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Ciência & Saúde Coletiva

ISSN: 1413-8123

[email protected]

Associação Brasileira de Pós-Graduação em

Saúde Coletiva

Brasil

Mourão Vasconcelos, Eduardo

Empoderamento de usuários e familiares em saúde mental e em pesquisa avaliativa/interventiva: uma

breve comparação entre a tradição anglo-saxônica e a experiência brasileira

Ciência & Saúde Coletiva, vol. 18, núm. 10, octubre, 2013, pp. 2825-2835

Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63028210008

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Empoderamento de usuários e familiares em saúde mentale em pesquisa avaliativa/interventiva: uma breve comparaçãoentre a tradição anglo-saxônica e a experiência brasileira

Empowerment of users and family members in mental health careand in evaluative/interventional research: a brief comparisonbetween the Anglo-Saxon tradition and the Brazilian experience

Resumo O objeto deste artigo são as principaiscaracterísticas das tradições e experiências de em-poderamento de usuários e familiares em aborda-gens e serviços de saúde mental em países anglo-saxônicos e no Brasil, e suas repercussões e estra-tégias no campo da pesquisa avaliativa e inter-ventiva em saúde mental. O objetivo é comparar,através de uma breve revisão bibliográfica da li-teratura, como as tradições de empoderamento sedesenvolveram nos dois cenários, a partir de ca-racterísticas do contexto econômico, político, so-cial e particularmente cultural. A revisão mos-trou como estes contextos geram diferentes pers-pectivas de valorização da autonomização e em-poderamento de usuários e familiares nas políti-cas sociais em geral e em saúde mental, como tam-bém nas apropriações no campo da pesquisa ava-liativa e interventiva em saúde mental. Nos paí-ses anglo-saxônicos, esta tradição vem se desen-volvendo fortemente há cerca de 4 décadas, e noBrasil as estratégias participacionistas enfatizammecanismos mistos – profissionais, usuários e fa-miliares juntos –, com a presença dominante dosprofissionais, e as iniciativas mais diretamentedesenhadas para os usuários e familiares são muitorecentes, a partir de 2005.Palavras-chave Saúde mental, Empoderamento,Autonomia, Pesquisa avaliativa, Pesquisa inter-ventiva

Abstract The scope of this article is to assess themain characteristics of the traditions and experi-ences of empowerment of users and family mem-bers in mental health treatment and services inAnglo-Saxon countries and in Brazil and the re-percussions and strategies thereof in the field ofevaluative and interventional research in mentalhealth. Based on a brief bibliographical review ofthe literature, the aim is to compare how the em-powerment tradition has developed in the two re-alities, based on the characteristics of the econom-ic, political, social – and especially cultural – con-text. The review revealed how these contexts in-duce different perspectives on how to foster theautonomy and empowerment of users and familymembers in social policies and mental health, aswell as their appropriation in the field of evalua-tive and interventional research. In Anglo-Saxoncountries, this tradition has been vigorously pro-moted over the past four decades, and in Brazil theparticipative strategies emphasize mixed mecha-nisms – professionals, users and family memberstogether – with the dominant presence of the pro-fessionals. The strategies in Brazil more directlydesigned for users and family members are recentand have been implemented from 2005 onwards.Key words Mental health, Empowerment, Auto-nomy, Evaluative research, Interventional rese-arch

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Introdução

Este trabalho visa revisar e comparar as expe-riências de reforma psiquiátrica e de empodera-mento (empowerment) de usuários de serviços eseus familiares em países anglo-saxônicos (comênfase particular no Reino Unido e nos EstadosUnidos) e no Brasil, e suas repercussões no cam-po da pesquisa avaliativa e interventiva em saúdemental. O trabalho objetiva, primeiramente, iden-tificar aspectos conceituais importantes para umaavaliação e apropriação crítica desta perspectiva,do ponto de vista ético-político das classes po-pulares em países periféricos e semiperiféricos.Em segundo, o artigo busca também identificarcomo as características históricas, sociais e cul-turais estruturais, bastante diferenciadas nos doiscontextos, acabam gerando perfis muito varia-dos no potencial e na dinâmica concreta de par-ticipação, envolvimento e empoderamento deusuários e familiares do campo da saúde mental,bem como em serviços sociais em geral. Na nos-sa perspectiva, sistematizar estas diferenças é fun-damental para a compreensão e avaliação dasexperiências e projetos piloto hoje no Brasil, apartir da influência que os movimentos de usuá-rios e de reforma psiquiátrica anglo-saxônicosvem ganhando em nosso país. Além disso, aindaque breve e sintética, a revisão das conquistas edesafios no campo da pesquisa avaliativa e inter-ventiva em saúde mental comprometida com oempoderamento, nos países anglo-saxônicos,nos permite no Brasil visualizar um campo ple-namente desenvolvido, vasto, fértil e variado deestratégias possíveis que podem ser apropriadasem pesquisa em saúde mental, com seus desafi-os, para estimular a investigação acadêmica e deavaliação engajada com a reforma psiquiátrica eo movimento antimanicomial em nosso país. Epor último, este artigo visa também subsidiaralguns projetos piloto já em andamento no Bra-sil, de experimentação e sistematização de dispo-sitivos de empoderamento em saúde mental, in-tegrados à pesquisa ou com estratégias partici-pativas de produção de conhecimento e avalia-ção, inspiradas nos princípios do empoderamen-to. Entretanto, dado o formato enxuto dos arti-gos neste periódico, esse último objetivo serácumprido em outro artigo nesta coletânea, cole-tivo, para o qual convidamos desde já o leitorinteressado no tema.

