos no diário de
viagem sem dúvida correspondia a um imaginário europeu que antecedeu a escrita de
Hans Staden.36 E que correspondiam aos ideais de civilização defendidos pela Igreja,
pela Coroa, e pelos futuros colonizadores. Sua obra alcançava um público amplo, ia além
dos círculos científicos, podendo legitimar a proposta de políticas indigenistas frente
diferentes segmentos da sociedade européia, quando a missão religiosa não mais
correspondia aos ideais da Coroa Portuguesa.
Alguns anos após a escrita do diário Duas Viagens ao Brasil, mudanças
ideológicas no campo político e econômico apontariam a necessidade de criação de uma
nova sociedade, onde a Companhia de Jesus – enquanto uma instituição que tinha por
objetivo a missão e não eliminação destes povos, como os franciscanos também teriam -,
não teria mais espaço. E a época Pombalina marcaria a tentativa de inovação,
modernização e transformação de Portugal. E o espaço ocupado pelas políticas que
visavam a cristianização e não eliminação dos povos indígenas – tornando estes povos
súditos da coroa portuguesa - dariam lugar ao Diretório Pombalino, sendo a primeira
gestão direta, efetiva e centralizada da Coroa para administrar a questão indígena.
Referências Bibliográficas
36
Sobre imaginário europeu acerca do canibalismo, ver: LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e
decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
21
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Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 2ª edição. São Paulo: FAPESP/Companhia das
letras, 1992.
BRUNET, Luciano Campos. De aldeados a súditos: viver, trabalhar e resistir em Nova
Abrantes do Espírito Santo Bahia 1758-1760. Bahia: Departamento de História da UFBA,
2008.
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Ocidentalização no México espanhol: séculos XVI-XVIII.São Paulo: Companhia das
letras, 2003.
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de Brasília, 1997.
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Portuguesa (1549-1587). 2006
NEVES, Juliana B. B. Colonização e Resistência no Paraguaçu – Bahia, 1530 – 1678.
Bahia: Departamento de História da UFBA, 2008.
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1640). São Paulo: UNESP/Cambridge, 1999.
ZIEBELL, Zinka. Terra de canibais.Rio Grande do Sul: Editora universidade/ UFRGS,
2002.
22
Fonte
STADEN, Hans. Diário de duas viagens. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2008.