Contexto histórico e conceitualdos processos de reforma psiquiátricae de empoderamento em saúde mentalem países anglo-saxônicos e no Brasil

Os processos de reforma psiquiátricae a participação de usuários de serviçose seus familiares

Durante e após a II Guerra Mundial, nos paí-ses de capitalismo central, o esforço de reabilita-ção de militares e civis marcados pela guerra, oambiente econômico e social de reconstrução ede revalorização da força de trabalho, o proces-so de redemocratização, bem como o desenvol-vimento de políticas públicas de bem estar social,levaram a conquistas significativas dos direitosclássicos de cidadania, particularmente no cam-po dos direitos civis e sociais. Este contexto esti-mulou processos de reforma psiquiátrica1, cujoobjetivo central tem sido a substituição da inter-nação em instituições do tipo manicomial, paraserviços abertos, de base territorial, perto doslocais de moradia, e visando a reinserção de seususuários na vida social mais ampla. Além disso,visam também transformar as relações sociaisbaseadas na discriminação e segregação das pes-soas com transtorno mental, com iniciativas ati-vas na esfera cultural, artística, educacional e departicipação na sociedade em geral. Em outraspalavras, se coloca a questão de como se podeavançar na esfera das práticas micropolíticas, donível de participação social, das relações de poder edas representações sociais e culturais difusas, nassuas relações com o campo da saúde mental.

Neste terreno, os movimentos sociais de usu-ários e familiares da saúde mental de vários paí-ses, particularmente a partir da década de 1970,apresentam novos insights e conquistas impor-tantes para os processos de reforma psiquiátri-ca. Estes atores sociais representam os principaisreceptores dos serviços de saúde mental e poten-ciais interessados em mudanças mais profundasnas políticas e sistemas convencionais de saúdemental, bem como na cultura difusa na socieda-de em relação a eles e ao tema. Em muitos países,eles não só desenvolvem ações próprias e autô-nomas, como também forçam serviços e pro-gramas a darem respostas mais adequadas a suasnecessidades, além de criarem novos conceitos eabordagens teóricas. Nos países do Norte daEuropa e de cultura anglo-saxônica, as aborda-gens e as estratégias de empoderamento consti-tuem a principal perspectiva conceitual e práti-co-operativa nesta direção.

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Os processos de reforma psiquiátrica se di-fundiram em países periféricos e semiperiféricos,como o Brasil, a partir da década de 19801-3, mascom características próprias no campo das polí-ticas sociais, dos movimentos sociais e da cultu-ra, gerando especificidades no processo de trans-formação dos serviços, das representações quesustentam a discriminação e estigma, bem comona concepção e nas estratégias de empoderamentoem saúde mental, como veremos a seguir.

O empoderamentono campo da saúde mental,suas ambiguidades conceituais e desafios

Vasconcelos4 propõe uma primeira aproxi-mação ao conceito na seguinte definição provisó-ria: Aumento do poder e autonomia pessoal e cole-tiva de indivíduos e grupos sociais nas relações in-terpessoais e institutionais, principalmente daque-les submetidos a relações de opressão, dominação ediscriminação social. A apropriação do conceitopara o contexto brasileiro nos permitiu identifi-car diferentes níveis de práticas e estratégias deempoderamento em saúde mental: o cuidado de si,a ajuda mútua, o suporte mútuo, a transforma-ção da cultura difusa em relação ao transtornomental na sociedade, a defesa de direitos, a mili-tância social e política4, e o uso de narrativas pes-soais de experiência de vida em primeira pessoa5.Por razões de economia, a explicitação destas es-tratégias não pode ser realizada aqui, mas estádisponível na literatura indicada.

Entretanto, não se trata de um conceito comestatuto teórico e ético-político próprio. Em nos-sa visão, constitui uma interpelação de caráterpolissêmico, similar às de participação e huma-nização, que pode ser apropriada tanto para finsconservadores quanto emancipatórios. Em ou-tro trabalho de revisão4, procuramos mostrarcomo, na história ocidental desde a modernida-de, a ideia e as práticas de empoderamento fo-ram apropriadas em ambas as direções. Algunsexemplos:

a) Do lado conservador, temos a cultura deautoajuda (self-help) desde o século XIX, como omovimento de temperança nos países anglo-sa-xônicos, e seus desdobramentos até hoje, comona literatura atual de autoajuda, associada aoliberalismo radical, individualização, recalque dadimensão coletiva dos problemas sociais e indi-viduais, pragmatismo e utilitarismo, que visampredominantemente adaptar os indivíduos aostatus quo e ao bom cumprimento das expectati-vas sociais práticas (expresso, por exemplo, na

expressão “alcançar o sucesso”). Mais recente-mente, o Banco Mundial se apropriou de formamais sofisticada desta interpelação, para pregarestratégias participativas de desenvolvimento lo-cal6, sem questionar as suas bases mais amplasde pauperização econômica e social, fortementeestimuladas pelas atuais políticas capitalistas dereajuste neoliberal.

b) Na direção emancipatória, temos comoexemplo recente os vários movimentos e organi-zações de trabalhadores, de direitos civis e deminorias étnicas, o movimento feminista, etc. NoBrasil, durante a ditadura militar, tivemos váriosmovimentos sociais populares com forte pers-pectiva de empoderamento de seus membros,como as Comunidades Eclesiais de Base (CEB),inspiradas na Teologia da Libertação; a educaçãopopular de Paulo Freire e seus desdobramentos;e, mais recentemente, os próprios dispositivosde controle social das políticas sociais, como emnosso sistema de saúde atual. A maioria destescasos constituem abordagens educativas e de tra-balho de base com as populações e grupos opri-midos, ou estratégias ligadas a políticas sociais,que precisam ser inseridas em projetos e teoriasemancipatórias mais amplas e totalizadoras.

Particularmente na literatura anglo-saxôni-ca, a interpelação de empoderamento muitas ve-zes é apresentada como única ou principal dire-ção ética e política de categorias profissionais ede agências governamentais, sem outras qualifi-cações, como um consenso possível, sem enfren-tamentos ou questionamentos à mentalidadesocialdemocrata hegemônica, particularmente noReino Unido4. Além disso, não explicitam umposicionamento mais claro em relação ao mode-lo econômico e social vigente e às característicasdas políticas sociais que deveriam ser prioriza-das pelos atores sociais e políticos mais compro-metidos do campo.

Assim, nossa visão é de que a interpelação eas estratégias de empoderamento podem e de-vem ser apropriadas para fins emancipatórios,mas isso requer:

- reconhecer seu caráter polissêmico;- conhecer minimamente sua história ante-

rior de apropriações conservadoras e emancipa-tórias;

- identificar e avaliar criticamente as suasapropriações recentes pelas forças sociais e polí-ticas hegemônicas, buscando se diferenciar e su-perar os limites ideológicos e políticos em que ainterpelação é enclausurada;

- reconhecer que as abordagens e estratégiasde empoderamento não são suficientes e susten-

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táveis por si mesmas, e ancorá-las em princípiosético-políticos, em teorização política, social, cul-tural e psicossocial mais consistente, e em políti-cas sociais e projetos sócio-históricos mais am-plos, para poderem se adequar aos interessesemancipatórios e para as características de cadacontexto particular;

- admitir que não se trata de fazer simplestransposições transnacionais ou transculturaisde conceitos e estratégias oriundas de outros pa-íses, pois sua apropriação em cada contexto exi-ge revisões conceituais críticas, comparação comas experiências locais já existentes, experiências-piloto e sua avaliação, etc., previamente à suaadoção.

Características dos movimentos sociaisque sustentam reformas psiquiátricasem países semiperiféricos de origem latinae predominantemente católica

Os movimentos sociais que sustentam osprocessos de reforma psiquiátrica têm históriase características muito heterogêneas nos diver-sos países e culturas. Na Comunidade Europeia,por exemplo, o perfil destes movimentos, há vá-rias décadas, ainda acompanha uma clássica di-ferenciação cultural e política4,7 . Por um lado,temos a Europa mediterrânea de origem latina ecom uma história de forte hegemonia católica, comsua cultura mais hierárquica, familiar, comuni-tária e valorizadora da dependência, e políticassociais mais enfaticamente estatais. Por outro, nadireção norte, temos culturas mais marcadas peloprotestantantismo, individualistas, com laços fa-miliares mais frágeis, e mais valorizadoras da au-tonomia pessoal, com maior desenvolvimento eparticipação do chamado Terceiro Setor (Volun-tary Sector) em suas políticas sociais, característi-cas que se difundiram particularmente nos de-mais países de língua inglesa. Neste conjunto depaíses, os usuários constituem um ator social vivoe ativo central nos movimentos sociais em saúdemental, com um perfil mais autonomista e radi-cal em relação aos programas estatais e aos pro-fissionais. Nos países do sul, temos como princi-pal ator os movimentos de profissionais e, se-cundariamente, de familiares, cujo perfil e valo-res acompanham os traços principais da culturahierárquica descrita acima.

Um país semiperiférico como o Brasil apre-senta muitas similaridades com os países euro-peus de origem latina. De modo geral, tendemosa reproduzir os padrões sociais e culturais denossos colonizadores portugueses, ou seja, a cul-

tura latina, católica, familiar e hierárquica, comforte tendência à segregação das classes popula-res, e políticas públicas fortemente estatais, comforte tendência à burocracia e ao patrimonialis-mo, e com um desenvolvimento muito mais li-mitado de programas de bem estar social. Aqui,a cultura hierárquica e patrimonialista foi intro-duzida já no início da colonização, na concessãopessoal de títulos, de terras e poderes a senhoresde terra ligados à Coroa Portuguesa, e se estendecomo prática político-administrativa hegemônicadurante o Império e a República. Neste contexto,uma hierarquia social informal, estruturada emlaços e redes personalizadas de influência, consti-tui o critério prioritário de distribuição de benes-ses, cargos e direitos, com clara apropriação daesfera pública por redes de interesse privado daselites políticas, econômicas e sociais, e com forteacento burocrático. Na população trabalhado-ra, esta característica se expressa em uma con-cepção hierárquica da vida, valorizadora da de-pendência e dos laços pessoais e familiares, comoestratégia de mobilizar suporte social concreto ecomo forma de ter algum acesso aos limitadosbenefícios e serviços sociais públicos, em detri-mento de formas anônimas e legais de garantiade direitos individuais universais. Esta culturadifusa gera também uma visão muito própriados fenômenos e do adoecimento mentais, cha-mada de modelo do nervoso. Para uma visão maissistemática do tema, é interessante ir a suas prin-cipais obras clássicas, nos trabalhos de Faoro8,DaMatta9 e Duarte10.

No entanto, é essencial lembrar que tivemosmovimentos sociais muito ativos no processo deluta pela democratização e contra a ditaduramilitar, cujo governo caiu em 1984, com verten-tes bastante organizadas no campo da saúde esaúde mental, induzindo a criação do SistemaÚnico de Saúde (SUS), formalmente de acessouniversal. Tivemos também um movimento an-timanicomial, com clara inspiração na experiên-cia italiana, embora mais gradual e lento do quena maioria dos países europeus3,11.

Neste processo, há conquistas importantesjá consolidadas desde a década de 1980, do pon-to de vista da democratização e participação po-pular. Talvez a principal delas seja a do controlesocial, pelo qual todas as principais decisões naspolíticas de saúde e saúde mental em qualquernível de gestão (serviços locais, territórios de re-ferência, municípios, estados e união federal),devem passar por conselhos, em que a metadede seus membros devem ser representantes dasociedade civil, particularmente de associações

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civis ligadas ao campo. Há também as conferên-cias nacionais, que permitem a formulação dediretrizes como política de Estado para todo opaís, acima de governos específicos.

Entretanto, um conjunto de fatores estrutu-rais, culturais e conjunturais fragilizam a experiên-cia de ativismo e empoderamento nos serviços ena representação da sociedade civil nas instânci-as de controle social no país. Entre os principaisfatores, podemos indicar aqui:

a) Os movimentos sociais brasileiros de re-forma sanitária e psiquiátrica apresentam umperfil similar ao da Europa do sul, ou seja, compredominância e preponderância dos profissio-nais e dos agentes estatais. Os poucos dados dis-poníveis sobre a organização de usuários e fami-liares no país, sistematizados por Vasconce-los3,11,12, indicam um crescimento lento do nú-mero de associações civis, que em geral são mis-tas (usuários, familiares e profissionais), e nasquais os últimos têm um papel mais proeminen-te e regular, em um quadro de organização, ba-ses financeiras e ativismo político em geral bas-tante fragilizado.

b) A forte hegemonia da cultura patrimonia-lista e hierárquica produz marcas culturais e po-líticas profundas e amplas nas classes populares,em todas as esferas de ativismo social e na rela-ção com os profissionais e as instituições de po-lítica social, na direção inversa da autonomia edo empoderamento7.

c) Em nosso país, a profunda desigualdadesocial e o mercado de trabalho com quase meta-de de trabalhadores no setor informal, bem comoo perfil dual de oferta de serviços de saúde e saú-de mental, também deixam suas marcas. Temosplanos e seguros de saúde privados para a elite epara as classes médias, e de outro lado o sistemapúblico que serve às classes populares, de formamuito diferenciada dos programas efetivamenteuniversais de saúde pública europeus e canaden-se. No Brasil, as classes médias geralmente nãofrequentam os serviços públicos de atenção psi-cossocial, nos quais os projetos de empodera-mento estão sendo desenvolvidos. Os setoresmédios, marcados por elitismo, cultura hierár-quica e estigma, têm mais dificuldades de assu-mir uma identidade explícita associada ao trans-torno mental. Assim, os potenciais usuários efamiliares com maiores recursos educacionais,sociais, econômicos e culturais para o desenvol-vimento de um ativismo e uma organização po-

lítica mais incisiva e autônoma, não estão dispo-níveis dentro dos serviços públicos de saúde esaúde mental. E as lideranças oriundas das clas-ses populares têm maiores dificuldades e limita-ções econômicas, sociais e culturais para se capa-citarem e exercerem este ativismo explícito den-tro do sistema público de saúde e na sociedadeem geral.

d) No contexto atual de políticas neoliberais(subfinanciamento, sucateamento e privatizaçãodas políticas sociais e serviços; terceirização, pre-carização dos direitos e rotatividade do traba-lho; e aumento das demandas, do nível de gravi-dade dos problemas e da população adscrita acada serviço), as questões do empoderamentoacabam sendo secundarizadas pelos trabalhado-res de saúde mental.

Em outras palavras, acreditamos que a com-binação de todas estas características tendem a di-ficultar a extensão massiva de estratégias de parti-cipação popular e de empoderamento no sistemade políticas sociais e em saúde/saúde mental. A nossover, isso não impossibilita as estratégias de empo-deramento no país, mas implica que seu significa-do social, sua dinâmica cultural e seu processo dedesenvolvimento institucional ganham um perfilmuito próprio e mais lento, cujos caminhos devemser auscultados com cuidado, para evitar a tendên-cia à importação e transposição direta de teorias,abordagens e metodologias operativas em serviçosde saúde e saúde mental.

A partir dessa hipótese, talvez seja possívelcompreender por que no Brasil apenas uma par-cela menor do próprio movimento antimanico-mial e dos serviços de atenção psicossocial tenhaesboçado iniciativas e estratégias claras na dire-ção do empoderamento de usuários e familiares.Ainda é hegemônica aquela visão mais convenci-onal de que tratamento e cuidado constituem umaprerrogativa dos profissionais e trabalhadores,de que a participação se dá apenas no processo deescuta e de prover informação relativa ao trata-mento a usuários e familiares, ou nas assembleiasdos serviços, ou ainda no máximo no ativismodireto nos conselhos de controle social. Na mes-ma direção, no âmbito da vida acadêmica e daspráticas de pesquisa avaliativa e interventiva depolíticas sociais, poucos núcleos da pesquisa em saú-de mental têm procurado desenvolver estratégias deenvolvimento, participação e empoderamento deusuários e familiares no próprio processo de pes-quisa, tema indicado mais abaixo.

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O envolvimento e o empoderamentode usuários em pesquisa em saúde mentalno contexto anglo-saxônico:uma breve revisão descritiva e crítica

O Reino Unido e os Estados Unidos repre-sentam dois casos chaves de forte desenvolvi-mento de algumas perspectivas acadêmicas eprofissionais claramente comprometidas com oempoderamento a partir da década de 19704,13-15,como também de um movimento fortementeradical e autonomista de usuários no campo dasaúde mental16-19. A rápida revisão abaixo daráênfase a autores distribuídos durante todo esteperíodo, tentando mostrar a processualidade e asofisticação das experiências e análises construí-das no campo da pesquisa, a partir dos anos1980. Além disso, tanto os Estados Unidos quan-to o Reino Unido mostram uma forte integraçãocultural, científica, editorial e política entre eles,bem como uma forte influência nos demais paí-ses de língua inglesa, permitindo tratá-los aquisem distinguir suas especificidades, pelo menospara efeito do presente artigo e de sua necessáriaconcisão. A perspectiva do empoderamento empesquisa envolveu iniciativas com diversos níveisde envolvimento, participação e empoderamen-to de usuários e familiares, desde a década de1980. Um exemplo inicial, ainda em 1984, foi pro-movido pela ONG inglesa MIND20, uma organi-zação chave no desenvolvimento do movimentoautonomista de usuários no país. Ela desenvol-veu com a rede de televisão estatal BBC um am-plo levantamento da visão dos usuários sobre oconsumo crônico de tranquilizantes, mostrandoo largo uso de prescrição superdimensionada,os efeitos colaterais e as dificuldades para suaretirada por parte dos usuários. A importânciadeste tipo de pesquisa, com participação de usuá-rios em todas as fases da investigação, pode servista nas suas consequências: uma grande cam-panha pública sobre o tema pela MIND, comapoio da BBC, com um impacto significativo nacultura, nos serviços de saúde mental e no con-sumo destes psicofármacos21.

Portanto, esse tipo de pesquisa, ou mesmomecanismos mais informais que valorizam oponto de vista dos usuários ao nível local, cons-titui um instrumento importante de empodera-mento, revelando suas próprias concepções so-bre os problemas da saúde mental, suas experi-ências e avaliação sobre os vários tipos de servi-ços e como poderiam concebê-los de acordo comseus interesses e visão de mundo. Também po-dem fornecer evidências que desafiam os pontos

de vista convencionais de planejadores, profissio-nais e do senso comum, permitindo influenciar aopinião pública, lançar campanhas e reivindica-ções, e visualizar modos concretos de superar osproblemas identificados.

Neste conjunto da literatura anglo-saxônica‘amiga dos usuários’ (user friendly) e, ou, com-prometida com seu empoderamento, podemosnotar diferentes níveis de envolvimento e partici-pação dos usuários de serviços.

Carrick et al.22 identificaram três níveis de en-volvimento em pesquisas:

- consulta, quando os pesquisadores pergun-tam a opinião dos usuários;

- colaboração, quando há uma parceria efeti-va e divisão do poder entre pesquisadores e usuá-rios;

- projetos controlados pelos usuários, quandousuários e suas organizações decidem envolverprofissionais e acadêmicos em aspectos específi-cos da pesquisa, mas sob seu inteiro controle.

Os autores concluem que o terceiro tipo depesquisa foi o mais “empoderador”, enquanto aconsulta representou o menos.

Por sua parte, Hutchinson et al.23 e outrosautores15 indicaram que iniciativas mais simples,tais como dividir com outros usuários uma his-tória pessoal, como sujeitos em uma pesquisa,mesmo sem participar de outras etapas da pes-quisa, já podem ser empoderadoras. Beresford eEvans24 e Linhorst25, em uma abordagem maiscomplexa, descrevem os parâmetros para a ava-liação dos efeitos de empoderamento das pes-quisas como um continuum de envolvimento,que vai das mais empoderadoras até as não em-poderadoras. Nesta perspectiva, o empodera-mento cresce na medida em que os usuários vãogradualmente controlando mais cada aspecto eetapa da pesquisa. Outros autores, tais comoCarrick et al.22, são mais pragmáticos, defenden-do que “o processo de pesquisa deve empoderarquando possível, ou pelo menos, não deve de-sempoderar”.

Esta indicação de Carrick et al.22 nos pareceimportante, do ponto de vista de uma apropria-ção transcultural crítica das estratégias de empo-deramento no Brasil, pois reforça a nossa dire-ção ética e política de que o processo de empode-ramento deve ser relacionado organicamente àscaracterísticas estruturais e conjunturais, bemcomo às possibilidades reais de empoderamentoe seus limites, em cada contexto.

Do ponto de vista das condições e critériosconsideradas importantes para o empoderamentode usuários através da pesquisa, nos parece rele-

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vante lembrar aqui, resumidamente, os pontosindicados na revisão realizada por Linhorst25:

a) gestão dos sintomas psiquiátricos: os sin-tomas psiquiátricos das pessoas envolvidas são ge-ridos no grau necessário para poderem participarde forma plena de sentido de um processo de pes-quisa específico;

b) habilidades participativas: a pessoa possuias habilidades necessárias para poder participar deforma plena de sentido de um processo de pesquisaespecífico;

c) prontidão psicológica: a pessoa tem a con-fiança, a motivação e a vontade para poder parti-cipar de forma plena de sentido de um processo depesquisa específico;

d) respeito e confiança mútuos: a pessoa comtranstorno mental e quaisquer pesquisadores semtranstorno explícito, com os quais ela pode traba-lhar, têm o nível necessário de respeito e confiançamútuos para poder participar de forma plena desentido de um processo de pesquisa específico;

e) incentivos concretos recíprocos: incen-tivos concretos existem para a pessoa com trans-torno mental para participar em processo de pes-quisa e para pesquisadores e outros participantespara trabalhar de forma plena de sentido com ela;

f) disponibilidade de escolhas: a pessoa temescolhas de processo de pesquisa nas quais podeparticipar de forma plena de sentido;

g) estruturas e processo de participação: apessoa tem estruturas e processos através dos quaispoderá participar de forma plena de sentido emum processo de pesquisa;

h) acesso a recursos: a pessoa tem acesso aosrecursos necessários para participar de forma ple-na de sentido em um processo de pesquisa;

i) cultura encorajadora: a cultura que envol-ve o processo de pesquisa é encorajadora de umaparticipação de forma plena da pessoa com trans-torno mental.

Após esta rápida revisão das principais ten-dências mais engajadas no empoderamento empesquisas no campo da saúde mental na litera-tura anglo-saxônica, é fundamental alertar queapenas uma minoria de todo o conjunto das pes-quisas avaliativas usam metodologias “amigasdo usuário”. A maior parte das avaliações empesquisas oficiais na Inglaterra e Estados Unidosé capturada pela atual cultura gerencialista, queprioriza a racionalidade financeira, escolhendometodologias empiricistas e positivistas, comonos desenhos experimentais, que priorizam re-sultados (e não processo), objetividade, relaçãocusto-eficiência e neutralidade do observador. Amaioria dos estudos não questiona quais inte-

resses estão sendo enfatizados por um desenhode pesquisa em particular ou por um determina-do perfil de definição dos objetivos e resultados,ou ainda por um determinado instrumento emodo de administrá-lo.

Nessa perspectiva, é interessante recuperarum trabalho ainda da década de 1990, mas aindaextremamente relevante, de Perkins e Repper26,que avaliaram criticamente as consequências des-sas tendências dominantes em pesquisa, salien-tando os seguintes dilemas principais:

a) Definição de objetivos e resultados dos servi-ços: diversos autores têm mostrado como osobjetivos e os resultados desejáveis de serviços desaúde mental são multidimensionais e dependen-tes de diferentes pontos de vista, associadas àslutas e relações de poder. Diferentes conjuntos deobjetivos e resultados em serviços divergem en-tre si dadas as diferentes ênfases e perspectivas.Por exemplo, serviços de saúde mental geralmenteapresentam resultados com estatísticas conven-cionais (números de atividades, taxas de admis-são e alta, etc.) para notificar as autoridades epara assegurar a continuidade de fundos, comênfase nos custos e em evitar problemas e polê-micas na comunidade. Porém, esses objetivosdiferem daqueles formulados por diferentes gru-pos de usuários diretos, familiares e profissio-nais. Todavia, a maior discrepância levanta-seentre profissionais e usuários, na avaliação daefetividade do serviço e na extensão de uma in-tervenção que seja aceitável para os usuários deserviços. Em nosso ponto de vista, entendemosque a própria tradição de avaliação independen-te, fortemente enraizada na cultura inglesa e an-glo-saxã, deve ser desafiada e rediscutida, na di-reção de avaliações que explicitassem quais valo-res, abordagens e interesses seriam priorizadosem uma pesquisa. Esta discussão deveria atingiro nível das opções epistemológicas, no qual odebate atual sobre paradigmas científicos e a con-sequente crítica aos métodos tradicionais empi-ricistas e neopolitivistas, é essencial27.

b) Medindo os resultados: uma questão rela-cionada à anterior é a de como os objetivos po-dem ser mensurados. Os instrumentos tradicio-nais enfatizam as propriedades psicométricas: con-fiabilidade, validade e sensibilidade das medidasempregadas. Todavia, esse tipo de precisão tendea menosprezar as contradições mostradas no tó-pico anterior ou em padrões diferentes de covari-ação. Por exemplo, um nível baixo de melhora-mento nos sintomas ou funcionamento social,variáveis clássicas nos estudos de resultados, po-dem acontecer em paralelo com um entendimen-

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to crescente do usuário sobre seus problemas, oque pode reduzir sentimentos de desespero e an-gústia, geralmente ignorados. As perspectivas di-ferentes e os objetivos múltiplos no cuidado dasaúde mental exigem medidas e instrumentos deresultados múltiplos e complexos. Como todoseles são planejados pelos especialistas, geralmenterefletem suas agendas e preocupações específicas,como, por exemplo, nas escalas convencionaispara medir a ‘satisfação do paciente’. Um bomcontraexemplo a estas escalas, de acordo comPerkins e Repper26, é uma construída por usuári-os para medir o empoderamento entre seus paresem serviços de saúde mental, desenvolvida poruma junta de dez líderes do movimento de usuá-rios nos Estados Unidos, descrita por Rogers etal.28, representando a diversidade de pontos devistas dentro do movimento e adotando os prin-cípios da pesquisa-ação. Contudo, essa escala ain-da utiliza um questionário tradicional, enquantooutras metodologias qualitativas realçam a pers-pectiva dos usuários sobre os serviços: gruposfocais, diários mantidos por usuários, relatóriosde conselhos de usuários, entre outras indicadaspor Perkins e Repper26. Além disso, a questão decomo administrar tais medidas também é rele-vante, na medida em que mesmo quando temospesquisadores independentes, os usuários tendema agradar os entrevistadores dizendo o que elesgostariam de ouvir. Um modo de evitar isso éenvolver os usuários ou o movimento de usuári-os enquanto pesquisadores, em pesquisa-ação,que tende a levar a informações mais acuradassobre seus problemas e preocupações. Essa estra-tégia tem sido adotada por muitas organizaçõesque possuem claro compromisso com o movi-mento de usuários.

c) A natureza complexa e heterogênea da cli-entela, de suas dificuldades e dos serviços: no cam-po da saúde mental, é extremamente difícil avali-ar a efetividade de uma única intervenção de ou-tras, de forma isolada das demais, ou ainda ascontribuições relativas de seus diferentes com-ponentes. Além disso, a maior parte dos serviçosocidentais tendem a integrar agências estatais, doTerceiro Setor e privadas, propondo mais desafi-os para a avaliação efetiva dos serviços. A maio-ria dos estudos tende a examinar um determina-do conjunto de intervenções e ignorar todos osoutros, excluindo assim as interações entre o alvoem avaliação e as outras intervenções.

d) Metodologia e desenho de pesquisa: nessetópico, Perkins e Repper26 revisaram escolhas en-tre diferentes metodologias de pesquisa, apon-tando como elas dependem de diferentes pergun-

tas, perspectivas e interesses valorizados, e da pró-pria complexidade inerente aos fenômenos men-tais. Até mesmo desenhos de pesquisa epidemio-lógicos tão em voga na Inglaterra, como os estu-dos duplo-cego com controle randômico, temsido severamente criticados não somente em seuuso tradicional na avaliação de novas drogas, masprincipalmente no momento de estimar resulta-dos de intervenções complexas e dos serviços nocampo de saúde mental. Ademais, a maioria dasintervenções psicossociais complexas não podemser de modo algum ‘cegas’, visto que são alta-mente dependentes de crenças, expectativas e re-lacionamentos pessoais diretos. Além disso, oprocesso de recuperação em saúde mental é lon-go, e intervenções a curto prazo podem parecerineficazes e serem abandonadas em favor daque-las com benefícios mais a curto prazo, mas care-cendo de efetividade no longo prazo.

Na nossa opinião, quando nos deparamoscom a literatura anglo-saxônica de avaliação deserviços, também é importante salientar a maiorênfase dada ao resultados do que ao processo, o quevai na direção contrária à perspectiva de empo-deramento. Esse é um tema particular levantadopela Psiquiatria Democrática italiana, em suasmelhores experiências, principalmente no Nortee na parte central do país29. Contudo, tambémexistem contraexemplos interessantes na litera-tura anglo-saxã, como o livro de Townsend30.Utilizando a ‘etnografia institucional’ desenvolvi-da pela socióloga canadense Dorothy Smith, in-fluenciada pela etnometodologia, feminismo, fe-nomenologia e ideias marxistas, o livro investigaas contradições entre as intenções conscientes dostrabalhadores de fortalecer o poder dos usuáriosde serviços de saúde mental e a invisível organi-zação inconsciente de poderes no cotidiano dosserviços, gerando dependência e perda de auto-nomia por parte dos usuários. A investigaçãofocaliza tanto as boas intenções de profissionaiscomo os processos institucionais através dos quaiso empoderamento é anulado:

as tentativas de facilitar a participação são mi-nadas pelos processos de objetificação, prestação indi-vidualizada de contas, de tomada de decisão hierár-quica, de educação indutora de simulação, de ma-nejo de risco e exclusão, que protegem mas tambémcontrolam as pessoas. O significado desta crítica seestende além dos serviços de saúde mental, porqueprocessos semelhantes são utilizados na organizaçãorotineira de poder em educação, seguro-desemprego,transportes e outros setores da sociedade27.

Creio que agora podemos nos direcionarpara as ideias e as estratégias de empoderamento

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no Brasil, seus desdobramentos no campo emsaúde mental, e na pesquisa envolvendo a área.

Desenvolvimento do empoderamentono Brasil e tendências na produçãode conhecimento e na pesquisaem saúde mental

Movimentos mais amplos que incorporamestratégias de empoderamento, mas semfiliação direta à tradição anglo-saxônicaNa concepção mais genérica de empodera-

mento que adotamos, como uma interpelaçãocom longa história de tradições na modernida-de, suas estratégias podem não se inspirar dire-tamente no conceito e nas referências teóricasanglo-saxônicas. Assim, no Brasil e em algunsdos países latino-americanos vizinhos, as ideiase as estratégias de empoderamento são identifi-cáveis em movimentos sociais nas últimas déca-das em vários campos. As principais referênciasbibliográficas já foram indicadas em outros tra-balhos de nossa autoria4,31, e como os autoresindicados são facilmente localizados nos siste-mas de indexação digital, dispensamos a indica-ção de referências nesta seção. Entre estas tradi-ções, podemos citar:

a) As tradições do chamado cristianismo de li-bertação e da teologia da libertação, um amplomovimento social surgido na América Latina eno Brasil na década de 60, envolvendo setores doclero, movimentos laicos, pastorais populares eComunidades Eclesiais de Base (CEB), com difu-são em outros movimentos sociais populares. Osautores mais citados são Gustavo Gutierrez e, noBrasil, Leonardo Boff. Teve seu auge nas décadasde 1980 e 1990, mas ainda mantém um ativismoimportante nas classes populares no Brasil.

b) As tradições de educação popular, particu-larmente inspiradas em Paulo Freire, a partir dadécada de 1960, e alguns de seus desdobramen-tos no campo da saúde, como o movimento deeducação popular em saúde, cujos principais fun-dadores no Brasil são Victor Valla, Eymard Mou-rão Vasconcelos e Eduardo Stotz, com forte atua-ção em atenção primária em saúde.

c) A estratégia de controle social incorporadasao SUS e às principais linhas de política social nopaís, a partir da Constituição de 1988, por meiode conselhos e conferências formados por meta-de de seus membros por representantes da socie-dade civil.

d) As tradições de teatro popular, como o Tea-tro do Oprimido do brasileiro Augusto Boal,desde a década de 1970.

e) As tradições de pesquisa participante e pes-quisa-ação, cujos principais representantes noBrasil são Michel Thiollent e a perspectiva deanálise institucional.

f) O movimento institucionalista e grupalista,com suas origens principais na França na décadade 1970, e forte difusão no Brasil e na Argentina,com inspiração na psicanálise e teorias sociaiscríticas. Como exemplos, temos a psicossociolo-gia (Anzieu, Enriquez, Kaës), socioanálise (La-passade e Lourau), esquizoanálise (Deleuze eGauattari), e o grupo operativo (Pichon-Riviè-re). No Brasil, têm influência na psicologia so-cial, psicologia comunitária e em saúde mental.

g) O movimento de economia solidária, hojepolítica oficial no Brasil, inspirado no cooperati-vismo, com redes de produção, comercialização,capacitação e apoio técnico.

h) A perspectiva de empoderamento no serviçosocial brasileiro, representado por Vicente Falei-ros e pelo autor deste trabalho.

i) O próprio movimento antimanicomial bra-sileiro e argentino, que, juntamente com o movi-mento sanitário, são os principais impulsiona-dores da reforma psiquiátrica nestes países.

Abordagens explícitas de empoderamentono campo da saúde mental no Brasil

No Brasil, a partir do novo ímpeto geradopela criação do movimento antimanicomial, em1987, e da II Conferência Nacional de Saúde Men-tal, em 1992, iniciamos a implementação dos no-vos serviços de atenção psicossocial, e em parale-lo, a criação de associações de usuários e familia-res. Há uma clara preponderância dos profissio-nais e trabalhadores no ativismo dentro do mo-vimento antimanicomial, como também as or-ganizações de usuários e familiares vêm mostran-do um perfil predominantemente misto (usuári-os, familiares e profissionais), tendo os últimosum papel mais proeminente e regular, em umquadro de organização, bases financeiras e ativis-mo político em geral bastante fragilizado3,32.

Durante a década de 2000, alguns trabalhos3-

5,18 divulgaram ideias de empoderamento maisdiretamente inspiradas na tradição anglo-saxô-nica em saúde/saúde mental e no movimento dosusuários nestes países. Na segunda metade da dé-cada, testemunhamos iniciativas piloto com usu-ários e familiares, integrados à rede de saúde men-tal, como também projetos de pesquisa, associa-dos à sistematização dos novos dispositivos ouem avaliação de serviços, muitos dos quais emconvênios com países anglo-saxões. Na IV Con-

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ferência Nacional de Saúde Mental, em 2010, aspropostas destes novos dispositivos foram apro-vadas e incorporadas ao seu Relatório. Mesmoque não possamos revisar estas tendências aqui,o tema será tratado em um artigo coletivo nestemesmo número do periódico, e podemos apenasindicar as suas duas direções básicas:

a) Uma tradição de pesquisa avaliativa de pro-gramas e serviços em saúde e saúde mental, combase em formas complexas de envolvimento eparticipação dos usuários do SUS, mesmo comcontrole mais geral dos profissionais e pesquisa-dores. Podemos citar o Laboratório de Pesquisassobre Práticas de Integralidade em Saúde (LAP-PIS), coordenado por Roseni Pinheiro (IMS-UERJ)33, e o núcleo de pesquisa coordenado porRosana Onocko-Campos (FCM-UNICAMP)34.

b) Projetos piloto de experimentação e siste-matização de dispositivos de empoderamento emsaúde mental, junto à rede de atenção psicosso-cial, integrados com pesquisa ou com estratégiasparticipativas de produção de conhecimento eavaliação, diretamente inspirados na tradiçãoanglo-saxônica de empoderamento. Aqui pode-mos citar os trabalhos coordenados por Ono-cko Campos em torno do GAM (Grupo Autô-nomo de Medicação)35 e por Eduardo Vasconce-los, do Projeto Transversões (ESS-UFRJ), sobreos grupos de ajuda e suporte mútuos em saúdemental36.

Considerações finais

Este artigo abordou as condições históricas dedesenvolvimento de estratégias de empoderamen-

to de usuários e familiares no campo da saúdemental e seus desdobramentos no campo da pes-quisa avaliativa e interventiva em serviços. Dele,podemos deduzir algumas linhas conclusivasmais gerais:

a) Empoderamento constitui uma aborda-gem ambígua, mas apropriável para a perspecti-va emancipatória dos interesses de setores opri-midos em países periféricos e semiperiféricos,desde que sustentado em teorização social/polí-tica e projetos históricos mais amplos, e que sediferencie das apropriações conservadoras dossetores dominantes.

b) As abordagens anglo-saxônicas de empo-deramento em saúde mental têm um forte cará-ter autonomista e uma experiência mais longa,associada ao movimento de usuários, e ofere-cem um amplo espectro de práticas alternativasem saúde mental e em pesquisa avaliativa e inter-ventiva. Sem dúvida alguma, elas têm um enor-me potencial de inspirar e fertilizar outros movi-mentos antimanicomiais e reformistas de outrospaíses.

c) Entretanto, o contexto diferenciado dospaíses periféricos e semiperiféricos, como o Bra-sil, condicionam o significado e o potencial dasinterpelações autonomistas e de empoderamen-to em nossos países. Assim, os projetos de inter-câmbio e nossas experiências de serviços, de ati-vismo social e político e de pesquisa, que buscaminspiração na tradição anglo-saxônica, devemlevar em alta consideração estas característicaspróprias de nossos países, auscultando com cui-dado a dinâmica própria que estes projetos vãotomando localmente.

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Artigo apresentado em 24/04/2013Aprovado em 15/06/2013Versão final apresentada em 03/07/2013

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